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Relato do leitor
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(23/Abr) | Espacialidade | ||
Quando falamos sobre o sensorial e abstrato discutimos, entre outras questões, sobre a divisão ou união que pode existir entre o corpo e a mente. Chegamos a conclusão que essa relação é uma questão subjetiva: para algumas pessoas pode haver uma união onde a pessoa é, sua mente e seu corpo, como um todo, não podendo haver distinção. Para outros casos o corpo é apenas um veículo para a mente, assim podemos notar uma distinção entre mente e corpo.
Essa divisão serve apenas para ilustrarmos o motivo de algumas pessoas manifestarem, no corpo, problemas que afetam a mente, como stress ou estados emocionais. "Algumas pessoas", pois isso não acontece com aqueles que separam a mente do corpo. Estou retomando este assunto apenas como introdução para o próximo tema. Nosso corpo pertence a uma categoria de seres que ocupam espaço e vivem dentro do tempo. Nossa existência se dá em um lugar e tempo específicos. Não existíamos sensorialmente antes de sermos gerados, não existiremos depois de nossa morte, e estamos em um único lugar, dentro de uma fração de tempo específica. Diante desta constatação Platão buscou algo que pudesse existir fora do tempo e do espaço. Disse então que tudo que está submisso ao tempo é perecível e criou a teoria do mundo das idéias, lugar onde viveriam as formas eternas e perfeitas, fora do tempo. O mundo sensível que conhecemos está sujeito ao tempo e espaço, Shopenhauer também se ocupou deste tema e disse que, sobre o mundo sensível temos apenas representações, pois não se trata de um mundo que existe de fato. O mundo que existe de fato, o que Kant chamou de coisa em si, não pode ser conhecido pelos nossos sentidos, é algo de outra natureza; este Shopenhauer chamou de vontade. O mundo sensível que conhecemos, Kant chamou de fenômeno, é a parte do objeto que se deixa conhecer, é aquilo que conseguimos atingir com nossos sentidos, é o que aparece. O que nos interessa aqui é o mundo como representação, este é único para cada pessoa, pois se refere à representação que fazemos do mundo. Assim passamos a falar não do mundo que existe de fato, mas do mundo individual, subjetivo, de cada um. Cabe frisar que o pensamento humano é uma extensão de nossas experiências sensoriais, "nada chega ao intelecto sem antes passar pelos sentidos". Através dos pensamentos podemos abstrair o mundo sensível, porém, tudo que pensamos tem como base o mundo sensível. "A coisa em si", "a vontade" ou "o mundo ideal" que citamos acima é algo de uma natureza que está além da lógica de nossa razão, por isso, de forma alguma o pensamento se aproxima do que nossos filósofos quiseram dizer. Concluímos que o pensamento está atrelado aos sentidos e à razão humana, e por isso fazem parte da representação de mundo de cada um. Estudaremos agora a capacidade que temos de permanecer em nosso próprio mundo, de irmos ao mundo de outra pessoa, de nos deslocarmos até um objeto ao alcance dos sentidos, ou mesmo de nos deslocarmos, através da mente, no tempo e espaço. Inversão Quando estamos Inversivos estamos em nós mesmos. Quer dizer que estamos em nosso mundo, nossos valores, nossas preocupações, nosso jeito de estar, nossa vida. Uma dor física tem grande poder de inversão, os dados sensoriais servem de referencia para a inversão. Por exemplo, sentir um aroma, o frio das tardes de inverno, nossos sonhos, emoções, desejos, prazeres, tudo isso e muitas outras coisas são dados propícios à inversão. Por isso dizemos que estamos inversivos quando estamos em nós mesmos. Este é um dos endereços existenciais, seria possível estar no mundo de outra forma? Recíproca de Inversão Outro endereço existencial é a recíproca de inversão. Quando fazemos recíproca de inversão, vamos ao mundo do outro. Estar no mundo a partir de um ponto de vista do outro, ou a partir da representação do outro é fazer recíproca de inversão. Podemos dizer que a recíproca de inversão seria tudo que falamos em torno a inversão, porém em relação ao outro. Ou seja, sofrer a dor do outro, lutar pela realização do sonho do outro, se alegrar com a conquista do outro. Algumas pessoas olham para o mundo do outro e dizem coisas do tipo: "Está fazendo tempestade em copo de água", "não era pra tanto", "está vendo problema onde não tem", etc. E pode pensar que está fazendo recíproca de inversão, mas não está. Neste caso ela está levando sua representação, suas experiências, seus pré-juizos ao mundo do outro. Na recíproca de inversão devemos olhar a situação a partir da representação do outro. Um ponto para discussão é até que ponto conseguimos sair de nosso mundo, ou até que ponto conseguimos viver a partir das medidas do outro. Quando sofremos com a dor de outro, consideramos a dor a partir de nossa experiência de dor ou do que imaginamos que seja, mas o que sentimos não é a mesma dor que o outro. Quanto maior é a recíproca mais nos distanciamos de nosso mundo e de nossas experiências e nos aproximamos do mundo do outro. Pode acontecer do mundo do outro ser mais interessante a ponto da pessoa não querer mais retornar para o seu. Isto não é um problema em si, pode ser um problema apenas dentro de um contexto. O mundo de uma pessoa pode se tornar tão insuportável a ponto de ser o ultimo lugar que ela deseja estar, neste caso a volta pode ser perigosa. Porém existem contextos em que o retorno é inevitável e então temos de nos readaptar, temos de reencontrar as coisas e se adaptar novamente. Uma mulher que viveu 15 anos de sua vida se dedicando a família, vivendo em prol do estudo e trabalho do marido um dia acorda e se depara com o fim do casamento. As musicas, as roupas, o perfume, os passeios, tudo que ela gosta pertence ao passado, estão em momentos inversivos que existiram no seu casamento. Agora ela se pergunta: do eu gosto? Qual seria a roupa se eu tivesse escolhido conforme meu gosto, de qual perfume eu gosto? Agora ela pretende se reencontrar. Os casos descritos acima demonstram pessoas que saíram quase que completamente de seus mundos este é um extremo que usamos como ilustração. Outro extremo são pessoas que não conseguem fazer recíproca. Vivem tão inversivas que não conseguem enxergar o próximo, são incapazes de se sensibilizar com a alegria ou necessidades de outros. Isso por si também não considero um problema, nossa sociedade tem espaço para todos. Para considerar um problema temos de avaliar o contexto. Entre esses dois extremos vivem as pessoas que saem de seus mundos por um momento, visitam o mundo do outro e depois retornam. Alguns de nós fazemos recíproca de inversão apenas para alguns aspectos da vida. Às vezes temos mais facilidades em ir ao mundo do outro quando este está tomado por algum sentimento, uma dor, um lazer, um trabalho, uma busca, enfim, algum assunto que nos identificamos. Embora tenhamos facilidade para alguns assuntos, podemos ter dificuldades para outros. Vimos até aqui dois endereços existenciais, a inversão e a recíproca de inversão, que significam estar em seu próprio mundo ou estar no mundo de outra pessoa. Veremos agora o deslocamento curto. Deslocamento Curto Chamamos de deslocamento curto a habilidade de nos deslocar até um objeto. Quando nossa mente se ocupa com um objeto podemos dizer que estamos fazendo um deslocamento curto. Quando um mecânico se concentra no barulho de um carro a fim de descobrir o problema, ele está fazendo deslocamento curso. Quando um jardineiro cuida de suas plantas, observa seu desenvolvimento, ele faz deslocamento curto. Consideramos deslocamento curto sempre que nossa atenção está voltada para um objeto ao alcance de nossos sentidos. Assim quando estamos em deslocamento curto, estamos com a atenção voltada para fora de nós e é essencial que o alvo de nossa atenção seja também um dado sensorial, pois no deslocamento curto devemos estar conectados através dos sentidos. O deslocamento curto tem uma relação natural com as habilidades de nosso sensorial. Quanto mais intensa é a relação com um objeto, maior será o deslocamento curto. Este tópico é observado em nosso cotidiano no contato que temos com dados materiais. Observe uma pessoa lavando seu carro, cuidando de cada detalhe, polindo, etc. em alguns casos o deslocamento é tão forte que a esposa chega a ter ciúmes do carro. Dessa forma concluímos que a relação estabelecida no deslocamento curto nos mantém mais próximos no chão, mais próximos do mundo sensível, podemos dizer até da realidade material. Podemos estimular o deslocamento curto em momentos de abstrações indesejadas. Neste sentido o deslocamento curto é o oposto do deslocamento longo. Deslocamento Longo O deslocamento longo está relacionado ao lado abstrato de nossa mente. Da mesma forma que falamos do sensorial no deslocamento curto, falaremos das abstrações no deslocamento longo. Essa é a diferença entre os dois endereços, no deslocamento curto o objeto de nossa atenção está ao alcance dos sentidos e no deslocamento longo o objeto está fora do alcance de nossos sentidos, é abstração. Aqui retomamos a questão do corpo e da mente. Se um mecânico precisa fazer um deslocamento curto para descobrir o defeito do carro que está a sua frente, o que dizer do deslocamento que ele faz agora que está em sua casa preocupado por não ter encontrado o defeito? Veja que não temos mais o carro ao alcance dos sentidos, agora o mecânico precisa lembrar-se do carro, de tudo e viu e ouviu na oficina para considerar as hipóteses. O mecânico pode estar em casa, responder às perguntas da esposa, brincar com o filho, mas a preocupação continua em sua mente e sempre que pode ele retorna ao carro em busca do problema. Quanto mais se concentra no objeto que está fora de seu ambiente sensível, mais ele se desliga sensorialmente, ele nem houve mais o que diz o noticiário da televisão, o barulho que vinha da cozinha já sumiu completamente, o grito do filho que brinca com um amiguinho faz com que ele retorne por um instante, mas logo retoma seu trabalho novamente. O deslocamento longo transporta a mente humana para fora do ambiente sensível em que o corpo se encontra. Podemos retornar ao passado através das lembranças e podemos também projetar o futuro. Pessoas que tem facilidade para fazer deslocamentos longos fazem isso a qualquer momento ou lugar. É uma habilidade que pode ser muito útil, mas já conheci pessoas que reclamam por não conseguir controlar os deslocamentos. Às vezes a pessoa pode estar em um trabalho que exige o deslocamento curto, mas sua mente insiste em fazer deslocamentos longos. Isso pode acontecer com qualquer um que esteja preocupado com alguma coisa, mas algumas vezes acontece sem motivo, ou mesmo por estarmos em um lugar quando desejamos estar em outro. Saberemos o motivo dentro do contexto. A capacidade de fazer deslocamentos longos possibilita ao homem ir alem dos limites de seu corpo físico. Podemos nos ocupar com coisas que não estão ao alcance de nossas mãos ou mesmo de nossos olhos. Quanto menos conectados às sensações mais longe conseguimos ir. Clailton Oliveira. |
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Como referenciar: "Relato do leitor" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2025. Consultado em 17/06/2025 às 00:31. Disponível na Internet em http://www.filosofia.com.br/vi_relato.php?id=44