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Relato do leitor

 
(01/Out) O MUNDO CONSIDERADO COMO VONTADE
 
RESUMO


LIVRO SEGUNDO


O MUNDO CONSIDERADO COMO VONTADE


Primeiro ponto de vista

A objetivação da vontade



§ 17

No primeiro livro consideramos a representação como tal, isto é, unicamente sob a sua forma geral. Contudo, no que diz respeito à representação abstrata, o conceito, estudamo-lo também no seu conteúdo, e vimos que ele só tem conteúdo e significação pela sua relação com a representação intuitiva, sem a qual seria vazio e sem significado. Chegados assim à representação intuitiva, vamo-nos preocupar em conhecer o seu conteúdo, as suas determinações exatas e as formas que nos apresenta. Ficaremos felizes sobretudo se nos pudermos pronunciar sobre a sua significação verdadeira, sobre essa significação que apenas sentimos, e graças à qual, essas formas que sem ela nos seriam estranhas e sem significado, nos falam diretamente, se tornam compreensíveis para nós e adquirem, aos nossos olhos, um interesse que agarra completamente o nosso ser.
Lancemos os olhos sobre as matemáticas, as ciências naturais, a filosofia, todas as ciências em que esperamos encontrar uma parte da solução procurada – Inicialmente a filosofia parece-nos um monstro de varias cabeças, cada uma das quais fala uma língua diferente, contudo, sobre este ponto particular que nos ocupa, - a significação da representação intuitiva, - elas não estão todas em desacordo, visto que, com exceção dos céticos e dos idealistas, todos os filósofos se encontram, pelo menos quanto ao essencial, no que diz respeito a um certo objeto, fundamento de toda a representação, diferente dela no seu ser e na sua essência, e todavia tão semelhante a ela, em todas as suas partes, como um ovo pode ser em relação a outro. Mas nós temos nada a esperar disso, visto que sabemos que não se pode distinguir um tal objeto da representação; julgamos, pelo contrário, que aí apenas existe uma só e mesma coisa, visto que um objeto pressupõe sempre um sujeito, e por conseqüência é apenas uma representação, acrescentemos que já reconhecemos a existência do objeto como dependendo da forma mais geral da representação; a distinção entre eu e não eu. Alem disso, o principio de razão, a que nos referimos aqui, é apenas uma forma da representação, isto é, o vinculo regular das nossas representações, e não o vinculo da série total, finita ou infinita, das nossas representações, com qualquer coisa que não seria a representação, e que, por conseqüência, não seria suscetível de ser representado.
O que adquirimos de hoje em diante, depois de todas estas investigações, é que não nos basta saber que temos representações, que essas representações são tais ou tais, e dependem de tal ou tal lei, cuja expressão geral é sempre o princípio de razão. Queremos saber a significação dessas representações; perguntamos se o mundo não as ultrapassa, caso em que deverá apresentar-se nos, como um sonho vão, ou como uma forma vaporosa semelhante à dos fantasmas; não será digno de atrair a nossa atenção. Ou então, pelo contrario, não era ele qualquer coisa diferente da representação, alguma coisa mais; e nesse caso o que é ele? É evidente que essa qualquer coisa deve ser plenamente diferente da representação, pela sua essência, e que as formas e as leis da representação devem ser-lhe completamente estranhas. Por conseguinte, não se pode partir da representação, para chegar até ele, com o fio condutor dessas leis, que são apenas o vinculo do objeto, da representação, isto é, das manifestações do principio de razão.
Por isso vemos já que não é de fora que devemos partir para chegar à essência das coisas; procurar-se-á em vão, só se chegará a fantasmas ou fórmulas; parecer-nos-emos com alguém que dá a volta a um castelo, para lhe encontrar a entrada, e que, não a encontrando, desenhará a fachada.

§ 18

Na realidade, seria impossível encontrar a significação procurada deste mundo, que me aparece absolutamente como a minha representação, ou então a passagem deste mundo enquanto simples representação do sujeito que conhece, àquilo que pode estar fora da representação, se o próprio filosofo não fosse nada mais do que o puro sujeito que conhece (uma cabeça de anjo alado, sem corpo). Mas, com efeito, ele tem a sua raiz no mundo: enquanto individuo, faz parte dele; só o seu conhecimento torna possível a representação do mundo inteiro; mas este mesmo conhecimento tem como condição necessária a existência dum corpo, cujas modificações são, o ponto de partida do entendimento para a intuição desse mundo, para o puro sujeito que conhece, este corpo é uma representação como outra, um objeto como os outros objetos. A ação do corpo é apenas o ato da vontade objetivado, isto é, visto na representação. Veremos mais adiante que isso é verdade não só para as ações causadas por motivos, mas também para aquelas que seguem involuntariamente uma excitação. Sim, o corpo inteiro é apenas a vontade objetivada, isto é, tornada perceptível: é o que a continuação desta obra vai demonstrar e esclarecer. No livro precedente, e na minha discussão sobre o princípio de razão, chamei ao corpo objeto imediato, colocando-me de propósito apenas no ponto de vista da representação. Aqui, no ponto de vista contrario, chamar-lhe-ei objetividade da vontade. Pode-se ainda dizer, num certo sentido: a vontade é o conhecimento a priori do corpo; o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade.
O conhecimento que tenho da minha vontade, embora imediato, é inseparável do conhecimento que tenho do meu corpo. Não conheço a minha vontade na sua totalidade, não a conheço na sua unidade mas do que conheço perfeitamente na sua essência; ela apenas me aparece nos seus atos isolados, por conseqüência no tempo, que é a forma fenomenal do meu corpo, como de todo o objeto. Além disso o meu corpo é a condição do conhecimento da minha vontade. Não posso, para falar com rigor, representar me esta vontade sem o meu corpo.

§ 19

Se, no nosso primeiro livro, declaramos, não sem repugnância, que o nosso corpo, como todos os outros objetos do mundo da intuição, é para nós apenas uma pura representação do sujeito que conhece, de ora em diante vemos claramente aquilo que, na consciência de cada um, distingue a representação do seu corpo da dos outros objetos, em tudo semelhante quanto ao resto; esta diferença consiste em que o corpo pode ainda ser conhecido de uma outra maneira absolutamente diferente, e que se designa pela palavra vontade; este duplo conhecimento do nosso corpo dá-nos sobre ele, sobre os seus atos e os seus movimentos, como sobre a sua sensibilidade às influencias exteriores, numa palavra, sobre aquilo que ele é fora da representação, sobre o que ele é em si, esclarecimentos que nós não podemos obter diretamente sobre a essência, sobre a atividade, sobre a passividade dos outros objetos reais.
Pela sua relação particular com um só corpo que, considerado fora dessa relação, é para ele apenas uma representação como todas as outras, o sujeito que conhece é um indivíduo. Mas esta relação, em virtude da qual ele se torna indivíduo, só existe, por isso mesmo, entre ele e uma só das suas representações.
Pode-se, na verdade, provar, duma maneira certa, que os outros objetos, considerados como simples representações, são semelhantes ao nosso corpo, isto é, que, como este, eles preenchem o espaço e que, como ele agem no espaço; pode-se provar isso, repito, através dessa lei de causalidade, infalivelmente aplicável às representações a priori, e que não admite nenhum efeito sem causa. Os objetos conhecidos apenas como representação, pelo indivíduo, são, tal como o seu próprio corpo, fenômenos de vontade. Nega-lo, eis a resposta do egoísmo teórico, que considera todos os fenômenos, salvo a si próprio, como fantasmas, do mesmo modo que o egoísmo pratico, que, na aplicação, só vê e trata como uma realidade a sua pessoa, e todas as outras como fantasmas.
Nós temos agora, pois, acerca da essência e da atividade do nosso próprio corpo, um duplo conhecimento muito significativo, e que nos é dado por dois modos muito diferente; vamo-nos servir deles como duma chave, para penetrar até à essência de todos os fenômenos e de todos os objetos da natureza que não no são dados, na consciência, como sendo o nosso próprio corpo, e que, por conseqüência, nós não conhecemos de dois modos, mas que são apenas as nossas representações; julgáremos por analogia como o nosso corpo e suporemos que se, por um lado, são semelhantes a ele, enquanto representações, e, por outro lado, se se lhes acrescenta a existência, enquanto representação do sujeito, o resto, pela sua essência, deve ser o mesmo que aquilo que nós chamamos em nós vontade.

§ 20

Todo ato do meu corpo é o fenômeno dum ato da minha vontade, no qual se exprime, em virtude de motivos dados, a minha própria vontade, em geral, e no seu conjunto, isto é, o meu caráter; mas a condição necessária e prévia de toda a ação do meu copo deve ser também um fenômeno da vontade, visto que a sua manifestação não poderia depender de qualquer coisa que não fosse imediata e unicamente por ela, que só lhe pertencesse por acaso (caso em que a sua própria manifestação será um efeito do acaso): esta condição, é o corpo no seu conjunto. Ele deve, portanto, ser já um fenômeno da vontade e encontrar-se com a minha vontade no seu conjunto, isto é, o meu caráter inteligível, cujo fenômeno, no tempo, é o meu caráter empírico, na mesma relação que em um ato isolado do corpo esta para com um ato isolado da vontade. Assim o meu corpo é apenas a minha vontade tornada visível. Toda a essência exata de todo o fenômeno é desconhecida; ela é pressuposta por toda a explicação etiológica, e designada simplesmente pelo nome de força, de lei da natureza, ou, - quando se trata das nossas ações, - pelo de caráter ou vontade.

§ 21

Não é apenas nos fenômenos completamente semelhantes ao seu próprio, nos homens e nos animais, que ele encontrará, como essência intima. Essa mesma vontade; mas um pouco mais de reflexão levá-lo-á a conhecer que a universalidade dos fenômenos, tão diversos para a representação, tem uma única e mesma essência, a mesma que lhe é conhecida intima, imediatamente, e melhor do que qualquer outra, aquela enfim que na sua manifestação mais aparente tem o nome de vontade. Fenômeno significa representação, e mais nada; e toda a representação, todo o objeto é fenômeno. A coisa em se, é unicamente a vontade; nesta qualidade, esta não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto genere; a representação, o objeto, é o fenômeno, a visibilidade, a objetividade da vontade. A vontade é a substancia intima, o núcleo tanto de toda a coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem; se as duas diferem tão profundamente, é em grau e não em essência.

§ 22

Ora não se tinha reconhecido até hoje que a essência de toda a energia, latente ou ativa, na natureza, era idêntica à vontade, e consideravam-se como heterogêneos os diferentes fenômenos, que são apenas as diversas espécies dum gênero único: resultava daí que também não podia haver uma palavra par exprimir o conceito deste gênero.

§ 23

Até aqui só se consideraram como manifestações da vontade as modificações que têm por causa um motivo, isto é, uma representação; é por isso que só se atribuiu a vontade ao homem, quando muito, aos animais, atendendo a que o conhecimento e a representação, como disse noutro loca, são característica próprias da animalidade. Mas nós vemos muito bem, pelo instinto e caráter industrioso de certos animais, que a vontade age também onde ela não é guiada pelo conhecimento; que eles tenham representações e um conhecimento, não é uma consideração que nos possa deter aqui, visto que eles ignoram completamente o fim para o qual trabalham como se fosse um motivo conhecido. A sua atividade não é regulada por um móbil, não é acompanhada de representação, e prova-nos claramente que a vontade pode agir sem nenhuma espécie de conhecimento. O jovem pássaro não tem nenhuma representação dos ovos para os quais constrói um ninho, nem a jovem aranha da presa para a qual tece a teia, nem o formigão, da formiga para a qual prepara uma cova. Neste ato particular destes animais, a atividade manifesta-se tão claramente como em todos os outros; só que se trata de uma atividade cega, que é acompanhada de conhecimento, mas não dirigida por ele. Se alguma vez tivéssemos compreendido bem que a representação, enquanto motivo, não é essencialmente uma condição necessária da atividade da vontade, ser-nos-ia mais fácil reconhecer essa atividade onde ela é menos evidente. Em nós, também, a vontade é cega em todas as funções do nosso carpo, que nenhum conhecimento rege, em todos os seus processos vitais ou vegetativos, na digestão, secreção, crescimento, reprodução. Não são só as ações do corpo, é o próprio corpo todo inteiro que é a expressão fenomenal da vontade, a vontade já não é guiada pela consciência, já não é regida por motivos: ela age cegamente e segundo causas que, sob este ponto de vista, denominamos excitações.
Este conhecimento da essência das coisas, que só nos é diretamente dado, vamos aplica-lo igualmente às plantas de que todos os movimentos nascem de excitações, visto que é a ausência de conhecimento, e por conseguinte a ausência de movimentos provocados por motivos, que coloca uma tão grande diferença entre o animal e a planta. Afirmaremos que aquilo que, para a representação, nos aparece como planta, como simples vegetação, sob o aspecto duma força que atua cegamente, é, na sua essência ainda, a vontade, essa mesma vontade que é a base do nosso próprio fenômeno, tal como ele se manifesta em toda a nossa atividade, como também na existência do nosso corpo.
Resta-nos dar um último passo, estender o circulo da nossa observação até essas forças que atuam, na natureza, segundo leis gerais e imutáveis, e que fazem mover todos os corpos inorgânicos, incapazes de sofrer uma excitação ou de ceder a um motivo. Nós vamos empregar esta noção de essência intima das coisas, que só o conhecimento imediato da nossa própria essência nos podia dar, para penetrar esses fenômenos do mundo inorgânico, tão afastados de nós - Se nós olharmos atentamente, se nós virmos o ímpeto poderoso, irresistível, com que as águas se precipitam nas profundezas, a violência com que os dois pólos elétricos tendem um para o outro, violência que cresce com os desejos humanos; se nós considerarmos a rapidez com que se opera a cristalização, a regularidade dos cristais, que resulta unicamente dum movimento em diversas direções bruscamente parado, e submetido, na sua solidificação, a leis rigorosas; se nós observarmos o discernimento com que os corpos subtraídos aos laços da solidez e postos em liberdade no estado fluido se procuram ou se evitam, se unem ou se separam; e, enfim, notarmos como um peso de que o nosso corpo para a atração para o centro da terra comprime e pesa continuamente sobre este corpo, de acordo com a lei de atração, - não teremos de fazer grandes esforços de imaginação para reconhecer, ainda, aí, - embora a uma grande distancia, - a nossa própria essência, a essência desse ser que, em nós, atinge o seu fim, iluminado pelo conhecimento, mas que aqui, nas mais fracas das suas manifestações, se esforça obscuramente, sempre no mesmo sentido, e que, no entanto, visto que ele é em todo o lugar e sempre idêntico a si mesmo, - do mesmo modo que a aurora e o pleno meio dia são a emanação do mesmo sol, - merece, em ambos os casas, o nome de vontade, pelo qual designo a essência de todas as coisas, o fundo de todas as coisas, o fundo de todos os fenômenos.

§ 24

O ilustre Kant ensinou-nos que o tempo, o espaço e a causalidade, com todas as suas leis e todas as suas formas possíveis, existem na consciência, independentemente dos objetos que aparecem nessas formas, e que constituem todo o seu conteúdo. Por outras palavras, tanto se podem encontrar partindo do sujeito como partindo do objeto; é por isso que se lhes pode chamar com mesma razão: modos de intuição do sujeito, ou propriedades do objeto, enquanto objeto (em Kant, fenômeno), isto é representação.
Espinosa diz (epístola 62) que uma pedra lançada por alguém no espaço, se fosse dotada de consciência, poderá imaginar que com isso ela não faz mais do que obedecer à sua vontade. Eu acrescento que a pedra teria razão. O impulso é para ela o que é para mim o motivo, e o que nela aparece como coesão, peso, perseverança no estado dado, é em si mesmo idêntico ao que reconheço em mim como vontade, e a pedra reconheceria também como vontade, se ela fosse dotada de consciência.

§ 26

As forças da natureza aparecem-nos como o grau mais baixo da objetivação da vontade; manifesta-se em toda a matéria, sem exceção, como a gravidade, a impenetrabilidade, e, por outro lado, partilham a matéria, de tal maneira que umas dominam aqui, outras ali, numa matéria especificamente diferente, como a solidez, a fluidez, a elasticidade, a eletricidade, o magnetismo, as propriedades químicas, e as qualidades de toda a espécie.

§ 29

Termino aqui esta segunda grande divisão do meu trabalho; espero ter conseguido, - pelo menos tanto quanto é possível, quando se exprime pela primeira vez um pensamento novo, que por conseqüência não está ainda completamente desembaraçado dos traços pessoais do seu primeiro autor - espero, dizia, ter conseguido provar duma maneira certa que este mundo, em que vivemos e existimos , é, ao mesmo tempo e em todo o seu ser, em todo o lado vontade, em todo lado representação.



Arthur Schopenhauer (1788 - 1860), filósofo alemão nascido em Dantzig.
Partindo essencialmente de Kant, Schopenhauer considera o mundo de nossa experiência como representação.
Para Schopenhauer a vontade de viver designa uma força universal de todos os seres. A vontade se manifesta na força cega da natureza e encontra-se na conduta do homem.


Bibliografia.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação: Porto - Portugal, Rés


     

 
 
Como referenciar: "Relato do leitor" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2025. Consultado em 16/06/2025 às 22:58. Disponível na Internet em http://www.filosofia.com.br/vi_relato.php?id=38