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Relato do leitor

 
(02/Set) Historicidade e Dados divisórios
 
Historicidade e Dados divisórios

A historicidade é o material com o qual o filosofo clínico fundamenta todo seu trabalho, seus fundamentos estão no historicismo, método conhecido na filosofia e utilizado por muitos filósofos. Recorrendo ao passado o filósofo tenta entender e até modificar o presente.

A Filosofia Clínica faz uso adaptado do historicismo, não segue os passos de nenhum filosofo em específico. Enquanto outros pensadores se valeram de dados históricos para conhecer um pouco mais sobre o desenvolvimento do homem, a evolução política e social da humanidade, o filosofo clínico utiliza os dados históricos da vida do partilhante para conhecê-lo melhor. O historicismo aliado a outros métodos como o fenomenológico, epistemológico, o empirismo, a lógica formal, a analítica da linguagem e a matemática simbólica, possibilita que o filósofo, além de conhecer, também entenda o funcionamento da pessoa.

Nos primeiros contatos com o filosofo o partilhante falará o que quiser, aí, normalmente, já aparece algum sintoma, o partilhante faz alguma queixa e apresenta o motivo que o levou a procurar um filósofo clinico. Quando uma pessoa está passando por uma crise existencial é natural que as coisas fiquem meio confusas em sua cabeça, memória, raciocínio, coisas da mente em geral.

Após este primeiro contato o trabalho segue com o filosofo solicitando ao partilhante as lembranças mais remotas, algumas vezes a pessoa não lembra, mas sabe, por intermédio de alguém, que algo aconteceu. Todos os dados considerados pela pessoa como parte de sua história, assim será. Pode haver casos em que a história do partilhante comece antes mesmo do nascimento pois, a pessoa pode saber de coisas que aconteceram durante a gravidez. Coisas como preparativos, tratamentos, e muito mais. Tudo isso sendo contado ao filho, pode passar a fazer parte de sua história. Atendi um partilhante que começou a contar sua história a partir de quando sua avó chegou da Itália ao Brasil com 6 anos de idade. Neste momento da clínica ao filósofo não interessa a veracidade do que está sendo relatado, o que o filósofo precisa saber é exatamente a visão a edição que a pessoa fez de sua história e não uma "provável" história. Schopenhauer, na primeira parte do livro O Mundo como Vontade e Representação, falou da representação que cada um de nós fazemos do mundo, seria essa representação que o filósofo busca, a representação que o partilhante formou de tudo que aconteceu e, o filósofo fará para si uma representação da representação do partilhante. É estar diante de uma pessoa, que em seu funcionamento é única, é como se estivéssemos diante de um fenômeno nunca conhecido antes, e para entendê-lo apenas observamos e ouvimos o que ele tem a nos dizer (fenomenologia). Qualquer tentativa de adivinhação resultará, com certeza, em fracasso. Por isso, deixamos de lado as fórmulas prontas, que foram criadas para outros fenômenos já conhecidos. Qualquer tentativa de encaixá-lo em um modelo a priori ao seu conhecimento será desastroso, pois ele é único e ainda não foi conhecido; pré-juízos e interpretações devem ser afastados, não podemos correr o risco de descobrirmos o que queremos, e deixarmos de lado o que a pessoa quer nos mostrar. Por tudo isso o filósofo deve deixar que o partilhante conte sua história por si mesmo e, se o partilhante diz coisas que são polemicas quanto a possibilidade de serem provadas como vidas passadas, vidas em outros planetas, etc, a metodologia não muda, estamos tentando conhecer um pouco mais desta pessoa, e tudo isso faz parte de seu mundo subjetivo, o qual precisamos conhecer, por isso nada é questionado neste momento, apenas ouvimos.

Um assunto trazido ao consultório por uma pessoa pode ter sua origem no passado, e mesmo que não tenha, podemos encontrar dados, no passado, que podem nos auxiliar no presente. O principal motivo de se tirar a historicidade inteira do partilhante é para que se faça uma clínica com segurança, conhecendo os antecedentes e podendo prever os conseqüentes. Como nada sabemos sobre a pessoa que chega para as primeiras consultas, é necessário que esta conte sua historicidade desde o começo, a menos que seja um atendimento emergencial, onde não há tempo de cumprir com detalhe todo o procedimento. Não podemos chamar de filosófico clínico o atendimento que não considera dados da história do partilhante.

O primeiro cuidado que o filósofo deve ter é de que a pessoa conte sua história de forma ordenada. Imagine um filme onde as senas são misturadas e logo no começo você vê a uma cena do final do filme, logo depois uma cena do começo, na seqüência uma cena do meio do filme, e assim sucessivamente, como se fosse um quebra cabeça misturado. Neste caso temos um agravante, o risco de ver uma mesma cena várias vezes, enquanto outras nem aparecerão, seria difícil de entender a história. Por esse motivo, o primeiro cuidado do filósofo é que a história seja contada de forma ordenada. Às vezes a pessoa está em um estado que as coisas se encontram realmente confusas, fora de lugar, e não se tem noção da ordem, e assim perde-se também a visão de antecedentes e conseqüentes. O simples procedimento de se orientar o partilhante para que sua história seja contada de forma ordenada já pode ajudar a pessoa a chegar a conclusões e entendimentos que antes não tinha, visto que as coisas estavam desordenadas.

Quando um partilhante está contando experiências de sua infância e daí salta para um evento de quando tinha 30 anos, isto é o que denominamos de Salto temporal. O filósofo deve estar atento aos saltos temporais, eles podem atrapalhar o entendimento. Se uma partilhante conta que gostava de ir ao sítio dos avós quando criança e após contar tudo que fazia por lá, começa a contar que aos 19 anos entrou na faculdade, que fez novas amizades e tudo que decorreu a partir daí, veja que ficou uma lacuna entre os dois períodos. Quando o partilhante segue sua história, tudo bem, esta lacuna pode ser preenchida posteriormente, mas, se ele volta para a infância, e depois salta novamente para outro período, aí o entendimento fica comprometido, neste caso, o filosofo deve fazer uma pequena intervenção no sentido de levar a pessoa novamente à ordem cronológica de sua historia, é o que chamamos de Agendamentos mínimos, isto é feito da seguinte forma: "você estava falando das coisas que fazia na casa de seus avós, e depois o que houve?" Às vezes a pessoa não quer falar de algum assunto e se for este o caso o filósofo não insistirá, pelo menos neste momento. Pode ocorrer do salto temporal acontecer simplesmente porque a seqüência lógica de uma história assim o exigi: "nessa época, com doze anos, aprendi as primeiras palavras em inglês, quando fui entrar na faculdade, já com 19 anos, entrei no curso de letras". Se um salto temporal não atrapalhar o entendimento da historicidade, ele pode ser permitido, porém o filosofo deve ficar atento para retomar o tempo que ficou de fora da história, é o que chamamos de Dados divisórios.

Outro fator que pode atrapalhar o entendimento da historicidade é o Salto lógico. Isso ocorre quando o partilhante está falando de um determinado assunto e, de repente, muda de assunto sem concluir o primeiro. Às vezes o partilhante entra em assuntos que nada tem a ver com sua história de vida, isto também é Salto lógico. O procedimento do filosofo clínico diante de um salto lógico é o mesmo aplicado no salto temporal, ele deve levar a pessoa de volta à seqüência lógica de sua história: "então mudamos pra essa cidade, meu tio era vereador lá, ele ficou rico com política. Os políticos são eleitos pelo povo pra depois roubar o próprio povo, tem alguns que roubam mas fazem alguma coisa, agora, tem outros que só roubam"; nessa a pessoa pode ir, e se o filósofo não trouxer o partilhante de volta para sua história, não teremos a historicidade da pessoa. Então o filósofo pede que a pessoa volte à sua história: "você disse que se mudou de cidade, e depois?". Ás vezes a pessoa faz pequenos saltos lógicos que em nada atrapalham, concluem o assunto e voltam naturalmente à história. A intervenção será feita apenas se o Salto atrapalhar o entendimento ou o desenvolvimento cronológico da historicidade.

Qualquer coisa que o filósofo diga no momento da consulta poderá ser agendado pelo partilhante em seu intelecto, por isso o filósofo deve estar muito atento ao que vai falar no momento em que está tirando a historicidade de uma pessoa. A orientação é que se faça agendamentos mínimos, ex: e depois; continue de onde parou; prossiga. Agendamentos mínimos são intervenções que apenas estimulam o partilhante a continuar sua história. Um dos motivos deste procedimento é o fato do filosofo ainda não conhecer a historia de seu partilhante, um comentário pode afrontar o partilhante desnecessariamente, pode direcionar a história do partilhante, inibir, etc. prejudicando assim a clínica. Perguntas aparentemente simples, podem direcionar o rumo da historicidade e em alguns casos até por a perder toda clínica, ex: O partilhante pode falar que se mudou de casa aos 12 anos e se o filósofo pergunta "por que", este já está direcionando a historicidade para o lado da razão, dos motivos, o que é errado. O partilhante deve contar sua historicidade como esta está para si. Se o partilhante vai falar sobre os motivos da mudança, se vai simplesmente falar sobre a nova cidade, de pessoas que conheceu, de coisas que aprendeu, o que sentiu ou pensou, seja lá o que for, deve falar por si, não pelas perguntas do filósofo, pois para conhecermos o partilhante e interagirmos posteriormente com segurança, temos de encontrar as coisas como estão para ele. No caso acima o partilhante pode falar da mudança de casa de várias maneiras, para o filósofo é importante que seja a maneira do partilhante. Se direcionarmos a historicidade para tópicos como as emoções, a razão, as sensações, abstrações ou qualquer outro, já não teremos mais a história pura.

Após o partilhante ter chegado aos dias atuais com sua história o filósofo focará sua atenção para os saltos temporais cometidos por este. O filosofo vai fazer o que chamamos de Divisão, ele vai pedir que o partilhante conte sua história de um ponto a outro. É importante que o filosofo utilize os mesmos termos usados pelo partilhante para se orientar temporalmente em sua história, ex: o partilhante pode ter saltado de quando terminou a oitava série para a faculdade; de quando tinha 18 anos para os 25; da festa de aniversário de 15 anos para a festa do casamento; de quando se mudou para uma cidade para o nascimento de um filho; de quando tirou habilitação de motorista para a aposentadoria. São infinitas as formas pelas quais podemos dividir temporalmente nossa historicidade, cada um de nós temos uma maneira totalmente nossa, e é baseado na maneira do partilhante que o filósofo vai se orientar para fazer a divisão e tentar resgatar a parte da história que não foi contada. Pediremos então ao partilhante que conte sua história de um ponto a outro, normalmente os saltos são cometidos por motivos simples, por confusão, por não ter entrado em algum assunto relacionado ao período, etc. Porém se o partilhante saltou algum trecho de propósito, por não querer entrar no assunto, então o filósofo respeitará a postura do partilhante neste momento. Posteriormente, se o filosofo constatar, através dos Exames Categoriais e da Estrutura de Pensamento do partilhante, que o trecho em questão está relacionado ao assunto da clinica e que é importante maiores informações sobre o período, então o filosofo vai proceder com muita cautela, para acessar estas informações.

     

 
 
Como referenciar: "Relato do leitor" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2025. Consultado em 16/06/2025 às 22:38. Disponível na Internet em http://www.filosofia.com.br/vi_relato.php?id=33