Sören Kierkegaard – O Matrimônio Sumário Capítulo I OS LIMITES DO AMOR ROMÂNTICO 1. Das agressões da literatura contra o amor 2. Apologia (e nostalgia) do amor romântico 3. Melancolia e libertinagem 4. Sobre o "casamento de razão" 5. De como o matrimônio salva o amor do ceticismo Capítulo II EXAME DO MATRIMÔNIO CRISTÃO 1. A resignação, elemento ético e religioso do matrimônio 2. A paixão como momento da "coisa primeira" 3. Liberdade e necessidade do amor 4. O caráter erótico e religioso do matrimônio 5. Entreato do noivo implacável Capítulo III OS PORQUÊS DO MATRIMÔNIO 1. Necessidade ética de que a paixão seja eterna 2. Os que se casam para afirmar seu caráter 3. Os que se casam para ter filhos 4. Os que se casam para escapar à solidão Capítulo IV O MISTÉRIO DO MATRIMÔNIO 1. O valor da bênção nupcial 2. Digressão sobre a dúvida 3. A superioridade da resolução 4. Escrúpulos contra a publicidade do vínculo 5. A medida necessária de mistério Capítulo V O MATRIMÔNIO, CATEGORIA ESTÉTICA DO AMOR 1. O princípio vital do "bom entendimento" entre os esposos 2. Das dificuldades que o amor conjugal tem que enfrentar 3. A propósito da conquista e da posse 4. Excelência do cotidiano familiar 5. Conciliação da estética e da vida matrimonial 6. Por que o dever não é inimigo do amor 7. Remessa Capítulo I OS LIMITES DO AMOR ROMÂNTICO Meu amigo: Estas linhas, as primeiras a cair sob o exame dos teus olhos, são as últimas que escrevi, e procuram, mais uma vez, servir-se do gênero epistolar para um estudo prolixo como o que aqui te envio. Correspondem-se, portanto, com minhas últimas cartas, e têm uma relação formal com elas, que manifesta assim, exteriormente, aquilo de que o conteúdo queria convencer-te com argumentos tão diversos, sabendo que lês realmente uma carta. Não quis renúncias à ideia de uma missiva dirigida a ti, porque a falta de tempo não me permitiu consagrar à redação o empenho que exigiria um tratado. E, por outro lado, dominou-me o escrúpulo de não perder a ocasião de conversar contigo no tom admonitório, próprio do gênero epistolar. És versado demais na arte de conversar sobre tudo, em geral, sem ser tocado pessoalmente pelo tema, para que te ofereça esta tentação de liberar teu vigor polêmico. Já sabes como procedeu o profeta Nathan com o rei David, quando este procurando penetrar na parábola que o homem de Deus lhe havia proposto, não quis ver o que nela lhe dizia respeito. Nathan particularizou, acrescentando: "És este homem, oh rei!" Do mesmo modo, quis recordar-te incessantemente que se trata de ti, e que a ti me dirijo. Não duvido, portanto, de forma alguma que, no curso da leitura, terás a sensação de ler uma carta, apesar do formato do papel. Como sou funcionário público, estou acostumado a encher toda a folha, e talvez este hábito tenha sua vantagem, se, aos teus olhos, dá um certo caráter oficial à minha epistola. É tão extensa que seria onerosa na balança do correio; sem dúvida, para a balança de precisão da crítica sutil seria bem mais leve. É favor usar tanto uma como outra, tanto a do Correio, já que não recebes minha carta para reexpedi-la, como a da crítica, porque seria uma pena ver-te cometer um erro tão grosseiro e que provaria tanta falta de simpatia. Se outro, não tu, visse este estudo, achá-lo-ia talvez muito singular e, sem dúvida, supérfluo. Se casado, exclamaria com a jovialidade do pai de família: "É claro, o matrimônio é a beleza da vida." Se homem jovem e de pensamento algo confuso e irreflexivo exclamaria: "Não, a beleza da vida é o amor." Porém, nenhum dos dois conceberia, como me aconteceu, pensar em salvar o crédito estético do matrimônio. E até mesmo em lugar de ser simpático aos olhos dos esposos, atuais ou futuros, talvez suspeitem de mim, porque defender é acusar e eu deveria agradecer-te, nunca o duvidei. Tu, a quem quero, apesar de todas as tuas extravagâncias, como um filho, como um irmão, como um amigo, com amor, porque talvez consigas um dia achar o centro de teus movimentos excêntricos. Tu, a quem amo por tua vivacidade, tuas paixões, tuas debilidades. Tu, a quem quero no temor e no tremor do amor religioso, porque sei de teus extravios e porque és para mim muito mais do que um fenômeno. Na verdade, quando te vejo corcovear como um cavalo selvagem, quando te vejo cair para tornar a saltar, então me abstenho de todas as tolices da pedagogia. Penso, porém, no indomado cavalo de corridas, vejo a mão que segura as rédeas, que levanta sobre tua cabeça o látego de um rude destino. E, contudo, quando finalmente este estudo chegar às tuas mãos, dirás seguramente: "Impôs-se uma tarefa imensa; mas, vejamos como a cumpriu." É possível que te fale com excessiva doçura, que seja demasiado paciente contigo. Talvez fizesse melhor em recorrer à autoridade que, apesar de teu orgulho, conservo sobre ti; ou valeria mais, em nossas práticas, deixar a questão do matrimônio à margem, completamente de lado. Porque és, sob muitos aspectos, pernicioso: quanto mais se fala contigo, mais se dissipa a conversa. Sem seres hostil ao casamento, abusas, para mofar dele, de tua ironia e de teu sarcasmo. Teus golpes não são vãos, reconheço. Seguramente acertas no alvo, e possuis grande talento na observação. Acrescento, porém, que este é talvez teu ponto fraco. Porque tua vida transcorrerá em puras veleidades de viver. Mais vale isso, replicarás sem dúvida, do que seguir os caminhos da trivialidade, do que desaparecer no formigueiro da vida social. Não se pode dizer, repito, que abominas o matrimônio: nunca o abordaste de modo sério, mas apenas para escandalizar-te com ele, e, espero, confessar-me-ás que não te aprofundaste na questão. Os casos de amor são o que te interessa. Sabes submergir, sabes embrenhar-te na clarividência de sonhador, inebriado de amor. Pode-se dizer que te envolves com a mais fina teia de aranha, para logo ficares à espreita. Como não és uma criança, de consciência apenas desperta, teu exame descobre algo mais; e, no entanto, conformas-te com este estado. O que amas é o inesperado. O sorriso de uma mulher bonita em -uma situação picante, um olhar que apreendes; eis ali o que persegues, aí tens um motivo para a tua frívola imaginação. Tu, que tanto te empenhas em ser observador, resigna-se, também, a ficar submetido à observação. Recordar-te-ei um fato. Uma linda jovem que ficou casualmente a teu lado em um convite (deve-se levar em conta, naturalmente, que não conhecias seu nome, nem sua Idade, nem a situação dos pais etc.) parecia orgulhosa demais para dedicar-te sequer um olhar. Por um momento, ficaste perplexo: era simples coqueteria, ou por acaso entrava em sua atitude um pouco de coerção, que, habilmente insinuada, podia mostrar a bela sob um ângulo interessante? Em frente, um espelho te permitia observá-la. Ela levantou timidamente os olhos até ele, segura de que teu olhar a esperava ali, e enrubesceu ao encontrá-lo. Coisas assim registras com a fidelidade e a presteza de um termômetro. Sim, és certamente uma índole curiosa, ora jovem em demasia, ora excessivamente envelhecido. Às vezes meditas com profunda seriedade sobre os problemas mais nobres da ciência, como se fosses consagrar a isto a tua vida; em outras oportunidades, és um adolescente apaixonado. No entanto, continuas muito afastado do casamento, e espero que o teu gênio bom te guarde dos maus caminhos, porque penso em algumas ocasiões adivinhar por certos indícios que procuras portar-te como um pequeno Júpiter. Tens uma ideia tão elevada do teu amor que certamente qualquer mulher deveria se considerar feliz em ser a tua amada durante oito dias. Prossegues, então, teus estudos amorosos, até nova ordem, junto com tuas investigações estéticas, éticas, metafísicas, cosmopolitas etc. E não se poderia realmente ficar aborrecido contigo: em ti, como se pensava na Idade Média, o mal se confunde com algo de bonomia e puerilidade. Nunca pensaste no casamento senão como simples observador, mas há certa perfídia em se ater a essa atitude. Quantas vezes me divertiste, confesso-te, e quantas me afligiste também, contando como conquistas a confiança de tal ou qual pessoa casada, para veres até onde está mergulhada no atoleiro da vida conjugal! Tens realmente o dom de penetrar em tais situações, e admito também o prazer que me dás com o relato de tuas conclusões, bem como a visão de teu júbilo a cada observação apresentada. Mas, sinceramente, teu interesse pela psicologia carece de seriedade e deixa adivinhar a curiosidade de um melancólico. Proponho-me sobretudo duas tarefas: mostrar o valor estético do casamento, e como poder conservar esse elemento estético, apesar dos múltiplos obstáculos da vida. No entanto, para que possas abandonar-te com mais confiança aos resultados que adviriam da leitura desta pequena obra, insistirei um pouco na polêmica, para dar às tuas observações sarcásticas a atenção que merecem. Assim espero livrar-me dos tributos exigidos pelos estados bárbaros, para me encontrar então aprazivelmente em meu papel; porque estou em meu papel, sendo casado e combatendo pelo matrimônio, pro anis et focis. Acredita: tanto me importa esta questão que, apesar de minha repugnância por escrever livros, quase tenho vontade de fazê-lo, se posso salvar uma só união do inferno em que mergulhar, ou tornar dois esposos mais aptos para cumprir a mais bela das missões que foi proposta ao ser humano. Como medida de prudência, deverei talvez me referir à minha mulher e à nossa vida em comum, não porque tenha a ousadia de propor nossa vida como exemplo e regra, mas vou invocá-la porque a visão dos poetas, geralmente, é infundida, e não possui força de prova, e a mim importa mostrar que mesmo na vida diária é possível ser fiel à estética. Conheces-me há muito tempo e a minha esposa há cinco anos. Julgas que ela é formosa e, sobretudo, amável; e eu também. No entanto, sei-o bem, não é tão formosa pela manhã quanto o é à noite; somente durante o dia desaparece nela certo elemento de melancolia quase doentia; à noite, quando este elemento desapareceu, então ela pode realmente aspirar parecer bem. Também sei que seu nariz não é uma beleza perfeita: é pequeno demais. Entretanto, volta-se para o mundo com ar rebelde, e, por haver motivado brincadeiras tão agradáveis, não o desejaria mais belo se tivesse o poder de transformá-lo. Há na vida, como vês, uma contingência muito mais importante que aquela a que te dedicas. Da minha parte, dou graças a Deus por todos esses bens, e esqueço suas pequenas desvantagens. Além disso, essas coisas são secundárias. Mas há algo, é verdade, pelo que dou graças a Deus com toda a minha alma: o fato de minha mulher ser meu primeiro e único amor, e outra coisa que peço a Deus com todo o meu coração é a força de não desejar outro amor. Esse é um culto doméstico do qual participa igualmente minha esposa; porque cada um dos meus sentimentos, cada uma das minhas aspirações de alma ficam enobrecidos quando os reparto com ela. Mesmo os sentimentos em uníssono: diante de minha mulher sou ao mesmo tempo o pastor e a grei. E se por acaso fosse eu tão desumano a ponto de esquecer esta aventura, se incorresse na ingratidão de não dar graças por ela, minha mulher me faria lembrá-la. Vês, meu jovem amigo, não se trata dos melindres dos primeiros dias de paixão, nem de experiências eróticas por realizar, como acontece com quase todos os namorados quando iniciam o noivado, perguntando ele se ela já teve outra paixão, ela se ele amou outra mulher. Não, aqui estamos realmente envolvidos no que há de grave na vida, e, no entanto, não estão excluídos nem o calor nem a beleza, nem o erótico nem a poesia. Na verdade, importa-me muito que ela me ame realmente, bem como retribuir-lhe este amor. Não porque tema que nossa união alcance, no transcurso dos anos, esta solidez que vemos na maior parte das demais, mas alegra-me rejuvenescer constantemente nosso amor do primeiro dia, dando-lhe um valor religioso e estético. Porque Deus, para mim, não é um ser supra-humano a ponto de desinteressar-se pelo pacto que ele mesmo instituiu entre o homem e a mulher, nem sou eu mesmo um ser tão espiritual que desdenhe o aspecto terreno da vida. E toda a beleza do erotismo pagão conserva seu valor no cristianismo, na medida em que é compatível com o matrimônio. Esse rejuvenescimento de nossa paixão não é nem o simples olhar ao passado do melancólico, nem a poética evocação do vivido a que terminamos por nos limitar. Tudo isso enfraquece, e o rejuvenescimento de que falo é um ato. Muito depressa chega o momento em que é preciso resignar-se a somente recordar, de modo que devemos, por mais tempo possível, conservar viva a fresca fonte da vida. Porém, tu vives de verdadeiros atos de banditismo. Deslizas furtivamente, cais sobre o próximo e arrebatas-lhe seu mais belo momento de felicidade; pões esta sombra no teu bolso como o grande indivíduo de Peter Scheemil e te retiras segundo teu capricho. É certo, dizes, que nada perdem os interessados, e que eles frequentemente ignoram inclusive seu momento mais belo; mas ainda pretendes que te fiquem agradecidos por ter-lhes mostrado, graças a teus jogos de luzes e tuas fórmulas mágicas, transfigurados e elevados ao prêmio sobrenatural deste momento de exaltação. Talvez não percam nada, na verdade; no teu modo de ver, tudo isto te mortifica, porque perdes teu tempo, tua tranquilidade e a paciência de que necessitas para viver; porém sabes muito bem que é precisamente tudo isto o que te falta: acaso não me escreves, um dia, que a paciência necessária para suportar o peso da vida deve ser uma virtude extraordinária, e que sentias possuir sequer a necessária para atrever-te a viver? Já. vês que tua vida se resume em simples episódios, nos quais buscas apenas o interessante... Se, ao menos, se pudesse esperar? Que a energia que te inflama nestes instantes tomasse forma em ti, coordenasse tua vida e a ampliasse, farias certamente grandes coisas. Porque, então, te transfiguras. Há em ti uma inquietude sobre a qual flutua, sem dúvida, a clara luz da inteligência; tua alma se concentra inteiramente no único ponto que te ocupa; tua razão traça cem projetos; tudo dispões para o ataque. Sofres um fracasso numa direção? Instantaneamente tua dialética quase diabólica se põe a explicar o fracasso, usando-o para uma nova tática. Planejas constantemente acima de ti mesmo, e se bem que cada um de teus esforços seja, no mínimo, igualmente decisivo, te reservas, sem dúvida, uma faculdade de interpretação que com uma palavra pode alterá-la toda. Junta-se a isso a efervescência do sentimento que te anima. Teus olhos lançam centelhas, ou melhor, pareces ter cem olhos que brilham, todos eles à espreita; um rubor fugitivo passa por teu rosto; te apoias firmemente em teus cálculos e sem dúvida esperas com terrível impaciência. Creio meu querido amigo, que, em definitivo, te enganas, e que ao imaginar, como dizes, que "captas" a um homem em sua hora afortunada, apenas te encarregas de tua própria exaltação. Tens tanta energia concentrada que chegas a ser criador dela. Tenho admitido, por essa razão, que tua conduta não é tão perniciosa para o próximo, porém, em compensação, é totalmente funesta para ti. E não repousa, por acaso, sobre uma maldade monstruosa? Pouco te importa, dizes, o juízo dos homens, que além disso, deveriam ser agradecidos a ti, por não os transformar em porcos com um golpe de vara de condão como Circe, senão que os transformas, de porcos, em heróis. Agirias de modo diferente, dizes também, se eles confiassem verdadeiramente em ti; porém não encontraste tal confidente. Teu coração está comovido e secretamente te enternece a ideia de sacrificar-se pelo outro. Já vês que não te nego tampouco certo espírito de bondade e caridade; teu modo de socorrer os infelizes é verdadeiramente belo e a humanidade que demonstras não carece de nobreza; porém, creio também, ver nela um resíduo de orgulho. Não te lembrarei tal ou qual manifestação excêntrica de tuas inclinações; seria mau obscurecer, de todo, o bem que possa haver em ti; porém, deixa-me, em troca, evocar um pequeno incidente de tua vida que porventura convém recordar-te. Um dia, me contaste que, voltando de um passeio, seguias duas mulheres pobres. Minha narração não terá agora, sem dúvida, a vivacidade da tua, quando subiste minhas escadas de quatro em quatro degraus pensando em tua aventura. Eram duas empregadas de granja. Provavelmente haviam conhecido dias melhores, já esquecidos, e o estábulo não é precisamente um lugar onde se abrigue a esperança de um porvir mais feliz. Uma delas deseja uma tragada e, mostrando a tabaqueira à sua amiga, disse: "Se eu tivesse cinco rixdals..." talvez espantada pela temeridade desse de- seio, que se perdeu no paramo, sem esperanças. Porém te apresentaste: já havias apanhado a carteira e retirado cinco rixdals, antes de dar o passo decisivo, para conservar, na situação, a elasticidade conveniente e para evitar na desditosa mulher uma suspeita prematura. Avança com uma cortesia quase humilde que se coaduna com um espírito caritativo: deste os cinco rixdals e desapareceste. Não te alegrou o efeito que havias produzido senão que te perguntavas se ela, em lugar de ver nesse fato um socorro providencial, não se rebelaria, induzida por grandes sentimentos, contra a Divina Providência, que aqui se reduzia ao azar! O que te induzia a examinar se a satisfação fortuita de um desejo, formulado por causalidade, não consumiria provavelmente o homem na desesperança posto que a realidade da vida se encontra ali negada em suas raízes mais profundas. Empenhavas-te, pois, em assumir o papel de destino e tua satisfação provinha da quantidade de reflexões que poderias deduzir daquilo. Admito de bom grado que tens excelentes aptidões para esse papel, se associamos à palavra destino a ideia da total inconstância do puro capricho; de minha parte, na vida, me conformo com um papel mais modesto. Esse caso, além disso, pode porvir para mostrar-te como, com tuas experiências, exerces uma influência funesta sobre as pessoas. Saíste ganhando porque deste cinco rixdals a essa pobre mulher, satisfizeste seu maior desejo; sem dúvida, tu o reconheces, tua boa ação poderia fazer também com que esta desgraçada maldissesse a Deus como a Jó aconselhou sua mulher. Alegarás que tais eventualidades não dependem de ti; e que se se devesse medir a tal ponto as consequências, não se poderia fazer nada. Porém, eu respondo que se pode. Se houvesse dado os cinco rixdals, saberia de certo que não me havia entregado a uma experiência; estaria convencido de que a Divina Providência, instrumento do qual me havia servido, fazia as coisas segundo corresponde, e que para tanto, eu não teria nada que me reprovasse. Até que ponto flutua, indecisa, tua vida, podes também descobrir se pensares em tua completa incerteza, diante do temor de sentir um dia a alma prostrada e a de ver como tuas argúcias sutis de hipocondríaco te lançam num círculo mágico de consequências, do qual lutarias em vão por sair. Não estás seguro de, um dia, remover céus e terras para reencontrar a necessitada, observar o efeito do teu gesto, e "a forma como produziu efeito sobre ela." Porque serás sempre o mesmo incorrigível; apaixonado como és, talvez chegues a esquecer teus grandes planos, teus estudos e, em suma, todas essas bagatelas, para encontrar esta desgraçada, que talvez tenha morrido há tempo. Eis aí como tratas de reparar teus erros e, como, desse modo, a missão de tua vida venha a ser tão discutível... Pode-se dizer que queres ser, ao mesmo tempo, o destino e a Providência, missão que o Senhor mesmo não pode desempenhar, porque é somente uma dessas coisas. O céu que desdobras pode merecer elogios, porém não vês, dize-me, se cada vez está mais claro que o que te falta, e totalmente, é a fé? Em vez de salvar tua alma, entregando-te a Deus em cada coisa, em vez de tomar este atalho, te comprazes em desvios sem fim que te conduzirão a parte alguma. Dir-me-ás que. desse modo, não se precisa agir! Sim, respondo-te, precisa-se, posto que és consciente de ocupar no mundo um lugar que é teu, no qual deves concentrar toda a tua atividade. O que ocorre é que tua maneira de agir chega às raias da loucura. Dir-me-ás também que se houvesses cruzado os braços deixando a Deus o cuidado de intervir, talvez essa pobre mulher não houvesse recebido socorro algum. É possível, porém tu, sim, terias recebido a ajuda de Deus e inclusive ela também teria confiado em Deus. E não vês que se agora tomares realmente tuas botas de viagem para correr mundo, e perder teu tempo e tuas forças, te subtrairias a toda a atividade, expondo-te talvez a novos tormentos no futuro? Essa existência caprichosa, repito, não é uma espécie de traição. No caso de que compreendesses a volta ao mundo para achar de novo essa indigente, isso provaria, sem dúvida, uma fidelidade extraordinária, inaudita, posto que não te haveria impulsionado nenhum motivo egoísta e não partiria como um amante em busca de sua amada e sim agirias por pura simpatia. Porém, respondo: evita falar de egoísmo, não se trata desse sentimento, e sim, de teu habitual impudor de rebelde. Como desprezas todas as prescrições da lei divina e humana, para livrar-te delas te aferras ao azar, que, nesse caso, é uma mendiga que desconheces. E, devido à tua simpatia ela deve estar, toda ela, a serviço de tuas experiências. Esqueces sempre que tua existência neste mundo não pode estar fundada unicamente no azar e que, quando fazes dele o essencial, perdes completamente de vista o que deves a teu próximo. Já sei que não te faltarão sofismas à guisa de paliativos nem uma irônica flexibilidade para diminuir as exigências. Assim, por exemplo, objetar-me-ás não seres tão tolo para imaginar-te o homem que deveria trabalhar em tudo aquilo que entregas, ao contrário, aos espíritos eminentes, e que te conformas em dedicar-te somente a uma tarefa regular. Porém, no fundo, essa é uma enorme mentira porque tu não queres absolutamente nada, senão entregar-te a tuas experiências e essa é a posição da qual consideras todas as coisas, frequentemente, com não pouca insolência, e sempre zombas da atividade como aquela vez em que o fizeste de um homem que havia encontrado um fim ridículo. Por muitos dias te regozijaste, dizendo que, se bem que nada se sabia dos serviços que esse homem havia prestado em vida às grandes ideias, e a tudo mais, agora se podia, ao menos se afirmar que na verdade não havia vivido em vão... porque te divertia. Já te disse: o que pretendes é ser o Destino. Oh, espera um instante! Não tenho o propósito de passar-te um sermão, porém, existem as coisas sérias para as quais, eu o sei, tens um extraordinário e profundo respeito. Se se é capaz de suscitá-las em ti ou se se confia bastante em ti para deixá-la aparecer em tua alma, então se descobre um homem muito diferente. Imagina para tomar o caso supremo, imagina que apraza ao princípio Todo Poderoso do mundo, ao Deus do Céu, apresentar-se como enigma ao gênero humano e deixá-lo nesta cruel incerteza. Não sentirás palpitar em ti a revolta? Poderias em certos momentos suportar essa tortura ou obrigar teu pensamento a medir esse espanto? E sem dúvida, quem melhor que Ele pode, se me atrevo a dizê-lo, pronunciar estas palavras soberbas: "Que me importam os homens." Claro que não é assim e quando declaro que Deus é incompreensível, minha alma se eleva ao Todo Poderoso, e o afirmo nos momentos de felicidade suprema, posto que é incompreensível, porque o é seu amor, e porque seu amor excede a todo o entendimento. Aplicada a Deus, essa palavra. incompreensível, designa a perfeição suprema; ao contrário, se a aplicamos ao homem revela sempre um defeito, e, às vezes, um pecado. E Cristo não considerava como uma usurpação ser semelhante a Deus e sem dúvida se humilhava; enquanto tu mostras como a uma botina os dons de inteligência que recebeste. Reflete: tua vida corre, e, para ti, chegará o dia em que verás tua carreira concluída, e já não terás, para viver, outro recurso senão recordar. Não esta ou aquela recordação que te encanta em sua mistura de ficção e realidade, e sim uma grave evocação da consciência, uma evocação fidelíssima. Toma cuidado para que, então, não estendas ante teus olhos uma lista, não direi de crimes, mas sim, de possibilidades frustradas que não poderás expulsar. Ainda és jovem, a ductilidade intelectual que ostentas convém à tua idade, e distrai um momento a quem te escuta. Assombra-nos ver um destes palhaços de articulações tão flexíveis que suprimem, de fato, todas as leis a que estão submetidas a marcha e a estatura do homem: o mesmo ocorre, em ti, com as coisas do espírito. Podes apoiar-te tanto sobre a cabeça como sobre os pés: tudo te é possível e essa faculdade te permite surpreender aos outros e a ti mesmo; porém é uma arte prejudicial, e rogo, por tua tranquilidade: cuida que teu privilégio não se converta, no final, em uma maldição. Um homem de convicções não pode, a seu capricho, entregar-se a semelhante malabarismo com seu próprio ser. Ponho-te em guarda, não contra o mundo, porém, contra ti mesmo, assim como ponho o mundo sem guarda contra ti. Se tivesse uma filha em idade de sofrer tua influência, já a advertiria eu, sobretudo se fosse inteligente. Como não fazê-lo quando eu, que creio poder medir-me contigo, senão pela sutileza, pela versatilidade e pelo brilho das teorias, pelo menos pela solidez dos princípios, não deixo de sentir realmente, às vezes, e para pesar meu, a sedução de tuas palavras, de sentir o contágio de teu espírito endiabrado cheio dessa malícia de aparência benévola com que te enganas totalmente fazendo-me compartilhar dessa ebriedade de intelectual e de esteta, que é teu elemento? Vejo muito bem a incerteza de minha conduta para contigo, ora demasiado severa, ora por demais complacente, e não há nisso nada de assombroso, porque és um resumo de todas as possibilidades e é preciso ver em ti de pronto tanto a de tua ruína como a de tua salvação. Levas a seu extremo todo o pensamento, todo o sentimento bom ou mal, triste ou alegre, e isso de maneira abstrata, mais que concreta, de sorte que essa busca é mais uma simples deposição da alma da qual nada resulta, senão a consciência que assumes disso. Porém, não chegas, contudo, a achar nisso um obstáculo ou uma ajuda quando confias de novo no mesmo sentimento, porque sempre te reservas a possibilidade de fazê-lo. Pode-se, pois, reprovar-te qualquer coisa sem interpretar-te nada, porque tudo se encontra em ti sem estar realmente. Confessas, segundo o caso, haver experimentado tal sentimento e escapas a toda a incriminação; o que importa é haver conhecido este sentimento na plenitude de sua patética verdade. 1. Das agressões da literatura contra o amor Queria, pois, falar do calor estético do matrimônio. Questão que pode parecer supérflua, posto que esse valor é reconhecido por todos depois de tantos exemplos cavalheirescos, e dos heróis de aventuras que, há séculos, se expõem a incríveis vicissitudes para entrar finalmente no porto tranquilo de um matrimônio feliz. Acaso, durante séculos os leitores de novelas não sofreram, volume após volume, para chegar à conclusão de uma união agradável, e as gerações não suportaram uma após outra, conscienciosamente, quatro atos de intrigas e contratempos, com a débil perspectiva de um himeneu no quinto? Entretanto, esses esforços desmedidos não lograram apenas louvar o matrimônio e muito temo que a leitura de tais obras não haja deixado em ninguém a sensação de ser apto para a missão a que se propôs, ou de ter uma orientação na vida, porque o defeito funesto dessas histórias é o de terminar onde deveriam começar. Depois de haver triunfado em tantas ciladas da sorte, os amantes se lançam, por fim, um nos braços do outro; cai o pano, está terminado o livro, porém, o leitor não ganha nada. Porque não se necessita realmente de muita arte para chegar até aí, uma vez que crepitam as primeiras chamas do amor; basta a coragem e a habilidade suficiente para ganhar, lutando, o objetivo considerado como o único bem. Em troca, se requer reflexão, sabedoria, paciência para desafiar o fastio que acompanha, comumente, a satisfação do desejo. É muito natural que, em seu início, o amor não apresente dificuldade à posse de seu objeto, e que, na falta de obstáculos, os suscite, inclusive com o fim único de triunfar sobre eles. Toda a atenção destes autores está dirigida para tal fim: eliminados os perigos, o diretor de cena já sabe o que deve fazer. Por isso é raro, ver no teatro ou em um livro celebrar-se um matrimônio sem que a ópera ou o balé aproveitem esse momento para o palavrório das tiradas dramáticas, os cortejos suntuosos, a troca de anéis, a gesticulação imponente e os olhares celestiais do figurante. A parte de verdade em toda esta trama, seu elemento propriamente estético, é que assim se põe em movimento o amor: já o veremos abrir caminho lutando contra um meio adverso. O erro é que essa luta, essa dialética, são puramente exteriores e que o amor, no final, continua tão abstrato como no princípio. Porém, anime-se a ideia da dialética própria do amor, a ideia de sua luta patológica apaixonada, de sua relação com a ética, com o religioso e então: já não se necessitará de pais insensíveis, de gineceus de princesas encantadas, de ogros e monstros para dar trabalho ao amor. Em nossos dias, não é frequente encontrar esses pais cruéis, esses monstros ferozes e, na medida em que a nova literatura modela sobre a antiga, faz do dinheiro, na verdade, o meio adverso em que o amor se move. E então suportamos quatro atos, quando há boas possibilidades de que o tio, dono da herança, morra no quinto. Sem dúvida, as peças desse gênero não são frequentes. Geralmente, a nova literatura opta por cobrir de ridículo o amor, visto na imediatez abstrata em que o situava a novela. Se examinarmos, por exemplo, o teatro de Scribe, vemos que um de seus temas favoritos consiste em conceber o amor como uma ilusão. Basta-me recordar-te, porque és um adepto de Scribe e de sua polêmica: creio ao menos que não obstante ser um paladino de suas opiniões, diante de todos e contra todos, tu, em troca, te reservarás o amor cavalheiresco. Porque, longe de não teres um sentimento, és, nesse assunto, o mais obstinado dos homens que conheço. Lembro-me que um dia me enviaste uma pequena crítica de Os pequenos amores, de Scribe, escrita com um entusiasmo quase desesperado. Dizias que essa peça era a melhor que seu autor havia composto e que, bem compreendida, bastava para dar-lhe a imortalidade. Quero citar-te outra que, a meu ver, revela o defeito de tudo que faz esse autor. Intitula-se Para Sempre e ironiza os casos de paixão. Graças às argúcias de uma mãe preventiva, apesar de mulher do mundo, um homem sente uma nova paixão que sua mãe crê definitiva; porém o espectador, desgostoso ante a arbitrariedade completa com que o autor pôs aqui ponto final, compreende facilmente que nada se opõe a uma terceira aventura. É assombroso, por outro lado, observar até que ponto a poesia nova está a consumir-se: faz tempo vivia do amor. Nossa época lembra a decadência grega: tudo subsiste, porém ninguém crê mais nas velhas formas. Desapareceram os vínculos espirituais que as legitimaram, e toda a época se nos parece tragicômica: trágica porque sombria, cômica porque ainda subsiste. Pois o perecível é sempre, em suma, o suporte do imperecível, e o espiritual do material. E se pudéssemos imaginar que um corpo, privado de sua alma, pudesse ainda cumprir suas funções habituais, isso também seria tragicômico. Porém, deixemos o tempo cumprir sua obra de destruição: quanto mais consuma a substância de que é feito o amor romântico, mais tremendo será o dia em que esta consumição termine, o sobressalto em que tomaremos consciência da perda sofrida e então sentiremos nossa desdita na desesperança. 2. Apologia (e nostalgia) do amor romântico Vejamos agora em que medida conseguiu nossa época substituir o amor romântico que destruiu por algo superior. Indicarei, porém, primeiro, porque sinais se reconhece esse amor. Em uma palavra, podemos dizer que é imediato: vê-la e amá-la é uma coisa; e ela, mesmo que simplesmente o entreveja de seu quarto de donzela por uma abertura de uma janela semifechada, ela o ama também, e só a ele em todo o mundo. Como conviemos aqui, deveria eu intercalar algumas descargas polêmicas, para provocar em ti a secreção de biles que se exige para uma sã e saudável assimilação de meus argumentos. Porém, não me resolvo a isso por duas razões: Primeiro, porque esse procedimento é hoje muito comum, e para falar francamente, não se pode conceber que tu sigas aqui a corrente contra a qual te levantas em todas as circunstâncias. Segundo, porque conservo certa fé na verdade do amor romântico, certo respeito e certa melancolia quando penso nele. Contentar-me-ei, pois, em recordar teus sentimentos e ideias quando sais a lutar contra essa concepção, e quando encontro no título de um pequeno tratado que escrevestes: "As afinidades eletivas e incompreensíveis, ou harmonia praestabilita de dois corações." Falo aqui da atração que Goethe, o primeiro, em suas Afinidades Eletivas das quais se aclara uma arte tão consumada, nos fez suspeitar no simbolismo da natureza, para logo levá-la ao mundo do espírito. Porém, Goethe, para justificar essa atração, empenhou-se em mostrar-nos uma sucessão de momentos (talvez para indicar a diferença entre a vida da Natureza e a do espírito), sem assinalar a prontidão com que os fatores se conjugam, a impaciência e a precisão características do amor. Não é belo pensar que dois seres estão desta sorte destinados um ao outro? Quantas vezes sente-se a necessidade de cruzar os umbrais da história, a saudade nostálgica do bosque virgem que abandonamos? E esse desejo não adquire uma dupla significação quando se lhe associa a ideia de outro ser para quem essas regiões são sua pátria? Toda união, apesar de concluída após reflexão madura, sente, ao menos em certos momentos, a necessidade de representar-se num plano desse tipo. E que boa coisa é pensar que Deus, sendo espírito, ame, por sua vez, o amor terrestre! Admito que haja nisso muito de engano, entre a multidão de cônjuges, e reconheço que tuas observações sobre esse ponto me tenham regozijado às vezes, porém, não devemos esquecer a parte de verdade. Este ou aquele pensam, acaso, que mais vale ter uma liberdade plena na eleição da "companheira de sua vida", porém, essa opinião revela uma estreiteza pouco vulgar, uma suficiência miserável de espírito, porque não adivinha que o amor romântico é livre em sua genialidade e que essa espontaneidade faz sua grandeza. A imediatez do amor romântico mostra-se na necessidade natural sobre a qual repousa unicamente. Fundamenta-se na beleza: por um lado, a beleza sensível: por outro, a que, podendo manifestar-se no sensível e com o sensível, não se deixa examinar e apesar de estar constantemente a ponto de manifestar-se, só se mostra por momentos. Apesar de fundado essencialmente no sensível, esse amor tem sua nobreza, pois implica certa consciência da eternidade; porque é o selo da eternidade o que distingue o amor da voluptuosidade. Os amantes estão profundamente convencidos de que formam um todo perfeito, a salvo de toda mudança, para sempre. Porém, como essa segurança repousa na ordem natural daquelas afinidades, o eterno se vê assim fundado no temporal e com isso se anula a si mesmo. Com essa segurança não sofreu nenhum contraste, nem encontrou fundamento mais sólido, se revê-la como uma ilusão: daí que seja tão fácil ridicularizá-la. Porém, não deveríamos nos apressar tanto, e na verdade repugna ver esses intrigantes na nova comédia, tão sensíveis, ao parecer precavidos contra a ilusão do amor. A mim, nada repugna mais que uma mulher assim, e nenhum desmando me inspira tanto desgosto, nada me irrita tanto como ver uma donzela enamorada, a braços de semelhante situação: é realmente menos terrível imaginá-la à mercê de um grupo de sedutores. É triste ver um homem desiludido de tudo que a vida oferece de substancial, porém, é muito mais cruel ver esse extravio numa mulher. Sem dúvida, já o disse, o amor romântico tem uma analogia com a ordem moral, na presumível eternidade que o enobrece e o salva da pura sensualidade. O sensual é, com efeito, coisa de momento. Busca uma satisfação instantânea, e quanto mais afinado, mais sabe fazer do instante de gozo uma pequena eternidade. A verdadeira eternidade do amor, que é a verdadeira moralidade, tem, por primeiro efeito, pois, salvá-lo do sensível. Porém, se há de se produzir essa eternidade verdadeira, é preciso que intervenha a vontade. Voltarei a falar sobre este assunto. Nossa época viu, muito bem, o lado fraco do amor romântico: os ataques irônicos que lhe dirige são, às vezes, muito divertidos. Veremos, porém, se corrigiu seus defeitos e o que propôs em seu lugar. Pode-se dizer que seguiu dois caminhos: um deles se apresenta falso ao primeiro olhar: falso, quer dizer, imoral. O segundo, mais respeitável, deixa de lado, sem dúvida, o elemento profundo do amor. Pois se o amor repousa sobre o sensível, claramente se vê aquela cavalheiresca fidelidade, que, segundo o imediato, é uma loucura. Por que, pois, admirar-se de que a mulher reclame sua emancipação, um dos numerosos e terríveis fenômenos de nossos tempos, de que os homens são responsáveis? O eterno que o amor implica, se converte em objeto de escárnio: o que se retém do amor é o aspecto temporal, porém, quintessenciado na eternidade sensível, no instante eterno do abraço. Minhas palavras não se aplicam somente a tal ou qual sedutor, que ronda pelo mundo, como uma ave de rapina: não, senão que também se referem a um numeroso coro de espíritos dos mais distintos, e Byron não é o único que declara o amor um paraíso e o casamento um inferno. Claramente se vê aqui intervir a reflexão, da qual está desprovido o amor romântico, que se acomodava de bom grado ao matrimônio e aceitava a bênção da igreja, como uma bela solenidade, que sem dúvida, não adquire uma particular importância no amor romântico como tal. Ao intervir a reflexão, o amor romântico, com a impassividade e um endurecimento terríveis da razão, encontrou uma nova definição do amor desventurado, que consiste em ser amado, quando já não se ama, e não em amar, apesar de o próprio amor não ser correspondido. Na verdade, se esses teóricos se dessem conta de toda a profundidade de suas palavras, retrocederiam com espanto; porque, à parte da soma de experiências, habilidade e refinamento que implicam, deixam também suspeitar a presença da consciência. De sorte que o momento vem a ser o principal. Quantas vezes não escutamos estas palavras despudoradas de um amante animado deste espírito, à infeliz moça, capaz de um só amor "Não peço tanto, me conformo com menos: longe de mim a ideia de exigir que me ames por toda a eternidade; basta que me ames quando desejo." Esses amantes sabem muito bem que o sensível perece; porém sabem, também, que é o momento mais belo, e isso lhes basta. Desde logo, uma tal corrente revela uma imoralidade absoluta; porém, em troca, segundo essa ideia, constitui, em certo sentido, um progresso para nosso objetivo, na medida em que apresenta uma denúncia formal contra o matrimônio. Porém, quando essa concepção trata de cobrir sua sensualidade com uma vestimenta mais decente, então não se limita a um instante isolado, e sim o faz durar no tempo, de tal modo, sem dúvida, que tome consciência não do eterno mas do temporal, se bem que se aferre a essa oposição do eterno, representando-se por uma mudança sensível no tempo. Julga que pode bem suportar a vida em comum por certo tempo, porém, se reserva uma saída para o caso de que se apresente uma escolha melhor, que, então não vacilaria em efetuar. Faz do casamento uma instituição civil: basta apresentar-se diante de um magistrado para que a união se dissolva, e que se contraia outra, como se anuncia uma mudança de residência. Não me interessa se o Estado encontra nisso uma vantagem; para o indivíduo é, na verdade, uma situação singular. Daí que nunca a vemos realizada de fato, porém, o tempo nos traz sua contínua ameaça. Necessitar-se-ia também de uma boa dose de impudicícia, e não creio ser essa palavra demasiado forte; além disso, uma associação desse tipo demonstraria, sobretudo no contratante feminino, uma leviandade que se aproxima da depravação. 3. Melancolia e libertinagem Há outra disposição de espírito muito diferente apesar do ponto de vista análogo, e se dela falo, será, sobretudo, porque é muito característica de nosso tempo. Vejamos: um plano deste pode repousar sobre uma melancolia de tendência egoística ou simpática. Já se falou bastante da rapidez da época atual, porém creio ser agora oportuno falar um pouco de sua melancolia, e espero que isso aclare toda a questão. Não é a melancolia um defeito de nossos dias? Não é encontrada mesmo nas risadas despreocupadas? Não foi ela que nos tirou o valor de mandar, o valor de obedecer, a confiança indispensável para esperar? Quando bons filósofos fazem tudo para tornar tangível a realidade, ela não nos confunde, a ponto de sentirmo-nos sufocados? Tudo passa para um segundo plano, exceto o presente. Perdemos muito dele, na perpétua angústia de que nos escape. É certo que não devemos dissipar-nos numa esperança fugitiva, e não é assim que devemos nos elevar às nuvens; porém gozar verdadeiramente, se precisa de ar, e se aos dias de tristeza convêm os céus abertos, também importa abrir a porta de par em par sobre os amplos horizontes dos dias de júbilo. Sem dúvida, o gozo perde nisso, aparentemente, certo grau da intensidade que tem, nos limites que o encerra a angústia: porém a perda não será grande, pois esse gozo muito se assemelha à intensa voluptuosidade que custa a vida dos gansos de Estrasburgo. É possível que não concordes comigo facilmente; em troca, não necessito insistir sobre a importância da intensidade que se obtém da outra maneira. És, nesse sentido, um virtuoso; tu, qui di dererunt formar, divitias, altemque fuendi. Se o gozo fosse essencial à vida, eu me acharia a teus pés como discípulo, posto que és um mestre nessa arte: envelheces depressa por aspirar a plenos pulmões, graças ao canal das recordações e logo voltas à primeira juventude, ébrio de esperança. Teu gozo é tão viril quanto afeminado; és imediatista, ou submetido a uma reflexão que se exerce até sobre o gozo de outrem, ou que te aconselha a abster-se do prazer. Ou então te entregas, a alma aberta e acessível como uma cidade que acaba de capitular, e então fazes calar a reflexão, porque cada passo dos estrangeiros ressoa nas ruas desertas. Porém, sempre conservas um pequeno posto avançado de reflexão. Ou se tua alma se fecha, voltas aos refúgios escarpados e inacessíveis. Assim és. Reconhece o egoísmo de teu gozo; nunca te abandonas, nunca deixas que os outros se riam de ti. Se bem que te ris, com razão, dos que se consomem em voluptuosidade, como os libertinos de coração depravado; em troca, sabes muito bem a arte do galanteio, de tal forma que unia pequena paixão realça tua personalidade. Não ignoras que o gozo mais intenso é o que prolongamos sabendo que talvez se desvaneça no próximo instante. Explica-se daí por que o final de Dom Juan te agrada tanto. Perseguido pela polícia, pelo mundo inteiro, pelos vivos e pelos mortos, sozinho em um quarto isolado, recolhe uma vez mais toda a energia de sua alma, levanta mais uma vez a taça, e alegra pela última vez seu espírito com o som da música. 4. Sobre o "casamento de razão" Voltando ao que te dizia, essa concepção pode resultar da melancolia de caráter, ser egoísta ou simpática. A primeira teme naturalmente por si mesma e como toda a melancolia é ávida de gozo. Tem um horror secreto por toda a união contraída por toda a vida. "Como estar certo, se tudo pode mudar? Esta criatura que adoro pode transformar-se; o destino pode pôr-me mais tarde frente à outra em quem encontrarei verdadeiramente o ideal dos meus sonhos." Como toda a melancolia é obstinada, e o sabe. 'Talvez, diz-se, uns vínculos indissolúveis tenham por efeito fazer-me insuportável a esta criatura a quem sem eles, eu amaria com toda a minha alma; talvez, talvez etc." Enquanto a melancolia simpática é mais dolorosa e um pouco mais nobre, porque desconfia de si mesma por consideração à outra parte. "Quem está seguro de não mudar?" Pode ser que o que hoje considero bom em mim desapareça amanhã; pode ser que os dons, graças aos quais cativo agora a minha amada, e que desejo conservar para ela, eu os perca, e que ela se veja então enganada, defraudada; talvez a tentasse então um partido mais brilhante e fosse incapaz de resistir e, meu Deus, eu teria essa infidelidade sobre a minha consciência. Nada teria a lhe reprovar, seria eu que teria mudado, perdoar-lhe-ia tudo contanto que ela também perdoasse minha imprudência de havê-la conduzido a um ato tão decisivo. Saberia, em sã consciência, que em vez de seduzi-la, a pus em guarda contra mim, e que ela seguiu sua livre resolução; porém, talvez, justamente essa advertência fosse o que a induziu à tentação, mostrando, em mim, um homem melhor do que realmente sou etc. "Bem se vê que essa maneira de pensar não se satisfaz mais com uma união de dez anos que com uma de cinco, nem com um pacto como o que Saladino fez com os cristãos por dez anos, dez meses, dez semanas, dez dias, dez minutos nem que tampouco uma união desse tipo satisfaça mais que uma contraída por toda a vida." É também evidente que essa concepção conhece demasiado bem o sentido daquele ditado: "A cada dia, o seu mal." A gente se esforça por viver como se cada dia fosse decisivo, dia de prova. De modo que quando nossa época se mostra tão inclinada a "neutralizar" o matrimônio, a razão não é que achemos maior perfeição no celibato, como na Idade Média, e sem a covardia, a avidez do gozo. Do que se deduz, também, que os matrimônios contratados por um determinado tempo não oferecem vantagem alguma, posto que comportam as mesmas dificuldades dos contratados por toda a vida; e é tão possível que brindem aos interessados a força necessária para viver, como que desgastem, por outro lado, as energias profundas da união conjugal, relaxem a tensão da vontade e diminuam a confiança, essa bênção do matrimônio. Além do mais, já está claro, e o veremos ainda melhor mais adiante, que esta classe de associações não alcançou a consciência de eternidade que caracteriza a moralidade, e que é necessária para a união em um matrimônio. Tu o admitirás sem reserva: quantas vezes e com quanta segurança tu analisaste com argúcia essa classe de sentimentos (lembra "os azares do amor ou o amor ao infinito") pelos quais um jovem, encostado à janela de sua noiva, vê uma moça passar na esquina, sente a "flechada" e se lança em seu encalço. Porém, logo tropeça com outra e assim tudo se repete. A segunda corrente observada em nossa época para substituir o amor romântico respeita os convencionalismos e preconiza o marriage de raison. Já o termo demonstra que nos achamos no terreno da reflexão. Alguns, por exemplo, se assombram ao ouvir falar do matrimônio assim concebido, intermediário do amor imediato e a razão pensante, porque para respeitar o idioma, deveriam chamá-lo "matrimônio raciocinado." (Matrimônio de razão — sentido nobre (Fornuft) digno do ser de razão que é o homem. Matrimônio raciocinado (Forstand), fundado no cálculo, no interesse, no egoísmo). Gostas, sobretudo, sempre com muito engano, de apresentar "os prejuízos" como o sólido fundamento do amor conjugal. Nossa época mostra quão influente é a reflexão quando necessita recorrer a um expediente tal como o matrimônio de conveniência em que renuncia ao amor propriamente dito, porém, também mostra como isso não resolve a questão. Um "matrimônio raciocinado" deve ser considerado, pois, como uma espécie de capitulação, inevitável pelas complicações da vida. Porém, que triste é ver que, por assim dizer, é o único consolo da poesia de hoje. O único consolo: o do desespero. Porque é o desespero, claramente, o que faz alguém aceitar semelhante união. Contraem-na livremente pessoas que perderam há muito tempo a ingenuidade da infância; sabem que o amor propriamente dito é uma ilusão, e que sua realização é em todo caso um pium desiderium. O ponto de vista que então se adota é o da própria vida, do dinheiro, da classe social etc. A união parece moral na medida em que neutraliza a face "sensível" do matrimônio; porém, resta saber se essa neutralização não será tão contrária à ética como à estética. Inclusive se não se elimina completamente o elemento erótico, atuam frias considerações sobre a necessidade de ser prudente, de não gostar de outro lago, porque a vida nunca nos traz o ideal, e afinal de contas, trata-se do partido realmente conveniente... O eterno que, como já vimos, faz parte de todo o matrimônio, na realidade, aqui não aparece, porque a razão calcula sempre com base no temporal. Em suma, uma união contraída nessas condições é imoral e frágil. Porém, o matrimônio de conveniência pode alcançar certa beleza quando é determinado por um motivo superior, estranho à união mesma; por exemplo, quando uma donzela, por amor à sua família, casa-se com um homem capaz de dar a esta certo amparo. Porém, essa finalidade, totalmente exterior, demonstra muito bem que não podemos encontrar aí a solução do problema. Caberia examinar talvez as muitas razões que se invocam para casar-se; porém, justamente essas considerações pertencem à esfera da razão. Vimos que o amor romântico se baseia em uma ilusão, e sua eternidade no tempo; que se bem que se esteja intimamente convencido da constância absoluta de seu sentimento, o cavalheiro do amor romântico não tem, a seu respeito, nenhuma certeza, porque até agora o buscou nas vicissitudes de um meio totalmente exterior. O amor romântico, animado por bonita piedade, pode igualmente aceitar o matrimônio, sem transmitir-lhe, por isso, uma significação profunda. Vimos como esse amor imediato, não sem beleza, porém, com certa pobreza intelectual, expõe-se fatalmente à ironia e à zombaria de uma época de reflexão que o submete à crítica, e vimos, também, o que semelhante época pode alcançar em lugar daquele. Entregando-se à crítica do matrimônio, nossa época declara-se a favor do amor excluindo o matrimônio, e, por outro lado, admite o matrimônio, excluindo o amor. Assim vimos, num drama moderno, uma costureirinha pensar e formular esta sábia observação acerca destes senhores: "Amam-nos, porém não se casam conosco; não desejam as mulheres de seu mundo, porém casam-se com elas." Meu rápido exame (vejo-me obrigado a chamar assim estas linhas não obstante meu desejo primitivo fosse de escrever somente uma longa carta), meu rápido exame chega assim a um ponto em que o matrimônio aparecerá à plena luz. Que corresponda essencialmente ao cristianismo, que as nações pagãs não o tenham conhecido em sua forma perfeita, apesar da sensualidade do Oriente e de todo o sentido estético da Grécia; que o próprio judaísmo não o tenha levado à perfeição, apesar de seu inegável sentimento do edílico, tudo isso o admitirás sem obrigar-me a insistir. Sobretudo porque, e bastará simplesmente recordá-la, em nenhuma parte a oposição dos sexos foi submetida a uma reflexão tão profunda de tal modo que "o outro sexo" tenha recebido plena justiça. Porém, também no cristianismo, o amor sofreu não poucas vicissitudes antes de que se pudessem ver a profundidade, a beleza e a verdade do matrimônio. Sem dúvida, como a geração precedente e em parte a nossa caracterizam-se pela reflexão, não é fácil de demonstrar o que sustenho; e como encontrei em ti um virtuoso na arte de encontrar os pontos fracos, a tarefa a que me propus, a de converter-te se possível, complica-se duplamente. Confesso, sem dúvida, minha gratidão por tuas objeções. Quando resumo os argumentos que expuseste, numerosos e isolados, e os considero em conjunto, encontro tanto talento e gênio, que vem a ser um excelente guia para quem pretende responder-te; teus ataques não são tão superficiais que não contenham também algo de verdade quando discutes com alguém, apesar de que nem esta pessoa, nem tu mesmo o adivinhem neste instante. 5. De como o matrimônio salva o amor do ceticismo Ao amor romântico, falta reflexão e tal é seu defeito. De modo que seria bom método o de submeter o verdadeiro amor conjugal a uma espécie de dúvida prévia, o que pareceria tão mais necessário quando verificamos que aqui chegamos com base na reflexão. Não nego de maneira alguma que o matrimônio seja artificialmente realizável, baseando-se nesta dúvida; trata-se, porém, de saber se nesse caso, não se altera sua natureza, posto que se abriga a ideia de um divórcio entre o amor e o matrimônio. Trata-se de saber, pois, se faz parte da essência do matrimônio destruir a paixão, quando se duvida da possibilidade de leva-la a cabo, e com essa destruição fazer possível e real o amor conjugal. De modo que o matrimônio de Adão e Eva foi propriamente o único em que este conservou-se intacto e isso sobretudo pela razão que Misaeus expôs com tanta graça: a saber, que não era possível amar a ninguém mais. Trata-se de saber se a paixão, passando a uma imediatez concêntrica superior, não estará a salvo deste ceticismo, de modo que o amor conjugal não tenha necessidade de sepultar as belas esperanças da paixão. O matrimônio não seria outra coisa que a paixão enriquecida de condições que, longe de diminuí-la, a enobrecem. A exposição desse problema é difícil, porém, de extrema importância, se não queremos encontrar, na esfera do ético, um abismo análogo ao que, na esfera do intelectual, separa a ciência da fé. E tu não me contradirás, meu caro amigo, (porque teu coração encerra também o sentimento do amor, e teu cérebro conhece demasiado a dúvida). Oxalá o cristão pudesse chamar a Deus o Deus do Amor, pondo nesse termo uma indizível felicidade, esse poder eterno no mundo que é o amor terrestre! Se bem tenho caracterizado anteriormente o amor romântico e o amor reflexivo como pontos de vista discursivos, aqui ver-se-á com clareza em que medida a unidade superior é uma volta ao imediato, e em que medida subsiste nela a parte do que mais possa conter, o que se encontrava no estágio anterior. Não cabe dúvida de que o amor reflexivo se consome sem cessar, e que se extingue, com arbitrariedade completa, num ponto ou noutro; nem que aspira a superar-se numa esfera mais alta. Trata-se, porém, de saber se esta não pode, por si mesma, entrar em relação com a paixão. Essa esfera mais alta é a da religião, na qual terminam a reflexão e a razão e assim como nada é impossível a Deus, tampouco nada é impossível ao indivíduo religioso. Na esfera do religioso, o amor recupera o infinito que buscou em vão no amor reflexivo. Porém, se o religioso, superior a tudo que é terreno, é ao mesmo tempo, e igualmente, excêntrico, apesar de concêntrico ao amor imediato, a unidade pode estabelecer-se sem que seja necessária a dor, que a religião pode, sem dúvida, curar, porém, que nem por isso será menos profunda. É muito raro que se descubra esta questão: os que têm o sentido do amor romântico não se ocupam do matrimônio, e muitos matrimônios são realizados, infelizmente, sem esse profundo sentimento do erótico, que é por certo o que há de mais belo na existência do homem. O cristianismo tende insistentemente ao matrimônio. Se, pois, o amor conjugal não pudesse conter todo o erótico que há na paixão, o cristianismo não seria considerado o que há de mais supremo na evolução da humanidade. E é, certamente, um secreto temor de tal desacordo a causa principal do desespero que existe no novo lirismo, em verso ou em prosa. Como vês, a tarefa a que me propus consiste em mostrar que o amor romântico é compatível com o matrimônio e pode substituir nele; mais ainda, que o matrimônio é a verdadeira glorificação desse amor. Não pretendo com isso lançar sombras sobre os matrimônios que se amparam na reflexão e se salvam de naufrágio; não nego que se possa fazer muito com este, nem careço de simpatia a ponto de recusar-lhe minha admiração. Não esqueço, em suma, que a corrente de toda a nossa época pode frequentemente fazer desse passo uma triste necessidade. Convém, porém, recordar que todo o indivíduo de qualquer geração recomeça, em certa medida, sua vida, e que cada um tem a possibilidade de evitar, pois, esse abismo. Convém também recordar que a geração se instrui na precedente e que, portanto, uma geração entregue a esse drama tão triste da reflexão pode dar perspectivas mais felizes à posterior. E por mais numerosas e árduas que sejam as complicações que a vida possa ainda reservar-me, imponho-me também a tarefa, para muitos insignificante, porém, a meus olhos a mais importante, de mostrar que minha modesta união serviu a essa transformação e para encontrar a força e o valor com que cumprir constantemente aquele outro desígnio inicial. Capítulo II EXAME DO MATRIMÔNIO CRISTÃO Uma vez mais, não posso deixar de me regozijar de escrever para ti, porque se bem que é certo que eu não queria falar a ninguém mais de minha vida conjugal, também o é que me abro a ti com uma alegria confiante. Às vezes, quando se acalma o tumulto de teus pensamentos, teu trabalho e tua luta, quando se apaga o rumor desse formidável mecanismo de teu cérebro, chegam momentos de calma cujo silêncio, quase angustiante no princípio, exerce logo sua ação verdadeiramente benéfica. Espero que este estudo te encontre em um desses momentos; e se te pode confiar sem temor qualquer pensamento, enquanto esta máquina está trabalhando, pois aí não escutas nada, também se te pode dizer tudo sem estar-se à tua mercê, quando tua alma acha-se mergulhada nessa paz solene. De modo que falarei também daquela de quem só falo com a silenciosa natureza, para escutar-me somente a mim; aquela a quem devo tanto, e entre outras coisas, esta coragem com que ouso defender a causa da paixão e do matrimônio; porque, apesar de todo o meu amor e todo o meu esforço, que poderia eu se ela não viesse em meu auxílio? Que poderia eu se ela não me infundisse entusiasmo e vontade? Sem dúvida, sei muito bem que se eu lhe dissesse isso, não me acreditaria; e talvez eu fizesse mal, porque correria o risco de agitar e turvar a profundidade e a pureza de sua alma. Meu primeiro cuidado será orientar-me, e sobretudo guiar-te até a definição da natureza do matrimônio. Seu primeiro constituinte, sua substância, é evidentemente o amor, ou se te empenhas em especificar, o Eros. Se eliminarmos esse elemento, a vida em comum é ou bem pura e simples satisfação do apetite sensual, ou bem uma associação, uma sociedade para alcançar tal ou qual objetivo; porém o amor leva justamente o selo da eternidade, tanto quando se trata do amor supersticioso, aventureiro, cavalheiresco, como do amor religioso, impregnado de profunda moralidade e animado de uma herança forte e profunda. Como toda condição, o matrimônio tem também seus traidores. Não penso, naturalmente, nos sedutores, porque não entraram na santa condição do matrimônio (espero que estas páginas te cheguem às mãos estando em um estado de espírito em que este termo não te faça sorrir). Nem penso nos esposos divorciados, porque não têm, finalmente, a coragem de lançar-se a uma revolta aberta. Não, eu penso naqueles que só se rebelam em pensamento, sem ousar passar à ação; nesses miseráveis esposos que suspiram pelo amor desvanecido há tempo; cada um em sua cela conjugal aferrando-se a grades de ferro e recitando suas asneiras sobre a doçura do noivado e a amarga decepção do matrimônio. Seguindo tua justa observação, são aqueles que formulam suas felicitações a todo recém-casado com uma espécie de alegria perversa. Não saberia dizer-te quão desprezíveis os acho e como me alegra quando um deles te toma por confidente, e derrama toda sua bílis, e conta todas as suas mentiras sobre a felicidade dos primeiros amores, e então lhe diriges, com teu ar maligno: "Deus me livre de aventurar-me neste paramo terrível!" E assim vejo redobrar a amargura daquele que não pode arrastar-te ao commune naufragium! A pessoas assim, referes-te quando falas de um terno pai e de seus quatro filhos-modelo os quais, de bom grado, mandaria ao diabo. Se suas expressões tivessem algum fundamento, deveríamos admitir a separação entre o amor e o matrimônio, referindo-se cada um a um momento do tempo, porém ambos incompatíveis. Então, descobriríamos imediatamente qual é, dos dois, o momento do amor: o do noivado, por suposto, o tempo do noivado, cujo encanto celebram por qualquer pretexto, e com uma emoção e transportes de cômica vulgaridade. Nunca, confesso-te, apreciei muito essas baboseiras do noivado; e mais se insiste sobre este período, mais se me faz pensar no tempo que demoram certas pessoas para lançar-se na água quando vão e vêm na ponte flutuante e experimentam a água com as mãos e os pés, e encontram-na, ora demasiado fria, ora demasiado quente. Se fosse certo que o tempo de noivado é o mais belo, não vejo realmente por que essas pessoas se casam. Sem dúvida se casam, seguindo o protocolo burguês mais restrito, quando tias, primos e vizinhos o acham oportuno, com um convencionalismo em que encontramos a mesma letárgica indolência que na concepção do noivado como o mais belo momento da vida. Em todo o caso, prefiro-os aos outros, os temerários, que só encontram prazer no arrojar-se na água: sempre é algo, apesar de o gesto não ter nunca tanta grandeza, o estremecimento da consciência, tão bela virtude, nem a reação da vontade, tanta energia, como quando um braço viril e poderoso estreita a amada com terna firmeza, com uma força que lhe infunde, sem dúvida, o sentimento da liberdade, com o qual ela pode precipitar-se ante Deus no oceano da vida. Se essa separação do matrimônio e do amor tivesse alguma validez, salvo em alguns miseráveis sem senso, quase monstros, tão pouco informados da natureza do amor como da natureza do amor conjugal, seria uma má posição a defesa do matrimônio e vão o meu projeto de explicar seu valor estético, de explicar o que é a harmonia estética do amor. Porém, que razão invocar para justificar essa separação? Talvez fosse necessário alegar que o amor está condenado a desaparecer. Aqui vemos, uma vez mais, a desconfiança e a covardia de que nossa época oferece tantos exemplos; uma e outra caracterizadas pela crença de que a evolução é regressão e destruição. Admito de bom grado que um amor tão mesquinho e débil, nem masculino nem feminino, (um amor de dois centavos, como dirias com tua habitual irreverência), não pode, realmente, resistir a um só golpe de vento, nas tempestades da vida. Porém, não poderíamos dizer o mesmo em relação ao amor e ao matrimônio, quando um e outro se acham em seu estado natural e sadio. Ou então, haveria de alegar, o ético e o religioso, que surgem do matrimônio, mostram uma natureza tão distinta do amor que não podem unir-se, portanto. De sorte que o amor não poderia empreender na vida uma luta vitoriosa a menos que pudesse fundir-se e contar unicamente consigo. Essa maneira de ver levaria a questão, seja ao pathos inexperimentado do amor imediato, seja ao capricho ou arbítrio de qualquer indivíduo que se sinta capaz de terminar a carreira com suas próprias forças. Essa última concepção, segundo a qual o ético e o religioso exerceriam sobre o matrimônio um efeito destrutivo, apresenta certa vitalidade, que facilmente se impõe em uma observação rápida; e apesar de seus erros, comporta uma sublimidade bem diferente de toda a miséria da primeira. Voltarei a falar sobre isso, tanto mais quanto muito me engana meu olhar de inquisidor se não vejo em ti um herege impregnado desse erro, em certa medida. 1. A resignação, elemento ético e religioso do matrimônio O amor é a substância do matrimônio. Porém, qual é o primeiro? O amor precede ou se segue ao casamento? Essa última concepção goza de muito apoio entre os espíritos limitados, e tem sido defendida pelos pais avisados e mães mais prudentes que por haverem feito essa experiência, ao que supõem, vingam-se pretendendo impô-la sem réplica a seus filhos. Esse é o sábio procedimento dos vendedores de pombas que encerram em uma pequena gaiola dois desses pássaros sem a menor simpatia recíproca, os quais, pensa-se, terminarão por entender-se. Essa teoria é, naturalmente, de tal pobreza que só desejo a mencionar, e recordar tuas sátiras sobre esse ponto. O amor é, pois, o elemento primeiro. Além disso, e segundo entendo, é de essência tão sutil, e — apesar de natural — tão pouco natural, e tão delicado, que não pode de maneira alguma suportar o contato com a realidade. Eis-me aqui novamente no ponto em que estávamos há pouco: o noivado parece recobrar toda sua importância. Porém o que é o noivado senão um amor irreal que se nutre desse suave e sutil elemento que é a possibilidade? Ignora a realidade, move-se no vazio, e persevera na prática dos mesmos gestos, apaixonados, porém, insignificantes. E quanto mais fora da realidade estejam os enamorados, mais esforços lhes custam esses movimentos fictícios e que os esgotam, mais sentem a necessidade de fugir da grave realidade do matrimônio. O noivado parece não comportar nenhuma realidade que resulte necessariamente dele; é um magnífico expediente para aqueles que não têm a coragem de contrair a união. Ante esse passo decisivo, experimentam, sem dúvida, e provavelmente com grande acuidade, a necessidade de buscar ajuda num poder superior, e transigem duplamente: consigo mesmos, iniciando um noivado com os riscos consequentes, e com esse poder, posto que não renunciam à bênção da Igreja, bênção a qual, em meio a sua enorme superstição, valorizam em demasiado. De modo que temos novamente, em sua pior forma, a mais covarde e menos viril, uma cisma entre o amor e o matrimônio. Sem dúvida, essa concepção híbrida não pode extraviar-nos: ali, o amor não tem o caráter do amor, falta-lhe o aspecto sensível, que no matrimônio acha sua expressão moral. Essa concepção neutraliza o erótico, a ponto de o noivado poder ser contratado entre pessoas do mesmo sexo. Em troca, se reivindica a parte sensível, porém, mantendo-se essa distinção se submerge ao mesmo tempo em uma das direções que indiquei anteriormente. Noivados, assim, são desprovidos de beleza, qualquer que seja o aspecto pelo qual os consideremos: mesmo do ponto de vista religioso, porque são uma tentativa de enganar a Deus, de alcançar com astúcia uma finalidade para a qual não se crê precisar de Seu concurso, embora apele para Ele quando sente o inconveniente de proceder de outra maneira. O matrimônio não deve, pois, conduzir ao amor; pelo contrário o pressupõe, e não como um passado, e sim como um presente. Porém, o matrimônio comporta um momento ético e religioso que o amor não tem: de modo que se funda na resignação, coisa que o amor não faz. Se admitirmos agora que todo o homem segue em sua vida um duplo movimento, primeiro o movimento pagão, no qual triunfa o amor, e logo o cristão, em que é expressão o matrimônio, e se não admitirmos que o amor (Eros) deva ser excluído do cristianismo, é preciso demonstrar então que é compatível com o matrimônio. Imagino que se um profano lesse estas páginas, muito lhe surpreenderia ver que uma questão tão simples possa custar-me tanto empenho. Porém, escrevo para ti somente, e tua intelectualidade te permite compreender muito bem as dificuldades. Comecemos, pois, por examinar o amor. Adoto aqui um termo que, apesar de tuas zombarias e das de todo o mundo, sempre teve para mim uma bela significação: a da paixão (e creia-me, não cederei se por ele se produz uma disputa em nossa correspondência... como não cederás tampouco). Ao pronunciar essa palavra, penso no que há de mais formoso na vida. Em tua boca, descarregas em toda a linha o fogo de tuas observações malévolas; porém, para mim não tem nada de risível, e, na verdade, me exponho a teu ataque com desdém, não encontrando nela a melancolia que pode despertar em certas pessoas. Essa melancolia não é forçosamente mórbida; mórbido é somente o falso e enganoso. Depois de um amor desventurado e da experiência dessa dolorosa decepção, é belo, é sadio manter-se fiel a um sentimento, e conservar, apesar de tudo, a fé na paixão, emoção primeira do amor. E quando, no curso dos anos, ao recordamos às vezes de uma maneira vivida, embora a alma tenha tido tanta saúde que deixou esse gênero de vida e consagrou-se a um objeto superior, é bom recordar com melancolia a paixão como algo que não era, sem dúvida, a perfeição, porém, que tinha uma rara beleza. E quanto mais sã, mais bela e mais nobre é essa melancolia que o prosaico raciocínio, livre de todas estas puerilidades, que esta diabólica sabedoria, como a do mestre Basílio, que presume ser saúde, porém, que é a mais profunda enfermidade consuntiva. Porque, de que serviria a um homem ganhar o mundo inteiro se perdesse sua alma? Para mim, o termo "paixão" não tem sombra de melancolia: comporta talvez um ligeiro tom de tristeza; é meu grito de guerra, e mesmo casado há vários anos, ainda tenho a honra de combater sob a bandeira vitoriosa da paixão, ou se preferes, do amor-instinto. 2. A paixão como momento da "coisa primeira" Para ti, sem dúvida, essa ideia de "primeira" é um valor suscetível de altos e baixos. É a teus olhos um enigma, como o movimento das ondas. Às vezes, toda a "coisa primeira" te entusiasma. Estás tão carregado da energia concentrada nela que não queres outra coisa. Inflamado de amor, submerso em profundos sonhos, como uma nuvem de chuva que se precipita, e suave como uma brisa de verão representas Júpiter quando visitava sua amada em forma de nuvem e chuva. O passado se desvanece, todas as fronteiras se desvanecem. Tu te dilatas, sentes uma suave desenvoltura invadir teus membros todos, e teus ossos se transformam em músculos flexíveis: assim o gladiador se estira e estende seu corpo para ser o amo desse corpo. Dir-se-ia que assim se despoja de sua força: porém, essa voluptuosa tortura é por certo a condição do justo emprego de seu vigor. Então te achas em um estado em que gozas da pura voluptuosidade da receptividade perfeita. Basta o mais ligeiro contato para estremecer este corpo espiritualizado, imensamente distendido e invisível. Há um animal ante o qual fico frequentemente pensativo: é a medusa. Observaste que essa massa gelatinosa pode estender-se na superfície e logo submergir lentamente, ou então subir, tão tranquila e tão firme que poder-se-ia crer poder sustentar-se sobre ela? Porém, a medusa vê aproximar-se sua presa: Então adota a forma de um saco, e se afunda rapidamente nas profundidades, arrastando nesse movimento sua vítima, não nesse saco, pois não o tem, e sim nela mesma, porque ela é um saco e nada mais. Então, pode contrair-se a tal ponto que já não se compreende como pode distender-se. O mesmo ocorre, mais ou menos contigo: perdoa-me se não encontro um animal mais nobre para comparar-te, sorris de ti mesmo à ideia de que és um saco. És, nestes momentos em que persegues "a coisa primeira", e somente queres essa coisa, sem suspeitar da contradição que há, em querer constantemente a mesma coisa, pois logo será necessário ou que nunca a tenhas alcançado, ou que a tenhas realmente possuído. E sem pensar tampouco que o objeto de tua contemplação, de teu gozo, não é senão um reflexo da coisa primeira. E repare também teu erro quando crês que a coisa primeira deveria estar inteiramente presente em outra coisa distinta, e pôr-se à vista contando que saibamos buscá-la. Repare, além disso, que na medida em que invocas tua experiência, voltas a equivocar-te, porque, nunca seguiste a boa direção. Em outros momentos, ao contrário, és frio, incisivo e mordaz como o servo, frio como a geada, transparente em teu pensamento como o ar quando se renova. És seco e estéril tão encerrado em teu egoísmo como seja possível. Se, quando te achas nesse estado, alguém te fala porventura na coisa primeira, e da beleza que há nela, e talvez te conte de seu primeiro amor, então põe-te francamente bilioso. A "coisa primeira" é então a mais ridícula e a mais miserável de todas, uma dessas mentiras que as gerações transmitem, aferrando-se cada vez mais a elas. Em tua fúria, massacras como Herodes, um após outro, os inocentes. Em discursos intermináveis, susténs que é uma covardia indigna do homem aferrar-se assim à "coisa primeira", que a verdade está no que conquista, e não no já dado. Recordo que um dia vieste visitar-me nesse estado. Depois de haveres enchido teu copo, como de costume, te instalaste no sofá mais confortável, jogaste tuas pernas sobre uma cadeira, te puseste a remexer meus papéis (recordo inclusive, que os arranquei), e logo te lançaste a um elogio irônico do amor à primeira vista, e de tudo que é primeiro, inclusive "os primeiros safanões que levamos na escola". E acrescentaste, à guisa de comentário, que tu podias falar com autoridade, pois teu mestre era, ao que sabias, o único que sabia aplicá-los com força. E logo para terminar, assobiaste unia canção daqueles tempos, atiraste ao outro extremo do quarto a cadeira onde havias apoiado teus pés, e saíste. É inútil, pois, buscar contigo o esclarecimento do mistério que se esconde por trás desta palavra "primeiro", que cumpriu e cumprirá sempre um imenso papel no mundo. Seu valor é realmente decisivo para o estado espiritual do indivíduo; e, se este não o sente assim, isso basta para demonstrar que sua alma não está pronta a vibrar ao contato com as coisas superiores. Em troca, dois caminhos se apresentam àquele que reconheceu a importância da "coisa primeira." Ora, contém, a promessa do porvir, é o motor que arrasta para frente, o impulso infinito: tal é o caso das individualidades felizes, para quem a coisa primeira não é mais que o presente, porém, o presente feito dessa coisa que se desdobra e rejuvenesce sem cessar. Ou bem a coisa primeira não move nem anima, no indivíduo, o indivíduo: a força que contém não é para ele uma força de impulsão e sim de repulsão. Assim ocorre com as individualidades infelizes que se afastam sempre mais do "primeiro"; porém, se subentende que isso não pode produzir-se senão em parte, por sua própria culpa. A esse termo "primeiro", todos os que conhecem o contato com sua ideia lhe associam uma nobre significação, e somente quando aplicado a elementos das esferas inferiores tem a acepção mais baixa. Não te faltarão exemplos desta classe: as primeiras provas de um livro, a primeira vez que se experimenta uma roupa etc. Quanto mais possibilidades haja de que uma coisa se repita, menos tem valor seu caráter primeiro. E o inverso: quanto maior seja a importância da coisa que aparece pela primeira vez, em seu caráter primeiro, menos possibilidades há de que essa coisa se repita. Tratando-se de algo eterno, então desaparece toda a possibilidade de repetição. Daí que quando, com uma gravidade impregnada de melancolia, se fala das primeiras emoções de um amor como se não devessem repetir-se nunca, não se desdenha o amor de modo algum; pelo contrário, se lhe dispensa o elogio mais profundo, posto que se vê nele o poder eterno. Assim consentindo uma pequena digressão filosófica, não à minha pena, mas ao meu pensamento, Deus se encarnou somente uma vez, e seria vão esperar que esse fato se repetisse. Podia fazê-lo frequentemente no paganismo, precisamente porque não se tratava então de uma verdadeira encarnação. Do mesmo modo, o homem só nasce uma vez, sem possibilidade alguma de repetição, e a metempsicose ignora esse valor do nascimento. Aclararei meu pensamento com alguns exemplos: saudamos com certa sensação de solenidade a primeira folha, a primeira andorinha. Assim sentimos pela ideia que isso suscita em nós. Aqui, o que se oferece em seu caráter primeiro não é o primeiro em si, ou seja, a primeira andorinha tomada isoladamente. Uma gravura representa Caim matando Abel: ao fundo vemos Adão e Eva. E não me resolvo dizer se a gravura é valiosa, porém, a legenda explicativa sempre me interessou: prima caedes, primi parentes, primus luctus: o primeiro homicídio, os primeiros pais, a primeira dor. Aqui, a coisa primeira apresenta novamente uma significação profunda: nossa reflexão versa sobre a coisa em si, apesar de dizer respeito mais ao tempo que ao sujeito, pois não se vê a continuidade que, com a coisa primeira, estabelece o todo. O todo entende-se naturalmente como o pecado que se transmite na espécie. O primeiro pecado, concebido com a queda de Adão e Eva, orienta melhor o pensamento para o contínuo, porém a natureza do mal é não ter continuidade, (compreendes facilmente porque não tomo este exemplo). Vejamos, porém, outros. Como se sabe, várias seitas muito estritas da Cristandade tomaram as palavras da Epístola aos Hebreus sobre a impossibilidade, para os que um dia viram a luz, de converter-se novamente, se caem em apostasia, e as invocaram para mostrar que a graça de Deus tem seus limites. Aqui, se reconhece o valor da "coisa primeira": a vida cristã aparece em toda a sua profundidade, e quem se engana uma vez está perdido. Apesar de, nessa concepção, o elemento estar demasiado circunscrito às condições do temporal, o exemplo pode servir-nos para compreender como a "coisa primeira" é o todo, a substância integral. Porém, se o que se dá a conhecer na "coisa primeira" depende de uma síntese do temporal e do eterno, todas as minhas análises anteriores parecem, desde logo, conservar seu valor. A "coisa primeira" contém implícita e secretamente a totalidade. E, portanto, não me envergonho de referir-me às primeiras emoções de um amor. Para os felizes, esse primeiro instante é, ao mesmo tempo, o segundo, o terceiro, o último, porque é aqui determinação de eternidade; e para os desventurados é o momento, e se converte em uma determinação da temporalidade. Uma vez dado, é para uns um presente e para outros um passado. E na medida em que a reflexão atua sobre os primeiros, fortifica o amor, atendendo ao eterno que este comporta, enquanto o que o destruirá se atende a seu aspecto temporal. Assim, para aquele em que a reflexão se exerce segundo o tempo, o primeiro beijo, por exemplo, será um passado (como o provou Byron em um pequeno poema); e para aquele em quem se exerce, segundo a eternidade, uma possibilidade eterna. 3. Liberdade e necessidade do amor Tudo isso se refere ao predicado de primeiro, que aplicamos ao amor. Levarei a cabo agora um exame mais detido dessa paixão que chamei também de amor-instinto. Recorda antes, porém, te peço, a pequena contradição a que chegamos quando eu dizia que a paixão possui a substância integral: não será mais inteligente provar dela um pedaço e, a seguir, passar a uma segunda emoção do amor? Porém, isso seria brincar com a paixão: não só se desvanece, como tampouco teremos o momento seguinte. Porém, se refere à substância, o é só na medida em que sejamos fiéis; e se assim é, não resulta de uma segunda emoção do amor? Não, porque por essa mesma persistência, acaba por ser a primeira quando a reflexão se refere à eternidade. Salta à vista que certos filisteus, presumindo estar na idade em que convém procurar uma companheira (talvez pelos apelos matrimoniais de alguma revista), excluam a paixão de uma vez por todas, e que essa mesquinha condição burguesa não pode ser considerada como antecedente do amor. Não há dúvida. Eros poderia compadecer-se o suficiente desses homens para fazê-los enamorarem-se. Bastante compaixão, digo, porque se necessita de uma dose extraordinária para despertar no homem, o mais sublime dos bens terrestres, como o é sempre a paixão, mesmo infortunada. Porém, o infeliz então se converte sempre em uma exceção e tampouco seu estado anterior nos instrui. Se acreditamos nos sacerdotes da música mais dignos de fé nesse setor, e nos detemos, por exemplo em Mozart, descrevemos melhor o estado que precede o amor, porque o amor cega as pessoas. Quem o sente, perde, por assim dizer, a capacidade de ver. Eis o que observamos em sua pessoa: se interioriza, contempla sua visão interna, ao mesmo tempo em que se esforça constantemente por voltar os olhos para o mundo que o cegou, e sobre o qual fixa suas vistas. É um estado de sono, e sem dúvida de busca, que Mozart mostrou com tanta sensualidade como espiritualidade no jovem pajem de Fígaro. O amor, ao contrário, está perfeitamente desperto, tem uma visão absoluta, e é preciso que reparemos nele se não queremos maltratá-lo. Volta-se para um objeto real, único e preciso, que só para ele existe, com exclusão de todo o resto. Esse objeto único não existe dentro de contornos imprecisos; é um ser vivente e determinado. Esse amor imediato comporta um momento de sensualidade, de beleza, embora esteja longe de ser unicamente sensível. Essa é a parte de necessidade implicada na paixão. Como tudo que é eterno, comporta uma dualidade, posto que toda a eternidade, olhando-se para trás a pressupõe, assim como para o futuro. Tal é a parte de verdade que os poetas expressam tão a miúdo com tão belos acentos; parece aos enamorados que se amam há muito tempo, e têm essa sensação desde o instante em que se veem pela primeira vez. E tal é a parte de verdade contida na inviolável fidelidade cavalheiresca, que nada teme, nem conhece a angústia de pensar em algum poder capaz de separar. Porém, todo o amor é, por natureza, uma síntese de liberdade e de necessidade; e aqui o é igualmente. O Indivíduo se sente livre dentro dessa necessidade em que põe em jogo toda a sua energia pessoal e se sente possuidor de tudo que existe. O modo que podemos, sem risco de erro, observar se um homem realmente ama: porque esse estado comporta uma transfiguração, uma divinização que dura toda a vida. Todos os elementos de discórdia vibram então em uníssono: em um instante, nos fazemos mais jovens e mais idosos que de costume, somos homens feitos, e não obstante, adolescentes, quase crianças; fortes e sem dúvida fracos; somos, repito, uma harmonia cujos tons ressoam por toda a vida. Quero celebrar a paixão como uma das mais belas coisas do mundo, porém, nem por isso me faltará a coragem de ir mais longe e de vê-la em dificuldades. Entretanto, temos primeiro outra tarefa. Aqui apresenta-se já uma dúvida semelhante à que veremos aparecer na relação entre a paixão e o matrimônio. Um espírito religioso desenvolvido tem o hábito de dirigi-lo todo a Deus, de penetrar e fecundar com esse pensamento toda a circunstância finita, a qual, assim, enobrece e santifica. Parece grave, pois, nessas condições, deixar que tais sentimentos surjam na consciência sem pedir conselho a Deus; porém, na medida em que lhe pedimos, a situação fica alterada. Pois é próprio da paixão tomar a pessoa de surpresa, e como o resultado da surpresa é involuntário, não se vê como seria possível aconselhar-se com Deus. Tudo que se poderia alegar referir-se-á persistência nesse sentimento; já o veremos mais adiante. Porém, não será possível ter um conhecimento antecipado da paixão na medida em que é, como tal, ignorante de Deus? Dedicarei agora algumas palavras ao matrimônio cujo caráter decisivo é, não para tal indivíduo, e sim em relação à outra pessoa ou à outra coisa, e no qual o indivíduo não alcançou a liberdade. Essa é a triste forma que achamos no caso em que o indivíduo tenta suscitar no objeto de seu amor, por meio da magia, ou por outros artifícios semelhantes, que o põem em relação com as forças da natureza. Uma forma mais nobre aparece no que poderíamos chamar o matrimônio puramente religioso. (Na verdade, o matrimônio não está naturalmente desprovido do elemento religioso, porém, comporta por sua vez o elemento erótico.) Quando, por exemplo, Isaac pergunta a Deus, com toda a confiança e humildade, qual é a mulher que deve escolher; quando, pondo sua esperança em Deus, envia um servo para buscá-la, em vez de ir ele próprio, porque seu destino está entregue nas mãos de Deus, essa conduta é certamente bela, porém, não outorga ao erótico o que lhe é devido. Recordemos também que o Deus dos judeus, apesar de toda a sua abstração, estava em todas as circunstâncias da vida de seu povo, muito próximo, e sobretudo próximo a seus eleitos, e que se bem que fosse espírito, sua espiritualidade não era tal que não se preocupasse com as coisas terrestres. Isaac podia, pois, até certo ponto, esperar com certeza que Deus escolheria uma mulher jovem, bela, honrada entre o povo e amável em todos os sentidos; sem dúvida, aqui falta o elemento erótico, mesmo admitindo que Isaac amasse a noiva, eleita por Deus; com toda a paixão da juventude. Faltou, entretanto, o elemento liberdade. 4. O caráter erótico e religioso do matrimônio Vemos às vezes, no cristianismo, uma mistura vaga, ainda que sedutora por essa imprecisão e ambiguidade, do erótico e do religioso. Impregnam-na, em grau igual, o desembaraço travesso e a piedade ingênua, encontramo-la, sobretudo, no catolicismo, e entre nós, num estado mais puro, no povo. Imagina (e o fazes com prazer, estou certo porque é uma situação interessante), imagina uma aldeã provocante, dissimulada, sem dúvida em seus olhares, semelhante a uma flor sã e fresca, porém, cuja tez esconde algo que se assemelha, não a uma certa morbidez, porém, a uma saúde mais bela. Imagina essa jovem, na noite de Natal, só cai sua alcova, é mais de meia-noite, porém, o sono que lhe vem comumente regular, se lhe escapa, e ela experimenta o encanto de uma doce inquietação. Entreabrindo a janela, contempla o espaço infinito, em sua solidão povoada de estrelas silenciosas; um ligeiro suspiro alivia sua alma, fecha a janela, e em tom grave, apesar de pronto a subir, eleva sua súplica: Oh! Santos Reis, os três mostrem-me esta mesma noite a quem servirei a mesa e prepararei a cama, cuja esposa serei, cujo nome levarei. E então, sadia e alegre, deita-se. Verdadeiramente, os Santos Reis envergonhar-se-iam se não a atendessem; e pouco importa dizer-te que não sabemos em quem pensa. Sabemos muito bem; pelo menos se todos os augúrios da natividade não são um embuste, ela o sabe suficientemente. Voltaremos, porém, à paixão. É a síntese da liberdade e da necessidade; o indivíduo sente-se atraído para o outro por uma força irresistível; porém encontra justamente nisso sua liberdade. Esse amor é também a síntese do geral e do particular, e contém a um e outro se bem que dentro dos limites da sorte. E não tem todos esses caracteres como consequência da reflexão: tem-nos de uma maneira imediata. Neste sentido, quanto mais precisa e deprimida seja a paixão, mais possibilidade tem de ser realmente amor-instinto. Os enamorados são atraídos um para o outro por uma força irresistível, e sem dúvida, gozam disso com toda a liberdade. Já nada podem os pais insensíveis, nem as esfinges que tenham que vencer primeiro, e eu sou suficientemente rico para prover-lhes de um dote (além disso a tal não me propus, como os novelistas e dramaturgos, tomar todo o tempo, para tormento de todos: amantes, leitores e espectadores). Portanto, em nome de Deus, deixemos que se unam. Já vês que faço o papel de pai generoso, papel magnífico se não o tivéssemos ridicularizado tão frequentemente. Observaste a expressão "em nome de Deus" que minha linguagem paternal emprega; podes aceitá-la em um ancião que talvez nunca tenha sabido o que é a paixão ou que a tenha esquecido há muito tempo. Porém, quando um homem, ainda jovem, e com entusiasmo no amor, se permite utilizar essa expressão, tens direito de admirar-se. A paixão comporta toda a segurança de imediato, do espontâneo; não teme perigo algum, desafia o mundo inteiro, e somente deseja que encontre sempre as coisas tão fáceis, porque não coloco nenhum obstáculo em seu caminho. Pode ser que, ao proceder assim, não lhe preste nenhum auxílio e que observando bem, o torne desgraçado por esse mesmo motivo. Na paixão, o indivíduo dispõe de uni enorme poder, e a falta de obstáculos lhe é desagradável como seria para um audaz cavalheiro, dono de uma espada capaz de fender rochas, ver-se transportado a um deserto de areia, onde não houvesse um ramo sequer para cortar. A paixão é suficientemente firme; não necessita apoio e se algum fosse requerido, o cavalheiro diria que não se trata de paixão. Isso parece claro, porém, também é evidente, que me encontro em um círculo. Vimos anteriormente que o erro do amor romântico consiste em conceber o amor como um ansich abstrato, como uma entidade, e que todos os perigos que vê e deseja são, em seu caráter estritamente exterior, completamente estranhos ao amor mesmo. Recordamos que a questão se complica quando os perigos vêm de fora. Ao que o cavalheiro não deixaria de replicar: sim, porém, como seria possível? No caso afirmativo, não se trataria de paixão. Como vês, o problema não é fácil. Poderia recordar que nos enganamos se atribuirmos à reflexão um papel simplesmente destrutivo; é também saudável. Porém, como minha tarefa principal é mostrar que a paixão pode subsistir ao matrimônio, vou desenvolver um ponto que indiquei mais acima: mostrarei que se pode passar a uma concentricidade superior, e que para isso não se necessita da dúvida. Logo mostrarei que cabe essencialmente à paixão chegar a ser histórica, e que o matrimônio é precisamente a condição para isso, enquanto o amor, segundo o entende o romantismo, não tem tal caráter histórico, por mais capazes que sejamos de acreditar in folio nas façanhas do cavalheiro romântico. A paixão tem a segurança do imediato; porém, os indivíduos têm, ao mesmo tempo, um ser religioso. É meu direito, e mesmo diria meu dever, pressupô-lo, posto que minha tarefa é mostrar que a paixão e o matrimônio são compatíveis. A questão é, pois, naturalmente distinta quando uma paixão desventurada ensina aos indivíduos a recorrerem a Deus e buscarem a segurança no matrimônio. A paixão fica alterada, embora seja possível reconstituí-la; se bem que os enamorados estejam habituados a referir tudo a Deus, subentende-se que isso se pode fazer de uma série de maneiras. Não é no dia de tristeza quando recorrem a Deus, nem é o temor ou a angústia o que os impulsionam a rezar, e sim quando seu coração e todo o seu ser transbordam de alegria? E que coisa é mais natural, então, que dar graças a Deus. Nada temem, porque os perigos exteriores não podem prevalecer contra eles; e, quanto aos interiores, a paixão os ignora por completo. Porém essa ação de graças não altera a paixão; não turvou nenhuma reflexão e sim passou a uma concentricidade superior. Sem dúvida, como todas as súplicas, essa ação de graças comporta um momento de atividade não exterior, e sim interior, e que é, aqui, a vontade de conservar firmemente o amor. Não fica modificada a natureza do primeiro amor; não interveio nenhuma reflexão, ela conserva intacta sua unidade e possui, além disso, a integridade de sua bem-aventurada certeza. Nada fez que passar a uma concentricidade superior. Nessa nova esfera, talvez ignore totalmente os perigos que possa temer; talvez não os imagine; sem dúvida, graças à sua boa resolução, que é também uma espécie de paixão, se eleva na esfera da ética. Não me objetarás, suponho, que à força de empregar a palavra concentricidade, sou culpado de uma petitio principii, posto que eu deveria partir do postulado da excentricidade dessas esferas. Pois eu responderia que, partindo da excentricidade, não chegaria nunca à concentricidade. Lembra, porém, rogo-te, que com base nesta última ao mesmo tempo a verifico. Transferimos assim a paixão ao terreno ético e religioso sem alterar-lhe a natureza, como vimos; é o ético e o religioso o que, aparentemente, tornava difícil a síntese, de modo que tudo parece agora em ordem. Conheço-te, porém, demasiado para ousar convencer-te com esses argumentos; conheces todas as dificuldades; com tua inteligência rápida e penetrante, passas em revista num relâmpago uma quantidade de problemas científicos, de situações etc. Sem dúvida, em cada caso deparaste com dificuldades, e não creio que possas chegar ao extremo em cada um desses campos. És, em certo sentido, como um piloto, e ao mesmo tempo, todo o contrário: ele conhece os escolhos e conduz o navio a bom porto; tu, que conheces as profundezas, encalhas sempre. Supõe-se que fazes o melhor que podes e admito que de boa vontade e com maestria. Tens tal experiência de lidar com os homens e com as águas em que navegam, que teus olhos medem em um instante a distância que deves conduzi-los para soçobrar. Porém, não és, isso não, um estouvado; não esqueces da vítima que abandonaste; com a malícia de um menino recordas-lhe a aventura quando voltas a o encontrar, informas-te minuciosamente de seu estado e perguntas-lhe como fez para salvar-se. Agora, também, tampouco as dificuldades preocupar-te-ão. Dirás que deixei em suspenso, numa completa vacuidade, a natureza do Deus de que falamos; dirás que não é o Eros que se converteria de bom-grado em confidente dos segredos do amor, ele cuja presença se reduz, definitivamente, em um simples reflexo do sentimento dos enamorados. Dirás que falo do Deus dos cristãos, o Deus de espírito zeloso, zeloso de tudo que não é espírito. Recordarás que, no cristianismo, se nega a beleza e o sensível; observarás incidentalmente que, portanto, é indiferente ao cristianismo saber se Cristo era bonito ou feio; convidar-me-ás a manter-me, em minha ortodoxia, longe das citações secretas do amor, e particularmente de prescindir de todas as tentativas de mediação que te aborrecem ainda mais que a pesada ortodoxia. "Oh. dirás, seria alentador para a moça, e muito de acordo com seu sentimento, ser levada para o altar; e as pessoas presentes veriam nela uma criatura imperfeita incapaz de resistir à sedução dos prazeres do mundo; estaria ali como para receber um corretivo ou fazer uma confissão pública, e logo, uma vez lida a liturgia, o padre inclinar-se-ia na balaustrada, e muito docemente, para consolá-la um pouco, assegurar-lhe-á que o matrimônio é, na realidade, um estado agradável a Deus. A única coisa por considerar nessa situação é o papel do cura, concluirás; creio que gostaria de estar em seu lugar para murmurar o segredo ao ouvido da moça que é muito formosa." Meu jovem amigo, sim, o matrimônio é um estado agradável a Deus, porém, não sei que a Escritura fale em alguma parte de uma bênção especial para os solteiros empedernidos e, portanto, todos os teus namoros terão um fim. Discutir contigo, entretanto é impor-se, por assim dizer, unia tarefa mais difícil, porque és capaz de provar qualquer coisa, e em tuas mãos, qualquer fenômeno adquire a forma que queres. Certo, o Deus dos cristãos é espírito, o cristianismo é espírito, e introduziu-se a discórdia entre a carne e o espírito. Porém, a carne não é o sensual: é egoísta. E, nesse sentido, até o espiritual pode ser sensual, como no caso em que uma pessoa vê malograr seus dotes intelectuais, então se é carnal. Sei bem que não é indispensável ao cristão que Deus tenha sido fisicamente belo; essa necessidade seria deplorável, apesar de pôr uma razão diferente da tua. Corno o crente poderia deixar de ter um desejo de vê-lo, se a beleza fosse assim essencial! Porém de tudo isso não resulta de modo algum que o sensível seja destruído no cristianismo. A paixão comporta um momento, o elemento da beleza; a alegria e a plenitude que o sensível encerra em sua inocência podem muito bem fazer parte do cristianismo. Porém, devemos evitar um extravio mais temível que o que procuras evitar: não sejamos demasiado espiritualizados. É evidente também que não se pode admitir tua arbitrária concepção do cristianismo. Se fosse exata, nada melhor que entregar-nos a todas as mortificações, a todas as maneiras de reduzir a carne, que nos ensinam as divagações dos místicos. Até a saúde seria digna de suspeita, e duvido muito que um cristão piedoso negue que lhe é permitido pedir a conservação da saúde a esse Deus que andava pelos caminhos curando os enfermos: os leprosos deveriam ter recusado, então, a cura, porque eram os perfeitos enfermos. Quanto mais tiver o homem da simplicidade de um menino, mais poderá rezar; porém, a paixão tem, entre outras características, essa simplicidade, e não vejo por que não poderia rezar, ou melhor, para me ater ao que quero dizer, dar graças a Deus permanecendo ilesa sua natureza. 5. Entreato do noivo implacável Tu tens, porém, por acaso, algo mais na consciência; confessas agora, pois é melhor que mais tarde. E se a qualquer das palavras que eu diga objetares: "Jamais disse tal coisa", não me embaraçarei em admitir que estás certo. Porém, oh, meu bom senhor observador, perdoa a um pobre marido a audácia de converter-se em objeto de tua observação. Ocultas em ti algo que nunca expressas francamente; disso provém a energia e elasticidade de tuas palavras; denotam um excedente que deixas adivinhar, uma explosão ainda mais terrível. Bem, já tens aquilo pelo qual tua alma suspirou ardentemente, o que creste descobrir em tantos ensaios sem fruto: uma moça em que tudo que é teu acha descanso. E se bem que, à primeira vista, pareces junto a ela um pouco experimentado, se trata, sem dúvida, de um verdadeiro amor romântico. Estás convencido disso. "É formosa" (Naturalmente). "Encantadora" (Sem dúvida). "Apesar de sua beleza não ser clássica, é uma síntese de múltiplos elementos: está cheia de traços caprichosos e contraditórios. 'Tem alma" (Acredito). "Porém pode deixar-se levar por uma impressão até quase aturdir-te; é ligeira e pode balançar-se como um pássaro num ramo, tem espírito, o suficiente para iluminar sua beleza e não mais que isso." Aproxima-se o dia em que deves assegurar-te a posse de teu tesouro, teu único bem no mundo; e tu não duvidas, já dessa possessão (Reclamaste o direito de administrar-lhe a extrema unção). Faz pouco tempo que esperas na sala: uma criada buliçosa, cinco ou seis pessoas curiosas, uma tia venerável, um vendedor passara várias vezes diante de ti, e isso te contrariou um pouco. Então, suavemente, abre-se a porta do salão e tu lanças um olhar furtivo; te agrada ver que ali não há ninguém, que ela teve o tato de afastar, deste aposento, os importunos. Ela está muito linda, mais linda que nunca, aureolada de uma harmonia cujas ondas a fazem estremecer. Também tu estás diferente. Porém, já tua fina reflexão dissimula tua emoção; tua serenidade cativa-a ainda mais e deposita no fundo da alma uma sedução inextinguível. Aproximas-te dela: sua toillette torna ainda mais excepcional a situação. Ainda não disseste uma só palavra: olhas e sem dúvida, pareces não a ver; não queres importuná-la com essas bobagens dos enamorados; porém, o espelho vem em tua ajuda. Colocas em seu pescoço uma joia, presente do primeiro dia quando lhe deste o primeiro beijo com uma paixão que busca, neste momento, sua confirmação; ela certamente escondeu essa joia, de modo que ninguém soube de sua existência. Tomas um pequeno ramo de flores, todas iguais em aparência. Sempre quando lhe enviavas flores uma delas excedia as outras imperceptivelmente e somente ela o percebia. Porém, hoje essa flor deve também ter a honra de adorná-la, porque é a flor de que ela mais gosta. Tu a ofereces; uma lágrima brilha em seus olhos. Ela devolve a pequena flor, na qual depositas um beijo antes de apertá-la ao peito. Um ar de melancolia se espalha em seu rosto. Tu também estás emocionado. Ela retrocede um passo, e depois lança-se em teus braços. Não pode separar-se de ti, abraça-te ardentemente: dir-se-ia que um poder inimigo queria arrancar-te dela. Sua formosa toillette está descomposta, seu cabelo está desmanchado; e ela, no instante seguinte, desaparece. Voltas a cair em tua solidão, interrompida somente pela criada, cinco ou seis primas curiosas, uma tia venerável, um vendedor. Abre-se então a porta do salão; ela entra e a calma e a seriedade se estampam em seu semblante. Apertas sua mão, uma vez mais, antes de recebê-la entre as tuas diante do altar. Bem, tu esqueceste tudo isso. Tu, que pensaste em tantas coisas, e estas também em outras circunstâncias, o havias esquecido completamente em tua paixão. E te encontras em uma situação que é a mesma, para todos. Porém tu não examinaste ainda certos pontos. E, sem dúvida, és um homem demasiado fino para não ver que uma bênção nupcial é algo mais que uma cerimônia. A angústia toma posse de ti. "Esta moça, cuja alma é pura como a luz do dia, elevada como o firmamento, inocente como o oceano, esta moça a quem eu poderia adorar de joelhos, e cujo amor, bem o sei poderia arrancar-me de toda a minha confusão e fazer-me renascer, ela é a que devo conduzir ao altar do Senhor. Estará ali como uma pecadora: dela se dirá, e a ela mesma, que é a Eva que seduziu Adão. Ela, ante quem prostra-se minha alma orgulhosa; ela, único objeto ante o qual minha alma se inclinou, escutará que devo ser seu senhor, e que há de submeter-se a seu marido. Chegou o momento: a Igreja já lhe estende os braços e quer, antes de ma entregar-me, pôr primeiro em seus lábios um beijo nupcial, e não esse nupcial pelo qual eu daria o mundo inteiro. A Igreja já a estreita em um abraço que desacreditará toda a sua beleza e logo ma entregará com estas palavras: "Crescei e multiplicai-vos." Que poder é esse que ousa impor-se entre mim e minha noiva, a que eu escolhi e me escolheu? E esse poder pretende ordenar-lhe que seja fiel: acaso necessita ela que se lhe ordene tal coisa? E se só me fosse fiel porque um terceiro, a quem ela quisesse mais que a mim, o impusesse! E esse mesmo poder me exorta a ser-lhe fiel, quando eu lhe pertenço com toda a minha alma. E esse poder regula nossa situação recíproca: eu devo mandar, e ela, obedecer. Porém, se eu não quiser mandar, se me sinto indigno disso? Não, eu quero obedecer-lhe: um gesto seu é uma ordem. E recuso-me, em troca, submeter-me a um jugo estranho. Não, fugirei com ela, para longe, enquanto ainda há tempo; suplicarei à noite que nos esconda, e as nuvens silenciosas contar-nos-ão as histórias de suas audazes imagens, como convém a uma noite de núpcias; e, sob a imensidão do firmamento, embriagar-me-ei com seu encanto, somente com ela, somente no mundo inteiro, e precipitar-me-ei no abismo de seu amor. E meus lábios calam, porque as nuvens são minhas ideias e minhas ideias são nuvens; gritarei, conjugarei as potências do céu e da terra, para que nada turve minha felicidade? Tomá-las-ei como testemunhas e arrancar-lhe-ei esse juramento. Fujamos, fujamos para longe, para que minha alma se recobre e meu peito respire de novo, para que não me asfixie nessa atmosfera viciada... Fujamos." Sim, foge. Isto é o que também queria dizer: procul, o procul este profani. Porém, já te perguntaste se ela consente nessa aventura. "A mulher é fraca." Não, é humilde, e está muito mais perto de Deus que o homem; para ela, o amor é tudo, e certamente não se propõe desdenhar a bênção e confirmação que Deus quer dar-lhe. Nunca a mulher formulou objeções ao matrimônio, e nunca, nunca tal lhe ocorreria se os homens não a corrompessem, porque só uma mulher emancipada poderia ter tais ideias. O escândalo vem sempre do sexo forte, porque o homem é orgulhoso, quer ser tudo, e não quer que exista nada acima dele. Não negarás que esse quadro se adapta quase exatamente a teu caso: apesar de negares, reconhecerás pelo menos que estás de acordo com os protagonistas do amor romântico. Quis modificar um pouco os termos habituais para caracterizar teus sentimentos: porque, para dizer a verdade, os que acabo de pintar, por mais apaixonados que estejam, e qualquer que seja o pathos que se declare, são, sem dúvida, demasiado reflexivos, demasiado bem informados da coqueteria de Eros para que se os possa chamar de paixão. É, entretanto, humilde, e, portanto, feliz de reconhecer um poder superior, por falta de outra razão para ter uma pessoa a quem agradecer. (Daí ser mais raro encontrar uma verdadeira paixão entre os homens que entre as mulheres.) No mais, também em ti encontrarás uma necessidade semelhante: não dizias que querias conjurar as potestades do céu e da terra? Já vemos surgir ali o desejo de nascer em ti um sentimento de origem mais elevado. Salvo que em ti essa necessidade se expressa com o mais arbitrário fetichismo. Bem, pois teu primeiro agravo é que serias solenemente proclamado seu amo e senhor. Como se já não fosses talvez demasiado! Como se tuas palavras não o tivessem provado suficientemente! Porém, tu não queres renunciar à tua idolatria, e a essa coqueteria de proclamar-se seu escravo, sentindo-te, entretanto, como se já não fosses seu amo. A segunda questão que te indignava era que tua amada deveria ser declarada pecadora. Como esteta que és, sinto-me tentado a apresentar-te esta questão: este momento não pode justamente, acrescentar beleza à mulher? Eis aí um segredo que a ilumina de forma interessante. A atração pueril que o pecado pode conservar apesar de nossa ignorância acerca dele não pode senão realçar sua beleza. Já compreenderás que não pretendo seriamente manter um tal sofisma: porém, repito, por haver-te advertido em tempo, talvez tivesse experimentado um entusiasmo sem reservas por essa observação estética. Ter-te-ias permitido, então, com base nela, uma série de conclusões: terias perguntado se não seria melhor, isto é, o mais interessante, excitar ainda mais a inocente com uma ilusão infinitamente discreta; ou deixá-la só, lutando com esse poder obscuro; ou ainda, com certa gravidade solene, tratá-la com ironia etc. Em suma, terias em que ocupar-te. Terias chegado a sonhar com a luz vacilante que ainda no Evangelho se difunde sobre a pecadora, essa a quem muitos pecados são perdoados porque amou muito. A tudo isso responderei: é outra exigência de teu arbítrio que quer vê-la ali como pecadora. Porque uma coisa é conhecer o pecado in abstrato, outra, conhecê-lo in concreto. Porém, a mulher é humilde, e nenhuma delas sonhou nunca, por certo, em escandalizar-se pelas rudes palavras que a Igreja lhe dirige. É humilde e confiante; e se ninguém pode baixar os olhos como ela, ninguém tampouco pode ousar, como ela, elevá-los ao céu. Se por proclamar solenemente a Igreja que o pecado entrou no mundo, tivesse que produzir-se uma mudança na mulher, seria tão-somente para ligá-la ainda mais fortemente a seu amor. Porém, não se conclui de modo algum que com isso se altere a paixão, e sim que esta passa simplesmente a uma concentricidade superior. É, além disso, muito difícil convencer uma mulher que o amor terrestre possa ser pecado, porque então toda a sua existência seria atacada em suas raízes mais profundas, seria destruída. Ainda mais: ela não veio ao altar do Senhor para examinar se deve ou não amar o homem que está a seu lado: ama-o, sua vida está nesse amor, e pobre do que suscite nela a dúvida, do que quiser ensinar-lhe a rebelar-se contra a natureza, a negar-se a cair de joelhos perante o Senhor, a manter-se de pé. Talvez eu não devesse refutar-te, pois se supões que não pode haver paixão sem que entre o pecado no mundo, já compreendes que lutas contra moinhos de vento. (Com o que, além disso, mostra que pouco te importa o pecado e que te situas na esfera da reflexão.) Porém, como aqueles a quem atribuímos essa paixão têm, além disso, por hipótese, um fundo religioso, não necessito entrar em considerações ulteriores, pois o elemento pecado não reside na paixão como tal, e sim no elemento egoísta da paixão, e esse fator pessoal não aparece até o momento em que o amor entrega-se à reflexão, para destruir-se com isso. Sublevas-te, por fim, ante à ideia de que outro poder, um terceiro, dizes, queria obrigá-los a uma fidelidade recíproca. Lembra, porém, que esse poder não lhes é imposto, e sim que, como nossos enamorados têm uma vida religiosa, recorrem a ele por si mesmos. E então trata-se de saber se esse poder opõe algum obstáculo à sua paixão. Esta, não me negarás, busca naturalmente sua confirmação, transformando-se de uma maneira ou de outra, em obrigação que os enamorados contraem ante um poder superior. Se juram fidelidade pela lua, pelas estrelas, pelas cinzas de seus pais, pela sua honra etc. Esses juramentos, declaras, não têm sentido algum: são simples reflexo do estado de ânimo dos enamorados. Como se lhes ocorreria jurar pela lua? "Porém, já alteraste a natureza da paixão: sua beleza própria, efetivamente, consiste em que para ela tudo se torna realidade em virtude do amor, e somente quando intervém a reflexão, parece absurdo haver jurado pela lua. No instante em que o juramento é pronunciado, tem pleno valor. E por acaso havia de mudar essa situação se os amantes jurassem, ao contrário, por um poder que tem um valor real? Não o creio, porque importa ao amor que o juramento tenha um sentido verdadeiro. Assim que, quando te crês habilitado para Jurar pelas nuvens e pelas estrelas, porém, te ofuscas de ter que jurar perante Deus, não fazes senão confessar, uma vez mais, que estás na esfera da reflexão, e que a paixão desapareceu. Porque teu amor não admite confidentes, exceto aqueles que não podem sê-lo. É verdade que o amor é coisa cheia de mistério, porém, o teu é tão mais soberbo que nem Deus no céu deve saber nada dele, porque Deus, para servir-me de uma palavra ligeiramente irreverente, é uma testemunha um pouco fastidiosa. Porém, essa pretensão não é outra que egoísmo e reflexão, porque quer que Deus esteja na consciência, e ao mesmo tempo, não estar nela. A paixão ignora tais sutilezas. Tu não conheces essa necessidade de transfigurar o amor fazendo-o passar a uma esfera superior. Ou melhor (porque a paixão ignora essa necessidade e trabalha de forma imediata), tens esse desejo, porém, não queres satisfazê-lo. Se agora volto-me novamente, por um instante, para tua suposta paixão, diria que tu conseguirás, talvez, conjurar toda as potestades e, sem dúvida, a sarça ardente fabulosa cresceria próximo de ti. Cresceria e agitando seus ramos, derramaria frescura sobre ti e, sem dúvida, essa sarça representa a inquietude febril, princípio de teu amor; ela refresca e queima alternativamente e perpetuamente; podias. inclusive, desejar que te fosses concedida a eternidade, e ao mesmo tempo que este instante fosse o único. Eis aí, se queres saber, porque teu amor está condenado a uma morte certa. Capítulo III OS PORQUÊS DO MATRIMÔNIO Vimos Já. como a paixão pode entrar em relação com o ético e o religioso sem passar pela reflexão, que a altera: elevando-se simplesmente a uma concentricidade imediata superior. Em certo sentido, ali se produz uma mudança, que examinarei; é a metamorfose dos enamorados em esposo e esposa. A paixão dirige-se a Deus na ação de graças dos amantes e com isso sofre uma transformação que a enobrece. O homem tende aqui à fraqueza; nela alcançou o objeto de seu amor; e é verdadeiramente muito mais formoso aceitar a amada como um presente das mãos de Deus, que haver submetido o mundo inteiro para conquistá-la. E desde logo, o verdadeiro amante não tem descanso em sua alma enquanto não se humilha a Deus dessa maneira; e confere à amada um valor demasiado grande, para aceitá-la como troféu, mesmo concedendo a essa palavra um sentido mais alto e mais belo. E se bem que ponha sua alegria em conquistá-la e retê-la, sabe que o conseguira com o esforço de toda a sua vida, e não com a força sobrenatural de um amor efêmero. Essa conquista não se efetua, por certo, como a consequência de uma dúvida prévia, senão de uma forma imediata. A vida própria da paixão subsiste sempre que primeiro se eliminem suas escórias, se me atrevo a falar desse modo. Faz parte da natureza da mulher sentir a superioridade do sexo masculino, e submeter-se a ela: porém, ainda que sinta alegria ao não ser nada, sua atitude pode comportar certa falsidade. Em troca, quando agradece a Deus por seu amado, sua alma está certa de não sofrer: ao fazê-lo, afasta de si o objeto de seu amor para tomar novo alento, diríamos. E essa ação de graças não é a conclusão de uma dúvida angustiosa porque a mulher nada conhece de tal coisa, mas sim, move-se no imediatismo. 1. Necessidade ética de que a paixão seja eterna Já expliquei anteriormente que, a despeito de seu caráter ilusório, a eternidade implicada na paixão lhe confere sua moralidade; e agora, quando os namorados entregam seu amor a Deus já essa ação de graças outorga-lhe um selo absoluto de eternidade como também a resolução que tomam e a obrigação que contraem. Eternidade que entende fundar-se, não sobre poderes obscuros, e sim sobre a eternidade mesma. A resolução matrimonial tem, além disso, outra função, porque implica a possibilidade de um movimento de amor, a de sair da dificuldade implícita da paixão incapaz por si mesma de avançar. A paixão encontra seu caráter estético em sua infinitude, e seu caráter inestético na impotência dessa infinitude para converter-se em finitude. Com uma imagem mostrarei que a aparição do religioso não pode aniquilar a paixão. O religioso expressa propriamente a convicção de que o homem, ao receber o socorro de Deus, é mais rápido que o mundo inteiro; é a mesma fé que constitui o princípio da natação. Concebe-se que um homem que uma vez esteve a ponto de afogar-se, teve um salva-vidas capaz de mantê-lo sobre a água, porém, um que nunca esteve em perigo, também o faça. Pois bem: este último caso é o que se aplica na relação entre a paixão e o religioso. A paixão faz do religioso um salva-vidas, sem haver conhecido antes uma experiência dolorosa ou uma reflexão angustiosa; rogo-te, porém, que não forces a comparação, como se o religioso só tivesse com a paixão uma relação exterior. Já demonstrei que não é assim. Entendamo-nos de uma vez por todas. Dás tanta importância ao abraço erótico: e que é isso ante o abraço conjugal? Que riqueza no acento deste possessivo — "meu querido, minha querida" — comparado com o dos fervorosos possessivos da paixão! Não só existe na eternidade do instante da sedução, não só na ilusória eternidade da imaginação e suas representações, como também na eternidade da consciência, a eternidade da eternidade. Que força há neste "meu" pronunciado pelos esposos! Porque a vontade, a resolução, o bom propósito têm então uma tonalidade muito mais profunda. Que energia e que ductilidade! Pois que há de tão rígido como a vontade e de tão flexível como ela? Que força de movimento em vez, simplesmente, desse entusiasmo confuso de vagas impulsões! Porque o matrimônio funda sua instituição no céu, e ao penetrar o dever todo o organismo das coisas, até seu limite, nenhum obstáculo será capaz de aniquilar o amor. Deixa, pois, a Don Juan, a sua pequena glória, ao cavalheiro, o seu noturno e suas estrelas, posto que não veem mais acima. O firmamento do matrimônio é ainda mais elevado. Tal é o amor conjugal. E quando não é assim, não é por culpa de Deus, nem do cristianismo, nem da cerimônia nupcial, de maldições ou de bênçãos: é por culpa dos homens somente. E não é vergonha, não é pecado escrever livros em que se ensina as pessoas a duvidar da vida antes de haver vivido, em vez de ensinar-lhes a viver? Se ao menos se lhes dissesse a verdade, essa verdade seria simplesmente cruel; porém, não se lhes mente. Se nos ensinam a pecar, aos que não se atrevem, se lhes toma igualmente desgraçados de outra maneira. Eu mesmo senti bastante influência dessas correntes esteticistas, para ignorar que a palavra esposos ofende a teu ouvido, porém, isso me é indiferente. Se caiu em descrédito, se se converteu inclusive em motivo de risota, este é o momento de restituir-lhe a beleza. "Esposos não vejo nunca, apesar de não ser raro ver matrimônios." Porém, teu sarcasmo não me perturba. O fato de que cada dia tenhamos ante nossos olhos tantos matrimônios determina que dificilmente pensemos na grandeza da instituição, máxime quando todos se empenham em expô-la ao ludíbrio. Pois não tens levado as coisas a tal ponto que a moça que ante o altar estenda a mão a um homem é considerada hoje inferior a estas heroínas de tuas novelas, com suas paixões tempestuosas? Escutei-te com a maior paciência lançar teus apóstrofos demasiado violentos, talvez, para que, com eles te confesses verdadeiramente: se ainda compreendeste esses movimentos de tua alma, já verás, quando o matrimônio se apresente a ti como uma realidade, como ficarás furioso, não sem recusar ainda, então, a confiar em alguém. Permita-me agora expor, por minha vez, algumas observações. Amamos uma só vez na vida. O coração se aferra à sua paixão mediante o matrimônio. Escuta e admira o harmonioso uníssono das diversas esferas. Amor, matrimônio: é a mesma palavra, porém, com um acento ora estético, ora religioso e ético. Não se ama mais que uma vez. Para realizar essa palavra se necessita do matrimônio. E se uns desejam casar-se sem amor, a Igreja não pode abençoar essa união. Não amamos senão uma vez: é o que escutamos das mais diversas bocas, dos felizes a quem cada dia confirma essa certeza, e dos desventurados. Estes podem ser de duas classes: os que continuam aspirando o ideal e os que lhe são infiéis. Este é o caso dos sedutores. Poucas vezes encontramos um destes, porque se necessita, para sê-lo, de atitudes pouco comuns. Conheci um só, e sabes?, também ele confessa que somente uma vez se ama e suas aventuras não conseguiram, certamente, asfixiar o amor. Sim, dizem alguns, somente amamos uma vez, porém não nos casamos duas e até três vezes? Aqui também as esferas se põem em uníssono para responder. Pois a estética diz não, e a Igreja e sua ética veem com desconfiança a segunda boda. A meu ver, comprovação de extrema importância; porque se fosse certo que amamos várias vezes, a causa do matrimônio estaria perdida: poderia parecer que a arbitrariedade do elemento religioso, ao exigir que se ame uma só vez, lesa o elemento erótico. A religião trataria com descaso o elemento erótico. Como se dissesse: "Só podes casar-te uma vez, e não falemos mais nisso." Já vimos como a paixão passa ao matrimônio sem sofrer, com isso, alteração nenhuma. Se assim for, e posto que o matrimônio contém a paixão, o mesmo elemento estético que a paixão implica deve reaparecer no matrimônio. Porém, o estético reside no infinito da paixão, em seu caráter apriorístico, como vimos: além disso, na síntese dos contrários que é o amor, sensível e sem dúvida espiritual, liberdade e necessidade, dado no momento e eminentemente presente, porém, de tal forma que comporta uma eternidade. Também o matrimônio possui todos esses elementos. É de ordem sensível, porém, também espiritual; e mais ainda porque a palavra "espiritual" aplicada à paixão significa, antes de tudo, que este amor é coisa da alma, que é o sensível impregnado de espírito. O matrimônio é liberdade e necessidade; e mais ainda porque a liberdade aplicada à paixão é propriamente liberdade da alma. Certo que, ainda que sendo livre, a individualidade não se liberou da necessidade natural; porém, a entrega de si mesma cresce na medida em que a liberdade passa a um grau superior: somente pode dar seu eu aquele que o possui. É na esfera do religioso onde os indivíduos conseguem ser livres: ele de um falso orgulho, ela de uma falsa humildade. E se o religioso aparece entre os enamorados, abraçam-se tão estreitamente não para separá-los, e sim, para permitir-lhes, a ela brindar-se com uma riqueza de sentimentos insuspeitada anteriormente, e a ele não só receber, e sim também brindar-se e ser recebido por ela. O matrimônio comporta o infinito, mais ainda que a paixão, porque sua infinitude intrínseca é uma vida eterna. O matrimônio é a síntese dos contrários, mais ainda que a paixão, porque tem uma antítese a mais, o espiritual e o sensível, em uma oposição ainda mais radical. Porém, o sensível apresenta uma importância estética tanto maior quanto mais nos afastamos dele: de outro modo, o instinto dos animais constituiria o grau mais elevado do estético espiritual do matrimônio que é superior ao da paixão. O matrimônio tem excelências, uma beleza, uma estética tanto maiores quanto mais se eleva o firmamento acima do local do docel nupcial; e o céu do matrimônio não é o da terra, e sim o do espírito. Certo que também o matrimônio pertence ao instante, porque é são e vigoroso, e tende a aperfeiçoar-se; porém em um sentido mais profundo que a paixão, cuja falha é seu caráter abstrato, enquanto a resolução inerente ao matrimônio implica a lei do movimento, a possibilidade de uma história interna. Que resolução é esta? Pois a resignação, porém, em sua forma mais rica: a que pensa, não no que se perde, e sim no que se ganha. Há nela outro fator com o qual o amor se relaciona, porém, não em um sentido exterior. Porque a resolução não é aqui o fruto amadurecido pela dúvida: é a abundância da promessa. Tal é a beleza do matrimônio, no que o religioso, longe de negar o sensível, o enobrece. Confesso-o a ti, e talvez cometa um erro. Às vezes, quando penso em meu matrimônio, surge em mim a ideia, impregnada de uma indefinível melancolia, de que um dia terminará. E apesar de minha certeza de viver outra vida com aquela a quem me uni, de voltar a ver-nos convertidos em puro espírito, entristece-me pensar que se desvanecerá a antítese em que nosso amor achava um de seus elementos. Porém, consola-me saber que ainda terei a recordação de ter vivido com ela a união mais formosa, a mais íntima que possa oferecer a vida terrestre. Se algo compreendo de tudo isso, a falha do amor terrestre é idêntica à que constitui a virtude: o fato de ser uma predileção. Enquanto o amor espiritual move-se na direção inversa, libertando-se sempre de todas as relatividades, o verdadeiro amor terrestre chega a seu grau mais elevado quando é o amor exclusivo a um só ser no mundo inteiro. Isso é o que queríamos dizer com a expressão: amar a uma só pessoa e uma só vez. Começa o amor terrestre por amar a várias pessoas, em antecipações efêmeras, e termina por amar a uma só; o amor espiritual abre-se sempre mais, abraça seres cada vez mais numerosos e acha sua expressão verdadeira no amor a todos. De modo que o matrimônio é de uma só vez sensível e espiritual, livre e necessário e absoluto em si mesmo, por mais que aspire a superar-se em si mesmo. E, como é de tal modo uma harmonia interna, tem naturalmente sua teologia, sua finalidade em si mesmo. Se é assim, toda pergunta sobre seu porquê é um mal-entendido facilmente explicável, mesmo pelo prosaico entendimento. O qual, apesar de comumente ser algo mais decente que o que diz Mestre Basílio, quando faz do matrimônio a mais risível das coisas burlescas, que incita a dizer também contigo: "Se isto é o matrimônio, Basílio tem razão." 2. Os que se casam para afirmar seu caráter Vejamos agora, para distrair-nos, alguns exemplos. Por mais dissemelhante que seja nossa hilaridade, podemos rir um pouco em companhia. Essa diferença é pouco mais ou menos a do acento com que tu e eu diríamos: "O porquê do matrimônio? O senhor o saberá." Além do mais, quando digo que riremos um pouco juntos, é importante não esquecer quanto devo, neste terreno, a tuas observações. O marido que sou te agradece muito. Pois quando as pessoas não querem realizar a missão mais bela, quando pretendem falar por toda a parte, menos em Rodas, podem então tornar-se vítimas de tuas malícias e de teus companheiros, hábeis que sois em enganá-los com a máscara da confidência. Há, porém, um ponto que me reservo, do qual nunca me permiti nem me permitirei jamais. Que bom, dizes frequentemente, perguntar a cada um por que se casou, veríamos como uma circunstância quase insignificante foi decisiva, e tu te ris da desproporção entre o imenso efeito, o matrimônio, com todas as suas consequências e sua pequena causa. Não me deterei no erro que cometes ao considerar essa pequena circunstância de uma maneira completamente abstrata; nem observarei que, se algo resulta dessa bagatela, é, sem dúvida, porque está suscitada uma quantidade de determinações. Assinalarei, em troca, a beleza dos casamentos que têm um mínimo de porquês: entre o amor e seu porquê há uma relação inversa, sempre que, por suposto, seja verdadeiro. Se um espírito superficial repara nas insignificâncias do porquê, um espírito profundo reconhecerá com alegria sua imensa transcendência. Quanto menor seja o porquê, melhor. Em geral, nas classes mais baixas da sociedade contrai-se matrimônio sem perguntar-se aos cônjuges por quê; porém, entre elas, é ainda mais raro ouvir todos esses comos: como sustentá-las, como educarei meus filhos etc. O matrimônio nunca tem outro sentido em que entendo, não é um porquê, concordarás. Pois se ao porquê de um desses esposos filisteus que se apresentam como entendidos se respondesse invocando a categórica e verdadeira razão, ele declararia, como no Los Elfos, o mestre-escola: "Avisem-me quando vão me mentir." Verás também a razão pela qual eu não quero nem posso extrair, dessa falta de porquê, um aspecto cômico: temeria arruinar o porquê verdadeiro. Este é uno e indivisível, porém, contém uma energia e uma força capazes de sufocar a todos os comos. O outro porquê, o finito, é uma suma, um total do qual cada um escolhe o seu, um mais, outro menos, e todos com a mesma estupidez. Pois o que pudesse somar todos os porquês finitos no momento de contrair matrimônio seria o mais miserável de todos os esposos. Uma das respostas aparentemente mais decentes a esse porquê do matrimônio formula-se assim: o matrimônio é uma escola para o caráter, casa-se para cultivar e enobrecer seu caráter. E aqui lembrarei um fato preciso, que conheci através de ti, precisamente: o daquele funcionário de quem "te havias tomado posse", segundo teus próprios termos, e que se parece muito contigo. Excelente cérebro o desse homem, e particularmente versado em línguas. A família reunida tomava chá: ele fumava seu cachimbo. Sua mulher não era uma beleza nem parecia muito inteligente: de mais idade que seu marido, via-se logo, pelo teu modo de ver, para isso devia haver uma razão particular. Achava-se à mesa uma jovem recém-casada: pálida e confusa, parecia saber de outro por quê. A dona da casa servia o chá, trazido por uma criada de dezesseis anos, não bela, porém apetitosa e que respirava saúde; esta, por sua vez, ainda não parecia haver-se proposto nenhum porquê. Ali, nesse círculo venerável, tua indignidade havia sido recebida. Tu, que vinhas ex oficio para exercer suas funções de observador, e que de outras duas vezes não havias conseguido, achaste nesta tarde uma ocasião demasiado propícia para ser deixada de lado. Falava-se justamente por aqueles dias do rompimento de um noivado, porém, ainda não havia chegado a esta casa a informação. Discutia-se o assunto sob todos os seus aspectos, quer dizer, todos foram "atores"; logo se determinou quem havia falhado e o culpado foi excomungado. Os espíritos estavam superexcitados. Levantaste, em favor do condenado, uma pequena insinuação que naturalmente não pretendia defendê-lo, e sim provocar réplicas? Esta não veio. Porém, tu acrescentaste: "Pode ser que se tratasse de um noivado precipitado." Talvez não tenha encontrado o importante porque, poderíamos dizer, o haver, que deve proceder a uma decisão tão grave: enfim, porque uma pessoa se casa. Por que, é isso, por quê?' Pronunciaste cada um desses porquês em tons distintos, porém, com o mesmo acento dubitativo. Era demais: um só bastava, porém, essa mobilização geral, essa avalanche de todas as forças sobre o campo inimigo foi decisiva. Havia chegado o momento. Com uma bonomia que deixava entrever a superioridade da experiência, replicou o dono-da-casa: "Meu Senhor, eu o direi a vós: casa-se porque é uma escola do caráter." O ataque havia sido apresentado; aprovando-lhe e contradizendo-lhe, levaste-o a extremar suas opiniões para uma grotesca, uma medíocre edificação de sua mulher, para escândalo da recém-casada e estupor da criadinha. Naquela época me permiti dar-te um sermão pela tua conduta, não em relação àquele homem, e sim pelas mulheres a quem tua crueldade fez suportar tão penosa cena por todo o tempo. As duas senhoras não necessitavam de minha defesa, e somente tua habitual vaidade te fez incorrer nessa conduta. Talvez a dona-de-casa amasse realmente seu marido: nesse caso, não era terrível para ela escutar tais expressões? Acrescenta a indecência de toda a situação: longe de conferir ao matrimônio um caráter virtuoso, a reflexão da razão torna-o, ao contrário, imodesto. O amor sensível não admite mais glorificação que quando é, ao mesmo tempo, estético, religioso e ético: a do amor. As consequências racionais o fazem não só irreligioso, como também antiestético, porque se nega ao sensível seu direito imediato. Assim que quem se casa por esta ou aquela razão executa uma ação na qual falta tanto o estético como o religioso. De nada serve sua boa intenção, porque seu erro consiste justamente em ter uma intenção. Se uma mulher (e vemos isso no mundo quando parece prover seu matrimônio de um imenso porquê), se uma mulher se casa para ter uma espécie de salvação, esse casamento seria tão antiestético como imoral e irreligioso. Sobre esse ponto nunca serei demasiado claro. Há certa categoria de pessoas racionais que veem o estético com profundo desprezo: veem nele pura travessura e frivolidade e, com lamentável teleologia, creem-se acima de tais misérias. Porém a realidade é muito diferente: fazendo-se de entendidos, se excluem da moralidade e da estética. E o melhor é guiar-se pelo outro sexo, mais sensível ao religioso e ao estético. A argumentação do dono-da-casa era além do mais muito vulgar, e não necessito recordá-la a ti. Concluirei essas reflexões, desejando a todos os esposos dessa espécie uma Xantipa por mulher e filhos degenerados, se possível; então terão razão de educar o caráter, já que é isso o que buscam. Que o matrimônio seja realmente escola de caráter, ou sua gênese, se queremos evitar esse lugar comum, é coisa que posso conceder sem reservas apesar de suster, por certo, que aquele que case por esta razão deveria dirigir-se a qualquer outra escola. Observemos, além disso, que tal candidato ao matrimônio nunca aproveitará as lições que este possa lhe oferecer. Em primeiro lugar porque se priva do elemento fortificante do matrimônio, que afirma e estimula todas as articulações do pensamento, posto que é, efetivamente, uma verdadeira façanha. Porém, deve ser uma façanha! E se é acertado entregar-se a tais cálculos, também é certo que eles são, ao mesmo tempo, uma tentativa de arruinar o matrimônio. Porque a esse homem escapa, naturalmente, esse vasto capital de exploração que é o amor, e perde o benefício da humilhação que se tira do elemento religioso do matrimônio. E se subentende que é demasiado sabichão para não se dar ao matrimônio com um programa preestabelecido de conduta a seguir, que sirva de regra à sua união e à infeliz que se destina, desavergonhadamente, à sua experiência conjugal. Recordemos, porém, esta grande verdade: o matrimônio é uma escola, com a condição de não nos subtrairmos de sua disciplina, ou de submetermo-nos a ela, como sempre se requer em matéria de educação. Faz amadurecer a alma, outorga um sentimento de dignidade pessoal, e também de pesada responsabilidade, que não se pode dissipar por meio de sofismas, porque muito se ama. Enobrece todo o ser com o pudor próprio da mulher; esse pudor disciplina o esposo, porque a mulher é a consciência do homem. Torna harmoniosos os movimentos excêntricos do marido, e outorga à vida aprazível da esposa, força a virtude, porém, só na medida em que ela busque essa força em seu marido, e evite assim converter-se em virago. As cóleras bruscas do homem se aplacam quando se volta constantemente para sua companheira, e a debilidade dela se fortifica, quando se apoia nele. É pelo matrimônio que o homem conquista sua liberdade positiva, porque este estado pode cobrir todas as circunstâncias de sua vida, da menor à maior. O matrimônio o libera de certo embaraço anormal nas coisas normais; é certo que esse desembaraço pode ser adquirido de muitas outras formas, porém, também as dispensas muito bem. Libera-o a uma só pessoa. Observei frequentemente que os solteiros são escravos, sobretudo, de seus caprichos. (Na vida cotidiana, tudo podem permitir-se, sem de nada prestar contas; porém, salvo nesse aspecto, são dependentes, escravos dos outros. Que importância têm em sua vida, por exemplo, um criado, uma governanta! E eles, que personificam os caprichos e o humor de seus amos, não são outra coisa que o chamado da campainha. Sabem quando o senhor se levanta, ou melhor, com que antecipação é necessário acender o fogo antes de acordá-lo; que presentes oferecer-lhe e como arrumar suas meias para que as ponham mais facilmente; aquecer-lhe a água, abrir as janelas quando sai, dar-lhe os chinelos quando volta. O pessoal doméstico sabe tudo isso; porém apesar de seu serviço meticuloso, rara vez os solteiros estão satisfeitos. Podem conseguir que seus criados deem a satisfação de todos os seus desejos. São ora coléricos e zangados, ora fracos e benévolos. Alguns rixdals resolvem tudo. E a criadagem aprende a aproveitar-se disso: trata-se simplesmente de cometer uma barbaridade de vez em quando, com convenientes intervalos; deixar que o senhor derrame sua bílis e mostrar-se desesperado para, no fim das contas, receber uma gorjeta. O senhor é conquistado por uma personalidade assim: o criado chega a ser indispensável e, de fato, um verdadeiro déspota.) E todas as miudezas que comporta o matrimônio! Já sei que mas concedes como privilégio, e rogas aos céus que te preserves delas. Pois olha: nada tem tanto valor educativo como as pequenas coisas. Há uma idade na vida em que é preciso eliminá-la, porém, outras têm sua utilidade. E se requer muita força de caráter para alguém salvar sua alma das futilidades: porém, podemos fazê-lo quando quisermos; isso é próprio do caráter, e quem ama quer fazê-lo. Talvez custe ao marido adaptar-se a esses detalhes, porém, sua mulher lhe presta uma ajuda imensa, porque é feita para ocupar-se das pequenas coisas, às quais sabe outorgar uma importância, um valor, uma beleza cheia de encanto. As pequenas coisas salvam-nos da rotina, das manias tirânicas do jugo dos caprichos. Como poderia amadurecer toda essa discórdia em uma união em que tantas vezes, e de formas tão diversas, os dois se juntam para considerar as coisas! Não, a discórdia não poderia prosperar. Porque "a caridade é paciente, cheia de bondade; não é invejosa, nem presunçosa, nem orgulhosa; nada faz de desonesto, nem procura seu próprio interesse; nunca se irrita nem suspeita mal, nem se alegra com a injustiça, pois põe sua alegria na verdade; tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta." Imagina essas belas palavras, de um apóstolo do Senhor, aplicadas a toda uma vida que tenha consciência de havê-las esquecido frequentemente, apesar de voltar sempre a elas. E imagina também dois esposos aos quais se digam estas palavras conservando-lhes seu tom de alegria. Quanta felicidade comportam, que transfiguração de caráter! No matrimônio, as grandes paixões não conduzem a nada; com elas não pode haver previsão; nem se pode, posto que, em certos períodos, a caridade se faz mais intensa, conta-se com ela todo o tempo. Claro que a cada dia basta-lhe o seu trabalho, porém também sua bênção. Como não saberei eu que submeti meu orgulho e minha inquietude de hipocondríaco a seu amor, e sua vivacidade a nosso amor! Sei também que foram necessários muitos dias e que ainda restam muitos perigos. Porém, tenho confiança na vitória. 3. Os que se casam para ter filhos Também se casa para ter filhos, e para contribuir para a propagação da raça humana. Compreendes? Quão escasso seria o alcance social de quem não tem filhos! Os estados tiveram tino ao estabelecer recompensas para os que se casam e para os que têm mais filhos. Em certas épocas, pelo contrário, o cristianismo preferiu os que permaneceram solteiros. Ainda que errôneo, esse ponto de vista revela um profundo respeito pela pessoa, porque não quer reduzir o indivíduo a um simples momento, e sim reconhece-lhe um valor definitivo. Quanto mais se concebe o Estado abstratamente, menos esgota o Estado o conceito de individualidade e mais naturais também uma exigência e um estímulo dessa espécie. Em contraposição a essas teorias, às vezes, em nossos dias, se tem preconizado um matrimônio sem filhos. Pois já custa bastante à nossa época infundir-nos a resignação necessária para contrair a união conjugal: se renunciamos a nós mesmos a ponto de casarmo-nos, crê-se que se fez bastante, e as pessoas não se resolvem a suportar as complicações de uma porção de filhos. Nas novelas, não é raro que algum dos personagens alegue de imediato, como razão para não se casar, não poder suportar crianças. Ah, porém, os povos mais refinados corrigem esse incomodo! Afastam da casa paterna, o mais cedo possível, os filhos, ou os enviam a um internato ou uma pensão. Quantas vezes não encarneceste desses pais tragicômicos, com seus quatro filhos que são todo o seu orgulho, e dos que, em seu foro íntimo, queriam-nos ver o mais longe possível. E quantas vezes te divertiste com aqueles pais ofendidos em sua dignidade pelas miudezas da vida quando se tem que apelar para as palmadas, ou quando as crianças se sujam, e o grande homem, o pai, se sente inibido em seus ímpetos audazes pelo pensamento de que sua prole o prende à terra. E com que justiceira crueldade excitaste a cólera desses nobres pais quando, ocupando-te de seus pimpolhos, dissertas sobre as bênçãos de ter filhos. Casar-se para contribuir para a propagação da espécie poderia parecer uma razão eminentemente objetiva e natural. Parece assim que a pessoa se situa no ponto de vista de Deus; e desde esse ponto de vista considera quão belo é o perpetuar da espécie. Pode-se até conferir uma grande importância a estas palavras: "Crescei e multiplicai-vos e povoai a terra." E, sem dúvida, o matrimônio contraído com essa intenção é tão pouco natural como arbitrário, e desprovido do apoio da Escritura. Lemos nela que Deus instituiu o matrimônio porque não era bom que o homem estivesse só, e para dar-lhe uma companheira. E se alguns dos que fazem mossa da religião impugnasse que essa companheira começou por arrastar o homem à perdição, que provaria? Vejo, no caso, uma razão a mais a favor do matrimônio, porque somente quando a mulher fez tal coisa confirmou-se entre os esposos uma sociedade mais íntima. Porém, lemos também outras palavras — "e Deus os abençoou" — que também não podemos deixar de observar. E quando a mulher escutar as ordens em silêncio, submissamente, e logo após haver-te cerrado os lábios, acrescenta, para humilhá-la ainda mais: "Ela se redimirá procriando", na verdade, eu não lhe perdoaria esse desprezo se não houvesse se reparado com estas palavras: "se eles (os filhos), perseveram na fé, na caridade, na santificação, com modéstia." Agora, porém, me dou conta de que a despeito do pouco tempo que minhas funções me permitem estudar, e se bem que meus modestos conhecimentos versam sobre muitas outras matérias, talvez surpreenda ver-me aparentemente tão conhecedor da Escritura que poderia apresentar-me a um exame de teologia. Um pagão da Antiguidade, creio que Sêneca, disse que aos trinta anos a pessoa deveria conhecer tão bem seu temperamento que pudesse ser seu próprio médico. Penso, de minha parte, que ao chegar à certa idade, cada um deveria ser seu próprio guia espiritual. Não porque desdenhe participar de um culto público, e instruir-me; porém, a meu ver, nos é imprescindível aclarar as mais importantes questões da vida, questões estas, das quais, diga-se de passagem, tão poucas vezes se ocupam os homens. Tenho uma idiossincrasia, uma rebeldia contra os tratados edificantes e os sermões, de modo que quando não posso ir à Igreja, recorro à Escritura. Estava casado há seis meses e ainda não me havia ocorrido examinar a doutrina do Novo Testamento acerca do matrimônio. Havia assistido a diversos casamentos, antes do meu, e conhecia as palavras sagradas que se pronunciam na ocasião. Sem dúvida, desejava uma informação mais completa, e recorri a meu amigo, o pastor Olufsen que se achava, então, nesta cidade, e indicou-me as passagens essenciais. Eu as li para minha esposa. Recordo bem a impressão que lhe causaram algumas palavras. Ocorreu, então, algo curioso: eu não conhecia as passagens da Escritura que desejava ler-lhe, e não havia pensado em verificá-las anteriormente, porque era-me insuportável esperar a impressão que iria produzir nela. Essa espera supunha uma desconfiança impertinente. Convém a ti tomar nota disto: é certo que não estás casado e não tens por que manter uma franqueza tão estrita com ninguém, porém a premeditação com que preparas tuas ações raia, para dizer a verdade, ao ridículo. Por mais que enganes as pessoas, e te esforces para que tudo pareça fortuito, tão inesperado quanto seja possível, não creio que possas dizer "até amanhã" sem haver calculado a maneira. Voltemos, porém, ao matrimônio, e aos esposos empenhados em propagar a espécie. Ainda que concebido assim, adota, às vezes, um aspecto mais estético. É o caso de uma nobre família que se extingue. Restam somente dois representantes: um ancião e seu neto. O venerável velho não tem outro desejo que o de ver casado o último herdeiro de seu nome, que assim não desaparecerá. Considera ainda outro indivíduo, cuja vida não tem a mesma importância: ele também, sem ir tão longe, não pensa sem melancolia em seus pais, e os ama tanto, que talvez deseje que esse nome não se extinga, e sim que se conserve na memória agradecida dos homens. Esse homem pensa que seria bom falar a seus filhos do avô morto há muito tempo, e fortificar sua vida com esse retrato ideal que guarda somente em sua memória, e assim infundir-lhes entusiasmo por tudo que é nobre e grande. Talvez pense, assim, saldar a dívida que pensa ter com seus pais. Tudo isso é bonito e é bom. Porém, nada tem a ver com o matrimônio que, unicamente contraído por essa razão, carece tanto de moralidade como de estética. É duro dizer isso, mas é assim. O matrimônio não pode ser concebido senão com uma intenção, graças à qual se torna ético ao mesmo tempo que estético. Essa intenção, porém, é imanente: outra qualquer separa o que está junto e coloca o espiritual e o sensível no plano do finito. É muito possível que, invocando as razões precedentes, e sobretudo quando os sentimentos têm fundamento verdadeiro, se ganhe o coração de uma mulher, porém, então, se contraria a natureza: o ser da mulher sofre, com isto, uma verdadeira alteração, e sempre será ofensivo para ela desposá-lo por outra razão que não seja o amor. Sei muito bem que, para servir-me de uma de tuas comparações, toda consideração digna das cavalariças é incompatível com o matrimônio. Porém, também é certo que a geração só aparece como uma bênção a quem não alterou o conceito de amor conjugal. É uma bela coisa sentir gratidão por uma pessoa, porém, a dívida maior é a da vida. Sem dúvida, um filho pode dever ao pai ainda mais; porque não só recebe dele a vida pura e simples, porém, carregada de certo conteúdo. Depois de repousar algum tempo no seio da mãe, o menino é entregue ao pai, que também o nutre de sua carne e sangue, quer dizer das experiências que tão a miúdo enfrentou em sua agitada vida. E que núcleo de possibilidades é uma criança! Aprovo de bom grado teu rancor contra a idolatria de que a fazem objeto, e sobretudo contra esse rito familiar que a obriga a circular entre os familiares, ao almoço e ao jantar. para receber o tributo dos beijos, admiração e esperanças da tribo, enquanto os pais, cheios de orgulho, congratulam-se das dificuldades ultrapassadas e pela obra-prima que produziram. Confesso que poderia emular teus sarcasmos contra esses excessos buliçosos; mas escandalizo-me de outra maneira. Os filhos pertencem ao santuário da família, à. sua vida mais íntima, e é a esse claro-escuro misterioso que deve dirigir-se todo pensamento de gravidade e piedade neste assunto. Porém então ver-se-á igualmente que toda a criança está rodeada de uma auréola, e todo pai sentirá que seu rebento encerra em si mais do que lhe deu. Sentirá, humilhado, que esse pequeno ser é depósito confiado à sua custódia, e que ele não é, definitivamente, apesar do sentido mais belo da palavra, senão um pai adotivo. Pai a quem isso não faça sentido invocará sempre em vão sua dignidade paternal. Desembaracemo-nos de todas essas maneiras intempestivas, de todas as paradas junto ao berço do recém-nascido, porém, dispensa-me de sua petulância quando, como Henri, no drama de Holberg, queres forçar-te ao incrível. Nada mais formoso e mais importante que um bebê, porém, tampouco, mais débil e insignificante, e a opinião do homem nesse assunto ilumina-nos decisivamente sobre ele. Um bebê produz um efeito quase cômico quando se pensa em sua pretensão de ser um homem. É uma impressão trágica se se pensa que vem ao mundo chorando e que se necessita muito tempo para que se esqueça de chorar e ninguém explicou ainda este grito do recém-nascido. O menino pode, pois, atrair nossa atenção de muitas maneiras, porém, do ponto de vista religioso, que deve ser levado em conta acima dos demais, é o mais belo. Claro que a um amante da possibilidade como tu, pouca alegria pode trazer-te a ideia de um filho; porém não duvido de que teu pensamento curioso e errante aventurou também uma olhada nesse mundo, e isso, naturalmente. Gostas demasiado de encontrar-te no estado em que estão as crianças, quando, na sala quase escura, esperam a revelação dos presentes de Papai Noel; um filho, porém, supõe uma possibilidade de tipo muito diferente e tão séria que necessitarás de paciência para suportá-la. E sem dúvida, os filhos são uma bênção, um dom do céu. É bom, convém, que um homem medite com a maior seriedade sobre o bem de seus filhos: porém, se às vezes não recorda que a parte do dever e da responsabilidade que lhe impõem são também uma bênção é porque não abriu seu coração aos sentimentos estéticos e religiosos. Quanto mais capaz for o homem de recordar que os filhos são uma bênção, menos necessitará lutar e duvidar para conservar esse dom do céu, único bem que a criança possui, porém, com todo o direito porque é Deus mesmo que o dá. E mais bela torna-se a paternidade e mais estética e mais religiosa. Às vezes, passeio pela cidade entregue a meus pensamentos, ao Deus dará. Assim, vi uma pobre mulher que exercia um pequeno comércio, não um negócio ou em uma venda, mas na praça, ao ar livre, exposta à chuva e ao vento, e levando uma criança ao colo. Estava limpa e seu filho cuidadosamente abrigado. Observei-a com frequência. Passando, certa vez, uma senhora a reprovou por não deixar o menino em casa, tanto mais que lhe era um. estorvo. Passou também um sacerdote: aproximou-se e ofereceu-se para procurar um lugar num asilo para o menino. A mulher recusou cortesmente. Deveria ver, porém, o olhar com que se inclinou para o filho: mesmo que estivesse à morte, esse olhar tê-lo-ia reanimado. Mesmo gelado de frio, ou sucumbindo de fome e sede, esse olhar de mãe, abençoando, ter-lhe-ia devolvido a vida. Porém, o menino dormia e não recompensava a mãe nem sequer com um sorriso. Essa mulher, sim, sentia que um filho é um dom do céu. Se eu fosse pintor, não quereria jamais pintar outro quadro que não o dessa mulher. Não é frequente ser testemunha de uma cena semelhante: é uma sorte, como achar uma flor insólita. Porém, o mundo do espírito não está submetido à vaidade: uma vez achada a planta, floresce sempre; e vi frequentemente essa mãe. Mostrei-a à minha mulher. Não me fiz de importante, não lhe enviei ricos presentes, não me imaginei a Providência: humilhei-me ante ela. Na verdade, pouco há de importar-lhe o ouro e as grandes damas, os asilos e os sacerdotes, nem um pobre assessor da Corte de Apelações e sua senhora. Nada necessita, exceto que seu filho a ame com a mesma ternura; nem sequer isso, porém, é a recompensa que merece, a bênção que o céu não lhe recusará. Esse amor maternal é belo e comove até teu coração endurecido, não o negues. Para fazer-te confessar que um filho é um dom do céu, não apelo, como vês, aos espantalhos que, comumente, se empregam para assustar o solteirão, mostrando-lhe sua solidão futura e a desgraça de não ter em volta de si a algazarra infantil. Porque tu não te deixarias assustar, ao menos por mim; nem sequer pelo mundo inteiro (quando estás sozinho contigo, afogado em tuas ideias melancólicas, às vezes te assustas a ti mesmo). E por outro lado, sempre me parece suspeito que, para assegurar-se da possessão de um bem, tem-se que atormentar os outros com o pensamento de que não o tem. Zomba a teu gosto, pois, porém. tem cuidado que essa zombaria, no silêncio de tua alma, não se transforme em um impaciente desejo do ideal que, por faltar-te, te infligiria um rude castigo. Os filhos são também uma bênção sob um outro ponto de vista: é incrível a forma que instruem. Olha este homem orgulhoso, ao qual nenhuma adversidade dobrou, olha como tira uma moça do seio de sua família, com um aprumo tal que parece dizer: "Comigo estás protegida porque estou habituado a desafiar as tormentas; e ainda terei muito mais força, pelo entusiasmo e a razão que me induzirá a lutar." Pois esse homem se converte em pai, e então como o assusta uma pequena indisposição de seus filhos, e como uma enfermidade põe uma prece em seus orgulhosos lábios. Vi homens que se vangloriavam em desdenhar o Altíssimo, e seriam de todo aquele que invocasse Seu Nome; vi-os, convertidos em pais, tomar a seu serviço os espíritos mais piedosos para confiar-lhes a educação de seus filhos. Vi também muitas mocinhas, cujo olhar soberbo fazia estremecer o Olimpo, e cuja alma vaidosa semente para seu penteado e para as coisas mundanas; e uma vez infles, eu as vi sofrer todas as humilhações, e quase supliciar a esses homens piedosos que lhes dissessem o que lhes parecia melhor para seus filhos. Penso em um caso determinado, em uma senhora de caráter altivo cujo filho caiu enfermo; teve que chamar um médico da cidade e este recusou-se a vir, pois tinha informações sobre sua casa. Bem, essa senhora corre à casa do médico e espera-o pacientemente, até convencer-lhe com seus rogos que se decida a acompanhá-la. Porém, esses casos sensíveis não têm, apesar de verídicos, a virtude edificante de outros exemplos, que cada dia se oferecem aos olhos de quem queira ver. Sim, as crianças são verdadeiros mestres, e por mais uma razão. Cada um deles possui uma espontaneidade ante a qual não valem os princípios e máximas abstratas, e temos que nos servir de nossa própria experiência, às vezes, com muito trabalho e dificuldade. Que sentido mais profundo tem o provérbio chinês: "Cria teus filhos e saberás o que deves a teus pais!" E logo se acrescenta a responsabilidade do progenitor. Já sabes como, ao conviver com as pessoas, temos que lhes inculcar uma ideia que nos parece justa: que tentamos muitas vezes e que quando já não sabemos o que fazer, lavamos as mãos. Porém, quando chega o momento em que um pai se atreve, ou melhor, em que pode tomar em seu coração a resolução de renunciar a toda alternativa! Revivemos toda nossa vida na de nossos filhos, e só então compreendemos realmente a nossa. Porém, é inútil falar-se de tudo isso: há coisas das quais não se pode ter uma ideia, a menos que se as viva, e uma delas é a paternidade. Considera também quão belo é ligar-se, através dos filhos, ao passado e ao futuro, e quão benéfico é ver que a espécie assume nas famílias como um tipo determinado. Certo, o solteiro pode também permitir-se esse exame, porém não se sentirá igualmente autorizado: até certo ponto, ele não intervém na evolução, senão para perturbá-la. 4. Os que se casam para escapar à solidão Casa-se finalmente para ter um lar. Quando nos enfastiamos em casa, viajamos para nos enfastiar no estrangeiro, porém. acabamos por voltar e nos enfastiar em casa. Esse tipo tem para companhia um belo cachorro de caça e talvez um cavalo puro sangue; e sem dúvida, algo lhe falta. No restaurante, os amigos estão com o mesmo humor tétrico, e é em vão que se procura algo ali. Um amigo desapareceu: sim, casou-se. Pensa-se sentimentalmente em sua velhice e sente-se um vazio total. Ninguém nos aguarda quando estamos ausentes. A velha governanta, é, no fundo, uma excelente pessoa., porém, não sabe, absolutamente, levantar o humor e fazer a casa um pouco mais agradável. Então nos casamos. Os vizinhos aplaudem, aprovam essa decisão sábia e razoável, e se opina que o essencial no matrimônio, a sorte maior do mundo, é ter esta cozinheira de confiança, de bom caráter, e capaz de ir sozinha ao mercado, sem furtar; é uma sorte ter uma criada tão hábil que sabe fazer tudo. Porém, então, por que esse velho hipócrita não se contenta em se casar com uma enfermeira? Porém, não, o melhor não lhe é suficiente; e essa criada é, além do mais, uma bonita moça, que saberá perdoar os erros desse verdugo. E se ela nunca havia amado, a situação torna-se mais falsa e mais cruel. Já o imaginas, não preciso falar; e, contudo, confessarás que vemos certas uniões, geralmente da classe média, contratadas com a intenção de ter um lar, e que são muito belas. São homens não muito jovens que, sem haver percorrido o mundo, gozam de um pecúlio suficiente e pensam então em casar-se. Porém, sua conduta é boa, e espero que não te ocorra dirigir teus sarcasmos contra tais uniões: uma simplicidade que não parece de nobreza outorga à vida dos esposos um duplo caráter estético e religioso. Porque nada tem de egoísta a ideia de ter um lar; isso, pelo contrário, lhe associa à ideia de ter um dever, um ato que lhes corresponde e que, além disso, é uma obrigação grata. Não é raro que as pessoas casadas falem de sua sorte e do tormento dos solteiros: "Temos nosso teto e quando envelhecermos teremos um refúgio." E às vezes acrescentam com ênfase solene de um sermão dominical: "Nossos filhos e netos nos fecharão os olhos e nos prantearão." Aos solteirões, acrescentam, os esperam sorte oposta. Concedem com um pouco de inveja que viveram melhor os anos da juventude; e, secretamente, ainda desejariam ser livres; porém, não se pode ter tudo. Ocorre com o solteiro o mesmo que com o homem rico: tiveram sua parte antecipadamente. Todos esses matrimônios têm um defeito comum: fazer de um momento particular da união o motivo da união. Essa classe de esposos sente-se decepcionada quando tem que confessar que, no final de contas, o matrimônio é algo mais que a aquisição de um lugar de comodidade e bem-estar. Façamos, porém, abstração de toda essa hipocrisia para ver o lar em sua beleza e em sua verdade. Não é dado a todo mundo ter uma atividade muito vasta, e muitos dos que creem trabalhar por uma grande causa surpreendem-se mais cedo ou mais tarde de seu erro. Não me refiro a ti porque és demasiado inteligente para não farejar de imediato essa ilusão de que zombaste muitas vezes, e com muito humor. Tens neste sentido uma dose extraordinária de resignação e renunciaste a tudo, de uma vez por todas. Preferes divertir-te; em toda parte és um hóspede bem-vindo e tua agudeza, a amenidade de tuas conversações, certa bonomia realçada pela malícia fazem com que os demais, ao ver-te, se prometam uma boa noitada. Sempre foste bem-vindo à minha casa, e o serás sempre, porque falta bastante para que me possas produzir ansiedade: minha única filha tem três anos e tu não diriges a pessoas dessa idade teus sinais telegráficos. Porém, às vezes, reprovaste meu retiro do mundo; a razão é, como te disse então, que tenho meu lar. Aqui, como em todos os pontos é difícil contar contigo porque sempre mudas de posição. Se se trata de arrancar as ilusões de uma pessoa, para inculcar-lhe uma opinião mais certa, tu estás disposto, como sempre, a ser serviçal. E és infatigável, não há dúvida, para dar-lhes caça às ilusões e aplicar-lhes o golpe de misericórdia. Falas tão razoavelmente, com ar tão divertido que, não te conhecendo, tomar-te-ia por um homem assentado. Porém estás longe da verdade. Empenhas-te em arruinar as ilusões e, por força de fazê-lo em todas as direções imagináveis, te afundas em uma ilusão nova: a de crer que um pode se deter ali. Sim meu amigo, tu vives em uma quimera, e nada levas a termo. Porém, oh, céus! disse a palavra que sempre produziu em ti um efeito tão curioso: "E quem leva a termo alguma coisa? Essa é uma das ilusões mais perigosas: eu não me agito, não, não: divirto-me o melhor que posso e sobretudo, dos que creem fazer alguma coisa. Não é por acaso incrivelmente ridículo que um homem forme de si tal ideia?" Cada vez que abordas esse tema, sinto-me maldisposto, porque tua frase contém um sofisma insolente que, sustentado com tua audácia característica, te deixa sempre com a última palavra, ou pelo menos te proporciona um êxito. Recordo-me daquela vez que, depois de escutar por muito tempo um homem indigno de teus discursos, sem dignar-te a pronunciar uma palavra de refutação, e irritando-o somente com teu sorriso sarcástico, respondeste ao final, para regozijo dos presentes: "Quando você aplica estas palavras a todo o resto de sua atividade, e fazendo caso omisso desta falação, nada se pode objetar, por certo, à sua crença de que realmente trabalha para o bem geral e particular." Dás-me pena quando falas desse modo, e me compadeço de ti: se não te detiveres neste assunto, acabarás por perder os dons de uma rica natureza, esse é o perigo. Não há dúvida, teus rompantes e tuas saídas têm uma força que não encontrei em muitos e torpes descontentamentos profissionais. Por outro lado, tampouco fazes parte desse grupo, porque não lhes impressiona tuas sátiras, talvez por teres ido mais longe que eles. Jovial e contente, sorris, usas o chapéu de maneira requintada, não te aborreces com os contratempos da vida, ainda não te afiliaste a nenhuma sociedade de agentes fúnebres. Porém, tuas palavras são também perigosas para os jovens, a quem impressionas pelo aprumo orgulhoso que manifestas em todas as circunstâncias da vida. Não te recordarei que todo o homem tem uma missão a cumprir no mundo. Pergunto somente se não há em tua vida certas coisas que cobres com um véu impenetrável, e se há essas coisas, não são tais que te incitem a fazer também algumas coisas, e tua melancolia geme dolorosamente ao ver o pequeno fruto de teu esforço. Se pudéssemos ver teu foro íntimo, quão diferente aparecerias... E não te entristece profundamente não fazer nada. Nesse ponto, tenho um indício: um dia deixas-te escapar algumas palavras que não se perderam, e não o duvido, tu darias tudo para ser capaz de fazer alguma coisa. Se és ou não responsável por essa tua impotência, se emana de um orgulho que deve ser quebrado para que estejas apto para a ação, não o sei, nem te espremerei para sabê-lo. Porém, porque diabos queres mostrar-te sempre tão maligno, e sempre satisfeito com teu poder vitorioso? Repito-o, a miúdo, tem-se sentimento de quão pouca coisa se faz no mundo. E não o digo por desalento, porque nesse ponto não tenho nada que possa reprovar-me: creio cumprir conscienciosamente minhas funções, e com satisfação; creio que nunca, com a esperança de fazer mais, sentir-me-ei tentado a ocupar-me do que não me importa. E, contudo, minha atividade é muito limitada, e só com fé pode-se estar seguro de se estar realizando uma obra valiosa. Porém, tenho, além disso, um lar, e aqui te peço que medites nas belas palavras da Jesus Sirach: "O que tomou uma mulher começa realmente a possuir, porque tem um colaborador e um apoio. Onde falta a fechadura, os bens serão roubados, e onde a mulher está ausente se suspira e se vagueia como uma alma penada. Por que quem acredita no bandido que anda de lugar em lugar? Assim é o homem que não tem onde o esperem ao cair da noite." Não me casei para ter um lar, porém, o tenho, e vejo que é uma bênção. Não creio ser um marido bufão, nem que te atrevas a dirigir-me esse epíteto; nem sou o marido de minha esposa, como o é o marido da rainha da Inglaterra; e se ela não é como na casa de Abraão uma escrava a quem eu expulsaria com a criança, tampouco é uma deusa, a cujo redor eu execute cabriolas amorosas. Tenho um lar que não é todo meu, porém, sei que é todo de minha mulher, porque sei que ela o criou com toda a humildade e porque sei que tenho sido e serei todo dela, tanto como um ser humano pode ser de outro. Quero mostrar-te agora que boa coisa é ser todo para o outro, sem que nada de finito e particular seja lembrado com ingratidão, e falo com uma comodidade tanto maior porque sei que minha mulher não cone o risco de ver-se menosprezada. Não se casou comigo por necessidade: não era uma moça pobre, em favor de quem, eu cumpriria uma boa ação, como diz o mundo com profundo desprezo. Não era uma boa boba com quem se casa por razões especiais e de quem eu conseguiria tirar algo de bom, graças à minha sabedoria. Ela era independente e, o que vale mais, de gostos tão simples que não tinha necessidade de ser convencida; e era sã, muito mais que eu, e mais animada. Sua vida não podia, naturalmente, ser tão agitada como a minha, nem tão reflexiva; minha experiência poderia preservá-la de muitos aborrecimentos, porém, sua índole sadia tornava supérflua essa preocupação. Nada me deve verdadeiramente, e sem dúvida, sou todo dedicado a ela: sem ser-lhe necessário, não lhe tenho sido indiferente. Tenho velado por ela, e ainda durmo como Nehemias, armado; sirvo-me de uma imagem que surgiu em meus lábios em outras circunstâncias, e para mostrar que não esqueci tua observação maliciosa quando objetaste que isso seria um estorvo para minha mulher. Meu jovem amigo, já vês que teus sarcasmos me deixam frio, posto que os repito; e sem rancor, te asseguro. De modo que não tenho sido nada para ela, e sem dúvida sou tudo, enquanto tu tens dado tudo a uma série de pessoas para quem, no fundo, não és nada. Suponhamos, se quiseres, que, nos contatos temporários que estabeleces com as pessoas, sejas capaz de dotar-lhes de um tesouro de coisas interessantes, de despertar nelas um poder criador tal que com isso tenham bastante em que se ocupar na vida; suponhamos, apesar da impossibilidade de tal hipótese, que tenham realmente ganhado, conhecendo-te. E tu, sem dúvida, tens perdido, porque não achaste ninguém a quem quisesses pertencer totalmente. E tua grandeza está em juízo: é tão dolorosa, que rogo a Deus que me livre de tal superioridade. A primeira ideia que convém associar à noção de lar é a da ação que representa, abandonando assim toda a ideia falsa e desprezível de bem-estar. Ainda quando esteja desfrutando de uma agradável noitada em sua casa, o marido deve ver nisso um momento ativo, por mais que esse momento não se manifeste num fato material e tangível. Ainda que não pareça à primeira vista, o marido pode muito bem ser ativo em sua casa, apesar da atividade da mulher ser mais manifesta. À ideia de lar associa-se, além disso, tal quantidade de circunstâncias materiais que é muito difícil se falar em geral. Todos os matrimônios têm seu caráter próprio e seria muito importante conhecê-los em grande número. sempre que essa originalidade específica esteja desde logo impregnada de espírito. Causa-me horror toda a desordem separativa que vemos em certas famílias; desde a primeira visita empenham-se em fazer-te sentir, como, nesta casa, tudo tem seu selo próprio: e esse particularismo chega, às vezes, tão longe que a família fala um jargão especial, ou se expressa por alusões tão misteriosas que não se sabe o que pensar. O fato é que cada família tem um caráter próprio, porém, a arte consiste em saber ocultá-lo. Os que se casam para ter um lar acrescentam que não tinham a ninguém que os esperasse, que os recebesse etc. Isso mostra que somente têm um interesse quando pensam, ao mesmo tempo, na vida exterior. Deus seja louvado, não sinto em absoluto a necessidade de sair para recordar-me ou esquecer-me de que tenho um lar. Essa sensação me acomete onde quer que esteja, e não necessito ir ao salão ou à sala de jantar para convencer-me de que tenho um lar. Essa sensação costuma apoderar-se de mim quando estou só, em meu gabinete de trabalho e ouço abrir-se a porta, e pouco depois vejo um palminho de rosto alvoroçado no vidro, no mesmo momento coberto novamente pela cortina que volta a seu lugar; ouço então um ruído suave e aparece entre os batentes um rosto que se diria ter corpo: é minha mulher a meu lado. Porém, já volta outra vez a suas ocupações. Essa sensação pode possuir-me quando, tarde da noite, vejo na solidão, como antigamente no colégio; ocorre, então, que acendo a luz e deslizo silenciosamente até o quarto para ver se dorme realmente. Claro que sinto o mesmo, frequentemente, quando volto à casa. Acabo de chamar: ela sabe que tenho o costume de chegar pontualmente (nós, os pobres funcionários, temos também o inconveniente de não poder ver nossas mulheres a qualquer hora). Ela conhece meu modo de chamar: entretanto, então no vestíbulo, escuto o bulício das crianças, ao qual ela mescla sua voz, e a vejo chegar frente da pequena corte, tão criança que parece rivalizar em alegria com os meninos: então sinto que tenho um lar. E quando uma expressão grave (tu te vanglorias de ser psicólogo, porém, quem o pode ser tanto quanto uma mulher...), como muda essa menina que a um momento fazia travessuras: não se entrega ao desespero, nem se enfada, e sim há. nela aquela força sem dureza, infinitamente flexível, semelhante à. espada que pode bater na pedra, e sem dúvida, ser presa à cintura. E quando me vê mais preguiçoso (o que também me ocorre, meu Deus!), de quanta deferência não é capaz; e, sem dúvida que superioridade há em tais precauções. Depois de tudo quanto possa dizer-te sobre esse ponto, referir-me-ei a uma palavra categórica aplicável a teu caso com todo o direito, e que tu, ademais, empregas a todo o momento. Eras um estrangeiro e um viajante sobre a terra. Os jovens sem ideia do preço que se paga pela experiência, nem a suspeita de sua incrível riqueza, podem facilmente deixar-se arrastar no mesmo torvelinho que tu, podem sofrer influência de teus discursos e sentir a frescura da brisa que os atrai mar afora, no oceano sem limites que tu sugeres; tu mesmo podes embriagar-te de juventude e quase perder teu domínio pensando nesse infinito, que é teu elemento, e que, como o mar, oculta, impassível todos seus segredos em suas profundidades. Hábil como foste para sulcar estas águas, não poderás falar de acidentes e naufrágios? E é certo que os viajantes, em geral, não sabem muito acerca um do outro quando navegam sobre essas ondas. Não se trata aqui de equipar grandes navios, que navegam penosamente mar afora; não se trata de embarcações muito pequenas, de canoas: aproveita-se o momento, estende-se a vida, corre-se com a velocidade infinita dos pensamentos inquietos, um sobre as ondas sem fim, outro sobre os céus infinitos. É uma vida perigosa, porém, está-se familiarizado com a ideia de perdê-la: porque o prazer consiste em perder-se assim no infinito, de sorte que não sobre senão o gozo dessa perda. No Oceano Pacífico, dizem os marinheiros, vê-se uma espécie de barco fantasma, o "Holandês Errante". Uma pequena vela estendida, e corre sobre as ondas com prodigiosa rapidez. O mesmo ocorre com tua navegação no oceano da vida. Quando se está só em seu barco, basta-se a si mesmo; não se tem contato com o outro senão quando deseje. Porém, realmente, é verdade que sozinho em sua piroga, a pessoa se basta a si mesma? Em verdade, não compreendo muito bem como se pode encher esse vazio; sem dúvida, como és o único homem, o único que conheço, a quem essa declaração não é em absoluto um embuste, sei também que tens a bordo um passageiro capaz de encher o tempo. De sorte que tu poderias dizer-te: só em meu barco, só com minha tristeza, só com minha desesperança, que tens a covardia de cultivar, antes de submeter-te, como deveria, à dor salutar da cura. Permita-me aclarar a face de tua vida oculta em sombras. Não é que eu queria espantar-te, nem pretendo ser um pássaro de mau agouro, e tu és demasiado esperto para deixar-te sugestionar. Pensa, porém, na plenitude da dor, na melancolia, na humilhação de ser, neste sentido, estrangeiro e viajante na terra. Não quero prejudicar a possível impressão de minhas reflexões sobre teu espírito, Irritando-te com a evocação dessa espessa concórdia familiar, desta atmosfera de cavalariça que te provoca náuseas. Porém imagina a vida de família com sua beleza, baseada em uma união íntima e fecunda de sorte que todos os vínculos, não se sabe como, permanecem invisíveis e fundidos de tal modo entre si que somente se pode suspeitar de sua conjugação; pensa nessa vida de família, assim escondida, porém, florescendo para o exterior tão belamente que em parte alguma se veja as arestas de seus ângulos, e pensa, por fim, em tua atitude diante deste quadro. Uma família assim organizada seria para ti um ambiente encantador: penso que serias feliz voltando para ela com frequência, e graças a teu desembaraço, sentir-te-ias logo bem ali, como um familiar. Digo: "como", porque não chegarias a sê-lo porque insiste em ser estrangeiro e viajante. Serias, por outro lado, um hóspede agasalhado; e far-se-ia qualquer coisa para que a companhia te fosse grata; precavidos, tratar-te-iam como a um menino mimado. Gozarias sempre de novas atenções e farias tudo para alegrar essa família. Tudo isso é bom e belo, não te parece? Sem dúvida, em um de teus momentos de capricho, inclinar-te-ias a dizer que não te agrada ver a família ao levantar da cama, as meninas de chinelos e a mãe sem seu xale; sem dúvida, se perceberes, há em ti um profundo motivo de humilhação nessa maneira de receber-te, e isso é o que deveria fazer a família para ensinar-te a modéstia. Não crês, pois, que a família se reserva em segredo uma vida privada muito diferente, que é seu santuário, e que cada uma tem seus deuses lares, apesar de não os expor no vestíbulo? E não ocultam tuas expressões a debilidade de um refinamento sutil? Pois se tu te casasses não creio que realmente sofresses vendo tua mulher de camisola, sendo um adorno destinado a agradar-te. Certo, tu crês haver sido generoso com a família que te recebe, levando-lhe uma conversação agradável, e difundindo pela sala certo brilho estético. Porém, suponhamos que a família faça pouco caso dessas vantagens, em comparação com a vida privada que possui. É isso que descobrirás em cada família; e pense o que quiser teu orgulho, é uma humilhação. Ninguém compartilha sua tristeza contigo, ninguém confia em ti. Protestarás, lembrarás um caso ou outro em que te hás enriquecido com uma quantidade de observações psicológicas; porém elas são, frequentemente, uma ilusão, porque a todos apraz falar contigo de bagatelas, roçando apenas, ou em todo caso, deixando-te apenas adivinhar uma inquietude, porque o interessante que então se desenrola em ti é um calmante para a dor, e comporta por si mesmo um prazer que faz procurar a medicina ainda que não a necessite. E quanto a teu isolamento (as pessoas, como sabes, preferem receber a comunhão de um monge esmoler que de seu confessor), incita a alguém a dirigir-se a ti, esse recurso nunca tem a verdadeira importância, nem para ele, nem para ti: para ele porque sente quão arbitrário seria confiar em ti e para ti porque não saberias fazer abstração da ambiguidade, base da tua competência. És, indubitavelmente, um bom operador e possuis a arte de intrometer-se nos rincões mais ocultos da tristeza e da inquietude, ainda que sem esquecer do caminho de volta. Seja, admito que consigas curar teu paciente, porém, não tiras disso nenhuma alegria profunda e verdadeira, porque toda a cura leva o selo do arbitrário e tu não assumiste a responsabilidade dela. Somente a responsabilidade procura a bênção e a verdadeira alegria, e isso mesmo que não tenha a metade de tua habilidade: procura a bênção, mesmo quando pareça impotente. Porém quando se tem um lar, tem-se também uma responsabilidade, e isso traz a confiança em si e a alegria. Ao negar-te a assumir uma responsabilidade, deves achar natural a ingratidão das pessoas para contigo, essa ingratidão de que te queixas a miúdo. Sem dúvida, não é frequente que te preocupes por curar as pessoas; em geral, já te disse, tua vaidade principal tende a destruir as ilusões e, se possível, a convencer as pessoas a acreditar em quimeras. Quando se te vê tão hábil em arrastar em dois tempos e três movimentos alguns jovens para longe das ilusões pueris, tão saudáveis por muitas razões, e quando se os vê, agora aliviados da realidade, abrir as asas, enquanto tu, como um velho pássaro cheio de experiência, lhes dá uma ideia do adejo que permite dominar a vida inteira; mais ainda, quando empreendes um exercício análogo com mocinhas e lhes mostras em que difere o voo do macho e o da fêmea, o primeiro, ímpeto audaz, e a segunda, deslizamento para o sono, quem poderia então reprovar tua virtuosidade? E, sem dúvida, quem não se enfadaria contigo por tua ligeireza. Podes dizer com todo o coração estas palavras da velha canção: Meu coração é um pombal: quando uma vem, a outra voa. Salvo que em teu caso, as pombas que entram são em muito menor número de que as que vemos sair. Porém por formosa que seja, desde logo, a imagem do pombal para representar o lar aprazível, não deve ser entendido dessa maneira. Não é triste, não é doloroso deixar transcorrer assim a vida, sem deter-se nunca nela? Não é triste, meu jovem amigo, que ela nunca tenha, para ti, um conteúdo? Deixa uma certa melancolia sentir que se envelhece, porém, ela toma posse do homem com muito mais força quando este não pode amadurecer. Nesse momento, sinto quanta razão tenho de te chamar de meu jovem amigo. Uma diferença de sete anos não é precisamente uma eternidade; e se não quero jactar-me perante ti, da maturidade da razão, invocarei, ao menos, a da vida. Sim, sinto que cheguei a ser realmente mais velho, enquanto continuas aferrado às primeiras surpresas da juventude. Às vezes, muito raramente na verdade, quando me sinto cansado do mundo, essa impressão se alia a uma prazenteira aspiração. Penso nestas belas palavras: "Felizes os que descansam de seus trabalhos." Não creio haver realizado uma grande obra em minha vida; a parte que me foi designada não foi escolhida por mim; porém, apesar de sua insignificância, minha obra tem tido a alegria de cumpri-la modestamente. Seguramente, tu não descansas de teus trabalhos, porque o repouso para ti é maldição, e somente podes viver na inquietação: o repouso é teu inimigo, e te tornas ainda mais inquieto. És um faminto a quem os alimentos redobram a fome; um homem atormentado pela sede, que a bebida nada mais faz que excitar ainda mais. Volto, porém, a meu tema, as intenções de ordem finita segundo as quais as pessoas contraem matrimônio. Não citei mais que três delas, que parecem ter um argumento em seu favor, e que refletem sempre tal ou qual momento da união, apesar de que, em sua exclusividade, sejam tão ridículas como contrárias à estética e à religião. Omitirei muitas outras absolutamente míseras por sua estreiteza, e que nem se quer se prestam ao riso. Por exemplo, o matrimônio por dinheiro, o matrimônio por ciúmes, o matrimônio ditado pelas esperanças: a esperança de que ela morrerá, ou viverá longo tempo, porém, será uma árvore fértil, carregada de frutos, de modo que se poderá, graças a ela, embolsar as heranças de uma coleção de tios e tias. Não tenho ânimo para nomear essas baixezas. Porém, como conclusão deste vexame, posso inferir, como se viu, que o matrimônio, por ser estético e religioso, não pode ter porquês de ordem finita. Porém, tal era, precisamente, o caráter estético da paixão, de modo que até neste caso, o matrimônio está no mesmo nível que ela. E o caráter estético do matrimônio consiste em que compreende uma série de porquês que a vida revela em toda a sua bênção. Capítulo IV O MISTÉRIO DO MATRIMÔNIO Como minha primeira finalidade, porém, é mostrar o valor estético do matrimônio, e como este se distingue da paixão por seu caráter ético e religioso, na medida em que esse caráter se expressa num ato particular, na bênção nupcial, deter-me-ei nesse ato. Assim não parecerá que facilito demais minha tarefa, e evitarei a menor aparência de dissimular a cisma entre a paixão e o matrimônio, cisma em que tantos outros, e tu mesmo, insistem, apesar de terem razões distintas. Tens inteira razão, há que reconheceres, quando pretendes que se tantas pessoas admitem essa cisma, a causa é que carecem de energia e de cultura necessárias para refletir sobre ambos os assuntos. Vejamos, porém, mais de perto, a bênção nupcial e sua liturgia. Nas palavras que se seguem, encontrar-me-ás, talvez, suficientemente armado, porém, tranquiliza-te; nada disso se fará às expensas de minha mulher. Porque ela vê de maneira complacente que eu mantenha à distância bandidos como tu e teus iguais. Sou de opinião, além disso, que se o cristão deve estar sempre disposto a confessar sua fé, também o esposo deve ser capaz de justificar o matrimônio, não precisamente ante qualquer pessoa a quem ocorra perguntar-lhe, e sim ante quem ele considera digno de escutá-lo, ou que lhe pareça bem fazê-lo, apesar de o ouvinte ser indigno, como nesse caso. E como, nestes últimos tempos, após destruir várias províncias, te propuseste a fazer o mesmo com o matrimônio, sinto-me obrigado a ir em tua busca. Presumo que conheces a fórmula da bênção nupcial e que inclusive a estudaste. Além disso sempre estás bem preparado e, em geral, nunca atacas uma posição antes de haver-te informado cuidadosamente a ponto de parecer seu defensor mais qualificado. De modo que às vezes te sucede, como lamentas, que atacas demasiado bem e encontras defensores menos informados em suas posições que tu, o atacante. Porém, antes de entrar em pormenores, vejamos se, no ato da bênção simplesmente concebido como ato, não haverá nenhuma dificuldade séria. Não é coisa que advirtam os enamorados num instante de inspiração, uma coisa que poderiam abandonar sem prestar mais atenção, se, entretanto, não viesse mudar o curso de seus pensamentos. Trata-se, pois, de um poder que se acha diante de nós. Necessita, pois, o amor de reconhecer outro poder que ele mesmo? É possível que tu o admitas; a dúvida e a aflição devem ter ensinado o homem a rezar antes de inclinar-se, por sua vontade ou contra ela, ante esse poder. Porém, a paixão não necessita haver passado por esse caminho. Recordarás que temos suposto aos interessados certo desenvolvimento do ponto de vista religioso, de tal sorte que não necessito examinar como a vida religiosa pode aparecer no homem, e sim como pode coexistir; e assim como é certo que o amor infeliz possa imprimir no homem um sentimento religioso, é evidente que os indivíduos religiosos podem amar. O sentimento religioso não é tão estranho à natureza humana que se necessite previamente uma ruptura com ela para que ele brote. Porém, se nossos enamorados têm uma vida religiosa, o poder que se apresenta a eles na bênção nupcial não lhes é estranho, e como seu amor os une em uma unidade superior, o sentimento religioso os eleva a uma unidade ainda mais alta. 1. O valor da bênção nupcial Qual é, pois, o valor da bênção? Antes de qualquer outra coisa, ela subministra uma visão sobre a origem da espécie, a cujo vasto organismo incorpora assim o novo par. Além disso, invoca o geral, o aspecto puramente humano que lhe faz presente à consciência. Isso te choca, e talvez me digas: no momento em que uma pessoa se une tão intimamente ao ser amado, que todas as outras coisas desaparecem da consciência, é desagradável que se lhe recorde que "essa é a velha história", algo que sucedeu, sucede e sucederá. Porque tu pretendes alegrar-te com o caráter próprio de teu amor, queres deixar inflamar-te de paixão e não desejas que te transtorne a ideia de que Pedro e Paulo façam a mesma coisa. "É terrivelmente prosaico, dizes, ouvir-te recordar seu número de ordem: No ano de 1750 apresentaram-se às dez horas, o senhor X e sua virtuosa senhora Y; e no mesmo dia, às onze, N e O. Que som mais terrível o desta enumeração!" Teu raciocínio, porém, oculta uma reflexão que transtornou tua paixão. Como já te disse, o amor é a união do geral e do particular; porém, se se deseja, como tu, gozar do particular, isso denota uma reflexão que coloca o particular à margem do geral. Quanto mais compenetrados estejam esses dois elementos, mais beleza tem o amor. A grandeza não consiste em ser o particular, no sentido imediato, nem no mais amplo, e sim, que importa possuir, no particular, o geral. Recordar o geral não significará, para a paixão, uma introdução inoportuna. Acrescenta-se a isso que a bênção nupcial faz ainda mais, porque, e volto assim ao geral, reverte os enamorados aos primeiros pais. De sorte que não se atém ao geral in abstrato senão que o mostra estendendo-o ao primeiro par da espécie, indicando assim a índole de cada união. Todo matrimônio, qualquer vida humana, é ao mesmo tempo, esta coisa particular, e ao mesmo tempo, o todo; é, de uma só vez, o indivíduo e o símbolo. Assim a bênção oferece aos enamorados a mais formosa imagem de dois seres a quem o pensar nos outros não transtorna. Dizem-lhes aqui convosco: "Bom, vós sois um par; o mesmo acontecimento se repete aqui convosco, vós vos achais sozinhos no mundo infinito, sozinhos diante de Deus." Vês então como a bênção confere o que tu reclamas. E, além, disso, e mais que isso, de uma só vez, o geral e o particular. A liturgia, porém, proclama que o pecado entrou no mundo, e é chocante, quando se sente mais puro, que se lhe lembrem tão abruptamente o pecado. Ensina também que o pecado entrou no mundo através do casamento, coisa que não é alentadora para nenhum dos participantes; e se subentende que a Igreja pode lavar as mãos se algo errado resulta do matrimônio, pois ela não nos enganou com uma esperança vã. O fato, porém, que não o faça, deve ser considerado como um bem. Continuemos. A Igreja diz que o pecado entrou no mundo pelo matrimônio, permitido por ela, sem dúvida; seria interessante, porém, saber se ela ensina que foi por meio do matrimônio. Em todo o caso, proclama simplesmente que o pecado é patrimônio comum dos homens, sem fazer sua aplicação a este ou àquele. Sobretudo, não diz: "Estás prestes a cometer um pecado." É difícil, certamente, expor em que sentido o pecado apareceu com o matrimônio, porque poderia parecer que identificamos pecado com sensualidade, e tal não pode ser porque a Igreja autoriza o matrimônio. "Sim, dirás, após ter despojado o amor terrestre de toda a sua beleza." "De modo algum, responderei, ou pelo menos, a liturgia da bênção não diz palavra sobre isto." A Igreja proclama logo a pena que cabe ao pecado: a mulher deve dar à luz com dores e ser submissa a seu marido. Porém, a primeira dessas consequências é de tal natureza que, se a Igreja não o dissesse, dar-se-ia a conhecer por si mesmo. "Certo, dirás, porém, é chocante declarar que as dores do parto são a consequência do pecado. Parece-te bonito, e é conforme a estética, que o filho nasça entre dores?" É para o homem um privilégio, um símbolo da importância que representa sua vinda ao mundo se a contrapomos aos amigos que produzem suas crias com uma facilidade tanto maior quando mais baixo estejam na escala animal? Porém, aqui também tenho algo mais a assinalar-te: essa necessidade é proclamada como um peso comum da humanidade, e o nascimento em pecado expressa com a maior profundidade nossa suprema dignidade, de tal modo que a vida humana assume um glorioso caráter, que a transfigura, quando tudo que se relaciona com ela concorre com a determinação do pecado. E, quanto à submissão da mulher ao marido, dirás, sem dúvida: "Sim, é uma boa coisa, e sempre me apraz ver unia esposa que ama em seu marido o seu senhor." Que tal condição resulte, porém, do pecado, isso te revolta, e te sentes chamado e apresentar-te como cavalheiresco defensor da mulher. Não decidirei se, desse modo, lhe prestas algum serviço, porém, creio que não compreendeste, a fundo mesmo de sua natureza em toda a sua complexidade que ela é, de uma só vez mais perfeita e mais imperfeita que o homem. Se se quiser designar a pureza e a perfeição mesmas, ou, pelo contrário, a maior debilidade e o maior desamparo, nomeia-se a mulher. Trata-se de dar uma ideia da elevação do espiritual acima do carnal ou pelo contrário, de representar o sensual, se cita a mulher. Se se quer caracterizar a inocência, em toda a sua nobre elevação, ou, ao contrário o sentimento terrível da culpa, nomeia-se a mulher. Ela tem, pois, em certo sentido, mais perfeição que o homem, o que a Escritura expressou, atribuindo-lhe mais culpabilidade. Se agora pretendes que a Igreja proclame tão-somente o peso humano que corresponde à mulher, não me parece que resulte disso um motivo de inquietude para a paixão e sim para a reflexão, que não sabe manter a mulher no domínio dessa possibilidade. A Escritura, porém, não faz dela uma escrava. Diz: "E Deus disse: Darei a Adão uma companheira." Palavras estas que não têm menos emoção que verdade estética. A tal ponto que mais tarde ensina: "E o homem deixará seu pai e sua mãe e se ajuntará a sua mulher." Esperar-se-ia bem mais ao contrário: é a mulher que deixaria seu pai e sua mãe e se ajuntaria a seu marido, porque é a mais frágil. A Escritura reconhece implicitamente o valor da mulher, e não há cavalheiro que possa ser mais galante. Finalmente, a maldição que pesa sobre o varão, o fato de que deve comer seu pão com o suor de seu rosto parece excluí-lo das bem-aventuranças do amor. Que essa maldição, como qualquer outra de Deus, leve em seu seio uma bênção, como se tem lembrado frequentemente, o argumento aqui não prova nada, posto que se postula necessariamente um porvir para que se faça experiência dela; em troca, desejo recordar-te que a paixão não é covarde, não teme o perigo, e não poderia, por conseguinte, ver nessa maldição um obstáculo capaz de detê-la. Qual é, pois, o valor da bênção nupcial? Acaso ela "sujeita os enamorados"? Não, por suposto, e sim faz surgir no mundo exterior o que estava em movimento. Insiste sobre o caráter humano geral, e, neste sentido, também sobre o pecado; porém, toda esta angústia, todo este tormento que recusam a admitir a entrada do pecado no mundo se originam em uma reflexão desconhecida para a paixão. Exigir que o pecado não tenha entrado no mundo é devolver a humanidade a um grau mais imperfeito. O pecado interveio, e os indivíduos, inclinando-se ante ele, elevam-se mais alto do que estavam antes. A Igreja dirige-se logo ao indivíduo e lhe faz algumas perguntas, que, parecem excitar a reflexão. "Para que estas perguntas quando o amor leva em si mesmo sua reflexão?" Porém a Igreja não interroga para nos fazer titubear e sim para nos fortalecer e para que nos pronunciemos sobre o que já estava estabelecido. Aqui surge uma dificuldade: a Igreja, ao fazer essas perguntas, não parece levar em conta o elemento erótico. Pergunta-se se te puseste de acordo com Deus e tua consciência, com teus amigos e conhecidos. Não te chamarei atenção sobre a grande utilidade das perguntas que faz à Igreja, com seriedade tão profunda: ela não é, segundo tuas palavras, uma agência de matrimônio. Podem os interessados se molestar? Com sua ação de graças, dirigem seu amor a Deus, e assim põem-se de acordo com Ele, apesar de indiretamente. De sorte que, quando a Igreja lhes pergunta se se amam não o faz porque quer destruir o amor terrestre, e sim porque o pressupõe. 2. Digressão sobre a dúvida A Igreja recebe com isso uma promessa. Já vimos como o amor se presta perfeitamente a passar a uma esfera concêntrica superior. Sua resolução faz o indivíduo livre, porém, quanto mais livre é o indivíduo, mais beleza estética tem o matrimônio. Assim se buscamos o caráter estético da paixão em sua infinitude imediata e presente, então será preciso ver no matrimônio a glorificação desse amor, ao qual excede em beleza. O que surge claramente, creio, do que antecede, assim como acabamos de ver que toda objeção tendente a diminuir a Igreja carece de fundamento, e somente se apresenta ao homem a quem a religião escandalize. Sendo, assim, o resto é contigo. Porque trata-se de saber se este amor é realizável. Dirás, provavelmente, após haver aprovado minha exposição até aqui: "A dificuldade de realizar o matrimônio continua sendo a mesma que a da paixão." Respondo categoricamente que não, porque o matrimônio comporta a lei do movimento. A paixão continua sendo An-sich, uma coisa em si vazia para sempre de conteúdo real, porque move-se simplesmente num meio externo; na resolução ética e religiosa, o amor conjugal recebe a possibilidade de uma história interna, e distingue-se da paixão como paixão, por ser dotada de uma história. A paixão é forte, mais forte que o mundo inteiro, porém, quando a dúvida ali se instala, a paixão fica destruída: como o sonâmbulo, que é capaz de palmilhar caminhos perigosos com uma segurança infinita, mas que, ao escutar seu nome, cai no abismo. O amor conjugal está armado; porque, na resolução, a atenção não só se dirige ao mundo exterior, como que nela, a vontade está dirigida para si mesma, para o interior. E agora, inverto os termos e te digo que a estética não reside no imediato, e sim no conquistado; e como o matrimônio é justamente a imediatez que comporta a mediatez, a infinitude que comporta o finito, a eternidade que comporta a temporalidade, parece assim duplamente ideal, no sentido antigo do termo, e no sentido romântico. Quando digo que a estética reside no conquistado, não pretendo, por certo, que se ache no esforço puro e simples o qual é, de fato, negativo, e o puramente negativo nunca é estético; trata-se de um esforço que tem em si sua matéria, de uma luta que tem em si sua vitória. E nessa dualidade se acha a estética. Isso é o que creio dever recordar a propósito do entusiasmo do desespero, que hoje induz a preconizar o conquistado como oposto ao imediato, como se importasse arruiná-lo totalmente até os alicerces, para reconstruir em terra batida. Sofri verdadeiras angústias escutando os jovens gritar com alegria como os terroristas da Revolução Francesa: De omnibus dubitandum. Talvez demonstre assim de minha parte uma grande estreiteza de espírito, porém, creio que é mister distinguir entre a dúvida pessoal e a dúvida científica. A primeira tem seu caráter particular; porém, o entusiasmo dessa destruição, a qual hoje se invoca correntemente, conduz, em todo o caso, uma quantidade de pessoas à dúvida, sem que tenham forças para praticá-la, e a perecer, ou a cair na insuficiência que é igualmente o desastre certo. Porém, se a ruptura da dúvida desenvolve, ao contrário, em uns e outros, a força capaz de vencer, por sua vez, a dúvida, isso provê de coragem, pois mostra o que o homem é, radicalmente. Porém, ainda assim, não é bela, propriamente falando. Pois a condição que se requer disso é a presença, no homem, da imediatez e que uma evolução acentuada pela dúvida tenda a que a expressemos, em última instância, dizendo que faz o homem totalmente diferente. Porém, a beleza reside na aquisição do imediato, efetuada em e com a dúvida. Isso é o que devo destacar, o que devo opor à abstração mediante a qual se glorifica a dúvida, se faz dela um ídolo; a temeridade com que os homens se precipitam sobre ela, e a cega confiança no magnífico resultado que se pode esperar dela. Acrescente-se a isso que a dúvida é tão mais meritória quanto a coisa por conquistar mais pertence ao espiritual: porém, o amor habita sempre uma região na qual se trata menos do conquistado que do dado, e de um dar que é receber. Além do mais, eu não sei de que espécie poderia ser essa dúvida. Acaso será, em um esposo, a disposição pura que o teria levado a consumar tristes experiências, aprender a duvidar para que surja ante ele a verdadeira beleza do matrimônio, quando, em virtude dessa dúvida se case animado por um profundo sentimento de seriedade moral, porém, guardemo-nos de fazer o elogio de seu matrimônio, e se mostre um marido fiel e constante? Felicitemo-lo, pelo menos, como um exemplo do que um homem é capaz. Ou então, para duvidar ultimamente, deveria, inclusive, pôr em juízo o sentimento da que ama, a possibilidade de manter a beleza dessas relações, sem prejuízo do estoicismo necessário para desejá-las? Eu o sei muito bem: vós, falsos doutores, os inclinais na balança de semelhantes opiniões para melhor apresentar-lhes vossas doutrinas enganosas. Elogiais essa concepção quando favorece vossas intenções, e então dizeis que este é o verdadeiro matrimônio. Porém, sabeis muito bem, que este elogio encobre um agravo secreto, e que a mulher, sobretudo, está longe de poder contentar-se; de sorte que fazeis o possível para tentá-la. Aplicais o velho adágio: Divide et impera. Elogiais a paixão, que se converte, se lhe prestarmos crédito, em um momento fora do tempo, em um não sei que de misterioso que pode prestar-se à toda sorte de explicações enganosas. O matrimônio não pode ser dissimulado assim porque necessita de muitos anos para desabrochar; que melhor ocasião de demolir ou de irritar, por melo de considerações tão traidoras que se precise de uma resignação desesperada para afrontá-las, não é certo? 3. A superioridade da resolução Fique claro entre nós este ponto: considerado como momento, o amor conjugal não somente é belo, senão que é ainda mais belo que a paixão, porque contém, em sua imediatez, a união de vários contrários. Não se deve, pois, dizer que o matrimônio é uma pessoa por demais responsável, ainda que fastidiosa em sua moral, enquanto a paixão é a poesia. Não, o matrimônio é muito especialmente o poético. E, como o mundo tem sido testemunha tão a miúdo de seres afligidos de uma paixão irrealizável, aceito, certamente, participar de sua tristeza, porém, desejo também recordar que o infortúnio reside menos na sucessão de acontecimentos que em um mal começo. Pois a paixão carece do segundo ideal estético, o histórico: não comporta lei de movimento. Se eu cresse em uma vida pessoal tão imediata, a paixão corresponderia a uma fé que, em virtude da promessa, cresceria capaz de transportar montanhas, e lançar-se-ia à realização de milagres. Talvez o conseguiste, porém essa fé não teria história, porque a coroação de todos esses milagres não constitui uma história, enquanto a assimilação da fé na vida pessoal é a história da fé. O amor possui esse movimento, porque na resolução do movimento, orienta-se para dentro. Na ordem religiosa, o amor conjugal entrega a Deus, por assim dizer, o cuidado do mundo inteiro: na resolução quer, em colaboração com Deus, combater por si mesmo e conquistar-se na paciência. Na consciência do pecado entrou uma ideia de invalidez humana que vemos ser superada na resolução. Eu não saberia insistir o suficiente acerca do amor conjugal. Fui justo com a paixão, e fiz dela, segundo creio, um elogio ainda melhor que o teu; porém, seu caráter abstrato é seu defeito. O amor conjugal implica um suplemento, como podes ver, por sua capacidade de renunciar a si mesmo. Suponhamos uma paixão irrealizável: se é um verdadeiro amor conjugal, os indivíduos são capazes de renunciar a ele, mesmo entregando-se com doçura, em outro sentido. Porém, esse é um ato que a paixão não saberia realizar. Disso não resulta, sem dúvida, que o amor conjugal receba da dúvida sua resignação, em uma espécie de enfraquecimento da paixão. Se esse fosse o caso, não haveria resignação; e, não obstante, ninguém conhece melhor a doçura da paixão que quem renuncia a ela, com a condição de ter a força necessária. Porém, essa força é igualmente poderosa quando se trata de manter o amor, de realizá-lo na vida. Necessita-se da mesma força para renunciar ou para conservar: e manter verdadeiramente é exercer uma força que estaríamos em condições de renunciar, e é manifestá-la nesse exercício. Somente nisso reside a liberdade verdadeira do ato em que essa força se mantém, evidente desprendimento verdadeiro e a segurança do movimento. O amor conjugal revela seu caráter histórico mediante seu processo de assimilação; exerce-se no vivido, que recupera para si: não é, pois, um testemunho desinteressado dos sucessos, nos quais, pelo contrário, intervém essencialmente. Em suma, vive sua própria evolução. Sem dúvida, o amor romântico recupera o vivido, como quando o cavalheiro envia à sua amada as bandeiras e outros troféus ganhos em combate; porém, apesar de o amor romântico poder imaginar que transcorre um lapso suficiente para efetuar todas essas conquistas, não pensaria, não obstante, em dizer que o amor teve uma história. A maneira prosaica de ver vai ao extremo oposto: concebe que o amor tem uma história, em geral curta, e tão miseravelmente terrena que o amor deve de pronto guardar suas asas para calçar chinelos. O amor, que se concebe como uma experiência, recebe também uma espécie de história; despojado, porém, de um a priori verdadeiro, carece também de continuidade e reside simplesmente no arbítrio do experimentador, arbítrio que é, por sua vez, seu próprio mundo e o destino que o preside. De modo que o amor objeto de experiência vê-se levado a informar-se do estado do sentimento e experimenta uma dupla alegria: quando o resultado confirma o cálculo e quando esse resultado se mostra muito diferente do que se esperava. Nesse último caso está igualmente satisfeito, porque encontra no imprevisto matéria de inesgotáveis combinações. Em troca, o amor conjugal dispõe-se de um a priori, porém, também, de uma constância intrínseca cuja força é idêntica à lei de movimento, quer dizer, a resolução. Nesta, encontra outro elemento, porém. delineado ao mesmo tempo que a dificuldade superada; ali é o outro interiorizado, ou o exterior refletido no interior. O histórico consiste na aparição daquele outro que recupera seu valor e que, ao fazê-lo, mostra como se não o tivesse: de sorte que o amor, saindo experimentado e purificado desse movimento, assimila-se ao vivido. O que não se comporta como experimentador não saberia dizer como surge esse outro elemento; não obstante, o amor, em seu a priori, triunfou ao mesmo tempo que tudo isso, sem sabê-lo. O Novo Testamento diz em alguma parte que todo o dom é bom. sempre que se o receba era ação de graças. A maior parte dos indivíduos está perfeitamente disposta ao reconhecimento quando recebe de presente uma boa coisa, porém, exige, ao mesmo tempo, que se lhes deixe decidir que presente é o bom. No que mostram sua falta de abertura. Em troca, a outra ação de graças é verdadeiramente triunfante em seu a priori, posto que encerra um vigor eternamente sadio, ao qual não poderia afetar nem sequer um dom mau, não porque saiba colocá-lo à margem, e sim porque temos audácia, o sublime valor pessoal de atrever-nos a dar graças. O mesmo ocorre com o amor. Aqui não poderia deter-me em todas as jeremiadas que, em teu enfado, tens sempre nos lábios para edificação dos afortunados; e espero que dessa vez te domines, posto que te achas ante um marido de quem não tens o menor pretexto para divertir-se à sua custa, confundindo-o. 4. Escrúpulos contra a publicidade do vínculo Seguindo a evolução do amor, porém, de seu mistério criptogâmico a sua vida fanerógama, caio em uma dificuldade que, dirás tu certamente, não tem a menor importância. Consegui convencer-te, admitamo-lo, de que o religioso e o ético, que no amor conjugal se apresentam já desde a paixão não se debilitam mutuamente; estás intimamente persuadido disso, e já não tens nada que objetar contra um ponto de partida religioso. Sozinho com tua amada, estás disposto a humilhar-te e a humilhar teu amor perante Deus: estás realmente impressionado. comovido, porém, cuidado, pronuncio uma palavra, a Assembleia (Nome que recebe, nos países protestantes, o conjunto de membros de um templo, ou de uma cidade inteira) e neste instante, como na canção, tudo se desvanece outra vez. Nunca conseguirás, creio, sair da categoria de interioridade. "A Assembleia, esta bendita Assembleia cuja multiplicidade não lhe impede de ser uma pessoa moral; se, além de todas as cansativas qualidades de uma pessoa moral, tivesse também a vantagem de ser uma cabeça sobre os ombros, eu saberia muito bem o que fazer." Como sabes, um louco tinha uma ideia fixa: o quarto em que vivia estava cheio de moscas que ameaçavam asfixiá-lo, e ele, em sua angústia, na fúria do desespero, lutava por sua vida. Assim pareces tu defender tua vida contra um imaginário enxame de moscas, contra o que chamas a "Assembleia". A situação não é, finalmente, tão perigosa, porém, far-te-ei o favor de passar em revista os principais pontos de atrito com a Assembleia. Recordar-te-ei, inicialmente, que a paixão não poderia conceder-se a vantagem de ignorar essas dificuldades, e que a razão disso é a abstração em que se mantém, sem entrar absolutamente em contato com a realidade. Distingues muito bem entre as relações abstratas que tens com o mundo que te rodeia se a abstração suprime a relação. Que seja mister pagar ao cura, ao porteiro e ao juiz, podes resignar-te, porque o dinheiro é um excelente meio de eliminar toda a relação com eles; pois tu confessas teu plano de nada fazer, sem nada receber, nem sequer a ínfima coisa, sem dar ou receber dinheiro. E, a rigor, apesar de nunca te casares, és capaz de dar por saber que pretendes te casar. Nesse caso, não te assombres se a Assembleia se dilata ou se cumpre em ti o temor do homem às moscas! Temes as relações pessoais que, pelas perguntas, cortesias, felicitações, agradecimentos, e inclusive os obséquios, pretendem te impor obrigações que não podem ser saldadas com dinheiro e procuram criar vínculos mil, que sobretudo nessa circunstância, desejarias ver-te livre para entregar-te inteiramente à amada. "O dinheiro, dizes, nos alivia de uma série de coisas ridículas. Permite emudecer as trombetas da Igreja, que de outro modo aturdir-te-iam até o Juízo Final. Pode dispensar que te proclamem esposo autêntico ante toda a Assembleia, quando não queria limitar-se a sê-lo perante uma só pessoa." Essas palavras não são minhas, são tuas. Recordarás da fúria que se apoderou de ti. um dia, ao ver um casamento na Igreja; assim como nas ordenações, o clero presente vem impor as mãos do padre que se consagra, assim também terias querido ver toda a Assembleia dos irmãos vir, num sentimento de terna simpatia, dar ao par o beijo da comunidade; até declarar — que não poderias pronunciar duas palavras, noivo e noiva, sem pensar, no momento solene em que um padre terno, um amigo venerável, se levanta, e pronuncia com profunda emoção, um cálice na mão, essas palavras magníficas. Achavas toda a cerimônia admiravelmente própria para sufocar o erótico, e o preparo dessa cerimônia era tão excessivo a teus olhos, como a inconveniente festa mundana que se segue. Porque "é inconveniente, ridículo e de mau gosto conduzir à mesa estes quase marido e mulher e provocar assim uma reflexão sem profundidade, verdade e beleza, na qual a pessoa se pergunta se é verdadeiramente o decreto da Igreja o que faz esposos os recém-casados". Pareces decidir-te, dessa sorte, por uma boda sem pompa, e não tenho objeções contra isso; de toda maneira, far-te-ei observar que, também nesse caso, és declarado plenamente esposo legítimo. Talvez, porém, suportes melhor a palavra quando ninguém a escuta. De todos os modos, devo recordar-te de que não se diz "ante toda a Assembleia" e sim "diante de Deus e desta Assembleia", fórmula que, assim como não choca por sua limitação, tampouco carece de audácia. Compreendo melhor tuas outras objeções, apesar de as expressares com tua habitual vivacidade, porque estes ataques somente se referem às condições sociais. Nesta matéria, penso que cada um é livre para ter sua opinião, apesar de estar longe de aprovar teu Sprödigkeit, tua expressão de desgosto, mostrar-me-ei tolerante. Sempre estaremos, por princípio, em desacordo sobre esse ponto, porque encontro prazer em viver nas condições sociais dadas, e obter um pouco mais de beleza se se é capaz de fazê-lo, e submeter-me e aceitá-las se não o é. Não vejo absolutamente nenhum perigo para o amor na publicação das admoestações do alto da cátedra; nem creio tampouco que essa publicidade seja prejudicial à assistência, como afirmaste em um dia de excessiva severidade. "Haveria de proibir as admoestações, dizias, porque muita gente, as mulheres, sobretudo, não vão à Igreja mais que para escutá-las, de modo que o sermão perde todo o poder edificante." Teu escrúpulo repousa num pequeno erro: podem acaso tais detalhes atingir um amor sadio e forte? Não tenho, certamente, a intenção de ser o advogado de toda a desordem que reina neste terreno. Quando estou firmemente ao lado da Assembleia, não a identifico com o "honrado público", que, segundo Goethe, "tem a imprudência de crer que tudo que a pessoa faz é para manter a conversação". Outra razão que me explica teu enorme temor por essa publicidade ao som se trombetas, e por todas essas práticas, é teu temor de botar a perder o instante erótico. Sabes guardar tua alma na apatia e imobilidade do pássaro preso, quando estás por iniciar o voo mais belo; sabes que o instante não está no poder do homem, e que o gozo mais belo reside, não obstante, no instante. E és mestre na arte de observá-lo; nada queres antecipar pela inquietude com que o esperas. Porém, quando a um sucesso esperado sê-lhe fixa a flecha precisa, conhecida há muito tempo; quando os preparativos lhe relembram sem cessar, corre-se o risco de "não acertar o alvo". Pelo que se vê que não compreendeste a natureza do amor conjugal, e que conservas uma superstição herética sobre a "coisa primeira". Vejamos, agora, se a Assembleia é verdadeiramente tão perigosa. Não lhe é fácil, repara bem, tomar a forma terrível que teu cérebro enfermo lhe outorga instantaneamente. Porém, além disso, tua vida te pôs em contato ou, melhor dito, em relações íntimas com pessoas cuja lembrança não te angústia, nem perturba o ideal que se encontra em ti; pessoas cujo nome pronuncias em voz alta quando queres induzir-te ao bem, cuja presença enleva tua alma e cuja personalidade é, a teus olhos, uma revelação dos sentimentos nobres e generosos. Molestar-te-ia ter tais confidentes? É, pouco mais ou menos, como se dissesse no terreno religioso: "Desejo de todo o coração continuar em companhia de Deus. De Cristo, porém, não posso suportar que me reconheça como seu, perante seus santos anjos." Por outro lado, tua vida, tua situação no mundo te vincularam com outros a quem as alegrias e as distrações, tão preciosas no curso uniforme dos dias, lhes têm sido parcimoniosamente dadas. Não tem cada família vários desses infortunados no círculo de suas amizades e talvez em seu próprio seio? Não é bom que esses seres, quase abandonados à sua solidão, achem um refúgio em uma família amiga? Para tais pessoas, um casamento seria um fato importante, um pouco de poesia na trama da vida cotidiana, um motivo de alegria em uma grande espera, como é uma grande recordação. Num lar que costumo visitar, vejo frequentemente uma velha senhorita, da idade da dona da casa: ela recorda o dia das bodas de sua amiga como se fosse ontem, e talvez, devo dizê-lo, com mais frescura que ela. Pode descrever o vestido da noiva, recordar as menores circunstâncias desse dia. Privaria todas essas boas pessoas de uma ocasião que podes dar-lhes de alegria? Acolhamos junto a nós os carentes de amor. Quantos matrimônios se celebram no maior mistério para melhor saborear seu júbilo, e aos quais talvez o tempo lhes traga decepção, ou tão pouca conformidade que se se inclinaria a dizer: "Pelo menos, se sua celebração houvesse sido um dia feliz, teria, afinal, alguma significação." Detesto tanto como tu, sabes, a indiscreta curiosidade de que é objeto a família; porém, sei afastá-la de minha vida, e sei também elevar-me acima dessas miudezas. E tu, com teu espírito mordaz e combativo, pronto para atirar, não saberia defender-te? De todos os modos, não quero prescrever-te limites; afasta o que te enfastia; porém, não esqueças meu princípio, e não esqueças de pô-lo em prática. Mais ainda: lembra que a arte, quando a coisa é possível, consiste em salvar a esses importunos, e não em defender-se a si mesmo. Poderia recomendar-te como uma regra de prudência: quanto mais se afasta a pessoa, mais incita aos demais a ser importunos, e em particular, a esses ociosos em busca de mexericos. Tu o sabes, perfeitamente, tu que frequentemente te divertes em espicaçar lhes a curiosidade para deixar logo toda a história desvanecer-se na lama. Poderia recomendar-te como simples regra de prudência, porque respeito demasiado a verdade que exponho para menosprezá-la aqui. Toda situação estabelecida comporta sempre um pouco de polêmica, sobretudo se é sadia: é esse o caso de toda a união conjugal, e tu sabes que me causa horror o relaxamento familiar, a lamentável communio bonorum capaz de fazer crer que, a pessoa casando-se, casou-se com toda a tribo. Se o amor conjugal é uma verdadeira paixão, tem, também, seu mistério; não deseja expor-se aos olhares, nem passa a vida montando guarda nas famílias; não se alimenta com uma troca de cumprimentos ou uma adoração, como que vemos instalar-se era certos lares. Sabes perfeitamente disso tudo, e tens razão para usar teu sarcasmo: continua fazendo-o. Não necessito compartilhar de tuas opiniões, sobre muitos pontos, e creio que nada perderiam, nem a boa causa nem tu mesmo, se me deixas, às vezes, como o guarda florestal cheio de experiência e solicitude, não somente indicar as árvores apodrecidas, com cortes de machado, como também, pôr uma cruz em outros lugares. 5. A medida necessária de mistério Não penso, por certo, em fazer do mistério a condição absolutamente indispensável para conservar a estética no matrimônio; não preconizo, de modo algum, que se necessite buscar o mistério, persegui-lo, e somente gozar com o prazer do segredo absoluto. Uma das ideias favoritas da paixão consiste em refugiar-se em uma ilha deserta. Frequentemente rimo-nos dela, e não me unirei aos ferozes iconoclastas de nosso tempo. O erro da paixão está em crer que não pode realizar-se senão fugindo, e isso se explica pelo caráter da paixão, desprovida de história. A arte consiste em passar à multiplicidade, ainda que conservado o segredo. Também aqui eu poderia deixar assentado como regra de prudente conduta que o mistério só assume sua verdadeira energia, mesclando-se à sociedade, cuja resistência é necessária para arraigá-lo mais profundamente. Abster-me-ei de fazê-lo, pela mesma razão que a anterior, e, além do mais, porque reconheço na relação social uma coisa que tem força de realidade. É necessário, porém, habilidade: então, longe de esquivar-se a essas dificuldades, o amor conjugal encontra nelas sua proteção e com elas se desenvolve. Além do mais, temos outras tantas coisas que pensar na vida conjugal que quase não há tempo de nos determos em uma política de pormenores. Essa condição principal formula-se no foro íntimo por meio destas palavras, franqueza, sinceridade, vida às claras o mais possível. Porque o princípio vital do amor é tal que o condenaríamos à morte guardando aqui o mistério. Porém, é mais fácil enunciá-lo que o seguir, e necessita-se de coragem para conformar-se com ele na forma consequente; porque tu compreendes que eu penso aqui, mais que em demonstrações de que se tem cheia a boca, naquelas uniões em que a pessoa se casou com um vasto círculo de família. Subentende-se que não se pode falar em vida às claras, senão onde também se pode falar em vida às ocultas; porém, a dificuldade da primeira é medida pelo grau da segunda. É necessário coragem para mostrar-se tal como se é realmente; para negar-se a iludir, conservando certo mistério; para não acrescentar um milímetro a seu tamanho, quando poder-se-ia fazê-lo somente mantendo-se em silêncio. É necessário coragem para querer ser sadio e querer o verdadeiro em toda a franqueza e sinceridade. Comecemos, porém, pelas coisas de somenos importância. A propósito de um jovem casal que se cria obrigado a "encerrar seu amor nos estreitos limites de três exíguos cômodos", empreendeste uma pequena excursão ao reino de fantasia, tão próximo, além do mais, do local de tua residência habitual, que se poderia perguntar se se tratava na verdade de uma saída. Com o mais minucioso cuidado, o mais refinado gosto, te aplicas então a descrever um futuro conforme tuas esperanças. Participo com prazer, como sabes, de experiências desse gênero; e Deus seja louvado, quando uma carruagem principesca puxada por quatro cavalos reluzentes me abandona, sou bastante menino para imaginar-me, eu mesmo, viajando nela; e bastante ingênuo também, quando sofro um desengano, para ver que é um outro quem desfruta dessa aventura; e bastante cândido, finalmente, para aborrecer-me porque outro tem mais de um cavalo, quando meus meios não me permitem mais. De modo que tu te vias casado e feliz; havias conservado teu amor incólume apesar de todas as dificuldades, e pensavas criar um ambiente para conservar pelo maior tempo possível a frescura desse amor. Tua conclusão foi que necessitavam de mais de cinco cômodos, e eu te aprovei, posto que necessitavas de cinco como solteiro. Não te seria agradável ceder um a tua esposa, preferias deixar-lhe quatro para habitar o quinto, em lugar de compartilhar um só. Depois de pesar esses inconvenientes, continuaste: bem, fico, pois, com três cômodos, como ponto de partida, e não somente no sentido filosófico, porque não penso em voltar-me sobre ele, e sim afastar-me o mais possível. E inclusive, tinha-lhes uma aversão tão grande que, não podendo dispor dos outros que consideravas necessário, preferias viver como um vagabundo sob o vasto céu, o que ao fim achaste tão poético que necessitaste de muitas outras para te conformar. Eu tentei chamar-te à ordem, mostrando que te abandonavas a uma das habituais heresias da paixão, desprovida de história, e foi um verdadeiro prazer para mim acompanhar-te através das salas ventiladas, de teto alto, de teu palácio aéreo; por entre os salões na penumbra; pela sala de jantar iluminada por reluzentes lustres e espelhos, para chegar à pequena sala cuja porta se abria para o balcão, deixando penetrar o sol da manhã e o perfume das flores que se abriram para teu amor e para ti. Deixar-te-ei ali, em meio tua audaz excursão; ali onde, como um caçador de cabras selvagens, dás cabriolas. Contentar-me-ei com mostrar o princípio sobre o qual repousam tuas disposições. Teu princípio, nessa ocasião é, evidentemente, o mistério, a mistificação, o capricho refinado: não bastava que as paredes de tuas salas estivessem cobertas de espelhos, mas sim que o mundo mesmo de tua consciência devia de forma semelhante participar dos múltiplos jogos da reflexão. Não somente em todo o edifício, mas também em cada porção de teus pensamentos, querias achar a princesa e tu, tu e a princesa. Todos os tesouros do mundo, porém, não bastariam para isto; é necessária a intervenção do espírito, a cujos recursos se apela com prudente moderação. É preciso, pois, que os amantes sejam tão estranhos um ao outro que a familiaridade encontre nisto seu sabor; e tão íntimos que as divergências de caráter sejam obstáculos capazes de estimular. A vida conjugal não deve ser um confortável pulo da cama, nem um colete que estorve os movimentos; não deve ser uma tarefa que exija trabalhos preliminares, porém, tampouco um bem-estar dissolvente; deve ter a marca do imprevisto, ainda deixando adivinhar uma arte secreta; não se trata de uns olhos baixos que contam dia e noite os pontos do tapete que cobre o piso da sala, porém, é bom que uma sombra de atenção observe em sua borda um pequeno sinal misterioso. E, se bem que não convenha que cada dia, ao sentar-se à mesa, os cônjuges vejam suas iniciais sobre o bolo; pode permitir-se, contudo, um pequeno sinal telegráfico. Trata-se de ter tão longe quanto seja possível o ponto em que se sente que se roda em torno do mesmo círculo, o ponto em que começa a repetição; se não é inteiramente possível, importa então haver organizado a própria vida de modo que se possa introduzir nela uma variação. Não dispomos senão de certo número de textos: se nos empenhamos a empregá-los todos no primeiro domingo, não resta nada para o resto do ano, nem sequer para o primeiro domingo do ano seguinte. Deve-se, tanto quanto seja possível, guardar, um para o outro, um certo mistério; e na medida em que ambos se revelam pouco a pouco, tem-se que utilizar tanto quanto seja possível as circunstâncias fortuitas, de modo que a revelação seja relativa, suscetível de várias interpretações. Temos que nos guardar de toda a saciedade e de todo o enfado. Tu querias habitar a planta desse palácio principesco que devia achar-se em um formoso local, apesar de próximo de capital; e à tua esposa reservavas a ala esquerda do primeiro piso. Sempre invejaste os esposos das famílias reais, a fortuna de viverem separados; porém, o que achava, a teus olhos, o deleite estético dessa vida da corte era um cerimonial que pretende prevalecer sobre o amor. Um deles se anuncia, espera um momento e é recebido. O protocolo em si mesmo não carecia de encanto, porém, somente assumia sua beleza quando se convertia em um jogo dos divinos jogos do amor, quando um favor pode também parecer uma defesa. O amor mesmo devia ter toda sorte de limites que deviam ao mesmo tempo incitar a franqueá-los. De modo que tu habitavas a planta baixa, onde tinhas tua biblioteca, teu bilhar, tua sala de estar, de jantar e dormitório; e tua mulher ocupava o primeiro piso onde se encontrava vosso toral coyugale, um amplo quarto com banheiros, um de cada lado. Nada devia recordar que estáveis rasados; e não obstante o ambiente devia ser tal que nenhum solteiro poderia estar instalado desse modo. Ignoráveis vossas ocupações recíprocas, e isso não para estar ociosos, ou para esquecerdes um do outro, mas sim para imprimir o máximo valor a cada contato, para afastar o instante mortal em que, encontrando-se vossos olhos, sentísseis tédio. Não passearíeis com o passo lento e solene dos esposos de braços dados; por muito tempo, ainda, jovem enamorado, tu seguirias de tua janela seu ir e vir pelo jardim, buscando-a com os olhos e consumindo-te com a contemplação de sua imagem quando ela tivesse desaparecido. Deslizarias atrás dela; às vezes, inclusive, ela se apoiaria em teu braço, porque tem sua beleza esses hábitos consagrados no mundo e que expressam um sentimento preciso; dar-lhe-ias o braço para render-te à beleza desse costume, e em meio a zombarias, para passearem como verdadeiros esposos. Não terminara eu de dizer-te os preciosos refinamentos de teu fértil cérebro nessa suntuosidade oriental que já me fadiga, e que me faz desejar a volta aos três pequenos cômodos que rechaças tão orgulhosamente. Se, de qualquer maneira, houvesse alguma beleza estética em todo esse quadro, deveríamos buscá-la no pudor amoroso que deixas adivinhar, e em teu empenho em não considerar nunca a amada como definitivamente conquistada, e sim que deve ser conquistada sem cessar. Em si, esse último ponto é justo e verdadeiro; porém, tu não te propões a cumpri-lo, de modo algum, com a seriedade própria da erótica de modo que tampouco essa questão está resolvida. Aferrar-te-ás sempre ao imediato como tal, por uma determinação de ordem natural, sem poder permitir-lhe que se transfigure em uma consciência comum; porque isso é o que eu chamava, a um momento, a franqueza e a vida a descoberto. Temes que, uma vez dissipado o mistério, desapareça também o amor; creio, pelo contrário, que o amor somente começa quando o mistério se dissipa. Temes que não se saiba bem o que se ama, e tens o incomensurável por um fator de importância absoluta; entendo, em troca, que para amá-la verdadeiramente é preciso saber o que se ama. Acrescenta que lhe falta a toda a tua ventura uma bênção, posto que ignoras as adversidades; e como essa carência é lamentável, também é bom, pois se quisesses realmente conduzir alguém segundo tua teoria, que não seja conforme a verdade. Voltemos, pois, à vida real. Ao insistir em que as adversidades são inerentes ao estado conjugal não pretendo, por certo, que tenhas direito de ver o matrimônio como uma escola de contratempos. Como demonstrei, a resignação implicada na resolução comporta o reconhecimento de possíveis adversidades, sem que estas tenham tomado forma precisa ou um caráter angustioso, posto que, pelo contrário, a resolução as supera. Ajunta-se a isso que a adversidade não é vista por fora e sim por dentro, em sua reflexão sobre o indivíduo a qual pertence à história comum do amor conjugal. O mistério, como vimos, chega a ser uma contradição quando não envolve alguma coisa misteriosa, e é uma puerilidade quando o que encerra não consiste senão em devaneios amorosos. É preciso que o amor tenha verdadeiramente o coração aberto para que nos tome eloquentes num sentido muito mais profundo do que se diz comumente do amor (posto que também o sedutor possa ser eloquente); é preciso que o indivíduo tenha levado tudo à consciência comum, para que o mistério ganhe força, vida e sentido. Porém, é preciso para isso executar uma ação decisiva, e coragem para tanto, ou o amor conjugal cai no precipício. Porque com esse ato, mostramos que amamos outro ser e não a nós mesmos. E como demonstrá-lo senão provando que vivemos para o outro? Porém, como se vive para isso, senão provando que não se vive para si mesmo? Enquanto viver para si é, por assim dizer, a fórmula mais geral do mistério que possui a vida individual quando se mantém cerrada sobre si mesma. Amar é entregar-se; porém, a entrega não é possível senão quando se sai de si mesmo; como seria compatível, pois com o desdobramento sobre si, quando pretende-se continuar fechado em si mesmo? "Manifestando-se desta forma, sai-se perdendo", dizes. Entendo-te perfeitamente; sai-se perdendo, quando se tira vantagem de se fazer de misterioso. Porém, se quisesses ser lógico, deverias ir muito mais longe, e desaconselhar não só o matrimônio como toda a aproximação; e observa então a que se reduziriam as comunicações telegráficas de teu cérebro profundo. A leitura mais interessante é aquela em que o leitor é, em certa medida, criador. Do mesmo modo, a verdadeira arte de amar consiste em produzir à distância uma impressão perigosa para a Interessada pelo fato de que, não tendo de que criar seu objeto, ela se enamore de sua criação; porém, esse procedimento, longe de ser o amor, nada mais é que a frivolidade da sedução. Em troca, o que ama perde-se no outro; porém, perdendo-se e esquecendo-se, se manifesta ao outro; esquecendo-se de si mesmo converte-se em pensamento do outro. O que ama não deseja ser confundido com outro, nem com vantagem nem com detrimento seu, e faltando esse respeito por si mesmo e pelo ser amado, não se ama. De modo que o mistério tem razão, geralmente, em uma intimidade sem importância, na qual pretende-se acrescentar um palmo à sua altura. Crê-se, geralmente, que essa humilhação do amor não se encontra senão nas novelas e comédias, ou deve ser classificada entre os enganos e os convencionalismos do dia das bodas. Porém, não é assim: é uma educadora de todos os instantes. Educa-nos em lições verdadeiras e proveitosas cada vez que queremos medir o amor com outra coisa que consigo mesmo. Ainda quando o ser mais insignificante do mundo ame o espírito melhor dotado, este último, se a verdade habita nele, sentiria que todos os seus dons deixam, sem dúvida, um abismo aberto; e que a única maneira, para ele, de satisfazer a exigência que implica o amor de que é objeto consiste em responder a esse amor. Não esqueçamos nunca de que não se pode operar com grandezas heterogêneas. O que sentiu verdadeiramente tal coisa, este verdadeiramente amou; e certamente, não temeu tampouco despojar dessas vantagens sem valor para ele, pelo menos como tais. É mister haver-se empobrecido no mundo para conquistar a certeza de possuir o verdadeiro bem; é preciso havê-lo perdido todo, para poder ganhá-lo todo. Proclamo, pois como Fenelon: "Crê no amor, que quer tudo e tudo dá." E é, na verdade, um maravilhoso sentimento, que nos exalta, e que é capaz de nos brindar com uma indizível felicidade, essa de deixar que todas aquelas vantagens de detalhe empalideçam e se esfumem, como fantasmas, ante o poderio infinito do amor. É uma operação tão bela no instante infinito em que se cumpre, como o é a sucessão; e nesta, é agradável estender a mão para apagar o tempo. Direi ainda mais: que, no amor verdadeiro, o verdadeiro entusiasmo dessa extinção do próprio eu consiste em desejar o mundo inteiro. não para ser feliz com ele, e sim para fazer dele uma distração a mais nos passatempos do amor. E, verdadeiramente, quando abrimos a porta aos detalhes de ordem finita, somos igualmente bobos e ridículos se pretendemos ser amados por ter a melhor inteligência, o maior talento, porque sejamos o artista mais genial da época ou usemos a mais bela barba. Sem dúvida, e é natural, essas expressões e esses sentimentos pertencem igualmente à paixão, e somente a assombrosa inconstância de que sempre te jactas me obriga a tocar nesse ponto. A paixão é capaz de desejar com um pathos sobrenatural, porém, esse desejo se reduz facilmente a um "se" condicional, vazio de conteúdo; e nossa vida não é tão paradisíaca como para outorgar o Senhor o mundo inteiro a cada par, para que o governe à sua vontade. O amor conjugal está mais bem informado: não se move para fora, e sim para dentro; ali se vê logo em presença de um vasto mundo, porém, reconhece também que cada submetimento de seu eu. por mais fraco que seja, somente pode ser medido pelo infinito do amor; e apesar da ideia dolorosa de tantos obstáculos por vencer, tem-se também a coragem de sustentar essa luta. Tem-se até a audácia de emular seus paradoxos: não chega quase a alegrar-se de o pecado haver entrado no mundo? Emprega a mesma audácia, porém, em outro sentido, posto que tem a coragem de resolver os paradoxos. Pois se o amor conjugal sabe, como a paixão, que todos esses obstáculos se superam no momento infinito do amor, sabe, igualmente, e este é seu momento histórico, que tal vitória deve ser alcançada e não se dá por si mesma. E que se essa luta é um jogo, assim como o jogo, sendo luta, é também jogo. Assim a batalha no Walhalla, que era um combate de vida ou de morte e sem dúvida um jogo, posto que os adversários se revezavam continuamente, rejuvenescidos pela morte. Sabe ademais que essa esgrima não é um duelo arbitrariamente decidido, e sim um combate livre sob os auspícios divinos, e não sente necessidade alguma de amar mais de um ser, encontrando a sua felicidade em amar uma só pessoa, e nenhuma necessidade de amar mais de uma vez, porque encontra nesse único amor toda a eternidade. Crês tu, diz-me, que a esse amor sem mistério falta beleza? Que não poderia enfrentar o tempo, e está necessariamente condenado a fundir-se na rotina diária? Crês que o fastio alcançar-te-ia logo, como se o amor conjugal não tivesse uma substância eterna, da qual nunca se cansa, e que adquirimos sempre sem cessar, ora com beijos e com devaneios, ora com angústia e temor? "Bah, dizes, se assim é, deve-se renunciar a todas essas pequenas gentilezas e surpresas." Não me parece de modo algum necessário que as abandonem porque não pretendo que o amor conjugal tenha que estar sempre boquiaberto, e nem sequer falar em sonhos; pelo contrário, todas essas gentilezas e surpresas não têm sentido senão quando se acompanham de uma total franqueza, porque nela, na segurança e confiança que oferece, adquirem esses intermédios todo o seu relevo. Se cremos, porém, que a natureza do amor e sua verdadeira felicidade consistem em uma sucessão de pequenas surpresas, se pensarmos que há beleza no adereço e miserável refinamento, na inquietude com que uma pessoa espera a todo momento ver surgir uma surpresa, ou as prepara para si mesma, permite-me decidir que essa atitude carece por completo de beleza. E acrescentarei que é mau sinal quando um matrimônio não pode mostrar mais troféus que uma secrétaire atulhada de bombons, de taças, de chinelos bordados e outras gentilezas preciosas. Capítulo V O MATRIMÔNIO, CATEGORIA ESTÉTICA DO AMOR 1. O princípio vital do "bom entendimento" entre os esposos Não é raro ver uniões que praticam o sistema do mistério, porém, nunca vi reinar a felicidade. Como poderia ser casual, vou examinar o que se acha, comumente, na base desta prática: ponto importante para mim, porque a união dotada de beleza estética é sempre união feliz, e, portanto, se pudesse edificar-se sobre essa base um matrimônio venturoso, eu poderia mudar minha teoria. Não omitirei nenhuma das formas em que se pratica esse sistema; devo analisá-las com a maior exatidão, e deter-me-ei sobretudo em uma delas que, na casa onde vi praticá-la, alcançava uma virtuosidade assombrosa. Concordarás comigo que o sistema do mistério procede, geralmente, da parte masculina. E, apesar de ser sempre insensato, se o suporta melhor que se é uma mulher quem exerce semelhante dominium. A forma mais feia é naturalmente a do despotismo puro: nela a mulher é uma escrava, uma serva para todo o trabalho. Tais uniões nunca são felizes por mais que os anos tragam um aturdimento em que se acaba por comprazer-se. No extremo oposto, outra forma mais bela se distingue por uma solicitude intempestiva. A mulher é fraca, se diz; não pode suportar o peso dos afãs e das contrariedades, e deve-se rodeá-la da caridade que se deve aos fracos e inválidos. Erro, falsidade! A mulher é tão forte quanto o homem, e talvez mais. E acaso a envolves realmente com amor quando a humilhas assim? Quem te permitiu rebaixá-la? Como pode tua alma estar tão cega que considere tua natureza mais perfeita que a sua? Não tenhas segredos para com ela. Se é fraca, se não pode suportar o peso, que importa, posto que pode apoiar-se em ti que tens força por dois. Não, o que não podes suportar é que não tens tal força; é a ti a quem falta, e não a ela. Pode ser que a tenha mais que tu, o que te cobriria de confusão, e não terias força para suportá-lo. Porém, acaso não te declaraste disposto a compartilhar com ela os bons e os maus dias? E não é fazer-lhe um agravo, então, não a iniciar nas coisas desagradáveis? Não é causar injúria ao mais nobre da tua alma? Talvez seja fraca, e sua aflição nos atinja mais ainda que a situação em si; porém, se compartilhas com ela, essa solidariedade a salvará. E tens o direito de roubar-lhe um meio de salvação? E de onde tirar tu essa força: não está a mulher tão próxima de Deus como tu mesmo? Queres tirar-lhe a ocasião de encontrar a Deus do modo mais íntimo e profundo, isso é, através da dor e do sofrimento? E acaso sabes se, no silêncio, ela não sofre tristeza e inquietação e se isto não perderá sua alma? Talvez não se trate de franqueza e sim de humildade: talvez creia ela ser seu dever carregar tudo isso. Sendo assim tu foste a ocasião que lhe permitiu desenvolver suas forças, porém, não segundo teu desejo ou tua promessa. Ou, por último, para servir-me de uma palavra um pouco forte, não a tratas como uma concubina? Porque pouco importa para ela que não sejas polígamo. E não é duplamente humilhante para ela observar que, se bem que a ames, isto se dá não só porque tu és um soberbo tirano como também porque ela é de natureza inferior? Frequentei por algum tempo uma casa onde pude ver o sistema de silêncio aplicado com uma arte que raiava ao refinamento. O marido muito jovem e realmente bem-dotado, com uma inteligência superior a uma natureza de poeta, era demasiado indolente para dar-se ao trabalho de escrever; em troca, sabia, com uma extraordinária delicadeza, impregnar a vida cotidiana de poesia. Sua mulher, jovem, não carecia de espírito, porém, tinha um caráter algo comum, e ele viu nisso uma tentação. Observava como sabia de mil modos despertar e alimentar nela todo o entusiasmo da juventude. Enchia de encantamento poético todo o ser de sua esposa e a vida conjugal. Tinha os olhos atentos para tudo: quando ela olhava em torno não reconhecia seu ambiente, porque ele intervinha em tudo, porém, como o dedo de Deus na história: indiretamente e sem deixar traços. Qualquer que fosse o rumo dos pensamentos dela, já estava ele ali, e a esperava. Como Potenkin, sabia embelezar as paisagens, especialmente as que deviam alegrá-la depois de uma pequena surpresa, uma ligeira resistência. Fazia de sua vida doméstica uma história da criação em miniatura, e assim como o homem é, no vasto mundo, o objeto para o qual todas as coisas tendem, do mesmo modo ela veio a ser o centro de um círculo mágico, em que gozava, por certo de toda a liberdade, posto que o cálculo se estendia na direção de seus movimentos, e não havia limites dos quais pudesse dizer: é aqui, e não mais além. Ela podia agitar-se tanto quanto quisesse, e até onde quisesse, o círculo retrocedia, porém continuava a existir. Ela estava como um menino numa espécie de cesta que se movia, tecida, não com vime, mas com suas esperanças, seus sonhos, seus suspiros, seus desejos e seus temores; em suma, essa cesta era formada de toda a substância de sua alma. Ele, de sua parte, movia-se com grande desembaraço nesse mundo de sonhos e sem ceder um ápice de sua dignidade, reivindicava e exercia sua autoridade de amo e senhor. Se ele houvesse faltado um momento a essa dignidade, ela teria visto nascer um funesto pressentimento, que lhe teria dado a chave do mistério. E ele não só ocultava do mundo esses cuidados solícitos, os ocultava dela também. Porém, sabia perfeitamente que ela não havia recebido dele nenhuma impressão a não ser as que ele desejava; e sabia que lhe seria fácil suprimir com uma só palavra o encantamento. Afastava tudo aquilo que pudesse afetar desagradavelmente a sua esposa. Qualquer que fosse a circunstância adversa que se apresentasse, começava por dirigir-lhe perguntas hábeis, e inclusive lhe antecipava francamente, fazendo-lhe uma exposição que ele mesmo havia composto, adoçando o preciso e vago, segundo a impressão que desejava suscitar. Era orgulhoso, terrivelmente lógico: amava-a, porém no profundo silêncio da noite, ou em um instante fora do tempo, não podia impedir-se de dizer orgulhosamente: ela me deve tudo. Seguiste com interesse essa narração, não é certo? Não obstante a imperfeição de minhas palavras, porque descreve um quadro que te é agradável e que tratarás de compor um dia, se te casares. Era feliz esse casal? Era, se quiseres assim, porém, um sombrio fatum planava sobre essa felicidade. Imagina se ele cometesse um erro, ou que ela, num determinado momento, tivesse uma suspeita; creio que nunca o haveria de perdoar, porque sua alma era demasiado altiva, demasiado orgulhosa, para deixar-se dizer que ele havia agido por amor. Nós temos uma velha maneira de dizer acerca das relações dos esposos e desejo recordar-te (em geral, encanta-me suster a revolução ou melhor ainda a guerra santa, em que o matrimônio legítimo, palavra tão simples e pobre, porém, tão verdadeira e rica, se esforça por conquistar o reino do qual, nas novelas, são expulsos os esposos). Estes, dizemos, devem "viver em bom entendimento". O mais frequente é que o dito venha na negativa: esse casal "não vive em bom entendimento". Então se quer significar que os esposos não podem suportar-se, que se golpeiam e se mordem ou lá sei eu mais o quê. Porém, tomemos a forma afirmativa. Os esposos que recordei vivem "em bom entendimento", dirá, sem dúvida, o mundo; dirá o mundo, porém, tu não. Como poderiam fazê-lo quando não se compreendem? O "bom entendimento" não supõe pois que um deles deve saber da solicitude que o outro lhe consagra em seu amor? No caso a que me referi, o esposo tirou de sua mulher, se não outra coisa, pelo menos a ocasião de estar-lhe reconhecida com o que ela havia encontrado, e somente, então, repouso para seu espírito. Não é bela essa expressão em sua simplicidade: "viver em bom entendimento"? Ela supõe que se compreendem de maneira mais clara e distinta (já vês, aquele vocabulário da vida conjugal sabia muito bem o que dizia, e não encontra dificuldades sobre o sentido, que agora, ao contrário, devemos precisar). E ela o afirma como coisa que se subentende: o adjetivo o demonstra enfatizando-o muito especialmente; se não, bastaria dizer que devem viver "em entendimento." Que significaria senão achar sua alegria, sua paz, seu repouso, e em suma, sua vida, nessa concórdia? Já vês que o sistema do segredo não conduz ao matrimônio feliz, nem, por conseguinte a um matrimônio que ofereça um caráter estético de beleza. Não, meu amigo: a franqueza, sinceridade, a vida às claras, a concórdia, tudo isso constitui o princípio vital do matrimônio, sem o qual não há beleza ou verdadeira moralidade, porque então se separa o que o amor une: o sensível e o espiritual. Meu matrimônio somente tem moralidade, e por conseguinte, beleza estética, quando aquela, cuja vida compartilho neste mundo, na união mais tema, está igualmente próxima a mim no domínio do espírito. E vós, homens orgulhosos, que acaso gozais em silêncio vosso triunfo sobre a mulher, vos esqueceis antes de tudo quão insensata é a vitória conseguida sobre um ser mais fraco, esquecendo que o homem se honra, honrando a que é sua mulher, e, de outro modo, se menospreza. O bom entendimento entre os esposos é, pois, o princípio vital do matrimônio. Frequentemente ouvimos de pessoas de experiência os casos em que não se deve aconselhar o matrimônio. Deixemo-los discutir esses casos, esgravatar e ruminar como quiserem: em geral seus discursos não valem grande coisa. Limitar-me-ei a citar um caso somente: o de uma vida individual tão complicada que não pode manifestar-se. Se a história dessa vida interior comporta um fator que tu não podes expressar, se tua vida te fez depositário de segredos, se, de uma maneira ou de outra, te envolveste em um segredo do qual não é possível subtrair-te sem que ele te custe a vida, não te cases nunca, porque te sentirás ligado a um ser que nem sequer suspeitará do que se passa em ti, e então teu matrimônio será uma coisa feia, ou se o ser tomar conhecimento de teu estado, sentirá por ele temor e angústia, e a cada instante, verá essas sombras em sua frente. Tua companheira não se decidirá nunca a fazer-te a mais discreta pergunta, porque temerá ferir-te; renunciará à. curiosidade que a impulsiona à angústia, porém não será feliz, nem tampouco tu. Se há tais segredos, essa inibição que nem o amor sabe sobrepor é legitimamente fundada; não posso averiguá-lo, somente aplico meu princípio e, quanto a mim, não tenho segredos para com minha mulher. Poderia crer-se que nunca pensou no matrimônio aquele que, além de outras inquietações possíveis, fizesse de um doloroso segredo sua ocupação cotidiana. Não obstante sucede às vezes, e um tal homem é talvez o que tenta mais perigosamente uma mulher. Como, porém, citei o mistério e o bom entendimento como os dois aspectos de uma só e mesma coisa, e a esta como o essencial do amor, como condição absoluta para preservar a estética do matrimônio, exponho-me à reprovação de parecer esquecer "o fator sobre o qual tanto insistes, como o estribilho de uma canção": o caráter histórico do matrimônio. Não obstante, graças a teu mistério e à tua objeção bem calculada, esperas suportar o tempo: "porque, tão logo os esposos começam, para benefício real, a contar sua pequena ou grande história, logo chega o momento em que dizem x, y, z, a história terminou." Meu jovem amigo, não te advertes que, para formular semelhante objeção, é preciso que te aches em uma posição falsa. Graças a teu mistério, tens em ti uma determinação de tempo, e então realmente trata-se de sofrer uma determinação de eternidade, tanto que toda a emulação se torna impossível. Também é um erro, ou uma arbitrariedade, entender essa manifestação no sentido de dois esposos que passaram uma dezena de dias transmitindo-se seu curriculum vítae, e cujo silêncio de morte, mais tarde, só interromper-se-ia com a conhecida história: "... e como se diz em algum conto, enquanto isto sucedia, o moinho fazia: clip-clap, clip-clap." O caráter histórico do matrimônio faz, precisamente, com que esse entendimento se estabeleça de uma vez por todas, na exata medida em que é um devenir constante. Ocorre aqui, como na vida individual, pois quando a pessoa tem uma clara consciência individual, quando teve o valor de ver-se a si mesmo, o resultado é que a história não termina: somente então começa, somente então adquire um sentido, pois em cada momento particular vivido está em referência a visão de conjunto. Assim com o casamento. Na manifestação que constitui, a imediatez da paixão acaba, não porque se tenha perdido, mas sim porque passou à consciência dos esposos. Motivo pelo qual a história começa: o detalhe em referência à consciência comum, que encontra em tal aproximação sua felicidade, termo que respeita, sem dúvida, o caráter histórico do matrimônio, e que é equivalente à alegria de viver, ou ao que os alemães chamam Heiterkeit característico da paixão. 2. Das dificuldades que o amor conjugal tem que enfrentar É essencial, pois, para o amor conjugal, chegar a ser histórico. E quando os indivíduos estão na disposição conveniente, a ordem de comer seu pão com o suor de seu rosto não é, para eles, uma maldição fulgurante; o valor, a força que os anima corresponde ao que há de fundado nessa necessidade de aventuras que induz o amor cavalheiresco a empreender suas proezas. O cavalheiro ignora o temor: também o ignora o amor conjugal apesar de seus inimigos, frequentemente muito mais perigosos. Aqui se abre às minhas observações um grande campo, porém, não quero me introduzir nele. Não obstante, se o cavalheiro tem o direito de dizer que todo aquele que não desafia o mundo inteiro para salvar sua amada não conhece o amor cavalheiresco, também o esposo está autorizado a dizê-lo. Devo recordar, porém, constantemente que toda vitória semelhante do amor conjugal comporta uma beleza estética ao triunfo obtido pelo cavalheiro, porque obter sua vitória assegura, ao mesmo tempo, a glorificação de seu amor. Nada teme, nem sequer as pequenas variações do sentimento, nem as pequenas inclinações que, pelo contrário, servem de alimento à divina sanidade de seu amor. Até nas afinidades eletivas, de Goethe, Otília, ao menos como possibilidade, está destinada a nutrir o profundo amor conjugal: com quão maior razão um matrimônio enraizado no estético e no religioso não terá a força para sobrepujar semelhantes namoros. Direi até que as afinidades eletivas provêm justamente da prova do resultado a que conduz o sistema do mistério. Este amor não teria adquirido a força de não ter tido a faculdade de desenvolver-se em silêncio. Se Eduardo houvesse tido o valor de falar com sua mulher teria posto fim a este sentimento, e toda a história nada seria senão um divertissement no drama do matrimônio. Para Eduardo e sua mulher, a fatalidade consiste em que se enamoram ao mesmo tempo e isso também é imputado ao silêncio. O marido que tem a coragem de confiar à sua mulher que ama outra está salvo, e salva também sua esposa. Porém, faltando essa franqueza, o marido perde a confiança em si mesmo: o que busca, então, no amor da outra, o que o induz a assim permanecer é o esquecimento; como, a miúdo, o que induz o marido a manter tal situação é, tanto como uma verdadeira inclinação por outra, a dor de não haver resistido ao tempo. Sente que está perdido, e, posto que tal é o caso, precisa de fortes narcóticos para adormecer sua consciência. Falarei de maneira muito geral das dificuldades que tem que enfrentar o amor conjugal, e ver-se-á que não são de importância tal para temer algum inconveniente para a preservação da estética. As objeções procedem, sobretudo, do desconhecimento do papel estético que desempenha justamente o fator histórico; ou de que o romanticismo deve ter, a um só tempo, um ideal estritamente elástico e não romântico. Muitas outras têm sua razão na alegria que sentimos enquanto imaginamos a paixão bailando sobre os rochedos, ao ver o amor conjugal lutando com toda a sorte de empecilhos, vítima das mais miseráveis e deprimentes dificuldades. Além do mais, como no segredo se crê que esses obstáculos são insuperáveis, a causa do matrimônio fica, de fato, resolvida. Contigo, porém, sempre é preciso tomar alguma precaução. Não falo de tal ou qual união, de modo que posso representar o matrimônio como me pareça bem; porém, não basta guardar-me do arbitrário para que tu renuncies, por tua vez, a esse prazer quando, por exemplo, se vê na pobreza um obstáculo para o matrimônio, respondo: 'Trabalha e tudo se resolverá." Porém, como nós evoluímos num mundo de poesia, agradar-te-á talvez invocar tua licença poética, e contestarás: "E como trabalhar: a crise dos negócios e a da marinha privam de pão a uma porção de pessoas." Ou então concedes que não é impossível achar um pouco de trabalho, porém, demasiado pouco. E quando replico que tudo se resolveria com um pouco de economia, argumentas que as tristes circunstâncias elevaram tanto o preço do trigo que é absolutamente necessário despender com recursos que, em outros tempos, permitiam chegar ao fim do mês. Conheço-te demasiado bem: teu maior prazer é contradizer, e logo, quando te divertiste suficientemente, levar teu interlocutor ou assistente a intermináveis discussões sem nenhuma relação com o problema que antes se debatia. Encanta-te conferir a uma ficção totalmente arbitrária uma espécie de realidade, e embarcar em vastas considerações. Se conversasses com outro, que não comigo (porque comigo, comumente, economizas tais razões), acrescentarias sem dúvida a propósito do preço do trigo: "Em tempos de vida tão cara, em que a libra do pão está a oito reais ... E se porventura estivesse ali alguém que quisesses mostrar-te que tua opinião é insustentável, então explicarias que nos tempos de Oluf, o Hambreador, uma libra de pão, e além disso, de pão de casca, custava oito reais e meio, em moeda antiga, e que se nós fazemos conscientes da grande escassez de dinheiro entre o povo nesta época, não custa nada ver ..." etc. E se teu interlocutor te seguisse por esse rumo, teu contentamento seria ainda maior. Inutilmente, o que trouxera à baila o assunto quereria chamar-te à ordem: a confusão seria geral e, no mundo da poesia, tu haverias causado a desdita de um matrimônio. Essa tua faculdade é o que faz tão delicado conversar contigo. Se eu me arriscasse (que terreno tão escorregadio para mim!) a pintar um relato de um matrimônio que resiste vitoriosamente a uma quantidade de adversidades desse gênero, responderias francamente: "Pura ficção: em poesia não é difícil assegurar a felicidade das pessoas e até é o menos que podemos fazer por elas." Se eu tomasse o braço para empreender comigo um passeio pela vida, e se te mostrasse um casal que houvesse lutado o bom combate, responderias sarcástico: "É possível: a tentação é neste caso a pedra de toque, porém, exteriormente, não interiormente, e penso que não exerceu seu poder sobre essas pessoas, porque de outro modo a situação teria sido insustentável." Como se a verdadeira função da tentação na vida fosse sucumbir a ela! Quando tens gana de abandonar-te a esse demônio do arbitrário, é impossível livrar-te dele; e como tu recolhes em tua consciência tudo que fazes, o mesmo ocorre com o arbitrário e desfrutas convertendo tudo em coisa incerta. À primeira vista, pode-se classificar essas dificuldades em exteriores e interiores, sem esquecer o caráter relativo dessa distinção no matrimônio em que, a rigor, todas as dificuldades são interiores. Comecemos pelas primeiras. Não tenho o propósito, nem tampouco o temor de nomear todos os problemas de ordem finita: aflições, humilhações, contrariedades, em suma, todos os elementos de um drama lacrimoso; teus semelhantes e tu mesmo sois, aí como em tudo, arbitrários no máximo grau. Se um drama dessa natureza os obriga a uma viagem até as cavernas do infortúnio, o declarais antiestético e fastidioso. E tendes razão; porém, por quê? Porque indigna-os ver os sentimentos nobres e elevados a sucumbir ante tais adversidades. Se voltais, porém, ao mundo real, se encontrais uma família vítima da metade apenas das desgraças inventadas por algum desses poetas, haveis de manejar a voluptuosidade, reservada aos tiranos, de atormentar os outros, e estremeceis pensando: "É lamentável: adeus à toda beleza, adeus à toda estética." Sois piedosos e inclusive caridosos, ao menos para dissipar vossas ideias tristes. Porém, já desesperastes há muito tempo; vós, não a infeliz família. Se tal é a verdade na vida. o poeta tem razão também em representá-la e razão em fazê-la. Em vossos palcos, ébrios de prazer artístico, tendes a coragem de exigir que o poeta faça triunfar a estética acima de toda miséria. É vosso último consolo e para cúmulo da covardia, o aceitais, vós, a quem a vida não deu oportunidade para provar vossas forças. Sois então pobres e infelizes como o herói ou a heroína da peça, porém, tendes um pathos, uma coragem, um os rotundum do que se derrama à mão cheia de vossa eloquência; alegres, aplaudis o autor e este é vós mesmos, e os aplausos da plateia são para vós, que sois de uma só vez o herói e o ator. Sonhais com os reinos nebulosos da estética; ali sois o herói. Ocupo-me relativamente pouco de teatro; por mim, podeis divertir-vos a vosso gosto: que vossos heróis de cenário sucumbam, triunfem ou afundem sob o piso do cenário, tudo isso pouco me importa. Porém se é verdade, como dizeis e confessais na vida, que poucas vicissitudes são capazes de dobrar um homem a ponto de esquecer que foi criado à imagem de Deus. Queira o Todo-Poderoso, para vosso justo castigo, que todos os autores de teatro somente produzam dramas lacrimosos, cheios de angústia e espanto, o que impedirá a vossa debilidade de descansar numa comédia e vosso caráter de ornar-se com uma força sobrenatural. Que, pelo contrário, os aterrorizem até que tenhais aprendido a crer na realidade das coisas que somente merecem fé transformada em poesia. Confesso que não conheci apenas adversidades em minha vida conjugal, de tal modo que não posso falar de experiência; porém, tenho a convicção de que nada pode arruinar a vida estética do homem, e minha certeza é tão poderosa, tão feliz e profunda, que por ela agradeço a Deus como um dom. E posto que a Escritura menciona tantas graças, eu queria incluir entre elas o valor, a confiança, a fé na realidade, no eternamente necessário triunfo do belo e na ventura Inseparável da liberdade, que converte o indivíduo em colaborador de Deus. Essa convicção é um momento de meu habitus espiritual, e não recebo sua presença na debilidade e na voluptuosidade, graças a excitações enganosas do teatro. A única coisa que posso fazer é dar graças a Deus por toda essa inquebrantável firmeza de minha alma; fazendo-o, porém, tenho também a esperança de ter preservado a minha alma, de ter esse benefício era vão. Já sabes que detesto toda experiência psicológica; contudo, é verdade que um homem pode ter vivido em pensamento muitas coisas que nunca poderá viver na realidade. Às vezes sobrevém momentos de desalento, e quando a pessoa não os provoca para estudar-se arbitrariamente, são também a ocasião de um combate, de uma luta de extrema gravidade; nela se pode adquirir uma segurança que, sem a realidade que somente se poderia adquirir no mundo exterior tem, não obstante, uma importância considerável. Há na vida casos em que o homem demonstra grandeza; e até certa excelência quando dá a impressão de estar só; quando, não separando o mundo da poesia do da realidade, vê este último sub specie poeseos. Lutem diz em algum lugar, em um sermão sobre a pobreza, que nunca soube de um discípulo de Cristo que morresse de fome. Lutem decide assim a questão, e crê, seguramente com razão, havê-la tratado com muita unção e com unção verdadeira. Quando o matrimônio se acha exposto às tribulações do exterior importa naturalmente que as interiorize. Digo "naturalmente", e abordo a questão com audácia; porém, somente escrevo para ti, e nós temos pouco mais ou menos a mesma experiência nesse gênero de adversidade. Se se quer salvar a estética, trata-se, pois, de transformar a atribulação exterior em crise interior. Talvez eu te enfastie ao retornar ao termo estética: crês que é pueril, de minha parte, pretender que a estética se ache entre os pobres e os sofredores. Porém tens te desonrado tanto a ponto de admitir a escandalosa distinção que reserva a estética aos grandes e poderosos, aos ricos e às pessoas cultas, e que deixa aos pobres, em todo o caso, a religião? Seja, não creio que os pobres saiam perdendo com a divisão. Ou não vês que, na medida em que têm o religioso, têm ao mesmo tempo o estético e que os ricos, por estarem desprovidos do primeiro, estão também do segundo? E não tenho citado senão os casos extremos, porém, não é raro ver debater-se em cuidados materiais pessoas que não poderíamos classificar como pobres. Além do mais, certas tribulações desse mundo, como a doença, são comuns a todas as classes. Não obstante, estou certo disso, quando se tem o valor de interiorizar uma adversidade exterior, já a temos superado, por assim dizer; então, graças à fé, no instante mesmo do sofrimento, se opera uma transubstanciação. O marido que sabe lembrar seu amor e que, na hora do perigo, tem a coragem de dizer que não se trata, em primeira instância, de saber de onde receberá o dinheiro, e com que tipo de interesse, e sim, somente com seu amor, do pacto que fez com aquela a quem está ligado e que há de guardar na pureza e felicidade? O que não tem por que forçar-se, nesse aspecto, expondo-se a combates interiores demasiado duros; o que empreende esse movimento seja com o aprumo da experiência adquirida, este triunfou. Conservou em sua união a vida estética, apesar de não ter mais que três pequenos cômodos para constituir seu lar. Não nego absolutamente, pois já escuto tua objeção capciosa, que ao interiorizar assim a tentação exterior, corre-se o risco de agravá-la; porém, os deuses não concedem aos borbotões seus favores maiores, e esse esforço é no matrimônio um fator de disciplina e idealismo. Diz-se comumente que quando se está sozinho no mundo é mais fácil suportar essas calamidades e, até certo ponto, isso é verdade. Porém, essa oração dissimula, frequentemente, uma inexatidão muito grande, porque de onde vem essa facilidade, senão de uma maior propensão a envilecer-se, a levar a corrupção à própria alma sem que isso importe a ninguém esquecer a Deus, deixar que as tempestades do desespero disfarcem os gritos de dor, entregar-se à apatia, gozar quase vivendo entre os outros como um fantasma? Certo, todo homem, ainda que esteja só, deve cuidar de si mesmo, porém, somente amando se tem a exata noção do que se é e do que se pode; e somente o matrimônio outorga a fidelidade "histórica", ao menos tão bela como a do cavalheiro romântico. Pois o esposo nunca pode conduzir-se como este último. Quando o mundo lhe é tão hostil como ao outro, ainda que possa esquecer-se disso por um instante, e sentir-se aliviado pelo efeito do desespero que o quer devorar, e sentir-se fortalecido pela lenta absorção de uma mistura embrutecedora de desafio e desalento, de covardia e orgulho; e sentir-se livre pelo relaxamento dos vínculos que o ligam à verdade e à justiça; se, nesse estado comprova a rapidez do movimento que constitui o passo do bem ao mal, então voltarás logo aos velhos caminhos; esposo, mostrar-se-á digno desse nome. Já disse, porém, bastante sobre as adversidades exteriores, e não me sinto qualificado para falar delas. Como não poderia fazê-lo sem uma exposição fastidiosa, resumir-me-ei dizendo que se pode ser preservado o amor, e por Deus que pode, também pode sê-lo a estética, porque o amor é a estética mesma. As outras objeções repousam, antes de tudo, em uma falsa concepção de duas coisas: o papel do tempo e o valor estético do histórico. Insinuam-se assim em cada matrimônio, tanto que se pode falar delas de uma maneira muito geral, e eu o farei esforçando-me por enunciar, nessa generalização, o essencial do ataque e da defesa. Citarás logo o "costume, o terrível costume, a cruel monotonia, a perpétua uniformidade que faz da vida doméstica e conjugal um tremendo marasmo". "Amo a natureza, dirás, porém, detesto a segunda natureza." Admito que sabes pintar, com um calor e uma melancolia cheios de sedução, o tempo feliz em que ainda fazemos descobertas, e passada essa idade, montar os dias com um terror angustiado; sabes, até causar risos e verdadeira náusea, descrever a vida conjugal tão monótona que a própria natureza não oferece nada semelhante; "porque já o provou Leibnitz que não se encontra nada idêntico ao matrimônio na natureza, a uniformidade está reservada às criaturas de razão e isso resulta, seja de sua letargia, seja de seu pedantismo." Não penso contradizer-te, nem negar que não seja magnífico, eternamente inesquecível (anota o sentido em que posso dizê-lo) o tempo em que o indivíduo se admira no mundo do amor e acha a felicidade num velho descobrimento. Frequentemente, é certo, esse indivíduo tem ouvido falar do amor, e lhe explicam os livros; porém, agora se apropria pela primeira vez com todo o entusiasmo da surpresa, e se impregna até a profundeza de seu ser. Período venturoso que começa com os primeiros pressentimentos da paixão, com o primeiro encontro, com a primeira separação, com o primeiro tom dessa voz, com o primeiro olhar, a primeira pressão da mão, o primeiro beijo, e chega à primeira certeza da posse; período magnífico o da primeira confusão, do primeiro desejo, da primeira dor de citação frustrada, da primeira alegria causada pela vinda inesperada dela. Porém, tudo isso não quer dizer que o período seguinte não seja igualmente belo. Faz teu exame, tu que imaginas ter ideias tão cavalheirescas. Quando dizes que o primeiro beijo é o mais belo, o mais suave, ofendes a amada, porque o beijo tem então o valor de categoria do tempo em que o situes. Não obstante, para não comprometer minha causa, começarei por pedir-te contas. Pois se não queres proceder de forma totalmente arbitrária, deverias atacar a paixão como atacas o matrimônio: se o amor persiste na vida, é mister que se ache exposto às mesmas fatalidades; porém, nessa luta se dispõe, por certo, das armas que o amor conjugal encontra no ético e no religioso. Além do mais, deverias odiar todo o amor que pretenda ser eterno, e ater-se à paixão como momento. Porém, não assumirá seu verdadeiro valor enquanto não comporte a ingenuidade, isto é, a eternidade em seu caráter espontâneo. Claro que sim, pois se por acaso, experimentas-te que isso é uma ilusão, tudo está perdido para mim, a menos que te empenhes em retornar à mesma ilusão, coisa que não podes fazer sem contradizer-te. Ou então, homem sábio que és, havias feito com teu prazer um pacto que te faça esquecer completamente tua dívida para com os outros? Pensarias que, apesar da impossibilidade radical de repetir a paixão, ainda resta uma saída aceitável, isto é, o rejuvenescimento que se sente quando vive a ilusão na ilusão dos outros, saboreando o infinito e a novidade na frescura do sentimento que ainda não tinha visto dissipar-se sua ilusão juvenil? Essa atitude demonstraria tanto desespero como corrupção. E o desespero que assim se revelasse proibiria buscar conhecimento sobre a vida nesse ponto de vista. 3. A propósito da conquista e da posse Negarei, além disso, que tenhas o direito de aplicar a palavra "costume" à regressão própria de toda vida e, por conseguinte, também ao amor. Em realidade, esse termo só é empregado, e mal, para designar a persistência em um estado mau em si, ou então a repetição de uma coisa inocente em si mesma, porém, repetida com tal tenacidade que a torna funesta. O costume, pois, revela sempre uma falta de liberdade. E assim como não se pode fazer o bem sem liberdade, tampouco se pode estar sem ela: daí que, com respeito ao bem, nunca se pode falar de costume. E dizer de tua alusão ao matrimônio como unia uniformidade tal que apenas a encontramos na natureza? Isso é exato, porém a uniformidade pode expressar a beleza, e o homem pode ficar orgulhoso desse descobrimento: assim, em música, a medida uniforme pode ser muito bela e de um grande efeito. Direi, finalmente, que se essa monotonia fosse inevitável na vida conjugal, deverias reconhecer sinceramente que seria preciso vencê-la, ou seja, preservar o amor em vez de desesperar-se, porque o desespero não poderia ser nunca uma tarefa: é um expediente fácil, ao qual somente recorrem os que retrocedem ante a grandeza da tarefa. Vejamos, porém, mais de perto, o que há nessa uniformidade tão desacreditada. Teu defeito, tua desgraça, é ter para todas as coisas um pensamento demasiado abstrato, também quando se trata do amor. Tens em teu pensamento um pequeno resumo dos momentos de amor, cujas categorias analisas, segundo dizes; e te reconheço nessa matéria de uma virtuosidade fora do comum. Pensas todo o concreto reduzindo-o a um momento: o poético. Quando, junto a isso, pensas na grande duração do matrimônio, vês surgir um penoso mal-entendido. Teu defeito é pensar não historicamente. Se um aficionado aos sistemas submetesse ao pensamento a categoria das interações; se quisesse sondá-la segundo uma lógica impecável, porém, acrescentasse que se requer uma eternidade antes que o mundo termine suas eternas interações, teríamos razão em rirmos dele, tu o admitirias. O tempo é um fato: tem sua importância, e a sorte dos indivíduos, como da humanidade, é viver nele. Se, pois, não tens outra objeção senão que essa lei é insuportável convém, então, buscar outro auditório. Essa resposta seria perfeitamente suficiente; não obstante, para tirar-te todo o pretexto de dizer que estás "no fundo" de rainha opinião, ainda que preferias sujeitar-te ao inelutável, esforçar-me-ei por demonstrar-te que é o melhor, e que também é o dever; e, finalmente, que essa resignação é, em verdade, a melhor conduta. Partamos de um ponto que nos seja comum. Não te espanta o tempo que precede ao ponto culminante; pelo contrário, te comprazes, e frequentemente ansias por outorgar aos instantes que revives, reproduzindo-os, e mediante uma série de reflexões, com mais duração que a sua primitiva; e se aqui se pretendesse reduzir tua vida à categoria, te aborrecerias muito. No período que precede ao apogeu, não somente os grandes e decisivos momentos te interessam, mas sim as menores circunstâncias; e convém, nesse ponto, ouvir-te falar do segredo oculto, ignorado pelos sábios, a saber, que o insignificante é o Importante. Porém, uma vez alcançada a culminância, e tudo transformado, tudo se encolhe num miserável abbreviatur pouco satisfatório. És feito assim: és, por natureza, conquistador, porém. incapaz de possuir. Porém, se não sustens, com um exclusivismo e uma arbitrariedade totais, que és assim, então estás obrigado a concluir por um momento de armistício, e romper fileiras, para permitir-me verificar até que ponto é verdade o que dizes; e se o é, em que medida, até que ponto se justifica. Se recusas, imaginarei, sem ocupar-me de ti, alguém que se parece muito contigo, e procederei tranquilamente a minha vivissecção. Espero, porém, que tenhas o valor de submeter-te à operação, o valor de prestar-se realmente à execução e não somente in effigie. Ao sustentar com tal energia que és assim, concedes implicitamente que os outros podem ser diferentes; por hora, conforto-me com isso, porque poderia ser, depois de tudo, que tu fosses um homem normal, ainda que a angústia com que te obstinas em dizer que és o que és não induz a crê-lo. Como, porém, concebes os demais? Quando observas um casal cuja vida conjugal consome-se a teus olhos, num fastio cruel, "na mais desabrida repetição das sãs instituições e dos sacramentos do amor", aviva-se em ti um ardor, uma chama disposta a devorar esses desventurados. E não és arbitrário no teu ponto de vista: tens razão, tens direito de castigar as pessoas com o raio de tua ironia, de espantá-los com a força de tua cólera. Não os reduzes a cinzas porque te apraz, e sim porque achas que lhes é merecido. Julga-os, porém, o que é julgá-los senão exigir deles alguma coisa? Ou dirás que não podes exigi-la; porém, então, como é contraditório exigir o impossível, é contraditório julgá-los. Aperfeiçoas-te, não é certo? Deixas-te adivinhar uma lei à qual não queres submeter-te, porém, que aplicas aos outros! Não te deixas, porém, pegar desprevenido e replicas: "Não os reprovo, não os julgo, mas compadeço-me deles." Imagina, porém, que os interessados não tenham encontrado fastio em sua vida. Já vejo um sorriso de satisfação pairar em teus lábios: acabas de conceber uma ideia luminosa, com a qual esperas destruir teu interlocutor. "Repito: compadeço-me deles, porque não se dão conta, e ainda mais, porque estão entregues a uma ilusão muito digna de piedade." Isso é o que me dirias, pouco mais ou menos, e se estivéssemos em presença de outras pessoas, a firmeza de tua atitude não deixaria de causar efeito. Ninguém, porém, nos escuta e posso prosseguir meu exame. De modo que tu te compadeces deles em ambos os casos; tenham consciência de seu fastio ou não. Porém, há um terceiro caso possível: também existe o fastio quando o matrimônio felizmente não se realizou. Estado tão digno de piedade como o de quem, havendo conhecido o amor, adverte-se de que é irrealizável. Porém, o estado do que se salvou do naufrágio como pode, graças aos expedientes egoístas que indiquei precedentemente, é igualmente deplorável, porque esse homem se tomou bandido, fator de discórdias. Uma queixa geral: eis aí o verdadeiro resultado a que chegamos ao término de nossa investigação: porém, nos contradizemos, como se disséssemos que a evolução da vida tem como resultado uma regressão. Em geral, tu não temes aprovar esse ponto de vista, agora dirás provavelmente: "Isto também ocorre, às vezes; quando se marcha sobre uma paisagem gelada, contra o vento, o avanço pode muito bem ter como resultado um retrocesso." Volto, porém, ao exame de todo teu habitus espiritual. Dizes ser uma natureza incapaz de possuir, e não crês diminuir-te declarando-o; pelo contrário, sentes-te melhor que comumente. Quando se necessita mais força: ao subir ou ao descer? Quando a descida é abrupta se necessita mais, evidentemente, no segundo caso. Quase todos os homens tendem, por natureza, a subir a encosta: em troca, a maior parte deles sofre certa angústia quando têm que descê-la. Assim creio que há muito mais naturezas conquistadoras, que aptas a possuir, e quando te sentes superior a uma série de pessoas casadas, fundidas em "sua estúpida satisfação animal", podes ter razão até certo ponto, porém, não deves tomar por senhores os que te são inferiores. A verdadeira arte segue geralmente a direção oposta à da natureza, e nem por isso a destrói; do mesmo modo, a arte verdadeira revela-se na posse e não na conquista, porque a posse é uma conquista que venceu todos os obstáculos. Esses termos te indicam até que ponto a arte e a natureza estão em conflito. O possuidor retém o que conquistou, e estritamente somente possui o que conquista. Claro que tu crês também possuir, porque o instante da posse tu o tens, porém, não é uma posse real, não se trata de uma apropriação profunda. Se eu imaginasse um conquistador subjugando estados e reinos possuiria também essas províncias submetidas, teria vastas possessões e, não obstante, um tal príncipe é chamado de conquistador e não de possuidor. Somente possui esses territórios, uma vez que os administra com sabedoria e para sua propriedade. Isso é o que raramente faz uma natureza conquistadora, que, em geral, carece da humildade, da religiosidade, da humanidade verdadeira que se requer para possuir. E é por essa razão (não vês?) que, ao expor a relação entre o matrimônio e a paixão, destaquei justamente o momento religioso: por que esse momento quer retirar o conquistador do trono e substitui-lo pelo possuidor? É por isso que fiz o elogio do matrimônio, instituído com o fim mais nobre: a posse duradoura. Recordar-te-ei uma expressão que te aprazia pronunciar: "A grandeza não é um elemento dado, e sim adquirido." Pois o instinto da conquista própria do homem e seu exercício são o elemento dado; porém, o fato e a vontade de possuir, isso é o adquirido. Necessita-se de orgulho para conquistar e humildade para possuir: ardor para conquistar, paciência para possuir; para conquistar, o sustento e a bebida, e o jejum e a prece para possuir. Porém, os atributos todos que acabo de enumerar, com todo o direito, para caracterizar a natureza conquistadora, convêm todos ao homem natural e se aplicam absolutamente a ele; não obstante, nossa natureza imediata não é nossa mais alta condição. Porque uma posse não é um Schein, um título cuja letra é letra morta, um título sem valor, ainda que tendo força legal: uma posse é uma aquisição constante. A natureza que exerce a posse envolve uma natureza conquistadora: ela conquista, efetivamente, à maneira do lavrador que conquista a terra, trabalhando-a, não como aquele que põe na cabeça de seus criados expropriar os vizinhos. A verdadeira grandeza não consiste, pois, em conquistar, e sim em possuir. E se me fizer a seguinte objeção: "Não quero decidir qual dessas atitudes é a melhor, porém, reconheço de bom grado que representam as duas classes de homens, e cada qual dirá à qual pertence e cuidará de não deixar-se modificar por tal ou qual apóstolo diligente em modificá-los." Se falas assim, vejo que a última parte da frase diz respeito a mim, e de forma maliciosa. Não obstante, responderei que das duas coisas, conquistar e possuir, não só uma é superior à outra, mas também tem, além do mais, um sentido do qual a outra está desprovida. Uma é premissa e conclusão, enquanto a outra não é senão premissa. E, à guisa de conclusão, não oferece senão uns tristes pontos de apoio dos quais, mais tarde, te direi a função, se já não a sabes. E se ainda persistes em dizer que tens um temperamento de conquistador, pouco importa, porque estás obrigado a admitir que há mais grandeza em possuir que em conquistar. Na conquista, a pessoa se esquece constantemente de si mesmo, enquanto na posse se recorda de si, não por passatempo vão, porém, com a mais profunda gravidade. Ao ascender, somente temos o resto ante nossos olhos; na descida, devemos cuidar de nós mesmos e conservar o equilíbrio entre o ponto de apoio e o centro de gravidade. 4. Excelência do cotidiano familiar Continuo, porém. Talvez concordes comigo que a posse é mais difícil que a conquista, que há mais grandeza na primeira que na segunda. "Enquanto possa conquistar, não me deterei em pontos de honra, mas sim darei atenção aos que têm a paciência de possuir, sobretudo se estão dispostos a trabalhar comigo, lado a lado, aceitando possuir minhas conquistas. Há mais grandeza, seja, porém, não mais beleza: é mais conforme a ética, à qual tiro o chapéu, porém menos conforme à estética." Entendamo-nos em um ponto. Um erro comum à muita gente é confundir o que é esteticamente belo com o que, sendo-o, é suscetível de ser representado. A confusão se explica facilmente: a maioria busca a satisfação estética, cuja necessidade a alma experimenta na leitura, na contemplação das obras de arte etc. Ao contrário, são relativamente poucos os que consideram o estético tal como é na vida, e cujos olhos vejam o mundo à luz da estética, sem gozar somente com a reprodução poética. Porém, uma reprodução artística requer sempre uma concentração no momento: quanto mais rica é a concentração, maior o efeito estético. E assim ganha seu valor o momento de inefável felicidade, de infinita plenitude, em suma, o instante. Ou bem esse é o momento predestinado, por assim dizer, que faz estremecer a consciência suscitando nela a ideia de uma ordem divina, ou bem esse momento pressupõe uma história. No primeiro caso, fica-se impressionado, surpreendido; no segundo há por certo uma história, porém a representação artística não pode demorar-se nela; tudo que pode é sugeri-la, em sua pressa de chegar ao momento. E tanto mais artística, quanto melhor sabe concentrar nela maior número de elementos. A natureza, disse um filósofo, segue os caminhos mais curtos, e até se poderia suster que não segue nenhum, mas sim que é dada pronta e no momento. Quando quero perder-me na contemplação do firmamento, não necessito esperar que os astros inumeráveis estejam formados, porque todos estão lá de uma vez. O caminho da história ao contrário é, como o da verdade, muito grande e difícil. Porém, intervêm então a arte e a poesia, para abreviar a rota e para alegrar-nos quando termine: concentram o extensivo no intensivo. Porém, a marcha da história é tanto mais lenta quanto mais importante seja a coisa que esteja por advir: como consequência, o próprio curso se reveste de uma importância tanto maior, quando a coisa que é sua finalidade é ao mesmo tempo seu caminho. A vida individual possui duas espécies de histórias: exterior e interior. Só duas correntes distintas, de sentido oposto, e a primeira oferece, por sua vez, dois aspectos. Como o indivíduo não tem o objeto a que aspira, a história é a luta da qual o conquista. Ou então, tendo esse objeto, não pode entrar na posse dele pelo fato de um impedimento exterior. A história é então a luta através da qual o indivíduo triunfa sobre esses obstáculos. A história da segunda espécie se inicia pela posse, e é então o processo em cujo curso se adquire a posse. Porém, como no primeiro caso, a história é de ordem exterior, e o objeto ao qual se aspira está fora, a história não tem verdadeira realidade, e o poeta ou o artista têm razão de abreviá-la, apressando o momento intensivo. Suponhamos, para limitarmos nosso tema, um amor romântico. Um cavalheiro matou cinco javalis, quatro pigmeus, livrou três príncipes encantados, irmãos da princesa a quem adora. Tudo isso encontra plena realidade na concepção romântica. Não obstante, é indiferente ao poeta ou ao artista que se trate de cinco ou quatro; e apesar de o artista, em todo caso, ser mais limitado que o poeta, nem mesmo ele tem interesse em contar em detalhes a morte dos cinco javalis. Interessa-lhe o momento. Limita, talvez, o número, condensa as dificuldades e os perigos na intensidade do relato e corre para o momento da posse. Toda a sucessão histórica é, para ele, secundária. Claro que se trata de uma história de ordem interior, cada pequeno momento é de uma extrema importância, porque ela é a história verdadeira. Porém, nesse sentido, choca-se com o princípio constituinte e vital da história: o tempo. Porém, quando se luta com o tempo, o temporal e cada pequeno momento alcançam sua maior realidade. Quando a individualidade, ainda fechada, não começou sua eclosão, trata-se sempre de história exterior. Porém, quando chega a eclosão, assiste-se ao começo da história interior. Voltemos agora a nosso ponto de partida: a diferença entre a natureza conquistadora e a natureza apta a possuir. A primeira está sempre fora de si mesma, a segunda dentro, de modo que cada uma recebe uma história apropriada a seu caráter. Porém, como a história exterior se presta sem inconvenientes à concentração, é natural que a arte e a poesia a escolham, sobretudo a individualidade ainda não desperta, com todo o mundo que arrasta consigo. Diz-se, é certo, que o amor trabalha a individualidade, porém, não na concepção romântica, que o leva somente ao ponto em que deve desprender-se e aí se detém (ou então a um ponto em que ia desprender-se quando sobreveio a ruptura). Porém, como a história exterior e a individualidade fechada são, sobretudo, o objeto da obra artística e poética, tudo o que é próprio dessa individualidade será o tema da obra. No fundo, porém, essa matéria é própria do homem natural. Vejamos alguns exemplos. O orgulho se presta maravilhosamente ao talento artístico, porque o essencial não é, ali, a sucessão e sim a intensidade do momento. É difícil representar a humildade, justamente porque se exerce na sucessão, enquanto o espectador não necessita ver senão o orgulho levado à sua culminância, exige, no segundo caso, o que a arte e a poesia não poderiam dar-lhe, a vida dessa humildade em seu devenir constante, essencial a esse estado. E quando ela é mostrada em seu momento ideal, falta ao espectador alguma coisa: sente, efetivamente, que a verdadeira idealidade da humildade não consiste em ser ideal no momento, e sim em sê-lo sempre. O amor romântico pode ser representado excelentemente no momento, porém, não o amor conjugal, porque o esposo ideal não é o que o é uma vez em sua vida, e sim a cada dia. Quando quero representar um herói que conquistou estados e reinos, posso fazê-lo bem no momento, porém, um cruzado que leve sua cruz a cada dia não é recebido nunca na poesia e na arte: sua carga cotidiana é efetivamente o que o caracteriza. Quando imagino um herói que põe em jogo sua vida, a cena se condensa muito bem no momento, porém, não é o mesmo morrer a cada dia, caso em que o essencial é essa morte cotidiana. O valor se presta admiravelmente à concentração no momento, ele não se dando como a paciência, que luta com o tempo. Objetar-me-ás que a arte tem não obstante, representado Cristo como a imagem da paciência, carregando o pecado do mundo; dirás que os homens religiosos condenaram toda a amargura da vida em um cálice e nos mostraram a um indivíduo esvaziando seu conteúdo em um só instante. É verdade: porém, se puderam fazê-lo, é porque concentraram essa amargura de maneira quase parcial. Ao contrário, se sabemos um pouco o que é a paciência, sabemos que não tem por oposto, em propriedade, a intensidade do sofrimento (porque então se aproxima mais do valor), senão o tempo, e que a verdadeira paciência é a que mostramos lutando contra o tempo, e é, em realidade, a longanimidade, rebelde à. arte: ao que é impossível de reduzir seu caráter próprio, e rebelde à poesia como consequência da longitude do tempo que exige. 5. Conciliação da estética e da vida matrimonial O que ainda direi podes considerá-lo como a modesta oferenda de um pobre esposo no altar da estética; e se, como todos os seus sacerdotes, deprecias minha oferenda saberei consolar-me, por certo, tanto mais quanto não é um pão reservado unicamente à mesa dos sacrificadores, e sim um grande pão comum, simples, como todo alimento doméstico, porém, sadio e fortificante. Se seguirmos a evolução da beleza estética, tanto do ponto de vista dialético como histórico, vemos que o sentido desse movimento vem das determinações do espaço e do tempo, e que a perfeição artística depende de uma possibilidade sempre maior de afastar-se do espaço para concretizar-se no tempo. Ali reside a passagem, e a importância dessa passagem, da escultura à pintura, como já o tem indicado Schelling. A música tem o tempo por elemento, porém, nele não encontra duração nenhuma: o próprio da música é dissipar-se constantemente no tempo; ressoa nele, porém, se esfuma imediatamente e não tem duração. A poesia, a mais perfeita das artes, é também a mais apta para explorar o valor do tempo. Não necessita limitar-se ao tempo, como a pintura, nem desaparece sem deixar traços, como a música. Ainda assim, já o vimos, está obrigada a concentrar-se no momento: tem, pois, seus limites, e já mostramos que não poderia representar coisas cujo traço próprio seja a sucessão no tempo. E, sem dúvida, essa utilização do tempo não diminui a estética, cujo ideal alcança, pelo contrário, tanto mais riqueza e plenitude quanto mais se valoriza o tempo. Como se pode, pois, representar aquele elemento estético que torna irredutível a obra poética? Vivendo, responderei. Assim se assemelha a música, que só tem ser pela repetição constante, e no momento da execução. Razão pela qual te chamei a atenção anteriormente sobre o perigo de confundir a ordem estética com o que, sendo de ordem estética, se presta à reprodução poética. Porque tudo aquilo de que falo aqui pode ser representado de uma maneira estética, não pela reprodução poética senão pela vida vivida, pela realização na vida real. Dessa sorte, a estética se eleva ela mesma e se concilia com a vida, porque, se, em um sentido, a arte e a poesia conciliam-se com a vida, em outro se acham em oposição com ela, por conciliar uma só face da alma. Eis-me aqui no ponto culminante da estética. E, verdadeiramente, se se tem aqui o valor de prestar-se à transfiguração da estética, se uma pessoa sente um personagem do drama composto pela divindade, em que o poeta e o ponto não são distintos; em que o indivíduo, como o artista experimentado que assume integralmente o caráter de seu papel, longe de ser perturbado pelo ponto, sente que a palavra que se lhe dita é a que quer dizer, tanto que poderia perguntar-se qual dos dois é o ponto: se se sente da maneira mais profunda o poeta e o poema de uma só vez, dispondo no momento da criação do pathos lírico espontâneo; e, no instante da execução, do ouvido erótico que capta todo o tom: então, e somente então, se compreende o mais nobre da estética. Porém, essa história que parece irredutível à poesia mesma é a história interior. Comporta a ideia, e essa é a razão por que é estética. Assim começa, como o demonstrei, pela posse. É uma eternidade da qual não desapareceu o temporal como momento ideal, senão que está constantemente presente como momento real. Quando assim a paciência se assume a si mesma na paciência, temos a história interior. Vejamos, agora, a relação do amor romântico e do amor conjugal. posto que a relação da natureza conquistadora e da natureza apta a possuir não poderia expor-se à menor dificuldade. O amor romântico se faz sempre mais abstrato em si mesmo, e quando não pode assumir uma história exterior é porque já o aguarda a morte, pois sua eternidade é ilusória. O amor conjugal começa com a posse e revista uma história interior. É fiel, por exemplo, quinze anos, e então chega o momento da recompensa. Um esposo é fiel durante quinze anos e, não obstante, todo esse tempo gozou da posse: conquistou, pois, constantemente nessa grande sucessão, uma fidelidade que já possuía. O amor conjugal comporta a paixão e a fidelidade desta. Porém, esse esposo ideal não poderia ser representado porque o próprio dele é o tempo em sua extensão. Ao cabo dos quinze anos, aparentemente, não foi mais longe que a princípio, e não obstante conheceu uma intensa vida estética. Sua posse não foi para ele uma propriedade morta: adquiriu constantemente sua posse. Não combateu leões e monstros, e sim um inimigo mais perigoso: o tempo. Porém, então a eternidade não vem mais tarde, como para o cavalheiro, e sim teve a eternidade no tempo e a conservou no tempo. Somente ele triunfou, pois, sobre o tempo, porque se bem que possamos dizer do cavalheiro que matou o tempo, como desejamos fazê-lo quando não tem realidade para ninguém, essa não é nunca uma verdadeira vitória. O esposo, o verdadeiro vencedor, não matou o tempo, e sim o salvou e o preservou na eternidade. Agindo assim, tem uma vida verdadeiramente poética: resolve o grande problema de viver na eternidade. Escuta, entretanto, soar o pêndulo: seus golpes não abreviam e sim prolongam sua eternidade em uma contradição tão profunda, porém, muito mais gloriosa que aquela da conhecida situação da Idade Média; um desventurado desperta no inferno e pergunta as horas e o diabo responde: "Uma eternidade." E se tudo isso é rebelde à arte, consola-te, como eu, pensando na grandeza e beleza suprema da vida que não se encontram nos livros, no concerto ou no cenário, e sim com a condição de se querer, na vida mesma, quando eu, pois, admito de boa vontade, que o amor romântico é muito mais apropriado para a obra artística que o amor conjugal, não digo, certamente, que é menos estético, posto que, pelo contrário, tem mais beleza. Em uma das obras mais geniais da escola romântica, Lucinda, de Schlegel, vemos um personagem que não deseja, como seus parentes, consagrar-se à poesia, porque é perder um tempo que subtraímos ao verdadeiro gozo: desejou, ao contrário, viver. Se houvesse tido uma ideia mais sadia da arte de viver, teria minha admiração. O amor conjugal acha, pois, seu inimigo no tempo, sua vitória no tempo e sua eternidade no tempo. Tal é a tarefa que queria sempre para si, ainda que supondo desprezíveis todas essas calamidades de fora e de dentro. Em geral. não as ignora; porém, quando nos empenhamos em conhecê-las deve-se tomar nota de duas coisas: tais dificuldades são determinações de ordem interna e comportam sempre a determinação do tempo. Uma vez mais, por essa razão, vemos que o amor conjugal é rebelde à arte. Volta-se sem cessar para o interior e se arrasta no tempo (no sentido favorável da palavra), sendo que uma coisa capaz de ser representada por reprodução deve necessariamente ser exteriorizada, e que o tempo que transcorre deve poder abreviar-se. Convencer-te-ás melhor ainda se examinas os atributos que correspondes aplicar ao amor conjugal: é fiel, constante, humilde, paciente, longânime, indulgente, sincero, modesto, vigilante, fervoroso, dócil, alegre, virtudes essas que são propriamente disposições do foro interior. O indivíduo não luta contra inimigos de fora: vence-se a si mesmo, depura seu amor das escórias. E essas virtudes têm determinação de tempo, porque sua verdade não é a de ser dada de uma vez por todas, senão de ser constantemente. E não permitem adquirir outra coisa, somente se adquirem a si mesmas. O amor conjugal é, pois, como tu o chamaste muitas vezes em tom de zombaria, o amor de cada dia, e ao mesmo tempo, o amor divino (no sentido grego). E é o amor divino porque é o amor de cada dia. O amor conjugal não vem acompanhado de sinais exteriores: não se anuncia, como o pássaro raro, pelo murmúrio e pelo rumor: é a essência incorruptível dos espíritos apaziguadores. Desse último caráter, todas as naturezas conquistadoras e tu mesmo não tendes ideia. Nunca estais em vós mesmos, e sim fora quando te deslizas aqui e lá, ou apareces aos tons desta música dos estranhos sons que sufocam em ti a voz da consciência, enquanto vibram cada um de teus nervos, parece, com efeito que vives. Porém, ganha a batalha, quando o último eco do último disparo se apaga; quando as ideias, rápidas como ajudante de ordens, se dirigem ao quartel general para anunciar que a vitória é tua... Então já nada sabes, não sabes começar porque é somente então que realmente começas. Este elemento inevitável no matrimônio, este fator que com desgosto chamas de costume, é simplesmente seu aspecto histórico, temível a teus olhos perdidos. Pensas em geral nesses "sinais sagrados e visíveis do erótico, sem valor real como os símbolos sensíveis, porém, cuja importância reside na energia, na audácia e na virtuosidade artística próprias do gênio natural com que se as executa. Que desgosto não se experimenta ao ver a insipidez de todos esses gestos na vida conjugal, seu caráter exterior e convencional, sua falta de espontaneidade! Dir-se-ia que se fazem ao som dos sinos, pouco mais ou menos como na tribo que os jesuítas acharam no Paraguai: era tão preguiçosa, que os missionários acharam necessário tocar os sinos à meia-noite para recordar aos esposos seus deveres conjugais. Tudo se faz como ordem e seguindo um adestramento". Ponhamo-nos de acordo sem deixarmo-nos distrair de nosso exame por tantos aspectos errôneos e ridículos da vida: vejamos se tudo isso é necessário e, no caso afirmativo, saibamos por ti qual seja o remédio. Em verdade, não espero de ti um auxílio de muita monta, porque ainda que em outro sentido, combates sempre como o famoso cavalheiro espanhol contra moinhos de vento. Pois, lutando pelo momento contra o tempo, lutas sempre pelo tempo transcorrido. Tomemos uma ideia, um termo de teu mundo poético, ou do mundo real da paixão: os amantes se veem um ao outro. Sabes perfeitamente espaçar essas palavras, se veem, e pôr nelas uma realidade infinita, uma eternidade. É possível que, depois de dez anos de vida em comum, e de contatos cotidianos, dois esposos já não se vejam assim. Porém, acaso não saberão, por isso, ver-se com amor? Estamos aqui em tua velha heresia. Tu acabas por limitar o amor à certa idade, e o amor que alguém sente, a um brevíssimo período; logo, como todas as naturezas conquistadoras, praticas o recrutamento para cumprir tua experiência; este é, porém, o último grau de profanação do poderio eterno do amor. É desespero. Por muitas voltas que dês nessa situação, és obrigado a reconhecer que a tarefa consiste em conservar o amor no tempo: se isso é impossível também o é o amor. Tua desdita é que põe a essência do amor exclusivamente em sinais visíveis. Devem se repetir sem cessar, porém, submetidos a uma mórbida reflexão, atenta a comprovar se não têm sempre a realidade que tinham quando o incidente fortuito, como se se tratasse da primeira vez, então não me assombra ver-te angustiado, preocupado como estarás por tornar esses sinais e gestos ao número das coisas das quais não se poderia dizer: decies repetita placebunt. Porque se seu valor procede de seu caráter primeiro, a repetição é, certamente, uma impossibilidade. Porém, o amor sadio tem uma substância diversa: elabora-se com o tempo. Logo pretende ser capaz de recomeçar-se por esses sinais exteriores e, o que para mim é essencial, tem uma ideia muito distinta do tempo e do papel da repetição. Mostrei mais acima que o amor conjugal tem seu campo de batalha no tempo, sua vitória e bênção no tempo. Então, considerei o tempo como uma simples progressão, porém, agora devo indicar que não é uma progressão simples, na qual se conserve seu caráter original, e sim uma progressão crescente, na qual o caráter original vai, igualmente, crescendo. Tu, que observaste tanto, aprovar-me-ás nesta observação geral: os homens se repartem em duas grandes classes, segundo vivam na esperança ou da recordação. Ambas as categorias constituem atitude errónea diante do tempo. O homem são vive de uma só vez da esperança e das recordações, e somente assim adquire sua vida uma continuidade verdadeira e plena. Tem a esperança, e não quer, como os que vivem exclusivamente da recordação, voltar o curso do tempo. Logo, que faz em seu favor a lembrança, posto que esta tem que ter também alguma influência? Pois assinala com uma cruz o tom do instante: quanto mais volta atrás, e encontra repetições, mais cruzes encontra também. Quando, por exemplo, se vive esse ano, um momento erótico, esse momento se acrescenta pelo fato de que é objeto de uma lembrança do ano precedente. É o que a vida conjugal expressa em um lindo costume. Não sei em que idade do mundo nos achamos, porém tu o sabes como eu: diz-se que teve uma idade de ouro, logo uma de prata, e uma de bronze e uma de ferro. No matrimônio se dá o inverso: antes vêm as bodas de prata, e depois as de ouro. Não é acaso a lembrança, o fato característico dessas solenidades? Não obstante, o vocabulário conjugal as considera muito mais belas que as primeiras bodas. Porém, não há do que se enganar, como no caso em que dissesses que "o melhor seria contrair núpcias desde o berço, para celebrar mais rapidamente nossas bodas de prata, e ainda ter a esperança de inventar um termo novíssimo no dicionário da vida conjugal". Tu mesmo vês o erro de tua zombaria e não me deterei nele. Ao contrário recordarei que os indivíduos não vivem somente de esperança, e sim que, para eles, esperança e lembrança se compenetram constantemente no tempo presente. Quando das primeiras bodas, a esperança tem, pois, o mesmo efeito que a lembrança nas últimas. Esperança que as transborda, como se uma eternidade enchesse o momento. Acharás justo, talvez, pensando que se nos casássemos somente pensando nas bodas de prata e esperando outra vez durante vinte e cinco anos, e assim sucessivamente, ao final não haveria mérito nenhum em celebrar o primeiro jubileu, porque não teríamos nada que recordar, posto que tudo se haveria deslocado na perpétua esperança. Tenho me perguntado a miúdo donde procede que seguindo o pensamento e a língua correntes, o celibato esteja privado totalmente dessas perspectivas, e que em troca se ache bem mais ridículo o velho solteirão que consegue celebrar o jubileu. A razão é, sem dúvida, a que se admite comumente: o celibato não pode captar nunca o verdadeiro tempo presente, vive-se de esperança e lembrança, e, portanto, se atém a uma ou à outra. Porém, essa observação indica ainda mais a exatidão da relação que o amor tem com o tempo, igualmente para a opinião geral. O que entendes por "costume" designa também outra coisa na vida conjugal: "sua uniformidade, sua ausência total de acontecimentos, sua permanência em um vazio mortal, pior que a morte." Como sabes, o menor ruído transtorna os espíritos nervosos; não podem pensar quando alguém caminha junto a eles na ponta dos pés. Pois bem: observaste que existe também uma outra espécie de nervosidade? Alguns homens são tão fracos que necessitam, para trabalhar, de um barulho constante e de um ambiente cheio de distrações. Por que, se não porque não são donos de si mesmos, e sim, escravos das coisas? Em seu isolamento, suas ideias esfumam no vazio; em meio ao bulício, acham-se obrigados a fazer intervir sua vontade. Eis aí porque ternos a paz, o silêncio, o repouso. Somente estás em ti mesmo, quando estás diante de um obstáculo: daí que nunca estejas em ti mesmo e sim, sempre alienado. Pois, quando assimilas um obstáculo, faz-se de novo o silêncio. Por isso não te atreves a assimilá-lo, e dessa sorte o obstáculo e tu permanecem sempre frente a frente, e tu não és nunca tu mesmo. Aqui se aplica naturalmente o que disse mais acima acerca do tempo. Estás fora de ti: em consequência não podes evitar "o outro" como obstáculo. Crês que não há vida senão na inquietude do espírito, porém, todas as pessoas experimentadas pensam que não há vida verdadeira senão na paz de espírito. Para ti, o oceano encapelado oferece a imagem da vida; eu a encontro contemplando a calma profunda das águas. Às vezes me detenho à beira de um regato. Sempre deixa escutar a mesma doce canção; as mesmas ervas se inclinam no fundo, sob a corrente tranquila; os mesmos animaizinhos se movem nele; um peixinho escorrega para seu esconderijo cheio de flores, estende suas afetas contra a corrente e se dissimula embaixo de uma pedra. Que uniformidade, e não obstante, que profusão de mudanças! A vida doméstica de dois esposos é assim aprazível e modesta em seu murmúrio; quase não oferece mudanças, porém, como o arroio tem sua canção preferida por quem a conhece e porque a conhece; sem faustos tem às vezes um brilho que, não obstante, não interrompe seu curso costumeiro, como os raios da lua caem sobre o arroio e revelam o instrumento do qual arranca sua canção. Tal é a vida doméstica dos esposos. Porém, se necessita, para vê-la e vivê-la assim, de uma qualidade que te direi com alguns versos de Ohlenschläger, que antigamente te apraziam: Quantas coisas são necessárias no mundo para que o amor nos encante; duas almas, ungidas uma a outra, e por tudo guia a graça. E na primavera, entre as flores, a lua e seus raios de prata, na perfeita calma de um beijo e dois corações intactos. Já vês como tu também celebras o amor. Não quero dar-te o que não é teu, posto que pertence ao poeta; porém, isso te é apropriado. Como fiz a mesma coisa, dividamos: deixo-te a poesia, menos a última palavra, que se refere à inocência. Esta guardo para mim. 6. Por que o dever não é inimigo do amor Há, finalmente, um aspecto de vida conjugal que provocou frequentemente teus ataques. "O amor conjugal, dizes, oculta algo muito distinto. Parece cheio de doçura, de ternura, de bondade; porém, quando a porta se fecha atrás do casal, antes que se saiba por que, eis o cenho franzido, ou como se diz, o dever. E vós nada podeis fazer para adornar este cetro, ou transformá-lo em um látego de fantasia de Carnaval: o dever continua sendo um látego, e no lar não há mais que um cenho." Trato aqui dessa objeção porque deriva essencialmente de uma incompreensão do histórico no amor conjugal. Queres que o próprio amor seja ou os sombrios deveres ou o capricho. Ao aparecimento da consciência, essa magia desaparece; porém, o amor conjugal tem essa consciência. Para dizê-lo cruamente, em vez da batuta do maestro, que desenha as graciosas figuras da paixão, nos mostra o triste bastão de caporal que é o dever. Conceder-me-ás, antes de tudo, que enquanto continue a paixão incólume, essa paixão que o amor conjugal implica, como conviemos, não pode falar-se da estrita necessidade do dever. Não crês, pois, na eternidade da paixão, e ali, como vês, nos encontramos com tua velha heresia: tu que frequentemente dizes ser paladino, o cavalheiro desta dama, que é a paixão, tu não crês nela, e ainda a profanas. E por não crer, não te atreves a contrair uma união que, quando não a consentes a longo prazo, pode obrigar-te a continuar nela contra a tua vontade. Ali o amor, manifestamente, não é o bem supremo; se o fosse, tu serias feliz por haver um poder capaz de obrigar-te a permanecer nesse bem. Objetar-me-ás, talvez, que este meio, o matrimônio, não é o meio apropriado; ao que responderia que tudo depende da maneira de ver. Este é um ponto ao qual voltamos sem cessar; tu, ao que parece, contra a tua vontade, e sem querer saber a maneira como isso ocorre, e eu, com a plena consciência desse processo, a saber que a ilusória ou ingênua eternidade da paixão ou do amor romântico deve, de uma maneira ou de outra, anular-se para elevar-se. Tu procuras conservá-la nessa imediatez, e queres a todo o custo persuadir-te de que a verdadeira liberdade consiste em continuar-se fora de si mesmo; estás na ebriedade do sono, e daí vê-se por que temes a metamorfose; por isso, não te aparece tal qual é, e sim como uma coisa de caráter inteiramente distinto, que comporta a morte do elemento primeiro. Por isso, o dever te causa horror. Se, efetivamente, o dever não está lá em germe na "coisa primeira", sua aparição produz naturalmente uma perturbação geral. Porém, no amor conjugal, não é esse o caso, porque implica o dever no ético e no religioso; e quando aparece não o faz como um estranho, um intruso impudico, dotado, não obstante, de tal autoridade que não nos atrevemos a mandá-lo embora era nome do mistério do amor. Não, se apresenta como um familiar de longa data, como um amigo, como um confidente que os amantes conhecem entre eles, no mais profundo do segredo do seu amor. E quando fala não diz nada de novo, proclama coisas já sabidas; e quando acaba de falar, os indivíduos se humilham perante ele, porém se elevam ao mesmo tempo, pela certeza de que a ordem recebida é a mesma que eles desejam; e o fato mesmo de que seja recebida é a maneira mais cheia de nobreza e majestade, uma maneira divina de expressar que seu anelo pode realizar-se. Não lhes bastará com que o dever lhes diga, para alentá-los, que a coisa é possível, que o amor pode conservar-se: quando declara que "o amor deve ser conservado", põe nisso uma autoridade que responde ao mais profundo de seu desejo. O amor conjura e expulsa o temor: quando, contudo, treme um instante por si mesmo, por sua duração, o dever então é o alimento divino de que o amor necessita, porque declara - "Não temas, triunfarás." E não fala em futuro, o que é próprio da esperança, e sim no imperativo, com um acento de segurança que nada pode perturbar. Vês no dever o inimigo do amor, e eu o vejo como seu amigo. Talvez te satisfaça essa explicação, e com teu habitual donaire felicitar-me-ás por ter um amigo tão interessante como pouco comum. Porém, não me conformo, e sim transferirei as hostilidades para teu terreno. Se, uma vez que se impôs à consciência, o dever é o inimigo do amor, este deveria tratar de vencê-lo. Pois tu não pretendes, de todos os modos, que o amor seja por natureza tão importante, que não saiba enfrentar nenhum obstáculo. Pois, por outro lado, pensas que o dever, somente aparecendo, terminará com o amor; crês, além do mais, que o dever aparece mais tarde ou mais cedo, não só no amor conjugal, como também no amor romântico; e como consequência, temos sobretudo ao amor conjugal, porque comporta o dever de tal forma que este se impondo, não podes escapar a ele. Ao contrário, dizes, nada mais natural no amor romântico, porque, chegado o momento de falar em dever, o amor já não existe, de modo que a chegada do dever é para ti um sinal para fazer tua reverência, ou como dizias uma vez, o sinal com o qual consideras que é teu dever eclipsar-se. Aqui vês, uma vez mais, o que sucede com teus elogios do amor. Se o amor tem como inimigo o dever, sobre o qual pode triunfar, não é vencedor verdadeiro, por conseguinte, deves deixar o amor livre à sua sorte. Havendo-te posto na cabeça essa ideia desesperada do dever como inimigo do amor, tua derrota é certa; e não obstante rebaixas-te o amor, tirando-lhe a majestade, como não fizeste como o dever. E era, não obstante, este que querias denegrir. Uma vez mais, é o desespero, seja que compreendas quão dolorosa é essa situação, ou que desesperado precisamente por isso, trates de esquecê-la. Se não queres chegar a ver que a estética, a ética e o religioso são três grandes aliados; se não sabes conservar a unidade dos diversos modos de expressão que tudo adquires nessas diversas esferas, então a vida não tem sentido, e é mister aprovar sem reservas tua teoria segundo a qual se pode dizer de todas as coisas: "Faz isto ou aquilo, lamentarás tanto um quanto o outro." Não estou, como tu, na triste necessidade de empreender contra o dever uma campanha de resultado sempre infausto. Para mim o dever não é um clima, e o amor, outro; para mim, o dever faz do amor o verdadeiro clima temperado e vice-versa; e essa síntese é perfeita. Contudo, para pôr em evidência o erro de tua doutrina, examinarei esse ponto mais largamente, rogando-te que consideres as diversas maneiras em que se pode sentir que o dever é inimigo do amor. Imagina um homem que se casou sem tomar consciência da função ética que comporta o matrimônio. Ama com toda a paixão da juventude, porém, de repente, uma causa exterior o coloca na dúvida: pergunta-se se aquela a quem ama, e a quem está unido pelo vínculo do dever, não poderá acreditar que ele a ame unicamente por dever. Acha-se assim em um caso semelhante ao que já assinalei: para ele também o dever parece estar em oposição ao amor; porém, ama, e seu amor é para ele o bem supremo; empenha-se, pois, em vencer esse inimigo. E quem amar a sua mulher não porque o dever o ordene, não segundo a parca medida do quantum satis que o dever poderia prescrever; quer amá-la com toda a sua alma, consagrando-lhe toda a sua força e todas as suas faculdades, quer amá-la ainda no momento em que o dever poderia acaso autorizá-lo a ser livre. Imagina sua confusão. Que farás? Ama com toda a sua alma; porém isso é justamente o que o dever lhe ordena; não nos deixemos perturbar pelos discursos dos que se afirmam que o dever não é, no matrimônio, senão uma série de fórmulas de cerimônia. O dever é simplesmente um dever, que consiste em amar realmente, no movimento interior do coração. É tão proteiforme como o amor; declara boas e santas todas as coisas que vêm do amor e reduz a cinzas, por mais formosas e enganosas que sejam quando não vêm do amor. Vês como nosso homem tomou uma posição falsa; porém, como nele há o gosto pela verdade, quando quer fazer mais do que o dever lhe ordena, não faz mais nem menos que obedecer ao dever. Esse excesso é o cumprimento mesmo desse amor, porque o excesso que eu possa fazer consiste sempre em fazer o que o dever ordena. O dever ordena e não pode fazer mais; tudo que eu posso é fazer o que o dever manda; e no instante em que o faço, posso, em certo sentido, dizer que faço mais. Translado o dever do exterior para o interior. Vês ali quanta harmonia, quanta sabedoria, quantas consequências infinitas reinam no mundo do espírito. Quando se parte de um ponto preciso, e se segue tranquilamente com energia e verdade, somente pode tratar-se de uma ilusão, se todo o resto parece contradizer-nos. E se se crê sair ganhando em mostrar o inarmônico, mostra-se, ao contrário, a harmonia. O esposo de que falávamos sai, pois, muito bem situado de nosso exemplo; o único castigo em que incorre é escutar como o dever o reprova amavelmente por sua pouca fé. Amor e dever seguem em uníssono. Quando, à semelhança desse homem, tu os separas e pretendes fazer de uma parte o todo, cais continuamente em contradição. É como se no fenômeno be quisesses separar b e e para eliminar e, dizendo que b é tudo. No momento em que pronunciamos b, dizemos também e. O mesmo ocorre com o amor verdadeiro: não é um eu mudo e inexpressivo, porém, tampouco uma imprecisão débil e inconsistente. É um som articulado, uma sílaba. Se o dever é duro, o amor expressa essa qualidade, o realiza, e cumpre com isso mais que o dever: se o amor está por enfraquecer-se a ponto de não poder manter-se, o dever, então, impõe-lhe limites. Se isso ocorre com tua concepção que vê no dever o inimigo do amor, te sucederia o mesmo que aquele de quem falávamos; porém, se tuas opiniões são errôneas, são, ao mesmo tempo, culpáveis. Por isso tu rebaixas não só o dever, mas também o amor; por isso, o dever aparece como um inimigo invencível; porque ama o amor verdadeiro e professa ao falso amor um ódio mortal, e o mata. Quando os esposos se amam realmente, não querem reconhecer no amor outra coisa que uma voz eterna, que lhes diz que o caminho segue até a eternidade; e esse caminho que estão dispostos a seguir não somente lhes está franqueado, como também os intima a fazê-lo; e acima desse caminho vela uma Divina Providência que lhes abre sem cessar o horizonte e põe indicações nos lugares perigosos. Se se ama realmente, por que recusaria uma autorização divina, com o pretexto de que se expressa em linguagem divina, e não diz simplesmente: "Convém", mas sim diz: "Deves." Para os amantes, tudo está em ordem; e eu creio que, em nossa língua, o dever se expressa no futuro é para fazer marcante seu caráter histórico. 7. Remessa Terminei este pequeno trabalho. Quiçá te tenha impressionado; sentes que tudo se transtornou e não podes mostrar-te intratável diante da consequência que me guiou. Apesar disso, se eu houvesse falado simplesmente contigo, ter-te-ia dado trabalho abster-te de uma reflexão maliciosa, acusando-me de haver-te passado um sermão. Porém não me dirás que minha exposição padece desse defeito. Não o é inteiramente, como deveria sê-lo, talvez, quando se dirige a um pecador tão empedernido como tu. E por tuas teorias e teus discursos que às vezes lembram estranhamente o livro de Eclesiastes, poderia crer-se, deveras, que dele tiraste teus argumentos. Porém, tu mesmo me dás a ocasião de examinar esse problema. Em geral, tu não falas da ética com desdém, e é preciso que estejas realmente enfastiado para que tu a deixes de lado. Enquanto podes fazê-lo, tu a conservas a teu lado. "Não deprecio em absoluto o dever", assim começas comumente com uma voz cheia de doçura o discurso em que preparas uma sutil e funesta emboscada. Longe disso. Porém, antes de tudo é necessário ver claro. O dever é o dever, o amor é o amor, não façamos confusões. Ou será o amor o único monstro da natureza em sua ambiguidade hermafrodita? Tudo é dever ou então amor. Reconheço que o homem tem o dever de procurar uma situação firme na vida, de ser fiel no exercício de suas funções, e merece ser castigado quando não o faz. Isso é o dever. Assumo uma tarefa precisa, posso dizer exatamente em que consiste, prometo cumpri-la escrupulosamente, e se não o fizesse, uma potência superior poderia impor-me. Porém, eis que, por outro lado, ligo-me estreitamente a um amigo: nesse caso, o sentimento é tudo e não reconheço dever algum; se o sentimento passa, a amizade desaparece. Isso também está claro, somente o matrimônio, ao contrário, se baseia no absurdo. Pois o que significa a obrigação de amar? Onde está o limite? Quando terei cumprido meu dever? Em que consiste exatamente? A que tribunal dirigir-me-ei em caso de conflito? E se não cumpro meu dever, onde está a potência que possa obrigar-me? O Estado e a Igreja traçaram, é certo, um limite; porém, ainda que sem ultrapassá-lo, não posso ser um mau marido? Quem me castigará, quem tomará a defesa da que sofre com minha conduta? Respondo: 'Tu mesmo." Antes, porém de acabar com a confusão que acabas de atirar-nos a nós dois, necessito formular uma observação. Há frequentemente em tuas expressões certo equívoco que é essencialmente próprio de teu espírito. Homens mais ligeiros que tu poderiam pronunciá-las, e também poderia fazê-lo o temperamento mais melancólico. Sabes muito bem por que é um dos teus métodos para causar admiração nas pessoas. Repensas as mesmas coisas, com intervalos, pondo o acento sobre pontos diferentes, e tudo adquire um novo aspecto. Se se te objeta que apenas mudaste de linguagem, respondes com o maior sangue frio: "Acaso não disse a mesma coisa, palavra por palavra?" Deixemos esse ponto. Vejamos o que há em tua mente. Conheces o adágio dos romanos, que se conservou através dos séculos, e que é característico de sua habilidade política: Divide et impera. Pode ser aplicado, em um sentido muito mais profundo, aos métodos de razão cuja política astuta consiste em dividir para assegurar-se assim a supremacia. Pois as potências que, aliadas, seriam invencíveis se destroem entre si quando estão divididas, quando são reciprocamente hostis, e então a razão conserva seu império. Crês, pois, que todo o resto da vida se reduz à categoria do dever ou a seu oposto, e que ninguém pensou em traçar outra lei: somente o matrimônio seria culpado dessa contradição. Citas como exemplo o dever profissional, e o crês muito característico em matéria de dever estrito. Porém, não é o mesmo caso. Pois se a pessoa concebe sua profissão como uma soma de ocupações, que se cumprem em certo tempo e lugar, deprime sua pessoa, sua profissão, seu dever. Crês que semelhante maneira de ver faria bons empregados? Onde ficariam então o entusiasmo que santifica o trabalho, onde fica o amor com que o amamos? Que foro proporias para avaliá-lo? Não se requer que essa vigilância seja exercida pela pessoa mesma, e o Estado não consideraria a quem tome seu emprego sem essa responsabilidade como um mercenário, cujo trabalho poderia utilizar sem dúvida, e pagar-lhe em consequência, porém, em outro sentido como um funcionário indigno. E se o Estado não o diz expressamente, a razão é que pede um trabalho exterior e tangível que, cumprido, pressupõe o resto. No matrimônio, ao contrário, o essencial é o interior, o que não se pode indicar, mostrar com o dedo o que acha precisamente sua expressão no amor. Não vejo, pois, contradição alguma em submeter o matrimônio ao dever: pouco importa que ninguém esteja ali para medir, posto que o homem se mede a si mesmo. E se persistes em tal argumento, é porque entendes, por esse melo, subtrair-te de teu dever, ou então porque tens um medo tão grande de ti mesmo que desejarias pôr-te baixo à tua tutela. Porém, os dois casos são igualmente errôneos e inadmissíveis. Se reténs meus argumentos tais como os expus, verás que, mantendo o caráter interior do dever no amor, não o faço com a terrível angústia que mostram, fazendo-o, alguns, cujo espírito prosaicamente razoável começou por destruir o imediato, e que só tomasse conhecimento do dever em seus últimos dias. Verás que não procedo como alguns que, em sua cegueira, não têm termos bastante fortes para cobrir de desprezo a face natural do homem, palavras bastante estúpidas para elogiar o dever como se fosse, deste modo, outra coisa que a que tu te referes. A Deus graças, não conheço eu tal divórcio: não, eu não fugi com meu amor para lugares desertos e selvagens para perder-me na solidão; nem me aconselhei com os vizinhos para saber o que teria que fazer: esse isolamento e esse "particularismo" são duas loucuras. Constantemente tenho diante de mim umas impresa vestigia, umas pisadas marcadas, ainda falando desse valor universal que é o dever. Senti também que há instantes em que o único meio de salvação consiste em deixar falar o dever, que é saudável aceitar o castigo, não com melancolia afeminada de um Heautontimoroumenos, senão com todo o peso da sociedade; porém não tive medo do dever; não se me apresentou como um inimigo disposto a transtornar o pouco de ventura e de júbilo que eu havia esperado salvar na vida; mostrou-se a mim como um amigo, o primeiro e único confidente de nosso amor. Porém essa força em que sempre temos livres perspectivas é a bênção do dever, enquanto que o amor romântico se extravia ou se destrói, em razão de seu caráter desprovido de história. Dixi et animam meam liberavi. Não porque minha alma estivesse até aqui presa e se tenha aliviado com esse grande discurso: não, ela tem respirado com desembaraço, gozando de sua liberdade. Respiração se diz em latim respiratio, palavra que expressa o refluxo do que primeiro se aspirou. O organismo goza de sua liberdade na respiração: do mesmo modo, nesta obra, gozei de minha liberdade e de minha liberdade cotidiana. Recebe agora com boa disposição o que te ofereci com bom pensamento. Se o achares insuficiente para satisfazer-te, olha se tu mesmo não poderias preparar-te melhor, se não esqueceste tal ou qual regra de prudência. Uma velha lenda fala de um imenso gigante, de apetite inextinguível, que chegou à rasa de um camponês cuja comida quis compartilhar. O aldeão apresentou as modestas provisões de seu lar, e os olhos glutões do gigante as devoraram todas: com o que calculou, certeiramente que não ficaria satisfeito, ainda que comesse tudo. Não obstante, sentam-se à mesa. O camponês não come por uns instantes, temeroso de que não haja bastante para os seus. O gigante estende a mão para o prato, porém. o outro o detém com estas palavras: "Aqui temos o costume de rezar primeiro." O gigante consente e todos comem até saciar-se. Dixi et animam meam liberavi. Porque eu também livrei a que continuo amando com a frescura da paixão, não que ela estivesse antes presa, mas sim porque se alegrou comigo em nossa liberdade. Recebe minhas cordiais saudações e, como de costume, uma mensagem de carinho de minha mulher. Faz tempo que não te vemos em nossa casa. Digo isso no sentido próprio e no figurado: porque, se nos quinze dias, cujas noites passei escrevendo esta carta, Instar omnium, te vi constantemente em minha casa, não posso dizer que te tenha visto aqui, em minha casa, mas sim diante de minha porta, de onde, com meu enérgico esforço discursivo, tratei quase de expulsar-te; e essa ocupação não me foi desagradável, é preciso que seja dito com a certeza de que não me interpretarás mal. Não obstante, será sempre para mim um prazer verte entre nós, no sentido próprio e no figurado: digo-o com todo o orgulho do esposo autorizado a empregar a fórmula "entre nós". Também, entretanto, com todo o respeito humano que qualquer pessoa pode estar certa de falar "entre nós". Seria inútil, pois, dirigir-te um convite da família para, no próximo domingo, passar o dia em nossa casa. Vem quando quiseres, porque és sempre bem-vindo. Fica quanto queiras, porque sempre serás um hóspede agradável. Vai embora quando quiseres: sempre à tua disposição. O assessor Wilhelm.