Michel Montaingne – Ensaios Livro 1 DO AUTOR AO LEITOR Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé. Adverte-o ele de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Votei-o em particular a meus parentes e amigos e isso a fim de que, quando eu não for mais deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto o permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu. Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância. E agora, que Deus o proteja. De Montaigne, em primeiro de março de 1580. CAPÍTULO I POR DIVERSOS MEIOS CHEGA-SE AO MESMO FIM A MANEIRA mais comum de amolecer o coração dos que nos ofendem, quando, vingança em mãos, eles nos têm à sua mercê, é comovê-los pela nossa submissão, inspirando-lhes comiseração e piedade. Entretanto a bravura, a tenacidade e a resolução, meios inteiramente opostos, alcançam às vezes idêntico resultado. Eduardo, Príncipe de Gales, que durante tanto tempo governou a nossa Guyenne e personagem cujos atos e carreira revelam muita magnitude, tendo-se apoderado pela força de Limoges, ordenara o massacre dos habitantes que o haviam gravemente ofendido. Caminhava ele pela cidade sem que os gritos dos homens, mulheres e crianças assim condenados à morte lhe amolecessem a alma, quando deparou com três fidalgos franceses que, sozinhos, e com incrível ousadia, enfrentavam o exército vitorioso. Essa coragem inspirou-lhe tal consideração e respeito, que subitamente se lhe acalmou a cólera; e o perdão que de imediato concedeu aos temerários, ele o estendeu aos demais habitantes da cidade. Scanderberg, Príncipe do Epiro, perseguia um de seus soldados com a intenção de matá-lo. Este, depois de ter tentado em vão acalmá-lo com protestos de toda espécie e as mais humildes súplicas, resolveu, em desespero de causa, espera-lo de espada na mão. O gesto resoluto freou instantaneamente a exasperação do senhor, o qual, ao ver tão honrosa atitude, outorgou mercê ao perseguido. O exemplo é suscetível de ser interpretado de outra maneira, mas tão somente por quem ignore a força prodigiosa e a valentia desse príncipe. O Imperador Conrado III, assediando o Duque da Baviera, não consentira em deixar sair da cidade senão as mulheres dos fidalgos que ali se encontravam. Comprometera-se a respeitar-lhes a honra, mas à condição de saírem a pé e levando apenas, com elas, o que pudessem carregar; e recusara-se a atenuar tais condições, por mais humilhantes que fossem as satisfações oferecidas pelo inimigo. Atentando unicamente para os ditames do coração, lembraram-se as mulheres de levar às costas os maridos, os filhos e o próprio duque. Impressionou-se o Imperador a tal ponto com essa prova de coragem que chegou a chorar de emoção. O ódio mortal que votara ao duque, cuja desgraça desejava, tornou-se menos violento e a partir desse momento ele o tratou, e aos seus, com humanidade. Ambos os meios dariam resultado comigo, pois tenho grande propensão para a misericórdia e a benevolência. Entretanto, acho que cederia mais facilmente ainda pela compaixão do que pela admiração, embora a piedade seja considerada paixão condenável pelos estoicos, os quais admitem que socorramos os aflitos mas não que nos enterneçamos ante o sofrimento ou dele nos compadeçamos. Os exemplos que precedem parecem-me sublinhar melhor a realidade das coisas. Mostram-nos a alma em luta com estes dois sentimentos contrários: resistir a um sem dobrar e ceder ao outro. Isso se explica se admitimos que entregar-se à piedade é mais fácil e característico dos corações bondosos e pouco enérgicos. As pessoas mais fracas, como as mulheres, as crianças e a gente do povo, a tanto são levadas habitualmente. Ao passo que não se deixar enternecer pelas lágrimas e súplicas e atentar somente para as provas manifestas de indiscutível coragem, é peculiar às almas bem temperadas, que apreciam e honram os caracteres enérgicos e tenazes. Entretanto, espanto e admiração podem produzir semelhantes efeitos nas naturezas menos generosas; haja vista o povo de Tebas que, chamado a julgar no processo intentado contra os capitães de seus exércitos, por se terem mantido nos cargos além do tempo em que deviam ocupá-los, com dificuldade absolveu Pelópidas, deprimido pela acusação e não sabendo defender-se senão com lamentações e súplicas, enquanto, ao contrário, diante de Epaminondas - que, depois de expor em termos exaltados os atos de seu comando, pôs-se, cabeça erguida e verbo sarcástico, a censurar ao povo sua ingratidão - a assembleia, tomada de admiração por homem de tão bela coragem, dispersou-se sem ir ao escrutínio. Díonísio, tirano de Siracusa, tendo-se apoderado, após longo e difícil assédio, da cidade de Reggio e com ela de Phyton, homem de grande virtude que comandara a obstinada defesa, quis vingar-se de maneira que viesse a constituir um exemplo. Antes de mais nada comunicou-lhe ter mandado afogar o filho e seus demais parentes, ao que Phyton respondeu apenas que tinham sido mais felizes, por um dia, do que ele próprio. Dionísio entregou-o então aos carrascos que o despojaram de suas roupas e o arrastaram pela cidade, vergastando-o ignominiosamente e o acabrunhando com as mais brutais e cruéis injúrias. Phyton, conservando presença de espírito e coragem, não afrouxa, continuando a vangloriar-se em voz alta de sua honrosa e gloriosa defesa, causa de sua próxima morte e prova de que não quisera entregar sua pátria ao tirano, ao qual ameaça com a punição dos deuses. Lendo nos olhos da maioria dos soldados que estes, em vez de se irritarem com as bravatas, eram levados a desprezar seu próprio chefe e a depreciar a vitória, e, espantados com tamanha coragem, se iam comovendo e já resmungavam, falando mesmo de arrancar Phyton das mãos dos carrascos. Denis pôs fim ao martírio, mandando jogá-lo às escondidas no mar. Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme. Eis Pompeu que perdoa toda a cidade dos Marmentinos contra a qual estava muito irritado, por consideração para com a virtude e a grandeza de alma de Zenão que reivindicava e solicitava ser castigado sozinho. No entanto, em semelhante circunstância, em Pérusa, o hospedeiro de Sila nada obteve, nem para si mesmo nem para os outros. E contra meus primeiros exemplos vemos Alexandre, o homem mais denodado que jamais houve e tão magnânimo com os vencidos, agir de modo bem diferente em Gaza, conquistada após numerosas e grandes dificuldades, contra Bétis que comandava a praça e que durante o sítio dera provas de brilhante coragem. Encontrando-o só, abandonado pelos seus, de armas partidas e coberto de sangue a lutar ainda no meio de um punhado de macedônios que o atacavam de todos os lados, Alexandre, vivamente afetado por uma vitória tão cara mente paga (entre outros prejuízos recebera ele próprio dois ferimentos), disse-lhe: "Não morrerás como o ambicionas, Bétis; fica certo de que antes sofrerás os mais cruéis tormentos que se inventam contra um cativo". Nada respondendo Bétis à ameaça, antes tomando uma atitude de altivez e desafio, Alexandre, diante do silêncio orgulhoso e obstinado, exclamou: "Não dobrou sequer o joelho! Não fez sequer um pedido! Pois eu acabarei com esse mutismo e, se não puder arrancar-lhe uma palavra, conseguirei pelo menos um gemido!” E, passando da cólera à raiva, mandou furar-lhe os calcanhares e amarrá-lo ainda em vida a um carro para que, assim arrastado, se fizesse em pedaços. Qual terá sido o móvel dessa crueldade em Alexandre? Tal coragem terá parecido natural e pouco digna de apreço em quem também a possuía em alto grau? Ou não podia ele ver em outros sem inveja a sua própria qualidade? Ou não era capaz de dominar-se diante de um obstáculo à sua cólera? O fato é que, se fosse capaz de domínio sobre si mesmo, tê-lo-ia exercido por ocasião da tomada e saque de Tebas, onde tantos valentes guerreiros, cuja resistência se desmantelara, foram passados pelo fio da espada, assim morrendo seis mil, dos quais nenhum se viu fugir ou rogar mercê. Ao contrário, andavam todos pelas ruas a enfrentarem os vencedores, forçando-os a matar em condições honrosas. Não se viu nenhum, por mais crivado de ferimentos estivesse, que não tentasse ainda vingar-se. No seu desespero, tudo lhes servia de arma, consolando-se da própria morte com a morte de alguns de seus inimigos. Essa coragem infeliz não acordou, entretanto, em Alexandre, nenhuma piedade; e um dia inteiro de carnificina não bastou para estancar-lhe a sede de vingança. O massacre não findou senão quando acabaram as vítimas. E somente as pessoas incapazes de carregar armas, mulheres e crianças, foram poupadas, sendo, em número de trinta mil, reduzidas a escravos. CAPÍTULO II DA TRISTEZA Sou dos que menos sentem essa disposição de espírito, não a aprecio nem a valorizo, embora de um modo geral, e preconceituosamente, os homens a respeitem e estimem. Com ela enfeitam a sabedoria, a virtude, a consciência, mas o adorno é pobre e feio. Os italianos com muito mais razão deram seu nome à maldade, pois ela é sempre nociva, sempre insensata, e também covarde e desprezível: os estoicos a proíbem aos sábios. Diz-nos a história que Psamético, rei do Egito vencido por Cambises, rei da Pérsia, vendo passar a filha, como ele próprio cativa, e que ia buscar água vestida de serva, permaneceu mudo, olhos voltados para o chão, enquanto choravam todos os seus amigos. Vendo logo depois o filho, que conduziam para a morte, conservou a mesma atitude. No entanto, diante de um criado que levavam à tortura, juntamente com outros prisioneiros, pôs-se a golpear a cabeça demonstrando extrema aflição. Pode-se comparar esse fato ao que ocorreu recentemente com um de nossos príncipes, o qual recebeu em Trento a notícia da morte do irmão mais velho, sustentáculo da honra e da manutenção da família. Logo depois sabia do falecimento do segundo irmão para o qual, desaparecido o primeiro, voltavam todas as esperanças. Ambas as desgraças ele as suportou com coragem exemplar. Eis que dias mais tarde vem a morrer um dos seus amigos, ao que não pôde resistir. Sua resolução o abandona e ele se desfaz em lágrimas e lamentações, a ponto de observarem que somente ao último acontecimento se mostrara realmente sensível. Na verdade a medida estava cheia e uma coisa de nonada bastara para abater-lhe a energia e provocar um transbordamento de tristeza. Poder-se-ia, creio, assim explicar igualmente a atitude de Psamético, se não acrescentasse a história que Cambises, tendo-lhe perguntado por que motivo ele, que tão pouco se mostrara perturbado com a infelicidade da filha e do filho, tanto se afetara ante a de um amigo, recebeu esta resposta: "É que só esta última tristeza é suscetível de se exprimir por lágrimas; a dor sofrida nos dois primeiros casos está além de qualquer expressão." A propósito, vem-me à memória o caso daquele pintor antigo que, no sacrifício de Ifigênia, teve de representar o sofrimento dos diversos personagens segundo o grau de interesse que cada um votava à bela e inocente jovem, e que ao chegar ao pai da virgem já havia esgotado todos os recursos de sua arte. Diante da impossibilidade de dar-lhe uma atitude em relação com a intensidade da dor, pintou-o de rosto coberto, como se nenhuma expressão pudesse ilustrar semelhante desespero. Eis por que os poetas imaginam a miserável Niobé, que depois de perder seus sete filhos viu morrerem as sete filhas, transmudada em rochedo pela sobrecarga de desventura: "petrificada pela dor? a fim de exprimir essa espécie de embrutecimento sombrio, surdo e mudo que se apodera de nós quando as ocorrências nos esmagam ultrapassando o que nos é dado suportar. E, efetivamente, uma dor excessiva, exatamente porque excessiva, deve estupidificar a alma a ponto de paralisar qualquer gesto, como acontece quando recebemos inesperadamente uma péssima notícia. Somos tomados de espanto, penetrados de pavor ou de aflição e como tolhidos em nossos movimentos até que à prostração suceda o relaxamento. Surgem então as lágrimas e os lamentos que aliviam a alma e como que lhe permitem mover-se mais à vontade: "é com dificuldade que afinal recupera a voz e pode exprimir sua dor". Durante a guerra do Rei Fernando contra o rei da Hungria perto de Buda um dos guerreiros mostrou-se particularmente valente nos combates que se verificaram. Ninguém o reconhecera e todos o elogiavam e lhe lamentavam a sorte porquanto sucumbira na refrega. E ninguém mais do que um Sr. de Raisciac, fidalgo alemão, o engrandecia, entusiasmado com tão rara coragem. Recolhido o corpo, Raisciac aproximou-se como os demais para ver quem era, e ao lhe tirarem a armadura reconheceu o filho. A emoção dos presentes aumentou mais ainda; só ele permaneceu impassível, sem dizer palavra, sem pestanejar, de pé, contemplando fixamente o corpo até que a violência da dor tendo atingido o próprio princípio da vida o derrubasse para sempre. "Quem pode dizer a que ponto arde, arde bem pouco? dizem os amantes que querem exprimir insuportável paixão ou: Quão miserável sou! O amor perturba-me os sentidos. À tua vista, ó Lésbia, perco a razão. Falar está acima de minhas forças, minha língua engrola, uma chama sutil percorre-me as veias, mil ruídos confusos soam-me aos ouvidos e o véu da noite estende-se sobre os meus olhos. Não é no auge de nossos transportes quando nos ferve o sangue nas veias que somos mais capazes de encontrar o tom que comove e persuade. Nesses momentos a alma está por demais absorvida em seus pensamentos, o corpo demasiado abatido e lânguido de amor; daí, por vezes, a inesperada e fortuita impotência que surpreende o amante tão fora de propósito; daí esse gelo que o envolve, em virtude do extremo ardor, na própria fonte de seu gozo. A paixão que se deixa saborear e digerir mal merece ser assim nomeada. "Os prazeres leves são loquazes, as grandes paixões silenciosas". Da mesma forma nos comove a surpresa de um prazer inesperado: "Logo ao ver-me, ao perceber de todos os lados as armas de Tróia, fora de si, como golpeada por pavorosa visão, se imobiliza. Seu sangue gela, desmaia e só muito tempo depois pode enfim falar". Além daquela romana que morreu de alegria ao ver o filho escapar da derrota de Canes; além de Sófocles e Dionísio, o tirano, que também morreram de alegria ao receberem uma boa notícia; e Talma que faleceu na Córsega ao saber das honras que o Senado de Roma lhe conferira; vimos neste século o Papa Leão X que, ao ter notícia da tomada de Milão, tão ardentemente desejada, experimentou tal carga de alegria que a febre o assaltou, levando-o à morte. E mais um testemunho comprovador da fraqueza humana tirado dos antigos: Deodoro, o dialético, vendo-se em suas aulas públicas incapaz, de repente, de responder às objeções que lhe faziam, sentiu tamanha vergonha que morreu na hora. Quanto a mim, sou pouco predisposto a essas paixões violentas; tenho uma sensibilidade, naturalmente grosseira e a tomo mais espessa ainda e empedernida mediante raciocínios diários. CAPÍTULO III DOS NOSSOS ÓDIOS E AFEIÇÕES Os que censuram aos homens sempre se preocuparem com as coisas futuras e nos ensinam a gozar os bens presentes, e com eles nos contentarmos, observando que não mandamos no que está por vir, talvez, menos ainda do que no passado, referem-se ao mais corriqueiro dos erros humanos, se é que se pode chamar erro a essa tendência que, embora a ela sejamos impelidos pela própria natureza no afã da continuidade de sua obra, falseia a nossa imaginação, mais exigente de ação que de ciência, ainda que ignoremos aonde nos leva. Nunca estamos em nós; estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-nos o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais. "Todo espírito preocupado com o futuro é infeliz.” "Faze aquilo para que és feito e conhece-te a ti mesmo", eis um grande preceito amiúde citado em Platão. E cada um dos membros dessa proposição já nos aponta nosso dever, e traz em si o outro. Quem se aplicasse em fazer aquilo para que é feito perceberia que lhe é necessário adquirir antes de mais nada o conhecimento de si próprio e daquilo a que está apto. E quem se conhece não erra acerca de sua capacidade, porque se aprecia a si mesmo e procura melhorar, recusando as ocupações supérfluas, os pensamentos e os projetos inúteis. Da mesma forma que a loucura não se satisfaz ainda que cedamos a seus desejos, a sabedoria, sempre satisfeita com o presente, nunca se descompraz consigo mesma. A ponto de Epicuro considerar que nem a previdência nem a preocupação com o futuro são peculiares ao sábio. Entre as leis relativas ao homem depois da morte, das mais justificáveis se me afigura a que submete as ações dos príncipes a um julgamento póstumo. Os príncipes com efeito devem submeter-se às leis, pois não pairam acima delas. E por não poder a justiça nada contra eles, quando vivos, natural me parece que ao desaparecerem deva ela agir sobre sua reputação e os bens legados, coisas que não raro preferimos à vida. É um uso que não acarreta senão vantagens às nações que o adotam. E os bons príncipes, que poderiam queixar-se de ver tratada a memória dos maus como a sua, hão de desejá-Lo. Devemos disciplina e obediência aos reis, bons ou maus; isso é indispensável para que desempenhem seu papel. Mas nossa estima e nossa afeição, não lhas devemos, a não ser que as mereçam. Admitamos que as necessidades políticas nos obriguem a suportá-los com paciência por mais que sejam indignos, a dissimular-lhes os vícios, a endossar-lhes os atos quaisquer que sejam, na medida de nossas forças e desde que de tal endosso necessite a sua autoridade. Mas, cumprindo esse dever, não há razão para que nos recusemos a julgá-los e não tenhamos a liberdade de exprimir nossos ressentimentos se for o caso, nem que nos neguemos a honrar esses bons servidores que, embora conhecendo as imperfeições do senhor, o serviram com respeito e fidelidade, exemplo útil a ser transmitido à posteridade. Aqueles que, em virtude de obrigações pessoais, defendem sem razão a memória de um príncipe indigno, fazem ato de justiça privada em prejuízo da justiça pública. Tito Lívio anda certo ao observar que a linguagem dos homens enfeudados à realeza é sempre cheia de vãs ostentações e falsos testemunhos, encarando cada qual o seu rei independentemente de seus méritos como um soberano cujo valor e cuja grandeza não podem ser ultrapassados. Pode-se reprovar a altivez dos soldados que responderam a Nero, o qual perguntara a um deles por que lhe queria mal e ao outro por que o desejava matar: "Gostava de ti quando eras digno desse sentimento", respondeu o primeiro; "desde, porém, que te tornaste parricida, incendiário, histrião, cocheiro, odeio-te como o mereces". E o segundo afirmou: "Porque não vejo outro remédio para teus contínuos desmandos." Mas quem há de reprovar os testemunhos públicos e universais que depois de sua morte foram obtidos contra esse príncipe, seus tirânicos e odiosos entusiasmos, testemunhos que o estigmatizaram para sempre - e como ele todos os maus? Lamento que entre os usos e costumes tão sábios da Lacedemônia se tenha introduzido uma hipócrita cerimônia por ocasião da morte dos reis. Todos os confederados e os povos vizinhos, juntamente com os hilotas, homens e mulheres, feriam a fronte em sinal de luto, proclamando entre gritos e lamentações que o defunto (bom ou mau tivesse sido) fora o melhor dos reis que haviam tido. Davam, assim, à condição os louvores que ao mérito deveriam caber, e relegavam para o último lugar aquilo que em primeiro deveria estar. Aristóteles, que trata de todos os assuntos, indaga, a propósito das palavras de Sólon: "ninguém se pode dizer feliz antes de morrer", se quem viveu e morreu segundo seus desejos, mas deixou má reputação ou os seus pósteros na miséria, deve qualificar-se como feliz. Enquanto vivemos temos a faculdade de fazer com que nosso pensamento se pouse onde queremos; quando deixamos de existir acabam as possíveis comunicações com o mundo vivo. Eis por que Sólon teria dito melhor se houvesse afirmado que o homem não é nunca feliz, porquanto só o é quando já não mais existe. "Encontra-se com dificuldade um sábio capaz de fugir da vida e a repelir: ignorante do futuro, o homem imagina que parte de seu ser sobrevive e não pode libertar-se desse corpo que perece e cai." Bertrand du Guesclin morreu no sítio do castelo de Randon em Puy, na Auvergne. Tendo os sitiados capitulado depois da morte dele, viram-se obrigados a depor as chaves da cidade sobre o seu cadáver. Barthélemy de Alviane, general do exército veneziano, tendo morrido na batalha perto de Brescia, tornou-se necessário, a fim de transportar o corpo para Veneza, atravessar o território inimigo de Verona. Os chefes venezianos em sua maioria eram de opinião que se pedisse um salvo-conduto aos veroneses. Théodore Trivulce a isso se opôs, preferindo passar à força, ainda que fosse preciso combater, pois não era decente, disse, que quem em vida jamais temera o inimigo parecesse amedrontar-se depois de morto. - As leis gregas apresentam-nos algo semelhante: quem solicitava do inimigo um corpo para inuma-lo renunciava à vitória e não mais a podia consagrar com um troféu; e aquele a quem a solicitação era feita considerava-se vencedor. Nícias assim perdeu as vantagens nítidas que conseguira contra os coríntios e, inversamente, Agesilas desse modo assegurou um êxito mais do que duvidoso sobre os beócios. Tais fatos poderiam parecer estranhos, se desde sempre não juntassem os homens à preocupação do além a crença de que as bênçãos celestes o acompanham ao túmulo e se estendem a seus restos. E tantos são os exemplos antigos a esse respeito - sem falar nos de hoje - que não se faz preciso insistir. Eduardo I, rei da Inglaterra, tendo observado nas suas intermináveis guerras contra Roberto, rei da Escócia, a que ponto sua presença contribuía para o êxito, cabendo-lhe a vitória lá onde ele se encontrava, no momento de render o último suspiro obrigou o filho, mediante juramento solene, a mandar ferver-lhe o corpo depois de morto para que, separando-se as carnes dos ossos, se enterrassem aquelas e se transportassem estes com o exército sempre que marchassem contra os escoceses. Como se o destino houvesse fatalmente subordinado a vitória à presença dos ossos. - Jean Ghiska,! Que perturbou a Boêmia na defesa dos erros de Wiclef, exigiu que depois o esfolassem e com a pele fizessem um tambor que usariam quando pegassem em armas contra os inimigos, imaginando que dessa maneira ajudaria a manter as vantagens obtidas nas guerras anteriores. Certas tribos de índios também levavam para o combate contra os espanhóis os ossos de um de seus chefes por causa dos êxitos que tivera em vida. Outras tribos desse mesmo continente carregam com elas, na guerra, os corpos dos seus guerreiros que se tenham distinguido pela valentia e morrido na luta, pois os consideram suscetíveis de darem sorte e servirem de estímulo. Mostram-nos os primeiros exemplos a recordação de nossos feitos honrosos acompanhando-nos ao túmulo; os últimos atribuem; ademais, a essa recordação, um sentido afetivo. O caso de Bayard é mais admissível. Esse chefe ao sentir-se mortalmente ferido por um tiro de arcabuz no corpo, e instado a retirar-se da luta, respondeu que não era no momento de findar que iria começar a virar as costas ao inimigo. E continuou a pelejar enquanto as forças o permitiram. E, não podendo mais permanecer a cavalo porque se sentia desmaiar, mandou a seu escudeiro que o deitasse ao pé de uma árvore, porém de maneira a morrer com o rosto voltado para o inimigo. E assim se fez. Acrescentarei outro exemplo, tão interessante no gênero quanto os precedentes. O Imperador Maximiliano, bisavô do Rei Filipe, atualmente no trono, foi um príncipe dotado de numerosas e eminentes qualidades e notável pela sua beleza física. Entre as suas singularidades havia a de não se assemelhar a esses príncipes que para tratar dos negócios mais importantes fazem de sua retrete um trono. Nunca teve criado por mais familiar a quem permitisse vê-lo em trajes menores. Escondia-se para urinar e tão pudibundo quanto uma virgem, nem ao médico nem a ninguém mostrava as partes do corpo que costumamos cobrir. Eu, que tão impudente tenho a língua, sou entretanto, por temperamento, igualmente inclinado a semelhante discrição. E, a menos que a tanto seja levado por necessidade ou volúpia, não exponho aos olhos de ninguém as partes de meu corpo ou os atos íntimos que nossos costumes recomendam se soneguem à vista; e faço disso uma obrigação talvez maior do que convém a um homem, e em particular de minha profissão. Mas o Imperador Maximiliano a tal exagero chegara que ordenou expressamente em testamento que lhe pusessem ceroulas depois de morto, acrescentando que a pessoa encarregada dessa missão a desempenhasse de olhos vendados. O desejo expresso por Ciro a seus filhos de que nem eles nem ninguém lhe tocassem o corpo depois da morte, provém, imagino, de alguma prática devota, pois tanto ele como seu historiador, entre outras grandes qualidades, mostraram-se durante a vida especialmente dedicados à religião. Desagrada-me o que me contou certo indivíduo altamente colocado e diz respeito a pessoa de minhas relações íntimas, assaz conhecida pelos cargos que ocupou na paz como na guerra. Esta personagem, que morreu em sua Corte em idade avançada e após cruéis sofrimentos devidos a cálculos, passou suas últimas horas regulando com exagerados cuidados a cerimônia de seu enterro de modo a dar-lhe o maior relevo. Pedia aos nobres visitantes que se comprometessem sob palavra de honra a tornar parte no cortejo fúnebre. Ao próprio príncipe que me narrou o caso, pediu ele insistentemente mandasse vir o seu séquito, e citava exemplos e argumentava para provar que tanto se devia a um homem de sua condição. E, tendo arrancado tal promessa e estabelecido de acordo com suas ideias a distribuição e a ordem de parada, expirou aparentemente satisfeito. Não creio ter jamais visto tão persistente vaidade. Preocupar-se com regular os funerais ou de maneira original ou com excessiva parcimônia, como por exemplo reduzindo o acompanhamento a um simples servidor carregando uma lanterna, são singularidades inversas das precedentes, embora da mesma ordem e de que também encontro exemplos na minha família. Há entretanto quem aprove tais gestos, como aprovam a proibição de Marco Lépido a seus herdeiros de empregar o cerimonial adequado ao seu caso. Se assim agindo imaginamos fazer ato de temperança e austeridade, evitando uma despesa e uma satisfação que não gozaremos e cuja percepção nos será impossível, tal atitude em verdade não será muito meritória. Se me coubesse resolver quanto ao assunto, eu diria que nessas como em todas as demais circunstâncias da vida, cada qual deve orientar-se pela sua situação na sociedade, e o filósofo Lícon demonstrou sabedoria quando prescreveu a seus amigos que o enterrassem como achassem melhor, organizando funerais que não fossem nem supérfluos nem miseráveis. No que me diz respeito, que obedeçam aos usos em vigor; confio na discrição daqueles a quem caberá então tal incumbência. "Eis um cuidado que é preciso desprezar para si próprio e não negligenciar para os outros.” Santo Agostinho fala uma linguagem digna de um santo quando diz: - "A organização dos funerais, a escolha da sepultura, a pompa das exéquias, são menos necessárias à tranquilidade dos mortos do que ao consolo dos vivos." - No mesmo espírito, Sócrates ao morrer respondia a Críton que lhe perguntava como queria ser enterrado - "como quiserdes". Se eu devesse atentar mais completamente para a coisa, ser-me-ia agradável imitar os que, ainda em vida e na plena posse de suas faculdades, empreendem gozar antecipadamente as homenagens fúnebres que lhes serão prestadas, deleitando-se na contemplação de sua efígie reproduzida no mármore do túmulo. Felizes aqueles para quem ver o que serão quando não forem mais é um prazer, e que vivem de sua própria morte. Embora eu considere a soberania do povo a mais natural e racional, por pouco não me torno seu inconciliável adversário, tal aversão me infunde a atitude injusta e inumana dos atenienses que condenaram à morte e imediata execução, sem sequer lhes ouvir a defesa, os valentes capitães que acabavam de vencer os lacedemônios junto às ilhas Arginusas na batalha naval mais árdua e considerável que os gregos jamais tiveram. E por quê? Porque esses chefes após a vitória tinham procurado tirar partido de suas vantagens, de acordo com a arte da guerra, em vez de se atardarem em recolher os mortos e lhes darem sepultura. A odiosidade da execução ainda maior relevo apresenta ante a atitude de Diomedonte, um dos condenados, soldado e homem político de grande mérito. Depois de ouvir a sentença e diante da calma restabelecida na assembleia, adianta-se para falar e em lugar de usar a palavra em defesa da causa, pondo em evidência a iniquidade de tão cruel veredicto, não pensa senão nos juízes e pede aos deuses que os recompensem e lhes comunica que tais eram os votos dele próprio e de seus companheiros, temerosos de que a ira celeste despertada pela não observância dos deveres funerários se desviasse deles próprios, os beneficiários de tão brilhante êxito. E sem mais nada acrescentar, sem nenhuma recriminação, marchou corajosamente para o suplício. Alguns anos mais tarde, o destino puniu os atenienses por onde haviam pecado. Chabrias, comandante de sua frota, tendo vencido perto da ilha de Naxos, a Polis, almirante espartano, perdeu o fruto da vitória, de importância capital, receoso de idêntica condenação. Para não deixar sem sepultura os corpos de alguns dos seus homens, que flutuavam sobre as ondas, deixou que fugissem inúmeros inimigos, os quais, voltando-se ao depois contra ele, fizeram-no pagar caro a observância tão inoportuna dessa superstição. "Queres saber onde estarás depois de morto? Irás para onde se encontram as coisas ainda por nascerem.” Outros concedem em princípio o repouso ao corpo que a alma abandona. "Que não tenha túmulo para recebê-lo e onde, aliviado do peso da vida, seu corpo possa repousar em paz.” Tudo nos leva a crer que a morte não é o fim último. A própria natureza nos fornece exemplos de misteriosas relações entre o que não mais existe e o que vive ainda. Não experimenta o vinho nas adegas modificações correspondentes às que as estações imprimem às vinhas? E dizem também que a carne dos animais mortos na caça e conservada em salgadeiras se modifica e muda de gosto tal qual acontece com a desses mesmos animais quando vivos. CAPÍTULO IV DE COMO A ALMA QUE CARECE DE OBJETIVO PARA AS SUAS PAIXÕES AS MANIFESTA AINDA QUE AO ACASO Um fidalgo de nossa sociedade, sujeito a ataques de gota, tinha por hábito responder, gracejando, aos médicos que lhe recomendavam abster-se de carnes salgadas, que lhe apetecia responsabilizar alguém ou alguma coisa quando o mal o visitava e seu sofrimento aumentava. E aliviava-lhe a dor poder atribuir a causa disso ora ao chouriço, ora à língua de boi ou ao presunto que comera, mandando-os ao diabo. Em verdade, assim como nos dói o braço erguido para bater, se o golpe não alcança o alvo e atinge o vácuo, e assim como para tornar uma paisagem agradável é preciso que ela não se isole no espaço mas antes se apoie a um fundo apropriado e seja vista a distância suficiente, "assim como o vento, se espessas florestas não se erguem a sua frente como obstáculos, perde sua força e se dissipa", assim a alma perturbada e agitada se confunde quando lhe falta um objetivo. Em seus transportes, exige ela, sempre, algo a que culpar e contra o que agir. Plutarco diz, a propósito dos que se afeiçoam a macacos e cãezinhos, que a nossa necessidade de amar em não se exercitando normalmente em vez de permanecer insatisfeita projeta-se sobre objetos ilícitos ou indignos dela. Vemos igualmente a alma tomada pela paixão, de preferência a não se entregar a ela, enganar-se a si própria criando um objetivo falso ou fantasista, ainda que a expensas de suas próprias convicções. É o que leva os animais feridos a voltar-se contra a pedra ou o ferro que os feriu ou a morder-se a si mesmos para se vingarem da dor sentida. "Assim a ursa de Panônia se faz mais feroz quando atingida pelo dardo que retém a fina correia de Líbia; furiosa, procura morder a lança que a rasga e persegue o ferro que com ela gira.? Que causas não inventamos para as desgraças que nos afligem? A quem ou a que, com razão ou sem ela, não culpamos a fim de ter algo contra que nos havermos? Em teu desespero arrancas as loiras tranças, rasgas o peito a ponto de o sangue manchar-lhe a brancura; são eles a causa da morte desse bem-amado irmão que uma bala mortal tão cruelmente atingiu? Não, volta-te, pois, contra outros. A propósito do exército romano que, na Espanha, acabava de perder seus dois chefes, Públio e Cneu Cipião, ambos grandes guerreiros, diz Tito Lívio: "Em todo o exército cada qual se pôs imediatamente a derramar lágrimas e a dar pancadas na cabeça". Não é esse um costume generalizado? E não andava certo o filósofo Bion quando, a propósito do rei que no arrebatamento de sua dor arrancava barba e cabelos, dizia gracejando: "Pensa ele realmente que a pelada amorteça a tristeza do luto?” E quem não viu jogadores a rasgar ou mastigar cartas, ou engolir dados, para se vingarem de um prejuízo? - Xerxes mandou fustigar o mar e desafiou o monte Atos; e Ciro divertiu seus exércitos durante muitos dias a querer vingar-se do rio Gindus pelo medo que tivera ao atravessa-lo. Calígula destruiu um magnífico palácio por causa do desgosto que sua mãe ali experimentara. Dizia o povo, na minha mocidade, que um rei dos nossos vizinhos castigado por Deus, jurou vingar-se. Para tanto ordenou que durante dez anos não se rezasse, nem se Lhe mencionasse o nome, nem mesmo, na medida em que a autoridade pode pretendê-lo, se acreditasse n'Ele. E com isso não procurava o povo apontar a tolice do soberano mas sim a glória da nação cujo rei assim agia. Presunção e estupidez andam juntas, porém tais atos mais se explicam pelo primeiro do que pelo segundo defeito. O Imperador Augusto, tendo enfrentado violenta tempestade no mar, pôs-se a desacatar Netuno, e, como vingança, mandou retirar a estátua dessa divindade durante as festas circenses, extravagância menos desculpável ainda que as precedentes. Mais absurdo ainda se mostrou quando Quintilio Varus foi derrotado na Alemanha. Tomado de cólera e desespero, batia a cabeça contra os muros e gritava: "Varus, Varus, devolve minhas legiões!" Semelhantes insanidades ultrapassam a loucura, principalmente quando a elas se junta a impiedade e elas se voltam contra Deus ou contra a sorte como se esta nos pudesse ver e ouvir. Agem assim como as traças diante dos relâmpagos e trovões e que, a exemplo dos Titãs, pensavam reduzir Deus à razão, intimidando-o com flechas desfechadas contra o céu. Ora, como diz um poeta antigo, em Plutarco, "não nos devemos encolerizar contra os acontecimentos, porquanto não se preocupam com as nossas iras". Mas nunca criticaremos demasiado essa desordem de nosso espírito. CAPÍTULO V DEVE O COMANDANTE DE UMA PRAÇA SITIADA SAIR PARA PARLAMENTAR? Lúcio Marco, que comandou os romanos durante a guerra contra Perseu, rei da Macedônia, desejoso de ganhar tempo a fim de reorganizar seus exércitos, fez ao rei propostas de paz que lhe amoleceram a prudência e o levaram a conceder uma trégua de alguns dias, dando ao inimigo azo e tempo para se armar, de que resultou a ruína do monarca. Em Roma alguns senadores imbuídos dos costumes de seus antepassados condenaram essa maneira de proceder por contrária ao que antes se fizera e que consistia em combater com coragem e não com astúcia, não se recorrendo nem à surpresa, nem aos ataques noturnos, nem aos simulacros de fuga seguidos de inesperadas cargas. A guerra só se iniciava depois de declarada e, não raro, após terem sido marcados o lugar e a hora da batalha. A tais sentimentos obedeceram quando entregaram a Pirro o médico que o traíra e aos falécios seu desleal mestre-escola. Nisso agiam como verdadeiros romanos e não como esses astuciosos cartagineses e esses gregos sutis que dão maior valor ao êxito obtido pela malícia do que ao alcançado pela força. O embuste pode servir na hora, mas o adversário só se sente realmente vencido quando o foi em guerra leal e justa em que a vitória sorri ao mais valente, e não pela manha nem pela sorte. Os senadores que falavam essa honesta linguagem não conheciam evidentemente ainda esta bela máxima de Virgílio: "Contra o inimigo não há como escolher entre o ardil e a coragem”. Aos acaianos, diz Pólibo, repugnava o emprego da astúcia na guerra, só se considerando vitoriosos quando o ânimo do inimigo era abatido. O homem sábio e virtuoso deve saber que a única vitória é a que pode proclamar sua boa-fé e honra. E diz outro autor: "Que nosso valor decida se é a vós ou a mim que a sorte, senhora dos acontecimentos, destina o império." No reino de Ternate, uma dessas tribos a que sem hesitação chamamos bárbaras tem por costume só iniciar as hostilidades após uma prévia declaração de guerra à qual se acrescenta a enumeração precisa dos meios que pretende utilizar: número de guerreiros, natureza das armas ofensivas e defensivas, munições. Isso feito, se o adversário não se decide a entrar na batalha, julgam-se esses bárbaros no direito de empregar, para o êxito, todos os meios a seu alcance. E outrora em Florença pensavam tão pouco em vencer pela surpresa que preveniam o inimigo um mês antes de marchar para o combate, tocando sem descontinuar um sino a que apelidavam Martinela. Quanto a nós, menos supersticiosos, consideramos que as honras da guerra cabem a quem com ela se beneficia e estimamos, depois de Lísandro, que, se a pele do leão não basta, cumpre juntar um pedaço da pele da raposa. Ora, como acontece que é quando se parlamenta que ocorrem as surpresas, nesse momento em particular deve o chefe pôr-se de sobreaviso. Daí a regra em vigor entre os homens de guerra de nossa época, a saber, que o governador de uma praça sitiada nunca saia a fim de parlamentar. Nossos pais censuraram os senhores de Montmord e de l'Assigny, que defendiam Pont-à-Mousson contra o Conde de Nassau, por terem contra vindo a tais princípios. Entretanto, é desculpável quem sai da praça a parlamentar, desde que tome todas as medidas para, em caso de perigo, ter por si uma vantagem. Assim o fez o Conde Guy de Rangon que defendia Reggio. Tendo-se apresentado o Sr. de l'Eut a fim de parlamentar, afastou-se Guy de Rangon tão pouco da praça que, em se verificando uma escaramuça durante as negociações, não somente o Sr. de l'Eut e sua escolta (à qual pertencia Alexandre Trivulce que foi morto) se acharam dominados, como também o Sr. de l'Eut, para segurança própria, se viu obrigado a entrar na cidade sob a proteção do conde. É o que nos conta Du Bellay, mas Guicciardin o relata igualmente atribuindo-se a glória do acontecimento. Antígono, assediando Êumenes em Nora e insistindo para que saísse a fim de pessoalmente parlamentar com ele e alegando que a Êumenes cabia fazê-lo por ser ele, Antígono, mais forte e de mais alta condição, ouviu do sitiado esta nobre resposta: "Não reconhecerei ninguém acima de mim enquanto tiver a faculdade de brandir uma espada." E só consentiu em encontrar-se com Antígono quando este lhe entregou Ptolomeu, seu sobrinho, como refém. No entanto houve quem se saísse bem em semelhante ocorrência confiando na palavra do adversário. Testemunho disso temo-lo em Henry de Vaux, de Champagne, sitiado pelos ingleses no castelo de Commercy. Barthélemy de Bonnes? que os comandava, tendo conseguido sapar boa parte do castelo e dispondo-se a mandar incendiá-lo para esmagar os defensores sob os escombros, intimou Henry de Vaux (o qual já lhe havia enviado três emissários) a ir pessoalmente parlamentar, no seu próprio interesse. Este foi, e, percebendo a iminência da catástrofe a que não escaparia, demonstrou sua gratidão ao inimigo entregando-se, com seus homens, incondicionalmente. Pôs-se fogo então na mina escavada, cederam os esteios que sustentavam os muros e o castelo esboroou-se. Quanto a mim, confio facilmente nos outros, mas não confiaria se viessem a supor tratar-se de um alo de fraqueza ou covardia e não por ser eu franco e acreditar na lealdade de meu adversário. CAPÍTULO VI A HORA DAS NEGOCIAÇÕES É PERIGOSA Ultimamente, nas minhas vizinhanças, em Mussidan, um destacamento inimigo que ocupava a cidade foi forçado a retirar-se. Clamavam os soldados, e outros de seu partido, que haviam sido traídos porque os tinham surpreendido e vencido durante as negociações, e antes que um acordo se assinasse. Tais recriminações se compreenderiam em outros tempos, mas, como disse no capítulo precedente, nossos processos atuais são diversos e é de se desconfiar de todos enquanto a assinatura definitiva não é aposta no tratado. E nem assim se imaginará tudo terminado. E sempre foi perigoso confiar em que um exército vencedor saiba cumprir a palavra dada e deixe de entrar, de imediato, na cidade que obteve condições vantajosas para render-se. L. Emílio Reggio, pretor romano, tendo perdido muito tempo diante da cidade de Focéia, da qual não conseguia apoderar-se em consequência da tenacidade que punham os habitantes em defendê-la, com eles conveio em considerá-los amigos do povo romano. E, tendo-os convencido de suas intenções pacíficas, obteve licença para entrar na cidade como o teria feito em qualquer cidade aliada. Mas logo que ali se encontrou com seu exército, de que se fizera acompanhar na maior solenidade, não mais pôde conter os seus, embora o tentasse, os quais saquearam tudo, sob as suas vistas, levados pelo espírito de vingança e o amor à pilhagem que sobrepujam o respeito à autoridade e a disciplina militar. Cleômenes sustentava que o direito de guerra, no que concerne ao mal que se possa fazer ao inimigo, está acima das leis da justiça divina, bem como da justiça humana. Tendo concluído uma trégua de sete dias com os argenos, já na terceira noite os atacava durante o sono e os batia, alegando que na trégua não se mencionavam as noites. Mas os deuses o puniram por sua má-fé. Estando ele em negociações, e já tendo os defensores abrandado a vigilância, foi a cidade de Casilinum conquistada de surpresa. E isso nos tempos em que Roma possuía o exército mais disciplinado, com chefes imbuídos do sentido da justiça. Porque não está dito que em dadas circunstâncias não seja permitido nos prevalecermos da tolice do inimigo como nos prevalecermos de sua covardia. A guerra admite como lícitas muitas práticas condenáveis; o princípio de que "ninguém deve procurar tirar proveito da estupidez alheia" não vale. Entretanto Xenofonte, autor tão competente em tal matéria, grande chefe militar e filósofo, ele próprio discípulo dos mais distintos de Sócrates, nos propósitos que empresta a seu imperador perfeito, dá a essas prerrogativas uma extensão por assim dizer sem limites, o que posso admitir inteiramente. O Sr. D'Aubigny sitiava Cápua, comandada por Fabrício Colona. Este, após sangrento combate em que levara a pior, pôs-se a parlamentar do alto de um torreão, mas durante as negociações, tendo os seus homens relaxado a vigilância, entraram os nossos na cidade e a saquearam. Mais recentemente, em Yvoy, o Sr. Juliano Romero, tendo tido a ingenuidade de sair da cidade a fim de parlamentar com o Condestável, encontrou, ao voltar, a praça em poder do inimigo. Nós mesmos não estamos isentos de censura: o Marquês de Pescaire sitiando Gênova sob o comando de Otaviano Fregose, que nós sustentávamos, chegara a um acordo que ia ser assinado quando os espanhóis conseguiram entrar na cidade e aí agiram como se a tivessem tomado de assalto. Posteriormente, em Ligny, no Barrois, sob o comando do Conde de Brienne, e sitiada por Carlos V em pessoa, Bertheville, lugar-tenente do conde, tendo saído para negociar, a cidade foi tomada enquanto parlamentava. Dizem os italianos: Fu il vincer, sempre mai laudabil cosa, Vincasi o per fortuna o per ingegno. "É sempre glorioso vencer, deva-se a vitória ao acaso ou ao engenho.” O filósofo Crisipo não teria sido da mesma opinião nem eu tampouco. Dizia ele que quem toma parte em uma corrida deve em verdade empregar todas as forças para ganhar, mas não lhe é permitido agarrar o competidor ou passar-lhe uma rasteira. E Alexandre, o Grande, agiu de maneira mais generosa ainda quando respondeu a Poliperconte - que o instava a valer-se da escuridão da noite para atacar Dario: "Não me parece digno roubar vitórias. - Prefiro queixar-me da sorte a envergonhar-me da vitória”. "Recusa-se a golpear Orode, lançar-lhe um dardo que fira por trás, corre a ele, e é de frente, homem a homem, que o ataca. Quer vencer, mas não pela surpresa e sim e unicamente pela força das armas." CAPÍTULO VII AS AÇÕES JULGAM-SE PELAS INTENÇÕES A morte, dizem, liberta-nos de todas as obrigações. Conheço quem haja interpretado essa máxima de maneira singular. Henrique VIII, rei da Inglaterra, comprometera-se com D. Filipe, filho do Imperador Maximiliano, ou mais honrosa mente referido como pai de Carlos Quinto, a não atentar contra a vida de seu inimigo, o Duque de Suffolk, chefe do partido da Rosa Branca, que fugira da Inglaterra e se refugiara nos Países Baixos onde Filipe o mandara prender, entregando-o ao rei mediante a promessa de respeito à vida do duque. Sentindo que ia morrer, Henrique VIII determinou a seu filho, em testamento, que logo depois de seu falecimento executasse o duque. Ultimamente nos acontecimentos trágicos que em Bruxelas provocaram o suplício dos Condes de Horn e de Egmont, ordenado pelo Duque de Alba, houve particularidades notáveis. Esta entre outras: o Conde de Egrnont, em virtude de cujas promessas de garantias o Conde de Horn se entregara ao Duque de Alba, reivindicou com insistência que o matassem em primeiro lugar, a fim de que a sua morte o libertasse da obrigação assumida. Parece-me, no caso, que a morte não eximia o rei da obrigação de cumprir a palavra dada e que o Conde de Egmont, ainda que vivo, não faltava à sua. Nossas obrigações são limitadas pelas nossas forças e os meios de que dispomos; a execução e as consequências de nossos atos não dependem de nós; somente a nossa vontade depende. Nesta e nas necessidades assentam as leis que regulam os deveres do homem. Eis por que o Conde de Egmont, embora com a alma e a vontade amarradas à sua promessa, mas sem força para executá-la, a ela não estava amarrado, ainda que sobrevivesse ao Conde de Horn. Ao passo que o rei da Inglaterra, faltando intencionalmente à sua palavra, não pode ser culpado pelo fato de ter adiado o ato desleal para depois de seu falecimento. Idêntico é o caso do pedreiro de Heródoto que, tendo lealmente guardado segredo acerca do local em que se encontravam os tesouros do rei do Egito, ao morrer o seu senhor, o revelou aos filhos. Vi outrora muitas pessoas que, sentindo pesar-lhes a consciência por se terem apropriado de bens alheios, se mostraram dispostas a inserir em seu testamento dispositivos em vista da restituição dos mesmos. Não são elas dignas de louvor, já porque atrasaram uma ação que devia ser imediata, já porque pretenderam reparar um falta sem sofrimento nem sacrifício. Deviam ter acrescentado os próprios bens; a reparação do mal atendera melhor aos reclamos da justiça e mais mérito tivera quanto mais pesados e penosos os sacrifícios. A penitência exige algo mais do que a simples reparação do dano. Pior fazem ainda os que deixam para depois da morte a manifestação, contra o próximo, dos rancores que esconderam durante a vida. Mostram que pouco prezam a própria honra, não se incomodando com provocar a ira dos ofendidos contra a sua memória. E menos provas dão de consciência, não tendo sabido, nem sequer por respeito à morte, dominar a própria perversidade que se prolonga dessa maneira além de si mesmos. Tal qual fariam juízes iníquos que se pusessem a julgar sem ter mais a causa em mãos. Na medida de minhas forças, procurarei evitar de nada dizer após a morte que não haja dito em vida, e abertamente. CAPÍTULO VIII DA OCIOSIDADE Nas terras ociosas, I embora ricas e férteis, pululam as ervas selvagens e daninhas, e para aproveitá-las cumpre trabalhá-las e semeá-las a fim de que nos sejam úteis. Assim também vemos que as mulheres produzem sozinhas fluxos de matérias sem consistência, mas para que engendrem em condições favoráveis necessário se faz fecundá-las com a boa semente. Assim igualmente os espíritos: se não os ocupamos com certos assuntos que os absorvam e disciplinem, enveredam ao léu, sem peias, pelo campo da imaginação. "Assim, quando em um vaso de bronze uma onda agitada reflete os raios do sol ou imagem tênue da lua, a luz, dardejando incerta de todos os lados, à direita e à esquerda, sobe, desce, fere o forro com seus reflexos móveis.” E nesse estado não há loucura nem devaneio que não concebam: "forjando vãs ilusões, semelhantes às quimeras de um doente". Sem objetivo preciso, a alma se tresmalha, pois, como se diz, é não estar em nenhum lugar, estar em toda parte. Retirei-me há tempos para as minhas terras, resolvido, na medida do possível, a não me preocupar com nada, a não ser o repouso, e viver na solidão os dias que me restam. Parecia-me que não podia dar maior satisfação a meu espírito senão a ociosidade, para que se concentrasse em si mesmo, à vontade, o que esperava pudesse ocorrer porquanto, com o tempo, adquiria mais peso e maturidade. Mas percebo que: "na ociosidade o espírito se dispersa em mil pensamentos diversos", e ao contrário do que imaginava, caracolando como um cavalo em liberdade, cria ele cem vezes maiores preocupações do que quando tinha um alvo preciso fora de si mesmo. E engendra tantas quimeras e ideias estranhas, sem ordem nem propósito, que para perceber-lhe melhor a inépcia e o absurdo, as vou consignando por escrito, na esperança de, com o correr do tempo, lhe infundir vergonha. CAPÍTULO IX DOS MENTIROSOS Não há a quem convenha, menos do que a mim, apelar para a memória. Dessa faculdade careço por assim dizer totalmente e não creio que haja no mundo alguém menos bem aquinhoado a esse respeito. Quanto ao resto sou como o vulgo, mas nesse ponto meu caso merece ser assinalado e anotado. Além do inconveniente que disso resulta na vida comum (e por certo, tendo em vista sua importância, Pia tão tinha razão de qualificá-la entre as grandes e poderosas divindades), como na minha terra diz-se de quem não mostra bom senso que não tem memória, quando me queixo da minha parece que me confesso maluco. Não me acreditam, contestam as minhas palavras, incapazes de distinguir a memória do discernimento, o que agrava ainda mais a coisa. Com isso cometem uma injustiça, pois vê-se na prática juntar-se comumente às memórias excelentes a falta de bom senso. E me prejudicam ainda tais confusões porque em relação a meus amigos - e prezo a amizade acima de tudo - a falta de memória passa por ingratidão. Incriminam-me por um defeito físico: "esquece", dizem, "tal pedido ou tal promessa; não se lembra dos amigos; sua afeição por mim não o impediu de dizer ou de calar tal coisa". Sem dúvida tenho facilmente falhas de memória, mas nunca negligenciei deliberadamente a solicitação de um amigo. Basta a minha enfermidade, não é justo que ainda a transformem em uma espécie de má vontade, uma falta de franqueza em contraste absoluto com meu caráter. Eu me consolo até certo ponto pensando que devo a esse defeito não ter ao que me parece mal maior, e que por certo me houvera atacado: a ambição; pois os negócios públicos exigem boa memória. Com isso, entretanto, como ocorre amiúde na natureza, minhas outras faculdades se aguçam na medida em que essa se desgasta. Se tivesse sempre na memória o que os outros disseram e fizeram, em vez de julgar por mim mesmo ter-me-ia apegado, como acontece comumente, às apreciações alheias. Outra consequência é a concisão de meu falar, pois em geral a memória é mais prolixa do que a imaginação. Mais bem-dotado a esse respeito, houvera atordoado os amigos com meu palavrório, tanto mais quanto já tenho tendência para me entusiasmar com qualquer assunto de conversação. E lamentável é ver, o que pude observar em alguns íntimos, o narrador levar tão longe a narrativa, à proporção que a memória lhe fornece material, e acompanhá-la de tanto pormenor inútil que se a história é boa lhe destrói o encanto e se não apresenta interesse fica-se a maldizer a memória do discursador ou a sua falta de discernimento. E é coisa difícil concluir convenientemente uma narrativa ou interrompê-la oportunamente uma vez iniciada. Ora, o vigor de um cavalo julga-se pela maneira brusca de estancar nos torneios. Mesmo entre os que possuem plenamente um assunto, poucos conheço capazes de sustar sua arenga à vontade; e enquanto procuram como fazê-lo, prosseguem se arrastando e como que pasmados em meio a frases vãs e insignificantes. Isso se acentua particularmente nos anciã os que se prendem às recordações do passado e não se lembram das repetições. Vi histórias muito agradáveis tornarem-se aborrecidas na boca de um alto personagem de quem todos já a tinham ouvido cem vezes. Em segundo lugar a fraqueza de minha memória faz, como dizia um sábio da antiguidade, que guarde menos recordação das ofensas recebidas. Fora-me necessário alguém encarregado de mas lembrar. E assim procedia Dario, o qual, a fim de não esquecer a ofensa dos atenienses, cometera a um pajem a tarefa de repeti-la três vezes a seus ouvidos sempre que se punha à mesa: "Senhor, lembrai-vos dos atenienses". E mais uma vantagem acho eu nisso: todos os sítios que revejo e todos os livros que releio me encantam pela sua incessante novidade. Não é sem razão que se afirma não dever meter-se a mentir quem não tem memória. Sabe-se que os gramáticos estabelecem uma diferença entre dizer uma mentira e mentir. Dizer uma mentira é, na opinião deles, adiantar uma coisa falsa que a gente crê verdadeira, ao passo que na língua latina, da qual provém a nossa, mentir é falar contra a própria consciência. O que eu digo aqui se refere, portanto, somente aos que falam em desacordo com o que sabem. Tais pessoas ou inventam o que dizem, fundo e pormenores, ou se limitam a deturpar e alterar um fundo de verdade. Quando repetem, alterando-a, uma mesma história, é-lhes difícil não se contradizerem, porque a coisa se tendo alojado em sua memória, tal qual lha transmitiram ou, como a viram eles próprios, não lhes é possível, depois, contá-la várias vezes, e, cada vez com maior ou menor exatidão, rememorar todas as alterações nela introduzidas; ao passo que a impressão primeira lhes permanece sempre presente ao espírito, apagando da lembrança todas as falsidades enxertadas na verdade. Quando inventam inteiramente a narrativa, não existindo uma primeira impressão suscetível de perturba-los, parecem menos expostos a erros; entretanto, uma coisa que não existe, que nada fixa, foge facilmente à memória, a menos que seja esta excepcional. Disso vi muitos exemplos, por vezes divertidos, em detrimento dos que, por profissão, falam no sentido de seu maior interesse ou para agradar aos grandes a quem se dirigem. Variando muito as circunstâncias a quem devem adaptar sua consciência, cumpre-lhes modificar por igual a linguagem, chegando a dizer da mesma coisa ora branco ora preto, de um jeito a uns e de outro a outros. E se por acaso esses auditores se comunicam tais dizeres contraditórios, que resta do talento inventivo? Além daquilo que por imprudência podem deixar escapar, qual a memória capaz de lembrar as formas tão diversas que imaginaram para sua história? Tenho visto certas pessoas invejarem essa habilidade, sem perceberem que dessa reputação não se tira proveito real. Em verdade, mentir é um vício odioso. Somente pela palavra é que somos homens e nos entendemos. Se compreendêssemos claramente o horror e o alcance da mentira, contra ela pediríamos o suplício da fogueira que, com menor razão, se aplica a outros crimes. Sou de opinião que castigam em geral as crianças por motivos fúteis, erradamente, que as admoestam por atos irrefletidos e de nenhuma consequência. A mentira somente, e um pouco menos a obstinação, parece-me, é que deveriam ser combatidas desde cedo, pois com a criança crescem e se desenvolvem. E bem difícil se torna extirpá-las quando se transformam em hábito. Daí o fato de muitos homens, pelos demais pontos de vista honestos, se abandonarem a tais vícios e a eles se escravizarem. Conheço um alfaiate, bom sujeito, a quem nunca ouvi dizer a verdade, mesmo quando lhe era útil. Se, como a verdade, tivesse a mentira uma só face, eu a poderia ainda admitir, pois bastaria considerar certo o contrário do que dissesse o mentiroso; mas há cem mil maneiras de exprimir o reverso da verdade e o campo de ação da mentira não comporta limites. Os pitagoristas tinham para eles que o bem é coisa certa e delimitada, o mal incerto e infinito. Mil caminhos desviam da meta, um só conduz a ela. Por certo não posso garantir que tenha força de vontade bastante para não perpetrar uma solene e desabusada mentira a fim de escapar a um perigo extremo e evidente. Disse um antigo prelado que é preferível a companhia de um cão à de um homem cuja linguagem desconhecemos. - Assim dois homens de países diferentes não são homens em relação um do outro. Quanto é mais sociável o silêncio do que a linguagem mentirosa! O Rei Francisco I vangloriava-se de ter, à força de questiona-lo, confundido a Francisco Taverna, embaixador de Francisco Sforza, Duque de Milão, homem com grande reputação de saber falar e que lhe fora enviado para justificar um ato grave de seu senhor. O rei, para continuar a manter contatos na Itália, de onde acabara de ser repelido, e contatos precisamente no ducado de Milão, imaginara colocar junto ao duque um de seus fidalgos, na realidade um embaixador, mas para todos os efeitos um simples cidadão em viagem de negócios. O duque tinha ele próprio grande interesse em não aparentar quaisquer relações conosco, estando muito mais sob a dependência do imperador do que sob a nossa, principalmente nesse momento em que negociava seu casamento com a sobrinha do soberano, filha do rei da Dinamarca e atualmente Duquesa de Lorena. Para isso escolheu o rei um Sr. Merveille, fidalgo milanês, seu escudeiro. Merveille partiu com instruções e cartas secretas, acreditando-o como embaixador, às quais cartas se juntaram outras que o recomendavam ao duque a respeito de seus negócios pessoais, destinadas estas últimas a serem apresentadas publicamente a fim de dissimular sua verdadeira missão. Mas Merveille permaneceu tão longo tempo junto do duque, que o imperador veio a desconfiar, o que, acredito, deu causa ao que segue: inculpando-o de assassínio, mandou o duque certa noite cortarem-lhe a cabeça, sendo o processo liquidado em dois dias. O rei, desejando reparação pelo ato, dirigiu-se a todos os príncipes da cristandade e ao próprio duque; e o Sr. Taverna, enviado a fim de expor o caso devidamente alterado para as necessidades da causa, foi recebido na audiência da manhã. Como base de seu arrazoado, depois de apresentar o fato da maneira mais favorável ao duque, disse que este sempre considerara Merveille um simples fidalgo, súdito seu, aliás, vindo a Milão a negócios. E negou que o duque soubesse pertencer ele ao séquito do rei, e até que Sua Majestade o conhecesse, não tendo tido nunca a ideia de ver nele um embaixador. O rei, por sua vez, apertou-o com perguntas e objeções, atacando-o de todos os lados, e, chegando finalmente ao caso da execução, indagou por que se fizera ela à noite, como que às escondidas. Ao que o pobre homem confundido, pensando ser cortês, respondeu que o duque, dado o respeito que tinha por Sua Majestade, teria se aborrecido imenso com uma execução à luz do dia. Pode-se imaginar quanto terá sido repreendido depois de tamanho despropósito. O Papa Júlio II enviara um embaixador ao rei da Inglaterra a fim de convencê-lo a agir contra aquele mesmo rei de França. Tendo o enviado exposto sua missão, objetou o rei da Inglaterra mostrando, pormenorizadamente, as dificuldades que se opunham à reunião das forças contra tão poderoso adversário. Ao que replicou o embaixador, intempestivamente, que tais motivos também lhe tinham vindo ao espírito e os submetera à apreciação do papa. Essas palavras, tão pouco hábeis no que dizia respeito à missão de convencer o rei, deram a pensar a este, o que depois se verificou ser exato, que o embaixador se inclinava pela França. Comunicou então sua dúvida ao papa, o qual confiscou os bens de seu representante e pouco faltou para que o mandasse executar. CAPÍTULO X DOS QUE IMPROVISAM E DOS QUE SE PREPARAM PARA FALAR "Nunca foi dado a ninguém cumular todos os dons da natureza." Assim acontece que entre aqueles a quem foi dado o dom da eloquência, alguns há cuja palavra é pronta e fácil e têm a réplica tão viva que nunca falham, enquanto outros mais tardios só falam depois de longamente elaborado o tema de antemão escolhido. Aconselham às mulheres que se dediquem de preferência à ginástica e aos jogos suscetíveis de valorizar sua graça; pois se me coubesse opinar acerca das vantagens desses tipos de eloquências que parecem, em nosso século, ser apanágio de predicadores e advogados, diria que aos primeiros convém melhor a palavra meditada e aos segundos o contrário, pois ao predicador não falta tempo para preparar-se, e quando prega o faz de um fôlego sem que o interrompam, ao passo que o advogado precisa estar sempre pronto para o debate. As réplicas imprevistas da parte contrária o mantêm na incerteza do que deve dizer e o obrigam a todo instante a modificar seu ponto de partida. Foi entretanto o oposto que aconteceu quando da entrevista, em Marselha, do Papa Clemente com o Rei Francisco I. O Sr. Poyet, que passara sua vida no tribunal e aí granjeara uma bela reputação, foi encarregado de arengar Sua Santidade. Para tanto, preparara-se de longa data, tendo mesmo trazido, dizem, seu discurso pronto de Paris. No dia em que o ia pronunciar, o papa, receoso de vê-lo ventilar assunto suscetível de magoar algum dos embaixadores dos demais príncipes presentes, comunicou ao rei o tema que se lhe afigurava mais apropriado ao momento e ao lugar e que se verificou ser, infelizmente, bem diverso daquele em que trabalhara o Sr. Poyet. Assim, em não servindo a arenga preparada, cumpria-lhe fazer outra sem perda de tempo. Como ele se julgasse incapaz de fazê-lo, da coisa se encarregou o Cardeal Du Bellay. A tarefa do advogado é mais difícil que a do predicador e no entanto creio se encontrar em França número maior de bons advogados que de bons oradores sacros. É de se acreditar sejam a vivacidade e a improvisação peculiares ao espírito, ao passo que a calma e a prudência caracterizam a sabedoria. Quanto ao indivíduo que permanece inteiramente mudo se não pôde preparar seu discurso, é seu caso tão estranho quanto o de quem teve todo lazer de meditar para fazer melhor e não o conseguiu. Contam que Severo Cássio falava tanto melhor quanto menos preparado e mais devia, portanto, ao talento que ao trabalho. Tão bem o serviam os apartes, quando discursava, que seus adversários hesitavam em provoca-lo, de medo que a cólera lhe ampliasse a eloquência. Conheço por experiência esse gênero particular de talento oratório que dispensa o estudo prévio e aprofundado e, se não se exprime alegre e livremente, nada de bom produz. Dizemos de certas obras que sabem a azeite de lamparina, em virtude da parte excessiva de trabalho que exigiram. Por outro lado, o desejo de fazer bem, e essa contenção do espírito por demais atento à sua tarefa, exaurem-no, travam-no, e, por vezes, o inibem. Da mesma forma a água, quando sob forte pressão, pela abundância e violência com que chega, não pode jorrar por um gargalo estreito ainda que o orifício se ache aberto. Ocorre também que talentos oratórios dessa natureza não necessitam de paixões violentas e que exaltam como a cólera de Cássio. Eles não querem ser sacudidos e sim solicitados. O de que precisam, para acordarem e se inflamarem, é ser solicitados pelos incidentes ocasionais, fortuitos. Se nada os freia, arrastam-se e esmorecem; a agitação dá-lhes vida e graça. A esse respeito não me domino por completo. O acaso é meu senhor: a oportunidade, a companhia, o próprio fogo das minhas palavras atuam sobre meu espírito que produz então muito mais do que quando com ele me isolo, o consulto e o obrigo a trabalhar. Daí valerem mais minhas palavras do que meus escritos, se é que se deva escolher entre coisas sem valor. E advém disso que não me encontre onde me procuro, e mais me descubra por acaso, do que apelando para a inteligência. E se escrevo algo espirituoso (insignificante talvez para os outros, mas cheio de sutileza para mim - mas deixemos de lado tais considerações que cada qual age como pode) ocorre-me perder-lhe de tal maneira o sentido que outros descobrem por vezes, antes de mim, o que quis dizer. E se raspasse todos esses trechos de meus escritos, de tudo me desfaria. De outras feitas, entretanto, acontecer-me-á achá-lo tão claro quanto o sol do meio-dia. E me espanto então com a minha hesitação. CAPÍTULO XI DOS PROGNÓSTICOS Quanto aos oráculos, é certo que já bem antes de Jesus Cristo não lhes davam muita importância, pois vemos Cícero esforçar-se por descobrir a causa do seu descrédito: "De onde vem que em nossos dias, e até de há muito, Delfo não mais pronuncia tais oráculos? De onde vem que nada se despreza mais?" - Quanto aos demais prognósticos, como os que se induziam da anatomia dos animais sacrificados e cuja constituição física, segundo Platão, fora em parte destinada pelo Criador a esse gênero de observações, os que decorriam do saltitar dos frangos ou do voo dos pássaros ("acreditamos que há pássaros que nascem expressamente para servir a arte dos augúrios") ou do raio, dos redemoinhos (“os arúspices veem quantidade de coisas; os áugures preveem outro tanto; numerosos acontecimentos são anunciados pelos oráculos, outros pelos vaticínios, outros pelos sonhos, outros ainda pelos milagres") e outros que na antiguidade intervinham na maioria dos empreendimentos públicos e privados, aboliu-os a nossa religião. Entretanto, ainda restam alguns meios de adivinhação, em particular os astros, os espíritos, as linhas de nosso corpo, os sonhos etc., testemunhos irrecusáveis da desesperada curiosidade que está em nós e faz que percamos nosso tempo em nos preocuparmos com as coisas futuras, como se não nos bastasse digerir as coisas presentes: "Por que, ó senhor do Olimpo, quando os pobres mor- tais são presas de tantos males presentes, lhes dar ainda a conhecer, mediante presságios, as desgraças futuras? Se teus desígnios devem cumprir-se, faze que permaneçam secretos e nos atinjam inesperadamente! Que nos seja permitido ao menos esperar tremendo". "Nada se ganha em conhecer o futuro; e infeliz é quem se atormenta em vão.” Como quer que seja, a adivinhação tem bem menor autoridade hoje. Eis por que o exemplo de François, Marquês de Saluce, me parece notável. Esse marquês comandava, além Alpes, o exército de Francisco I. Tinha prestígio na Corte e devia mesmo ao rei o marquesado confiscado a seu irmão. Sem nenhuma razão para fazer como o fez, agindo contra suas próprias afeições, deixou-se no entanto impressionar a tal ponto (como se viu) pelas belas profecias favoráveis a Carlos Quinto, por toda parte divulgadas (na Itália tais profecias foram levadas tão a sério que em Roma fortes importâncias em dinheiro se comprometeram na expectativa de nossa desgraça), que, embora se tivesse no íntimo condoído da nossa ruína, nos abandonou e se passou para o inimigo. Para sua desgraça, entretanto, qualquer que tenha sido a constelação sob cuja influência agiu. Tomando tal decisão, conduziu-se contudo como um homem solicitado pelos sentimentos mais antagônicos, pois, senhor das cidades e das forças que possuíamos, e estando o exército inimigo sob as ordens de Antoine de Leves nas imediações, sem que ninguém o suspeitasse, podia fazer-nos pior do que fez, porquanto com sua traição não perdemos um só homem, nem uma só cidade, salvo Fossano e ainda assim após longa disputa. "Um Deus avisado escondeu-nos os acontecimentos do futuro sob uma noite espessa, e ri-se do mortal que se inquieta mais do que deve acerca do destino... E senhor de si próprio e passa a existência feliz quem pode dizer diariamente: que importa se amanhã Júpiter escurecer a atmosfera sob nuvens sombrias ou nos der um céu sereno; satisfeitos com o presente, evitemos preocupar-nos com o futuro.” E erram os que interpretam como contrário à nossa tese o seguinte aforismo: "Há quem assim raciocine: se existe adivinhação, existem deuses; se existem deuses, existe adivinhação". Pacúvio diz muito mais sabiamente: "os homens entendidos no falar dos pássaros, aqueles a quem um fígado de animal mais do que a própria razão acalma, mais vale ouvi-los do que neles crer". Assim teve origem essa arte da adivinhação dos toscanos, os quais nela se tornaram célebres: um camponês lavrava o seu campo; o ferro do arado penetrando profundamente a terra fez surgir Tages, semideus dos adivinhos, que ao rosto de criança junta a prudência do ancião. Acorreu gente de toda parte e suas palavras e sua ciência, que continham os princípios e os meios dessa arte, foram avidamente recolhidas e transmitidas através dos séculos. Origem digna do seu desenvolvimento. Quanto a mim, prefiro ainda resolver os meus negócios nos dados a fazê-lo pela interpretação dos sonhos. Na realidade, em todos os governos sempre se entregou parte da autoridade ao acaso. Na República que Platão organiza a seu modo a decisão de vários atos importantes é-lhe atribuída. Entre outras coisas propõe que os casamentos entre pessoas honestas se realizem por sorte. E leva tão a sério essa eleição fortuita que aos filhos dela resultantes determina sejam educados no país mesmo, enquanto aos que nascem de uniões contratadas por gente ruim determina que se exilem. Entretanto, se por acaso uma destas crianças ao crescer se revela capaz, pode-se chamá-la à terra, bem como se pode exilar aquela que, entre as outras, não demonstre aptidões na adolescência. Conheço quem estudando e comentando seus almanaques ressalta a exatidão das previsões aplicadas aos fatos do presente. Em meio a tantas palavras há de haver mentiras e verdades. - "Ao se atirar ao alvo o dia inteiro, alguma vez se atingirá a meta.” Não dou importância ao fato de por vezes acertarem, pois seriam de muito maior utilidade se acontecesse sempre o contrário do que predizem. Como ninguém anota seus erros, tanto mais quanto constituem a norma e são infinitos, fácil se torna valorizar-lhes as ocasionais adivinhações, como raras, incríveis, prodigiosas. Eis por que Diágoras, apelidado o ateu, respondeu a alguém que lhe mostrava na ilha de Samotrácia um templo no qual se viam inúmeros ex-votos e quadros comemorativos da autoria de pessoas que se haviam salvo de naufrágios, e dizia: - "Então? Você que acredita se desinteressem os deuses das coisas humanas, que pensa de tantos indivíduos salvos graças a eles?" - "É, mas os que pereceram nada pintaram e são muito mais numerosos". Cícero disse que somente Xenófanes de Cólofon, entre os filósofos que admitiram a existência dos deuses, se esforçou por combater toda espécie de adivinhação. O que não é de se estranhar, porquanto vimos por vezes, e em seu detrimento, alguns espíritos de elite se aterem a tais tolices. Duas maravilhas há no gênero que eu gostaria de ter visto: o livro de Joaquim, abade da Calábria, predizendo todos os papas futuros com seus nomes e particularidades, e o livro do Imperador Leão que profetizava os imperadores e patriarcas gregos. Mas o que vi com os meus olhos é que nas perturbações públicas certas pessoas, surpreendidas com os acontecimentos, se entregam a práticas supersticiosas, buscando na observação dos astros as causas e os sinais precursores de suas desgraças. E com isso se sentem tão felizes que estou persuadido tratar-se de um passatempo divertido para os espíritos sutis e ociosos, e acredito que quem adquire suficiente destreza para inventar e interpretar acha o que bem entenda em qualquer escrito. Facilita-lhes a tarefa o falar obscuro, ambíguo, fantasista do jargão profético, pois os que o empregam abstêm-se de se exprimirem com clareza, a fim de que a posteridade possa arranja-lo a seu gosto. O demônio familiar de Sócrates consistia provavelmente em certas inspirações que se apresentavam a ele sem passar pela razão. Em alma tão pura quanto a sua, feita por inteiro de sabedoria e virtude, é de crer-se que, embora ousadas e inadmissíveis, tais inspirações eram sempre importantes e dignas de se ouvirem. Não há quem não sinta em si mesmo por vezes semelhante obsessão de uma ideia brusca, veemente e fortuita. Cabe a cada um de nós dar-lhe ou não certa consistência, a despeito do que manda a prudência à qual fazemos ouvidos moucos. Tive-as eu próprio, carecedoras de razão, mas violentamente persuasivas, ou ao contrário (como era o caso de Sócrates), e a elas me abandonei com tamanha felicidade que quase poderia atribuir-lhes uma origem divina. CAPÍTULO XII DA PERSEVERANÇA A lei da resolução e da perseverança não implica em que não devamos nos precaver, na medida de nossas forças, contra os males e inconvenientes que nos podem ameaçar, nem deixar de recear que nos surpreendam. Muito pelo contrário, todo meio honesto de evitar um mal é não somente lícito mas também louvável. A perseverança consiste em suportar com resignação os incômodos para os quais não temos remédio. Por isso não há movimento de agilidade corporal ou manejo de armas que devamos achar ruins desde que sirvam para defender-nos dos golpes que nos assestam. Em muitas nações belicosas era a fuga um dos principais métodos de combate e o inimigo ao qual viravam as costas tinha então mais a temer do que quando as viam de frente. É um pouco o que fazem os turcos. Sócrates, segundo Platão, criticava Lachez, o qual assim definia a coragem: "Não recuar diante do inimigo". - Como? Dizia Sócrates, há então covardia em vencer o inimigo cedendo-lhe terreno? - E em apoio de suas palavras citava Homero, que louva, em Enéias, a ciência de simular a fuga. A Lachez que, contradizendo-se, reconhecia ser o método praticado pelos citas e em geral por todos os povos que combatem a cavalo, ele assinala ainda os guerreiros lacedemônios treinados para o combate a pé e que, na jornada de Platéia, não podendo abrir brecha na falange dos persas, tiveram a ideia de ceder e recuar, a fim de que, imaginando-os em fuga e nada terem a fazer senão persegui-los, se desagregasse a massa por si mesma, estratagema que lhes deu a vitória. Voltando aos citas, quando Dario marchou contra eles na intenção de subjugá-Ios, censurou, dizem, a atitude do monarca inimigo que se retirava sem cessar, recusando o combate. Ao que Inatirsez respondeu: que não era por ter medo dele, como não tinha de nenhum outro ser vivo, mas era a maneira de lutar de seu povo, o qual não possuía terras cultivadas, nem casas, nem cidades a defender e que temesse viessem a ser aproveitadas pelo inimigo. Entretanto, se o desejo de Dario, de chegar às vias de fato, fosse grande, que se aproximasse da sepultura dos antepassados dos citas e ali encontraria com quem pelejar à vontade. Diante do canhão, porém, quando já se está visado, como acontece em certas circunstâncias da guerra, não convém fugir de medo do tiro, tanto mais quanto pela sua rapidez e imprevisibilidade é quase inevitável. Por isso de muito soldado zombaram os companheiros ao vê-lo, nessas ocasiões, erguer a mão ou baixar a cabeça a fim de deter ou evitar o projétil. No entanto, quando da invasão da Provença pelo Imperador Carlos Quinto, o Marquês du Guast, expondo-se fora do abrigo constituído por um moinho durante um reconhecimento diante da cidade de Asles, foi visto pelo Sr. de Bonneval e o senescal d'Azenois, que passeavam pelas arenas. Eles o assinalaram ao Sr. de Villiers, comandante da artilharia, o qual com tamanha precisão regulou a colubrina que se o marquês não tivesse dado um salto para o lado, ao ver acender a peça, fora atingido em cheio. Assim também, anos antes, Lourenço de Médicis, Duque de Urbino, pai da Rainha Catarina, mãe do nosso rei, sitiando Mondolfo, na região do Vicariato, vendo acenderem uma peça apontada em sua direção, abaixou-se. E fez bem, porquanto de outro modo o tiro que lhe raspou a cabeça o teria alcançado no estômago. Em verdade, não creio que tais movimentos se efetuassem em virtude de algum raciocínio, pois como verificar a mira em coisa tão repentina? Muito mais judicioso me parece imaginar que o acaso favoreceu o medo, e que em outras circunstâncias o contrário poderia ocorrer e ir a vítima ao encontro do tiro em vez de evitá-lo. Não posso deixar de tremer quando o ruído do arcabuz soa inopinadamente a meus ouvidos em lugar em que não o espero, e essa mesma impressão eu a percebi igualmente em outras pessoas mais valentes do que eu. Os estoicos não afirmam que a alma do sábio possa resistir desde logo às sensações e visões que o surpreendam. Admitem como natural impressionar-se, por exemplo, com um estrondo provindo do céu ou de uma ruína; admitem que pode empalidecer, contrair-se como sob a influência de uma paixão qualquer, mas que ele deve conservar intata sua lucidez, sem que se lhe altere a razão, de maneira a não ceder ante o terror e o sofrimento. Quem não é sábio conduz-se do mesmo modo quanto à primeira parte, mas muito diversamente quanto à segunda: a impressão da emoção não será nele apenas superficial; penetrará até a sede da razão, infetando-a e a corrompendo. E será com essa faculdade assim viciada que julgará e se conduzirá. “Chora, mas seu coração continua inabalável”. O sábio dos peripatéticos não permanece insensível às emoções, mas as modera. CAPÍTULO XIII CERIMONIAL DAS ENTREVISTAS REAIS Não há assunto, por mais fútil que seja, que não caiba nesta rapsódia. Segundo os nossos usos, seria grave falta de cortesia para com um igual, e mais ainda para com um grande, não nos encontrarmos em casa quando ele nos preveniu que viria visitar-nos. Margarida, rainha de Navarra, acrescentava mesmo, a propósito, que, no fidalgo, seria falta de polidez deixar a casa, como ocorre amiúde, a fim de ir ao encontro do visitante, qualquer que seja o seu nível; que é mais respeitoso e delicado esperá-lo, ainda que seja apenas de medo de um desencontro, bastando acompanhá-lo tão somente à saída. Libertando-me, quanto a mim, o mais possível de quaisquer atitudes cerimoniosas, esqueço não raro uma e outra dessas fúteis obrigações. Há quem se ofenda com isso, mas que hei de fazer? É melhor que eu ofenda alguém uma vez do que ser aborrecido diariamente, o que redundaria em contínuo constrangimento. E de que serviria ter fugido da servidão da Corte se tal servidão nos devesse perseguir no retiro? É igualmente de regra sejam os personagens menos importantes os primeiros a chegar, como fazer-se esperar é muito bem-visto entre as pessoas de alta condição social. Entretanto, na entrevista que ocorreu em Marselha entre o Papa Clemente VII e o Rei Francisco I, este, após haver ordenado os preparativos necessários, afastou-se da cidade durante dois ou três dias a fim de que pudesse aquele descansar antes de se encontrarem. Igualmente na entrevista de Bolonha, entre esse mesmo papa e o Imperador Carlos Quinto, este se arranjou para que Sua Santidade chegasse em primeiro lugar. Isso a fim de que, dizia, o mais importante esteja antes que o outro no local assinalado, antes mesmo daquele no país do qual se realiza a entrevista, pois desse modo há de parecer que ao de condição menos elevada cabe procurar o outro e não o contrário. Não somente cada país, mas também cada cidade e até cada profissão têm, em questões de civilidade, seus usos próprios. Fui cuidadosamente educado na infância a esse respeito e vivi bastante na boa sociedade para não ignorar os que se praticam em França. Poderia ensiná-los aos outros. Gosto de obedecer a tais regras, mas não a ponto de perturbar minha vida. Muitas dessas regras são incômodas e não deixamos de mostrar boa educação se por discrição ou ignorância omitimos algumas. Ao contrário, pude ver certas pessoas faltarem aos deveres da polidez, porque os exageraram até se tornarem importunos. Em verdade, utilíssima é tal ciência. Como a graça e a beleza, ela nos abre as portas da sociedade e da intimidade das gentes; dá-nos ademais a oportunidade de nos instruirmos pelo que vemos fazerem os outros e por estes é aproveitado o que nós mesmos fazemos. CAPÍTULO XIV O BEM E O MAL SÓ O SÃO, AS MAIS DAS VEZES, PELA IDEIA QUE DELES TEMOS Os homens, diz antigo ditado grego, atormentam-se com a ideia que têm das coisas e não com as coisas em si. Seria grande passo, em alívio da nossa miserável condição, se se provasse que isso é uma verdade absoluta. Pois se o mal só tem acesso em nós porque julgamos que o seja, parece que estaria em nosso poder, ou não o levarmos a sério ou o colocarmos a nosso serviço. Se tal coisa depende de nós, por que não a resolveremos, liquidando-a ou tirando vantagem dela? Se aquilo a que chamamos mal não é nem mal nem tormento, e se somente nossa fantasia lhe atribui tal qualidade, podemos modificá-lo. E, em o podendo, é absurdo de nossa parte, e sem que nada nos obrigue, apegarmo-nos à solução mais aborrecida. E por que atribuir à doença, à indigência, ao desprezo um gosto ácido e mau se o podemos modificar? Pois o destino apenas suscita o incidente; a nós é que cabe determinar a qualidade de seus efeitos. Vejamos portanto se é possível afirmar com autoridade que aquilo a que chamamos mal não o é em si, ou, o que dá na mesma, se ainda que o seja depende de nós mudar-lhe a aparência e as consequências. Se as coisas que tememos tivessem um caráter próprio, a todos se imporiam de igual maneira, produzindo idênticas consequências. Todos os homens são, efetivamente, da mesma espécie e, com pequenas diferenças, providos de órgãos semelhantes, instrumentos de concepção e julgamento. A diversidade de opiniões acerca das coisas mostra claramente que atuam sobre nós segundo um dado estado de espírito. Quando um que seja as admita como são realmente, mil outros as deformam e modificam. Encaramos a morte, a pobreza e a dor como nossos piores inimigos. Ora, essa morte que alguns consideram "a mais horrível entre as coisas horríveis" outros a julgam "o único refúgio contra os tormentos da vida - o maior benefício que nos deu a natureza - a única garantia de nossa liberdade - o único amparo imediato e comum a todos contra os males". Aguardam-na alguns a tremerem de medo; outros, preferem-na à vida. E não falta até quem a considere demasiado acessível: "Ó morte, quisessem os deuses que desdenhasses os poltrões e que somente a virtude merecesse tua preferência." Mas não nos ocupemos com tão gloriosas coragens. Teodoro respondeu a Lisímaco que ameaçava matá-la: - "Farás uma bela coisa, à semelhança do que pode fazer a cantárida." Em sua maioria os filósofos propositadamente se adiantaram à chegada da morte, ou se apressaram, ajudando-a. Quanta gente do povo nos é dado ver que, ao ser conduzida para a morte, e não simplesmente para a morte, mas para a morte ignominiosa, acompanhada às vezes de cruéis suplícios, demonstra grande firmeza de ânimo, ou por ostentação ou naturalmente, a ponto que se diria nada ter mudado em sua vida? Tais indivíduos resolvem seus problemas domésticos, fazem recomendações aos amigos, cantam, dirigem exortações à multidão, não desdenhando, não raro, a piada. E bebem à saúde de seus conhecidos com coragem idêntica à de Sócrates. Um deles, que conduziam à forca, pediu que "evitassem de passar por tal rua porquanto corria o risco de encontrar certo negociante a quem devia um dinheirinho e receava ser preso". Outro disse ao carrasco que não lhe bulisse no pescoço, pois era muito coceguento e poderia ter um acesso de riso. Outro respondeu ao confessor que lhe afirmava cearia à noite com Nosso Senhor: - "Vá em meu lugar, hoje estou de jejum". Outro, que pedirá para beber, vendo o carrasco fazê-lo antes, no mesmo recipiente, recusou "com medo de sífilis". Conhecem todos a história daquele picardo a quem, quando subia a escada para a forca, apresentaram uma mulher prometendo-lhe mercê se com ela casasse. Ele a examinou um instante, e voltando-se para o carrasco exclamou: "cumpre o teu dever, é coxa". Contam que na Dinamarca igual ocorrência se verificou. A um condenado à decapitação fizeram idêntica proposta e ele a recusou porque a moça tinha as bochechas caídas e o nariz muito pontudo. Em Tolosa, um lacaio, acusado de heresia, dava como única razão de sua crença a palavra de seu patrão, jovem clérigo, como ele preso. Pois preferiu a morte a deixar-se persuadir do erro de seu senhor. E relatam as crônicas que em Arrás, ao se apoderar Luís XI da cidade, muita gente do povo se entregou à prisão para não gritar "viva o rei". Entre os bufões, seres assaz desprezíveis, houve quem conservasse até o último instante o espírito jocoso. Um deles, condenado à forca, no momento em que o carrasco o empurrava no vácuo, exclamou: "Viva o prazer!", o que era seu refrão habitual. Outro, a ponto de morrer, fora estendido sobre uma esteira junto à lareira e lhe perguntou o médico onde lhe doía: "Entre a cama e a chama", respondeu. E ao padre que, para ministrar-lhe a extrema-unção, lhe procurava os pés encolhidos e crispados pela enfermidade, observou: "vós os achareis na ponta de minhas pernas". E exortando-o um dos presentes a recomendar-se a Deus: - Vai alguém vê-lo hoje? - Ao que o outro retorquiu: - Tu mesmo, e dentro em breve, se Lhe aprouver. - Não poderá ser amanhã à noite? - Amanhã ou outro qualquer momento pouco importa; não demorará muito, por isso trata de te recomendares a Ele. - Então é melhor que eu mesmo apresente as recomendações. No reino de Narsinghpur as mulheres dos sacerdotes são ainda hoje enterradas vivas com os corpos de seus maridos; as outras mulheres que não pertencem à mesma casta são queimadas vivas nos funerais de seus esposos e todas suportam a sorte não somente com firmeza de ânimo, mas também com alegria. À morte do rei, suas mulheres, suas concubinas, seus favoritos, seus oficiais e servidores apresentam-se com fervor à fogueira em que arde o seu senhor e na qual vão precipitar-se, considerando grande honra acompanha-lo ao outro mundo. Durante nossas últimas guerras na região milanesa, foi Milão tantas vezes tomada e retomada que o povo, impacientado com essas mudanças repetidas de destino, adquiriu tal indiferença ante a morte, que meu pai - de quem eu o ouvi - contou que, de uma feita, em uma só semana, vinte e cinco chefes de família se suicidaram. Esse fato lembra o que ocorreu no sítio de Xanthe a Bruto. Os habitantes, homens, mulheres e crianças, precipitaram-se em massa ao encontro da morte e com tal desejo de perder a vida, que mais não se teria feito para salvá-la. E foi somente com penosos esforços que pôde Bruto poupar alguns. Qualquer ideia pode apoderar-se de nós com força bastante para que a sustentemos até a morte. O primeiro artigo do juramento, tão impregnado de coragem, que fizeram os gregos durante as guerras médicas, determinava que todos se comprometessem antes a morrer do que a se sujeitar à dominação dos persas. E quantos na guerra entre turcos e gregos preferiram a morte cruel a renunciar a circuncisão e a aceitar o batismo? E de atos semelhantes há exemplos em todas as religiões. Tendo os reis de Castela banido os judeus de suas terras, vendeu-lhes o Rei João de Portugal, à razão de oito escudos por cabeça, a faculdade de se refugiarem em seu reino durante determinado tempo, ao fim do qual deviam partir. Para tanto se comprometia a fornecer lhes navios que os transportassem à África. Vencido o prazo, após o qual os que não deixassem o território seriam reduzidos à escravidão, verificou-se haver número escasso de embarcações. Os que puderam embarcar, rudemente maltratados pelas equipagens, sofreram mil e uma indignidades; e andaram a navegar de um lado para outro até que, esgotadas as provisões, se vissem constrangidos a comprá-las, e mui caro, dos que os transportavam, a ponto de, em se prolongando tal estado de coisas, chegarem a desembarcar com apenas a camisa do corpo. Ao se informarem desse tratamento inumano, os que haviam ficado em Portugal conformaram-se com a servidão. Alguns fingiram mesmo mudar de credo. O Rei Manuel, sucessor de João, em subindo ao trono, devolveu-lhes inicialmente a liberdade. Mais tarde, mudando de opinião, ordenou-lhes que saíssem do reino e lhes assinou três portos de embarque. Diz o Bispo Osório, historiador latino digno de fé em nossa época e que escreveu a crônica daqueles tempos, que, em não os tendo convertido a liberdade, esperava o rei se decidissem ante tais condições, a fim de se livrarem do saque dos marinheiros a que deviam ser entregues, ou ainda para não trocarem uma terra, a que se haviam acostumado e na qual possuíam grandes riquezas, por qualquer região estrangeira deles desconhecida. Vendo-os resolvidos a partir e assim perdidas suas esperanças, o rei suprimiu dois dos portos autorizados, ou porque esperasse que um percurso maior e os maiores incômodos disso resultantes atemorizassem certo número, ou porque em os reunindo todos em um só local teria maiores facilidades na execução do projeto concebido de separá-los dos filhos menores de catorze anos, os quais, longe dos pais, se educariam segundo a nossa religião. Osório acrescenta que a execução dessa medida teve consequências horríveis. A afeição natural pelos filhos juntando-se ao apego à própria fé (de encontro ao que se chocava a bárbara ordem) fez que numerosos pais e mães se destruíssem a si próprios e, espetáculo mais horroroso ainda, por amor e compaixão, jogassem os filhos em poços a fim de subtraí-los à violência imposta. Finalmente, esgotado o prazo para a partida, e dada a falta de meios de transporte, retornaram os judeus à servidão. Alguns se tornaram cristãos, mas ainda hoje, cem anos passados, poucos portugueses estão convencidos da sinceridade de sua fé, bem como dos demais de sua raça, muito embora o hábito e o tempo, mais do que a coerção, sejam os fatores de maior influência nas mudanças de tal natureza. Em Castelnaudary, cinquenta albigenses, acusados de heresia, recusaram-se a renegar sua crença e foram queimados vivos, todos juntos, suportando o suplício com uma coragem admirável: "Quantas vezes vimos enfrentarem a morte certa não somente nossos generais, mas também nossos exércitos inteiros". Vi um de meus amigos íntimos desejar a morte à força. Absolutamente imbuído dessa ideia, que ele próprio enraizara em si através de uma argumentação especiosa contra a qual nada pude, valeu-se com ardor febril da primeira oportunidade honrosa que se lhe ofereceu para pô-la em prática sem que o percebessem. Temos vários exemplos de pessoas, inclusive crianças, que em nossa época se suicidaram para abreviar a incômodos de nonada. A esse propósito não nos diz um autor antigo: "Que não havemos de temer, se receamos o que a própria covardia escolhe como refúgio?” Não acabaria mais se aqui enumerasse todos os indivíduos de sexos, condições e seitas diferentes que, em tempos mais felizes, aguardaram a morte com resolução, ou a procuraram voluntariamente, e a procuraram não somente para pôr fim ao males desta vida como também, alguns, por andarem fartos dela ou porque esperavam vida melhor no outro mundo. São em número infinito, e mais cômodo me parece suputar aquelas para quem a morte foi motivo de temor. Um exemplo basta: estando o filósofo Pirro em um navio, presa de violenta tempestade, aos que maior pavor evidenciavam mostrava ele um porco indiferente ao temporal, e os instava a toma-lo como exemplo. Ousaremos pois sustentar que a razão, essa faculdade de que tanto nos orgulhamos, e em virtude da qual nos consideramos donos e senhores dos demais seres, nos foi dada para objeto de tormento? De que nos serve entender as coisas se com isso nos tornamos mais covardes, se esse conhecimento nos tira o repouso e a tranquilidade de que gozaríamos sem ele, se nos reduz a condição pior que a do porco de Pirro? Para nosso maior bem é que fomos dotados de inteligência; por que fazê-la voltar-se contra nós, contrariamente aos desígnios da natureza e à ordem universal que querem que cada um use suas faculdades e seus meios de ação da maneira mais conveniente à sua comodidade? Admitamos, direis, que tendes razão no que concerne à morte, mas que pensais da indigência? E da dor, que Aristipo, Jerônimo e a maioria dos sábios consideraram o maior dos males, isso com que concordam, na realidade, mesmo os que o negam em suas palavras? Sofrendo Possidônio aguda crise de dolorosa enfermidade, recebeu a visita de Pompeu, o qual se desculpou de haver escolhido tão mau momento para ouvi-lo divagar sobre filosofia: "Não permita Deus", disse o filósofo, "que me domine a dor a ponto de me impedir de dissertar", e pôs-se a falar precisamente acerca da atitude de desprezo a ser assumida diante da dor. Enquanto discorria, ia entretanto aumentando o sofrimento: "Por mais que me castigues, ó dor, jamais convirei em que és um mal". Que prova esta história de que se prevalecem os filósofos para discursar acerca do desprezo que devemos votar à dor? É questão de palavras. Se não se comovia com as alfinetadas da dor, por que interrompeu seu discurso? Por que pensava fazer ato meritório em não a chamando um mal? Não se trata aqui simplesmente de imaginação. Podemos opinar com conhecimento de causa, porquanto são nossos próprios sentidos os juízes: "Se nos enganam, a razão igualmente nos engana". Poderemos forçar nossa carne a admitir que chicotadas sejam cócegas? E nosso paladar a apreciar a babosa como um vinho Graves? O porco de Pirro entra aqui em apoio de nossa tese: não se apavora ante a morte iminente; mas se o batermos, gritará. Negaremos a lei geral da natureza, que se manifesta em tudo o que, sob a abóbada celeste, tem vida e treme ao golpe da dor? Até as árvores parecem gemer quando as mutilamos! Só sentimos a morte pelo pensamento, tanto mais quanto é coisa de um instante: "Ou a morte foi, ou será; nada é presente nela". Ela é menos cruel do que sua espera. Milhares de homens, milhares de animais morrem sem se sentirem ameaçados. Dizemos também que o que tememos principalmente na morte é a dor, seu sinal precursor. Entretanto, a julgar por um Pai da Igreja: "A morte não é um mal senão pelo que vem depois". Creio estar mais perto da verdade dizendo que nem o que a precede, nem o que a ela se segue são partes integrantes da morte. Falamos erroneamente a esse respeito. A experiência mostra que é antes a inquietação causada pelo sentimento da morte que faz com que lhe sintamos vivamente a dor, e nossos sofrimentos nos são penosos quando os pressentimos capazes de nos conduzir a tal fim. Mas o raciocínio enche-nos de vergonha por temermos coisa tão repentina, inevitável e que não se sente; e mascaramos nossa covardia com os pretextos mais plausíveis. Os males que, como consequência, só nos trazem sofrimento, nós o consideramos sem perigo. Quem encara como doença as dores de dentes, a gota, por dolorosas que sejam, se não nos ameaçam a vida? Admitamos um momento que na morte principalmente a dor nos preocupe. Não é também a dor que se nos apresenta no caso da pobreza, e no-la torna sensível pela sede, o frio, o calor, as vigílias? Ocupemo-nos pois unicamente com ela. Admito seja o pior acidente que nos possa acontecer, e isso tanto mais quanto sou o homem no mundo que lhe quer mais mal, e a evito quanto posso, embora, graças a Deus, não tenha tido por enquanto muita intimidade com ela. Mas está em nós, senão aniquilá-la, ao menos diminuí-Ia em nos mostrando pacientes e em livrando dela nossa alma e nossa inteligência, ainda mesmo que mantenha em suas garras o nosso corpo. Se assim não fosse, que valor teriam a virtude, a valentia, a força, a magnanimidade, a firmeza de ânimo? Que papel desempenhariam se não pudéssemos desafiar a dor? "A virtude é ávida de perigos." Se não devêssemos dormir ao deus-dará, aguentar dentro da armadura o calor do meio-dia, comer carne de cavalo e asno, ser cortado em pedaços, deixar extraírem uma bala da nossa carne, sofrer quando nos recosem ou nos cauterizam, ou nos colocam sondas, como adquiriríamos nossa superioridade sobre o homem comum? E não nos convidam os sábios a evitar o mal e a dor, quando nos dizem que entre muitas ações igualmente boas cabe-nos desejar cumprir a que maiores dificuldades apresenta em sua execução? "Não é pela alegria e pelos prazeres, nem pelos divertimentos e pelo riso, companheiros habituais da frivolidade, que nos tornamos felizes; nós o somos também amiúde na tristeza, pela decisão e pela perseverança." Eis por que nossos pais nunca compreenderam que as conquistas feitas pela força e correndo os riscos da guerra fossem mais vantajosas do que as obtidas sem perigo pela inteligência e pela diplomacia: "A virtude é tanto mais doce quanto mais nos custa”. Há mais, e isso nos deve consolar: é que, naturalmente, "quando a dor é violenta, dura pouco; e quando se prolonga, é leve". Não a sentimos muito tempo se é excessiva; ou deixará de sê-lo ou porá fim à nossa existência, o que dá na mesma. Se não a podemos suportar ela nos destrói: "Lembra-te de que as grandes dores terminam com a morte; de que as pequenas nos deixam numerosos intervalos de repouso e de que somos capazes de dominar a; de intensidade média. Enquanto são suportáveis, suportemo-las com paciência; se não o são, se a vida nos aborrece, saiamos dela como de um teatro”. O que faz que tão impacientemente suportemos a dor é que não estamos habituados a procurar em nossa alma nossa principal satisfação; não contamos suficientemente com ela, que é a única e soberana senhora de nossa condição neste mundo. O corpo só tem (salvo quanto ao mais e ao menos) uma maneira de ser e de fazer; a alma, sob formas diversas e variadas e segundo o estado em que se acha, submete a si as sensações do corpo e outros acidentes. Daí a necessidade de estudá-la, e acordar nela seus meios de ação que são todo-poderosos. Não há raciocínio, nem prescrição, nem força que possam prevalecer contra suas preferências. Entre tantos milhares de meios à nossa disposição, escolhamos um que assegure nosso sossego e nossa conservação e estaremos não somente resguardados contra qualquer insulto, como também ofensas e males redundarão, se nos aprouver, em vantagens para nós. E talvez até nos regozijemos com eles. A alma tira partido de tudo indiferentemente: erro e sonho servem-lhe tanto quanto a realidade para nos proteger e satisfazer. É fácil verificar que nosso estado de espírito é que excita em nós a dor e a volúpia; nos animais, sobre os quais o espírito não atua, as sensações físicas manifestam-se naturalmente, tal qual são sentidas, e são por conseguinte mais ou menos uniformes em cada espécie, como se constata pela similitude das reações. Se não interviéssemos no comportamento de nossos membros, por certo nos sentiríamos melhor, pois sem dúvida lhes deu a natureza reações justas e moderadas em relação à dor; e não poderiam deixar de ser justas, porquanto em todos seriam idênticas. Mas como nos emancipamos de seus ditames, e nos entregamos à mais anárquica fantasia, procuremos ao menos orientar-nos no sentido que nos seja mais agradável. Platão receia que atentemos demasiado para a dor e a volúpia, o que, a seu ver, tornaria a alma dependente em excesso do corpo. Acredito antes que a desligam deste e a libertam. Assim como a fuga torna o inimigo mais encarniçado na perseguição, orgulha-se a dor de nos fazer tremer. Em relação a quem a enfrenta ela se mostra mais corda ta; resistamos, pois, e contenhamo-la. Batendo em retirada, deixando que nos acue, provocamos e chamamos a nós a ruína que nos ameaça. Em se retesando, o corpo suporta melhor a carga; assim também a alma. Mas, passemos aos exemplos de interesse particular para as pessoas que como eu sofrem dos rins. Veremos que ocorre com a dor o mesmo que com os cristais que se coloram de acordo com o fundo em que repousam; e que ela só ocupa em nós o lugar que lhe damos: "Quanto mais eles se entregam à dor, tanto mais ela os domina." Sentimos mais agudamente um golpe de bisturi dado pelo médico do que dez estocadas no calor da luta. As dores do parto, que os médicos, e também Deus, estimam grandes e que cercamos de tantos cuidados, não lhes dão atenção certos povos. Deixo de lado as mulheres de Esparta, mas entre as suíças, na nossa criadagem, não se percebe que pariram, a não ser por andarem, ao depois, atrás de seus maridos com a criança ao pescoço, que antes carregavam no ventre. E essas ciganas feias que surgem por vezes em nossa terra lavam seus filhos recém-nascidos no riacho em que se banham ao mesmo tempo. Sem falar de tantas raparigas que dão à luz diariamente, e clandestinamente, crianças também concebidas às escondidas. Mas a nobre e bela esposa de Sabino, patrício romano, a fim de não comprometer a outrem, suportou sozinha e sem gemido as dores do parto de dois gêmeos. Um jovem de Lacedemônia, que roubou uma raposa e a escondeu sob o manto, deixou que ela lhe rasgasse o ventre para não confessar a tolice, porque temia mais a vergonha que nós a punição. Outro, ao apresentar o incenso, deixa-se queimar por uma brasa caída em sua manga, a fim de não perturbar a cerimônia. E não se mencionam numerosos casos de crianças de sete anos que nos sacrifícios da iniciação, entre os lacedemônios, suportavam, sem chorar e até morrerem, a flagelação? Cícero viu-os baterem-se em grupos, de unhas e dentes, até perderem os sentidos para não se confessarem vencidos: "Jamais os costumes vencerão a natureza, que é invencível; mas a moleza, os prazeres, o ócio, a indolência alteram nossa alma; as falsas opiniões e os maus hábitos corrompem-na". Todos conhecem a história de Scevola que, tendo-se introduzido no acampamento inimigo para matar o chefe, não o conseguiu e, desejoso de atingir de qualquer maneira seu objetivo de libertar a pátria, teve uma ideia estranha. Confessando seu projeto a Porsena, o rei visado, acrescentou, a fim de assusta-lo, que no campo romano havia muitos como ele próprio decididos a tentar o golpe que falhara. E para mostrar que espécie de homem era ele, aproximou-se de um braseiro, estendendo o braço e assim o manteve a grelhar e sem demonstrar sofrimento até que o monarca inimigo, horrorizado, mandasse afastar o braseiro. E que dizer daquele que não interrompeu a leitura enquanto lhe amputavam um membro? E do outro que persistiu em motejar e rir-se das torturas, a ponto de se exasperarem os carrascos e se confessarem vencidos após os mais cruéis suplícios inventados para dominá-lo? É verdade que era filósofo! Um gladiador de César não cessou de gracejar enquanto lhe abriam os ferimentos e os sondavam: "Já se viu um gladiador, por ínfimo que seja, gemer ou mudar de fisionomia? Que arte não põe ele em sua própria queda para esconder tal vergonha aos olhos do público! Derrubado afinal pelo adversário e condenado pelo povo, virou jamais a cabeça ao receber o golpe de misericórdia?” Passemos às mulheres. Quem não ouviu falar daquela que, em Paris, mandou que a esfolassem na esperança de obter uma pele mais suave? Há quem arranque dentes sadios e viçosos para que a voz se torne mais doce ou para que eles tenham mais bela aparência. Quantos exemplos de desprezo à dor não temos nós desse gênero? São capazes de tudo e nada temem por pouco que sua beleza se beneficie: "Existe quem mande arrancar os cabelos brancos e se raspe para obter pele nova". Vi quem engolisse areia, e cinza, e sacrificasse o estômago a fim de conseguir uma tez pálida. Para ter o porte fino e elegante das espanholas, a quantas torturas se sujeitam, afetadas, arrochadas, entaladas até se ferirem e por vezes morrerem! Entre muitos povos de nossa época acontece comumente que, para provar a veracidade de suas palavras, se inflijam voluntariamente castigos. Nosso rei cita casos vistos na Polônia, verificados como comprovantes de declarações que lhe foram feitas. Em França, afora casos semelhantes de imitação, vi na Picardia, pouco antes de voltar dessas famosas reuniões de Blois, uma moça que, para demonstrar a sinceridade de suas promessas, e sua fidelidade, espetou o braço cinco vezes com um estilete que trazia aos cabelos, sangrando abundantemente. Os turcos dão-se grandes cutiladas em honra de suas damas, e a fim de que não se apaguem queimam as chagas longamente, não só para sustar o sangue mas também para que se formem cicatrizes. Isso me foi dito e jurado por pessoas que o presenciaram. Nesse mesmo país veem-se todos os dias indivíduos que, por algumas moedas, talham profundamente o braço ou a coxa. Agrada-me que abundem os testemunhos das coisas que importa estabelecer, e nesse ponto o cristianismo nos fornece provas concludentes. Depois de nosso divino Guia, quantos quiseram, como ele e por devoção, carregar a cruz! Testemunhas dignas de fé informam-me de que São Luís usou cilício até o momento em que, na velhice, o proibiu seu confessor. E todas as sextas-feiras fazia-se açoitar por um padre, com um açoite de cinco ferros que para tal trazia sempre consigo entre seus apetrechos domésticos. O último Duque de Guyenne, Guilherme, pai de Eleonora, que trouxe para a casa de França esse ducado, usou constantemente, como penitência e durante dez ou doze anos, uma couraça sob o hábito religioso. Foulques, Conde de Anjou, foi até Jerusalém com uma corda ao pescoço, para aí se fazer açoitar diante do túmulo do Senhor. E não se veem todos os anos, na sexta-feira santa, homens e mulheres aos magotes flagelarem-se reciprocamente até se rasgarem a pele e porem a nu os ossos, espetáculo de que fui não raro testemunha e não me seduziu jamais? Tais pessoas usam máscaras e algumas há que o fazem por dinheiro para garantir a salvação de outrem. Demonstram um desprezo à dor tanto maior quanto a avareza é um estimulante menos forte do que o fanatismo. C. Maximus enterrou o filho, personagem consular; Catão o seu, pretor nomeado; L. Paulus os dois que tinha, a poucos dias de intervalo, e seus rostos não refletiram a menor emoção, nada revelou-lhes a tristeza. De uma feita disse eu de alguém, gracejando, que frustrara a justiça divina: por um cruel destino, perdera no mesmo dia, de morte violenta, três filhos já grandes; pouco faltou para que considerasse o acidente como um favor e um benefício particular da Providência. Não aprecio esses sentimentos antinaturais: perdi dois ou três filhos, em verdade ainda de peito. Conquanto eu não tenha morri do de dor, não deixou a coisa de me chocar. Trata-se aliás de uma das infelicidades a que o homem é mais sensível. Existem muitas outras causas de aflições que se verificam comumente e não me perturbariam se me atingissem. Desdenhei algumas que me ocorreram, dessas que todos consideram deverem afetar realmente; e não ousaria sem corar vangloriar-me em público de minha indiferença: "De como se verifica que a aflição não provém da natureza, mas decorre da opinião". Esta é, com efeito, uma potência que tudo ousa e não tem medida. Quem jamais procurou a segurança e o repouso com mais ansiedade do que mostraram Alexandre e César na busca da inquietação e das dificuldades? Terez, pai de Sitalcez, dizia amiúde que quando não estava em guerra não lhe parecia houvesse alguma diferença entre ele e o seu moço de estrebaria. Quando cônsul, a fim de assegurar a submissão de certas cidades da Espanha, Catão proibiu o porte de armas aos habitantes, em consequência do que muitos se mataram: "nação feroz que não acreditava se pudesse viver sem combater”. E não conheceis inúmeros que renunciaram à doçura de uma existência tranquila em seu lar, entre amigos e conhecidos, para irem viver em horríveis desertos inabitáveis? E outros não adotaram um tipo de vida abjeta, degradante, em que afetam comprazer-se, desprezando a sociedade? O Cardeal Borromeu, recém-falecido em Milão, a quem a nobreza, a imensa fortuna, o clima italiano e a mocidade outorgavam todas as alegrias e gozos, viveu constantemente em tal regime de austeridade que usava a mesma batina, no inverno como no verão; dormia unicamente sobre a palha; e as horas que os deveres do cargo não lhe consumiam, ele as passava de joelhos, estudando continuamente, tendo ao lado de seu livro um pedaço de pão e um pouco de água, que era tudo de que se compunha sua refeição, e também o tempo que lhe destinava. Conheço quem, com perfeito conhecimento de causa, tirasse proveito e promoção da infidelidade da mulher, coisa cuja simples ideia já apavora tanta gente. Se a vista não é o mais necessário dos nossos sentidos, é pelo menos o que nos dá maior prazer; e de todos os nossos órgãos, os que contribuem para gerar parecem os mais úteis e os que proporcionam maior felicidade. Certas pessoas, entretanto, os detestam unicamente por causa das inefáveis satisfações que nos fornecem, e os sacrificam por isso mesmo que são valiosos. É provavelmente análogo o raciocínio de quem vaza voluntariamente os olhos. A opinião que temos das coisas é que as valoriza. Isso se vê pelo grande número daquelas que não examinamos a não ser para as avaliar, antes que a nós mesmos. Não lhes ponderamos nem a qualidade nem a utilidade, mas apenas o que nos custam para as obtermos, como se o que pagamos fosse parte integrante delas; e o valor que lhes atribuímos mede-se não pelos serviços que nos prestam, mas pelo que demos para consegui-las. Isso me induz a achar que as usamos de maneira estranha, pois valem segundo o que pesam e na medida do peso. E nunca as deixamos desvalorizarem-se. O preço dá valor ao diamante; a dificuldade à virtude; a dor à devoção; o amargo r ao remédio. Há quem para chegar à pobreza jogue ao mar seus escudos, esse mesmo mar que outros esquadrinham e batem para encontrar a riqueza. Epicuro disse: ser rico não significa despir-se de preocupações, mas tão somente trocá-las por outras, e em verdade não é a carência e sim a abundância que acarreta a avareza. Eis o que a esse respeito me sugere a experiência: Minha vida ao sair da infância apresentou três fases. A primeira durou cerca de vinte anos durante os quais vivi de recursos fortuitos, na dependência de outros, sem renda própria, sem uma situação definida nem previsão orçamentária. Gastava tanto mais alegre e descuidadamente quanto tudo provinha dos acasos felizes da sorte. Nunca passei melhor; nunca me aconteceu achar fechada a bolsa dos amigos. Impusera a mim mesmo, de resto, e como dever primeiro, pagar minhas dívidas em seu vencimento, o que me valeu mais de uma vez a prorrogação do mesmo, porquanto meus credores se comoviam com o meu esforço. Tal lealdade me tornou econômico e nunca enganei a ninguém. Sinto naturalmente algum prazer em pagar o que devo, como se me desfizesse de um fardo incômodo, imagem da servidão. Por outro lado, satisfaz-me fazer algo justo e que contente a outros. Abro exceção para os pagamentos em que é preciso regatear e contar. Quando me encontro nessa necessidade e não posso dar a outro a incumbência, vergonhosamente e por certo erroneamente, adio quanto possível o cumprimento da obrigação, a fim de evitar essas discussões a que, por temperamento e maneira de me exprimir, sou infenso. Nada detesto mais do que regatear: é uma justa de trapaças e impudências em que, após uma hora de conversas, cada qual transige, falhando à palavra dada e às afirmações reiteradas. E isso por alguns vinténs a mais ou a menos. Também me via em apertos quando tinha de pedir emprestado, e, não me animando a fazê-lo oralmente, corria o risco por escrito, o que me parece menos penoso e torna mais fácil a recusa. Entregava mais facilmente e com menor inquietação à minha estrela a satisfação de minhas necessidades do que me ocorreu depois, ao se desenvolverem em mim o espírito de previdência e o raciocínio. As pessoas que têm negócios a administrar consideram em geral horrível viver nessa constante incerteza. Em primeiro lugar não se lembram de que a maioria dos homens assim vive. Quanta gente de bem abandonou a renda certa - e quanta o faz diariamente - para ir em busca de favores reais e de fortuna! César, para se tornar César, endividou-se em cerca de um milhão em ouro. Quantos negociantes se iniciam no comércio mandando vender sua fazenda às Índias "por tantos mares borrascosos". Nesta época em que tão cara se faz a devoção, não vivem mil e uma congregações - e sem percalços - contando diariamente com as liberalidades do céu para comer? Em segundo lugar essa gente ordeira não pensa que o que se lhes afigura assegurado não é menos incerto e arriscado do que o próprio acaso. Com mais de mil escudos de renda estou tão perto da miséria como se a beirasse. Não somente o destino tem em suas mãos cem meios de abrir uma brecha na riqueza para a entrada da pobreza (e por vezes não há meio termo entre a fortuna excessiva e a miséria) - "a fortuna é de vidro; quanto mais brilha tanto mais frágil"; não somente tem esse destino a possibilidade de derrubar e desmantelar todas as defesas que possamos erguer a fim de nos protegermos; mas acho também que a indigência existe em geral tanto entre os que possuem como entre os que não têm nada. Direi mesmo que, sozinha, ela incomoda menos do que em companhia da riqueza, resultando esta menos da renda que da ordem na sua administração: "Cada qual é o artesão de sua fortuna", e um rico necessitado, com dificuldades, me parece mais miserável do que um pobre, simplesmente pobre: "A indigência no meio da riqueza é a mais pesada das pobrezas”. Os maiores príncipes, aqueles mesmos que são os mais ricos, quando carecem de dinheiro, quando seus recursos se esgotam, são os mais habitualmente impelidos às piores ações, pois haverá coisa mais triste do que se fazer tirano e se apossar injustamente dos bens de seus súditos? A segunda fase de minha existência ocorreu quando eu tinha dinheiro. Tomando gosto nisso, não demorei em criar reservas, importantes para a minha condição, estimando que somente o que sobre excede a despesa comum constitui um haver e que não podemos ter por seguro um bem apenas augurado, por mais justas que sejam as esperanças, pois, dizia a mim mesmo, que me aconteceria se me surpreendesse tal ou qual acidente? O resultado de pensamento tão fútil e doentio foi que me esforcei, com a criação dessa reserva supérflua, por me garantir contra qualquer eventualidade desagradável. E aos que observavam serem essas eventualidades demasiado numerosas para que me precavesse contra elas, eu respondia que, se não me podia resguardar de todas, podia atentar para algumas e em particular as mais prováveis. Isso não se verificava sem me causar apreensões. Mantinha-as secretas e eu, que falo tão livremente de tudo que me diz respeito, não falava a verdade quanto ao dinheiro que possuía. Agia como muitos outros, os ricos que se dizem pobres e os pobres que afirmam ser ricos, dispensando a consciência de um testemunho sincero, o que constitui ridícula e vergonhosa prudência. Se viajava, parecia-me sempre não estar suficientemente provido de dinheiro e quanto mais levava comigo tanto mais preocupado me tornava, já por causa da insegurança das estradas, já porque não depositava confiança na fidelidade da criadagem encarregada das bagagens. Se deixava meu cofre em casa, quanta suspeita e inquietação, tanto piores quando não podia confessar-me a ninguém e tinha o espírito constantemente voltado para esse lado. Afinal de contas guardar o dinheiro dá mais trabalho do que ganhá-lo. E se não fazia tudo o que estou a dizer, não me custava menos evitar de fazê-lo. Disso tirava em verdade pouco ou nenhum proveito, e embora me fosse permitido gastar mais, não me pesava menos o gesto, pois, como diz Bion: "Quem tem farta cabeleira não sofre menos do que o calvo, se lhe arrancam um cabelo". Adquirido o hábito e fixada a mente no pecúlio a juntar, não mais ousamos esborciná-lo; é um edifício que tememos ver desmoronar-se em o tocando e é preciso um grande aperto para que o parcelemos. E empenhar minhas roupas ou vender um cavalo me fora menos penoso do que mexer nessa bolsa querida que tão bem guardava. O perigo está em que é difícil estabelecer limites precisos para essa mania de entesourar (assim ocorre com as coisas que julgamos boas) e pôr um paradeiro nela. Vamos sempre ampliando o que acumulamos e fixando tais limites, sempre mais alto, a ponto de nos privarmos pouco honrosamente do gozo de nossos próprios bens, guardando o total sem usa-lo. Desse ponto de vista as pessoas mais ricas do mundo seriam as encarregadas de controlar as portas e os baluartes de uma cidade importante. Todo indivíduo possuidor de muito dinheiro tem tendência para a avareza. Platão assim classifica os bens corporais ou humanos: a saúde, a beleza, a força, a riqueza. E diz: a riqueza não é cega, iluminada pela prudência é muito clarividente. Dionísio, o Jovem, teve um dia uma ideia divertida. Avisado de que um de seus siracusanos enterrara um tesouro para escondê-lo, mandou-lhe que o trouxesse. O homem obedeceu, não porém sem primeiro levar uma parte com a qual se estabeleceu noutra cidade. Sua desventura matara nele o gosto de entesourar e pôs-se a viver largamente. Soube-o Dionísio, e ordenou a restituição do tesouro, dizendo que o fazia de bom grado porquanto o dono aprendera a usa-lo. Assim continuei durante alguns anos pensando unicamente em economizar. Não sei que bom demônio me guiou, como ao siracusano, e me levou a mudar de conduta e a abandonar por completo esse espírito de poupança. A uma viagem muito dispendiosa devo a resolução de renunciar a tão tola maneira de viver. E desse modo cheguei a uma terceira fase; certamente muito mais agradável e normal, penso eu, deixando que corram despesas e renda, sobreexcedendo-se mutuamente ao acaso, mas sem diferenças sensíveis. Vivo assim ao sabor do momento, contentando-me com atender às necessidades do presente e às despesas previstas. Quanto ao imprevisto, não bastariam todas as previsões do mundo, e seria loucura imaginar que com suas próprias mãos nos armasse a fortuna contra o destino é com os nossos meios que devemos combatê-lo: qualquer arma de ocasião nos trairia no momento crítico. Se junto ainda, não o faço em vista de despesa futura, nem para comprar terras, de que não preciso, mas para me divertir: "é ser rico não se mostrar ávido de riquezas; é uma renda não comprar. Não terno que meus rendimentos falhem nem desejo que aumentem: "o fruto da riqueza é a abundância e a abundância acarreta a saciedade"." Felicito-me a mim mesmo por me haver corrigido dessa inclinação para a avareza em uma idade em que para ela tendemos naturalmente, e por me haver desfeito dessa loucura, a mais ridícula das loucuras humanas e tão comum nos velhos. Feraulez, que passara por essas duas fases da fortuna, achando que à ampliação de seus bens não correspondera um aumento igual do apetite, da sede, da possibilidade de dormir e acariciar a mulher, e tendo em mente ainda os aborrecimentos decorrentes da administração de suas riquezas, resolveu fazer a felicidade de um rapaz pobre, amigo fiel que sonhava com enriquecer. Deu-lhe todo o seu patrimônio, que era considerável, excessivo até, com o acréscimo da forte valorização devida à guerra e às liberalidades de Ciro, seu bondoso e generoso senhor, sob a condição de se encarregar o beneficiado de alimentá-lo e sustentá-lo decentemente como hóspede e amigo. Desde então viveram igualmente satisfeitos com a mudança de situações. Eis um gesto que de bom grado imitaria e muito louvo o sábio partido que tomou um velho prelado meu conhecido, o qual entrega muito simplesmente sua bolsa e suas rendas e o cuidado de sua existência ora a um ora a outro servidor. Desse modo viveu longos anos tão ignorante de seus negócios domésticos quanto um estranho. A confiança na bondade alheia é um testemunho nada desprezível da própria bondade, e Deus a protege. E talvez isso explique por que esse prelado teve sempre a casa tão dignamente administrada. Feliz de quem regula tão bem suas necessidades que suas rendas lhe bastam, sem que se tornem motivo de preocupação ou perturbação e sem que repartição ou recuperação sejam um entrave a outras ocupações mais de acordo com seus gostos e às quais se possa dedicar conveniente e tranquilamente. Abastança e indigência dependem, pois, da ideia que delas temos. A riqueza, como a glória e a saúde, só atrai e causa prazer na medida em que empresta prazer e atração a quem a possui. Estamos bem ou normal neste mundo segundo o que pensamos: contente está quem se acredita contente e não aquele que os outros imaginam contente. Nossa crença é que faz seja ou não seja real a felicidade. A fortuna não nos outorga o bem ou o mal, ela se limita a fornecer-nos os elementos do bem e do mal, os quais nossa alma, mais poderosa do que ela, trabalha e aplica como lhe apraz, tornando-se dessa maneira única senhora e causa de nossa condição. Os efeitos externos tiram cor e sabor de nossa constituição interna, como as roupas que usamos nos aquecem não com seu calor próprio, mas com o nosso, que conservam e desenvolvem. Se com eles cobríssemos um corpo frio, inverso seria o resultado. Desse modo conservam-se a neve e o gelo. Todas as coisas dependem da maneira por que são encaradas: o estudo é motivo de tormento para o preguiçoso; o beberrão sofre sem vinho; I a frugalidade é um suplício para o comilão; o exercício uma tortura para o delicado ocioso etc. As coisas não são nem dolorosas nem difíceis em si. Para julgar de sua elevação e grandeza é necessário uma alma com essas qualidades, sem o que lhes atribuiríamos nossos próprios defeitos. Um remo é reto, e no entanto quando mergulha na água parece curvo. Não basta ver a coisa, importa como vê-la. Por que, entre tantos raciocínios que de mil maneiras provam que o homem deve desprezar a morte e dominar a dor, não encontramos um que nos convença? Por que entre tantos argumentos por outros aceitos, não achamos um do nosso gosto que nos persuada igualmente? Que quem não pode engolir o medicamento enérgico e detergente, suscetível de destruir o mal, absorva pelo menos um lenitivo que alivie: "nós nos amolecemos, não menos pela volúpia do que pela dor e nesse estado nada mais temos de viril e forte; uma picada de abelha basta para arrancar-nos gritos; saber dominar-se, eis o segredo". Seja como for, não se escapa da filosofia exagerando a acuidade da dor e a fraqueza humana: apenas a forçamos a opor-nos às irrespondíveis réplicas de sempre: "se não vale a pena viver, viver sem que valha a pena não é imprescindível. Ninguém verá prolongar-se o seu mal se não o quiser". Mas a quem não se dispõe a suportar a morte nem a vida, a quem não quer resistir nem fugir, como ajudar? CAPÍTULO XV MERECEDOR DE PUNIÇÃO É QUEM DEFENDE UMA PRAÇA FORTE ALÉM DO RAZOÁVEL A valentia tem seus limites, como qualquer virtude; ultrapassa-los pode levar ao crime. Pois é ela suscetível de tomar-se temeridade, obstinação, loucura em lhe ignorar os marcos delimitadores, bem difíceis em verdade de se perceberem em dados pontos de separação. Daí, dessas considerações, nasceu o costume de, na guerra, punir-se até com a pena de morte quem teima em defender uma praça não mais defensável segundo as regras da arte militar. Sem o que, confiando na impunidade, não houvera choça que não sustasse a marcha de um exército. No sítio de Pavia, o condestável de Montmorency, tendo recebido ordem de atravessar o Tessino e de se estabelecer no arrabalde de Santo Antônio, viu-se impedido de fazê-lo por causa de certa torre situada na extremidade da ponte e cuja guarnição se obstinou em defender até a derrota final. Vitorioso, o condestável mandou enforcar todos os prisioneiros. Mais tarde, acompanhando o delfim em campanha além Alpes, e tendo conquistado à força o castelo de Villane, mortos os defensores todos pelos atacantes exasperados, à exceção do capitão e do tenente, a estes mandou o condestável punir por lhe haverem resistido, fazendo-os enforcar. O Capitão Martin du Bellay assim agiu igualmente contra St. Bony, governador de Turim, cujos soldados tinham sido massacrados ao ser tomada a praça forte. A apreciação do grau de resistência ou fraqueza de uma praça resulta da importância das forças assaltantes e dos seus meios de ação. Assim, quem com razão se obstina em se defender contra duas colubrinas, insensato seria se o fizesse contra trinta canhões. Há que considerar ainda a glória que dão ao príncipe inimigo suas conquistas anteriores, sua reputação e o respeito que lhe é devido. Mas é perigoso atentar-se demasiado para estas últimas considerações, pois há quem se imagine tão altamente colocado que não lhe parece justo se o enfrente, e não o admitindo não hesite em passar pelo fio da espada os defensores, em lhes sendo a sorte favorável. É o que se deduz das formas em que são concebidos a intimação e o desafio de antigos príncipes orientais e até de seus sucessores. Em sua linguagem orgulhosa e altiva, repetem-se ainda hoje as mais bárbaras injunções. E na região pela qual os portugueses iniciaram a conquista das Índias, povos havia entre os quais era regra comum e sempre aplicada que ao inimigo vencido pelo rei em pessoa ou seu lugar-tenente não fossem concedidos mercê nem resgate. Portanto, evite, quem possa, cair nas mãos de um inimigo vitorioso e armado, com poderes para julgar. CAPÍTULO XVI DA COVARDIA De um príncipe, e grande capitão, ouvi certa vez que por ato de pusilanimidade não se devia condenar um soldado à morte. E, estando à mesa, narrou o processo do Sr. de Vervins que a tal pena se condenara por se ter rendido em Boulogne. Convenho em que é justo diferenciar-se um erro devido à fraqueza de ânimo da falta maliciosa. Neste caso agimos com pleno conhecimento de causa contra o que nos dita a razão posta pela natureza a nosso serviço a fim de nos guiar. No outro caso parece-me que podemos invocar a própria natureza, da qual provém nossa fraqueza e imperfeição. É esse raciocínio que leva muita gente a pensar que só devamos ser responsabilizados pelo que fazemos de contrário à nossa consciência. E mesmo nessa regra que se baseiam as pessoas que censuram e condenam à pena capital heréticos e infiéis; e também pela mesma razão não há como responsabilizar juízes e advogados que por ignorância erram no cumprimento de seus deveres. Quanto à covardia, é certo que vergonha e ignomínia são os castigos mais comumente infligidos aos réus. O legislador Charondas passa por ter sido o primeiro a aplicar tais penalidades. Antes dele, os gregos puniam com a morte os que fugiam ao combate: Charondas contentou-se com ordenar que, vestidos de mulher, ficassem durante três dias expostos em praça pública. Esperava, assim, que, a vergonha lhes reavivando a coragem, pudessem voltar às fileiras do exército. "Pensai em fazer com que se envergonhe o culpado mais do que em lhe derramar o sangue”. Parece que também as leis romanas puniam com a morte os desertores, pois Aumien Marcelino cita o Imperador Juliano como tendo condenado à degradação e à morte - de conformidade com as leis antigas - dez soldados que haviam virado as costas ao inimigo numa carga contra os partas. Entretanto, de outras feitas, e por causa idêntica, contentou-se ele em condenar os culpados a marcharem com os primeiros em meio às bagagens. O rude castigo infligido pelo povo romano aos trânsfugas do desastre de Canas e - da mesma guerra - aos que acompanharam Cneio Flávio na derrota, não chegou à pena de morte. Em casos como estes é de se temer que a vergonha engendre o desespero e os dessa maneira atingidos se tornem possivelmente nossos inimigos. No tempo de nossos pais, o Sr. de Franget, então tenente da companhia do Marechal de Chatillon, nomeado pelo Marechal de Chabannes, governador de Fontarabie, em substituição ao Sr. de Lude, entregou essa praça forte aos espanhóis. Foi condenado, bem como os seus, à degradação e à perda de seus títulos nobiliárquicos, declarado plebeu, sujeito a impostos, e proibido de usar armas. Essa sentença rigorosa foi executada em Lion. Posteriormente, idêntica penalidade foi aplicada a todos os fidalgos que se encontravam em Guise quando o Conde de Nassau se apoderou da cidade. E a outros ainda, desde então. Entretanto, quando a falta evidencia ignorância grosseira ou covardia fora de comum, é racional considerá-la ato malicioso, resultante de maus sentimentos, e puni-Ia nessa qualidade. CAPÍTULO XVII MANEIRA DE AGIR DE ALGUNS EMBAIXADORES A fim de aprender sempre alguma coisa em minhas relações com os outros (o que é um dos melhores meios de se instruir), procuro em minhas viagens orientar as pessoas com as quais me entretenho para os assuntos que conhecem melhor: "que o piloto se contente com falar dos ventos, o lavrador de touros, o guerreiro de seus ferimentos e o pastor de suas ovelhas". O mais das vezes é o contrário que se verifica: preferem todos falar do ofício alheio, imaginando acrescentar algo assim à própria reputação. Testemunho disso é a censura de Arquimedes a Periandro que abandonava a glória de ser um bom médico para adquirir a de um mau poeta. Vede como César insiste em nos revelar sua capacidade de construir pontes e máquinas de guerra e como se mostra relativamente discreto ao comentar seus feitos e gestos de soldado, sua valentia, e sua maneira de comandar os exércitos. Quer mostrar-se excelente na engenharia, de que entende pouco, quando seus atos testemunham a grandeza do capitão. Dionísio, o antigo, era na guerra um general muito bom, como convinha à sua condição; pois se atormentava para que apreciassem nele principalmente seu talento poético, em verdade bem medíocre. Certo personagem do corpo judiciário, a quem há tempos se mostrava uma biblioteca abundantemente provida tanto de obras de direito, como das disciplinas do saber humano, nada disse a respeito, preferindo entrar em explicações doutorais acerca de uma barricada que se erguera à entrada do edifício, assunto que desconhecia e que cem capitães e soldados viam diariamente sem pensar em criticar ou louvar. "O pesado boi gostaria de carregar a sela e o cavalo de puxar a charrua." Agindo desse modo nada fazemos de útil. Esforcemo-nos portanto por ouvir em seus ofícios ao arquiteto, o pintor, o sapateiro e outros. A propósito, quando leio histórias, gênero que a tantos apetece hoje em dia, tenho por hábito atentar antes de mais nada para quem as escreve. Se se trata de profissionais das letras atenho-me em particular ao estilo e à linguagem; se são médicos acredito neles enquanto se referem à temperatura do ar, à saúde, à constituição física dos príncipes, aos ferimentos e às doenças; se são jurisconsultos, ouço-os em particular nas discussões acerca do direito, das leis, da fatura dos regulamentos e outros assuntos análogos; se são teólogos, acerca dos negócios da Igreja, das censuras eclesiásticas, das dispensas e dos casamentos; se são cortesãos, a propósito dos costumes e das cerimônias; se são guerreiros, acerca do que lhes diz respeito, e principalmente das ações a que assistiram; se são embaixadores, das gestões, dos contatos e das práticas relativas à diplomacia e à maneira de orienta-los. Foi o que me levou a ler com interesse um trecho das crônicas do Sr. de Langey, muito entendido nessas coisas e que não teria lido se o fosse em outras. Diz ele das famosas admoestações feitas em Roma por Carlos Quinto, em pleno consistório a que assistiam nossos embaixadores, o Bispo de Macon e o Sr. de Velly. Depois de algumas palavras ofensivas para nós, entre as quais que se seus capitães, soldados e súditos não mostrassem maior fidelidade a seus deveres do que os dos reis de França (e isso parece que o pensava de verdade porquanto o repetiu mais de uma vez), iria com a corda ao pescoço pedir misericórdia; o imperador disse também que desafiava o rei para um combate singular, em camisa, e de barco em pleno rio, com espada e punhal, a fim de que nenhum dos adversários pudesse recuar. Termina o Sr. de Langey narrando que ao relatarem a sessão ao rei dissimularam seus embaixadores o que precede. Ora, acho estranho que um embaixador possa dispensar-se de relatar propósitos dessa ordem nos relatórios enviados a seu soberano, principalmente quando são de tal alcance e provêm de personagem tão importante, e foram ouvidos em semelhante assembleia. Parece-me que o dever do servidor é reproduzir fielmente tudo, tal qual se apresentou, a fim de que o senhor tenha liberdade de ordenar, apreciar e escolher. Alterar-lhe a verdade de medo que a interprete mal e tome um partido errado, e por isso esconder-lhe o que lhe interessa, é a meu ver inverter os papéis. Manda quem pode e não o pode quem obedece. Isso cabe ao tutor e ao professor e não a quem, em sua situação, não somente é inferior à autoridade mas deve também estimar-se inferior em relação à prudência e à experiência. Como quer que seja, no que me diz respeito não gostaria de ser servido dessa maneira. Tanta vontade temos de nos subtrair ao comando alheio e tudo é tão bom pretexto para usurparmos as prerrogativas dos que têm o poder; aspiramos tão naturalmente à liberdade e à autoridade, que nada será mais precioso ao superior do que encontrar em seus servidores obediência pura e simples. Não obedecer inteiramente a uma ordem recebida, fazê-lo com reticência, é falta e erro. Públio Crasso, qualificado pelos romanos como cinco vezes feliz, estando na Ásia, encomendara a um engenheiro grego que lhe trouxesse o maior dos mastros de navio que vira em Atenas, a fim de empregá-lo na construção de uma máquina de guerra. Este, apoiando-se em seus conhecimentos técnicos, tomou a si trazer o menor, que lhe parecia mais conveniente. Crasso ouviu-lhe as explicações sem o interromper e mandou açoitá-lo assim mesmo, por considerar que mais do que a obra executada em melhores ou piores condições importava a disciplina. Cumpre observar, entretanto, que tal obediência passiva não se deve senão a ordens precisas acerca de objetivos previstos. Os embaixadores têm maior latitude, e em certos pontos podem agir livremente, pois sua missão não é simplesmente executar e sim esclarecer e orientar com seus conselhos a opinião de quem representam. Vi em meu tempo pessoas cometidas em postos de comando, a que se censurou haverem obedecido ao pé da letra às ordens recebidas do rei em vez de se inspirarem na realidade das coisas que podiam pessoalmente constatar. Os entendidos criticam ainda hoje o costume que tinham os reis da Pérsia de frear de tal maneira a ação de seus agentes que para as mais ínfimas resoluções eram eles forçados a recorrer à autoridade real, o que, dada a imensa extensão do país, ocasionava perdas de tempo que foram não raro causa de sério prejuízo para seus negócios. Quanto a Crasso, escrevendo a um profissional e lhe comunicando o emprego a que destinava o mastro pedido, não o incitava assim a examinar em comum a coisa e não o convidava a agir como lhe parecesse mais conveniente? CAPÍTULO XVIII DO MEDO "Tomado de estupor, fiquei de cabelos arrepiados, e sem voz." Não sou muito versado no estudo da natureza humana, como dizem, e ignoro de que maneira o medo atua em nós. Certo é que se trata de estranho sentimento. Nenhum, afirmam os médicos, nos projeta tão precipitadamente fora do bom senso. E em verdade vi muita gente tornada insensata pelo medo. Mesmo entre os mais assentados provoca ele terríveis alucinações. Ponho de lado o homem vulgar ao qual faz o medo que ora veja seus antepassados saírem do túmulo, envolvidos em seus sudários, ora lobisomens, gnomos, quimeras. Mesmo porém entre os soldados, sobre os quais o medo deveria ter menor influência, quantas vezes não transformou ele um rebanho em um esquadrão couraçado? E caniços e bastões em policiais e lanceiros? E nossos amigos em inimigos, e a cruz vermelha em cruz branca? Quando o Sr. de Bourbon tomou Roma, o porta-estandarte encarregado da guarda do subúrbio de São Pedro foi tomado de tal pavor à primeira alerta que, passando através de um buraco no muro em ruínas, saiu da cidade carregando seu estandarte e marchou ao encontro do inimigo convencido de que se dirigia para o interior da praça forte. Vendo a gente do Sr. de Bourbon se aprestar para a batalha, voltou a si e, na crença de que os defensores tentavam uma sortida, virando as costas entrou de novo pelo mesmo buraco na cidade de que se afastara cerca de trezentos passos. O porta-estandarte do Capitão Júlio não se saiu tão bem quando o Conde de Bures e o Sr. Du Reu tomaram São Paulo. Desesperado de medo, lançou-se fora da cidade pela canhoneira, de estandarte em mão, e foi dar em cheio nos assaltantes, que o fizeram em pedaços. Nesse mesmo sítio verificou-se um caso extraordinário: o medo surpreendeu, agarrou e a tal ponto paralisou um fidalgo que este caiu morto repentinamente, e sem o menor ferimento, do baluarte em que se achava. Semelhante inconsciência furibunda apodera-se por vezes das multidões. Em um encontro de Germânico com os alemães duas frações importantes de suas tropas, postadas em pontos diferentes, fugiram apavoradas, em direção uma da outra e acabaram por se chocarem. Ora o medo põe asas em nossos pés como no caso dos porta estandartes, ora nos prega ao solo e nos imobiliza como aconteceu com o Imperador Teófilo. Batido em uma batalha contra os agarenos, ficou tão estupefato e transido que não podia decidir-se a fugir "tanto se apavora o medo daquilo que lhe pode ajudar"? E assim permaneceu até que Manuel, um de seus principais chefes, o sacudiu como para acordá-lo de um sono e lhe disse: "Se não me seguirdes eu vos matarei, pois é melhor que percais a vida do que serdes prisioneiro e correrdes o risco de perder o império". É principalmente quando sob a sua influência recobramos a coragem que ele nos tirara contra o que o dever e a honra determinavam, que o medo revela sua ação mais intensa. Na primeira batalha séria que tiveram - e perderam - os romanos contra Aníbal, sob o consulado de Semprônio, um exército de cerca de dez mil infantes tomado de pavor debandou e, na sua covardia, não descobrindo por onde passar, jogou-se contra o grosso do inimigo. Tanto e tão bem fez que depois de matar grande número de cartagineses rompeu-lhes as fileiras, pagando uma fuga vergonhosa com os mesmos esforços que teriam de fazer para alcançar uma vitória gloriosa. O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo. Ele ultrapassa, pelos incidentes agudos que provoca, qualquer outra espécie de acidente. Que aflição será mais penosa e justificável do que a dos amigos de Pompeu, testemunhas em seu próprio navio de horrível massacre? No entanto, o medo que lhes causou a aproximação das velas egípcias abafou neles esse sentimento, a tal ponto que se observou terem pensado apenas em instar os marinheiros para que à força de remos lhes facilitassem a fuga até que, chegados a Tyr e já sem receios, tiveram o lazer de meditar sobre a perda sofrida e dar livre curso aos lamentos e às lágrimas que o medo, mais forte do que a dor, paralisara: "o pavor expulsa então de meu coração toda sabedoria”. Os que muito sofreram em alguma ação guerreira, nela foram feridos e ainda trazem o ferimento a sangrar, ao combate podem ser novamente levados, logo em seguida, mas, os que tiveram forte medo do inimigo, ninguém fará sequer que voltem a olhá-lo de frente. Os que têm motivo para temer a perda de seus bens, o exílio ou a servidão, vivem em constante angústia. Não comem, nem bebem, nem dormem, enquanto, em idênticas circunstâncias, os pobres, os banidos, os servos, continuam a viver, não raro tão alegremente como de costume. Quantas pessoas, atormentadas pelas fustigações do medo, não se enforcaram, se afogaram ou se atiraram em precipícios, demonstrando ser o medo mais importuno e insuportável do que a própria morte! Os gregos admitem outro tipo de medo, que não provém de um erro de nosso raciocínio, mas ocorre sem causa aparente e por vontade dos deuses. E povos inteiros e exércitos inteiros o experimentam. Dessa ordem foi o que provocou em Cartago tão prodigiosa desolação. Só se ouviam gritos de pavor; os habitantes precipitavam-se fora de suas casas, como a um sinal de alarma e se atacavam mutuamente, e se feriam, e se matavam como se inimigos houvessem entrado na cidade. A desordem e o tumulto imperavam. E a isso, que só findou quando, mediante preces e sacrifícios, conseguiram acalmar a cólera dos deuses, chamam os gregos "terror pânico". CAPÍTULO XIX SOMENTE DEPOIS DA MORTE PODEMOS JULGAR SE FOMOS FELIZES OU INFELIZES EM VIDA "Nunca se deve perder de vista o último dia do homem, nem declarar que alguém é feliz antes de vê-lo morto e reduzido a cinzas." Conhecem as crianças a esse respeito a história do Rei Creso. Creso, feito prisioneiro por Ciro, fora condenado à morte. Ao aproximar-se a hora do suplício, pôs-se a gritar: "Sólon, Sólon". Comunicada a exclamação a Ciro, este indagou de sua significação e Creso lhe explicou que para sua desgraça, dele Creso, Ciro estava confirmando a verdade de certa máxima que Sólon lhe transmitira: "os homens, quaisquer que sejam os favores com que os cumule a sorte, não podem estimar-se felizes enquanto não veem chegar o seu último dia", e isso em virtude da instabilidade das coisas humanas que um pormenor basta para mudar inteiramente. Nessa mesma ordem de ideias Agesilau respondeu a alguém que achava o rei da Pérsia muito feliz, porque, tão jovem, já era senhor de tão poderoso Estado: "sem dúvida, mas Priam, na mesma idade, não era infeliz". Não se viram reis da Macedônia, sucessores de Alexandre, acabarem em Roma como marceneiros e escribas? E tiranos da Sicília como mestres-escolas em Corinto? E Pompeu, conquistador de metade do mundo e chefe supremo de tantos exércitos, não pagou seus últimos cinco ou seis meses de vida com a humilhação de enviar súplicas aos miseráveis oficiais do rei do Egito? No tempo de nossos pais viu-se morrer cativo em Loches e, o que é pior, depois de dez anos de detenção, Ludovico Sforza, décimo Duque de Milão e que durante tanto tempo agitara a Itália. A mais bela das rainhas, viúva do maior rei da cristandade, não acaba, em indigna e bárbara crueldade, de morrer pela mão do carrasco? Tais exemplos existem aos milhares, pois assim como temporais e tempestades se abatem encarniçadamente contra os mais belos e altos edifícios, há também, nos céus, espíritos invejosos das grandezas da terra: "tanto é verdade, que uma força secreta derruba as coisas humanas e sem dificuldade esmaga aos pés o orgulho dos fachos, e parte as achas consulares". Dir-se-ia-que a sorte aguarda por vezes nosso último dia, a fim de nos fazer compreender o poder que possui de derrubar em um instante o que custou longos anos para edificar, e assim nos impelir a exclamar com Labério: "Ah! este dia é um dia a mais dos que eu deveria viver”. Daí aceitar-se com razão a máxima tão justa de Sólon. Mas como se trata de um filósofo para o qual os favores e as desgraças da sorte não contam nem como coisa feliz nem como coisa infeliz, pois ele encara grandeza e poder como acidentes mais ou menos sem importância em nossa vida, penso que sua intenção seja mais profunda e tenha querido dizer, com isso, que essa felicidade de nossa existência, dependente da tranquilidade e da satisfação de um espírito reto, da resolução e da firmeza de uma alma serena, não deve ser atribuída ao homem enquanto não representa o último ato - e sem dúvida o mais difícil - da comédia de sua vida. Quanto a tudo mais podemos dissimular; fazer como filósofos belos discursos de forma excelente; conservar a nossa serenidade em face de acidentes que nos atinjam superficialmente. Mas na última cena, a que se representa entre nós e a morte, não há como fingir, é preciso explicar-lhe com precisão em linguagem clara e mostrar o que há de autêntico e bom no fundo de nós mesmos: "então a necessidade arranca-nos palavras sinceras, então cai a máscara e fica o homem". Eis por que a esse momento devem relacionar-se todos os demais atos de nossa vida. É o dia principal, o dia que valoriza todos os outros. É o dia, diz um escritor antigo, que julgará todo o meu passado. Deixo que a morte se pronuncie sobre minhas ações; por ela se verá se minhas palavras saem dos lábios ou do coração. Quantos deveram à morte a reputação de terem bem ou mal vivido? Cipião, sogro de Pompeu, desfez, em bem morrendo, a opinião que até então haviam tido a seu respeito. Epaminondas indagado acerca de quem ele mais estimava, se a Chabrias, a Ifícrates ou a si mesmo, respondeu: "Para que me pronuncie é preciso primeiramente ver como será nossa morte". Em verdade, quanto a ele, fora injusto julgá-lo sem levar em conta sua morte, tão honrosa e cheia de grandeza. Deus faz o que quer, mas de meu tempo três pessoas das mais execráveis que conheci, e cuja vida não fora senão um amontoado de abominações e infâmias, tiveram morte decente e tal que em nenhuma circunstância se poderia querer melhor. Há fins gloriosos, e mesmo felizes. Vi a morte interromper, na flor da idade, a existência de alguém que tudo indicava estar a caminho de realizar as mais admiráveis ambições; colheu-o a morte em condições tais que a meu ver a própria realização de suas esperanças não o teria elevado mais alto. Morrendo ultrapassou mais gloriosamente do que sonhara a fama e o poder a que aspirava em vida. Quando se trata de julgar a vida dos outros, observo sempre como terminou; quanto à minha, esforço-me principalmente para que acabe bem, isto é, tranquila e silenciosamente. CAPÍTULO XX DE COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque de toda sabedoria e inteligência resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura. Todas as opiniões propõem que o prazer é a meta da vida, mas diferem no que concerne aos meios de atingir o alvo. E se assim não fosse, as repeliríamos de imediato, pois quem daria ouvido a alguém que apontasse na pena e no sofrimento os objetivos da existência? A esse respeito, as dissensões entre as seitas filosóficas são puro palavrório: "deixemos de lado essas sutilezas”, em tais discussões entra mais obstinação e picuinha do que convém à ciência tão respeitável. Mas em qualquer papel que se proponha desempenhar põe o homem um pouco de si mesmo. Digam o que disserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia. E agrada-me repetir essa palavra que pronunciam constrangidos. E se significa prazer supremo e extremada satisfação melhor se deva ela à virtude do que a qualquer outra causa, pois a volúpia, robusta e viril, é a mais seriamente voluptuosa. E deveríamos chamá-la prazer, denominação mais feliz e mais natural, do que a de vigor que lhe damos. Quanto à volúpia de ordem menos elevada, se acreditam que mereça igual nome que o mantenham, mas não com exclusividade. Mais do que a virtude tem ela seus inconvenientes e seus momentos difíceis; além de serem mais efêmeras as sensações que nos procura, e mais fluidas e fugidias, tem suas vigílias, seus jejuns, suas penas, seu suor e sangue. Paixões de toda sorte influem nela e redunda ela em tão pesada saciedade que equivale a uma penitência. É erro nosso imaginar que tais inconvenientes a estimulam, e a condimentam, em razão dessa lei da natureza que afirma tudo se fortalecer ante o obstáculo encontrado; e erro é também pensar que, quando se trata de volúpia proveniente da virtude, semelhantes dificuldades a acabrunham e a tornam austera e inacessível. Ao contrário do que se verifica com a volúpia, na prática da virtude tais dificuldades enobrecem, requintam e realçam o prazer divino e perfeito que ela nos procura. Bem indigno de senti-lo é por certo quem pesa o custo e o rendimento dela; não lhe conhece as belezas nem o uso. Os que nos afirmam que, embora sua posse seja agradável, penosa e laboriosa é a sua conquista, não nos estarão dizendo ser a virtude coisa sempre desagradável? Mesmo porque quem a terá jamais atingido? Os mais perfeitos tiveram de se contentar com aspirar a ela, dela se aproximar sem nunca chegar a possuí-Ia. Enganam-se porém os que assim falam, pois não há prazer conhecido cuja procura em si já não constitua uma satisfação. Ela liga-se ao objetivo visado e contribui muito para o resultado de que participa essencialmente. A felicidade e a bem-aventurança da virtude enchem-lhe as dependências e os caminhos, desde o por tão de entrada até os muros que lhe cercam os domínios. Um dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência. E, sem esses sentimentos, toda volúpia é sem encanto. Eis por que todos os sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para ele convergem. Embora todos se entendam igualmente em nos recomendar o desprezo à dor, à pobreza e outros acidentes a que está sujeita a vida humana, nem todos o fazem com igual cuidado, ou porque tais acidentes não nos atingem forçosamente (em sua maioria os homens vivem sua vida sem sofrer com a pobreza, e alguns, como o músico Xenófilo! que morreu com cento e seis anos, vivem em perfeita saúde, sem conhecer nem a dor nem a doença), ou porque, na pior das hipóteses, pode a morte, quando quisermos, pôr fim aos nossos males. E ela própria é inevitável: "Marchamos todos para a morte; nosso destino agita-se na urna funerária; um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, o nome de cada um dali sairá e a barca fatal nos levará a todos ao eterno exílio." Portanto, se a receamos, temos nela um motivo permanente de tormentos e andaremos como em país inimigo a deitar os olhos para todos os lados: "ela é sempre uma ameaça, como o rochedo de Tântalo". Nossos tribunais ordenam muitas vezes se execute o criminoso no próprio local do crime. Conduzam-no durante o trajeto, entre belas residências e deem-lhe as melhores refeições; os mais deliciosos acepipes não poderão acariciar-lhe o paladar, nem o canto dos pássaros, nem os acordes da lira lhe devolverão o sono. Pensais que será sensível a nossos cuidados e que o fim último de sua viagem, sempre em mente, não lhe alterará e tornará insosso qualquer possível prazer? "Inquieta-se com o caminho, conta os dias, mede a vida pela extensão da estrada, sem cessar atormentado pela ideia do suplício que o espera". A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para tal cegueira? Por que não coloca o freio no rabo do asno, desde que meteu na cabeça andar de costas? Não há como estranhar caia tão amiúde na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo. E como ela é mencionada nos testamentos, só resolvem fazer o seu quando os condenou o médico. E Deus sabe em que estado de espírito se encontram então, sob o impacto da dor e do pavor. Como esta palavra ressoava demasiado forte a seus ouvidos, e lhes parecia de mau augúrio, tinham os romanos se habituado a adoçá-la ou a empregar perífrases. Em vez de dizer: morreu, diziam: parou de viver, viveu; bastava-lhes que se falasse em vida. Nós lhes tomamos de empréstimo esses eufemismos e dizemos: Mestre João se foi. Se porventura se aplica o ditado "a palavra é de prata", como nasci entre onze horas e meio-dia no último dia de fevereiro de 1533 e começamos o ano em janeiro, como acontece agora, faz exatamente quinze dias que completei meus trinta e nove anos. Posso pois esperar viver ainda tal período; e atormentar-me meditando sobre tão longínqua eventualidade, fora loucura. Mas jovens e velhos se vão da vida em condições idênticas. Partem todos como se acabassem de chegar, sem contar que não há homem tão decrépito ou velho ou alquebrado que não alimente a esperança da longevidade de Matusalém, e não tenha ainda vinte anos de vida diante de si. Direi mais: quem, pobre louco, fixou a duração de tua existência? Acreditas no que dizem os médicos, sem atentar para o que se verifica em torno de ti, e sem julgar pela experiência. Pelo andar das coisas, há muito já não vives, senão por excepcional favor. Já ultrapassaste a duração habitual da vida. Podes comprova-lo contando quantos entre os teus conhecidos morreram antes dessa idade, em bem maior número do que os que a alcançaram. Anota os nomes dos que, pelo brilho de sua existência, adquiriram certa fama; aposto encontrar entre eles, mortos antes dos trinta e cinco, muitos mais do que depois. O razoável e o piedoso está em tomar como exemplo a humanidade de Jesus: ora, sua existência terrena findou-se aos trinta e três anos. O maior homem do mundo, homem e não Deus, Alexandre, morreu também com essa idade. Quantas maneiras diversas tem a morte de nos surpreender? "O homem nunca pode chegar a prever todos os perigos que o ameaçam a cada instante”. Deixo de lado as doenças, as febres, as pleurisias. Quem poderia imaginar que um duque de Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão como aconteceu a um deles, quando da entrada em Lião do Papa Clemente, meu compatriota? Não vimos um dos nossos reis morrer em folguedo? E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um porco que montava? Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora dormisse em um campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia. Houve quem sucumbisse em consequência de uma semente de uva engolida; outro, imperador, morreu de uma arranhadura feita com o pente; Emílio Lépido em virtude de uma topada na porta de sua casa; Aufídio por ter batido com a cabeça no batente da entrada da sala do Conselho. E entre as coxas das mulheres: o pretor Cornélio Galo, Tigelino, comandante da guarda de Roma, Ludovico, filho de Gui de Gonzaga, Marquês de Mântua, e, o que é péssimo exemplo, Spensipo, filósofo platônico. E até um papa de nosso tempo. O pobre Bebius, que era juiz, ao adiar o julgamento de certa causa, morreu subitamente; chegara a sua hora. O médico Caio Julius, ao tratar dos olhos de um enfermo, teve os seus próprios fechados para sempre. E, para misturar-me à enumeração: um dos meus irmãos, Capitão Saint Martin, de vinte e quatro anos e que já dera provas sobejas de seu valor, foi atingido por uma bola logo abaixo da orelha direita quando jogava péla. Nem vestígio nem contusão, não se sentou sequer, não interrompeu o jogo, e no entanto cinco ou seis horas depois, ei-lo atacado de apoplexia causada pelo golpe recebido. Tais exemplos são tão frequentes, repetem-se tão comumente diante de nossos olhos, que não parece possível evitar se oriente nosso pensamento para a morte, nem negar que a cada instante nos ameace ela. Que importa o que possa acontecer, direis, se não nos preocupamos com isso? E também meu parecer, e se houvesse meio de escapar ao golpe, ainda que fosse sob uma pele de vitela, não seria homem se não o empregasse, pois a mim me basta viver sossegado e pondo em prática tudo o que para tanto venha a contribuir, embora pouco glorioso ou exemplar: "prefiro passar por louco, ou impertinente, se meu erro me agrada ou não o percebo, a ser sábio e sofrer". É loucura, porém, querer furtar-se assim a essa ideia. Vai-se, volta-se, corre-se, dança-se: nenhuma notícia da morte, que beleza! Mas quando ela nos cai em cima, ou em cima de nossas mulheres, nossos filhos, nossos amigos, que os surpreenda ou não, quantos tormentos, gritos, imprecações, desespero! Vistes alguém mais humilhado, transtornado, confundido? É preciso preocupar-se com ela de antemão. Pois essa incúria animal, ainda que pudesse alojar-se na mente de um homem inteligente, o que acho inteiramente impossível, nos faz pagar caro demais sua mercadoria. Se a morte fosse um inimigo suscetível de se evitar, aconselharia agir diante dela como um covarde diante do perigo; mas, em não sendo isso verdade, e atingindo ela infalivelmente os fugitivos, poltrões ou valentes, "persegue o homem em sua fuga e não poupa nem mesmo a tímida juventude que tenta escapar-lhe", como nenhuma couraça nos protege contra ela, "cobri-vos de ferro e de bronze, a morte vos atingirá sob a armadura", aprendamos a esperá-la de pé firme e a lutar. Para começar a despojá-la da vantagem maior de que dispõe contra nós, tomemos por caminho inverso ao habitual. Tiremos dela o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: se fosse a morte! e esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevém inopinadamente. É o que faziam os egípcios quando em seus festivais e votados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida: "Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas". Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte, Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento. Paulo Emílio, ao ir receber as honras do triunfo, respondia ao mensageiro enviado por esse infeliz rei da Macedônia, seu prisioneiro, a fim de suplicar-lhe que não o incluísse em seu séquito: "Que o solicite a si próprio". Em verdade, sem certa anuência da natureza é difícil que a arte e a indústria progridam nas obras que produzem. Eu não sou melancólico, sou sonhador. Não há nada que minha imaginação vasculhe mais do que a ideia da morte, e isso desde sempre, mesmo no período de minha vida em que mais me dediquei aos prazeres: "estava então na flor da idade". Entre senhoras e festas, imaginavam que andasse preocupado a remoer algum ciúme ou à espera inquieta de qualquer acontecimento, enquanto, na realidade, meu pensamento se orientava para não sei quem que, dias antes, ao sair de festa semelhante, entregue ao ócio, ao amor e às doces recordações, fora tomado de febre e morrera. E considerava que coisa análoga me aguardava de atalaia: "Em breve o tempo presente já não será e não poderemos lembra-lo". E não me franzia a fronte, mais do que outro qualquer, esse pensamento. É impossível que a princípio essa ideia não nos cause penosa impressão. Mas voltando a ela, encarando-a de todos os ângulos, aos poucos acabamos por nos acostumarmos a ela. De outro modo teria eu andado continuamente agitado e amedrontado, pois ninguém mais do que eu jamais desconfiou tanto da vida e contou menos com a sua duração. Minha saúde, até agora excelente, apenas perturbada por pequenas indisposições, não me dá maiores esperanças de grande longevidade, como tampouco as doenças me fazem temer um fim prematuro. A cada instante tenho a impressão de haver chegado minha última hora, e repito sem cessar: o que devera ocorrer fatalmente um dia pode acontecer hoje. Efetivamente, os acasos e perigos a que estamos expostos pouco ou nada nos aproximam do fim. E se pensarmos em quantos acidentes podem ameaçar-nos, além dos que imaginamos iminentes, deveremos reconhecer que no mar como no lar, na guerra como no retiro, a morte sempre se encontra perto de nós: "Nenhum homem é mais frágil do que outro, nenhum tem assegurado o dia seguinte”. Para fazer o que me cumpre fazer antes de morrer, todo tempo me parece curto, ainda que se trate de trabalho de uma hora. Alguém, folheando meu caderno de notas, revelou algo que eu desejava se fizesse depois de minha morte; disse a essa pessoa a verdade, isto é, que ao registrar essa nota me encontrava a uma légua apenas de casa, mas me apressara em escrevê-la porque não estava certo de não morrer antes de entrar. A chegada da morte não me surpreenderá; acho-me sempre, e quanto posso, preparado para essa ocorrência. Ela se mistura sem cessar a meu pensamento, nele se grava. Na medida do possível andemos sempre de botas e prontos para partir e, em particular, não tenhamos negócios a tratar senão com nós mesmos: "por que, em tão curta vida, fazer tantos projetos?” Suficiente trabalho teremos com esses nossos negócios próprios, para que nos embaracemos com outros. Mais do que da morte queixam-se uns de que venha interromper uma bela vitória; lamentam-se outros de não terem podido casar a filha antes ou educarem as crianças; um lastima deixar a mulher, outro o filho, entes a que mais se apegavam. Quanto a mim, graças a Deus, estou em estado de desaparecer quando Lhe aprouver, sem nenhuma saudade senão da própria vida. Estou em regra com tudo e como que já disse adeus a todos, salvo a mim mesmo. Nunca homem se apresentou mais bem preparado para deixar a vida no momento necessário e sem a menor dissimulação. Ninguém se desprendeu melhor e mais completamente da vida do que eu. As mortes mais integrais são as mais desejáveis. "Oh! desgraça - dizem uns -, um só dia nefasto basta para envenenar todas as alegrias da vida. Não terminarei nunca a minha obra -lamenta o arquiteto -, deixarei pois imperfeitos esses soberbos baluartes”. Nada se empreenda pois, em vista de tão remota conclusão, pelo menos não se o faça com a apaixonada intenção de chegar ao fim. Nascemos para agir: "quero que a morte me surpreenda em pleno trabalho". Vamos agir portanto e prolonguemos os trabalhos da existência quanto pudermos, e que a morte nos encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes à sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas," Conheço alguém que, na hora extrema, lastimava incessantemente lhe fosse cortar a morte, no décimo quinto ou no décimo sexto de nossos reis, o fio de uma história em andamento. "Não pensem que a morte nos rouba a saudade das coisas mais queridas." Devemos desfazer-nos dessas preocupações vulgares e nocivas. Se se construíram cemitérios perto das igrejas e nos lugares mais frequentados da cidade, foi, diz Licurgo, para acostumar a plebe, as mulheres e as crianças a não se assustarem à vista de um morto e a fim de que o contínuo espetáculo de ossadas, túmulos, pompas funerárias, advirta todos do que os espera: "Era outrora costume alegrar os festins com execuções e com combates de gladiadores; estes caíam amiúde entre as taças e inundavam de sangue as mesas do banquete." Os egípcios em seus festins faziam apresentar aos convivas uma imagem da morte, que lhes gritava: "bebe, goza, pois serás assim depois de morto". Também se tornou em mim um hábito não somente ter sempre presente a ideia da morte como também falar dela constantemente. E nada me interessa mais do que indagar da morte das pessoas: que disseram, que atitude assumiram? Nas histórias que leio, os trechos referentes à morte são os que mais me prendem a atenção. Vê-se isso pela escolha dos meus exemplos e pela afeição particular que revelo pelo assunto. Se fosse escritor, anotaria as mortes que mais me impressionaram e as comentaria, pois quem ensinasse os homens a morrer OS ensinaria a viver. Dicearcus escreveu um livro com esse título, porém diferente e menos útil em seu objetivo. Dirão que em sua realidade a morte ultrapassa a nossa concepção; por mais que nos preparemos para enfrentá-la, quando ela chegar estaremos no mesmo ponto. Deixai-os falar. Sem dúvida tal preparação comporta grandes vantagens, pois será pouco caminhar ao seu encontro sem apreensões? Há mais: a própria natureza nos ajuda na ocorrência e nos dá a coragem que poderia faltar-nos. Se nossa morte é súbita e violenta, não temos tempo de receá-la; se não, na medida em que a enfermidade nos domina, diminui naturalmente o nosso apego à vida. Custa-me muito mais aceitar a ideia de morrer quando gozo saúde do que quando estou com febre. Quando não me sinto bem, as alegrias da vida me parecem menos valiosas, tanto mais quanto não estou em condições de usufruí-Ias, a morte se me afigura menos temível. Disso concluo que quanto mais me desprender da vida e me aproximar da morte, tanto mais facilmente me conformarei com a passagem de uma para outra. Como diz César, e como o verifiquei em mais de uma circunstância, as coisas produzem maiores efeitos de longe que de perto. Assim é que me atormentam mais as doenças se estou bem de saúde do que se as enfrento. A alegria, o prazer e a força induzem-me a uma ampliação desproporcional do estado contrário e os incômodos da enfermidade eu os concebo mais pesados do que os sinto realmente quando adoeço. E espero que o mesmo se dê quanto à morte. As flutuações a que se sujeita a nossa saúde, o enfraquecimento gradual que sofremos, são meios que a natureza emprega para dissimular-nos a aproximação de nosso fim e de nossa decrepitude. Que resta a um ancião do vigor de sua juventude e do seu passado? "Ah, como sobra pouco aos velhos."! César, a quem um soldado, alquebrado e decrépito, viera pedir em plena rua autorização para se matar, respondeu rindo: "Pensas então que ainda estás vivo?" Creio que não seríamos capazes de suportar tal mudança se a ela chegássemos repentinamente. Mas em nos conduzindo pela mão, devagar, quase insensivelmente, a natureza nos familiariza com essa miserável condição. De tal modo que a mocidade se extingue em nós sem que lhe percebamos o fim, em verdade mais penoso do que o de nosso ser inteiro ao ter de deixar uma vida de achaques quando morremos de velhice. O salto que nos cabe dar para passar de uma existência miserável ao fim dela não é tão sensível quanto o que separa uma vida tranquila e florescente de uma vida difícil e dolorosa. O corpo curvado tem menos força para carregar um fardo; o mesmo ocorre com a alma, que é preciso fortalecer e pôr em condição de resistir à opressão causada pelo medo da morte. Como é impossível que encontre a calma sob o peso desse temor, se o pudesse dominar inteiramente - o que está acima das forças humanas - estaria a alma assegurada contra a inquietação, a ansiedade, o medo e tudo o que nos aflige: "nem o rosto cruel de um tirano, nem a tempestade furibunda que revolve o Adriático, nada lhe pode abalar o ânimo; nada, nem Júpiter lançando seus raios". A alma tornar-se-ia então senhora de suas paixões e de seus mais ardentes desejos; nada a atingiria, nem a indigência, nem a vergonha, nenhuma adversidade. Esforcemo-nos pois por conseguir essa vantagem. Nisso consiste a verdadeira e soberana liberdade, a que nos permite desafiar a violência e a injustiça, desprezar a prisão e os ferros escravizadores: "Sobrecarregar-te-ei os pés e as mãos de cadeias, e entregar-te-ci ao mais cruel dos carcereiros. - Um Deus me libertará quando eu o quiser - esse Deus, penso eu, é a morte, a morte, termo de todas as coisas". Nossa religião não teve alicerce humano mais sólido que o do desprezo à vida. E não é somente a voz da razão que a isso nos conduz, pois por que temeríamos perder uma coisa que, uma vez perdida, já não podemos lamentar? E como a morte nos ameaça sem cessar sob vários aspectos, não será mais desagradável ficarmos a receá-los todos, de antemão, do que nos resignarmos uma vez por todas, diante dela? Por que se preocupar com sua vinda, se é inevitável? Dizia alguém a Sócrates: "os trinta tiranos condenaram-te à morte". Ao que o filósofo respondeu: "Eles já o foram pela natureza". Que tolice nos afligirmos no momento em que nos vamos ver livres de nossos males! Nossa vinda ao mundo foi para nós a vinda de todas as coisas; nossa morte será a morte de tudo. Lastimar não mais viver dentro de cem anos é tão absurdo quanto lamentar não ter nascido um século antes. A morte é origem de outra vida. Nascemos entre lágrimas e muito nos custou entrar na vida atual; passando para uma nova vida despojamo-nos do que fomos na precedente. Não pode ser grave uma coisa que acontece uma só vez; será razoável recear com tanta antecedência acidente de tão curta duração? Em relação à morte, viver pouco ou muito é a mesma coisa, pois nada é longo ou curto quando deixa de existir. Diz Aristóteles que há no rio Hipanis insetos que vivem somente um dia: os que morrem às oito da manhã morrem jovens e os que morrem às cinco da tarde morrem de decrepitude. Quem não acharia divertido que tão insignificante diferença em existências tão efêmeras bastasse para tachá-las de felizes? Semelhante apreciação acerca da duração da vida humana não é menos ridícula se a comparamos com a eternidade, ou simplesmente com a duração das montanhas, dos rios, das estrelas, das árvores e até de certos animais. A natureza nos ensina: saís deste mundo como nele entrastes. Passastes da morte à vida sem que fosse por efeito de vossa vontade e sem temores; tratai de vos conduzirdes de igual maneira ao passardes da vida à morte; vossa morte entra na própria organização do universo: é um fato que tem seu lugar assinalado no decurso dos séculos: "Os mortais se emprestam mutuamente a vida... e a tocha que se transmite de mão em mão nas corridas sagradas". Mudarei para vós esse belo entrosamento das coisas? Morrer é a própria condição de vossa criação; a morte é parte integrante de vós mesmos. A existência de que gozais participa da vida e da morte a um tempo; desde o dia de vosso nascimento caminhais concomitantemente na vida e para a morte: "a primeira hora de vossa vida é uma hora a menos que tereis para viver” - "nascer é começar a morrer; o último instante de vida é consequência do primeiro”. O tempo que viveis, vós o roubais à vida e a restringis proporcionalmente. Vossa vida tem como efeito conduzir-vos à morte. E enquanto viveis estais constantemente sob a ameaça de morte, e mortos, já não viveis mais; ou, se assim preferis, a morte sucede à vida, logo durante a vida estais moribundos; e a morte atinge muito mais duramente e essencialmente o moribundo do que o morto. Se soubestes usar a vida e gozá-la quanto pudestes, ide-vos e vos declareis satisfeitos: "por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado?” Se não a soubestes usar, se ela vos foi inútil, que vos importa perdê-la? E se ela continuasse em que a empregaríeis? "Para que prolongar dias de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado?” A vida em si não é um bem nem um mal. Torna-se bem ou mal segundo o que dela fazeis. E se vivestes um dia já vistes tudo, pois um dia é igual a todos os outros. Uma é a luz, uma é a noite. Esse sol, essa lua, essas estrelas, em sua disposição, são os mesmos que apreciaram vossos antepassados e que conhecerão vossos descendentes. "Vossos sobrinhos não verão nada mais do que viram seus pais." E em última análise pode-se dizer que a totalidade dos atos diversos que comporta a comédia a que vos convidei cumpre-se no decurso de um ano, cujas quatro estações, se o observastes, abarcam a infância, a adolescência, a idade viril e velhice do mundo. Essa marcha é constante; não a modifico nunca e sem cessar ela se repete, e assim será eternamente: "Giramos sempre em torno do mesmo círculo"; "o ano retoma sem descontinuar a estrada percorrida”. Não está em meus projetos inovar para vós a ordem das coisas: "não posso nada imaginar, nada inventar de novo para vos agradar; é, e será sempre, a repetição das mesmas cenas". Dai vosso lugar a outros como outros vos deram o seu. A igualdade é a primeira condição da equidade. Quem se há de queixar de uma medida que atinge a todos? Podeis prolongar vossa vida, o que quer que façais não diminuirá em nada o tempo que tendes para serdes mortos. Por mais comprida que seja, vossa vida não será nada, e esse estado que lhe sucederá - e que pareceis tanto temer - terá a mesma duração que se houvésseis morrido no berço: "Vivei quantos séculos quiserdes, nem por isso será menos eterna a morte". Nesse estado em que vos porei não tereis motivo para descontentamento: "Ignorais que não vos sobrevirá outro vós mesmo, o qual vivo, vos possa chorar como morto e gemer sobre o vosso cadáver!” E essa vida que tanto Ia mentais perder não mais a desejareis: "Não teremos mais com que nos inquietarmos nem com nós mesmos, nem com a vida ... nenhuma saudade teremos da existência". "A morte é menos temível do que nada, se é que alguma coisa menos que nada é possível”. Morto ou vivo, vós não lhe escapais: vivo, porque sois; morto, porque não sois mais. Por outro lado ninguém morre antes da hora. O tempo que perdeis não vos pertence mais do que o que precedeu vosso nascimento, e não vos interessa: "Considerai em verdade que os séculos inumeráveis, já passados, são para vós como se não tivessem sido". Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de ter companheiros vos pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: "As raças futuras vos seguirão por sua vez". Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante em que morreis: "não há uma só noite, nem um só dia em que não se ouçam, misturados aos vagidos dos recém-nascidos, os gritos de dor em torno dos esquifes. Por que tentar recuar se não vos é permitido voltar atrás? Vistes mais de um indivíduo que se satisfez com morrer, fugindo assim a grandes misérias; já deparastes com alguém que se achou prejudicado? E não será tolice condenar uma coisa que não conheceis nem pessoalmente nem através de outro? Por que vos queixardes de mim e do destino? Nós vos estaremos prejudicando? Cabe-vos governar-nos ou, ao contrário, dependeis de nós? Por mais moço que sejais, vossa vida chegou ao fim; um homem de pequena estatura é tão completo quanto outro muito grande. Nem a estatura do homem, nem sua existência têm medidas determinadas. Quíron recusou a imortalidade quando Saturno, seu pai, deus do tempo e da mortalidade, lhe revelou as condições dela. Imaginai a que ponto uma vida sem fim fora menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada. Se não tivésseis a morte, vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado dela. Foi propositadamente que a ela juntei alguma amargura, a fim de impedir que ante a comodidade de seu uso não a buscásseis com excessiva avidez. Para vos trazer a essa moderação que solicito de vós, de não abreviar a vida e não tentar esquivar a morte, temperei-as pelas sensações mais ou menos suaves, mais ou menos duras que vos podem outorgar. Ensinei a Tales, o primeiro entre vossos sábios, que viver e morrer são igualmente indiferentes; o que o impeliu a responder muito sabiamente a alguém que lhe perguntava por que então não se matava: porque é indiferente. A água, a terra, o fogo, tudo o que constitui meu domínio e contribui para vossa vida, não contribuem mais do que à morte. Por que temeis vosso último dia? Ele não vos entrega mais à morte do que o faz cada um dos dias anteriores. Não é o último passo a causa de nossa fadiga; ele apenas a determina. Todos os dias levam à morte, só o último a alcança. Eis os sábios conselhos que vos dá a natureza, nossa mãe. Amiúde indaguei de mim mesmo por que, na guerra, a perspectiva ou a presença da morte, nossa ou de outrem, nos impressiona muito menos do que em nossos lares. Se assim não fosse, um exército se comporia unicamente de médicos e de choramingas. Estranho igualmente que a morte em sendo a mesma para todos, a acolham com mais calma os camponeses e o povo miúdo que os outros. Creio, em verdade, que são essas fisionomias de circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam, que nos impressionam mais do que ela própria. Quando ela se aproxima, há uma modificação total em nossa vida cotidiana: mães, mulheres e crianças gritam e se lamentam. Inúmeras pessoas nos visitam, consternadas; a gente da casa aí está, pálida e desesperada; a obscuridade reina no quarto; acendem-se velas; à nossa cabeceira juntam-se padres e médicos; tudo, em suma, em volta de nós se dispõe como para inspirar horror; ainda não rendemos o último suspiro, e já estamos amortalhados e enterrados. As crianças amedrontam-se quando as pessoas, mesmo suas conhecidas, se apresentam mascaradas; pois é o que ocorre nesse momento. Arranquemos as máscaras às coisas como às pessoas e por baixo veremos muito simplesmente a morte. A mesma com a qual partiu ontem sem maior pavor tal ou qual criado ou aia. Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos! CAPÍTULO XXI A FORÇA DA IMAGINAÇÃO "Uma imaginação fortemente preocupada com um acontecimento pode provoca-lo”, dizem os clérigos. Sou desses sobre os quais a imaginação tem grande domínio. Todos são atingidos por ela, mas alguns há que ela derruba. Ela me persegue e eu me esforço por fugir na impossibilidade de lhe resistir. Viveria sempre, de bom grado, na companhia de pessoas sadias e de bom humor; a vista das angústias alheias influi fisicamente em mim de maneira penosa, e não raro sofro de sentir que alguém sofre. Diante de quem tosse continuamente sinto igual irritação nos pulmões e brônquios. Sou levado a visitar menos os doentes pelos quais me interesso, e preciso ver, do que os outros, os que não considero tanto e visito ocasionalmente. Pego a doença que estudo e a semeio em mim. Não acho estranho que a imaginação dê febre e mesmo provoque a morte nos que não a controlam. Simon Thomas foi um grande médico em seu tempo. Lembro-me de que com ele me encontrei em Tolosa em casa de um ancião rico e doente do peito. Entre outros meios de cura, aconselhou-lhe Simon Thomas a fazer com que eu me agradasse em sua companhia, pois em contemplando o frescor de meu rosto, concentrando o pensamento na alegria e no vigor que se irradiavam de meu ser, então em plena adolescência, impregnando todos os seus sentidos dessa exuberância de saúde que havia em mim, poderia melhorar seu estado de saúde habitual. Omitia de dizer, entretanto, que o meu talvez se ressentisse da experiência. Galo Víbio dedicou-se de tal modo ao estudo das causas e efeitos da loucura que perdeu a razão e não mais a recobrou. Podia vangloriar-se de se ter tornado louco por excesso de sabedoria. Em certos condenados o pavor adianta-se à ação do carrasco, como se viu no caso do condenado a quem desvendaram os olhos no patíbulo a fim de lhe comunicarem ter sido agraciado. Ao lhe tirarem a venda verificaram que já morrera, fulminado pela sua imaginação. Suamos e trememos, empalidecemos e coramos sob a sua influência. Em leito de pluma agita-nos o corpo a ponto, por vezes, de nos levar à morte; e tanto inflama a fogosa mocidade que ocorre aos jovens satisfazerem em sonho seus desejos amorosos. Embora não seja raro ver-se, à noite, aparecerem cornos em quem não os tinha ao deitar-se, o caso de Cippus, rei da Itália, é particularmente notável. Assistira durante o dia a uma luta de touros e se interessara tanto que a noite inteira sonhara que lhe cresciam chifres na cabeça, o que pela força da imaginação aconteceu efetivamente. O amor deu ao filho de Creso a voz que a natureza lhe recusara. Antíoco contraiu uma febre em consequência da impressão profunda que lhe causou a beleza de Estratonice. Plínio afirma que viu Lúcio Cossítio mudar de sexo e se tornar homem no dia de suas núpcias. Pontano e outros relatam semelhantes metamorfoses ocorridas na Itália em séculos passados; e em virtude de violento desejo dele próprio e de sua mãe, Ífis: "pagou como homem as promessas que fizera quando mulher". De passagem por Vitry-le-François foi-me dado ver um rapaz a quem o bispo de Soissons dera o nome de Germain na confirmação, e que todos os habitantes do lugar haviam tratado por Maria, como mulher, até a idade de vinte e dois anos. Quando o conheci era já velho, muito barbudo e não se casara. Explicou-me que, em consequência de esforço feito para saltar, ocorrera o aparecimento de seus órgãos viris. É ainda de uso na região cantarem as moças uma canção em que se recomenda não fazerem grandes exercícios para não lhes acontecer tornarem-se rapazes como Maria-Germano. Não é tão extraordinário assim o caso, e essa espécie de acidente se verifica não raro. Pode-se observar entretanto que a ação da imaginação em tais casos consiste em uma contínua obsessão e excitação que levam à mudança definitiva de sexo como solução mais cômoda e eficiente. Há quem atribua à imaginação os estigmas do Rei Dagoberto e de São Francisco. Diz-se também que sob a sua influência pode o corpo humano erguer-se por vezes do seu lugar. Para celso conta que certo padre se alçava a um êxtase tal que durante longo tempo permanecia sem respirar e sem sensibilidade. Santo Agostinho cita outro que simplesmente, ao ouvir lamentações ou gemidos, desmaiava imediatamente e tão fora de si ficava que não acordava do desmaio por mais que o sacudissem, lhe berrassem aos ouvidos, o beliscassem ou queimassem. Voltando a si, dizia ter percebido realmente vozes, mas longínquas, e só então enxergava suas queimaduras e chagas. E de que não se tratava de impostura voluntária, tinha-se a prova no fato da perda de pulso e de hálito. É verossímil que seja por efeito da imaginação, agindo de preferência sobre as almas da gente do povo, inclinada à credulidade, que as visões, os milagres, os encantamentos e os fatos sobrenaturais encontram quem neles mais acredite. Tanto e tão bem os doutrinaram que chegam a pensar verem as coisas que em verdade não veem. Creio também que essas falhas divertidas verificáveis na consumação do casamento e que constituem um obcecante entrave a preocupar a nossa sociedade, não passam no fundo de um efeito da apreensão e da timidez. Sei de fonte segura de alguém, por quem respondo como por mim mesmo e não pode ser suspeitado de fraqueza nem de credulidade, que ouviu um de seus companheiros contar a desventura que o atingira no momento menos desejado. A narrativa veio-lhe à memória em idêntica circunstância e foi de tal ordem sua apreensão, sua imaginação se viu tão atingida por esse infortúnio que lhe aconteceu então - e de outras feitas - a mesma coisa, a má lembrança perseguindo-o sem cessar. Para obviar a tão estranha situação, imaginou um meio não menos estranho: tomando a dianteira, antes de mais nada confessava a possibilidade do malogro. Assim se aliviava a contenção de seu espírito e dessa maneira, em se achando preparado para o pior, muito menos o preocupava a ideia. Entregando-se então sua companheira, sem forçá-lo nem nada exigir dele, viu-se totalmente curado e liberto de sua obsessão. Quem uma vez praticou ato de virilidade, nada mais tem a temer, senão por justa causa de esgotamento. Semelhante acidente só é de recear-se, em geral, em circunstâncias em que nosso espírito se acha sobre-excitado por um desejo imoderado a que se alia o respeito, principalmente quando os encontros são imprevistos e rápidos. Não nos podemos então recuperar. Conheço alguém, semi-saciado, aliás, dos prazeres desse gênero, e em quem o contato da mulher bastava para lhe acalmar o ardor, que deve a essa impotência ter conservado apesar da idade suas funções sexuais. Conheço outro ao qual bastou que um amigo assegurasse possuir um talismã contra tais encantamentos para curá-lo de suas fraquezas. A coisa merece ser contada. Certo conde, de mui boa família, e muito meu amigo, desposou uma bela mulher que fora objeto das assiduidades de alguém que assistia ao casamento. Isso inquietou bastante seus amigos e em particular uma velha senhora, sua parenta, que presidia às núpcias em sua própria casa. Ela acreditava nesses enfeitiçamentos e me comunicou seu temor de que o indivíduo usasse de tais meios contra o noivo. Respondi-lhe que tinha possibilidade de evitar o malefício e pedi-lhe que confiasse em mim. Possuía por acaso, no cofre, uma pequena moeda de ouro muito delgada, com que me presenteara Jacques Pellotier quando morava comigo. Nessa moeda havia gravados alguns signos do zodíaco com o fim de constituir uma defesa contra a insolação e curar as dores de cabeça. Devia ser ela colocada na sutura do crânio e mantida com a ajuda de uma fita que se amarrava ao queixo. Tolice igual às precedentes! Pensei em tirar partido e disse ao conde que, embora ameaçado como os outros, e com inimigo capaz de tudo tentar, eu lhe podia ajudar. Que fosse dormir sem medo, pois eu estava em condições de prestar-lhe um serviço de amigo e até de realizar um milagre por ele, contanto que se comprometesse a guardar fielmente o segredo. Devia apenas, à noite, quando lhe trouxessem o réveillon, comunicar-me por um sinal combinado que as coisas iam mal. Tivera ele o espírito tão chocado e os ouvidos tão cheios, que se prendera realmente às perturbações de sua imaginação e fez o sinal na hora indicada. Disse-lhe então em voz baixa que se levantasse como para sair, se apoderasse, como por brincadeira, de meu chambre (tínhamos mais ou menos a mesma estatura), o vestisse e conservasse até haver executado o resto de minha receita, a saber: quando tivéssemos saído, se retirasse também para uma necessidade, pronunciasse três vezes tais ou quais palavras e fizesse os movimentos ordenados, devendo cada vez cingir a fita que eu lhe dera, aplicando cuidadosamente sobre os rins a moeda a ela pregada. E amarrando-a da última vez de maneira a não se desprender nem mexer, voltasse tranquilamente ao leito sem esquecer de estender o chambre de modo a cobri-los os dois. Essas macaquices constituíam o ponto essencial da coisa, pois tão estranhos meios não podem senão proceder, em nosso pensamento, de uma ciência difícil de penetrar. E por sua insanidade mesma adquirem importância e consideração. Em suma, é certo que na circunstância em questão meu talismã atuou mais a favor de Vênus que do Sol. Cedi nessa ocasião a um impulso jocoso e de curiosidade que não me é, peculiar; sou, ao contrário, inimigo dessas tolices sutis e fingidas. E um gênero que não me apetece, embora o tenha empregado então, de modo recreativo por certo, mas também proveitoso. Mas se o fato em si não é condenável, a atitude o é. Amásis, rei do Egito, desposara Laódice, uma bela moça grega. E, ele que sempre fora excelente companheiro, viu-se impossibilitado de tê-la. Atribuindo o fato a qualquer mandinga dela, ameaçou-a de morte. Como ocorre com tudo o que se relaciona com a imaginação, ela insistiu para que recorresse à devoção a fim de fazer cessar tal estado de coisas. E tendo prometido mundos e fundos à deusa, achouse ele divinamente curado já na primeira noite após suas preces e seus sacrifícios. Isso mostra quanto erram as mulheres que nos acolhem com atitudes afetadas, bulhentas ou hostis, pois assim agindo nos inibem ao mesmo tempo que nos atiçam. A nora de Pitá goras dizia que a mulher que dorme com um homem deve, ao tirar a saia, despir-se do pudor, e somente o reencontrar ao vestir-se. O homem que em suas aventuras sofreu algumas dessas desilusões perde facilmente a confiança em si. Quem foi vítima uma vez de sua imaginação e passou por essa vergonha (a qual se verifica quase sempre no início de uma ligação, porque o desejo é mais vivo e ardente e porque, desejoso de impressionar favoravelmente, teme o malogro), em tendo mal começado ressente-se do despeito que experimentou e corre o risco de ver repetir-se a desventura daí por diante. Os casados, que não carecem de tempo, não se devem apressar nem mesmo tentar entrar, em relações, se para tanto não se acham inteiramente preparados. E preferível, no estado de excitação e febre em que vivem então, adiar a inauguração do leito nupcial, por desagradável que seja, e aguardar uma ocasião propícia, a correr o risco de um malogro desesperante. Antes da posse, quem tenha motivos para duvidar de si, deve de quando em quando fazer algumas experiências, provocar, sem insistir, até alcançar maior segurança. Quanto aos que sabem ter órgãos obedientes, evitem simplesmente de ceder demasiado à fantasia. Com razão observam quanto esse órgão é independente, excitando-se muitas vezes inoportunamente e falhando de outras feitas; colocando-se em oposição direta à nossa vontade, recusando-se peremptoriamente a atender às nossas solicitações mentais ou físicas. Se entretanto tomassem como pretexto essa independência para condená-lo e me cumprisse defendê-lo, eu insinuaria caber parte da responsabilidade aos outros órgãos seus companheiros, os quais invejando sua importância e sua agradável destinação devem ter conspirado, sublevando todo mundo contra ele, imputando-lhe maldosamente uma culpa de que tampouco não estão isentos. Pois, pergunto, haverá uma só parte de nosso corpo que não se recuse às vezes a fazer o que deve ou não aja contra a nossa vontade? Cada uma dessas partes obedece a impulsos próprios, que as acordam ou adormecem sem intervenção nossa. Quantas vezes os movimentos involuntários do nosso rosto revelam pensamentos que desejaríamos conservar secretos! A causa da independência desse órgão pode de igual modo atuar sobre o coração, os pulmões, o pulso. A vista de um objeto agradável acende imperceptivelmente em nós a chama de uma emoção febril. Mas serão somente esses músculos e essas veias que se retesam e se distendem independentemente de nossa vontade e até de nosso pensamento? Não mandamos nossos cabelos se eriçarem, nossa pele arrepiar de desejo ou medo. Nossas mãos têm às vezes movimentos inconscientes; a língua paralisa-se e a voz se extingue em certos momentos. Quando não temos nada para comer e a isso não gostaríamos de ser incitados, o apetite exige que comamos e bebamos, tal qual o outro apetite, e se acalma ou se irrita quando bem entende. E não têm, os órgãos pelos quais se alivia o ventre, movimentos de retração e dilatação como os que concorrem para o funcionamento das partes genitais? Para demonstrar o poder de nossa vontade, alude Santo Agostinho a alguém que produzia, a seu bel-prazer, evacuações sonoras de gases intestinais. João Luís Vives, comentador de Santo Agostinho, acrescenta o exemplo de um indivíduo de seu tempo que a tal possibilidade juntava a de dar a esses ruídos o tom que pediam. Estes exemplos, entretanto, não constituem prova irrefutável de obediência absoluta dessa parte do corpo em geral assaz indiscreta e indisciplinada. Conheço uma pessoa em quem essa parte do corpo é tão turbulenta e pouco tratável que há quarenta anos vem ela sendo atormentada por não poder conter-se. Sua evacuação é por assim dizer contínua, sem acalmias, e assim parece dever continuar até a morte. E praza a Deus que somente em histórias tenha conhecimento dessa recusa do ventre em se aliviar, capaz de levar-nos a uma morte dolorosa. E oxalá nos tivesse Ele permitido, como fez o imperador que autorizou seus convivas a darem livre expansão à natureza. Com muito mais razão deveríamos censurar nossa própria vontade, cuja autoridade reivindicamos pelo seu espírito de rebelião, e seus desregramentos e desobediência. Quer ela sempre o que desejaríamos que quisesse? Não quer ela muitas vezes e em prejuízo nosso o que lhe proibimos querer? Deixa-se ela sempre conduzir pelas conclusões de nossa razão? Finalmente na defesa que faço desse órgão, direi: quanto ao que lhe censuram, a causa está inseparavelmente ligada à de outro órgão seu associado, e no entanto só o meu cliente é incriminado, porque há contra ele argumentos e fatos que não se podem invocar contra o seu cúmplice, ao qual apenas se há de culpar de provocações por vezes importunas. Jamais de falhar. Ademais essas provocações são discretas e tranquilas. Como quer que seja, por mais que discutam e sentenciem, advogados e juízes, não deixará a natureza de seguir seu caminho. Se dotou esse órgão de algum privilégio especial, teve razão para fazê-lo, pois é o único a perpetuar a imortalidade dos mortais, obra divina, na opinião de Sócrates; e é ele próprio amor, desejo de imortalidade e demônio imortal. Graças à imaginação, tal indivíduo escrofuloso deixa em França suas escrófulas, enquanto seu companheiro com elas volta para a Espanha. Eis por que em tais assuntos tem-se por hábito preparar o espírito da pessoa. Por que os médicos, antes de operar, procuram convencer o doente da excelência de uma terapêutica em que eles próprios não acreditam, se não é para que a imaginação supra a ineficiência prevista do remédio? Não esquecem o que disse um de seus mestres, a saber, que certos doentes saram à simples vista dos apetrechos operatórios. Vejo confirmado esse defeito da imaginação no fato que me contou um empregado de farmácia de meu falecido pai, rapaz simples e originário da Suíça, país de gente séria e pouco inclinada à mentira. Durante muitos anos servira um negociante de Tolosa, homem doentio, sofrendo da bexiga, razão pela qual tomava frequentes enemas com receitas que pedia aos médicos quando sentia agravar-se a enfermidade. Traziam a lavagem com o cerimonial de praxe; ele verificava se não era demasiado quente e deitava-se de lado. Operavam então como normalmente, mas sem procederem à injeção do líquido. Retirava-se o farmacêutico e o paciente, acomodado como se o enema tivesse sido realmente ministrado, sentia o mesmo efeito que se experimenta em semelhante caso. Minha testemunha jurou-me que a fim de reduzir a despesa (pois o cliente pagava como se houvesse recebido a lavagem) a mulher do doente inventara valer-se de água morna unicamente, mas sempre o resultado denunciava a trapaça e era preciso tornar ao primeiro método. Uma mulher, pensando ter engolido um alfinete com o pão, gritava e se atormentava como se sentisse uma dor insuportável na garganta onde imaginava se houvesse ele espetado. Como não havia nem inchaço nem qualquer outro sinal externo, uma pessoa sensata julgou se tratasse de um efeito da imaginação por se ter a mulher provavelmente arranhado com a casca do pão. Forçou-a a vomitar e, no que devolveu, jogou às escondidas um alfinete retorcido. Imaginando a vítima fosse o alfinete engolido, passou-lhe de imediato a dor. Sei de um fidalgo que se vangloriou por brincadeira, três ou quatro dias após haver oferecido um alegre jantar, de ter dado gato em vez de lebre a seus convivas. Uma moça que estivera presente ficou tão horrorizada que veio a ter febre, e um tão grande desarranjo estomacal que não foi possível salvá-la. Tudo isso pode ser atribuído a uma íntima ligação do espírito e do corpo trocando suas impressões. Outra coisa se observa quando nossa imaginação atua não somente sobre nós mesmos mas também sobre os outros. Assim como a doença de meu corpo se transmite a outro corpo, o que ocorre nos casos de peste, varíola ou infecções da vista, "olhando olhos doentes ficam doentes os sãos; muitas doenças desse modo se comunicam de um corpo a outro", assim também a imaginação fortemente excitada pode produzir emanações que atuem sobre outros seres. A antiguidade oferece-nos o exemplo das mulheres da Cítia que, indignadas e irritadas contra alguém, o matavam unicamente com a força de seu olhar. As tartarugas e os avestruzes chocam seus ovos fixando-os simplesmente, o que nos induz a supor possuam seus olhos, em certo grau, a faculdade de emitir e propulsionar algum fluido. Quanto aos feiticeiros, dizem-nos providos de olhos insultantes e nocivos. - "Não sei que olhos fascinam nossas tenras ovelhas." Mas eu não acredito no poder dos que se dizem mágicos. Como quer que seja, observa-se o fato de mulheres grávidas imprimirem aos filhos que trazem no ventre a marca de suas fantasias. Assim se viu na criança engendrada pelo Mouro. E a Carlos, rei da Boêmia e imperador, foi apresentada uma menina das cercanias de Pisa, peluda e hirsuta, cuja mãe atribuía o fato a uma imagem de São João Batista pendurada junto a seu leito. Idênticos fenômenos se verificam entre os animais (como as ovelhas de Jacó, as perdizes e as lebres) que nas montanhas a neve torna brancos. Viu-se há tempos em minha casa um gato à espreita de um pássaro empoleirado no alto de uma árvore; olharam-se fixamente com intensidade durante alguns momentos e em seguida o pássaro deixou-se cair, como se tivesse morrido, entre as patas do gato, o que se explica ou pela força do olhar deste ou por um efeito da própria imaginação do pássaro. Os que se ocupam de caça com falcões conhecem a história de um falcoeiro, o qual apostava que pela simples força de seu olhar era capaz de fazer com que descesse a ele a ave de rapina; e o conseguia ao que dizem, mas não o garanto, pois deixo a responsabilidade desses casos a quem os conta. As reflexões são minhas; apoiam-se na razão e não na experiência. Cada qual acrescente aos meus os exemplos que conheça e quem não os tenha para juntar não imagine sejam estes os únicos, pois numerosos e variados são os fatos que se verificam. E se não os escolho bem, que outro os selecione. No estudo que faço de nossos costumes e paixões, os testemunhos fantasistas, desde que possíveis, valem como verdadeiros. Ocorridos ou não, em Roma ou em Paris, com João ou Pedro, mostram-nos sempre um aspecto que pode assumir a natureza humana e isso basta para que os utilize nestes comentários. Imaginários ou reais, tomo conhecimento deles e deles tiro proveito, e, entre os diversos ensinamentos de uma mesma história, escolho para meu uso o mais notável e preciso. Há autores que procuram principalmente tornar conhecidos os fatos; eu, se pudesse, visaria antes a deduzir deles as consequências que porventura comportem. Permita-se nas escolas que se admitam analogias ainda que não existam. Não vou tão longe e sou mais escrupuloso a esse respeito do que se fizesse história. Nos exemplos que aqui reproduz o, tirados do que li, ouvi, fiz, ou disse, evito alterar ou omitir os mais ínfimos e inúteis pormenores. Conscientemente não mudo uma vírgula; por ignorância não sei. A propósito, ponho-me a pensar às vezes como um teólogo, um filósofo e outros, gente de muita consciência e grande prudência, podem escrever história. Como podem controlar fatos que assentam apenas na crença popular, responder pelo pensamento de personagens que não conhecem e aceitar como dinheiro de contado suas conjeturas, quando hesitariam em testemunhar sob juramento diante da justiça a realidade de atos de que participaram vários indivíduos ainda que se verificassem na sua presença? E que não se arriscariam a responsabilizar-se de maneira absoluta por nenhuma pessoa de sua intimidade? Considero aliás menos perigoso escrever sobre coisas do passado que historiar as do presente, pois no primeiro caso não faz o escritor senão relatar acontecimentos pela autenticidade dos quais outros respondem. Muitos me incitam a escrever acerca de nossa época, considerando que a observo com menos paixão do que outros e a conheço por tê-la visto de perto e ter-me aproximado dos chefes dos diversos partidos. Mas ignoram que nem pela glória de Salústio eu o faria, inimigo declarado que sou de tudo o que é obrigação e exige assiduidade e constância. Nada é mais contrário a meu estilo do que uma narração seguida e longa; tenho o fôlego curto e a redação difícil. Não sei estabelecer um plano de composição, nem o desenvolver. E ignoro mais do que uma criança as expressões e os vocábulos relativos às coisas do comum. No entanto, pus-me a escrever o que sei dizer, adaptando o meu assunto às minhas forças. Se tomasse alguém por modelo e guia, poderia acontecer que não tivesse a possibilidade de acompanhá-la. Ademais, livre como o sou naturalmente, teria emitido, acerca das coisas e das gentes, juízos que, na minha própria opinião e provavelmente com toda a razão, seriam injustificáveis e condenáveis. Plutarco poderia dizer-nos que se os fatos por ele narrados em suas obras são todos inteiramente verdadeiros, cabe o mérito a quem lhos forneceu; mas se são úteis à posterioridade e se apresentam de maneira a pôr em evidência a virtude, a si próprio os deve. Pouco importa seja um fato antigo contado deste ou daquele modo; há nisso menor perigo do que em uma receita errada. CAPÍTULO XXII DE COMO O QUE BENEFICIA UM PREJUDICA OUTRO Dêmade, de Atenas, condenou um homem de sua cidade que comerciava com coisas necessárias aos enterros, acusando-o de tirar disso lucro excessivo, somente auferível da morte de muitas pessoas. Tal julgamento não me parece muito equitativo, pois não há benefício próprio que não resulte de algum prejuízo alheio e, de acordo com aquele ponto de vista, qualquer ganho fora condenável. O mercador só faz bons negócios porque a mocidade ama o prazer; o lavrador lucra quando o trigo é caro; o arquiteto quando a casa cai em ruínas; os oficiais de justiça com os processos e disputas dos homens; os próprios ministros da religião tiram honra e proveito de nossa morte e das fraquezas de que nos devemos redimir; nenhum médico, como diz o cômico grego da antiguidade, se alegra em ver seus próprios amigos com saúde; nem o soldado seu país em paz com os povos vizinhos. Assim tudo. E, o que é pior, quem se analise a si mesmo, verá no fundo do coração que a maioria de seus desejos só nascem e se alimentam em detrimento de outrem. Em se meditando a propósito, percebe-se que a natureza não foge, nisso, a seu princípio essencial, pois admitem os físicos que toda coisa nasce, se desenvolve e cresce em consequência da alteração e corrupção de outra: "Logo que uma coisa qualquer muda de maneira de ser, disso resulta imediatamente a morte do que ela era antes". CAPÍTULO XXIII DOS COSTUMES E DA INCONVENIÊNCIA DE MUDAR SEM MAIORES CUIDADOS AS LEIS EM VIGOR Parece-me haver muito bem compreendido a força do costume quem primeiro inventou essa história de uma mulher que, tendo se habituado a acariciar e carregar nos braços um bezerro, desde o nascimento, e o fazendo diariamente, chegou pela força do hábito a carregá-lo ainda quando já se tinha tornado um boi. Porque o costume é efetivamente um pérfido e tirânico professor. Pouco a pouco, às escondidas, ganha autoridade sobre nós; a princípio terno e humilde, implanta-se com o decorrer do tempo, e se afirma, mostrando-nos de repente uma expressão imperativa para a qual não ousamos sequer erguer os olhos. Vemo-lo violentar a natureza, em seus acidentes como em suas leis: "É o uso o guia mais seguro em todas as coisas". A esse respeito apoio a ideia do antro que Platão imaginou na sua República, bem como os médicos que amiúde lhe subordinam as razões de sua terapêutica. Foi pelo hábito que Mitridates conseguiu acostumar seu estômago ao veneno; e que a rapariga a que alude Albert chegara a alimentar-se de aranhas. Nesse mundo das Novas Índias há povos importantes e em climas variados que as comem, e as criam para tanto, como o fazem com os gafanhotos, as formigas, os lagartos, os morcegos, os quais são cozidos e servidos de diversas maneiras. Um sapo, em época de penúria, aí se vende por seis escudos. Para alguns desses povos nossos alimentos seriam venenosos: Grande é a força do hábito. Os caçadores passam a noite na neve; na montanha queimam-se ao sol. Os pugilistas feridos pelo cesto nem sequer gemem. Estes exemplos do estrangeiro não nos parecerão tão estranhos assim se considerarmos a que ponto o hábito atrofia nossos sentidos. Não é preciso citar o que se diz da gente que vive junto às cataratas do Nilo; nem a teoria dos filósofos sobre a música celeste, que em suas revoluções produzem os astros, corpos sólidos e polidos cujo roçar mútuo deve certamente ocasionar maravilhosa harmonia aos acentos da qual se lhes modificam os contornos e as órbitas. Essa música ninguém a ouve na terra em virtude de sua continuidade que faz que a ela se acostume o nosso ouvido e não a perceba como não percebem os egípcios o ruído das cataratas. Basta observarmos os ferreiros, os moageiros, os fabricantes de armas que não suportariam o barulho que fazem continuamente se o percebessem como o percebemos. Minha gola de flores- acaricia-me o olfato quando principio a usá-la, mas ao fim de dois a três dias somente os que se aproximam de mim lhe sentem o bom perfume. E o mais espantoso é que apesar de interrupções e longos intervalos o hábito possa manter vivo o efeito das impressões que provocou em nossos sentidos. É o que ocorre com quem reside perto dos campanários. Eu moro em uma torre onde pela manhã e à noite um grande sino dobra a Ave-Maria. O ruído abala a própria torre e nos primeiros dias me pareceu insuportável; entretanto dentro em pouco me habituei e o ouço agora sem que me incomode, e até me acontece não acordar ao som do sino. Platão repreendeu uma criança que jogava nozes, ao que ela respondeu: "Você me repreende por bem pouca coisa". "O hábito", retorquiu Platão, "não é coisa de nonada." Acredito que nossos maiores vícios se implantam em nós já na mais tenra infância e que a parte principal de nossa educação se acha nas mãos de nossa ama. Há mães para as quais é uma distração ver os filhos torcerem o pescoço dos frangos, ou se divertirem com martirizar gatos e cães; e pais bastante tolos para descobrirem no fato de os filhos baterem ou injuriarem um camponês ou um lacaio o sinal precursor de um temperamento marcial; ou predisposições para a sutileza na peça maliciosa ou a perfídia pregada com habilidade de um camarada. Trata-se no entanto do ponto de partida e do indício certo da crueldade, da tirania e da traição. Tais vícios se encontram em germe na infância, desenvolvendo-se gradativamente e tanto mais quanto se tornam hábitos. É muito perigoso desculpar essas feias tendências, argumentando com a tenra idade ou o alcance diminuto do ato. Primeiramente porque é a natureza quem fala e que sua voz é então mais pura e ingênua, em sendo mais nova. Em segundo lugar, porque a má ação não o é menos ou mais segundo se trate de escudos ou alfinetes; a má ação é má em si mesma. Acho mais judicioso dizer: por que não me ludibriaria alguém em negócios de dinheiro se o faz em coisas de alfinetes? - do que: roubou-me um alfinete, não roubaria um escudo. É preciso ensinar cuidadosamente as crianças a odiar os vícios para os quais mostram inclinação; é preciso realçar a seus olhos a fealdade natural do ato, não somente a fim de que não o pratiquem mas também que os aborreçam do fundo do coração; em suma, para que a simples ideia lhes cause horror, qualquer que seja a sua feição. Bem sei que fui educado na infância a andar sempre pela estrada larga e a recusar-me a introduzir em meus folguedos intrigas e malícias, pois os jogos infantis devem julgar-se não apenas como divertimentos, mas ainda como ações de importância. Sinto-me sempre e espontaneamente impelido a hostilizar a trapaça por mais insignificante que seja o passatempo a que me dedique. Em jogando cartas, a dinheiro de cobre ou de ouro, ganhe ou perca, jogue com estranhos ou com minha mulher e filhas, minha maneira de jogar é a mesma. Em tudo e em todo lugar meus próprios olhos bastam para me controlar, para me pôr de sobreaviso em relação a mim mesmo. Ninguém me vigia tão bem nem mais temo eu do que escandalizar. Acabo de ver em casa um homem de pequena estatura, de Nantes, que veio ao mundo sem braços. E tão bem exercitou os pés a fazer o que os outros fazem com as mãos, que em verdade quase esqueceram suas funções normais. Aliás a eles denomina-os mãos e os utiliza para destrinçar, carregar uma pistola, atirar, enfiar o chapéu, pentear-se, jogar cartas ou dados que mistura e deita com excepcional destreza. O dinheiro que lhe dei (pois ganha a vida em se exibindo), pegou-o com o pé como nós com a mão. Vi outro, em minha meninice, que por não ter mãos manejava o espadão ou a alabarda com uma dobra ou vinco do pescoço; e os jogava alto e os pegava; e lançava uma adaga e fazia estalar o chicote como qualquer carroceiro de França. Mas dos efeitos do hábito julgamos melhor pelas estranhas impressões que produzem em nossos espíritos, menos resistentes do que o corpo. Tudo pode sobre nossos juízos e crenças. Deixemos de lado a questão religiosa, a que misturam tantas imposturas de que se imbuíram tantas grandes nações e tantos e tantos homens capazes, questão tão alheia à nossa pobre razão humana, que somos desculpáveis, a menos que sejamos esclarecidos por mercê de Deus, se nela nos perdemos. Haverá em qualquer outro assunto opinião, por mais estranha, que o hábito não tenha introduzido e feito sancionar pelas leis sempre que o julgou necessário? E como é justa esta exclamação de certo autor latino: "Que vergonha para um físico, que deve investigar sem desfalecimento os segredos da natureza, apelar para o costume a fim de provar a verdade!” Não se depara com nenhuma fantasia da imaginação humana, embora desprovida de sentido, sem que não se encontrem exemplos em algum costume e que, em consequência de se haver tornado público, nossa razão não admita e explique. Há povos entre os quais é de rigor voltar as costas a quem saúdam e não olhar nunca quem desejam honrar. Entre outros, quando o rei cospe, a mais cotada dama da corte estende a mão; entre outros ainda, os dignitários se curvam e com um lenço colhem no chão a sujeira. A propósito, uma história: certo fidalgo francês, famoso pelo seu espírito, assoava com os dedos o nariz, coisa contrária aos nossos usos. Defendendo sua maneira de se conduzir, perguntou-me por que motivo tão sujo excremento merecia que tomássemos de um lenço delicado para recebê-lo. E o que é pior, para com isso fazer um embrulho e guardá-lo preciosamente. Era por certo mais repugnante esse hábito do que se desembaraçar de qualquer maneira como procedemos com as demais sujidades. Achei que sua observação não pecava inteiramente por absurda. O hábito impedira-me até então de perceber o estranho da coisa, a qual nos repugnaria profundamente se no-la apresentassem como sendo praticada em outro país. Os milagres decorrem de nossa ignorância da natureza e não cabem nesta, mas o hábito retira-nos a possibilidade de um juízo sadio. Não são os bárbaros motivo de maior estranheza para nós do que nós para eles; é o que compreenderíamos, após ter refletido sobre os exemplos que nos apresentam o passado e os países longínquos, se nos puséssemos a meditar sobre os de nosso próprio meio e comparássemos com objetividade,? A razão humana é um amálgama confuso em que todas as opiniões e todos os costumes, qualquer que seja a sua natureza, encontram igualmente lugar. Infinita em suas matérias, infinita na variedade de formas que assume. Volto agora ao meu assunto. Há povos entre os quais, à exceção de sua mulher e de seus filhos, ninguém fala ao rei sem intermediários. Em certa nação, as virgens exibem as partes do corpo que o pudor recomenda se sonegarem à vista, enquanto as mulheres casadas as cobrem e escondem cuidadosamente. Alhures, existe o costume (não sem relação com o precedente) de só se considerar obrigatória a castidade para a mulher casada. As solteiras podem entregar-se à vontade e quando emprenham porventura podem provocar o aborto, mediante drogas especiais e sem recorrer ao segredo. Em outros lugares, quando um negociante se casa todos os negociantes convidados à cerimônia dormem com a recém-casada, antes mesmo do marido; e quanto maior o número, maiores honras e consideração se lhe demonstram por sua coragem e resistência. O mesmo ocorre quando um oficial se casa, ou um nobre e outros. Entretanto, se se trata de camponês ou alguém do povo miúdo, cabe ao senhor o direito de dormir com a casada. E em o fazendo exortam-na todos a ser fiel ao marido. Em certos países encontram-se casas de tolerância nas quais os homens substituem as mulheres e aí ocorrem casamentos. Há lugares onde as mulheres vão à guerra com os maridos e não somente tomam parte nos combates mas também participam do comando. Outros onde não se usam apenas anéis no nariz, nos lábios, nas bochechas e nos artelhos, mas ainda varetas de ouro, por vezes bem pesadas, enfiadas nos seios ou nas nádegas; e outros onde limpam os dedos nas coxas, nos testículos, na planta dos pés. E existem países onde os filhos não herdam, e sim os sobrinhos e irmãos; alhures a herança cabe aos sobrinhos somente, salvo quando se trata da sucessão do príncipe. Vemos que em outros países os bens pertencem à comunidade e têm os magistrados soberanos o encargo de cultivar as terras e repartir os frutos segundo as necessidades de cada um. E em certas regiões, choram a morte das crianças e festejam a dos velhos; noutras dormem no mesmo leito dez a doze homens com suas mulheres; noutras as mulheres que perdem seus maridos de morte violenta não podem casar novamente; noutras apreciam tão pouco a condição da mulher que matam as crianças de sexo feminino ao nascerem e compram dos vizinhos as mulheres de que precisam; noutras os maridos podem repudiar suas mulheres sem necessidade de alegar o que quer que seja, mas o mesmo não é permitido às mulheres; noutras podem os homens vender suas esposas se são estéreis; noutras cozinham o corpo do defunto e moem-no até que vire uma papa e então bebem-no com o vinho; noutras a sepultura mais desejável é ser comido pelos cães; alhures pelas aves; noutras regiões acreditam que as almas felizes vivem em liberdade em lugares deliciosos gozando tudo o que é agradável, e o eco que às vezes ouvimos é a sua voz; noutras combatem dentro d'água e flecham com segurança nadando; noutras, como sinal de satisfação, erguem os ombros e baixam a cabeça; e descalçam os sapatos ao entrarem na residência real; noutras entregam aos eunucos a guarda das mulheres votadas à vida religiosa, e, para não serem por elas amados, lhes mutilam nariz e lábios; e entre estes mesmos povos vazam os olhos aos sacerdotes, a fim de que mais facilmente se aproximem dos demônios e lhes ouçam os oráculos; noutros países cada qual tem o deus que lhe agrada: tem-no o caçador no leão ou na raposa, e o pescador no peixe; e ídolos para cada uma das paixões humanas. Sol, Lua e Terra constituem suas principais divindades e o juramento consiste em tocar o solo fixando o Sol. E a carne e o peixe entre eles se comem crus. Noutros fazem as mais solenes promessas jurando pelo nome de alguma pessoa falecida e venerada sobre cujo túmulo pousam a mão; noutros, anualmente, como presente de ano novo, manda o rei a seus vassalos um fogo aceso, o qual substitui o que haja na casa e deve ser apagado; e ao novo braseiro vêm os súditos desses príncipes buscar seu próprio fogo sob pena de se tornarem culpados de lesa-majestade; noutros o rei abdica para consagrar-se às práticas religiosas, e, o que acontece muitas vezes, seu sucessor imediato é igualmente obrigado a abdicar passando o poder a quem vem em terceiro lugar; noutros mudam de forma de governo tão frequentemente quanto o requerem os negócios públicos, depondo o rei se lhes parece conveniente e confiando o poder aos anciãos ou à comunidade; noutros homens e mulheres são circuncisos e todos batizados; noutros enobrecem o soldado que apresenta a seu soberano as cabeças de sete inimigos por ele mortos em um ou mais combates; noutros, coisa rara e pouco de acordo com os princípios sociais, não admitem a imortalidade da alma; noutros as mulheres parem sem apreensões nem lamentações; noutros elas usam perneiras de cobre e, se são mordidas por um piolho, devem mordê-lo também; e não ousariam casar antes de oferecer sua virgindade ao rei; noutros a saudação consiste em tocar o solo com o dedo, erguendo-o para o céu a seguir; noutros os homens que transportam fardos carregam-nos à cabeça; e as mulheres aos ombros, e estas mijam de pé enquanto aqueles o fazem de cócoras; noutros como sinal de amizade, enviam seu sangue às pessoas queridas; e incensam como aos deuses os homens que querem honrar; noutros, não permitem o casamento entre parentes, não somente até o quarto grau, mas de qualquer grau; noutros amamentam os filhos até a idade de quatro anos e mesmo doze; e no entanto consideram perigoso para a vida da criança dar-lhe de mamar antes de um dia inteiro depois do nascimento; noutros cabe aos pais castigar os indivíduos do sexo masculino e às mães, ao abrigo de qualquer indiscrição, as pessoas de seu sexo; e punem os condenados, pendurando-os pelos pés e os defumando; noutros circuncisam as mulheres; noutros utilizam todas as ervas na alimentação, salvo as que têm mau cheiro; noutros nada se fecha e as casas por mais belas que sejam não têm portas nem janelas; não têm cofres com fechadura e os ladrões são punidos muito mais severamente do que alhures; noutros matam os piolhos com os dentes como os macacos e acham repugnante esmagá-los com as unhas; noutros durante a vida inteira não cortam barba nem cabelos nem unhas; há nações onde só cortam as unhas da mão direita, conservando intatas, por garridice, as da esquerda; e há onde deixam crescer à vontade barba e cabelos do lado direito, raspando-os do outro lado. Em regiões vizinhas, numa é atrás que raspam a cabeça, noutra na frente; noutras os pais alugam seus filhos aos hóspedes para que deles gozem; e os maridos emprestam suas mulheres; noutros não é crime ter filhos da própria mãe, como não o é se unirem os homens a suas filhas e filhos; noutros durante os festins abusam das crianças e as passam de mãos em mãos sem se preocuparem com o parentesco. Há países onde comem carne humana. Em tal outro é dever piedoso matar o pai que atingiu certa idade; alhures decide o pai sobre a sorte dos filhos quando ainda se amamentam, designando os que quer conservar e educar e os que destina ao abandono e à morte. Em algumas regiões os maridos velhos emprestam suas mulheres aos jovens, em outras elas são comuns a todos, e isso sem pecado; e ocorre em outras ainda adornarem elas seus vestidos com borlas de lã ou seda assinalando o número de homens que as possuíram. E não terá o costume constituído aquele estado composto unicamente de mulheres que sabem manejar as armas e dar combate? E aquilo que toda a filosofia não consegue incutir na cabeça dos mais sábios, não o ensina o hábito à gente das classes mais baixas? Pois sabemos que existiram povos que não somente desdenhavam a morte mas ainda lhe festejavam a chegada; entre outros as crianças suportavam sem sinal de dor serem flageladas até a morte; alhures a riqueza era a tal ponto desprezada que o mais miserável habitante da cidade não se houvera dignado baixar-se para recolher uma bolsa cheia de escudos. Conhecemos países mui férteis e tudo produzindo, onde, entretanto, os alimentos mais apreciados são o pão, o agrião e a água. E não se explica também pelos costumes esse milagre da ilha de Quio, onde, em setecentos anos, nenhuma mulher ou moça se viu ultrajada em sua honra? Em suma, a meu ver, não há o que o costume não faça ou não possa fazer; e com razão afirma Píndaro, ao que me disseram, ser o hábito o rei e imperador do mundo. Alguém, que encontraram a espancar o pai, respondeu ser esse o costume de sua casa; que seu pai espancara assim o avô e este o bisavô, e, mostrando o filho: e este há de espancar-me quando alcançar minha idade. E o pai, que o filho empurrava aos trancos pela rua, intimou-o a cessar os maus tratos ao chegarem a certo ponto, pois ele próprio só maltratara seu pai até ali, e ali se situava o limite dos injuriosos tratamentos hereditários que os filhos se haviam acostumado a ministrar aos pais em sua família. É por hábito, diz Aristóteles, tanto quanto por doença, que certas mulheres se depilam, roem as unhas, comem carvão e terra; e também pelo mesmo motivo juntam-se os machos aos machos. As leis da natureza nascem do costume, pois todos veneram interiormente as opiniões e os usos aprovados e aceitos pela sua sociedade; a eles não desobedecem sem remorso, e em os adotando recebem aplausos. Quando na antiguidade queriam os cretenses amaldiçoar alguém, suplicavam aos deuses que o fizessem contrair algum mau hábito. O principal efeito da força do hábito reside em que se apodera de nós a tal ponto que já quase não está em nós recuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele. Em verdade, como ingerimos com o primeiro leite hábitos e costumes, e o mundo nos aparece sob certo aspecto quando o percebemos pela primeira vez, parece-nos não termos nascido senão com a condição de nos submetermos também aos costumes; e imaginamos que as ideias aceitas em torno de nós, e infundidas em nós por nossos pais, são absolutas e ditadas pela natureza. Daí pensarmos que o que está fora dos costumes está igualmente fora da razão, e Deus sabe como as mais das vezes erramos. Se, como nós que estudamos, aprendemos a fazê-lo, todos, ao ouvirem judiciosa observação, aplicassem o ensinamento no que lhes diz respeito, veriam, incontinenti, que não constitui simples frase bonita, mas é uma verdadeira chicotada na tolice habitual de nosso julgamento. Mas recebemos as advertências da verdade como se se endereçassem aos outros e não a nós mesmos, e, em vez de aproveitá-las a fim de melhorar os nossos costumes, nós nos contentamos, muito tola e inutilmente, em a catalogar na memória. Voltemos porém ao imperativo dos costumes. Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem por si mesmos, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e contrária à natureza. Os que estão acostumados à monarquia o mesmo pensam de seu sistema. Estes últimos, quaisquer que sejam as oportunidades que se lhes oferecem de mudar, e ainda que tenham tido grandes dificuldades de se desembaraçarem de um chefe indesejável, apressam-se em buscar outro, com o qual terão dificuldades idênticas, porque são incapazes de odiar a dominação de um senhor. É em consequência do hábito que nos mostramos satisfeitos com o país onde nascemos, e os selvagens da Escócia desprezam a Touraine como os citas a Tessália. Perguntando Dario aos gregos se desejavam adotar o costume indiano de comer o cadáver do próprio pai (pois estimavam não haver sepultura mais honrosa do que o seu corpo), ouviu deles que por nada no mundo o fariam; mas tentando persuadir os hindus de abandonarem seu ritual e seguirem o da Grécia, que era de queimar o corpo dos progenitores, mais horror causou ainda. Assim agimos todos, tanto mais quanto o costume nos esconde a verdade essencial das coisas: "Não há nada tão grande nem tão agradável à primeira vista que aos poucos não nos cause menos admiração". Tendo precisado outrora justificar alguns de nossos costumes, aceitos como certos entre nós e nas regiões circunvizinhas, e não desejando invocar apenas a força das leis e dos exemplos, fui às origens deles e lhes descobri fundamentos tão fracos, que mal me contive para não me desgostar nem ter de os refutar em lugar de convencer os outros de sua valia. Resta o meio a que recorria Platão a fim de fazer cessarem os amores contra a natureza, que se praticavam em seu tempo: conseguir que a opinião pública os condenasse, incitando os poetas a combatê-los, e estigmatizá-los em suas narrativas. Desse modo esperava evitar que uma rapariga, por mais bela que fosse, inspirasse amor a seu pai, e que as irmãs não aspirassem às carícias dos irmãos, ainda que de admirável beleza. Valia-se das lendas de Tiestes, Édipo, Macaréus, as quais cantadas às crianças ao mesmo tempo as divertiam e gravavam em seu espírito úteis lições de moral. Sem dúvida o pudor é uma bela virtude e ninguém lhe contesta a utilidade; é entretanto mais difícil valorizá-la de acordo com a natureza do que a justificando pelo costume, as leis e os preceitos. As causas primeiras que levam a se adotarem tais ou quais maneiras de ser, com dificuldade se descobrem, por minuciosas que sejam as pesquisas; e quem a estas se dedica, mal se refere a elas não ousando sequer elucida-las, Volta-se antes de tudo para o costume, estendendo-se longamente a respeito e assim triunfa sem percalços. Os que não querem obviar a tais pesquisas erram mais ainda e chegam a conclusões extravagantes. Testemunha-o Crisipo, o qual em mais de um trecho de seus escritos demonstra a nenhuma importância que empresta a quaisquer uniões incestuosas. Quem desejar desfazer-se da influência exagerada de certos costumes, verá que indubitavelmente alguns de muita autoridade são suscetíveis de abandono e assentam apenas na sua antiguidade decrépita; mas arrancando-lhes a máscara hirsuta e enrugada, e os examinando do ponto de vista da razão e da verdade, o que descobrir o espantará a ponto de indagar de si mesmo se está na plena posse de seu bom senso, o qual nunca lhe terá entretanto falhado menos. Eu lhe perguntarei então se pode haver algo mais extraordinário do que um povo submetido a leis de que jamais ouviu falar; adstrito, nas questões relativas a seus negócios privados, casamentos, doações, testamentos, compras e vendas, a regras que não conhece: que nunca foram publicadas em sua língua e cuja tradução e interpretação só pode obter por alto preço, e não nas condições que engenhosamente propunha Isócrates (o qual aconselhava aos reis que isentassem de taxas o comércio e as atividades de seus súditos de maneira a serem assaz remuneradores, tornando-lhes ao contrário muito onerosos os processos de demandas), mas nas condições incríveis que nos regem, em que tudo se vende, mesmo os conselhos, e em que o recurso à lei é mercadejado. Rendo graças ao destino do fato de, segundo os historiadores, ter sido um fidalgo gascão quem primeiro protestou quando Carlos Magno quis estender à Gália as leis do Império Romano. Haverá algo mais contrário às condições naturais da sociedade do que ver uma nação onde é costume - e sancionado por lei - ser venal a profissão de juiz, e serem as sentenças pagas à vista em boa moeda; onde é legal que quem não possa pagar não possa tampouco apelar para a justiça e que esta mercadoria esteja tão valorizada que as pessoas encarregadas de instruir e julgar os processos constituam dentro do Estado uma quarta ordem se acrescentando às três outras já existentes: o clero, a nobreza e o povo? Cabendo a essa quarta ordem a aplicação e a feitura das leis e autoridade soberana sobre nossos bens e nossas vidas, e formando ela uma classe distinta da nobreza, ocorre a existência de uma dupla legislação, compreendendo por um lado as leis que regem as questões de honra e por outro as relativas à administração da justiça, as quais em certos casos se opõem umas às outras. Condenam as primeiras tão severamente quem experimenta um desmentido público quanto punem as segundas aquele que por isso castiga o autor. Pela lei militar é degradado de honra e nobreza quem recebe um insulto e pela lei civil quem deste se vinga incorre em pena de morte. (Desonra-se quem recorre à lei para a condenação de uma ofensa à sua honra; e quem a ela não recorre para castigar é punido pela lei.) Que pensar dessas duas partes de um só todo e no entanto tão diferentes? A uns incumbe zelar pela paz, a outros pela guerra; uns têm o lucro como prêmio, outros a honra; àqueles a ciência, a estes a virtude; àqueles a palavra, a estes a ação; àqueles a justiça, a estes a intrepidez; àqueles a razão, a estes a força; e usam uns a toga e outros o uniforme. Quanto às coisas indiferentes, como as vestimentas, a quem as quisesse adaptar ao seu objetivo verdadeiro, que é serem cômodas e úteis e bem adequadas ao corpo, o que lhes dá graça e atende às conveniências, eu assinalaria como atingindo, a meu ver, o limite do grotesco, os nossos bonés quadrados e essa longa cauda de veludo pregueado e de enfeites variegados que pende da cabeça de nossas mulheres; e também os nossos calções que, tola e inutilmente, nos amoldam um membro de que mal podemos falar honestamente e que assim acabamos como que exibindo em público. Essas considerações não devem entretanto desviar um homem sensato do estilo comum; parece-me ao contrário que toda originalidade e extravagância provêm mais da loucura e afetação ambiciosa que da verdadeira razão. O sábio precisa concentrar-se e deixar a seu espírito toda liberdade e faculdade de julgar as coisas com serenidade, mas quanto ao aspecto exterior delas cabe-lhe conformar-se sem discrepância com as maneiras geralmente aceitas. A opinião pública nada tem a ver com o nosso pensamento, mas o resto, nossas ações, nosso trabalho, nossas fortunas, e nossa própria vida, cumpre-nos coloca-lo a serviço da coletividade e submetê-lo à sua aprovação. Por isso, o bom e grande Sócrates recusou salvar a vida pela fuga, pois seria desobedecer ao magistrado que o condenava, embora fosse este possivelmente injusto e iníquo. Observar as leis do país em que nos encontramos é a primeira das regras, é uma lei que prima sobre as demais: "é belo obedecer às leis de seu país". Encaremos a questão de outro ponto de vista. É duvidoso que a vantagem que pode haver em modificar uma lei por todos acatada, seja incontestavelmente maior do que o mal resultante da mudança; tanto mais quanto os usos e costumes de um povo são como um edifício constituído de peças diversas de tal maneira juntadas que é impossível abalar uma sem que o abalo se comunique ao conjunto. O legislador dos Thuriens ordenara que quem quisesse propor a abolição de uma lei existente, ou a adoção de uma nova, se apresentasse diante do povo, corda ao pescoço, a fim de que, em não sendo aprovada a inovação, fosse imediatamente enforcado. O de Lacedemônia sacrificou a vida para obter de seus concidadãos a promessa de não modificarem nenhuma de suas ordenações. O éforo que cortou brutalmente as duas cordas acrescentadas por Frinis à cítara, não se deu ao trabalho de indagar se o instrumento era melhor ou não, se seus acordes eram mais perfeitos; bastou-lhe para condená-las que constituíssem uma modificação ao que desde muito existia. A mesma significação tinha a espada enferrujada que, em Marselha, representava a justiça. A novidade, qualquer forma que assuma, me aborrece profundamente e creio ter razão, pois vi os seus efeitos altamente desastrosos. Essa que nos atormenta há tantos anos, não produziu ainda todas as suas consequências e no entanto podemos dizer que direta ou indiretamente tudo atingiu e foi a causa primeira de muitas desgraças; os dramas e ruínas que se acumulam desde o seu aparecimento são sua obra ou contra ela se engendraram; a ela, somente a ela se deve culpar: "Ah, de mim vem todo o mal que experimento"." Os que subvertem um Estado são em geral as primeiras vítimas da subversão; raramente se aproveita da perturbação quem ergue o estandarte da rebeldia; ele simplesmente agita e turva a água para outros pescadores. A Reforma abalou e desmantelou as velhas instituições de nossa monarquia. Com ela, esse grande edifício perdeu o equilíbrio e vem rachando na velhice e dando acesso, através das fendas, a todas as calamidades. A majestade real oferece no início, diz um autor antigo, maior resistência do que depois de abalada. Sua queda se acelera então. Se o mal é principalmente imputável aos inventores do movimento, mais criminosos ainda são seus imitadores que se entregam aos mesmos excessos cujo horror presenciaram e de cuja repressão participaram. Se o mal como a honra se gradua, têm os huguenotes sobre os outros da liga a primazia da invenção e de terem tido a coragem de entrar na liça antes dos outros. Os fautores de perturbações desejosos de introduzir a desordem no Estado podem facilmente escolher seus modelos nuns como noutros; oferecem-lhos, ambos, de toda espécie. As nossas próprias leis, feitas para remediar o mal inicial, fornecem meios e desculpas a todos os maus empreendimentos. Acontece-nos hoje o que diz Tucídides das guerras civis de sua época; empregam eufemismos para qualificar as piores paixões políticas, para apresentá-las de um ângulo favorável, desculpar-lhes os atos, alterar e atenuar as ideias que teriam despertado se usassem seus verdadeiros nomes. E tudo isso a pretexto de reformar nossas consciências e nossas crenças: "o pretexto é honesto". Entretanto, por melhor que seja, o pretexto da novidade é muito perigoso: "e por isso nunca deveríamos aprovar qualquer modificação nos costumes antigos". E direi francamente que me parece sinal de excessivo amor-próprio e grande presunção valorizar alguém sua opinião a ponto de tentar, a fim de vê-la triunfante, subverter a paz pública em seu próprio país, facilitando o advento dos males inevitáveis inerentes à guerra civil, sem falar na horrível corrupção da moral e nas mutações políticas que podem ocorrer. Não será mal calcular ir ao encontro de tantas desgraças certas e esperadas para combater erros contestáveis e discutíveis? Haverá vício pior do que esse que choca a própria consciência e o conhecimento natural? O Senado romano, em oposição ao povo quanto ao exercício da religião, obviou à dificuldade respondendo que "isso interessava mais aos deuses do que a eles mesmos, e que os deuses saberiam como impedir qualquer profanação". Resposta análoga à do oráculo de Delfos no momento das guerras púnicas. Temendo a invasão dos persas perguntaram ao deus se deviam esconder os tesouros do templo ou carregá-los. E lhes foi respondido que deixassem tudo como estava e pensassem neles mesmos, pois era capaz de prover sozinho suas necessidades próprias. A religião cristã é concebida dentro de um espírito eminentemente justo e utilitário: nada recomenda mais, e, de maneira expressa, quanto a inteira obediência dos magistrados e conservação do governo. Que maravilhoso exemplo nos deu a sabedoria divina quando, para assegurar a salvação do gênero humano e essa sua gloriosa vitória contra a morte e o pecado, quis que isso somente ocorresse dentro da ordem política estabelecida! E submeteu seu progresso e a realização de um objetivo tão elevado e salutar à cegueira e à injustiça de nossas instituições e nossos costumes! E admitiu que corresse o sangue de seus eleitos e passassem longos anos até que amadurecesse o inestimável fruto! Haverá muito que dizer se se quiser comparar aquele que respeita as leis e a forma de governo de seu país com quem empreende sujeitá-las à sua opinião e modificá-las. Tem por ele, o primeiro, ser a sua linha de conduta simples, de obediência e acatamento ao exemplo. Pode fazer o que fizer não agirá por maldade e o pior que lhe pode acontecer é sua infelicidade pessoal: quem não se comove ante uma antiguidade atestada e conservada através de tantos brilhantes testemunhos? Além do que diz Isócrates que as falhas participam mais da moderação que do excesso. Quanto ao segundo; sua situação é bem mais difícil. Pois quem se mete a escolher e modificar usurpa a autoridade do juiz e precisa demonstrar o erro do que elimina e o bem do que introduz. Essa vulgar consideração me reteve, e freou minha própria mocidade temerária. E me impediu carregar aos ombros tão pesado fardo como o de defender uma ciência dessa importância e ousar para com ela o que em verdade não ousaria nem mesmo em relação a mais fácil das que me ensinaram, e acerca das quais a temeridade de um julgamento teria menos alcance. Considero com efeito soberanamente iníquo querer subordinar as instituições e os costumes públicos, que são fixos, às opiniões variáveis de cada um de nós (a razão privada tem jurisdição privada) e empreender contra as leis divinas o que nenhum governo toleraria contra as leis civis. Embora a razão humana tenha sobre estas últimas maior ação, não deixam elas de reger aqueles mesmos que as pretendem julgar; e nossa inteligência, por grande que seja não serve senão para explicá-las e inová-las. Se por vezes a providência divina ignora essas regras a que nos obriga, não o faz para nos eximir de obedecê-las. São efeitos da vontade divina que devemos admirar sem procurar imitar. E os exemplos extraordinários que nos outorga de seu poder, assinalados pelas marcas específicas e manifestas do milagre, estão de tal modo acima do que podemos fazer e ordenar que é loucura e impiedade tentar reproduzi-los. Não os devemos experimentar, e sim contemplá-los com espanto; são atos de sua alçada e não da nossa, e Cotta fala com sabedoria quando diz: em matéria de religião ouço T. Coruncanus, P. Scipion, P. Scevola, soberanos pontífices e não Zenão, Cleante ou Crisipo. No que diz respeito à grande querela que nos divide atualmente, em que há cem artigos a suprimir ou a introduzir e todos de primeira importância, só Deus sabe quantas pessoas podem vangloriar-se de terem estudado as razões essenciais, a favor ou contra, de cada partido. O número de indivíduos escrupulosos é limitado, se é que existem; e não foram eles feitos para nos perturbar. Mas fora deles toda essa multidão para onde vai? De que lado se alinha? A Reforma produz o efeito de todo remédio pouco eficiente e mal ministrado: os humores de que procura livrar-nos, ele os excita e os amargura; e eles continuam em nós. Não nos pode purgar na sua fraqueza, e nos enfraquecem entretanto; e de sua ação tiramos apenas infinitas dores internas. Como quer que seja, a sorte, em fazendo com que falhe por vezes o nosso julgamento, põe-nos não raro diante de necessidades tão absolutas que cumpre às leis ponderá-las; e recusar-se a admitir uma inovação que acaba por se impor pela violência é obrigação dolorosa para quem deseja, em tudo e por tudo, manter-se fiel ao dever e obediente à regra. Ela o coloca em situação desvantajosa em relação a quem se outorga toda liberdade de ação e considera permitido tudo o que pode servir seus intentos, não conhecendo obstáculos ao que imagina útil a seu ponto de vista: "confiar no pérfido é instiga-lo ao mal". Tanto mais quanto as leis ordinárias de um governo normal não preveem esses acidentes extraordinários. Feitas para um corpo cujos membros principais executam seus deveres, elas supõem que todos, de comum acordo, estão dispostos a respeitá-los: seu funcionamento natural aplica-se a uma ordem de coisas calma, serena, em que todos se acatam; nada podem elas lá onde reinam a licença e a violência. Censuram ainda agora a esses grandes personagens de Roma, Otávio e Catão, terem, durante as guerras civis suscitadas por Sila e César, exposto sua pátria às últimas extremidades, de preferência a socorrê-la em detrimento das leis, nada fazendo para mudá-las. Nesses casos de absoluta necessidade, em que nada resta a fazer, seria com efeito por vezes mais sábio baixar a cabeça e ceder um pouco às circunstâncias do que se obstinar em não outorgar nenhuma concessão. Declarando qualquer concessão impossível, dá-se à violência a oportunidade de tudo esmagar. Quando as leis não podem obter o que têm o direito de exigir, mais vale que exijam somente o que podem obter. Foi o que fez aquele que ordenou dormissem elas vinte e quatro horas; e o outro que prescreveu fosse, por uma vez, declarado não ocorrido tal dia do calendário; e também aquele que do mês de junho fez um segundo mês de maio. Os próprios lacedemônios, tão obedientes entretanto às leis de seu país, impedidos de eleger duas vezes seguidas ao cargo de almirante o mesmo personagem, e exigindo a situação se mantivesse Lisandro nesse posto, elegeram Aracus almirante, mas nomearam Lisandro superintendente da marinha. Valendo-se de semelhante sutileza, um de seus embaixadores, enviado a Atenas a fim de obter a modificação de certa ordenação, e a quem Péricles objetava ser proibido retirar, depois da inscrição, o quadro que promulgava uma lei, disse que nada o impedia de virá-lo do outro lado. E Plutarco louva Filopemen porque, nascido para comandar, sabia não somente comandar de acordo com a lei, mas também comandar a própria lei quando o requeria a necessidade pública. CAPÍTULO XXIV UMA MESMA LINHA DE CONDUTA PODE LEVAR A RESULTADOS DIVERSOS Jacques Amyot, grande esmoler de França, contou-me um dia o seguinte fato muito honroso para um dos nossos príncipes, e da mais alta posição, embora de origem estrangeira. No início de nossas agitações, no sítio de Ruão, foi ele advertido pela rainha, mãe do rei, de uma conjura contra sua vida. As cartas da rainha mencionavam expressamente o chefe da conspiração, fidalgo angevino ou de Nantes, o qual frequentava então, a fim de alcançar seu objetivo, a casa do príncipe. Este não comunicou a ninguém a advertência. No dia seguinte, passeando na colina Santa Catarina, onde se achavam instalados os canhões que dominavam a cidade sitiada, e tendo a seu lado o grande esmoler e outro bispo, viu o fidalgo que lhe fora assinalado e o mandou chamar. Quando este se achou em sua presença, vendo-o empalidecer e tremer porque não tinha a consciência tranquila, disse-lhe o príncipe: "Senhor Fulano, deveis imaginar o que quero de vós; vossa expressão o indica. Não procureis ocultar-me o que quer que seja; estou a par de vossas intenções; em buscando um paliativo não faríeis senão piorar o vosso caso. Conheceis isto (o conteúdo das peças mais secretas da conjura); pela vossa vida confessai tudo, pois, sem reticências". Quando o pobre homem se viu descoberto, e diante de provas irrecusáveis (pois tudo fora revelado à rainha por um dos cúmplices) não pôde senão implorar de mãos postas a misericórdia do príncipe a cujos pés quis jogar-se. Impediu-o o príncipe, continuando: "Vejamos. Vos causei outrora, em qualquer circunstância, alguma pena? Ofendi algum dos vossos por ódio pessoal? Não vos conheço há mais de três semanas, qual o motivo que tendes para quererdes assassinar-me?" Respondeu-lhe o fidalgo com voz trêmula que não era por animosidade particular contra ele, mas no interesse geral de seu partido; que o haviam persuadido de que seria obra pia desembaraçar-se de qualquer maneira de tão poderoso inimigo de sua religião. "Pois bem", prosseguiu o príncipe, "vou mostrar-vos quanto a minha religião é mais tolerante do que aquela que praticais; induziu-vos a vossa matar-me, sem me ouvir e sem que vos tivesse ofendido; a minha manda que vos perdoe, embora se haja provado que queríeis atentar, sem motivo, contra a minha vida. Ide, retirai-vos, que eu não vos veja mais aqui; e será prudente de vossa parte não ouvirdes mais conselho, em vossas empresas, senão de gente melhor do que aquela a quem vos dirigistes desta feita." Estando o Imperador Augusto na Gália, foi avisado de uma conspiração que contra ele tramava L. Cina. Resolveu punir e convocou seus amigos para um conselho no dia seguinte. Durante a noite foi tomado de intensa agitação ao pensar que deveria condenar à morte um jovem de boa família, sobrinho do grande Pompeu, e refletiam-se as suas perplexidades nos pensamentos que o assaltavam: "Viverei constantemente temeroso e continuamente alerta, enquanto meu assassino poderá locomover-se à vontade? E, no momento em que estabeleço a paz no mundo, deixarei de punir quem atenta contra estes meus dias que tantas vezes escaparam aos perigos das guerras civis e das batalhas dadas em terra e mar? Posso absolvê-lo, quando não somente desejou assassinar-me mas ainda sacrificar-me (os conjurados haviam projetado matá-lo durante um sacrifício)?" E continuou em alta voz, após uns minutos de silêncio: "Por que vives, se tanta gente se interessa pela tua morte? Vale tua vida tanto rigor para defendê-la?" Vendo-lhe a angústia, Lívia, sua mulher, lhe disse: "Aceitarás o conselho de uma mulher? Por que não fazes como os médicos que, em não colhendo bons resultados de seus remédios indicam os remédios contrários? Até agora a severidade não produziu efeito. Sucedem-se umas às outras as conjurações: Lépido seguiu-se a Savidiniano, Murena a Lépido, Cepião a Murena, Inácio a Cepião. Experimenta a doçura e a clemência. Provou-se a culpabilidade de Cina, perdoa-lhe; ser-lhe-á impossível prejudicar-te e teu gesto se acrescentará à tua glória". Augusto, satisfeito com encontrar na mulher um eco dos próprios sentimentos, agradeceu-lhe, desencomendou o conselho e ordenou que Cina viesse sozinho. Quando este se apresentou, Augusto mandou que saíssem todos de seu aposento, ofereceu-lhe um assento e assim falou: "Antes de mais nada, Cina, eu te pedirei que silencies. Ouve-me sem interromper. Dar-te-ei depois o tempo que quiseres para a resposta. Tu o sabes, Cina, foste aprisionado no campo de meus inimigos e eu te poupei a vida, embora não somente tivesses abraçado a causa deles mas ainda por pertenceres, em virtude de teu nascimento, à mesma gente. Devolvi teus bens, e tão bem te tratei e tão alto te coloquei que os vencedores invejam a sorte do vencido. O cargo de sacerdote, que solicitaste, eu te concedi, quando o recusara a outros cujos pais sempre lutaram por mim; e devendo-me tais obrigações projetaste assassinar-me". Protestou Cina afirmando não ter alimentado esses maus pensamentos e Augusto prosseguiu: "Não estás cumprindo tua promessa, Cina; comprometer-te-ás a não me interromper. Sim, pensaste matar-me tal dia, em tal lugar, em tal companhia, e de tal maneira". E, vendo-o aterrado e em silêncio, ante informações tão precisas e não por causa da promessa mas sob o efeito do remorso: "Qual o teu móvel? Ser imperador? Seria realmente uma infelicidade para os negócios públicos se só eu constituísse um obstáculo à tua ascensão ao trono; não consegues sequer defender tua própria casa, e ultimamente ainda perdeste um processo contra um simples liberto. Tornar-se César! É então isso tudo o que sabes fazer? Se eu, somente, impeço a realização de tuas esperanças, estou disposto a abdicar. Mas acreditas que Paulo, Fábio, os cosseanos e os servilianos te aceitem, eles e esses nobres todos, nobres pelo nome e pelas virtudes que lhes realçam a nobreza?" E, após outros propósitos acerca da situação (pois se entretiveram por mais de duas horas), concluiu Augusto: "Vai, Cina, dou-te novamente essa vida que, como traidor e parricida, mereces perder; dou-a como a dei outrora, quando, em sendo tu meu inimigo, eu a tinha nas mãos. A partir de hoje, sejamos amigos e vejamos quem de nós terá tido mais boa-fé, eu que te perdoo ou tu que és perdoado". Com estas palavras despediu-o. Tempos depois, deu-lhe o consulado, censurando-lhe por não o ter solicitado. Augusto recebeu a justa recompensa de sua clemência. Cina permaneceu-lhe profundamente dedicado e ao morrer tornou-o herdeiro de todos os seus bens. A partir desse acontecimento que lhe ocorreu aos quarenta anos, nenhuma conjuração mais houve contra ele. O mesmo não aconteceu com o príncipe a que aludimos anteriormente: sua magnanimidade não impediu que sucumbisse mais tarde a um atentado semelhante ao que escapara da primeira vez. De como é coisa vã a prudência humana! Quaisquer que sejam nossos projetos e os conselhos a que recorremos, e as precauções tomadas, o destino aí está de posse dos sucessos! Dizemos dos médicos que são felizes quando obtêm bons resultados. Como se somente a sua arte não pudesse bastar-se a si mesma; como se fosse a única cujas bases frágeis demais não a pudessem sustentar; como, enfim, se não houvesse senão ela incapaz de êxito sem a assistência da sorte. Acerca da Medicina penso todo o bem e todo o mal que dizem, pois graças a Deus raramente apelo para ela. Trato-a ao contrário dos outros; não me preocupo nunca com ela e quando adoeço, em vez de confiar-me a ela, ponho-me a hostilizá-la, e a temo. Aos que comigo insistem para que recorra a suas drogas, respondo que esperem até eu recobrar minhas forças e restabelecer-me a fim de melhor suportar seus efeitos e o risco que me couber correr. Prefiro deixar atuar a natureza, certo de que ela tem bico e unhas para se defender dos assaltos que a visam e proteger nosso organismo. Receio que eu, desejando ajudá-la no momento em que ela luta contra os golpes imediatos da doença, venha beneficiar esta e dar à Medicina maior trabalho ainda. Creio que a parte da sorte é grande, não somente no caso da Medicina, mas também no de numerosos outros ramos do conhecimento humano que parecem mais independentes. Assim a inspiração poética que se assenhora de um autor e o arrebata, por que não a atribuir à sorte? Ele próprio confessa que ela ultrapassa sua capacidade, que não vem dele, que ele não poderia atingir tais alturas. Da mesma forma os oradores, quando lhes ocorrem esses movimentos de alma e esses transportes extraordinários que os fazem alçar-se muito além de seus intentos. Da mesma forma na pintura em que o pintor obtém por vezes efeitos muito superiores aos que sua imaginação e seu saber conceberam, e espantam a eles próprios. Mas a sorte manifesta-se ainda mais nitidamente pelas graças e belezas que põe nessas obras, não apenas independentemente da intenção do autor mas igualmente sem que ele o perceba. Um leitor culto descobre amiúde nos escritos alheios perfeições diferentes das que o autor pensou ter alcançado, e assim enriquecem o sentido e a forma da obra. Quanto aos empreendimentos militares, não há quem ignore qual a parte da sorte. Mesmo em nossos conselhos e nossas deliberações, introduzem-se sorte e azar, pois o que pode a nossa sabedoria não é muito. E quanto mais perspicaz e viva, mais fraca é; e tem razões para desconfiar de si mesma. Sou da opinião de Sila: quando examino atentamente os feitos de guerra mais gloriosos, parece-me que os que os realizaram, tão somente por desencargo de consciência se aconselharam e deliberaram acerca da conduta necessária. Ao entrar na luta, abandonaram-se principalmente à sua sorte; confiantes em que ela lhes seria propícia, em mais de uma circunstância deixaram-se arrastar além dos limites do razoável. Suas resoluções revelam não raro a marca de uma confiança excessiva ou de um desespero inexplicável que os impelem o mais das vezes a tomar o partido menos racional e lhes aumentam a coragem de maneira sobrenatural. Daí ter ocorrido a vários grandes capitães da antiguidade a ideia de espalhar a crença entre seus soldados de que suas temeridades obedeciam a alguma inspiração, a um sinal ou prognóstico. Eis por que na incerteza e na perplexidade infundidas pela impossibilidade em que nos achamos de discernir e escolher o melhor, em virtude das dificuldades e acidentes inerentes a todas as coisas, o mais seguro, a meu ver, quando outras considerações a tanto não nos levam, é adotar o partido aparentemente mais honesto e justo; e se há dúvida acerca do caminho mais curto, seguir a linha reta. Assim, nestes dois exemplos que dei, não há dúvida que perdoar a ofensa recebida é mais belo e generoso do que agir de outro modo. Se isso não deu certo com o primeiro não se culpe a sua nobre conduta; pode-se lá saber se, em tomando o partido contrário, escaparia à morte que lhe reservava o destino? Em todo caso teria perdido a glória que lhe valeu seu ato de bondade. Menciona a história numerosas pessoas que, receando atentados contra sua vida, se empenharam em desfazê-los mediante vinditas e suplícios. Muito poucos tiveram êxito, ao que sei e como testemunham tantos imperadores romanos. Quem se sente ameaçado por semelhante perigo não deve contar demasiado com seu poder nem com sua vigilância, pois é difícil garantir-se contra um inimigo que se dissimula sob a máscara do melhor amigo. E como conhecer as intenções e os pensamentos íntimos daqueles que nos cercam? Pode mandar vir soldados estrangeiros e cercar-se sempre de homens armados: quem não faz questão da própria vida é sempre senhor da vida alheia. Ademais essa contínua suspeição que leva a desconfiar de todos é tormento excessivo! Díon, avisado de que Calipso procurava uma oportunidade para atingi-lo, não teve coragem de esclarecer a coisa, preferindo morrer, disse, a aceitar a triste obrigação de ter que se proteger não somente contra os inimigos mas também contra os amigos. Alexandre fez mais: avisado, por carta de Parrnênion, de que Filipe, seu médico preferido, fora subornado por Dario a fim de envenená-lo, ao mesmo tempo que dava a carta a ler a Filipe, tomou a bebida que este lhe apresentava. Talvez quisesse assim mostrar que, se seus amigos pretendiam atentar contra sua vida, a ela renunciava. Ninguém confiou mais na sorte do que esse príncipe, mas nada sei de sua existência que testemunhe melhor sua firmeza de caráter, nem nada conheço mais belo do que esse ato, por qualquer ângulo que se encare. Os que recomendam aos príncipes uma constante desconfiança, a pretexto de necessidade de segurança, pregam-lhes a ruína e a desonra, pois nada de nobre se faz sem riscos. Conheço um, valente e ousado de natureza, ao qual fizeram que perdesse todas as oportunidades de se ilustrar, repetindo-lhe sem cessar que permanecesse no aconchego dos seus, não tentasse reconciliar-se com seus inimigos, se isolasse, não confiasse em mais poderoso do que ele, quaisquer promessas ou vantagens que lhe parecesse apresentar. E conheço outro que, seguindo caminho inverso, conquistou sua glória de maneira inesperada. A ousadia que outorga essa glória de que são ávidos os príncipes, provamo-la magnificamente tanto de gibão vestido como de arma na mão, tanto no gabinete como no campo de batalha, tanto com serenidade como com ameaças. A prudência, tão cuidadosa, tão circunspecta é inimiga dos grandes feitos. Cipião, a fim de alcançar a boa vontade de Sífax, não hesitou em deixar o exército, abandonando a Espanha recém conquistada e cuja submissão podia ser ainda duvidosa, para passar à África, com dois navios apenas, e entregar-se em país inimigo a um rei bárbaro cuja boa-fé desconhecia. E isso sem garantia, sem reféns, confiando unicamente na sua própria coragem, na sua boa estrela e no pensamento de ver realizar-se os grandes projetos concebidos: "a confiança que depositamos em outrem, nós a temos não raro em paga. Quem tem ambição e aspira à celebridade deve, ao contrário, evitar uma prudência exagerada, não prestar atenção às suspeitas nem a elas se entregar. O medo e a desconfiança dão origem à ofensa e a provocam. O mais desconfiado de nossos reis recompôs sua situação, confiando-se espontaneamente a seus inimigos, com risco de perder a vida e a liberdade e mostrando plena confiança neles a fim de induzi-los a nele confiarem. Contra suas legiões amotinadas, César opôs apenas a autoridade de seu semblante e a altivez de suas palavras. Tinha tal confiança em si próprio e na sua estrela que não hesitou em se abandonar a uma tropa sediciosa: surgiu sobre um outeiro, de pé, rosto impassível; sem temor próprio soube inspirá-lo aos outros. E evidente que semelhante segurança, e que outorga tão grande ascendência, só é natural e provoca todos os seus efeitos naqueles a quem a perspectiva da morte e do que pode acontecer de pior não cause temor. Receosa, hesitante, incerta do resultado, a atitude de quem visa acalmar não dará nada em uma situação grave. É excelente maneira de conquistar os corações e a boa vontade das gentes apresentar-se altivo e confiante, conquanto assim se faça espontaneamente e não constrangido pela necessidade. E que o sentimento que nos anima seja sincero e franco; e que nosso semblante não revele inquietação. Vi na minha infância um fidalgo, comandando uma cidade importante, às voltas com violento movimento de efervescência popular. Para acalmar os descontentes tomou, a princípio, a resolução de abandonar o lugar em que se encontrava em segurança e ir ao encontro dos amotinados; triste ideia, a meu ver! Não foi porém a de sair do abrigo, como em geral lho censuram, mas foi a de entrar pelo caminho das concessões e carecer de energia; foi a de ter tentado acalmar os alucinados antes os seguindo, a reboque, do que os esclarecendo acerca de suas faltas; foi a de os ter suplicado em lugar de admoestá-los. Considero que uma severidade mitigada, unida a uma decisão segura, apoiada nas tropas sob suas ordens, convinha melhor à sua condição e aos deveres de seu cargo, e teria dado melhor resultado e fora mais digna para ele; e o houvera honrado. Contra o furor popular nada se há de esperar do emprego da humanidade e da doçura; o que inspira respeito e medo tem mais probabilidades de êxito. Censuraria igualmente a esse fidalgo - que considero corajoso mais do que temerário em ir sem armas nem escolta suficiente jogar-se em pleno mar encapelado pela tempestade, em cheio entre homens tomados de loucura - o fato de não ter levado até o fim sua resolução. Percebendo o perigo, fraquejou. E sua atitude, de pacífica e conciliadora que era, passou a ressentir-se do pavor que se apoderou dele. Sua voz alterou-se, em seu olhar refletiram-se o terror e o arrependimento de se haver impensadamente arriscado: procurou afastar-se e desaparecer. Esse espetáculo sobre-excitou ainda mais a multidão em delírio. Deliberava-se de uma feita acerca de uma grande parada de tropas de toda natureza - oportunidade não raro escolhida pelos que meditam vinganças, pois então se executam com menor perigo. Havia fortes indícios de que tentativas desse gênero ocorreriam, o que não era muito tranquilizante para os mantenedores da ordem. Várias opiniões foram emitidas a respeito, como acontece em casos difíceis, e entre elas algumas muito sensatas que mereciam ser apreciadas. Quanto a mim, opinei que se devia evitar tudo o que pudesse demonstrar receio. Que participássemos da parada, que nos misturássemos à tropa de cabeça erguida, rosto sereno, sem apreensão visível, e que em vez de restringi-la (como outros propunham) a ampliássemos; ao contrário, dando a essa manifestação todo o desenvolvimento possível, recomendando aos oficiais que ordenassem a seus soldados darem as salvas de mosquetões bem nutridas, em conjunto e sem economizar pólvora, em honra do personagem que os passasse em revista. Assim se fez. E essas tropas de cuja fidelidade suspeitávamos sentiram-se encorajadas a uma mútua e vantajosa confiança. A conduta de Júlio César em circunstâncias semelhantes parece bela a ponto de não poder sobre-exceder-se. Pela sua clemência e sua amenidade procurou antes de mais nada conquistar a afeição de seus inimigos, contentando-se, ao lhe serem anunciadas as conjurações, com se declarar ciente delas. Em seguida, cheio de nobreza, aguardou sem medo e sem maiores preocupações o que pudesse acontecer, entregando-se à proteção dos deuses e de sua estrela. Estava certamente nesse estado de alma ao ser assassinado. Tendo um estrangeiro propalado que era capaz, mediante certa importância em dinheiro, de indicar a Dionísio, de Siracusa, um meio infalível de descobrir as conjurações porventura organizadas contra o tirano, este, a quem se comunicara tal propósito, mandou chama-lo a fim de se informar acerca de tão útil processo. Disse-lhe o estrangeiro que bastava lhe desse um talento e espalhasse por toda parte haver comprado o segredo. Dionísio achou a ideia boa e mandou dar-lhe seis escudos. Aos olhos de todos era pouco verossímil houvesse o tirano gratificado tão generosamente o estrangeiro sem que este lhe prestasse relevante serviço; e essa crença contribuiu para tomar seus inimigos mais prudentes. Efetivamente, os príncipes que divulgam os avisos de conjuras contra eles preparadas agem sabiamente. Fazem crer que sua polícia é eficiente e que nada se pode empreender contra eles, que não saibam. O duque de Atenas cometeu vários erros em seu recente governo de Florença. E o maior consistiu em que, ao ser notificado de conciliábulos havidos contra sua pessoa, mandou matar Matteo di Morozzo (o qual lhos comunicara) na esperança de que desse modo ninguém viria a saber das reuniões nem poderia imaginar suportassem tão dificilmente a sua tirania. Lembro de ter lido outrora a história de um alto personagem romano que, proscrito pelos triúnviros, fora bastante hábil para escapar várias vezes aos seus perseguidores. Um dia, um grupo de cavaleiros enviados à sua procura, passou, sem o perceber, junto a uma capoeira onde ele se escondera. Mas, nesse momento, pensando nas penas e dificuldades que vinha tendo há tanto tempo para fugir a essas contínuas e minuciosas batidas e ao desprazer de semelhante vida, considerou o fugitivo que era preferível acabar com isso uma vez por todas. E saindo de seu esconderijo chamou os cavaleiros e se entregou voluntariamente, livrando a todos de uma boa maçada. Entregar-se a seus inimigos é resolução um tanto excessiva. Creio entretanto ser ainda melhor isso do que viver constantemente na apreensão febril de um acidente inevitável. E, estando a inquietação e a incerteza no fundo de todas as precauções que tomamos, mais vale preparar-se corajosamente para o que der e vier e tirar algum consolo daquilo que não temos certeza venha a ocorrer. CAPÍTULO XXV PEDANTISMO Sofri muitas vezes, em criança, com sempre ver nas comédias italianas o mestre-escola no papel de parvo, sem ter a designação de magister, com muito mais honroso sentido entre nós. Entregues que somos à sua orientação, não tinha eu outra alternativa senão aborrecer-me com tal reputação. Bem procurava explicá-la a mim mesmo pela desigualdade natural que existe entre o vulgo e as raras pessoas que se distinguem pelo bom senso e o saber. Tanto mais quanto os hábitos de uns e outros são inteiramente diversos. Mas, perturbava-me verificar que os homens mais esclarecidos são exatamente os que menos estimam os professores, haja vista o nosso bom Ou Bellay: "Odeio sobretudo um saber doutoral". E isso vem de longe, pois Plutarco (Vida de Cícero) nos diz que entre os romanos "grego" e "escolástico" eram palavras pejorativas que se em pregavam como censura. Com a idade achei que se justificava essa opinião e que os mais sábios não são os mais perspicazes. "Magis magnos clericos non sunt magis magnus sapientes." Mas como pode ocorrer que uma alma enriqueci da de tantos conhecimentos não se tome mais viva e esperta, e que um cérebro vulgar e grosseiro armazene, sem se apurar, as obras e juízos dos maiores espíritos que o mundo produziu? Ainda não o entendi muito bem. Para abrigar tantos e tão grandes pensamentos dos outros cérebros, é necessário, dizia-me uma senhorita que ocupava o primeiro lugar entre as nossas princesas, que o próprio cérebro se contraia, se restrinja, se comprima para dar espaço ao que recebe de outrem. Imagino, dizia ela, que assim como as plantas morrem por excesso de seiva e as candeias se apagam com abundância de azeite, os espíritos curvam-se e se ancilosam sob o peso dos estudos e das matérias com que os encheram e que eles não puderam deslindar. Parece-me entretanto que outra é a razão, porque mais se enche nossa alma e mais ela se enriquece, e a antiguidade nos fornece exemplos de homens hábeis no governo da coisa pública, grandes capitães e grandes estadistas igualmente grandes sábios. Quanto aos filósofos, desinteressados dos negócios públicos, foram outrora em verdade muitas vezes escarnecidos pela liberdade de expressão dos autores cômicos de seu tempo, porquanto suas opiniões e suas atitudes os tornavam ridículos. Quereis fazê-los juízes dos direitos de um processo, das ações de um homem? Confiai neles! Andam ainda a investigar se a vida e o movimento existem realmente; se não são, homem e boi, uma só coisa; que significa agir; que se deve entender por sofrimento; que espécie de bichos são as leis e a justiça! Falam de um magistrado ou com ele conversam? Mostram-se irreverentes e descorteses. Ouvem louvar o príncipe ou o rei? Não passam para eles de pastores, ociosos como os pastores e ocupados apenas em ordenhar e tosquiar seus animais; mais duramente, porém. Estimais alguém porque possui duas mil jeiras de terra? Riem-se, acostumados que estão a encarar o mundo como propriedade pessoal. Orgulhais-vos de vossa nobreza por terdes sete avós ricos de glórias? Eles os desprezam, pois, atentando unicamente para o universal, computam o número de antepassados que teve cada um de nós entre ricos e pobres, reis e servos, gregos e bárbaros, e ainda que fôsseis descendentes de Hércules achariam vaidade que vos ufanásseis desse presente da sorte. Por isso os desprezava o vulgo como ignorantes das coisas essenciais da vida, que todos apreciavam e os tachavam de presunçosos e insolentes. Mas esta pintura, tirada de Pia tão, está longe de retratar os professores. Invejavam-se os filósofos porque pairavam acima do homem comum, desdenhavam os negócios públicos e levavam uma vida especial que não estava ao alcance de qualquer pessoa e se regulava por princípios superiores que não são os que se aplicam normalmente. Quanto aos professores, julgam-nos abaixo do homem comum, incapazes de funções públicas e levando uma vida miserável, de costumes baixos e vis que os coloca no último degrau da sociedade: "Odeio esses homens incapazes de agir e cuja filosofia consiste unicamente em palavras". Ora, os filósofos, grandes pelo saber, maiores ainda o foram quando passaram à ação. Assim aquele geômetra de Siracusa que, arrancado da vida contemplativa a fim de empregar seu gênio inventivo na defesa de seu país, imaginou imediatamente engenhos espantosos cujos efeitos ultrapassavam tudo o que podia conceber o espírito humano. No entanto os desprezava considerando ele próprio que com tais invenções, simples jogos de sua sabedoria, corrompia a dignidade de sua arte. Daí o fato de, cada vez que tiveram os filósofos de passar da teoria à prática, se elevarem tão alto que se diria terem enriquecido prodigiosamente, sua alma e coração, no estudo das coisas. Alguns houve que vendo a direção de sua terra nas mãos de incompetentes, destes se afastaram, calando. Prova-o a resposta de Crates? A alguém que lhe perguntava até que momento cumpria filosofar: "Até que não haja mais burriqueiros à frente dos nossos exércitos." Heráclito abdicou a realeza em favor de seu irmão, e, aos efésios, que o censuravam por passar o tempo a brincar com as crianças diante do templo, observou: "não será melhor agir assim do que gerir os negócios públicos em vossa companhia?" Outros, que tinham o espírito acima da fortuna e do mundo, achavam as cadeiras dos magistrados e até os tronos dos reis baixos e vis, e Empédocles recusou a realeza que lhe ofereciam os agrigentinos. Condenando Tales seus concidadãos por se preocuparem demasiado com seus interesses pessoais e com se enriquecerem, eles atalharam que assim falava como a raposa da fábula, por ser incapaz de fazer o mesmo. Em vista do que teve ele a ideia de tentar a aventura, por desfastio. E, rebaixando o seu saber, a serviço do proveito e do dinheiro, organizou uma empresa que em um ano lhe deu lucro tão grande que dificilmente os mais experimentados no ofício poderiam ganhar em toda vida. Conta Aristóteles que alguns diziam desses Tales, Anaxágoras e semelhantes, que eram sábios mas não prudentes, pois não se ocupavam o bastante com as coisas úteis. Além de não perceber muito bem qualquer diferença entre tais palavras, creio que erravam os que assim se exprimiam e, em se atentando para a fortuna tão penosamente adquirida e módica com que se satisfaziam esses críticos, seríamos antes induzidos a admitir que não são nem sábios nem prudentes, usando as mesmas expressões. Abandono essa primeira razão e creio ser preferível dizer que o mal provém da maneira por que tratam a ciência. Pelo modo como a aprendemos não é de estranhar que nem alunos nem mestres se tornem mais capazes embora se façam mais doutos. Em verdade, os cuidados e despesas de nossos pais visam apenas encher-nos a cabeça de ciência; de bom senso e virtude não se fala. Mostrai ao povo alguém que passa e dizei "um sábio" e a outro qualificai de bom; ninguém deixará de atentar com respeito para o primeiro. Não mereceria essa gente que também a apontassem gritando: "cabeças de pote!" Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu - o que de fato importa - não nos passa pela mente. Cumpre entretanto indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais. Só nos esforçamos por guarnecer a memória, deixando de lado, e vazios, juízo e consciência. Assim como os pássaros vão às vezes em busca de grão que trazem aos filhotes sem sequer sentir-lhe o gosto, vão nossos mestres pilhando a ciência nos livros e a trazendo na ponta da língua tão somente para vomitá-la e lançá-la ao vento. E é admirável que se encontre tal tolice em meu próprio exemplo! Não faço o mesmo na maior parte deste escrito? Vou filando aqui e além, deste e daquele livro, as sentenças que me agradam, não para armazená-las, que não possuo armazém, mas a fim de transportá-las para este livro no qual não se tornam por certo mais minhas do que lá onde se achavam. Nossa ciência, creio eu, é a do presente; a do passado nós a ignoramos tanto quanto a do futuro. E o que é pior, os estudantes, e aqueles a quem por sua vez ensinarão, recebem dos mestres, sem assimilar melhor, uma ciência que passa assim de mão em mão, como pretexto a exibição, assunto de conversa, usada tal qual a moeda que por ter sido recolhida serve apenas de ficha para calcular: "aprenderam a falar com os outros, e não consigo", "Não se trata de falar, trata-se de governar o barco”. A natureza, para mostrar que não há nada selvagem em sua obra, permite que surjam nos países onde as artes se acham menos desenvolvidas produções do espírito que ombreiam com as mais admiráveis. Vem a calhar o provérbio gascão tirado dos toca dores de gaita de fole: "Bonha prou bonha, mas à remuda los dits quem" (pouco importa se sopras pouco ou muito, conquanto mexas os dedos). Sabem dizer "como observa Cícero", "eis o que fazia Platão", "são palavras de Aristóteles", mas que dizemos nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos. Lembra-me isso aquele rico romano que, à força de dinheiro, se aplicara a recrutar homens versados em todos os ramos da ciência e os tinha sempre à sua volta; e quando, com seus amigos, tinha a oportunidade de falar de qualquer coisa eles o supriam em sabedoria, um lhe soprando uma réplica, outro citando um verso de Horácio, cada qual segundo sua especialidade. Com o tempo chegara a acreditar que o saber era seu porquanto o tirava de "seus" homens, agindo, assim, como aqueles cujos conhecimentos moram nas bibliotecas suntuosas de sua propriedade. E conheço um que ao ser indagado acerca do que lhe cumpre saber, vai logo buscar um livro para mostrar e jamais ousaria dizer que tem o traseiro sarnento sem previamente procurar em dicionário a significação de sarna e de traseiro. Cuidamos das opiniões e do saber alheios e pronto; é preciso torna-los nossos. Nisso nos parecemos com quem, necessitando de lume, o fosse pedir ao vizinho e dando lá com um esplêndido braseiro ficasse a se aquecer sem pensar em levar um pouco para casa. Que adianta ter a barriga cheia de comida se não a digerimos? Se não a assimilamos, se não nos fortalece e faz crescer! Imaginaremos, acaso, que Luculo, que as letras formaram e tornaram, sem experiência, tão grande capitão, as tenha aprendido à nossa moda? Tanto nos apoiamos nos outros que acabamos por perder as forças. Quero fortalecer-me contra o temor da morte? Recorro a Sêneca. Tenho a intenção de arranjar consolo para mim e para outros? Vou a Cícero. Entretanto tudo houvera tirado de mim mesmo se a tanto me tivessem acostumado. Não aprecio esse saber relativo e que mendigamos. Ainda que possamos ser sábios com o saber alheio não seremos avisados senão com a própria sabedoria: "Detesto o sábio que não é sábio por si próprio". E diz Ênio igualmente: “Vã é a sabedoria que não é útil ao sábio"; "se é ambicioso, vaidoso e mais mole do que o anho recém-nascido da Euganea"; "não basta adquirir sabedoria, é preciso tirar proveito dela". Dionísio caçoava dos astrólogos que cuidavam de saber das desgraças de Ulisses mas ignoravam as próprias; dos músicos que afinam suas flautas mas não os seus costumes; dos oradores que estudam para discutir a justiça mas não a praticam. Se a sua alma não se aperfeiçoa, se seus juízos não se tornam mais lúcidos, melhor fora que o estudante gastasse o tempo a jogar péla, pois ao menos o corpo ele o teria mais ágil. Observai-o de volta após quinze ou dezesseis anos: nada se fará dele; o que trouxe a mais é o grego e o latim, que o fizeram mais tolo e presunçoso do que quando deixou a casa paterna. Devia voltar com o espírito cheio, e voltou balofo; incharam-no e continuou vazio. Tais mestres, como os sofistas seus parentes próximos a que alude Platão, são de todos os homens os que parecem mais úteis à humanidade. No entanto são os únicos que não somente não melhoram a matéria-prima que se lhes confiou, como fazem o carpinteiro e o pedreiro, mas a estragam e ainda cobram por tê-la estragado. Se meus pedagogos concordassem com a lei proposta por Protágoras a seus discípulos (pagarem o preço pedido ou irem ao templo e declararem sob juramento em quanto avaliavam o proveito tirado das lições recebidas pagando-o de acordo com o trabalho), por certo se decepcionariam com o juramento que me dita a experiência adquirida. No meu dialeto perigordino a esses sábios de pacotilha dá-se por brincadeira o apelido de "Lettreferits", o que quer dizer "lettresferus", isto é, indivíduo que as letras atordoaram à maneira de uma martelada. E, de fato, as mais das vezes parecem ter descido tão baixo que nem mais possuem o senso comum. O camponês e o sapateiro vão vivendo simples e ingenuamente, falando do que conhecem; enquanto os outros por se quererem elevar e envaidecer de um saber todo superficial, que não lhes entrou sequer no cérebro, vão-se embaraçando e chafurdando sem cessar. Sabem discursar mas é preciso que outros o apliquem; conhecem bem Galeno, porém não conhecem o doente, e o estonteiam com textos de lei antes de terem ciência da causa. Nada ignoram da teoria, mas não achareis um que a possa pôr em prática. Vi em minha casa um de meus amigos que, a lidar com um indivíduo dessa espécie, se pôs, por passatempo, a recitar-lhe, em uma trapalhada de frases, citações sem nexo embora entremeadas de palavras relativas ao problema; e assim se divertiu um dia inteiro com o tolo que tomara a coisa a sério e dava tratos à bola para responder às objeções. No entanto o tal indivíduo era homem de letras, gozava de certa reputação e de boa posição social: "E vós, patrícios, que não tendes o poder de ver o que se passa atrás de vós, cuidai que aqueles a quem virais as costas não se riam de vós”. Quem olhar de perto essa espécie de gente, por toda parte encontradiça, achará como eu que as mais das vezes ela própria não se entende como não entende os outros. Tem a memória bem guarnecida, mas o juízo absolutamente vazio, salvo quando, pelas suas qualidades naturais, faz exceção. Entre essas exceções incluirei Adriano Tourneboeuf, que conheci. Nunca exercera outra profissão senão a de homem de letras, e na minha opinião em mil anos ninguém melhor do que ele mereceu lugar entre os primeiros. No entanto, nada tinha de professoral, a não ser a maneira de trajar e certos modos de conduzir-se na sociedade, que não revelavam o requinte praticado na Corte, o que não importa em verdade. Pois detesto as pessoas que suportam mais dificilmente um terno malfeito do que uma alma e julgam a qualidade do homem pelas reverências, as atitudes, e as botas. Adriano Tourneboeuf era dono da mais bela alma e eu o trouxe a assuntos alheios aos de seu comércio habitual. Via-os tão lucidamente e os apreciava tão judiciosamente que se diria não ter ele jamais se ocupado senão de guerra e de negócios públicos. São naturezas fortes e retas - as quais Prometeu formou com mais benevolência e melhor argila - e que assim se mantêm apesar das instituições defeituosas. Ora, não basta que as instituições não nos tomem piores, é preciso que nos façam melhores. Em nossos tribunais, quando lhes cabe prover os cargos de sua alçada, só julgam os candidatos pelo saber que possuem. Outros os apreciam também pelo bom senso, dando-lhes questões a resolver. Estes últimos me parecem estar com a razão. Ambas as coisas são necessárias, embora em realidade valha menos o saber que a inteligência, porquanto esta pode prescindir daquele e o contrário não seja exato. Porque, como diz Stroben, "de que serve o saber sem a inteligência"? Prouvera a Deus que para o bem de nossa justiça fossem os nossos tribunais tão ricos de bom senso e de consciência quanto de ciência. Infelizmente, "não aprendemos a viver, mas a discutir”. Não cabe justapor o saber à alma, cumpre incorporá-lo a ela. Não se trata de negá-la mas sim de impregná-la com ele. Se não modifica nem melhora o estado de imperfeição, fora certamente preferível não adquiri-lo. É uma arma perigosa que embaraça e fere o dono, caso não esteja em mão forte e lhe ignore a maneira de usar: "melhor seria não ter aprendido nada". "Talvez por esse motivo não exijamos das mulheres maior saber, e François, Duque de Bretanha, filho de Jean V, ao se tratar de seu casamento com Isabeau, da casa real escocesa, respondeu a quem lhe dizia ter ela sido educada simplesmente sem nenhuma noção das letras, que a preferia assim, pois uma mulher já sabe o bastante quando é capaz de diferenciar uma camisa do gibão do marido. Nada tem, portanto, de extraordinário que nossos antepassados não se hajam preocupado com as letras e que hoje ainda só excepcionalmente as encontremos cultivadas mesmo pelos que participam dos conselhos de nossos reis. Se não lhes desse bom crédito o fim - precípuo em nosso tempo - de ganhar dinheiro na jurisprudência, na medicina, na teologia, nós as veríamos tão desprezadas quanto antes. E que prejuízo decorreria disso, visto que não nos ensinam nem a bem pensar nem a agir? "Desde que se veem tantos sábios não se acha mais gente de bem". A quem não possui a ciência do mérito qualquer outra é prejudicial. Mas talvez divisemos aí a explicação que procurava há pouco: não tendo o estudo em França quase outro fim senão o lucro, se desfalcamos os que a elas se entregam por temperamento e por preferirem os cargos honoríficos aos lucrativos, e os que a elas renunciam antes de tomarem gosto a fim de exercer uma profissão sem parentesco com o livro, sobram apenas para tratar das letras os que, sem fortuna, buscam nelas um meio de existência. Ora, estes que tanto por natureza como pela educação têm uma alma de baixo quilate empregam mal o seu saber, o qual não pode nem iluminar um incapaz, nem devolver a vista a quem não vê. Seu objetivo não é dar vista ao cego e sim corrigi-la, e ensinar a andar se as pernas ainda são direitas e capazes de esforço. O saber é uma boa droga, mas não há droga suficientemente forte para resistir às falhas do recipiente. Há quem tenha vista boa e seja vesgo: vê o bem mas não o faz, e vê o saber e não sabe servir-se dele. A principal lei de Platão em sua República é repartir os cargos entre os cidadãos segundo a capacidade de cada um. A natureza tudo pode e tudo faz. Os coxos não servem para os exercícios do corpo; aos exercícios do espírito não se adaptam as almas mancas. A filosofia é inacessível às almas bastardas e vulgares. Se vemos um homem mal calçado não nos espantamos que seja sapateiro, pois vemos frequentemente médicos que, enfermos, seguem tratamentos inconvenientes, e teólogos de costumes censuráveis, e, o que é corriqueiro, sábios mais ignorantes do que o homem comum. Tinha razão Aristo, de Quios, ao dizer outrora que os filósofos são nocivos aos que os ouvem, porquanto em sua maioria não são as pessoas suscetíveis de tirar proveito de seus ensinamentos, os quais quando não fazem bem fazem mal: "Da escola de Aristipo saem devassos, da de Zenão saem selvagens”. No método de educação que Xenofonte atribui aos persas, é dito que ensinavam a virtude aos filhos como nos outros países se ensinavam as letras. Afirma PIa tão que o filho do rei, herdeiro do trono, era educado da seguinte maneira: ao nascer não o entregavam às mulheres, mas aos eunucos, ocupantes dos mais altos cargos na Corte por causa de sua virtude. Cabia-lhes desenvolver nele as qualidades físicas que o pudessem tomar belo e sadio. Com sete anos ensinavam-lhe a montar a cavalo e a caçar. Aos catorze anos, confiavam-no a outros personagens: o mais avisado, o mais justo, o mais virtuoso e o mais valente da nação. Ensinava-lhe o primeiro a religião; o segundo a ser sincero; o terceiro a dominar as paixões; o quarto a nada recear. É de notar-se que na excelente legislação de Licurgo, tão extraordinária pela sua perfeição e particularmente atenta à educação das crianças, considerada como devendo passar antes de tudo na própria pátria das Musas, tão pouco se cuidasse da erudição. Parece que a essa generosa mocidade, que tudo desprezava à exceção da virtude, deviam dar em lugar de professores de ciências, como ocorre em nosso caso, mestres de valentia, prudência e justiça, exemplo que Platão adotou. Sua educação consistia como entre os persas em pedir às crianças julgamento sobre os homens e suas ações. E cumpria-lhes justificar sua maneira de ver, de modo que a um tempo exerciam a inteligência e aprendiam Direito. Astíages, em Xenofonte, interroga Ciro acerca de sua última lição. Consistiu, responde este, no seguinte: na escola um aluno que possuía um capote curto demais deu-o a seu camarada menor e tomou o deste que era mais comprido. O mestre fez-me juiz da contenda. Eu achei que se devia deixar as coisas como estavam, porquanto parecia que cada qual assim se via possuidor de um capote a seu feitio. Meu mestre mostrou-me então que assim julgando eu não consultara senão a conveniência e que fora preciso antes atentar para a justiça, a qual estabelece que ninguém seja despojado à força daquilo que lhe pertence. E Ciro acrescentou que por esse erro de apreciação fora chicoteado tal qual o somos em França, nas nossas aldeias, quando nos enganamos quanto ao tempo de um verbo grego. Meu professor poderia fazer-me um inteiro discurso - "in genere demonstrativo" - sem conseguir persuadir-me da superioridade de sua escola sobre essa. Os lacedemônios quiseram encurtar o caminho, e como as ciências, ainda que se estudem seriamente, só nos podem oferecer teorias acerca da prudência, da sabedoria na conduta e do espírito de decisão, sem nos levar à sua prática, procuraram colocar desde cedo as crianças em contato com a realidade, instruindo-as não por palavras mas pela ação, formando-as e as moldando rigorosamente, por preceitos e frases sem dúvida, mas também e principalmente por exemplos e obras, a fim de que o saber não lhes enchesse apenas a alma mas a ela se incorporasse, tornando-se compleição e hábito; e que não fosse uma aquisição mas uma propriedade natural. A propósito, perguntou-se a Agesilau que deviam, na sua opinião, as crianças aprender, ao que ele respondeu: o que terão de fazer quando crescerem. Não é de estranhar que semelhante educação tenha produzido tão admiráveis efeitos. Conta-se que se iam buscar em outras cidades da Grécia retóricos, pintores, músicos e na Lacedemônia os legisladores, os magistrados e comandantes dos exércitos. Em Atenas aprendia-se a bem falar; lá, a bem fazer. Numa a discutir nas controvérsias dos sofistas e a penetrar o verdadeiro sentido das frases artificialmente constituídas; noutra, a defender-se contra as tentações da volúpia e a encarar com coragem os reveses da sorte ou a morte que nos ameaça. Aqueles a discorrer, estes a agir; contínuo exercício de língua de um lado; e, de outro, da alma. Não admira portanto que a Antípater, que exigia cinquenta crianças como reféns, lhe respondessem, ao contrário do que teríamos feito, que preferiam dar o dobro de homens feitos, de tal modo temiam que perdessem a educação da terra. Quando Agesilau convida Xenofonte a mandar os filhos para Esparta, a fim de aí serem educados, não pretendia ensinar-lhes a dialética e a retórica, mas o fazia para que aprendessem a mais bela das ciências, a do saber obedecer e mandar. E divertido ver Sócrates caçoar, a seu modo, de Hípias, o qual lhe conta como ganhou dinheiro com o ensino, sobretudo em certas aldeias da Gália, enquanto em Esparta não pegou um vintém. "Esses espartanos", diz Hípias, "são uns broncos, incapazes de medir e contar, ignorantes da gramática e dos ritmos, interessados apenas na cronologia dos reis, na fundação e decadência dos Estados e outras tolices que tais." Quando terminou, Sócrates convenceu-o a pouco e pouco da excelência de sua forma de governo, da felicidade e da virtude de sua vida privada e sugeriu-lhe como conclusão a inutilidade das artes. Ensinam-nos os exemplos do que se verificou nesse governo e nos do mesmo tipo, que o estudo das ciências amolece e efemina as coragens mais do que as robustece e as torna aguerridas. A nação mais poderosa que existe neste momento é a dos turcos, povo que igualmente estima as armas e despreza as letras. Roma foi mais valente antes de se tornar sábia. Os países mais belicosos de nossos dias são aqueles em que o povo é mais grosseiro e ignorante. Tem-se a prova nos citas, nos persas, em Tamerlão. Quando os godos saquearam a Grécia, o que evitou se incendiassem as bibliotecas foi ter tido um deles a ideia de deixar os livros intatos a fim de que seus inimigos com eles se distraíssem e neles encontrassem uma ocupação sedentária e ociosa, capaz de afasta-los do serviço militar. Quando nosso Rei Carlos VIII se apoderou, quase sem desembainhar a espada, do reino de Nápoles e de boa parte da Toscana, os fidalgos de seu séquito atribuíram a inesperada facilidade da conquista ao fato de os príncipes e a nobreza da Itália passarem o tempo antes nos trabalhos do espírito e no estudo da ciência que em se esforçando por se tornarem vigorosos e guerreiros. CAPÍTULO XXVI DA EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS À Sra. Diana de Foix, Condessa de Gurson Nunca vi pai, por corcunda ou tinhoso que fosse o filho, deixar de dá-lo por seu. Não, entretanto, por estar cego pela afeição e não se aperceber do defeito, mas tão somente porque é seu. Assim eu vejo melhor do que outro não haver aqui senão devaneios de homem que das ciências só provou a casca em sua infância e apenas reteve delas um aspecto geral e informe; um pouco de tudo e até nada de nada, à francesa. Porque, em suma, sei que há uma medicina, uma jurisprudência, quatro partes na matemática, e, grosseiramente, o que visam elas. Porventura saberei ainda, de um modo geral, qual seu objetivo e sua utilidade em nossa vida. Mas, ir além, queimar as pestanas no estudo de Aristóteles, soberano da doutrina moderna, ou me obstinar em qualquer ciência, não o fiz nunca. Nem há arte de que eu possa sequer expor as mais elementares noções. E qualquer menino das classes médias pode dizer-se mais erudito do que eu que não tenho capacidade para examina-lo sobre as primeiras lições; dessa natureza pelo menos. Se me forçam a fazê-lo, vejo-me obrigado, assaz ineptamente, a tratar de algum assunto de caráter geral pelo qual julgo sua inteligência natural, matéria tão alheia a ele quanto a sua me é estranha. Não me enfronhei em nenhum livro sólido senão nos de Plutarco e Sêneca em cuja obra, a exemplo das Danaides, busco sem cessar aquilo que logo entrego alhures. Em meus escritos alguma coisa fica; em mim quase nada. A história é mais de minha predileção, ou a poesia que tenho em particular estima. Pois, como dizia Cleantes, assim como o som, prensado no estreito canal de uma trombeta, sai mais agudo e forte, assim se me afigura que o pensamento, constrangido pelas regras da poesia, se arremete mais vivamente e me impressiona com maior intensidade. Quanto às faculdades naturais que aqui ponho à prova, sinto-as vergar sob a carga. Minhas concepções e meus pensamentos só avançam às apalpadelas, cambaleantes, a escorregar entre tropeços; e por mais longe que vá, não fico satisfeito; vejo terras ainda além, mas turvas e enevoadas e não as posso distinguir. E, se me proponho falar à vontade de tudo o que se apresenta à minha fantasia, não empregando nisso senão os meus recursos naturais, acontece-me não raro encontrar por acaso nos bons autores os mesmos assuntos que procuro comentar, como vem de me suceder com Plutarco acerca da força da imaginação; e ao reconhecer-me diante deles tão fraco e insignificante, tão pesado e sem vida, tenho piedade de mim mesmo, e desdém. Todavia sinto prazer em verificar que minhas opiniões têm a honra de ir ao encontro das deles, às vezes e, embora de longe, sigo-lhes as pegadas. E também tenho esta vantagem que nem todos têm, que é conhecer a profunda diferença que há entre mim e eles. E, no entanto, deixo os meus pensamentos correrem assim fracos e pequenos, como os concebi, sem rebocar nem tapar os buracos que a comparação me revelou. E preciso ter rins sólidos para andar em companhia dessa gente. Os escritores sem discernimento de nosso tempo, e que em seus livros sem valor vão semeando trechos inteiros dos autores antigos para se enfeitarem, fazem o contrário; porque a infinita dessemelhança de brilho entre o que lhes é próprio e o que tomam de empréstimo dá um aspecto tão pálido, desbotado e feio ao que é deles que perdem muito mais do que ganham. Eis dois sistemas diferentes: Crisipo misturava aos seus livros não somente trechos, mas também obras inteiras de outros autores, e em um desses seus trabalhos se acha reproduzida "in extenso" a "Medeia" de Eurípides; e dizia Apolodoro que se lhe cortassem o alheio ficava o papel em branco. Epicuro, ao contrário, nos trezentos volumes que deixou nunca pôs uma só citação. Aconteceu-me um dia destes dar com um desses escritos: tinha-me arrastado penosamente até o fim de uma prosa francesa tão exangue, tão descarnada, tão vazia de substância e de sentido que não era, em verdade, mais do que palavras em francês, eis que após tão longa e aborrecida leitura deparei com um trecho elevado, rico, erguendo-se às nuvens. Se tivesse achado a subida suave e a rampa fácil, tudo se desculparia, mas era um precipício tão abrupto, inesperado, que logo às seis primeiras palavras verifiquei andar por outro caminho. Dali descortinei o tremedal de onde vinha, tão baixo e profundo que não mais me animei a descer de novo. Se recheasse com esses ricos despojos um dos meus trabalhos, com eles iluminaria por demais a tolice dos outros. Censurar nos outros os meus próprios erros não me parece mais inconsequente do que relevar, como faço amiúde, os dos outros em mim. E preciso aponta-los onde quer que estejam e não lhes dar asilo. Bem sei com que ousadia eu próprio tento igualar-me por todos os meios aos meus furtos e ir de par com eles, não sem a temerária esperança de poder enganar os juízes que os examinam; mas não é tanto pelo proveito que tiro de tais confrontações quanto pelo que pode resultar de vantajoso para as ideias propugnadas e de força para pô-las em evidência. Ademais não procuro lutar corpo a corpo com esses velhos campeões; luto por assaltos, ataques repetidos e rápidos. Não me obstino, não faço senão toca-los e nunca vou até onde desejaria ir, Se pudesse medir-me com eles seria homem de bem, pois só procuro imitá-los no que têm de melhor. Fazer o que vi fazerem alguns que se revestem da couraça de outrem, de forma a nem sequer mostrarem a ponta dos dedos, e conduzir seu plano - como se permite aos cientistas em assunto comum - à sombra das invenções antigas pilhadas aqui e acolá, procurando-as dissimular e tornar suas, é desonestidade e covardia antes de tudo, porquanto não tendo em si nada que os realce pretendem valer pelo que é alheio. Ademais, contentam-se em conquistar por trapaças a ignorante aprovação do vulgo e são mal vistos pelos entendidos, que torcem o nariz a esse trabalho, verdadeiro mosaico de peças e trechos tomados de empréstimo. Ora, o louvor destes é que pesa. Por minha parte, evito-o fazer. E se cito os outros é para melhor dizer de mim. Isto não diz respeito aos centões que se publicam como centões. Vi-os muito engenhosos outrora, entre outros um de Capilupus, sem contar os antigos. São espíritos que se distinguem nisso como em outras coisas, como Lípsio na douta e laboriosa composição de sua "Política". Como quer que seja e quaisquer que sejam as inépcias que me passam pela mente, não as esconderei, como não esconderia meu relato se em vez de jovem e belo me representasse calvo e grisalho como o sou, em verdade. Exponho aqui meus sentimentos e opiniões, dou-os como os concebo e não como os concebem os outros; meu único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode, amanhã, ser bem diferente do de hoje, se novas experiências me mudarem. Não tenho autoridade para impor minha maneira de ver, nem o desejo, sabendo-me demasiado mal instruído para instruir os outros. Alguém, depois de ler o ensaio precedente, dizia há tempos em minha casa que eu me devia ter alongado um pouco mais sobre a educação das crianças. Mas, senhora, se eu tivesse alguns conhecimentos do assunto não os empregaria melhor do que em fazendo presente deles a esse rapazinho que ameaça sair de vós (sois generosa demais para não começardes por um varão), pois tendo tomado tão grande parte na preparação de vosso casamento, tenho algum direito de me interessar pela grandeza e prosperidade de tudo o que dele provier. Por outro lado, os antigos privilégios que tendes sobre mim, levam-me naturalmente a desejar honras, bens e melhorias em tudo o que vos diz respeito. Mas na realidade disso só entendo que a maior e mais importante dificuldade da ciência humana parece residir no que concerne à instrução e à educação da criança. O mesmo acontece na agricultura: o que precede à semeadura é certo e fácil; e também plantar. Mas depois de brotar o que se plantou, difíceis e variadas são as maneiras de tratá-lo. Assim os homens: pouco custa semeá-los, mas depois de nascidos, educa-los e instruí-los é tarefa complexa, trabalhosa e temível. O que se revela de suas tendências é tão tênue e obscuro nos primeiros anos, e as promessas tão incertas e enganadoras que se faz difícil assentar um juízo seguro. Vede como Címon e Temístocles, e tantos outros se desmentiram a si próprios. Os filhotes de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os homens, porém, metendo-se desde logo em hábitos, preconceitos, leis, mudam ou se mascaram facilmente. Certamente é muito difícil modificar as propensões naturais. Daí provém que, em não se tendo escolhido bem o caminho a seguir, trabalha-se inutilmente muitas vezes e se precisam anos para instruir as crianças acerca de coisas em que não chegam a tomar pé. Em todo caso nessa dificuldade a minha opinião é que as encaminhemos sempre para as coisas melhores e mais proveitosas, sem levar demasiado em consideração as vagas indicações e prognósticos que tiramos da infância. Platão em sua República parece dar-lhes importância excessiva. É a ciência, senhora, um grande ornamento e ferramenta de admirável préstimo, em particular para as pessoas de vossa condição social. Não tem em verdade seu melhor emprego nas mãos humildes e baixas. Orgulha-se muito mais em prestar os seus serviços na direção de uma guerra, no governo de um povo, na amizade de um príncipe, ou de um país estrangeiro do que em enunciar uma argumentação dialética, em arrazoar um recurso ou receitar um punhado de pílulas. Eis por que vos quero expor, sobre o assunto, ideias contrárias à opinião vulgar. É tudo o que posso para vos servir neste caso. E o faço porque estou convencido de que não esquecereis a ciência na educação dos vossos, vós que já lhe saboreastes a doçura e pertenceis a uma família de letrados - pois temos ainda os escritos dos antigos condes de Foix, de que descendeis, vós e o conde; e vosso tio Francisco de Candale continua a produzir outros que levarão aos séculos futuros o conhecimento dessa qualidade de vossa família. A tarefa do preceptor que lhe dareis, e da escolha do qual depende todo o efeito da sua educação, comporta vários aspectos importantes; mas não toco nas outras partes por não saber dizer nada que valha a pena. Quanto ao ponto em que proponho meus conselhos, ele me acreditará no que quiser. Para um filho de família que procura as letras, não pelo lucro (pois um fim tão abjeto é indigno da graça e do favor das musas e, por outro lado, não depende de nós) nem tanto pelas vantagens exteriores que os oferece como pelas suas próprias, e para se enriquecer e adornar por dentro para um rapaz que mais desejaríamos honesto do que sábio, seria útil que se escolhesse um guia com cabeça bem formada mais do que exageradamente cheia e que, embora se exigissem as duas coisas, tivesse melhores costumes e inteligência do que ciência. Mais ainda: que exercesse suas funções de maneira nova. Não cessam de nos gritar aos ouvidos, como que por meio de um funil, o que nos querem ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir. Gostaria que ele corrigisse este erro, e desde logo, segundo a inteligência da criança, começasse a indicar-lhe o caminho, fazendo-lhe provar as coisas, e as escolher e discernir por si próprio, indicando-lhe por vezes o caminho certo ou lho permitindo escolher. Não quero que fale sozinho e sim que deixe também o discípulo falar por seu turno. Sócrates, e posteriormente Agesilau, obrigavam os discípulos a falarem primeiro e somente depois falavam eles próprios. "Na maior parte das vezes a autoridade dos que ensinam é nociva aos que desejam aprender."! É bom que faça trotar essa inteligência à sua frente para lhe apreciar o desenvolvimento e ver até que ponto deve moderar o próprio andar, pois em não sabendo regular a nossa marcha tudo estragamos. É uma das mais árduas tarefas que conheço colocar-se a gente no nível da criança; e é característico de um espírito bem formado e forte condescender em tornar suas as ideias infantis, a fim de melhor guiar a criança. Anda-se com mais segurança e firmeza nas subidas do que nas descidas. Quanto aos que, segundo o costume, encarregados de instruir vários espíritos naturalmente diferentes uns dos outros pela inteligência e pelo temperamento, a todos ministram igual lição e disciplina, não é de estranhar que dificilmente encontrem em uma multidão de crianças somente duas ou três que tirem do ensino o devido fruto. Que não lhe peça conta apenas das palavras da lição, mas também do seu sentido e substância, julgando do proveito, não pelo testemunho da memória e sim pelo da vida. É preciso que o obrigue a expor de mil maneiras e acomodar a outros tantos assuntos o que aprender, a fim de verificar se o aprendeu e assimilou bem, aferindo assim o progresso feito segundo os preceitos pedagógicos de Platão. É indício de azia e indigestão vomitar a carne tal qual foi engolida. O estômago não faz seu trabalho enquanto não mudam o aspecto e a forma daquilo que se lhe deu a digerir. Nosso espírito, no sistema que condeno, não procede senão por crença e adstrito às fantasias de outrem, servo e cativo de ensinamentos estranhos. Tanto nos oprimiram com as andadeiras que já não temos movimentos livres. Vigor e liberdade extinguiram-se em nós: "nunca se dirigem por si próprios". Tratei intimamente em Pisa com um homem bom, mas tão aristotélico que o mais geral de seus dogmas é que a pedra de toque e a regra de toda inteligência sólida e de toda verdade estão na doutrina de Aristóteles, fora da qual só há quimeras e inanidade, pois tudo ele viu e disse. Essa afirmação, por ter sido interpretada com certa amplitude e malícia, comprometeu durante muito tempo e muito seriamente seu autor junto à Inquisição em Roma. Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estoicos ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ela escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião. "Não menos que saber, duvidar me apraz”. Porque se por reflexão própria abraçar as opiniões de Xenofonte e Pia tão, elas deixarão de ser deles e se tornarão suas. Quem segue outrem não segue coisa nenhuma; nem nada encontra, mesmo porque não procura. "Não esta mos sob o domínio de um rei; que cada qual se governe a si próprio." Que ele tenha ao menos consciência de que sabe. Não se trata de aprender os preceitos desses filósofos, e sim de lhes entender o espírito. Que os esqueça à vontade, mas que os saiba assimilar. A verdade e a razão são comuns a todos e não pertencem mais a quem as diz primeiro do que ao que as diz depois. Não é mais segundo Platão, do que segundo eu mesmo, que tal coisa se enuncia, desde que a compreendamos e a vejamos da mesma maneira. As abelhas libam flores de toda espécie, mas depois fazem o mel que é unicamente seu e não do tomilho ou da manjerona. Da mesma forma os elementos tirados de outrem, ele os terá de transformar e misturar para com eles fazer obra própria, isto é, para forjar sua inteligência. Educação, trabalho e estudo não visam senão a formá-la. Que ponha de lado tudo aquilo de que se socorreu e mostre apenas o que produziu. Os ladrões e os que vivem de empréstimos, fazem alarde de suas casas, de suas compras, não do que tomam aos outros. Não se conhecem os ganhos de um magistrado, veem-se os casamentos e as honrarias que arranjou para os seus. Ninguém publica suas receitas e sim suas despesas. O proveito de nosso estudo está em nos tornarmos melhores e mais avisados. É a inteligência, dizia Epicarmo, que vê e ouve; é a inteligência que tudo aproveita, tudo dispõe, age, domina e reina. Tudo o mais é cego, surdo e sem alma. Certamente tornaremos a criança servil e tímida se não lhe dermos a oportunidade de fazer algo por si. Quem jamais perguntou a seu discípulo que opinião tem da retórica, da gramática ou de tal ou qual sentença de Cícero? Metem-nas em sua memória bem arranjadinhas, como oráculos que devem ser repetidos ao pé da letra. Saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à memória para guardar. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Triste ciência a ciência puramente livresca! Que sirva de ornamento mas não de fundamento, como pensa Pia tão, o qual afirma que a firmeza, a boa-fé, a sinceridade, são a verdadeira filosofia, e que as outras ciências, com outros fins, não são mais do que brilho enganoso. Queria ver se Palnel e Pompeio, esses belos dançarinos de nosso tempo, seriam capazes de nos ensinar suas cabriolas pela vista, sem nos fazer mudar de lugar, como os que querem desenvolver nossa inteligência sem a excitarem; e se podem ensinar-nos a montar a cavalo, manejar uma alabarda ou um alaúde, cantar, sem exercício como nos querem ensinar a bem julgar e bem falar sem nos exercitar nem a uma coisa nem a outra. Ora, para exercitar a inteligência, tudo o que se oferece aos nossos olhos serve suficientemente de livro: a malícia de um pajem, a estupidez de um criado, uma conversa à mesa, são, como outros tantos, novos assuntos. Por isso, o comércio dos homens é de evidente utilidade, assim como a visita a países estrangeiros; não para nos informar, como o fazem nossos fidalgos franceses, acerca das dimensões da Santa Rotonda, ou da riqueza das calças da Signora Lívia, dizer-nos se a cabeça de Nero em uma velha ruína qualquer é mais comprida ou mais larga do que em certas medalhas, mas para observar os costumes e o espírito dessas nações e para limpar e polir nosso cérebro ao contato dos outros. Gostaria que fizessem a criança viajar desde pequena e em primeiro lugar pelos países vizinhos cuja língua se afasta mais da nossa, pois se não a habituarmos a ela desde cedo, a ela não se acostumará. Admite-se também geralmente que a criança não deve ser educada junto aos pais. A sua afeição natural enternece-os e relaxa-os demasiado, mesmo aos mais precavidos. Não são capazes de lhes castigar as maldades nem de a verem educada algo severamente como convém, preparando-a para as aventuras da vida. Não suportariam vê-la chegar do exercício, em suor e coberta de pó, ou vê-la montada em cavalo bravo ou de florete em punho, contra um hábil esgrimista, ou dar pela primeira vez um tiro de arcabuz. E no entanto não há outro caminho: quem quiser fazer do menino um homem não o deve poupar na juventude nem deixar de infringir amiúde os preceitos dos médicos: "que viva ao ar livre e no meio dos perigos". Não basta fortalecer-lhe a alma, é preciso também desenvolver-lhe os músculos. Terá de se esforçar demasiado se, sozinha, lhe couber dupla tarefa. Sei quanto custa à minha a companhia de corpo tão frágil, tão sensível e que nela confia excessivamente. E vejo muitas vezes, nas minhas leituras, que meus mestres em seus escritos põem em evidência feitos de valentia e firmeza de ânimo que decorrem muito mais da espessura da pele e da dureza dos ossos. Vi homens, mulheres e crianças de tal modo conformados que uma bastonada lhes dói menos do que a mim um piparote; e não tugem nem mugem quando apanham. Quando os atletas imitam os filósofos em paciência, é de se atribuir a coisa mais ao vigor dos nervos que ao da alma. O hábito do trabalho leva ao hábito da dor: "O trabalho caleja para a dor". É preciso acostumar o jovem à fadiga e à aspereza dos exercícios a fim de que se prepare para o que comportam de penoso as dores físicas, a luxação, as cólicas, os cautérios, e até a prisão e a tortura, que nestas ele também pode vir a cair nos tempos que correm, em que tanto atingem os bons como os maus. Estamos arriscados a elas. Todos os que combatem as leis ameaçam os homens de bem com o chicote e a corda. Por outro lado, a presença dos pais é nociva à autoridade do preceptor, a qual deve ser soberana; e o respeito que lhe têm os familiares, o conhecimento da situação e da influência de sua família, são a meu ver de muita inconveniência na infância. Nessa escola do comércio dos homens, notei amiúde um defeito: em vez de procurarmos tomar conhecimento dos outros, esforçamo-nos por nos tornarmos conhecidos e mais nos cansamos em colocar a nossa mercadoria do que em adquirir outras novas. O silêncio e a modéstia são qualidades muito apreciáveis na conversação. Educar-se-á o menino a mostrar-se parcimonioso de seu saber, quando o tiver adquirido; a não se formalizar com tolices e mentiras que se digam em sua presença, pois é incrível e impertinente aborrecer-se com o que não agrada. Que se contente com corrigir-se a si próprio e não pareça censurar aos outros o que deixa de fazer; e que não contrarie os usos e costumes: "pode-se ser avisado sem arrogância". Que evite essas atitudes indelicadas de dono do mundo, e a ambição pueril de querer parecer mais fino por ser diferente; e não procure (o que não oferece dificuldade) mostrar seu valor pelas suas críticas e originalidades. As licenças poéticas não são permitidas senão aos grandes poetas; assim também somente as almas superiores e ilustres têm o privilégio de se alçarem acima dos costumes: "se Sócrates e Aristipo nem sempre respeitaram os usos e costumes de seu país, não julgue que possa agir do mesmo modo; grandes e divinos méritos lhes autorizaram tais licenças". Ensinar-lhe-ão a somente discorrer e discutir quando encontrar alguém capaz de responder, e ainda assim a não empregar todos os meios de que disponha mas apenas os mais apropriados a seu assunto. Que o tornem exigente na escolha e peneiramento de suas razões, amigo da exatidão e, portanto, da brevidade. Que lhe ensinem sobretudo a ceder e sustar a discussão ante a verdade, logo que a enxergue, surja ela dos argumentos do adversário ou de sua própria reflexão, pois não lhe cabe desempenhar um papel prescrito e falar de cátedra; e se defende uma causa é porque a aprova; e não fará como aqueles que vendem em moeda sonante a liberdade de poder refletir e reconhecer o erro: "Nenhuma necessidade o obriga a defender o que lhe prescrevem e ordenam". Se seu preceptor for como eu, formar-lhe-á a vontade para que sirva seu príncipe com lealdade, afeição e coragem; mas o desviará de se prender a ele senão por dever cívico. Além de vários outros inconvenientes dessas obrigações particulares que ferem a nossa liberdade, a opinião de um homem salariado a serviço de outro ou é menos íntegra e livre, ou tachada de imprudente e ingrata. Um cortesão não tem direito nem vontade de pensar senão bem do senhor que, entre tantos milhares de súditos o escolhe, atende a suas necessidades e o engrandece por suas próprias mãos. Os favores e o interesse corrompem-lhe, não sem razão, a franqueza. E o deslumbram. Por isso é a linguagem dessas pessoas em geral diferente das outras linguagens, e pouco digna de fé. Que a consciência e a virtude brilhem em suas palavras e que só a razão tenha por guia. Ensinar-lhe-ão a compreender que confessar o erro que descobriu em seu raciocínio, ainda que ninguém o perceba, é prova de discernimento e sinceridade, qualidades principais a que deve aspirar. Teimar e contestar obstinadamente são defeitos peculiares às almas vulgares, ao passo que voltar atrás, corrigir-se, abandonar sua opinião errada no ardor da discussão, são qualidades raras, das almas fortes e dos espíritos filosóficos. Ensinar-lhe-ão que em sociedade deve prestar atenção a tudo, pois verifico que os primeiros lugares são muitas vezes ocupados pelos menos capazes e o bafejo da sorte quase nunca atinge os competentes. Tenho observado que, não raro, enquanto conversam à cabeceira da mesa acerca da beleza de uma tapeçaria ou do sabor do malvasia, bons ditos se perdem do outro lado. Terá de sondar o valor de cada um: boiadeiro, pedreiro ou viandante. Cada qual em seu domínio pode revelar-nos coisas interessantes e tudo é útil para nosso governo. As próprias tolices e fraquezas dos outros nos instruem. Observando as graças e maneiras de todos, será levado a imitar as boas e desprezar as más. Que lhe incutam no espírito uma honesta curiosidade por todas as coisas; que registre tudo o que haja de singular à sua volta: um edifício, uma fonte, um homem, um antigo campo de batalha ou o lugar por onde passaram César ou Carlos Magno: "Qual o solo que enrija com o frio, qual o que se queima ao sol; qual o vento marítimo que conduz à Itália". Que se instrua, acerca dos costumes, dos recursos e alianças de tal ou qual príncipe. E agradável aprender essas coisas, e muito útil sabê-las. Nessa prática dos homens, entendo que se inclua também, como extremamente importante, a frequentação daqueles que só vivem na memória dos livros. Pela história, entrará na intimidade dos grandes homens dos mais belos séculos. Pode ser estudo vão, mas pode ser igualmente estudo de fruto inestimável, e diz Pia tão que era o único estudo que admitiam os lacedemônios. Que proveito não tirará neste assunto da leitura das vidas de Plutarco? Mas que o guia desse menino se lembre do objetivo de sua missão e que procure gravar menos no seu discípulo a data da destruição de Cartago que os costumes de Aníbal ou Cipião; e menos o lugar em que morreu Marcelo do que o fato de aí ter morrido porque faltou a seu dever. Que lhe ensine a apreciar os fatos mais do que os registrar. É a meu ver a matéria a que o espírito se aplica de mais diferentes maneiras. Li em Tito Lívio cem coisas que outros não perceberam, e Plutarco leu outras cem que eu não vi e talvez diversas das que concebeu o autor. Uns estudam a história como um gramático, outros como um filósofo que analisa e põe em evidência as partes mais difíceis de penetrar em nossa natureza. Há em Plutarco muitos trechos, e extensos, dignos de serem lidos, pois O considero mestre na matéria. Mas há mil assuntos em que apenas tocou de leve e simplesmente aponta aonde devemos ir, se nos apetecer, contentando-se algumas vezes em fazer uma alusão no texto palpitante de uma narrativa. É preciso tirá-la e realçá-la. Assim o que nos diz dos habitantes da Ásia, que sempre serviram a um só senhor por não saberem pronunciar a palavra "não", foi sem dúvida o que inspirou ala Boétie sua obra "A Servidão Voluntária". Mesmo quando cita apenas uma palavra, um ato sem importância da vida de alguém, valem suas reflexões um tratado. É pena que as pessoas inteligentes gostem tanto da brevidade; por certo com isso se valoriza sua reputação, mas nós perdemos, não aproveitamos tanto. Plutarco prefere que em lugar do saber lhe louvem o discernimento; gosta mais de nos deixar desejosos do que saciados. Sabia que mesmo quando tratamos de assuntos admiráveis em si podemos falar demais e que Alexandridas censurou justamente alguém que dava aos éforos conselhos bons mas demasiado longos: "Ó estrangeiro, dizes o que é preciso, mas não como é preciso". Os que são magros de corpo, engrossam-no com enchimentos; os que têm assunto frágil, incham-no de palavras. Da frequentação da sociedade tira-se maravilhosa clarividência para julgar os homens. Vivemos todos apertados, dentro de nós mesmos, e não vemos um palmo diante do nariz. Perguntaram a Sócrates de onde era e ele então respondeu: de Atenas, mas: do mundo. Para ele, cuja inteligência mais vasta e aberta que a de outrem abarcava o universo e dele fazia sua cidade, o objeto de sua afeição era o gênero humano; e não agia como nós, que apenas olhamos em torno de nós. Quando a vinha se queima sob a geada em minha aldeia, o cura imagina que a cólera divina ameaça a humanidade e crê que já andam os canibais mortos de sede. Ao ver nossas guerras civis, quem não grita que toda esta máquina se subverte, que o dia do juízo está iminente, sem refletir que já se viram coisas piores e que, no entanto, o resto do mundo continua a divertir-se? Eu, em sabendo que ponto alcançam neste momento a licença e a impunidade, admiro-me de as ver tão suaves e brandas. Quem sente sobre a cabeça cair chuva de pedra, logo supõe que todo o hemisfério sofre tormenta e tempestade. Pois não dizia o camponês saboiano que "se esse tolo rei de França tivesse sabido governar o barco era homem para chegar a mordomo do duque"? Sua imaginação não bastava para que concebesse grandeza mais elevada que a de seu senhor. Todos caímos nesse mesmo erro, de consequências grandes e perigosas. Só mede as coisas segundo sua verdadeira grandeza, quem se representa, como num quadro, essa grande imagem da madre natureza na plenitude de sua majestade; quem lê em sua face uma variedade infinita de formas em constante transformação; quem nela vê, não sua ínfima pessoa, mas um reino inteiro ocupar o espaço de um risco de alfinete. Este mundo tão grande, que alguns ampliam ainda como as espécies de um gênero, é o espelho em que nos devemos mirar para nos conhecermos de maneira exata. Em suma, quero que seja esse o livro do nosso aluno. A infinita diversidade de costumes, seitas, juízos, opiniões e leis ensina-nos a apreciar sadiamente os nossos, a reconhecer suas imperfeições e fraquezas naturais, o que já não é pouco. Tantas revoluções nos diferentes países, tantas mudanças nos destinos públicos, induzem-nos a não encarar como extraordinários os nossos. Tantos nomes, tantas vitórias e conquistas enterradas no esquecimento tornam ridícula a esperança de eternizar o nosso nome pela captura de dez archeiros e de uma piolheira conhecida tão somente pelos que dela se assenhorearam, O fausto orgulhoso de tantas cerimônias estrangeiras, a exagerada majestade de tantas cortes e grandezas fazem-nos céticos e permitem à nossa vista sustentar o brilho das nossas sem nos deslumbrarmos. Tantos milhares de homens que nos precederam no túmulo encorajam-nos a não temer ir ao encontro de tão boa companhia no outro mundo. E assim o resto. Nossa vida, dizia Pitágoras, assemelha-se à grande e populosa assembleia dos jogos olímpicos. Uns se exercitam para conquistar a glória; outros levam sua mercadoria para vender e ganhar. Outros, e não são os piores, nada querem senão ver o porquê e o como de cada coisa e ser espectadores da vida dos outros para assim julgarem e regularem a sua. Aos exemplos se poderão sempre adaptar as mais proveitosas reflexões da filosofia, em cujas regras devem inspirar-se as ações humanas. Dirão ao jovem: "o que se deve desejar, que utilidade tem o dinheiro difícil de ganhar, o que exigem de nós a pátria e a família, o que quis Deus fosse o homem sobre a terra, que lugar lhe assinalou na sociedade, o que somos e para que nascemos," o que significam saber e ignorar (objetivo de nosso estudo), o que são valentia, moderação, justiça, servidão e sujeição, licença e liberdade, como se reconhece a verdadeira e duradoura alegria, até que ponto cumpre temer a morte, a dor e a vergonha, "e como evitar e suportar as aflições", que móveis nos impelem e a causa de tantos impulsos diferentes em nós. Porque me parece que os primeiros raciocínios de que lhe devem embeber o espírito são os que deverão regular-nos os costumes e os juízos, os que lhe ensinarão a conhecer-se, a saber viver e morrer bem. Entre as artes liberais comecemos pela que nos faz livres. Todas contribuem em verdade para a nossa instrução e a satisfação de nossas necessidades, como aliás, todas as coisas em certa medida. Mas ela passa antes das demais, porquanto influi mais diretamente em nossa vida e ajuda-nos a orientá-la. Se soubéssemos restringir as necessidades de nossa existência a justos e naturais limites, veríamos que a maior parte das ciências em uso é sem utilidade para nós. E mesmo nas que nos são proveitosas existem pontos supérfluos ou obscuros que fora melhor abandonarmos, atendo-nos, como queria Sócrates, ao que comportam de útil: Ousa ser avisado; quem adia a hora de viver é como o camponês que espera que o rio acabe ge correr; mas ele passa, e passará rolando eternamente. E de um grande simplismo ensinar aos meninos "o sentido dos Peixes, do Leão resplendente, ou Capricórnio que se banha nas águas da Hespéría", a ciência dos astros e os movimentos da oitava esfera antes de lhes abrir os olhos para os próprios sentidos: "que tenho a ver com a Plêiade, e a estrela boieira?” Anaxímenes escrevia a Pitágoras: "Como posso preocupar-me com o segredo das estrelas, quando tenho sempre presente a meus olhos a morte ou a escravidão?" (Preparavam então os reis da Pérsia a guerra contra a sua pátria.) Cada um deve dizer a mesma coisa: "assaltado pela ambição, a avareza, a temeridade, a superstição, e com tantos outros inimigos dentro de mim, como hei de pensar no movimento dos mundos?" Depois que lhe tiverem dito o que convém para o tornar mais avisado e melhor, falar-lhe-ão da Lógica, da Física, da Geometria, da Retórica; e como já terá a inteligência formada, logo aprenderá a ciência que escolher. O ensino deverá ser ministrado ora por conversas, ora por leituras; ora o preceptor lhe apresentará o próprio texto do autor mais adequado ao fim da educação, ora lhe fornecerá somente o miolo, a substância. E se, de si mesmo, esse preceptor não for tão familiar com os livros para neles descobrir o material necessário à sua missão, poderão juntar-lhe algum letrado que, no momento certo, lhe forneça os alimentos precisos que depois lhe caberá distribuir ao seu aluno. O ensino assim dado será mais fácil e natural do que com o método preconizado por Gaza. Este enuncia preceitos em excesso, prenhes de dificuldades e pouco compreensíveis; emprega palavras sonoras e vazias que não se entendem e não suscitam nenhuma ideia; no nosso método a alma acha a que se apegar, com que se alimentar. O que dele tirar o jovem será maior e mais depressa amadurecerá. É estranho que em nosso tempo a filosofia não seja, até para gente inteligente, mais do que um nome vão e fantástico, sem utilidade nem valor, na teoria como na prática. Creio que isso se deve aos raciocínios capciosos e embrulhados com que lhe atopetaram o caminho. Faz-se muito mal em a pintar como inacessível aos jovens, e em lhe emprestar uma fisionomia severa, carrancuda e temível. Quem lhe pôs tal máscara falsa, lívida, hedionda? Pois não há nada mais alegre, mais vivo e diria quase mais divertido. Tem ar de festa e folguedo. Não habita onde haja caras tristes e enruga das. Demétrio, o gramático, encontrando um grupo de filósofos sentados junto ao templo de Delfos, disse-lhes: "Ou muito me engano, ou discorreis de assunto elevado, tanto vos mostrais calmos e alegres". Ao que lhe respondeu Heracleu de Mégara: "São os que sabem se o verbo lançar se escreve com s ou com ç, e deblateram acerca da etimologia dos superlativos pior e melhor que franzem a testa em se entretendo de sua ciência predileta. Os estudos filosóficos alegram e satisfazem quem os empreende, e não o entristecem nem o põem carrancudo: pelo rosto que os reflete igualmente percebem-se os prazeres e os tormentos". "A alma em que se aloja, a filosofia faz com que o corpo participe de sua saúde. Leva ao exterior o brilho de seu repouso e de sua serenidade; modela o aspecto do corpo e o reveste de graciosa segurança, dá-lhe um aspecto ativo e alegre, um ar de satisfação e bonomia. O mais visível sinal de sabedoria é uma alegria constante. O sábio é sempre sereno. São o Barroco e o Baralipton que tornam seus adeptos sujos e ressequidos; não a filosofia, pois mal a conhecem de oitiva. Mas o ofício da filosofia é serenar as tempestades da alma e ensinar a rir da fome e da febre, não mediante um epiciclo imaginário qualquer, mas por meio de razões naturais e sólidas. Tem por fim a virtude, a qual não está, como quer a Escolástica, colocada no cimo de algum monte alcantilado, abrupto e inacessível. Os que dela se aproximaram afirmam-na ao contrário, alojada em bela planície, fértil e florida, de onde se descortinam todas as coisas. Pode-se ir até lá em se conhecendo o local, por caminhos ensombrados, cobertos de relva e suavemente floridos, sem esforço e por uma subida fácil e lisa como a da abóbada celeste. Por não terem frequentado essa virtude suprema, bela, triunfante, amorosa, tão deliciosa quanto corajosa, inimiga declarada e inconciliável do mau humor, do desprazer, do temor e do constrangimento, e que tem por guia a natureza e por companheiros a felicidade e a volúpia, foi por não a frequentarem que, na sua ignorância, a julgaram tola, triste, disputadora, aborrecida, ameaçadora e a colocaram sobre um rochedo afastado, dentro do mato, a fim de espantar as gentes como um fantasma. Meu preceptor, que sabe dever criar no espírito de seu discípulo mais afeto do que respeito pela virtude, dir-lhe-á que os poetas seguem as opiniões vulgares e tornar-lhe-á evidente que os deuses puseram maiores obstáculos no caminho de Vênus que no de Palas. E ao despertar para o amor, apresentar-lhe-á, para que escolha amante, Bradamante ou Angélica, aquela, beleza natural, ativa, generosa, vigorosa mas não machona; esta, beleza mole, afetada, delicada, artificial. Uma fantasiada de rapaz, com brilhante capacete à cabeça; outra vestida de rapariga, penteado alto guarnecido de pérolas. E verá se o amor confirma a educação viril, em sendo a escolha contrária à do efeminado pastor da Frigia. E lhe dirá também que a recompensa e a grandeza da verdadeira virtude estão na facilidade, utilidade e prazer do seu exercício; que ela apresenta tão poucas dificuldades que nela são igualmente fortes as crianças e os homens, os simples e sutis; e faz-se pela moderação e não pela força, Sócrates, seu adepto favorito, propositadamente recusou-se a impô-la pela força, e passou a contar com a simplicidade e a brandura para fazê-la vencedora. É a fonte dos prazeres humanos. Tornando-os legítimos, torna-os seguros e belos; moderando-os, conserva-lhes a disposição; cortando os que recusa aguça-nos para os que nos permite; e deixa-nos com largueza todos os prazeres naturais, até à saciedade, maternalmente, mas não até o cansaço, pois a moderação, que faz parar o bebedor antes da embriaguez, o comedor antes da indigestão e o lascivo antes do esgotamento, nunca foi inimiga do prazer. Se não tem a fortuna vulgar, dispensa-a e fabrica outra inteiramente sua nem flutuante nem rodante. Sabe ser rica, poderosa e sábia e deitar-se em colchões almiscarados. Ama a vida, a beleza, a glória, a saúde. Mas sua função própria é saber usar esses bens moderadamente e perdê-los sem fraquejar, função bem mais nobre do que penosa, sem a qual decorre a existência fora das regras da natureza na agitação e na confusão. E então pode-se falar de escolhos, sarças e monstros com que depara quem não a conhece. Se o aluno for de tão estranho temperamento que prefira ouvir histórias à narrativa de uma bela viagem ou à de sábios propósitos; que, ao som do tambor que excita o jovem entusiasmo de seus camaradas, se volte para quem o convida a ver histriões; que não ache mais agradável e reconfortante regressar, empoeirado e vitorioso, de um combate do que vencedor na péla ou na dança, não vejo outro remédio senão que o preceptor o estrangule logo, em não havendo testemunhas, ou que o coloque como pasteleiro - ainda que seja filho de duque - em qualquer das nossas boas cidades, pois ensina Platão que é preciso colocar as crianças, não de acordo com as posses dos pais, mas segundo as faculdades de seu próprio espírito. Visto que a filosofia é a ciência que nos ensina a viver e que a infância como as outras idades dela pode tirar ensinamentos, por que motivo não lha comunicaremos? "Enquanto úmida, a argila é mole; apressemo-nos, e que a roda ágil em girando a modele." Ensinam-nos a viver quando passada a vida. Centenas de estudantes contraem doenças venéreas antes de chegarem a aprender o que Aristóteles diz da temperança. Cícero afirmava que, embora vivesse duas vidas de homem, não gastaria tempo em ler os poetas líricos; os disputadores de nossos dias são muito mais desoladoramente inúteis. Nosso jovem tem mais pressa: não deve ficar entregue aos pedagogos senão até aos quinze ou dezesseis anos; o resto é da ação. Empregue-se, pois, esse tempo que é curto no ensino do necessário. Deixem-se de lado todas as árduas sutilezas da dialética, ilusórias e sem efeito sobre a vida; tomem-se os mais singelos preceitos da filosofia, escolham-nos com cuidado e tratem-nos bem: são mais simples de entender que um conto de Boccaccio. Uma criança os aprende, ao sair da ama, mais facilmente do que a ler e escrever. A filosofia tem regras para os recém-nascidos como para os decrépitos. Estou de acordo com Plutarco quando diz que Aristóteles ocupou menos seu aluno com a arte do silogismo ou com os princípios da geometria do que com bons preceitos sobre a valentia, a coragem, a magnanimidade, a moderação e o destemor. E com este cabedal o enviou, ainda moço, à conquista do império do mundo, apoiado apenas em trinta mil infantes, quatro mil cavalos e quarenta e dois mil escudos. As outras artes e ciências, acrescenta Plutarco, honrava-as Alexandre e reconhecia o que nelas havia de bom e agradável, mas o pouco prazer que delas tirava não nos permite crer que as quisesse exercer. "Buscai nela, jovens e velhos, um objetivo para vosso espírito; um viático para quando tiverdes encanecido.” É o que diz Epicuro no início de sua carta a Meniceus: "Por moço que seja, que ninguém se recuse a praticar a filosofia, e que os velhos não se cansem dela". Quem procede de outro modo parece dizer que ainda não é tempo de viver feliz, ou que já o não é. Mas para tais ensinamentos não quero que prendam o jovem; não quero que o abandonem ao mau humor e à cólera de um mestre-escola furioso; não quero corromper-lhe o espírito torturando-o com trabalho, como o fazem a outros, catorze a quinze horas por dia, a exemplo de um carregador Não acharia bom tampouco se, inclinado por temperamento para a solidão e a melancolia, e manifestando demasiado amor aos livros, lhe incentivassem esse gosto; isso os toma inaptos para a vida da sociedade e os afasta de melhores ocupações. Quantos homens de meu tempo tenho visto embrutecidos por uma temerária avidez de ciência! Carnéades andava tão obcecado por ela que mal tinha tempo para cortar o cabelo e as unhas. Não quero estragar suas generosas disposições com os processos bárbaros de outrem. Dizia-se outrora que a sabedoria francesa começava cedo mas durava pouco tempo. Convenhamos em que ainda agora não há nada mais interessante do que as crianças francesas; mas, em geral, não realizam o que delas se espera e depois de grandes não revelam excelência nenhuma. Ouvi dizer por pessoas sensatas que é porque as mandamos para os colégios, que temos em tão grande número; e que assim se atoleimam. Para nosso jovem, um gabinete, um jardim, a mesa e a cama, a manhã e a tarde, todas as horas e lugares lhe servirão; em toda parte estudará, pois, a filosofia, que será sua principal matéria de estudo; como formadora da inteligência e dos costumes, tem o privilégio de se misturar a tudo. Pedindo-se a Isócrates, o orador, que falasse de sua arte em um banquete, assim se houve com aplauso geral: "Não é hora de fazer o que sei, e não sei fazer o que cumpre se faça no momento". Com efeito, discorrer ou divagar acerca de temas de retórica em uma assembleia que se reúne para rir e comer seria mistura de má inspiração. E o mesmo se dirá de qualquer arte ou ciência. Só a filosofia, na parte em que trata do homem, seus deveres e obrigações, não deveria ser recusada nem nos festins nem nos jogos como assunto de conversação. E essa é a opinião de muitos sábios. Convidou-a Platão ao seu Banquete e vemos como ela entretém os convivas de maneira suave, adequada ao tempo e ao lugar, embora suas teses figurem entre as mais salutares e de maior alcance desse filósofo: "igualmente útil aos pobres e aos ricos; desprezá-la prejudica igualmente jovens e velhos". É provável que nessas condições nosso jovem ficará menos inútil do que os outros. Mas como os passos que damos quando passeamos numa galeria não nos cansam tanto quanto em um caminho determinado, ainda que sejam três vezes mais, assim também nossas lições, dadas ao acaso do momento e do lugar, e de entremeio com nossas ações, decorrerão sem que se sintam. Os exercícios e até os jogos, as corridas, a luta, a música, a dança, a caça, a equitação, a esgrima constituirão boa parte do estudo. Quero que a delicadeza, a civilidade, as boas maneiras se modelem ao mesmo tempo que o espírito, pois não é uma alma somente que se educa, nem um corpo, é um homem: cabe não separar as duas parcelas do todo. Como diz Platão, é preciso não educar uma sem a outra e sim conduzi-las de par, como uma parelha de cavalos atrelados ao mesmo carro. E parece até dar mais tempo e cuidado aos exercícios do corpo, achando que o espírito se exercita ao mesmo tempo, e não ao contrário. Seja como for, a essa educação deve proceder-se com firmeza e brandura e não como é de praxe, pois, como o fazem atualmente, em lugar de interessarem os jovens nas letras, desgostam-nos pela tolice e a crueldade. Deixem-se de lado a violência e a força: nada a meu ver abastarda mais e mais embrutece uma natureza generosa. Se quereis que o jovem tema a vergonha e o castigo não o calejeis nele. Habituai-o ao suor e ao frio, ao vento, ao sol, aos acasos que precisa desprezar; tirai-lhe a moleza e o requinte no vestir, no dormir, no comer e no beber: acostumai-o a tudo. Que não seja rapaz bonito e efeminado, mas sadio e vigoroso. Menino, homem velho, sempre tive a mesma maneira de pensar a esse respeito. A disciplina rigorosa da maior parte de nossos colégios sempre me desagradou. Menos prejudiciais seriam talvez se a inclinassem para a indulgência. São verdadeiras prisões para cativeiro da juventude, e a tornam cínica e debochada antes de o ser. Ide ver esses colégios nas horas de estudo: só ouvireis gritos de crianças martirizadas e de mestres furibundos. Linda maneira de acordar o interesse pelas lições nessas almas tenras e tímidas, essa de ministrá-las carrancudo e de chicote nas mãos! Que método iníquo e pernicioso! E observa muito bem Quintiliano que uma autoridade que se exerce de modo tão tirânico comporta as mais nefastas consequências, em particular pelos castigos. Como seriam melhores as classes se juncadas de flores e folhas e não de varas sanguinolentas! Gostaria que fossem atapetadas de imagens da alegria, do júbilo, de Flora e das Graças, como mandou fazer em sua escola o filósofo Espeusipo. Onde esteja o proveito esteja também a diversão; Há que pôr açúcar nos alimentos úteis à criança e fel nos nocivos. E admirável como Platão se mostra atento em suas "Leis" à alegria e aos divertimentos da juventude da cidade e como se atarda na recomendação das corridas, dos jogos, das canções, dos saltos e das danças cujo patrocínio e orientação se confiaram aos próprios deuses: Apolo, as Musas, Minerva. Alonga-se em mil preceitos sobre os ginásios, enquanto pouco discorre acerca das letras e parece não recomendar particularmente a poesia, a não ser musicada. É preciso evitar, como inimigas da sociedade, todas as particularidades e originalidades de nossos usos e costumes. Quem não se espantaria com a compleição de Demofonte, mordomo de Alexandre, que suava à sombra e tiritava ao sol? Já vi quem fugisse do cheiro de maçã mais do que de tiros de arcabuz; e quem se amedrontasse com um rato ou vomitasse à vista de nata; e quem ao ver revolverem um colchão de penas sentia náuseas. E Germânico não podia suportar nem a vista nem o canto dos galos. Tais fenômenos podem provir de alguma predisposição natural que ignoramos, mas a meu ver obviaríamos a esses males em os atacando desde cedo. Assim o consegui em mim pela educação, com dificuldades certo, mas atualmente, à exceção da cerveja, meu paladar acomoda-se indiferentemente a tudo o que se come e bebe. Enquanto o corpo é ainda maleável, cumpre habituá-lo a toda espécie de usos e costumes. E desde que permaneça senhor de seus apetites e de sua vontade, não se hesite em tornar o jovem capaz de frequentar qualquer sociedade, no estrangeiro como em sua terra; e que mesmo, se necessário, saiba suportar desregramentos e excessos. Que sua conduta se acomode aos costumes e que possa fazer todas as coisas mas só goste de fazer as boas. Os próprios filósofos não aprovam Calístenes, que caiu em desgraça por não ter querido acompanhar seu senhor, Alexandre, o Grande, na bebida. O nosso jovem deverá rir e brincar e dar-se a excessos com o seu príncipe; quero que até na devassidão suplante seus companheiros e que não faça o mal por falta de vontade e não por carência de forças ou informação, pois "é muito diferente não querer fazer o mal e não saber fazê-lo". Foi pensando em prestar homenagem a um senhor (o mais afastado, em França, desses excessos) que perguntei em certa reunião quantas vezes se embriagara na Alemanha por conveniência dos negócios do rei. Tomou nesse sentido a pergunta e respondeu que o fizera três vezes e as contou. Conheço quem se tenha visto embaraçado no trato dos negócios com esse país, por não ter igual qualidade. Muitas vezes notei com grande admiração a maravilhosa natureza de Alcebíades, a qual lhe permitia adaptar-se facilmente a tudo, sem prejuízo da saúde, ora ultrapassando a suntuosidade dos persas ora a austeridade e a frugalidade dos lacedemônios; tão puritano em Esparta como licencioso em Jônia. "Aristipo soube satisfazer-se com todas as situações e fortunas”. Assim desejaria formar o nosso jovem: "Admiraria quem não se envergonhe de seus trapos nem se espante com a riqueza e desempenhe ambos os papéis de bom grado." Eis as minhas lições. Aproveita-as melhor quem as pratica do que quem apenas as sabe. Para aquele, ver é ouvir e ouvir é ver. "Graças a Deus", diz alguém em Platão, "filosofar não é nem muito aprender nem tratar das artes." "Foi muito mais nos costumes do que nos escritos que os filósofos aprenderam a maior de todas as artes: a de bem viver". Leão, príncipe dos fliásios, perguntou a Heraclides do Ponto, que ciência ou arte professava, ao que ele respondeu: não conheço arte nem ciência, sou filósofo. Censuraram Diógenes pelo fato de que se metesse a filosofar, ignorante como era; e ele respondeu: mais uma razão para isso. E pediu-lhe Hegésias que lhe lesse um livro. "Sois divertido", disse o filósofo, "quando tendes figos por escolher, escolheis os verdadeiros, os naturais e não os pintados; por que não escolheis igualmente para discutirdes os assuntos reais, da natureza, e não os escritos?" Estas lições, o jovem as traduzirá em ações, e as aplicará aos atos de sua vida. Ver-se-á assim se é prudente em seus cometimentos, se é bondoso e justo no seu proceder; se é sensato e gracioso no seu falar; se tem ânimo na doença, modéstia nos jogos, moderação nos prazeres, o gosto fácil no que concerne aos manjares, seja carne ou peixe, e no que respeite às bebidas, seja vinho ou água; "se seus conhecimentos lhe servem, não para mostrar o que sabe mas para ordenar seus hábitos; se se domina e obedece a si próprio”. O verdadeiro espelho de nosso pensamento é a maneira de vivermos. Zeuxidamo, a alguém que lhe perguntava por que os lacedemônios não punham por escrito o regulamento da valentia e o davam a ler aos jovens, respondeu que era porque queriam antes acostuma-los aos feitos do que às palavras. Ao fim de quinze a dezesseis anos compare-se o nosso jovem a um desses latinistas de colégio que terá levado o mesmo tempo a aprender a falar! O mundo é apenas tagarelice e nunca vi homem que não dissesse antes mais do que menos do que devia. E nisto gastamos metade da vida. Obrigam-nos durante quatro ou cinco anos a aprender palavras e a juntá-las em frases, e outros tantos a compor um longo discurso em quatro ou cinco partes; e mais cinco pelo menos a aprender a misturá-las e a combiná-las de maneira rápida e mais ou menos sutil. Deixe-se isso a quem o faz por profissão. Indo um dia a Orleães encontrei na planície, aquém de Clery, dois professores de colégio que se dirigiam a Bordéus e marchavam a cerca de cinquenta passos um do outro. Pouco atrás deles percebi uma comitiva, à frente da qual ia o falecido Conde de La Rochefoucauld. Um de meus criados indagou do primeiro professor quem era o fidalgo que vinha atrás. O professor, que não vira a comitiva e pensava aludissem a seu companheiro, deu-nos esta resposta divertida: "Não é um fidalgo, é um gramático; quanto a mim, sou um logicista." Nós que não queremos formar nem um gramático, nem um logicista, mas um fidalgo, deixemo-lo a seus lazeres; temos o que fazer alhures. Se nosso jovem estiver bem provido de conhecimentos reais, não lhe faltarão palavras; e virão por mal se não quiserem vir por bem. Há quem se desculpe por não poder exprimir as coisas belas que pretende ter na cabeça e lastime sua falta de eloquência para as revelar: é mistificação. Quereis saber o que isso significa, a meu ver? É que entrevê algumas vagas concepções que não tomaram corpo, que não pode destrinçar, e esclarecer, e por conseguinte expressar. Não se compreende a si próprio. Contemplai-o a gaguejar, incapaz de parir, vereis logo que sua dificuldade não está no parto mas na concepção, e anda ainda a lamber um embrião. Acredito, e Sócrates o diz formalmente, que quem tem no espírito uma ideia clara e precisa sempre a pode exprimir, quer de um modo quer de outro, por mímica até, se for mudo: "Não falham as palavras para o que se concebe bem". Ora, como diz outro, de modo igualmente poético embora em prosa: "Quando as coisas se assenhoram do espírito as palavras ocorrem”, ou ainda: "As coisas atraem as palavras”. Pode ignorar ablativos, conjuntivos, substantivos e gramáticas, quem é dono de sua ideia; é o que se verifica com um lacaio qualquer ou rapariga do Petit Pont, que são capazes de nos entreter do que quisermos sem se desviarem muito mais das regras da língua que um bacharel de França. Não sabem retórica nem começam por captar a benevolência do leitor ingênuo e nem se preocupam com isso. Em verdade, todos esses belos adornos se apagam ante o brilho de uma verdade simples e natural. Esses requebros servem apenas para divertir o vulgo incapaz de escolher alimento mais substancial e fino, como Afer o demonstra claramente em Tácito. Os embaixadores de Samos tinham-se apresentado a Cleômenes, rei de Esparta, com uma bela e longa arenga a fim de convencê-lo a ir à guerra contra o tirano Polícrates. Depois de os ter deixado falar à vontade, ele respondeu: "De vosso exórdio já não me lembro, nem me recordo do meio. Quanto à conclusão, não me interessa." Eis, parece-me, uma boa resposta aos discursadores bem documentados. Há outra: os atenienses deviam escolher entre dois arquitetos um para a construção de um grande edifício. Apresentou-se o primeiro, muito afetado, com um belo discurso cuidadosamente preparado acerca do trabalho que ia executar, e já o povo se manifestava a seu favor quando o segundo pronunciou apenas estas palavras: "Senhores atenienses, o que este acaba de dizer eu o farei". Pasmavam-se muitos ante a eloquência de Cícero no auge de sua força. Catão ria-se tão somente: "Temos", dizia, "um cônsul divertido". Antes ou depois, uma sentença útil, uma frase bonita vem a calhar: ainda que não se enquadrem no que precede nem no que segue, valem por si. Não sou dos que pensam que o bom ritmo faz o bom poema; alonguem se assim o entenderem uma sílaba breve, se as ideias são nele agradáveis, se há espírito e inteligência, direi que o poeta é bom, embora possa acrescentar que é também mau versificador: "Seus versos são duros, mas seu gosto é sutil". Tirem-se de uma obra, diz Horácio, todas as suas ligações e medidas ("Trocai o ritmo e a medida, invertei a ordem das palavras, encontrareis o poeta nesses trechos dispersos”) não se destruirá com isso: os próprios fragmentos continuarão belos. Foi nesse sentido que respondeu Menandro, a quem repreenderam porque não começara ainda uma comédia prometida para tal dia: "Está composta e pronta, falta só juntar os versos". Desde que Ronsard e Du Bellay deram relevo à nossa poesia francesa, não há aprendiz que não se inche de palavras e as cadencie à moda deles: "em tudo isso há mais ruído do que sentido"." Para o vulgo nunca houve tantos poetas. Mas se lhes foi fácil copiar o ritmo daqueles mestres, incapazes se mostraram de imitar as ricas descrições do primeiro e a delicada fantasia do segundo. Mas que fará o nosso jovem se o apertarem com a sofística sutil de algum silogismo, como este, por exemplo: o presunto faz beber, beber estanca a sede, logo o presunto estanca a sede? Rir-se-á, que mais vale rir que responder. Pode ainda tirar de Aristipo a divertida resposta dada em semelhante ocorrência: "por que o resolverei, se não resolvido já me embaraça?" A alguém que propunha a Cleantes essas finuras dialéticas, disse ele: "Vai divertir as crianças com essas peloticas, não desvies de seus pensamentos um homem sério". Se essas tolas argúcias - sofismas retorcidos e espinhosos - tiverem por fim convencê-lo de uma mentira serão perigosas; mas não terão consequências se forem simples farsas, e não vejo por que devam preocupa-lo. Há tolos capazes de se desviarem do caminho por um bom dito: uns "não aplicam as palavras às coisas a que pertencem e vão buscar coisas a que possam aplicar as palavras”, outros, "a fim de colocar uma frase, embicam por assuntos de que não pensavam tratar”. Prefiro amoldar a frase a meu pensamento a modificar minha ideia para a engastar. Cabe às palavras se adaptarem ao que se quer exprimir e se o francês não o pode fazer, empregue-se o gascão. Quero que o pensamento a ser comunicado domine e penetre a imaginação de quem ouve, a ponto de que não mais se lembre das palavras. Gosto de uma linguagem simples e pura, a escrita como a falada, e suculenta, e nervosa, breve e concisa, não delicada e louçã, mas veemente e brusca: "Que a expressão impressione e será certa". Uma linguagem antes difícil do que aborrecida, sem afetação, ousada, desregrada, descosida, expressiva em todos os seus aspectos, não uma linguagem pedante, fradesca, ou de advogado, mas de preferência soldadesca como Suetônio qualifica a de Júlio César, embora eu não perceba muito bem por quê. De bom grado tenho imitado a maneira excêntrica de se trajarem os jovens de hoje: manto de banda, capa ao ombro, mal esticada a meia, pois assim se dão ares de altivo desdém pelas modas estrangeiras e seus artifícios. Semelhante atitude no modo de falar me agrada ainda mais. Qualquer afetação, sobretudo com a alegria e a liberdade francesas, vai mal ao homem de corte, e em uma monarquia todos devem ser educados como cortesãos, sendo portanto recomendável que nos inclinemos um pouco para o natural e o desdenhoso. Não aprecio os tecidos em que aparecem a trama e as costuras, e em um corpo benfeito não se devem ver os ossos e as veias; "a verdade precisa falar uma linguagem simples, sem artifícios; e quem fala com afetação, quem fala com artifícios senão aquele que pretende falar afetadamente?” A eloquência que atrai por si mesma prejudica as coisas. Assim como é pequenez de espírito querer-se distinguir por maneiras estranhas de trajar, na linguagem o rebuscamento, a procura de expressões originais e de vocábulos pouco conhecidos decorrem de uma ambição escolástica e pueril. Pudesse eu usar sempre e unicamente a linguagem que se emprega nos mercados de Paris! Errava o gramático Aristófanes em criticar Epicuro por causa da simplicidade das palavras, bem como em seus discursos a perfeita clareza da expressão. Imitar alguém em sua maneira de falar é fácil, qualquer pessoa o faz sem esforço; mais árdua é a imitação da inteligência e da imaginação. Em geral quem encontra vestimenta igual pensa erroneamente que tem o mesmo corpo; no qual se engana muito. A força e os nervos não se tornam de empréstimo: enfeites e capas, sim. A maior parte das pessoas que frequento fala como eu nos Ensaios, mas não sei se pensa do mesmo modo. Os atenienses, diz Platão, falam abundantemente e com elegância: os lacedemônios são lacônicos; os cretenses têm a imaginação mais fecunda do que a linguagem; e são os privilegiados. Zenão dizia que tinha duas espécies de discípulos: uns, a que chamava "filólogos", gostavam de aprender as coisas por si e eram seus preferidos; aos outros chamava "logófilos", e não se importavam senão com as palavras. Não é que o bem falar não seja bonito e bom, mas não é tanto como o apregoam, e lamento que toda a vida se passe nisso. Desejaria em primeiro lugar conhecer bem a minha língua e em seguida as dos vizinhos com quem tenho mais relações. O latim e o grego são sem dúvida belos ornamentos, mas custam caro demais. Pois direi aqui o modo de adquiri-los mais barato que de costume, modo esse experimentado por mim mesmo. Quem quiser que o adote. Meu falecido pai, tendo procurado por todos os meios, entre homens de saber e inteligência, a melhor forma de educação, percebia os inconvenientes do método então em uso. Disseram-lhe que o tempo que levávamos a aprender as línguas que a gregos e romanos nada haviam custado era o único motivo por que não podíamos alcançar a grandeza de alma e os conhecimentos dos antigos. Não creio que essa seja a única causa, mas o que importa no caso é a solução que meu pai encontrou. Logo que desmamei, antes que se me destravasse a língua, confiou-me a um alemão, que morreu médico famoso em França e que ignorava completamente o francês, mas possuía perfeitamente o latim. Esse alemão, que meu pai mandara vir de propósito e pagava muito caro, ocupava-se continuamente de mim. Dois outros menos sábios do que ele acompanhavam-me sem cessar quando folgava o primeiro. Os três só me falavam em latim. Quanto aos outros de casa, era regra inviolável que nem meu pai, nem minha mãe, nem criados ou criadas, dissessem em minha presença senão as palavras latinas que haviam aprendido para se entenderem comigo. Excelente foi o resultado. Meu pai e minha mãe adquiriram conhecimento suficiente dessa língua para um caso de necessidade e o mesmo aconteceu com as outras pessoas que lidavam comigo. Em suma, tanto nos latinizamos que a coisa se estendeu às aldeias circunvizinhas onde ainda hoje se conservam, pelo uso, vários nomes latinos de artífices e ferramentas. Quanto a mim, aos seis anos não compreendia mais o francês ou o dialeto da terra do que o árabe. Mas sem método, sem livros, sem gramática, sem regras, sem chicote nem lágrimas, aprendera um latim tão puro quanto o do meu professor, porquanto nenhuma noção de outra língua o podia perturbar. Se por exemplo queriam dar-me um tema, à moda dos colégios, tinham que o dar em mau latim, a fim de que o vertesse para o bom. E Nicolau Gronchi, que escreveu "De comitatis romanorum", Guilherme Guerente, que comentou Aristóteles, Georges Buchanan, o grande poeta escocês, Marc Antoine Muret, reconhecido na França e na Itália como o melhor orador da época, e que foram todos meus preceptores, diziam todos que eu sabia tão bem o meu latim que temiam discutir comigo. Buchanan, que vi mais tarde no séquito do falecido Marechal de Brissac, disse-me que estava escrevendo sobre a educação das crianças e que tornava a minha como exemplo. Estava então encarregado da educação do Conde de Brissac, que depois vimos tão valoroso e bravo. Quanto ao grego quase não o compreendo. Meu pai tentou ensinar-me com método, mas não como habitualmente, antes sob forma de jogo e folguedo. Inscrevíamos as declinações em pedacinhos de papel que dobrávamos e pregávamos ao acaso, à maneira dos que aprendem aritmética ou geometria. Porque entre outras coisas lhe tinham aconselhado que me levasse a amar as ciências e o dever não pela força, mas por minha própria vontade, e que me educasse pela doçura e sem rigor nem constrangimento, dando-me inteira liberdade. E isso até a superstição, porquanto em sustentando alguns que perturba o cérebro tenro da criança acordá-la em sobressalto e arrancá-la ao sono, mais profundo nelas do que em nós, de repente, bruscamente, mandou que me acordassem ao som de algum instrumento, e nunca faltou quem o fizesse. Este exemplo basta para julgar do resto, e para pôr em evidência, também, a prudência e a afeição de meu pai, tão bom e que não teve culpa de não colher fruto que correspondesse a tão requintada cultura. Duas foram as causas: a primeira, o campo estéril, e impróprio, pois embora tivesse boa saúde e fosse de temperamento brando e fácil, era tão lerdo, mole e apático que não me podiam arrancar da ociosidade nem para brincar. O que eu via, via bem. E sob o aspecto pesado nutria pensamentos ousados e opiniões acima de minha idade. Mas tinha o espírito lento e que só trabalhava quando o excitavam. Minha compreensão era tardia, a inspiração sem vigor, e sobretudo carecia por completo de memória. Com tudo isso, não há como espantar não obtivesse meu pai algo que valesse a pena. Por outro lado, como aqueles que têm um ardente desejo de se curar seguem toda espécie de conselhos, esse excelente homem, temeroso de não poder levar a cabo a coisa que tanto desejava, acabou por se deixar influenciar pela opinião comum que segue sempre os que vão à frente, como os grous, e obedecer ao costume, por já não ter a seu lado os que lhe tinham dado as primeiras indicações na Itália. E por volta dos seis anos mandou-me para o Colégio de Guyenne, o melhor então em França. Não fora possível juntar mais cuidados aos que meu pai teve em dar-me professores particulares e atentar para minha alimentação em mais de um pormenor contra as regras do colégio. Contudo era um colégio. Meu latim, do qual perdi o hábito por falta de exercício, abastardou-se logo. E o modo inédito que haviam empregado para mo ensinar serviu apenas para me fazer pular as primeiras classes. De maneira que com treze anos tinha concluído o meu curso, como dizem, mas na verdade sem qualquer fruto que seja agora de utilidade. Meu gosto pelos livros nasceu do prazer que tive à leitura das fábulas das "Metamorfoses" de Ovídio. Aos sete ou oito anos mais ou menos fugia para lê-las, desprezando quaisquer outros divertimentos; e como a língua era minha língua materna, era o livro mais fácil que eu conhecia e o mais adequado pelo assunto à minha idade. Quanto aos Lançarotes do Lago, aos Amadis, aos Huões de Bordéus, e outras obras do mesmo gênero, com que divertem as crianças, não as conhecia sequer pelos títulos e não lhes conheço ainda o conteúdo, tão forte foi a minha obediência às proibições que me eram impostas. Com essa paixão me tornava mais descuidado no estudo das outras matérias, mas felizmente encontrei um homem inteligente e cônscio de seu dever de preceptor que soube tirar partido desses excessos e de outros semelhantes. De modo que devorei de fio a pavio a "Eneida", e Terêncio e Plauto, e as comédias italianas, sempre levado pelo que essas obras têm de agradável. Se tivesse tido a mania de mo impedir, creio que só houvera trazido do colégio ódio aos livros, como acontece com quase toda a nossa nobreza. Procedeu com inteligência, fingindo nada ver, aguçando-me a curiosidade com deixar-me ler tão somente às escondidas tais livros e obrigando-me a trabalhar, quanto ao resto, sem exagerada autoridade, pois as principais qualidades que buscava meu pai naqueles a quem me confiava eram a benevolência e a bondade de espírito. Por isso mesmo não tinha eu outro defeito senão indolência e preguiça. Não corria o risco de fazer mal, e sim o de não fazer nada. Ninguém presumia que me pudesse tornar mau; mas inútil, sim. Previam em mim a ociosidade, não a maldade. Reconheço que foi o que sucedeu. As queixas com que me enchem os ouvidos são deste gênero: preguiçoso; frio nas relações de amizade e parentesco; desinteressado dos negócios públicos. Os mais maldosos não dizem: Por que tomou? Por que não pagou? Mas sim: Por que não faz tal concessão? Por que não dá isso ou aquilo? Agradeceria muito que não me pedissem mais do que devo, mas exigem injustamente o que não devo e com bem maior rigor do que empregam em exigir deles próprios o que devem. Com tais exigências apagam todo o mérito da ação e a gratidão que pudera ganhar e que devera ser tanto maior quanto o que faço, faço-o de boa vontade, não tendo nenhuma obrigação de fazê-lo. Tenho tanto maior liberdade de dispor de minha fortuna quanto não a devo a ninguém; e de mim, porquanto sou independente. Entretanto, se quisesse encarecer o que faço, ser-me-ia fácil responder a essas censuras. E a muitos mostraria que cedem à inveja e se ofuscam menos com que não faça bastante do que com a possibilidade minha de fazer mais. Contudo, meu espírito não deixava ao mesmo tempo de ter resoluções firmes, juízos seguros e claros sobre objetos de seu conhecimento; e digeria-os sozinho, sem influência alheia, e era incapaz de me submeter à força e à violência. Direi ainda desta qualidade que tinha em criança: uma segurança na expressão, uma voz e um gesto flexíveis que me permitiam desempenhar qualquer papel? Antes da idade normal ("mal entrava eu, então no ano doze"), representei as primeiras personagens das tragédias de Buchanan, de Guerente e de Muret que dignamente se montaram no Colégio de Guyenne. Nisto, como nas demais funções de seu cargo, foi André de Gouveia, nosso diretor, o maior diretor de França; e era eu seu melhor intérprete. É este um exercício que não deixo de louvar nos jovens de boa família; vi depois príncipes nossos entregarem-se a ele, a exemplo dos antigos, e o fazerem muito bem. Na Grécia até as pessoas de categoria o podiam fazer como profissionais: revela seu plano ao ator trágico Ariston, homem de berço e fortuna; sua profissão em nada o diminuía porquanto nada tinha de desonroso na Grécia. Sempre acusei de impertinência os que condenam tais distrações, e de injustiça os que recusam a entrada de nossas cidades aos comediantes dignos, privando o povo de um prazer público. Os bons governos tratam de unir os cidadãos, de os juntar, tanto nos deveres sérios da devoção como nas festividades e jogos; assim se aumentam a solidariedade e a amizade. E não se poderia ademais conceder-lhes passatempos preferíveis a esses a que todos assistem na presença do magistrado. Acharia razoável que este e o príncipe, à sua custa, o dessem algumas vezes ao povo, com afeição e bondade paternal, e que nas cidades maiores houvesse lugares destinados a tais espetáculos que, por vezes, poderiam desviar de más ações para cuja execução se escondem os homens. Para voltar ao assunto, direi que o melhor é atrair a vontade e a afeição, sem o que se conseguem apenas asnos carregados de livros. Dão-lhes a guardar, com chicotadas, um saco de ciência, a qual, para que seja de proveito, não basta ter em casa: cabe desposar. CAPÍTULO XXVII DA LOUCURA DE OPINAR ACERCA DO VERDADEIRO E DO FALSO UNICAMENTE DE ACORDO COM A RAZÃO Não é sem motivo que atribuímos à simplicidade e à ignorância a facilidade com que certas pessoas acreditam e se deixam persuadir, pois penso ter aprendido outrora que acreditar é por assim dizer o resultado de uma espécie de impressão sobre a nossa alma, a qual a recebe tanto melhor quanto mais tenra e de menor resistência: "Assim como o peso faz pender a balança, assim a evidência determina o espírito". Quanto mais a alma é vazia e nada tem como contrapeso, tanto mais ela cede facilmente à carga das primeiras impressões. Eis por que as crianças, o povo, as mulheres e os enfermos são sujeitos a serem conduzidos pela sugestão. Por outro lado, é tola presunção desdenhar ou condenar como falso tudo o que não nos parece verossímil, defeito comum aos que estimam ser mais dotados de razão que o homem normal. Esse defeito eu o tive outrora. Se ouvia falar de almas do outro mundo, presságios, encantamentos, feitiçaria, ou de outra coisa em que não acreditasse: "sonhos, visões mágicas, milagres, feiticeiras, aparições noturnas e outros prodígios de Tessália", sentia pena desse pobre povo de que abusavam com tais fantasias. Acho agora que eu também merecia piedade. Não porque, desde então, a experiência haja acrescentado algo a minhas primeiras convicções, embora eu tenha procurado verificar as crenças que recusava, mas minha razão me impeliu a reconhecer que condenar uma coisa de maneira absoluta é ultrapassar os limites que podem atingir a vontade de Deus e a força de nossa mãe, a natureza; e que o maior sintoma de loucura no mundo é reduzir essa vontade e essa força à medida de nossa capacidade e de nossa inteligência. Chamemos ou não monstros ou milagres às coisas que não podemos explicar, não se apresentarão elas em menor número à nossa vista. Por certo observaremos que é mais o hábito do que a ciência que nos faz considerá-las naturais: "cansados, saciados do espetáculo dos céus, nós não nos dignamos mais erguer nossos olhos para esses templos de luz"; e essas mesmas coisas, se com elas deparássemos de novo, nós as acharíamos tão incríveis quanto quaisquer outras: "se agora, em virtude de uma aparição repentina, essas maravilhas se nos oferecessem pela primeira vez, que acharíamos para as comparar?" Quem nunca viu um riacho, ao deparar com o primeiro, pensou que fosse o oceano; as coisas maiores entre as que conhecemos, nós as estimamos as maiores em seu gênero: "um rio que não é muito extenso parece imenso a quem não viu maior; do mesmo modo uma árvore, e um homem, e qualquer objeto quando nada se viu maior na espécie”, "familiarizados com as coisas que cotidianamente vemos, não as admiramos mais e não procuramos entender as causas disso"," A novidade de uma coisa, mais do que sua importância, incita-nos a procurar-lhe a origem. O infinito poder da natureza deve ser julgado com mais deferência e tendo em conta nossa ignorância e nossa fraqueza. Quantas coisas pouco verossímeis são afirmadas por gente digna de fé! Se seus testemunhos não bastam para nos convencer, sejamos ao menos prudentes em nosso julgamento, pois considerá-las impossíveis é vangloriar-se de saber até onde vão a possibilidade e a impossibilidade, o que, sem dúvida, é presunção exagerada. Se aprendêssemos com exatidão a diferença entre uma coisa e outra, entre o que está contra a ordem e a natureza, e o que se situa simplesmente fora do que admitimos comumente, entre não acreditar cegamente e não duvidar com facilidade, observaríamos fielmente a regra do "nada de mais" que Quílon tanto recomenda. Quando lemos em Froissart que o Conde de Foix soube no Béarn da derrota do Rei João de Castela, em Jubera, no dia seguinte ao acontecimento, e as explicações que dá, podemos duvidar; o mesmo pode acontecer quando vemos nos "Anais" que, no próprio dia da morte do Rei Filipe de Nantes, o Papa Honorato mandou fazer-lhe funerais públicos, ordenando que assim procedessem em toda a Itália. Esses testemunhos não terão talvez autoridade bastante para nos convencer. Entretanto, se entre numerosos exemplos que cita dos antigos, Plutarco diz saber de fonte fidedigna que, no tempo de Domício, a notícia da batalha perdida por Antônio, na Alemanha (a várias Jornadas de Roma), foi publicada e espalhada no mundo inteiro no mesmo dia de sua ocorrência; se César admite que a nova de um acontecimento mais de uma vez o precedeu, não diremos deles que são pobres de espírito, que se deixaram ludibriar como o vulgo ou que não são tão clarividentes quanto nós. Pode-se exprimir uma opinião com maior delicadeza, nitidez e espírito do que Plínio, quando o quer? Impossível encontrar juízos mais bem fundamentados; nesses pontos não poderíamos excedê-lo, e não falo aqui de seu saber tão extenso, que entretanto me interessa menos. Contudo, não há estudante que o não tache de inexatidão e não pretenda ensinar-lhe alguma coisa acerca do progresso das obras da natureza. Quando lemos em Bouchet os milagres das relíquias de Santo Hilário, vá ainda que sejamos incrédulos, pois não tem o autor autoridade suficiente para que o aceitemos sem prova. Mas condenar ao mesmo tempo todos os fatos semelhantes que nos são referidos, parece-me singular presunção. Santo Agostinho, esse grande doutor da Igreja, afirma ter presenciado em Milão uma criança cega recuperar a vista ao tocar nas relíquias de São Gervásio e São Protásio: e diz que uma mulher cancerosa foi curada em Cartago com o sinal da cruz que lhe fez uma recém batizada; e que Hespério, um de seus familiares, expulsou os espíritos que frequentavam sua casa com um pouco de terra trazida do Santo Sepulcro; e que essa terra, conduzida mais tarde à Igreja, devolveu subitamente o uso de seus membros a um paralítico; e que uma mulher, durante uma procissão, em levando aos olhos o ramalhete com o qual tocara a urna de Santo Estêvão, recobrou a vista de há muito perdida; e cita outros casos milagrosos a que pessoalmente assistiu. Que diremos dele, que os afirma, e dos Santos Aurélio e Maximino, cujos testemunhos invoca? Diremos que se trata de ignorantes e de simples de espírito, ou de perversos e impostores? Haverá em nosso século alguém assaz imprudente para se comparar a ele, tanto quanto à virtude e à piedade como quanto à inteligência e à capacidade? "Ainda que não trouxessem nenhum argumento razoável, eles me persuadiriam com a sua autoridade". É ousadia perigosa e de possíveis consequências sérias, fora mesmo do que tem de temerário e absurdo, desprezar o que não compreendemos. Que após terdes acertado, com vosso julgamento impecável, os limites entre o verdadeiro e o falso, sobrevenham, como é inevitável, fatos inegáveis, ultrapassando ainda mais em sobrenatural os que recusais, e eis-vos obrigado a vos desmentirdes. A meu ver o que acarreta tanta confusão em nossas consciências, nestes tempos de perturbações religiosas, é esse abandono parcial que fazem os católicos de sua fé. Imaginam que são moderados e sensatos cedendo aos adversários no que diz respeito a certos pontos em litígio; não veem a vantagem que lhes dão em bater em retirada, e quanto essa desistência incita os outros a prosseguirem, pois os pontos em que cedem os católicos e que lhes parecem de nonada podem ao contrário ser de grande importância. Ora, é necessário, em tudo, submetermo-nos aos poderes eclesiásticos que reconhecemos; ou tudo lhes recusarmos. Não cabe a nós determinar no que lhes devemos ou não obediência. Mais ainda (e posso dizê-lo porque o experimentei, tendo outrora usado essa liberdade de eliminar certas práticas em relação às quais julgava não dever observar os deveres impostos pela Igreja, porque os achava demasiado inúteis ou demasiado singulares, e entretendo-me com homens que sabiam a fundo a ciência teológica me foi demonstrado repousarem eles sobre fundamentos de primeira ordem e seriedade): é unicamente por tolice e ignorância que os tratamos com menos deferência do que o resto. Lembremos em quantas contradições tem caído o nosso julgamento! Quantas coisas que ontem considerávamos artigos de fé, hoje julgamos fábulas! A glória e a curiosidade são dois flagelos de nossa alma; esta nos impele a meter o nariz em tudo; aquela nos proíbe deixar seja o que for sem decisão ou solução. CAPÍTULO XXVIII DA AMIZADE Contemplando o trabalho de um pintor que tinha em casa, tive vontade de ver como procedia. Escolheu primeiro o melhor lugar no centro de cada parede para pintar um tema com toda a habilidade de que era capaz. Em seguida encheu os vazios em volta com arabescos, pinturas fantasistas que só agradam pela variedade e originalidade. O mesmo ocorre neste livro, composto unicamente de assuntos estranhos, fora do que se vê comumente, formado de pedaços juntados sem caráter definido, sem ordem, sem lógica e que só se adaptam por acaso uns aos outros: "o corpo de uma bela mulher com uma cauda de peixe". Quanto ao segundo ponto fiz, pois, como o pintor, mas em relação a outra parte do trabalho, a melhor, hesito. Meu talento não vai tão longe, e não ouso empreender uma obra rica, polida e constituída em obediência às regras da arte. Eis por que me veio à ideia tomar de empréstimo a Etienne de Ia Boétie algo que honrará, em suma, o restante. É um ensaio a que deu o título de "Servidão Voluntária", mas que outros, ignorando-o, batizaram mais tarde, e com razão, "Contra Um". Escreveu-o La Boétie em sua adolescência, a fim de se exercitar em favor da liberdade e contra a tirania. Há muito circula esse ensaio em mãos de gente séria, entre a qual goza de grande e merecida reputação, pois é cheio de nobreza e de argumentação tão sólida quanto possível. E não é porque o autor não pudesse ter escrito melhor ainda. Se na idade, já mais madura, em que o conheci, tivesse, como eu, concebido a intenção de escrever seus pensamentos, houvera deixado coisas notáveis, bem próximas daquelas de que se orgulha a antiguidade, pois, em particular quanto a isso, era dotado como ninguém. Esse ensaio, que nunca reviu, creio, depois de composto é a única coisa que sobra dele; e por efeito do acaso, juntamente com alguns comentários acerca desse edito de janeiro tão famoso na história de nossas guerras civis, comentários que encontrarão talvez lugar alhures. Eis tudo o que, além do catálogo das obras que possuía e que publiquei, pude recolher, eu a quem, por afetuosa atenção, ao render o último suspiro, entregou sua biblioteca e seus papéis. Por isso sou muito apegado a esse ensaio, tanto mais quanto foi o ponto de partida de nossas relações. Fora-me comunicado muito antes que conhecesse o autor cujo nome só então me foi revelado, e assim se preparou essa amizade que nos uniu e durou quanto Deus o permitiu, tão inteira e completa que por certo não se encontrará igual entre os homens de nosso tempo. Tantas circunstâncias se fazem necessárias para que esse sentimento se edifique, que já é muito vê-lo uma vez cada três séculos. A natureza parece muito particularmente interessada em implantar em nós a necessidade das relações de amizade e Aristóteles afirma que os bons legisladores se preocupam mais com essas relações do que com a justiça. É verdade que a amizade assinala o mais alto ponto de perfeição na sociedade. Em geral sentimentos a que damos o nome de amizade, nascidos da satisfação de nossos prazeres, das vantagens que usufruímos, ou de associações formadas em vista de interesses públicos ou privados, são menos belos, menos generosos, e participam tanto menos da amizade, a qual tem outras causas, visa a outros fins. Essas afeições, que se classificavam outrora em quatro categorias, segundo fossem ditadas pela natureza, a sociedade, a hospitalidade ou as exigências dos sentidos, nem em conjunto nem isoladamente atingem o ideal. Nas relações entre pais e filhos é mais o respeito que domina. A amizade nutre-se de comunicação, a qual não pode estabelecer-se nesse domínio em virtude da grande diferença que entre eles existe, de todos os pontos de vista; e esse intercâmbio de ideias e emoções poderia por vezes chocar os deveres recíprocos que a natureza lhes impôs, pois, se todos os pensamentos íntimos dos pais se comunicassem aos filhos, ocorreriam entre eles familiaridades inconvenientes. Mais ainda: não podem os filhos dar conselhos ou formular censuras a seus pais, o que é entretanto uma das primeiras obrigações da amizade. Entre certos povos é costume que os filhos matem os pais; entre outros são os pais que matam os filhos, a fim de evitar, como acontece às vezes, que se constituam em obstáculos recíprocos, porque a natureza pela eliminação de um libera o outro. Houve filósofos que afetaram não levar em consideração os laços de família. Aristipo, por exemplo, a quem falavam da afeição que devia aos filhos, saídos dele, pôs-se a cuspir dizendo que isso também saía dele. E acrescentava que se engendramos filhos engendramos igualmente piolhos e vermes. Outro, que Plutarco procurava reconciliar com o irmão, respondeu: "Não o estimo mais, apenas porque saiu do mesmo buraco". E, em verdade, um belo nome e digno da maior afeição o nome de irmão; e por isso La Boétie e eu o empregamos quando nos tornamos amigos; mas na realidade, a comunidade de interesses, a partilha dos bens, a pobreza de um como consequência da riqueza de outro, destemperam consideravelmente a união formal. Em devendo os irmãos, para vencer neste mundo, seguir o mesmo caminho, andar com passo igual, inevitável se torna que se choquem amiúde. Mais ainda: é a correspondência dos gostos que engendra essas verdadeiras e perfeitas amizades e não há razão para que ela se verifique, entre pai e filho, ou entre irmãos; os quais podem ter gostos totalmente diferentes. É meu filho, meu parente, mas isso não impede que se trate de um indivíduo pouco sociável, um mau, um tolo. Nas amizades que nos impõem a lei e as obrigações naturais, nossa vontade não se exerce livremente; elas não resultam de uma escolha, e nada depende mais de nosso livre-arbítrio que a amizade e a afeição. E não digo isso porque não tenha tido a oportunidade de conhecer o que de melhor pode haver como amizade familiar, porquanto meu pai foi o melhor dos pais, o mais indulgente, e assim permaneceu até a mais avançada velhice. Nossa família era reputada pela excelência das relações entre pais e filhos, e a concórdia entre irmãos era nela exemplar: "conhecido eu mesmo pelo amor paternal que dediquei a meus irmãos". Nossa afeição pelas mulheres, embora proveniente de nossa escolha, não poderia comparar-se à amizade nem substituí-la. Nos seus impulsos, confesso-o: "pois somos também conhecidos da deusa que mistura um doce amargar às suas preocupações", ela é mais ativa, mais aguda, mais áspera; é uma chama temerária e volúvel, agitada e versátil; chama febril, sujeita a intermitências de temperatura e que só nos prende por uma parte de nós. O calor da amizade estende-se a todo o nosso ser; é geral e igual; temperada e serena; soberanamente suave e delicada, nada tendo de áspero nem de excessivo. O amor é antes de mais nada um desejo violento do que nos escapa: "como o caçador perseguindo a lebre, no frio e no calor, por montanhas e vales; desdenha-a ao alcançá-la e só a deseja enquanto a persegue na fuga". Quando o amor reveste as formas da amizade, o que ocorre quando se estabelece uma concordância das vontades, ele se esvai ou definha. O gozo apaga-o, porque seu objetivo é carnal, e a saciedade o extingue. A amizade, ao contrário, cresce com o desejo que dela temos; eleva-se, desenvolve-se e se amplia na frequentação, porque é de essência espiritual e a sua prática apura a alma. Juntamente com essa perfeita amizade, conheci outrora essas afeições passageiras acerca das quais não falarei porquanto as descrevem demasiado bem estes versos. Estas duas paixões, eu as experimentei simultaneamente, sem as esconder uma da outra, mas sem que jamais tampouco houvesse competição entre elas: cheia de nobreza, manteve-se sempre a primeira nas regiões elevadas, olhando desdenhosamente para a outra, que, quase invisível, pairava muito mais baixo. Quanto ao casamento, além de ser um negócio em que nossa liberdade se restringe às primeiras gestões e cuja duração indeterminada nos é imposta, conclui-se geralmente em vista de outros objetivos e mil e um incidentes estranhos e imprevisíveis se misturam a ele, o que basta para perturbar o curso da mais viva afeição e romper o fio a que ela se prende. Ao passo que, quando se trata de amizade, nada intervém senão ela e ela unicamente. A tanto se acrescenta não estarem, em geral, as mulheres em condições de participar de conversas e trocas de ideias, por assim dizer necessárias à prática dessas relações de ordem tão elevada que a amizade cria; a alma delas parece carecer do vigor indispensável para sustentar o abraço apertado desse sentimento de duração ilimitada e que tão fortemente nos une. Por certo, se se pudesse formar com uma mulher, livre e voluntariamente, semelhante ligação, em que não apenas a alma provasse plena satisfação, mas também o corpo encontrasse seu prazer, em que cada qual assim se entregasse por inteiro, a amizade seria mais perfeita e total; mas não há exemplo de mulher que a tanto tenha chegado e, de comum acordo, todas as escolas filosóficas da antiguidade concluíram ser isso impossível. Esse outro gênero de licenciosidade contra a natureza que era permitida entre os gregos, mas que nossos costumes reprovam com razão, exigindo como exigia certa diferença de idade e papéis diferentes, não atendia muito mais ao entendimento perfeito e à conformidade de sentimentos a que a amizade aspira: "Que significa afinal esse amor de amizade? Por que não se ama de amor nem um adolescente feio nem um belo ancião?"! E não me desmentirão os filósofos da Academia, pois tomo de empréstimo sua própria descrição: esse delírio, dizem eles, inspirado pelo filho de Vênus, que desde logo se apodera do amante e faz com que se entregue, sobre a flor de mocidade a que se afeiçoou, aos gestos mais extravagantes e apaixonados que pode insuflar um ardor excessivo, era simplesmente provocado pela beleza das formas exteriores e uma falsa semelhança com o ato do amor. Não era pelo espírito que o adolescente, objeto dessa paixão, podia inspirá-lo, não estava em condições de mostrá-lo, porque jovem demais e em vias de desenvolvimento. Se esses transportes tinham por objeto um indivíduo de sentimentos vulgares, dinheiro, presentes, honrarias, e outros favores igualmente pouco recomendáveis e que, de resto, tais filósofos condenavam, eram os meios postos em prática para vencer quaisquer resistências; se o indivíduo era de caráter mais elevado, faziam-se também os meios mais honrosos: ensinamentos filosóficos que propugnavam respeito à religião, a obediência às leis, o devotamento à pátria até o sacrifício da vida, a coragem, a sabedoria, a justiça. Era então pelas graças do espírito e a elevação da alma, compensando a beleza física já gasta, que o amante procurava ser aceito por aquele a quem propunha uma espécie de associação mental na esperança de acordo mais sério e duradouro. Realizada a ligação, ocorria um momento em que o espírito acordava no ser amado sob a influência das qualidades morais do amante. Tal resultado não era imediato, pois nossos filósofos não impunham ao amante nenhum limite de tempo e lhe deixavam toda latitude para alcançar seus fins, admitindo que tais condições eram ainda mais normais no objeto da afeição, porquanto descobrir naquele com quem se ligava essas qualidades que constituíam uma beleza escondida e ser por elas seduzido era coisa longa e difícil. O desejo de uma concepção espiritual devia ser o principal: a beleza física não passaria de acidente. No amante o contrário era o certo e por isso davam os filósofos preferência ao papel do amado e pensavam que assim quisessem os deuses. Daí a censura ao poeta Ésquilo que invertera esses papéis nos amores de Aquiles e Pátroclo, dando o papel de amante a Aquiles, o qual imberbe e adolescente fora o mais belo dos gregos. Desta ligação moral e física, e da afeição dela decorrente, elemento essencial e confessável, diziam eles que resultavam consequências muito úteis tanto para os interessados como para o país. Que contribuíam antes de mais nada para o fortalecimento da nação que aceitava o costume, e se constituía em principal defesa da justiça e da liberdade, como o testemunhavam os salutares amores de Harmódio e Aristogíton. Daí, tacharem-na de divina, não tendo sido hostilizada senão pelos tiranos e a covardia do povo. Todavia, pode-se alegar em favor da Academia o fato de que tais amores acabavam por se tornar amizades, o que se adapta bastante bem à definição que os estoicos dão do amor: "O amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza". Volto à minha tese que diz respeito a uma amizade mais natural e estimável: "A amizade atinge sua irradiação total na maturidade da idade e do espírito". Em suma, isso a que chamamos comumente amigo e amizade não passam de ligações familiares, travadas ao sabor da oportunidade e do interesse e por meio das quais nossas almas se entretêm. Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu. E mais do que poderia dizer, de uma maneira geral e no caso em apreço, intervém em ligações dessa natureza uma força inexplicável e fatal que eu não saberia definir. Nós nos procurávamos antes de nos termos visto, pelo que ouvíamos um acerca do outro, e nascia em nós uma afeição em verdade fora de proporções com o que nos era relatado, no que vejo como que um decreto da Providência. Abraçávamo-nos pelos nossos nomes e em nosso primeiro encontro casual em Bordéus, por ocasião de uma festa pública e em numerosa companhia, sentimo-nos tão atraídos um pelo outro, já tão próximos, já tão íntimos que desde então não se viram outros tão íntimos como nós. La Boétie escreveu em latim uma sátira que se publicou, na qual justifica e explica como nossa amizade tão repentina alcançou tão rapidamente esse grau de perfeição. Devia durar tão pouco, formara-se tão tarde (éramos ambos homens feitos e ele um pouco mais velho do que eu) que não havia tempo a perder e não podia essa amizade tomar por modelo outras amizades banais e moles que são necessariamente precedidas de frequentação mais ou menos prolongada. A nossa foi única no gênero e deve-se tão somente a si própria. Não ocorreu em consequência de um fato específico, ou de dois, de três ou de mil; a ela fomos levados por não sei que atração total, a qual em se assenhoreando de nossas vontades as impeliu a um impulso simultâneo e irresistível de se perderem uma na outra, de se fundirem em uma só. E digo "perderem-se" porque na verdade essa associação de nossas almas se efetuou sem reserva de espécie alguma; nada tínhamos mais que nos pertencesse pessoalmente, que fosse dele ou meu. Quando, após a condenação de Tibério Graco, em presença dos cônsules romanos que intentavam processo contra os que o haviam acompanhado, perguntou Lélio a Caio Blóssio, o mais íntimo amigo do condenado, até que ponto teria acedido às solicitações de Graco, respondeu-lhe Blóssio: - "Até o fim." - "Como até o fim? E se houvesse mandado incendiar os templos?" - "Jamais o houvera feito." - "Mas se o fizesse?" - "Eu obedeceria." Amigo de Graco em toda a força do termo, como no-lo dizem os historiadores, não temia ofender os cônsules com uma resposta tão ousada e não queria que pensassem não ter ele absoluta certeza da vontade de seu amigo. Os que consideram essa resposta sediciosa não compreendem o ascendente que ele exercia sobre tal vontade, o conhecimento que dela tinha e a segurança do que podia ser. Não conseguem entender esse mistério: Graco e ele eram amigos e mais amigos do que cidadãos, e mais do que amigos ou inimigos de seu país. Sua ambição, seus projetos subversivos vinham depois da amizade; tinham-se dado inteiramente um ao outro, suas vontades marchavam lado a lado. Imaginai-os guiados pela virtude e a razão - e não poderia ser de outro jeito - e convireis em que a resposta de Blóssio foi a que devia ser. Se tivessem divergido em suas ações, não teriam sido amigos um do outro, da maneira por que compreendo a amizade. Ademais, essa resposta não significa muito mais do que se eu afirmasse que, em me vindo a mim mesmo vontade de matar minha filha, eu o faria. Isso não quer dizer que semelhante ideia esteja nas minhas intenções, pois não duvido um só instante de meu domínio sobre a minha vontade, como não ponho em dúvida a deste meu amigo. Todos os argumentos do mundo não me tirarão a certeza que tenho de suas intenções e de sua maneira de pensar. Nenhuma de suas ações poderia ser-me apresentada sem que de imediato lhe percebesse o móvel. Nossas almas caminharam tão completamente unidas, tomadas uma pela outra de tão ardente afeição, essa afeição que penetra e lê no fundo de nós mesmos, que não somente eu conhecia a sua como a minha, mas teria, nas questões de meu interesse pessoal, mais confiança nele do que em mim mesmo. Não se ponham no mesmo plano as amizades comuns; conheço-as tão bem quanto qualquer outro e algumas das mais perfeitas no gênero, mas seria um erro confundir-lhes as regras. Nessas outras amizades há sempre que segurar as rédeas e caminhar com prudência; o nó da união não é de tal solidez que não se deva desconfiar dele. "Amai", dizia Quílon, "como se tivésseis um dia que odiar, odiai como se tivésseis de amar." Este princípio, abominável no caso de uma amizade exclusiva que nos possua por inteiro, é salutar quando se trata dessas amizades verificáveis no curso habitual da existência e às quais se aplicam estas palavras de Aristóteles: "á meus amigos, um amigo é coisa que não existe". Entre amigos, unidos por esse nobre sentimento, os serviços e favores, elementos essenciais às outras amizades, não entram em linha de conta e isso porque as vontades intimamente fundidas são uma só vontade. Assim como a afeição que tenho por mim não se amplia com um serviço que preste a mim mesmo (embora os estoicos afirmem o contrário); assim como não sou grato a mim mesmo do serviço prestado por mim mesmo, assim também a união de tais amigos atinge tal perfeição que os leva a perder a ideia de se deverem alguma coisa, e odiar e rechaçar todas essas palavras que tendem a estabelecer uma divisão ou diferença, como o favor, obrigação, reconhecimento, pedido, agradecimento e outras. Efetivamente, em tudo lhes sendo comum, vontade, pensamento, maneira de ver, bens, mulheres, filhos, honra e até a vida, e em procurando ser apenas uma alma em dois corpos, na expressão muito certa de Aristóteles, nada se podem pedir ou dar. Eis por que os legisladores, com o fito de emprestar ao casamento uma vaga semelhança com essa ligação de essência divina, proíbem as doações entre marido e mulher, tentando assim levar-nos a entender que o que é de cada um deve ser de ambos e que nada do que lhes pertence se pode dividir ou atribuir pessoalmente a um dos cônjuges. Se nessa amizade a que me refiro, um pudesse dar alguma coisa ao outro, o benfeitor é que seria o favorecido. Colocando ambos acima de tudo a felicidade de obsequiar o outro, quem dá a seu amigo a oportunidade de fazê-lo é quem se mostra mais generoso, pois lhe outorga a satisfação de realizar o que mais lhe aprazo Quando o filósofo Diógenes precisava de dinheiro dizia que ia reclamá-lo dos amigos, e não que lhes ia pedir. A fim de exemplificar com um fato esse estado de alma, vou apelar para os antigos. O corintiano Eudâmidas tinha dois amigos: Charixênio de Licíon e Areteu de Corinto. Era pobre e eles ricos. Às vésperas de morrer, assim redigiu seu testamento: "Lego a Areteu o cuidado de tomar conta de minha mãe e suprir-lhe as necessidades durante a velhice; a Charixênio a obrigação de desposar minha filha e constituir-lhe um dote tão elevado quanto possível. No caso em que um deles venha a morrer, lego sua parte ao outro". Os primeiros que viram o testamento muito caçoaram dele, mas os herdeiros o aceitaram com uma alegria espantosa. Vindo a falecer Charixênio cinco dias depois, Areteu substituiu-o na parte que lhe cabia e tratou cuidadosamente do sustento da mãe; e, elevando-se seu patrimônio a cinco talentos, deu dois e meio à sua própria filha, que era filha única, e dois e meio de dote à filha de Eudâmidas. E as casou ambas no mesmo dia. Este exemplo seria perfeito sem o número de amigos, pois essa perfeita amizade é indivisível. Cada qual se entrega tão inteiramente ao outro que nada resta por dividir. Ao contrário, lamenta não ser duplo ou triplo ou múltiplo e não ter várias almas para as entregar todas ao mesmo. As amizades comuns podem dividir-se: pode-se apreciar a beleza em certo amigo, e noutro o bom gênio. Num a liberalidade, noutro o modo por que se conduz como pai, e em outro ainda sua afeição fraternal etc. Mas essa amizade que nos enche a alma e a domina não pode subdividir-se. Se temos dois amigos e ambos ao mesmo tempo pedem socorro, a quem acudiremos? Se solicitam favores antagônicos, qual deles atenderemos? Se um nos exige silêncio acerca de alguma coisa que interessa ao outro, que faremos? Com um amigo único que ocupe em nossa vida lugar preponderante estamos desobrigados de tudo. O segredo que jurei não comunicar a ninguém, posso, sem ser perjuro, comunica-lo a quem não é outro senão eu mesmo. Já é grande milagre dobrar-se assim. Os que falam de triplicar-se não lhe percebem a grandeza. Nada que possui seu semelhante é extremo. Quem supõe que, tendo dois amigos ama tanto um quanto o outro, e tanto quanto se amam entre si e quanto o amam igualmente, imagina ser possível multiplicar e transformar em confraria essa coisa única e homogênea tão difícil de encontrar no mundo. A história de Eudâmidas o confirma: emprega seus amigos segundo suas necessidades e com isso lhes outorga um favor que testemunha sua amizade para com eles; dá-lhes generosamente os meios de lhe serem úteis e a afeição que lhes dedica é muito maior ainda que a de Areteu. Em suma, trata-se de sensações incompreensíveis a quem não as sentiu e que fazem com que eu aprecie tanto a resposta daquele jovem soldado a quem Ciro perguntava quanto queria pelo cavalo com o qual acabara de ganhar uma corrida, e se o trocaria por um reino: "Seguramente não, senhor, e no entanto eu o daria de bom grado se com isso obtivesse a amizade de um homem que eu considerasse digno de ser meu amigo". E estava certo ao dizer "se", pois se encontramos facilmente homens aptos a travar conosco relações superficiais, o mesmo pão se verifica quando procuramos uma intimidade sem reservas. E preciso então que tudo seja límpido e ofereça segurança total. No que concerne às ligações que se sustentam por um só ponto, basta atentar para o que é suscetível de comprometer a solidez desse ponto. Não me importa a religião de meu médico ou de meu advogado, porquanto nada tem a ver com os serviços que deles espero. Assim penso em relação à minha criadagem. Não me informo acerca da castidade de um lacaio, quero saber somente se é eficiente; se preciso de um palafreneiro, não me preocupo em verificar se é jogador e sim se não é imbecil; pouco se me dá seja meu cozinheiro um desbocado, conquanto saiba cozinhar; aliás, não me meto a ensinar às gentes o que devem fazer; outros se encarregam disso. Digo simplesmente o que faço: "Assim procedo; quanto a vós, fazei como entenderdes". A familiaridade da mesa associo a pessoa agradável, não o sábio; para o leito procuro a beleza e não a bondade; para conversar, o homem competente, ainda que careça de nobreza de alma. E em tudo penso da mesma maneira. Assim como aquele que foi encontrado montado a cavalo numa vassoura brincando com os filhos, pedia a quem o surpreendera que nada dissesse a ninguém antes de ser pai, na convicção de que os sentimentos, que tal qualidade faria nascer nele, o tornariam mais apto a entender a infantilidade, gostaria de me dirigir aqui somente a pessoas que tenham conhecido aquilo de que falo, não ignorando eu, embora, que tal amizade é rara e não esperando portanto deparar com um bom juiz. As próprias obras que a esse respeito nos legou a antiguidade parecem-me insossas, se comparadas com os sentimentos que experimento e cujos efeitos ultrapassam até os preceitos dos filósofos: "Enquanto for clarividente, não encontrarei nada comparável a um terno amigo”. Dizia Menandro que podia estimar-se feliz quem tivesse encontrado a sombra de um amigo. E tinha por certo razão de o dizer mesmo que houvesse conhecido tal felicidade. Se, com efeito, comparo o resto de minha vida, a qual graças a Deus me foi suave e fácil, isenta de aflições penosas (à exceção da perda de meu amigo), cheia de tranquilidade de espírito, tendo-me contentado com as vantagens que devo à natureza e a minha condição social sem procurar outras; se comparo minha vida inteira aos quatro anos durante os quais me foi dado gozar a companhia tão amena de La Boétie, ela não passa de fumaça. E uma noite escura e aborrecida. Desde o dia em que o perdi, "dia infeliz, mas que honrarei sempre, porquanto tal foi a vontade dos Deuses", não faço senão me arrastar melancolicamente. Os próprios prazeres que se me oferecem, em vez de me consolar ampliam a tristeza que sinto da perda, pois éramos de metade em tudo e parece, hoje, que lhe sonego a sua parte: "assim decidi não mais participar de nenhum prazer, agora que já não tenho aquele com quem tudo dividia”. Já me acostumara tão bem a ser sempre dois que me parece não ser mais senão meio: "como uma morte prematura roubou-me a melhor parte de minha alma, que fazer com a outra? Um só e mesmo dia causou a perda de ambos". Nada fazia, nem um só pensamento tinha que não lhe percebesse a ausência, como certamente, em caso semelhante, eu lhe faltaria. Porque se me ultrapassava em méritos de toda espécie e em virtude, também me sobre-excedia nos deveres da amizade: "Por, que se envergonhar? Por que deixar de chorar tão querida alma?". "O irmão, como sou infeliz por te haver perdido! Contigo pereceram de um só golpe todas as nossas alegrias e esse encanto que tua suave amizade deitava em minha vida. Ao morrer, irmão, despedaçaste toda a minha felicidade; minha alma desceu ao túmulo com a tua. Desde que não és mais, disse adeus ao estudo e a todas as coisas da inteligência". "Não poderei mais falar-te e ouvir-te? Nunca mais te verei, então, ó irmão mais caro do que a vida! Ah, ao menos amar-te-ei sempre". Projetara incluir aqui seu "Discurso sobre a Servidão Voluntária"; mas esse escrito foi posteriormente publicado. Os que o publicaram, indivíduos que procuram perturbar nossa situação política atual, e modificá-la, sem saber se a melhorarão, fizeram-no de má-fé, intercalando-o entre outros escritos de autoria alheia e concebidos dentro de um mau espírito, razão pela qual desisti de meu intento. Não querendo entretanto que sobre a memória do autor pese a opinião desfavorável de quem não o viu de perto nas suas opiniões e ações, advirto que este ensaio, que foi composto na sua juventude e tão somente a título de exercício, ventila um tema frequentemente tratado nos livros. Não ponho em dúvida que La Boétie pensasse o que escrevia, pois era demasiado consciencioso para mentir, mesmo em se divertindo. E sei também que se pudesse escolher teria preferido nascer em Veneza a nascer em Sarlac; e com razão. Mas obedecer e submeter-se às leis sob as quais vivia era um princípio que, para ele, primava entre os demais. Nunca houve melhor cidadão; ninguém desejou mais a tranquilidade de seu país, nem foi mais inimigo das perturbações e das ideias novas que ocorreram em seu tempo. Muito mais se devotara a extingui-las do que a fornecer argumentos que lhes favorecessem a propagação. Seu espírito era moldado sobre o modelo de séculos diferentes dos nossos. Em troca dessa obra apresentarei outra, mais livre e leve, elaborada nessa mesma fase de sua vida. CAPÍTULO XXX DA MODERAÇÃO Como se tivéssemos infeccioso o tato, ocorre-nos corromper em as manuseando as coisas que, em si, são belas e boas. A virtude pode tornar-se vício se ao seu exercício nos dedicamos com demasiada avidez e violência. E jogam com as palavras os que dizem não haver excesso na virtude porque não há virtude onde há excesso: "Não é sábio o sábio, nem justo o justo, se seu amor à virtude é exagerado"! Trata-se de uma sutileza filosófica. Pode-se dedicar imoderado amor à virtude e ser excessivo em uma causa justa. Preconiza o apóstolo, a esse respeito, um equilíbrio razoável: "Não sejais mais comportados do que o necessário; ponde alguma sobriedade no bom comportamento". Vi um dos grandes deste mundo prejudicar a religião por se entregar a práticas religiosas incompatíveis com a sua condição social. Aprecio os caracteres moderados e prudentes: ultrapassar a medida, ainda que no sentido do bem, é coisa que me espanta, se não me incomoda, e a que não sei como chamar. Mais estranha do que justa se me afigura a conduta da mãe de Pausânias que foi a primeira a denunciá-lo e a contribuir com a primeira pedra para a morte do filho: nem tampouco aprovo a atitude do ditador Postúmio mandando matar o filho que, no entusiasmo da mocidade, saíra das fileiras para atacar o inimigo, com felicidade aliás. Não me sinto propenso nem a aconselhar nem a imitar tão bárbara virtude, e tão cara. Falha o archeiro que ultrapassa o alvo da mesma maneira que aquele que o não alcança. Minha vista se perturba se de repente enfrenta uma luz violenta, e então vejo tão pouco como na escuridão. Calicles diz, em Platão, que a filosofia levada ao extremo é prejudicial e aconselha que não nos dediquemos a ela além dos limites de sua utilidade. Praticada com moderação é agradável e cômoda; mas se ultrapassa tais limites, ela acaba tornando o homem insociável e viciado, desdenhoso da religião e das leis que nos governam, inimigo da boa conversação, dos prazeres permitidos, incapaz de exercer funções públicas, de prestar socorro a alguém e a si próprio, bom para ser impunemente esbofeteado. Calicles tem razão: levada ao exagero, a filosofia escraviza nossa franqueza natural e, mediante sutilezas importunas, nos desvia do belo caminho que a natureza nos traça. A amizade que dedicamos às nossas mulheres é legítima. Não deixa entretanto a teologia de freá-la e de restringi-la. Creio ter lido outrora em Santo Tomás um trecho em que, entre outras razões alegadas contra o casamento de parentes próximos, havia esta: a possibilidade de ser a amizade, por uma mulher nessas condições, imoderada. Porque se à afeição inteira, perfeita e natural do marido pela mulher se acrescenta ainda a do parentesco, é de se temer que a sobrecarga arraste o homem para além do razoável. As ciências que regem os costumes, como a teologia e a filosofia, tudo controlam. Não há ato privado e secreto que não conheçam e que escape à sua jurisdição. Errados os que lhe censuram tal ingerência, pois nisso se assemelham às mulheres que se entregam a todas as fantasias, mas se envergonham de se mostrar ao médico. Que os maridos - se ainda existem demasiado propensos às relações conjugais - saibam que esses prazeres são reprovados quando não há moderação e que assim também podem pecar por licenciosidade e desregramento tal qual nos casos de relações ilegítimas. As carícias vergonhosas a que a paixão pode impelir no ardor dos primeiros transportes, em se tratando de nossas mulheres, são não apenas indecentes mas ainda prejudiciais. Que não seja, ao menos, por nosso intermédio que aprendam o despudor. Para as nossas necessidades não precisam ser mais sabidas do que são. Quanto a mim, nunca agi senão de maneira mais simples e natural. O casamento é uma ligação consagrada pela religião e o respeito; eis por que o prazer que dele auferimos deve ser um prazer recatado, sério, até certo ponto austero; deve ser um ato de volúpia particularmente discreto e consciencioso. Sendo o seu objetivo essencial a procriação, há quem duvide de sua legitimidade se não tivermos a esperança de um fruto, como no caso de estar a mulher grávida ou ser demasiado idosa. Trata-se então de um homicídio, segundo Platão. Em certos povos, em particular entre os muçulmanos, é abominável ter relações sexuais com uma mulher grávida. E há quem reprove igualmente qualquer aproximação com a mulher nas épocas de suas regras. Zenóbia somente dava satisfação ao marido em vista da concepção. Deixava-o em seguida divertir-se com outras durante a gravidez e só o aceitava novamente depois do parto. Eis um belo exemplo de casamento. É provável que Platão tenha colhido em algum poeta esfaimado de prazeres a seguinte história: Júpiter, de uma feita, andava em tal estado de excitação que, sem esperar que sua mulher alcançasse o leito, a possuiu no chão mesmo, e com a violência do prazer esqueceu as grandes e importantes resoluções que acabara de tomar em sua corte celeste, de acordo com os outros deuses; e vangloriava-se do fato dizendo que a sensação de então fora tão grande quanto a que tivera ao desvirginá-la às escondidas dos pais. Os reis da Pérsia admitiam que suas mulheres lhes fizessem companhia nos festins, mas quando o vinho começava a esquentar os espíritos e que não podiam mais conter-se, mandavam-nas de volta a seus apartamentos a fim de que não compartilhassem dos apetites imoderados, e determinavam que fossem substituídas por cortesãs, às quais não deviam o mesmo respeito. Não são decentes para todas as pessoas os mesmos prazeres. Epaminondas mandara encarcerar um jovem debochado; pediu-lhe Pelópidas que o soltasse. Epaminondas recusou-o; cedeu entretanto à solicitação da jovem amante do rapaz, dizendo que tal satisfação se dava a uma amiga e não a um capitão. Sófocles, quando pretor juntamente com Péricles, disse ao ver passar um belo rapaz: Oh! Que lindo jovem! Ao que Péricles atalhou: tal exclamação seria permitida a qualquer um menos a um pretor, pois o magistrado deve ser casto e não só nas ações como nos olhares. O Imperador Élio Vero respondeu à sua mulher, que se queixava de que ele a abandonasse para ter relações alhures: que o fazia porque era consciencioso, porquanto o casamento é ato digno e honroso e não de lasciva concupiscência. Nossa história eclesiástica conservou e honrou a memória daquela mulher que repudiou o marido não querendo prestar-se a suas carícias insolentes e desregradas. Em suma, não há prazer, por mais legítimo, que não seja censurável em seus excessos. A bem dizer o homem é um pobre animal. Tem apenas um prazer, um único cujo gozo pleno e puro a natureza lhe concede, e sua razão recomenda que não abuse dele. Não se acha bastante miserável, é preciso ainda que pelo raciocínio e o estudo aumente sua miséria: "esforçamo-nos nós mesmos por agravar a miséria de nossa condição". A sabedoria humana tolamente se empenha em restringir o número e o sabor dos nossos prazeres, ao passo que se mostra judiciosamente engenhosa em dissimular ou embelezar os males da existência, atenuando-lhes os efeitos. Se estivesse em mim, houvera seguido caminho mais natural, isto é, verdadeiro, cômodo e perfeito, e talvez tivesse conseguido contê-la, embora nossos médicos, tanto os do espírito como os do corpo, e como que de comum acordo, só considerem capazes de curar ou mitigar nossas enfermidades físicas e morais, os tormentos, a dor e o esforço penoso. Para tanto, inventaram-se as vigílias, os jejuns, os cilícios, os exílios longínquos e voluntários, a prisão perpétua, as vergas e outras aflições, mas aflições reais de que resultem tristes mortificações e não como ocorreu com tal Gálio, o qual, exilado em Lesbos, aí levava uma vida airosa. Souberam em Roma que o que lhe haviam imposto como castigo se transformara em prazer. Voltaram atrás então e o chamaram para junto da mulher e da família, com ordem de não se deslocar, regulando assim a natureza do castigo pelos seus efeitos. Em verdade, não seria o jejum regime salutar para quem com ele se sentisse mais alegre e saudável; ou o peixe para quem o preferisse à carne. Da mesma forma, na outra terapêutica são as drogas sem efeito para quem as toma com prazer, pois o amargor e o suplício de tomá-las ajuda a cura. O ruibarbo perderia sua eficiência em quem o aceitasse de bom grado; para que opere é preciso que o remédio excite o estômago e a regra que determina que cada coisa seja curada pela coisa contrária falha aqui: o mal é que cura o mal. Esta impressão tem alguma relação com essa outra mui antiga, de conciliar o céu e a natureza mediante sacrifícios humanos, e que tiveram universalmente todas as religiões. Ainda em épocas mais ou menos recentes Amurat, por ocasião da tomada do istmo de Corinto, imolou seiscentos jovens gregos à alma de seu pai, a fim de que o sangue redimisse os pecados do defunto. Nessas regiões ultimamente descobertas, ainda puras e virgens comparativamente às nossas, é costume sejam os ídolos embebidos de sangue humano, o que por vez ocorre em meio a horríveis requintes de crueldade. As vítimas são queimadas vivas e retiradas da fogueira semi-assadas, para que lhes arranquem o coração e as entranhas. Alhures esfolam-nas vivas e com a pele sanguinolenta revestem outras pessoas, ou as mascaram, e assim procedem mesmo quando as vítimas são do sexo feminino, isto dá azo por vezes a exemplos notáveis de firmeza, de ânimo e de resolução. Esses infelizes, velhos, mulheres e crianças, destinados ao sacrifício, vão eles próprios esmolar oferendas para a cerimônia e se apresentam ao massacre dançando e cantando junto com os espectadores. Os embaixadores do rei do México, querendo dar a Cortez uma alta ideia do poder de seu senhor, após afirmar que tinha trinta vassalos, cada qual com um exército de cem mil guerreiros, e que ele residia na cidade mais bela e forte do mundo, acrescentaram que lhe cumpria sacrificar aos deuses cinquenta mil homens anualmente. E disseram ainda que se mantinha em estado de guerra contra alguns grandes povos vizinhos, não somente a fim de exercitar a juventude do império, mas ainda para• suprir com prisioneiros a cerimônia. Com esse mesmo Cortez aconteceu em certa aldeia sacrificarem em sua honra cinquenta homens. E mais um fato: alguns desses povos, vencidos por ele, enviaram-lhe uma delegação a fim de reconhecer sua autoridade e obter sua amizade. E os mensageiros ofereceram-lhe presentes de três espécies, dizendo: "Senhor, eis cinco escravos. Se és um deus altivo, que se alimente de carne e sangue, come-os; mais ainda te amaremos. Se és um deus complacente, aqui estão incenso e plumas. Se és um homem, toma estes pássaros e estes frutos". CAPÍTULO XXXI DOS CANIBAIS Quando o Rei Pirro entrou na Itália, e verificou a formação de combate do exército romano, disse: "Não sei que espécie de bárbaros são estes (pois os gregos assim chamavam a todas as nações estrangeiras), mas a formação de combate, que os vejo realizar, nada tem de bárbaro". A mesma coisa diziam os gregos do exército que a seu país Flamínio conduziu. E Filipe assim falou igualmente, ao perceber do alto de um outeiro a bela ordenação do acampamento daquele que, sob Públio Sulpício Galba, acabava de entrar em seu reino. Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinião pública. Nossa razão, e não o que dizem, deve influir em nosso julgamento. Durante muito tempo tive a meu lado um homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto neste século, no lugar em que tomou pé Villegaignon e a que deu o nome de "França Antártica". Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a sérias reflexões. Tantos personagens eminentes se enganaram acerca desse descobrimento que não saberei dizer se o futuro nos reserva outros de igual importância. Seja como for, receio que tenhamos os olhos maiores do que a barriga, mais curiosidade do que meios de ação. Tudo abraçamos mas não apertamos senão vento. Platão mostra-nos Sólon afirmando ter ouvido dos Sacerdotes de Saís, no Egito, que antes do dilúvio existia em frente de Gibraltar uma grande ilha chamada Atlântida, mais extensa do que a África e a Ásia reunidas e que os reis dessa região não possuíam apenas a ilha mas exerciam igualmente sua autoridade tão longe, em terra firme, que ocupavam a Africa até o Egito e a Europa até a Toscana. Que haviam empreendido ir até a Ásia e subjugar as nações do Mediterrâneo até o golfo formado pelo mar Negro; que para tanto haviam atravessado a Espanha, a Gália, a Itália e chegado à Grécia onde os atenienses sustaram a arremetida; que algum tempo depois sobreviera o dilúvio que os afogara juntamente com os atenienses e sua ilha. É muito provável que nesse cataclismo horrível as águas tenham provocado modificações inimagináveis em todos os países habitados da terra. Assim é que se atribui à ação das águas do mar a separação da Sicília com a Itália: "Dizem que essas regiões, outrora um só continente, foram violentamente separadas pela força das águas" e a da ilha de Chipre com a Síria e a da de Negroponto com a terra firme da Beócia. Em compensação, alhures, o mar teria juntado terras separadas por estreitos que foram aterrados por limo e areia: "um pantanal há muito estéril, e que percorriam a remo, alimenta hoje as cidades vizinhas e conhece o arado fecundo do lavrador". Não há muitos indícios entretanto de que seja a Atlântida o Novo Mundo que acabamos de descobrir, pois quase tocava a Espanha e seria efeito incrível da inundação tê-la transportado à distância, em que se encontra, de mais de mil e duzentas léguas. Ademais os navegadores modernos já verificaram não tratar-se de uma ilha, mas de um continente contíguo às Índias Orientais, por um lado, e por outro às terras dos polos; e se destes se acha separada é por tão pequeno estreito que não se deve tampouco considerá-la uma ilha. Creio que ocorreram nessas grandes massas movimentos semelhantes aos que se constatam em nossas regiões, naturais uns, acidentais e violentos outros. Quando observo a ação exercida pelo rio Dordonha, no decurso de minha existência, abaixo de casa, na margem direita; quando vejo quanto em vinte anos conquistou de terras, e o que solapou de alicerces das construções ergui das à sua margem, concluo que não se trata de um fato normal. Se, com efeito, assim tivesse sido sempre, ou que isso devesse continuar, a configuração do mundo acabaria por mudar. Mas esses movimentos não são constantes: ora as águas se expandem por um lado ora por outro; e ora param. Não falo aqui das cheias súbitas cujas causas conhecemos. Na região de Médoc, junto ao mar, tem meu irmão, Sr. de Arzac, uma de suas terras enterradas sob as areias que o mar lhe vai jogando em cima. Os telhados de algumas habitações se veem ainda e essa propriedade e suas culturas transformaram-se em bem magras pastagens. Dizem os habitantes que de uns tempos para cá avança o mar tão rapidamente que já perderam quatro léguas de terras. Essas areias são seus arautos; como uma espécie de dunas movediças precedem-no de cerca de meia légua e conquistam insensivelmente a região. Outro testemunho da antiguidade, que se quer aplicar a esse descobrimento, se encontraria em Aristóteles, se for de sua autoria a obra intitulada "Maravilhas Extraordinárias". Nela se conta que alguns cartagineses, tendo-se aventurado pelo Atlântico afora, além do estreito de Gibraltar, teriam acabado, após uma longa navegação, por descobrir uma grande ilha fértil, coberta de bosques, regada por grandes e profundos rios, e muito afastada da terra firme. E que atraídos, eles e outros mais tarde, pela qualidade e fertilidade do solo, para ali teriam transportado suas mulheres e filhos, nela se fixando. De tal amplitude se revestira essa migração que as autoridades de Cartago teriam proibido expressamente e sob pena de morte que emigrassem quaisquer outros. E teriam expulso da ilha os que ali já residiam, com receio de que se multiplicassem a ponto de suplantar e arruinar o domínio da metrópole. Esta narrativa de Aristóteles, tal qual a de Sólon, não deve referir-se às nossas novas terras. O homem que tinha a meu serviço, e que voltava do Novo Mundo, era simples e grosseiro de espírito, o que dá mais valor a seu testemunho. As pessoas dotadas de finura observam melhor e com mais cuidado as coisas, mas comentam o que veem e, a fim de valorizar sua interpretação e persuadir, não podem deixar de alterar um pouco a verdade. Nunca relatam pura e simplesmente o que viram, e para dar crédito à sua maneira de apreciar, deformam e ampliam os fatos. A informação objetiva nós a temos das pessoas muito escrupulosas ou muito simples, que não tenham imaginação para inventar e justificar suas invenções e igualmente que não sejam sectárias. Assim era o meu informante, o qual, ademais, me apresentou marinheiros e comerciantes que conhecera na viagem, o que me induz a acreditar em suas informações sem me preocupar demasiado com a opinião dos cosmógrafos. Fora preciso encontrar topógrafos que nos falassem em particular dos lugares por onde andaram. Mas, porque levam sobre nós a vantagem de ter visto a Palestina, reivindicam o privilégio de contar o que se passa no resto do mundo. Gostaria que cada qual escrevesse o que sabe e sem ultrapassar os limites de seus conhecimentos; e isso não só na matéria em apreço mas em todas as matérias. Há quem tenha algum conhecimento especial ou experiência do curso de um riacho, sem saber de resto mais do que qualquer um, e no entanto para valorizar sua pitada de erudição atira-se à tarefa de escrever um tratado acerca da configuração do mundo. Este defeito muito comum acarreta graves inconvenientes. Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. Entretanto, em certas espécies de frutos dessas regiões, achamos um sabor e uma delicadeza sem par e que os torna dignos de rivalizar com os nossos. Não há razão para que a arte sobrepuje em suas obras a natureza, nossa grande e poderosa mãe. Sobrecarregamos de tal modo a beleza e riqueza de seus produtos com as nossas invenções, que a abafamos completamente. Mas, onde permaneceu intata e se mostra como é realmente, ela ridiculariza nossos vãos e frívolos empreendimentos: "a hera cresce ainda melhor sem cuidados; o medronheiro nunca se apresenta tão belo como nos antros solitários e o canto dos pássaros é assim tão suave porque natural". Nem apelando para todas as nossas forças e os nossos talentos seríamos capazes de reproduzir o ninho do pássaro mais insignificante, com sua contextura e sua beleza, nem de o tornar adequado ao uso a que se destina; e não saberíamos tampouco tecer a teia de uma mirrada aranha. Todas as coisas, disse Pia tão, produzem-nas a natureza ou o acaso, ou a arte. As mais belas e grandes são frutos das duas primeiras causas; as menores e mais imperfeitas, da última. Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos, não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia. Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural elevada a tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios. É um país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer natureza, nem literatura nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão e partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricultura e o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia e o perdão só excepcionalmente se ouvem. Quanto a República que imaginava lhe pareceria longe de tamanha perfeição! "São homens que saem das mãos dos deuses”. Como essas, foram as primeiras leis da natureza. A região em que esses povos habitam é de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epiléptico, remeloso, desdentado ou curvado pela idade. A região estende-se à beira-mar e é limitada do lado da terra por platôs e altas montanhas, a cerca de cem léguas, o que representa a profundidade de seus territórios. Têm peixe e carne em abundância, e de excelente qualidade, contentando-se com os grelhar para os comer. O primeiro indivíduo que viram a cavalo inspirou-lhes tal pavor que embora já houvessem estado com ele de outras feitas, o mataram a flechadas e só então o reconheceram. Suas residências constituem-se de barracões com capacidade para duzentas a trezentas pessoas, e são edificadas com troncos e galhos- de grandes árvores enfiadas no solo e se apoiando uns nos outros na cumeada, à semelhança de certos celeiros nossos cujos tetos descem até o chão fechando os lados. Possuem madeiras tão duras que com elas fabricam espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos, formados de cordinhas de algodão, suspendem-se ao teto, como nos nossos navios. Cada qual tem o seu, dormindo as mulheres separadas dos maridos. Levantam-se com o sol e logo merendam, não fazendo outra refeição durante o resto do dia. Não bebem ao se alimentarem, agindo nesse ponto, segundo Suidas, como outros povos. Fora das refeições, bebem quanto e quando querem. Sua bebida extrai-se de certa raiz; tem a cor de nossos claretes e só a tomam morna. Conserva-se apenas dois ou três dias, com um gosto algo picante, sem espuma. É digestiva e laxativa para os que não estão acostumados e muito agradável para quem se habitua a ela. Em lugar de pão, comem uma substância branca parecida com o coentro cozido. Experimentei, é doce e algo insosso. Passam o dia a dançar; os jovens vão à caça de animais grandes contra os quais empregam o arco unicamente. Enquanto isso, uma parte das mulheres diverte-se com preparar a bebida, o que constitui sua principal ocupação. Todas as manhãs, antes que iniciem a refeição, um ancião percorre o barracão, que tem bem cem passos de comprimento, e prega aos ocupantes sem cessar as mesmas coisas: valentia diante do inimigo e amizade a suas mulheres. E nunca esquecem, ao fazer esta última recomendação, de lhes lembrar que são elas que fabricam a bebida e a conservam morna. Podem ver-se em muitos lugares, em particular em minha casa, esses leitos, cordas, espadas, pulseiras de madeira que lhes protegem o pulso no combate, e longos caniços furados de um lado que tocam para ritmar suas danças. Cortam os pelos todos e se escanhoam melhor do que nós, usando apenas navalhas de madeira ou pedra. Acreditam na imortalidade da alma. As que mereceram aprovação dos deuses alojam-se no céu do lado do nascente; as amaldiçoadas do lado do poente. Têm não sei que tipos de sacerdotes ou profetas que aparecem raramente e moram nas montanhas. Quando surgem, há grandes festas e realiza-se uma assembleia solene a que se apresentam todas as aldeias. Cada uma das habitações a que me referi forma uma aldeia e distam uma da outra cerca de uma légua de França. O profeta fala-lhes em público, exortando-os à virtude, e ao dever. Sua moral resume-se em dois pontos: valentia na guerra e afeição por suas mulheres. Prediz também o futuro e o que devem esperar de seus empreendimentos, incitando à guerra ou a desaconselhando. Mas importa que diga certo, pois do contrário, se o pegam, é condenado como falso profeta e esquartejado. Por isso não se revê jamais quem uma vez errou. Adivinhar é dom de Deus, enganar é uma impostura merecedora de castigo. Entre os citas, por exemplo, quando os adivinhos se enganavam em suas previsões, jogavam-nos, pés e mãos algemados, dentro de um carro de boi cheio de gravetos a que deitavam fogo. Os que têm a seu cargo dirigir os fatos cometidos à sagacidade humana, são desculpáveis se recorrerem a todos os meios a seu alcance. Mas não devem ser punidos os outros, pela sua impostura, os que nos iludem apresentando-se como donos de uma faculdade extraordinária e fora do nosso conhecimento? Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas, na terra firme. Fazem-no inteiramente nus, tendo como armas apenas seus arcos e suas espadas de madeira, pontiagudas como as nossas lanças. E é admirável a resolução com que agem nesses combates que sempre terminam com efusão de sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o medo. Como troféu traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à entrada de suas residências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que resolvem acabar com eles. Aquele a quem pertence o prisioneiro convoca todos os seus amigos. No momento propício, amarra a um dos braços da vítima uma corda cuja outra extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter o condenado afastado de alguns passos e incapaz de reação. Isso feito, ambos o moem de bordoadas às vistas da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presenteando os amigos ausentes com pedaços da vítima. Não o fazem entretanto para se alimentarem, como o faziam os antigos citas, mas sim em sinal de vingança, e a prova está em que, tendo visto os portugueses, aliados de seus inimigos, empregarem para com eles, quando os aprisionavam, outro gênero de morte, que consistia em enterrá-los até a cintura, crivando de flechas a parte fora da terra e enforcando-os depois, imaginaram que essa gente da mesma origem daqueles seus vizinhos que haviam espalhado o conhecimento de tantos vícios, que essa gente, muito superior a eles no mal, não devia ter escolhido sem razão um tal processo de vingança, o qual por isso adotaram, porque o acreditavam mais cruel, e abandonaram seu sistema tradicional. Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto: e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. Crisipo e Zenão, chefes da escola estoica, admitiam não haver mal em tirar partido de nossos cadáveres se necessário, nem mesmo em nos alimentarmos deles como o fizeram nossos antepassados que, assediados por César em Alésia, resolveram, a fim de prosseguir resistindo, matar a fome comendo os velhos, as mulheres e todos os que não fossem úteis ao combate: "dizem que os gascões prolongaram a vida valendo-se de semelhantes alimentos". E os médicos não temem empregá-los em toda espécie de usos internos e externos em benefício de nossa saúde. Mas não se ouviu jamais ninguém que tivesse o julgamento moral assaz pervertido para desculpar a traição, a deslealdade, a tirania e a crueldade, nossos defeitos habituais. Podemos portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades. Fazem a guerra de um modo nobre e generoso e ela é neles desculpável e bela na medida em que pode ser desculpável e bela essa doença da humanidade, pois não tem entre eles outra causa senão a da inveja da virtude. Não entram em conflito a fim de conquistar novos territórios, porquanto gozam ainda de uma uberdade natural que sem trabalhos nem fadigas lhes fornece tudo de que necessitam e em tal abundância que não teriam motivo para desejar ampliar suas terras. Têm ademais a felicidade de limitar seus desejos ao que exige a satisfação de suas necessidades naturais, tudo o que as excede lhes parecendo supérfluo. Tratam-se mutuamente por irmãos quando são da mesma idade, e aos mais jovens chamam filhos; e pais aos velhos, indistintamente. Quando morrem estes, passam os seus bens aos herdeiros naturais; as heranças não são divididas, conservando todos os participantes a posse do todo, sem outro título que o que lhes dá a natureza ao criá-los. Se os povos vizinhos descem das montanhas para os atacar e são vitoriosos, o benefício de sua vitória consiste unicamente na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem, pois não saberiam que fazer dos bens dos vencidos. Voltam para suas terras onde nada lhes falta e onde podem gozar a felicidade de saber contentar-se com sua condição. Se são vencidos, seus inimigos procedem de igual maneira. Aos prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos. Mas não se encontra um só, em um século, que não prefira a morte a assumir uma atitude ou a proferir uma palavra suscetíveis de desmentirem uma coragem que timbram em ostentar acima de tudo. Não se vê nenhum que não prefira ser morto e comido a pedir mercê. Dão-lhes inteira liberdade, a fim de que a vida lhes seja mais cara, e não cessam de entretê-los acerca da morte que os espera brevemente, das torturas que experimentarão, dos preparativos para o suplício, de seus membros decepados e do festim que farão com eles. Tudo isso no intuito de lhes arrancar alguma palavra de queixa ou fraqueza, ou de levá-los à fuga, com o que mostram tê-los apavorado e triunfado de sua firmeza de ânimo. Nisso, em verdade, e só nisso consiste a vitória: "A vitória verdadeira é a que constrange o inimigo a confessar-se vencido". Os húngaros, que são muito belicosos, não prosseguiam na guerra senão até que o inimigo se rendesse; logo que se confessava vencido, deixavam-no ir sem o molestar, nem exigir resgate. Apenas queriam que prometesse não mais pegar em armas contra eles. Quando vencemos nossos inimigos, devemo-lo antes a vantagens ocasionais e não a nosso mérito exclusivo. Ter braços e pernas sólidos é apanágio do carregador e não da virtude; independe de nós, e é coisa toda física, ter boa saúde. E é golpe de sorte abalar o inimigo ou conseguir com que tenha o sol nos olhos e se ofusque. E é tão somente prova de habilidade e treino, que pode oferecer igualmente um covarde ou um plebeu, saber manejar o florete. O valor de um homem, e a estima que nos inspira, medem-se pelo seu caráter e força de vontade. A valentia não decorre do vigor físico e sim da firmeza de ânimo e da coragem; não consiste na superioridade de nossa montaria e de nossas armas, mas na nossa. Quem sucumbe sem que sua coragem se abata; "quem, se cai, combate de joelho"; quem, apesar das ameaças de morte não perde sua altivez; quem, agonizante, permanece impassível e com o olhar desafia ainda o inimigo, não é por nós abatido e sim pelo destino. Morre mas sem ser vencido. Os mais valentes são por vezes os mais infelizes, o que faz com que haja derrotas mais gloriosas do que as vitórias. As quatro brilhantes vitórias de Salamina, Platéia, Mícale e Sicília, as mais belas que testemunhou o sol, serão mais gloriosas do que a que conquistou o Rei Leônidas nas Termópilas? Quem jamais preparou a vitória com mais cuidado da glória e mais ardente desejo de vencer, do que Ischolas sua derrota? Quem preparou a sua salvação mais engenhosa e estranhamente do que ele a sua perda? Fora encarregado de defender uma passagem do Peloponeso contra os árcades. Compreendendo que os não poderia rechaçar, em virtude da topografia local e da inferioridade numérica de suas forças; certo de que tudo o que se opusesse ao inimigo seria destruído; julgando por outro lado indigno de sua própria coragem e de sua grandeza de alma, tanto quanto de um lacedemônio, faltar ao dever, entre duas resoluções extremas escolheu uma que as conciliasse: dispensou os mais jovens e vigorosos da tropa, a fim de os conservar para a defesa do país, e, com os que menos falta deviam fazer, resolveu defender a passagem entregue a sua guarda, cobrando com a morte dos defensores o mais caro possível a vitória do inimigo. Foi o que aconteceu: logo cercados de todos os lados pelos árcades, Ischolas e os seus sucumbiram e foram levados ao fio de espada após verdadeira carnificina. Que troféu assinalado aos vencedores não fora antes devido a vencidos dessa ordem? A verdadeira vitória reside na maneira por que combatemos e não no resultado final. E não consiste a honra em vencer mas em combater. Voltemos à nossa história. Com tudo isso que lhes fazem, não conseguem nem de longe que os prisioneiros cedam; ao contrário, durante os dois ou três meses que permanecem presos, afetam alegria e incitam seus senhores a se apressarem em submetê-los às provações com que os ameaçam. Desafiam-nos e os injuriam, censurando-lhes a covardia e lhes recordando os combates que perderam em outras ocasiões. Tenho em meu poder o canto de um desses prisioneiros. Eis o que diz: "Que se aproximem todos com coragem e se juntem para comê-lo: em o fazendo comerão seus pais e seus avós que já serviram de alimento a ele próprio e deles seu corpo se constituiu. Estes músculos, esta carne, estas veias, diz-lhes, são vossas, pobres loucos. Não reconheceis a substância dos membros de vossos antepassados que no entanto ainda se encontram em mim? Saboreai-os atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne". Haverá algo bárbaro nesta composição? Os que lhes descrevem os suplícios e os representam no momento em que são esbordoados, pintam-nos cuspindo no rosto dos que os trucidam em meio a caretas. E, com efeito, até exalarem o último suspiro não param de desafiar os inimigos tanto pelas atitudes como pelos propósitos. Por certo, em relação a nós são realmente selvagens, pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou o são ou o somos nós. Os homens têm várias mulheres, em tanto maior número quanto mais famosos e valentes. Particularidade que não carece de beleza, nesses lares o ciúme, que entre nós impele nossas esposas a impedir que busquemos a amizade e as boas graças de outras mulheres, entre eles as induz a arranjarem outras para seus maridos. A honra deste primando entre todas as demais considerações, põem elas todo o cuidado em ter o maior número possível de companheiras, pois esse número comprova a coragem do esposo. Entre nós falariam de milagre. Não se trata disso e sim da virtude matrimonial elevada ao máximo. Não nos mostra a Bíblia, Sara e as mulheres de Jacó, Lia e Raquel, pondo suas serventes à disposição de seus maridos? Não auxiliou Lívia, contra seu interesse, a satisfação dos desejos de Augusto? E Estratonice, mulher de Dejótaro, não somente emprestou ao marido uma de suas mais belas serventes, para que a usasse como entendesse, mas ainda educou os filhos da concubina e os ajudou a suceder ao pai. E não se imagine que se trate da observação servil de um costume, imposta pela autoridade dos costumes tradicionais, e que se aplique sem maior discussão, porquanto são os selvagens demasiado estúpidos para se rebelarem. Eis alguns traços que demonstram o contrário. Transcrevi aqui um de seus cantos guerreiros: pois tenho também uma canção de amor: "Serpente, para; para, serpente, a fim de que minha irmã copie as cores com que te enfeitas; a fim de que eu faça um colar para dar à minha amante; que tua beleza e tua elegância sejam sempre preferidas entre as das demais serpentes." É a primeira estrofe e o estribilho da canção; ora, eu conheço bastante a poesia para julgar que este produto de sua imaginação nada tem de bárbaro, antes me parece de espírito anacreôntico. Aliás, a língua que falam não carece de doçura. Os sons são agradáveis e as desinências das palavras aproximam-se das gregas. Três dentre eles (e como lastimo que se tenham deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará de tranquilidade e felicidade o conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já iniciada, estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos IX. Entreteve-se o rei com eles, longamente; mostraram-lhes como vivíamos no cotidiano; ofereceram-lhes grandes festas; ensinaram-lhes como era uma cidade grande. Alguém lhes havendo perguntado mais tarde o que pensavam da cidade e o que ela lhes tinha revelado, citaram três coisas. Esqueci a terceira, e o lamento, mas lembro-me das duas outras. Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que se achavam junto do rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam "metades"); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais. Conversei longamente com um deles, mas meu intérprete compreendia tão mal e se mostrava tão embaraçado com as perguntas que, graças à sua estupidez, não pude obter algo mais sério de meu interlocutor. Tendo-lhe perguntado de onde provinha sua ascendência sobre os seus (era um chefe e nossos marinheiros o tratavam como rei), respondeu-me que tinha o privilégio de marchar à frente dos outros quando iam para a guerra. À minha pergunta: quantos homens o acompanhavam? Mostrou um terreno como para dizer: o que cabia naquele espaço, cerca de cinco mil homens. Indaguei ainda se nas épocas de paz ele conservava alguma autoridade, e disse-me: "Quando visito as aldeias que dependem de mim, abrem-me caminhos no mato para que eu possa passar sem incômodo". Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças! CAPÍTULO XXXII DE COMO É PRECISO PRUDÊNCIA NO JULGAR OS DESÍGNIOS DA PROVIDÊNCIA No desconhecido situa-se o verdadeiro campo de ação da impostura; já porque a própria extravagância a favorece e lhe dá crédito, já porque, escapando à razão comum, não temos meios para a combater. Eis por que, diz Platão, é mais fácil ser acreditado quando se fala de coisas da natureza divina do que de coisas de natureza humana; pois a ignorância dos ouvintes abre bela carreira aos argumentos inverificáveis. Daí resulta nada encontrar mais credulidade do que o que menos se conhece; e não haver quem fale com mais segurança do que os que nos contam fábulas, os alquimistas, os profetas, os astrólogos, os quiromantes, os médicos, e gente da mesma espécie, a que eu juntaria de bom grado, se ousasse, um punhado de sujeitos que se metem constantemente a interpretar e controlar os desígnios de Deus, pretendendo penetrar as causas de tudo, os segredos da vontade divina e as razões insondáveis de suas obras. E apesar dos desmentidos contínuos que lhes infligem os acontecimentos, e embora se vejam jogados de um lado para outro, não cessam de se entregar à sua mania de pintar com o mesmo carvão o preto e o branco. Entre certos índios, há uma prática digna de elogios. Se lhes ocorre algum malogro em duelo ou combate, pedem publicamente perdão ao sol, seu Deus, como se o houvessem ofendido, reconhecendo assim auferirem felicidade e desgraça da divindade, juiz de seus projetos e ações. Ao cristão basta-lhe crer que tudo dimana de Deus, aceitar e agradecer conformado o bem e o mal que, em sua infinita sabedoria, Ele lhe oferece sem que possamos penetrar-lhes os móveis. O que eu reprovo é que se apele para os nossos sucessos felizes como meio de exaltar e consolidar nossa religião. Nossa fé assenta em outros alicerces, e não lhe é necessária a ajuda dos acontecimentos. Habituar o povo a semelhantes argumentos, aos quais já é por demais levado, apresenta um perigo: se uma reviravolta se opera nos favores da sorte, se esta nos é contrária, a fé pode abalar-se. É o que ocorre neste momento em nossas guerras religiosas: os que levaram vantagem na batalha de Roche-Abeille argumentaram com seu êxito, como se decorresse de uma aquiescência divina; posteriormente explicaram as derrotas de Montcontour e Jarnac como um castigo, a exemplo do que um pai administra por vezes aos filhos. Mas se o povo, a quem assim falamos, não nos é inteiramente devotado, sem dificuldade compreende que procuramos tirar duplo benefício de uma só coisa, que com a mesma boca sopramos calor e frio. Melhor fora entretê-lo acerca daquilo que na realidade constitui os princípios fundamentais da verdade. Bela foi a batalha naval que ultimamente vencemos contra os turcos e sob o comando de D. João da Áustria; mas Deus permitiu que em idênticas circunstâncias perdêssemos batalhas não menos importantes. Em suma, é-nos difícil pesar as coisas divinas, sem as diminuir, unicamente com a nossa balança. Quem quisesse tirar uma conclusão do fato que Ário e o Papa Leão, principais chefes da heresia a que o primeiro deu o nome, tenham morrido em épocas diferentes, mas em condições idênticas e particulares (tomados de dores e obrigados a abandonar a discussão para irem à privada e aí sucumbirem repentinamente) e levasse o exagero a ver na circunstância de lugar mais uma prova da vingança divina, poderia citar ainda em abono de sua tese a morte de Heliogábalo também ocorrida na retrete. Mas como explicar por que teve Irineu igual fim? Deus quer mostrar assim que os bons têm outra coisa a esperar e os maus outra a temer, que não as graças e desgraças deste mundo. Delas dispõe, segundo seus desígnios impenetráveis, e nos tira desse modo os meios de nos vangloriarmos ou de as explorarmos. Enganam-se contudo os que se prevalecem disso para justificar atos humanos; não invocam uma só prova a favor que não se apresentem imediatamente duas contra, e Santo Agostinho o demonstra vitoriosamente a seus contraditores. É uma questão que foge ao domínio da razão. Somos obrigados a nos contentarmos com a luz que apetece ao sol comunicar-nos, e quem tente fixá-la, a fim de absorver maior quantidade em seu corpo, não se espante se com sua temeridade presunçosa perder a vista: "Porquanto que homem pode saber o conselho de Deus? Quem pode alcançar o querer do Senhor?" CAPÍTULO XXXIII DEVEMOS FUGIR DA VOLÚPIA AINDA QUE NOS CUSTE A VIDA Sempre vi convirem as escolas antigas em que é chegada a hora de morrer quando nos cabe esperar da vida mais males do que bens; e conservá-la quando só nos causa tormentos e nos pesa, é ir de encontro ao que a própria natureza determina, como dizem estas sentenças de outrora: Ou uma vida tranquila ou uma morte feliz; é belo morrer quando a vida é opróbrio; não viver é melhor do que viver desgraçado. Mas levar o desprezo à morte a ponto de recorrer a ela a fim de evitar honrarias, riquezas, grandezas e outros bens que aos nossos olhos constituem a fortuna, como se não nos bastasse apelar para a razão a fim de abandoná-los, nunca o vira ainda, quando me caiu entre as mãos um trecho em que Sêneca aconselha Lucílio, poderoso personagem da Corte do imperador, junto ao qual gozava de grande prestígio, a renunciar à vida de prazeres e luxos que levava, a renunciar à ambição e substituir a tais desordens uma existência solitária, tranquila, dedicada à filosofia. Lucílio objetou alegando certas dificuldades, ao que Sêneca respondeu: "Estimo que é preciso renunciar a esse gênero de vida ou à própria vida. Embora te aconselhe o meio mais suave, que é o de desfazeres o que tão mal amarraste em lugar de cortares o nó, só to aconselho sob a condição de o cortares se não puderes desfazê-lo de outro modo. Não há homem, por mais covarde, que não prefira cair uma vez por todas a viver constantemente sob a ameaça de uma queda iminente." Teria achado acertado um tal conselho na boca dos estoicos; surpreendeu-me que fosse tirado de Epicuro, o qual escreve, a propósito, coisas idênticas a Idomeneu. Parece-me ter observado em certos fatos de nossa época essa mesma tendência, embora mitigada pela moderação cristã. Santo Hilário, bispo de Poitiers, inimigo declarado da heresia ariana, soube, na Síria, que Abra, a filha única que deixara na Gália com a mãe, era pedida em casamento por grandes senhores do país, por ser bem-educada, bela, rica e jovem. Escreveu-lhe o santo como sabemos, que não atentasse para esses pedidos, por vantajosos e desejáveis que lhe parecessem, porquanto em sua viagem lhe havia encontrado partido melhor e mais digno, um marido poderoso e magnífico que lhe faria presente de joias e vestidos de valor incalculável. Na realidade, aspirava a levá-la a desprezar os prazeres mundanos para que se dedicasse a Deus. Pensando, depois, que a morte da filha era ainda o meio mais rápido e certo de atingir esse objetivo, não cessou de pedir a Deus, mediante preces e promessas, que a fizesse sair do mundo e a chamasse a si, o que aconteceu. Pouco depois de sua volta ela morreu, do que tirou ele singular alegria. Santo Hilário parece sobre-exceder aos outros porque apela antes de mais nada para a morte, o que os outros só fazem como último recurso, e também porque se trata de sua filha única. Mas a história tem uma continuação que não quero omitir, embora não se prenda precisamente a meu assunto. A mulher de Santo Hilário sabendo, dele, que a morte da filha fora premeditada e solicitada, e quanto mais feliz seria longe deste mundo, tomou-se de tão ardente desejo de ir para o céu gozar a eterna beatitude, que suplicou ao marido a mesma graça. E Deus, acedendo às preces comuns, chamou-a a si logo depois. E essa morte, acolhida com entusiasmo, causou a ambos excepcional satisfação. CAPÍTULO XXXIV NÃO RARO A SORTE NA RAZÃO SE APÓIA A inconstância da sorte faz que se apresente necessariamente a nós sob os mais diversos aspectos. Haverá algo mais justo do que o seguinte fato? O Duque de Valentinois resolvera envenenar Adriano, Cardeal de Cornete, em casa de quem seu pai, o Papa Alexandre VI, e ele próprio deviam cear. Mandou-lhe por isso com antecedência uma garrafa de vinho envenenado, recomendando ao despenseiro que a guardasse cuidadosamente. O papa chegou antes de seu filho e pediu algo para beber. O despenseiro, imaginando que lhe haviam especialmente recomendado o tal vinho porque era particularmente bom, serviu-o ao papa. Chegando o duque naquele momento, e certo de que não era a sua garrafa, bebeu também. O pai teve morte imediata; quanto ao filho, ficou gravemente e durante muito tempo doente. Um fim mais desgraçado lhe estava reservado. A sorte parece por vezes brincar conosco. Embora de partidos opostos, como acontece entre vizinhos de um e outro lado da fronteira, o Sr. d'Estrée, então porta-estandarte do Sr. de Vendôme, e o Sr. de Liques, tenente do Duque d'Ascot, eram ambos pretendentes à mão da irmã do Sr. de Foungueselles. Venceu o Sr. de Liques. No próprio dia do casamento, e o que é pior, antes de a possuir, teve ele a ideia fantasista de romper uma lança em honra da jovem esposa e foi duelar perto de St. Onero O Sr. d'Estrée ganhou e fê-lo prisioneiro. E aguardou que a jovem, "forçada a renunciar ao amor de seu novo esposo antes que as longas noites de um ou dois invernos saciassem a avidez de seu desejo", lhe requeresse em pessoa a liberdade do marido, ao que ele aquiesceu, pois a nobreza de França nada recusa às senhoras. E parece por vezes que a sorte aja também com arte. Constantino, filho de Helena, funda o Império de Constantinopla, o qual séculos depois termina outro Constantino filho de outra Helena. De outras feitas ela se compraz em exceder nossos milagres. Assim é, dizem, que o Rei Clóvis, que assediava Angoulême, viu caírem as fortificações da cidade por efeito de divina proteção. Conta também Bouchet que o Rei Roberto, que sitiava certa cidade, dela se afastou para ir a Orleães tomar parte nas festividades de Santo Agnan. A certo momento da missa, ruíram os baluartes da cidade assediada, sem terem sido objeto de nenhum assalto. Nas guerras da região milanesa, idêntico prodígio se verificou, porém contra nós: sitiando por nossa conta a cidade de Arona, mandou o Capitão Rense colocarem uma mina sob um grande trecho das muralhas, o qual se ergueu da terra subitamente mas tornou a cair no mesmo lugar, verticalmente, de modo que os sitiados continuaram tão protegidos quanto antes. Por vezes a sorte cura, Jason de Pheres, com um abscesso no peito, fora desenganado pelos médicos. Resolvido a libertar-se da dor, ainda que lhe custasse a vida, jogou-se de corpo e alma no combate. Traspassado por um golpe de lança, teve o abscesso vazado e sarou. Não se mostrou ela, com o pintor Protógenes, mais talentosa do que ele na mesma arte? Protógenes pintara, e muito bem, um cão exausto e agonizante, e andava muito contente com sua obra, salvo quanto à espuma e à baba que não conseguia representar com perfeição. Despeitado, tomou de uma esponja impregnada das diversas cores e lançou-a contra a tela no intuito de a destruir. A sorte tão bem orientou o golpe que a esponja deu na goela do cão e fez o que o artista não pudera fazer. Vemo-la não raro retificar e corrigir os nossos projetos. Isabel, rainha da Inglaterra, voltava a seu reino, vinda da Zelândia, e conduzia um exército em socorro do filho contra o marido. Estava perdida se entrasse no porto como pretendia, porquanto seus inimigos aí a esperavam. Quis a sorte, contra a sua vontade, jogá-la em outro ponto da costa onde desembarcou em segurança. E não estava com a verdade aquele personagem da antiguidade que, querendo jogar uma pedra em um cachorro, atingira a sogra e a matara? E dizia: "A sorte é mais sábia do que nós". Hícetas subornara dois soldados a fim de que assassinassem Timoleão durante sua estada em Âdrana, na Sicília. Combinaram os conjurados que agiriam durante um sacrifício que a vítima devia oferecer. Misturados à multidão, faziam-se reciprocamente sinais de que o momento era propício, quando alguém assentou um golpe de espada na cabeça de um deles, matando-o e fugindo a seguir. Acreditando-se descoberto e perdido, o segundo correu ao altar pedindo mercê e prometendo tudo revelar. E enquanto contava a verdade, eis que surge o agressor, arrastado, pelo povo que o pretendia linchar, até aos pés de Timoleão e outros personagens importantes. Aí pede ele perdão e narra como com razão matara o assassino de seu pai. Comprovando-se com testemunhas, por acaso presentes, que dizia a verdade, que seu progenitor fora realmente assassinado na cidade dos leontinos por aquele de quem agora se vingava, teve, como recompensa por ter salvo assim ao se vingar aquele a quem os sicilianos chamavam "Pai do Povo", dez minas áticas. Não ultrapassa qualquer previsão humana um tal golpe de sorte? Terminarei com um fato que nos mostra a sorte revelando particular favor, bondade e devoção sem iguais. Inácio e seu filho, proscritos de Roma pelos triúnviros, resolveram matar-se mutuamente, a fim de escapar à crueldade dos tiranos. De espada em mãos precipitam-se um contra o outro e a sorte dirige tão bem os golpes que eles se ferem mortalmente. Mas como homenagem a tão bela amizade permite ela que tenham ainda força de retirar os ferros dos ferimentos, caindo ensanguentados nos braços um do outro. E assim morrem tão estreitamente abraçados, que os carrascos lhes cortam as cabeças deixando os corpos nobremente ligados e afetuosamente aspirando pelos seus ferimentos o sangue e as últimas manifestações vitais de cada um. CAPÍTULO XXXV UMA LACUNA DE NOSSA ADMINISTRAÇÃO Meu falecido pai, homem de juízo sadio, formado unicamente pela experiência e tendência natural, disse-me de uma feita que pensara outrora em fazer com que nas cidades houvesse um lugar onde o cidadão necessitado de alguma coisa pudesse levar seu pedido a um funcionário, o qual o registraria mais ou menos da seguinte maneira: "Fulano procura vender pérolas; Sicrano deseja companhia para ir a Paris; Beltrano precisa de um lacaio; X. quer colocação; pede um operário etc." Parece-me que esse modo de informação seria de grande comodidade para o público, pois a todo instante há necessidades que exigem satisfação e em se ignorando não se acertam. Considero extremamente vergonhoso para nosso século que dois homens de grande saber, Lílio Gregório Giraldi, na Itália, e Sebastião Chasteillon, na Alemanha, tenham morrido de fome. Penso que pelo menos umas mil pessoas os houveram socorrido ou oferecido condições vantajosas de trabalho se tivessem tido notícia de sua miséria. O mundo não está assim tão corrompido que não se encontre ninguém capaz de dispor com satisfação de seu patrimônio (enquanto a sorte lho permite) a fim de colocar ao abrigo da necessidade personagens excepcionais, que se distinguiram por qualquer motivo e que a infelicidade levou não raro às mais lamentáveis situações. E os poriam em estado que, a menos de serem insensatos, os contentaria. Na direção econômica da casa, tinha meu pai um hábito que louvo assaz mas que não soube imitar. Além do registro das transações cotidianas, em que se inscrevem as pequenas contas, os pagamentos que não passam pelo tabelião, registro esse que mantinha em dia nosso homem de negócios, meu pai exigia de seu secretário que anotasse em um diário todas as informações de alguma utilidade para a história da família, o que é muito curioso de se ver quando o tempo começa a apagar a lembrança dos fatos, e o que nos pode tirar de certas dificuldades, pois por esse diário sabemos quando se iniciou ou terminou tal tarefa, quem nos veio visitar, com quantas pessoas em seu séquito, quanto durou a sua estada; e sabemos quando viajamos, quais as nossas ausências, os casamentos e falecimentos, as boas e más notícias, as modificações verificadas entre nossos principais servidores etc. Acho conveniente lembrar esse uso antigo que nos permite reviver o passado, e considero-me um tolo por não o ter seguido. CAPÍTULO XXXVI DO HÁBITO DE SE VESTIR Qualquer que seja o assunto que deseje ventilar, choco-me com a barreira dos costumes aceitos e que nos governam. Nesta estação fria, ponho-me a meditar acerca do hábito que faz com que esses povos recém-descobertos andem nus, e pergunto a mim mesmo se o fazem por causa da temperatura elevada (como o dizem, no que respeita aos índios e aos mouros) ou porque originalmente assim andaram os homens. Estando tudo o que existe sob os céus submetido às mesmas leis, como diz a Bíblia, admitem as pessoas sensatas que nas questões dessa ordem, para distinguir as leis naturais das por nós inventadas, é preciso que nos reportemos às regras gerais que presidem ao trabalho da natureza neste mundo e que não sofrem alteração. Ora, tudo, à exceção do homem, se acha naturalmente provido do que é necessário à própria conservação; não é portanto admissível que somente nós tenhamos sido criados em condições tão miseráveis e defeituosas que não possamos prescindir de socorro estranho. Eis por que considero que, assim como as plantas, as árvores, os animais e tudo o que vive foram naturalmente providos de meios para se defenderem contra as injúrias do clima, "razão por que todos os seres se cobrem de couro, de pelo, de carapaças, calosidades ou casca", assim nos ocorreu igualmente. Mas assim como há quem use a luz artificial que enfraquece a luz do dia, enfraquecemos a eficiência dos meios naturais que nos protegem substituindo-os por outros artificiais. E fácil de se compreender que é o costume que nos faz parecer natural o que não o é, pois, entre os povos que não usam roupa, alguns habitam em climas semelhantes ao nosso e outros bem mais rudes. Nós mesmos trazemos sempre descobertas as partes mais sensíveis de nosso corpo: olhos, boca, nariz e orelhas, enquanto nossos camponeses - tal qual nossos antepassados - ainda andam de peito e ventre descobertos. Se tivéssemos nascido com saias e calças, sem dúvida teria a natureza dotado de pele mais espessa as partes de nosso corpo expostas às intempéries das estações, como os dedos e a planta do pé. Por que isso nos há de parecer inverossímil? Entre minha maneira de vestir e a de um camponês de minhas terras, há maior diferença do que entre a do camponês e a de quem só tem a pele por vestimenta. Quantas pessoas, particularmente na Turquia, não andam inteiramente nuas por simples devoção? Não sei quem perguntava a um mendigo, em pleno inverno vestido de uma só camisa e que no entanto se mostrava alegre como se estivesse envolvido em peles até as orelhas, como podia andar de bom humor sendo assim tão miserável, ao que lhe respondeu o mendigo: "Tendes o rosto descoberto, senhor, pois eu dos pés à cabeça sou inteiro cara". Contam os italianos, creio eu, que o bobo do rei de Florença a quem seu senhor perguntava como, tão mal vestido, suportava um frio que, a ele rei, incomodava e muito, respondeu: "Fazei como eu, carrega i convosco todas as vossas roupas e não sentireis mais frio do que eu". O Rei Masinissa até a mais avançada velhice não pôde acostumar-se a cobrir a cabeça e assim andava no frio, na borrasca e na chuva. O mesmo dizem do Imperador Severo. Heródoto relata que, examinando com outros os mortos após as batalhas dos egípcios contra os persas, verificou terem aqueles o crânio sem dúvida muito mais duro, o que explica o fato de os persas usarem toucas e turbantes, enquanto os egípcios desde criança raspam a cabeça e jamais a cobrem. O Rei Agesilau, até o momento em que se viu abalado pelas enfermidades, usava a mesma roupa tanto no inverno como no verão. César, diz Suetônio, marchava à frente de .seus exércitos quase sempre a pé e de cabeça descoberta, chovesse ou fizesse sol. O mesmo dizem de Aníbal: "enfrentando a chuva e o desabamento dos céus”. Um veneziano, que esteve muito tempo no reino de Pegu, de onde acaba de voltar, conta que nessa região homens e mulheres cobrem o corpo todo menos os pés, que têm descalços mesmo a cavalo. Platão aconselha como muito saudável não cobrir pés nem cabeça senão com aquilo que lhes deu a natureza. O fidalgo que os poloneses escolheram como rei, em substituição àquele que lhes havíamos dado, é seguramente um dos maiores príncipes de nosso século; nunca usou luvas. No inverno, e qualquer que seja o tempo, sai com o boné que costuma pôr dentro de casa. Não suporto andar desabotoado, com roupas folgadas; os camponeses da minha vizinhança se sentiriam entrevados em se abotoando. Varro acredita que a obrigação de nos descobrirmos na presença dos deuses ou de um magistrado foi criada mais em vista da nossa saúde, a fim de que nos fortalecêssemos contra as intempéries, do que em sinal de respeito. Como falamos de frio, e em França gostam de cores variegadas no vestuário (não no que me diz respeito, porquanto só me visto de branco e de preto, como o fazia meu pai), variando o meu assunto, direi que o Capitão Du Bellay relata ter experimentado em sua viagem ao Luxemburgo um frio tão intenso que o vinho destinado aos soldados se cortava com machadinhas e machados e era servido a peso à tropa que o levava em cestas. Aliás, Ovídio afirma que "o vinho gelado conserva a forma do recipiente que o continha; não o bebem líquido e o distribuem em pedaços". As geadas são tão fortes à entrada do Palus Méotides, que no mesmo local em que batera a pé o inimigo, o lugar-tenente de Mitridates ganhou, no verão seguinte, uma batalha naval contra os mesmos adversários. Os romanos acharam-se em estado de grande inferioridade por ocasião do combate de Placência contra os cartagineses, porque lutaram gelados até o sangue e com os membros retesados pelo frio. Ao passo que Aníbal tivera o cuidado de acender grandes fogueiras ao longo de suas linhas, para que seus soldados pudessem aquecer-se; e a seus diversos corpos de exército mandara distribuir azeite, a fim de que esfregassem pernas e braços, tornando-os não somente mais elásticos, mas ainda protegendo os poros da pele contra o vento glacial que então soprava. A retirada dos gregos da Babilônia em demanda da pátria ficou famosa pelos sofrimentos e obstáculos que tiveram de vencer. Foram, entre outras desventuras, assaltados nas montanhas de Armênia por forte tempestade de neve, a qual os fez perder momentaneamente o caminho, impedindo-os de reconhecerem a região. Constrangidos a permanecer no lugar, aí passaram um dia e uma noite sem comer nem beber; e houve alguns que, embora perfeitamente conscientes, foram tomados pelo frio, e para sempre paralisados. Alexandre conheceu um país onde enterravam no inverno as árvores frutíferas para protegê-las da geada; podemos, aliás, observar por vezes a mesma coisa em nossa terra. Voltemos ao vestiário. O imperador do México mudava de roupa quatro vezes por dia e nunca punha duas vezes a mesma. As que despia serviam para suas liberalidades: dava-as de presente, como recompensa. Assim também fazia com os vasos, os trapos e os utensílios de sua cozinha, pois deste modo não podiam servir duas vezes. CAPÍTULO XXXVII CATÃO, O JOVEM Não cometo esse erro tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de bom grado que o que está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está em mim. Não obrigo ninguém a agir como ajo e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver; e, contrariamente ao que ocorre em geral, espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as semelhanças. Não imponho a outrem nem meu modo de vida nem meus princípios; encaro-o tal qual é, sem estabelecer comparações. O fato de não ser continente não me impede de admirar e aprovar os Feuillants e os capuchinhos que o são; pela imaginação ponho-me muito bem em sua pele e os estimo e honro tanto mais quanto divergem de mim. Aspiro particularmente a que julguem cada qual como é, sem estabelecer paralelos com modelos tirados do comum. Minha fraqueza não altera absolutamente o apreço em que deva ter quem possui força e vigor. "Há pessoas que só aconselham aquilo que imaginam poder imitar”. Embora me arraste ao nível do solo, não deixo de perceber nas nuvens, por mais alto que se elevem, certas almas que se distinguem pelo heroísmo. Já é muito para mim ter o julgamento justo, ainda que não o acompanhem minhas ações, e manter ao menos assim incorruptível essa qualidade. Já é muito ter boa vontade, mesmo quando as pernas fraquejam. Nosso século, pelo menos no meio em que vivemos, é tão viciado que não somente não pratica a virtude como ainda não a concebe sequer. Dir-se-ia que já não passa ela de jargão acadêmico. "Pensam que a virtude é apenas uma palavra, e em um bosque sagrado não veem senão madeira para queimar". "A virtude que deveriam respeitar ainda que não possam entender". A virtude tornou-se um penduricalho bom para se pendurar no gabinete, uma palavra solta na ponta da língua, um simples enfeite, como um brinco. Não se verificam mais atos de virtude. Os que assumem esse aspecto não lhe têm a essência. São o lucro, a glória, o hábito e o medo que nos levam a praticá-los. Os atos de justiça, coragem ou bondade que emanam de nós podem ser considerados pelos outros como provocados pela virtude, mas não é a virtude que no-los inspira. Têm outro objetivo, provêm de outras causas e a virtude só admite o que se faz por ela e para ela. Após a grande batalha de Platéia, vencida pelos gregos sob as ordens de Pausânias contra os persas comandados por Mardônio, tendo os vencedores que determinar, segundo o costume, a quem competia a glória do êxito, atribuíram-na aos espartanos pelo valor excepcional que haviam demonstrado durante o combate. Quando estes, excelentes juízes em matéria de virtude, tiveram de decidir a qual deles em particular cabia a honra de ser proclamado o melhor, reconheceram que Aristodemo fora quem enfrentara o perigo com maior coragem. Não lhe deram entretanto o prêmio, porque sua coragem fora sobre-excitada pelo desejo de apagar a censura que lhe valera sua conduta nas Termópilas e de se redimir, por morte digna, do passado vergonhoso. Nossos julgamentos estão longe de ser justos, porquanto se ressentem da depravação dos nossos costumes. Vejo a maioria dos belos espíritos de nosso tempo esforçar-se por diminuir a glória das belas e generosas ações que nos revela a antiguidade, depreciando-as e inventando circunstâncias e causas inexistentes para as explicar. Grande sutileza em verdade! Deem-me a ação mais bela, mais pura, e conseguirei sem dificuldade atribuir-lhe as piores intenções por móvel. Deus sabe quanto nossa vontade íntima pode ser diversamente interpretada. A má língua dos espertos mostra-os menos maliciosos do que grosseiros e estúpidos. Sinto-me tentado a empregar na defesa e louvor dos grandes homens os mesmos processos abusivos de que usam para diminuí-los. Pois não hesitaria em engrandecer ainda mais, e quanto possível, essas admiráveis figuras, tão raras e escolhidas entre as demais pelos próprios sábios, para servirem de exemplo ao mundo. Não hesitaria em ampliar ainda, quanto pudesse, a sua glória por meio de interpretações e de circunstâncias favoráveis a meu ponto de vista, que conseguiria inventar. E creio que o resultado da imaginação se situaria bem abaixo de seus méritos. É dever do homem de bem representar a virtude sob as mais belas formas e não teria nada a criticar se a paixão nos induzisse a exagerar os elogios a essas manifestações dignas de nosso respeito. O que fazem os detratores, fazem-no ou por maldade ou porque são impelidos a colocar os fatos da história ao seu alcance, ou, melhor, porque sua inteligência carece da força e clarividência necessárias à concepção do esplendor da virtude em toda a sua pureza. Assim, diz Plutarco que em seu tempo havia quem atribuísse a morte de Catão, o jovem, ao medo que tivera de César, o que o irritava mui justamente. E pode-se imaginar quanto mais se irritaria se ouvisse o que depois se disse, a saber, que essa morte tivera por causa a ambição. Que tolice! Pois Catão teria muito mais facilmente perpetrado uma ação generosa e justa pondo as aparências contra si do que se vangloriando. Esse grande homem foi realmente um modelo que a natureza escolheu para nos mostrar a que ponto podem chegar, no homem, a virtude e a resolução. Não me cabe aqui comentar tema tão rico em ensinamentos. Quero apenas estabelecer um paralelo (a fim de realçar sua glória e incidentemente a deles) entre cinco trechos de poetas latinos consagrados ao elogio de Catão. Creio que uma simples criança culta verá logo serem os dois primeiros fracos em relação aos outros. O terceiro, o mais comovente, perde-se pelo exagero; entre este e os dois precedentes há lugar para um ou mais trechos de valor intermediário. Diante do quarto não poderá deixar de cair de mãos postas, de admiração. Mas o primeiro lugar dará ao último trecho que se distancia de todos os outros sem que o intervalo que o separa dos demais possa ser preenchido por nenhum espírito humano. Maravilhar-se-á e ficará tomado de intensa emoção. Coisa espantosa: temos muito mais poetas do que pessoas aptas a julgar e interpretar a poesia. É mais fácil fazê-la do que compreendê-la. A não considerarmos senão a questão secundária da forma, poderemos julgá-la pela aplicação dos preceitos, pela arte com que foi composta; mas no que tem de bom, de sublime, de divino, está acima de todas as regras e de todos os raciocínios. Quem procura, com calma e reflexão, analisar-lhe a beleza não o consegue, como não consegue analisar o esplendor de um relâmpago. Ela não seduz nossa inteligência; encanta-a e a devasta. O êxtase de quem a sabe penetrar se repercute sobre quem a ouve recitar e interpretar. Assim o ímã não somente atrai a agulha mas também lhe infunde a propriedade de atrair outras agulhas. É o que se vê melhor no teatro; a inspiração sagrada das musas, que se apodera do poeta e o enche de cólera, de tristeza, de ódio, contagia o ator e, por este, o público. E o caso das agulhas presas umas às outras. Desde a infância, a poesia produziu em mim o efeito de me penetrar e comover profundamente; mas esse sentimento poético muito vivo e natural em mim foi influenciado de modo diferente segundo a forma, não na sua maior ou menor elevação, porquanto só conheci o que havia de melhor em cada gênero, mas pelo próprio tom da poesia: em primeiro lugar a fluidez graciosa e engenhosa, em seguida a sutileza aguda e nobre; finalmente a força viril e madura. Os nomes de Ovídio, Lucano, Virgílio, que encarnam esses gêneros, são exemplos do que afirmo. Diz um dos poetas, Marcial, que "assim foi Catão, maior na vida do que o próprio César", E outro, Manílio, observa: "que Catão, indomável, triunfou da morte". Outro, Lucano, referindo-se às guerras civis entre César e Pompeu, comenta: "Os deuses abraçam a causa do vencedor, Catão defende a do vencido". Diz o quarto, Horácio, elogiando a César: "Todos estão a seus pés, só o altivo Catão faz exceção". Eis afinal Virgilio, o corifeu, que, após haver enumerado os nomes dos maiores homens de Roma, assim termina: "Enfim Catão, que a todos dita as leis". CAPÍTULO XXXVIII COMO UMA MESMA COISA NOS FAZ RIR E CHORAR Mostra-nos a história Antigônio muito descontente com o filho que lhe apresenta a cabeça do Rei Pirro, seu inimigo, morto momentos antes em combate contra ele. E tendo-a visto põe-se a chorar. O Duque René de Lorena, que lamentou igualmente a morte de Carlos de Borgonha, na derrota que acabava de sofrer, pôs luto no enterro do inimigo. O Conde de Montfort na batalha de Auray, ganha contra Carlos de Blois que lhe disputava o ducado de Bretanha, mandou procurar o corpo do morto e o acompanhou ao túmulo. Tais fatos não nos autorizam entretanto a concluir sem hesitação que: "assim a alma esconde sob um véu enganoso as paixões contrárias que a perturbam; não raro está ela triste quando seu rosto irradia alegria, e alegre quando parece triste". Dizem os historiadores que quando lhe apresentaram a cabeça de Pompeu, César virou o rosto, desviando o olhar, como o faria diante de um triste e feio espetáculo. Tinham estado tanto tempo de acordo e associados na gestão dos negócios públicos; seus destinos se haviam ligado tão amiúde, haviam prestado mútuos serviços tantas vezes, e tantos interesses lhes tinham sido comuns, que não se dirá fosse hipócrita a atitude de César ou contrária a seus sentimentos íntimos, como insinua Lucano: "Logo que pensou poder enternecer-se, sem riscos, sobre o genro, fingiu chorar e arrancou alguns gemidos de um coração transbordante de alegria". Sem dúvida nossas ações, em sua maioria, são máscara e artifício, e é verdade por vezes que "as lágrimas do herdeiro se fazem risos sob a máscara". Cabe, porém, a fim de emitir um juízo em semelhantes circunstâncias, considerar a que ponto somos por vezes agitados por paixões diversas. Em nosso corpo, dizem os médicos, produz-se um conjunto de humores diferentes; um deles domina, aquele que segundo o nosso temperamento atua mais comumente sobre nós. Da mesma forma, entre os múltiplos sentimentos que agitam nossa alma um prevalece, mas não a ponto de impedir que, em virtude da facilidade e flexibilidade que tem a alma de modificar o curso de suas impressões, os mais fracos sejam capazes, ocasionalmente, de sobrepujar o mais forte durante alguns momentos. É o que explica por que as crianças, ingênuas, naturais nas suas expansões, riem e choram muitas vezes pelo mesmo motivo. E nenhum de nós pode vangloriar-se de não ter, não obstante o prazer que pensa auferir de uma bela viagem, sentido faltar-lhe a coragem de deixar família e amigos; e, se não chegou a derramar lágrimas de verdade, não foi nunca sem um aperto no coração que pôs o pé no estribo. Por bela que seja a chama que aquece o coração da jovem de boa família, no momento de entregá-la ao esposo cumpre arrancá-la ao pescoço de sua mãe; em que pesem as palavras do cético jovial: Será Vênus odiosa às jovens esposas, ou caçoam elas da alegria dos pais com todas as lágrimas derramadas à entrada do quarto nupcial? Que eu morra, se tais lágrimas são sinceras! Eis por que não há como estranhar que lamentemos a morte de quem não gostaríamos que vivesse. Quando admoesto meu criado, faço-o tão severamente quanto possível; minhas imprecações são reais, minha cólera não é fingida: mas, passada a borrasca, viro a página. E se precisa de mim vou-lhe em socorro de bom grado. Quando o trato de tonto ou de animal, não o faço para marcá-lo definitivamente, porém não penso desdizer-me se acho, pouco depois, que é um bom sujeito. Nenhum adjetivo nos é aplicável sem restrição. Se não fosse próprio de um louco falar sozinho, não houvera dia em que não me ouvissem gritar comigo mesmo e dizer-me: espécie de idiota, embora com isso não quisesse em absoluto definir-me. Quem me vê emburrado diante de uma mulher e logo em seguida sorridente, e pensa que em um caso ou noutro não sou sincero, é um imbecil. Nero, dizendo adeus à sua mãe, que ia ser afogada por sua ordem, mostrou-se comovido, cheio de horror e piedade. Dizem que a luz do sol não nos atinge de um jato; que o sol nos envia raios sucessivos, mas com tal rapidez e em tal profusão que não lhes podemos apreender a intermitência: "fonte fecunda de luz, o sol brilhante inunda sem descontinuidade o céu de uma claridade renascente, substituindo sem cessar seus raios por outros raios novos". Da mesma forma, lançam-se de nossa alma, sem que nos apercebamos, mil e uma manifestações. Xerxes, às margens do Helesponto, considerava quanto seus exércitos que atravessavam o estreito estavam fora de proporção com a Grécia contra a qual os conduzia. Experimentando a princípio um sentimento de bem-estar diante de tantos milhares de homens de que era senhor, satisfação e alegria lhe vieram ao rosto. Mas eis que se põe a pensar que todas essas vidas terão terminado dentro de um século ao mais tardar e ante essa ideia sua fronte se enruga e a tristeza arranca-lhe lágrimas, o que lhe censura Artábano, seu tio e testemunha da súbita mudança de atitude. Com absoluta resolução chegamos a vingar-nos de uma injúria e sentimos um contentamento singular por termos alcançado o objetivo; no entanto choramos por vezes. Não é, porém, porque atingimos a meta que choramos; desse ponto de vista não mudamos, mas nossa alma vê a coisa com outros olhos, encara-a por outro ângulo, pois tudo pode ser encarado de diferentes lados e apresentar aspectos diversos. O parentesco, as relações antigas, a amizade do passado voltam-nos ao espírito e a passagem de um aspecto a outro é tão brusca que se torna imperceptível: "nada há tão rápido quanto o espírito quando concebe ou age; a alma é móvel por isso, e mais do que tudo o que nos apresenta a natureza". E erramos quando com esses movimentos todos queremos constituir um conjunto a desenrolar-se de maneira seguida. Quando Timoleão chora a morte que, em consequência de madura e generosa resolução, acaba de cometer, não é sobre a liberdade devolvida à sua pátria que derrama lágrimas, nem sobre o tirano que imolou; é o irmão que ele chora. Cumpriu uma parte de seu dever; deixemo-lo desempenhar a outra. CAPÍTULO XXXIX DA SOLIDÃO Deixemos de lado qualquer comparação, por demasiado longa, entre a vida solitária e a vida mundana; e quanto a esta bela frase que dissimula a ambição e a avareza: não nascemos para nossa própria satisfação e sim para a de todos, apelemos para os que estão na dança e que após cuidadoso exame de consciência nos respondam se os trabalhos, os encargos e os aborrecimentos da vida na coletividade são procurados e aceitos por outros motivos que não o proveito pessoal ambicionado. Os meios pouco confessáveis que empregamos em nosso século para avançar, bem demonstram o nenhum valor do objetivo fixado. Se para combater nossa tendência para a solidão a atribuírem à ambição, responderemos que é precisamente esta que nos inspira, pois quem mais do que a ambição foge da sociedade, e que deseja mais senão a inteira liberdade? Praticar o bem ou o mal é possível em toda parte, entretanto se o que diz Bias é certo, "que a maioria dos homens é também a pior", ou o que se escreve no Eclesiastes, "que sobre mil não há um que preste", ou ainda o poeta, "raros são os bons, apenas se achariam tantos quantas as portas de Tebas ou as embocaduras do Nilo", grande é o contágio do mal para quem vive na sociedade. É preciso imitar os viciados ou odiá-los, alternativas igualmente perigosas. Imita-los porque são muitos; odiá-los porque são diversos. Por isso os negociantes que viajam por mar evitam que subam a seus navios pessoas dissolutas, blasfemadoras ou más, porquanto tal aglomerado de gente só pode ter péssimas consequências. Por isso, também, dizia Bias àqueles em cuja companhia enfrentava violenta tempestade e que invocavam a proteção divina: "Calai, que Deus não perceba que estais aqui comigo". O exemplo de Albuquerque, vice-rei da Índia, é mais típico ainda. Correndo o risco de morrer em acidente marítimo, tomou uma criança pequena aos ombros, a fim de que, no perigo comum, sua inocência lhe servisse de garantia. Não é que o homem sábio não possa viver satisfeito onde quer que seja e isolar-se no meio dos cortesãos que entopem o palácio; mas se lhe for dado escolher, evitará até o simples espetáculo deles, dizem os filósofos. Se necessário resignar-se-á a ficar; se puder, escolherá outra situação. Não lhe parecerá suficiente libertar-se dos próprios vícios, se tiver ainda de lutar contra os dos outros. Charondas punia como maus os que comprovadamente andavam em más companhias. Não há ser mais sociável ou menos sociável do que o homem; é ele uma coisa pela sua própria natureza e outra em consequência de seus vícios. Antístenes não foi a meu ver judicioso quando, a alguém que lhe censurava as más companhias, respondeu: "os médicos também vivem com os doentes". Em verdade os médicos cuidam da saúde dos doentes, mas comprometem a sua, pelo contágio e a influência perniciosa da presença contínua da doença. O fim que visamos quando procuramos a solidão é, creio, viver mais à vontade e como nos agrada; mas nem sempre acertamos com o caminho. Amiúde imaginamos ter abandonado quaisquer ocupações e não fazemos senão mudar de atividade. O governo de uma família não causa menos aborrecimentos que o de um Estado. Ao que quer que se entregue, o espírito entrega-se por inteiro, e em sendo as ocupações domésticas menos importantes nem por isso são menos importunas. Mais ainda: podemos retirar-nos da Corte, renunciar aos negócios, não estaremos contudo ao abrigo dos principais tormentos da vida: "são a razão e a prudência, e não essas praias de onde se vê a imensidade do mar, que dissipam a tristeza". A ambição, a avareza, a indecisão, o medo e a concupiscência não nos abandonam tão somente porque mudamos de lugar: "a preocupação monta na garupa e galopa com eles". Acompanham-nos até nos claustros e nas escolas de filosofia. Não há desertos, cavernas nos rochedos, mortificações e jejuns que nos libertem: "a seta mortal continua presa a seus flancos". Diziam a Sócrates de alguém que de nenhum defeito se corrigira durante a longa viagem que realizara: "bem o creio", retrucou o filósofo, "ele se levara a si mesmo em sua companhia". "Por que procurar países iluminados por outros sóis? Bastaria então fugir da pátria para fugir de si mesmo?" Se preliminarmente não descarregamos a alma do peso que a oprime, mais se machucará com o movimento; assim o navio se estraga menos se a carga é bem distribuída. Mais mal do que bem faz-se ao doente em o mudando de lugar. Com o movimento, o mal acumula-se no fundo dele, como o conteúdo de um saco quando sacudido, e como a estaca afunda e se solidifica quanto mais a tentam abalar. Não basta pois deslocar-se, evitar a multidão, é preciso ainda afastar de nós as ideias que nos são comuns, a ela e a nós. É preciso que nos sequestremos e tomemos posse de nós mesmos: "quebrei os ferros, dizeis? Sim, o cão, depois de ter puxado a corrente e a ter partido, foge mas arrastando uma parte ao pescoço". Carregamos nossos ferros conosco, nossa liberdade não é completa, volvemos o olhar para o que deixamos e que nos emprenha a imaginação: "Se a alma não é pura, quantos riscos corremos! Quantas lutas sem proveito contra nós mesmos! Quantas preocupações amargas, quantos temores, quantas inquietações roem o homem prisioneiro de paixões! Que devastações produzem em nosso espírito o orgulho, a luxúria, a cólera, o luxo, a moleza e a preguiça!" "Nosso mal está dentro da alma e esta não pode fugir de si mesma.” E necessário, pois, extirpa-lo dela e então nos concentrarmos em nós mesmos. Nisso consiste a verdadeira solidão, a que podemos gozar na cidade e na Corte, mas que gozamos melhor no isolamento. Se projetamos viver sozinhos, longe de todos, façamos com que nossa satisfação só dependa de nós; destruamos tudo o que nos amarra aos outros, arranjemo-nos de maneira a viver efetivamente sós, e, nesta condição, sem mais preocupações. Estílpon escapara do incêndio de sua cidade natal, mas perdera a mulher, os filhos e tudo o que possuía. Vendo-o sereno em tão sombria situação, perguntou-lhe Demétrio Poliorcetes se não tivera prejuízos. "Ao que ele respondeu que, mercê de Deus, nada perdera de seu." É o que exprimia de modo jocoso o filósofo Antístenes: "O homem deve abastecer-se de provisões suscetíveis de flutuar, a fim de que possa, em caso de naufrágio, salvá-las a nado". E, com efeito, o sábio nada perde em conservando a posse de si mesmo. Quando a cidade de Nola foi saqueada pelos bárbaros, Paulino, bispo do lugar, perdeu todos os seus bens e foi feito prisioneiro. Nem por isso deixou de endereçar diariamente a Deus esta prece: "Preservai-me, Senhor, de sentir esta desgraça, pois o que está em mim, bem o sabeis, não foi até agora atingido". As riquezas que o faziam realmente rico, os bens que o faziam bom, continuavam intatos. Cumpre, pois, selecionar os tesouros que podem ser preservados de quaisquer danos e escondidos em lugar fora do alcance de qualquer um e que só nós mesmos podemos revelar. É preciso ter, se possível, mulher, filhos, fortuna e principalmente saúde, mas não se prender a isso a ponto de prejudicar nossa felicidade. É preciso ter como reserva um recanto pessoal, independente, em que sejamos livres em toda a acepção da palavra, que seja nosso principal retiro e onde estejamos absolutamente sozinhos. Aí nos entreteremos de nós com nós mesmos, e a essa conversa, que não versará nenhum outro assunto, ninguém será admitido, Aí nos abandonaremos a nossos pensamentos sérios ou divertidos, como se não tivéssemos mulher nem filhos, nem bens, nem casa, nem criadagem, de maneira que se um dia eles nos faltarem não nos custe demasiado a carência. Temos uma alma suscetível de se recolher, de se bastar em sua própria companhia, de atacar e defender-se, de dar e receber; não nos receemos, portanto, nesse diálogo com nós mesmos, de vegetar em uma aborrecida ociosidade. "Na tua solidão, sê para ti mesmo o mundo". A virtude satisfaz-se com ser, sem necessidade de regras, palavras e consequências. Em nossas ocupações habituais não há uma entre mil que nos diga respeito. Este, que vês furioso e fora de si, escalar as ruínas do forte, em meio à fuzilaria; e o outro que, cadavérico, esfomeado, coberto de cicatrizes e decidido antes a morrer do que a deixar passar o inimigo, imaginas que agem por conta própria? Pois é por conta de fulano e beltrano, que nunca viram, fulano e beltrano que não se preocupam sequer com seus feitos e mergulham no ócio e nos prazeres enquanto eles se matam. Aquele que vês sair depois da meia-noite de seu gabinete de estudo, tomado de pituíta, olhos doentes, miseravelmente vestido, pensas que passou seu tempo a buscar nos livros o que lhe cumpre fazer para se aperfeiçoar no bem, para se satisfazer com a sorte e progredir em sabedoria? Nada disso! Morrerá na tarefa ou acabará revelando à posteridade o ritmo em que se escreveram os versos de Plauto ou a verdadeira ortografia de certa palavra latina. Quem não troca deliberadamente a saúde, o repouso e a vida, pela reputação e a glória, as mais inúteis e vãs, e falsas, das moedas correntes? Como se nossa própria morte já não nos inspirasse suficiente terror, interessamo-nos pela de nossas mulheres, filhos e servidores! Como se não tivéssemos bastantes aborrecimentos, acrescentamos aos nossos os dos nossos vizinhos e amigos! Como pode um homem pretender amar mais a alguma coisa do que a si mesmo? A solidão parece-me em particular indicada, e necessária, àqueles que consagraram à humanidade a mais bela parte de sua vida, a mais ativa e produtiva, como o fez Tales. Já vivemos bastante para os outros, vivamos para nós ao menos durante o pouco tempo que nos resta. Isolemo-nos, e na calma, rememoremos nossos pensamentos e nossas intenções. Não é nada fácil um retiro consciencioso; isso nos preocupará suficientemente para que não procuremos atrelar-nos a outros empreendimentos. Desde que Deus nos dá lazeres a fim de nos prepararmos para deixar este mundo, mãos à obra, arrumemos nossas bagagens. Com antecedência digamos adeus a todos; libertemo-nos desses compromissos que nos amarram a outrem e nos distraem de nós mesmos. É preciso romper com quaisquer obrigações imperativas. Talvez ainda gostemos disto ou daquilo, mas só a nós mesmos poderemos desposar. Em outras palavras, o que está fora de nós pode não nos ser indiferente, mas não a ponto de se colar a nós de modo que não se arranque sem nos esfolar e sem levar alguma parcela de nós. A coisa mais importante do mundo é saber pertencermo-nos. Já é tempo de nos retirarmos da sociedade, porquanto nada mais lhe podemos dar e quem não está em condições de emprestar não deve pedir emprestado. Se nos faltam forças, recuemos e nos recolhamos. Quem puder então emprestar a si próprio os serviços que de costume se esperam da amizade e da sociedade, preste-os. Mas nessa queda que o torna inútil, importuno e pesado a outrem, evite tornar-se inútil, importuno e pesado a si próprio. Que se elogie e se trate, mas se domine; que respeite e tema sua razão e sua consciência para que não dê, sem se envergonhar, um passo em falso diante delas: "É raro, com efeito, que alguém saiba respeitar-se suficientemente". Diz Sócrates que os jovens devem instruir-se; os homens feitos procurar agir acertadamente; os velhos abandonar toda ocupação civil ou militar e viver para sua ideia, sem obrigações precisas. Há temperamentos mais ou menos predispostos a se conformarem com tais princípios. Os tímidos, os fracos, cujos sentimentos e vontade não se dobram (e sou desses tanto por tendência natural como pelo raciocínio) aceitam-nos mais facilmente do que aqueles cuja atividade e necessidade de ação levam a se meter em tudo, a se apaixonar por tudo, aqueles que se oferecem, se apresentam e se dão em quaisquer circunstâncias. E preciso valermo-nos das vantagens que porventura encontramos em torno de nós, mas na medida em que nos convêm e sem fazer delas um alicerce essencial. Não o seriam, pois a razão e a natureza não o aprovam. Por que, desobedecendo às suas leis, nos colocaríamos, no que respeita à nossa comodidade, sob a dependência de outrem? Antecipar-se aos acidentes que pode provocar a má sorte, não é coisa de se fazer. Privar-se voluntariamente das satisfações ao nosso alcance, como o fazem alguns por devoção e certos filósofos por convicção; dispensar criados; dormir ao relento; vazar os próprios olhos; deitar fora riquezas; procurar a dor, como o fazem muitos na esperança de que os sofrimentos em vida lhe acarretem a eterna beatitude no outro mundo; ou como fazem outros que pensam, em descendo ao degrau mais baixo da sociedade, garantir-se contra queda maior, são coisas que resultam de exagerada virtude. Que as naturezas particularmente severas e resolutas assim se defendam contra os vendavais deste mundo é coisa que as honra e vale como exemplo: "Quanto a mim, se não posso ter muito, contento-me com pouco e louvo a possível mediocridade; se minha fortuna melhora, proclamo que não há sábios e homens felizes senão entre aqueles cuja renda provém de boas terras”. Creio que muito se pode fazer sem ir tão longe. Basta-me a mim, quando a sorte me sorri, preparar-me para suas infidelidades, e representar-me, enquanto tenho o espírito livre, o mal que me pode ocorrer; assim em plena paz nos entregamos às justas e aos torneios, a fim de nos exercitarmos para a guerra. Não considero o filósofo Agesilau menos digno, só porque usava baixela de ouro e prata, de acordo com sua fortuna; estimo-o mais por tê-la usado com moderação e liberalidade do que se dela se houvesse desfeito. Procuro verificar até onde podem ir as necessidades a que estamos expostos. Quando vejo um pobre mendigar à minha porta, tento fazer com que meu pensamento se amolde ao seu. E passando dele a outros em idênticas condições, sou impelido a pensar na morte, na pobreza, na perda de consideração e na doença, que podem ocasionalmente acontecer-me. A apreensão que experimento atenua-se à ideia da paciência com que outros, em piores situações, acatam suas desventuras, pois não posso acreditar que a fraqueza de espírito seja, em semelhante ocorrência, mais eficiente que a firmeza de ânimo, ou que a razão não possa conduzir aos mesmos resultados que o hábito. Sabendo quanto essas comodidades da vida, tão supérfluas, são frágeis, ao gozá-las não deixo de pedir a Deus a mercê de fazer com que me sinta satisfeito comigo mesmo e com o que possuo. Vejo pessoas ainda jovens e em perfeita saúde ter sempre em casa quantidade de pílulas para o caso de sobrevir um resfriado, o qual tanto menos receiam quanto imaginam ter o remédio à mão. É preciso agir de maneira idêntica; e se nos sentimos expostos a alguma doença séria devemos prover-nos de drogas que acalmem e adormeçam o órgão ameaçado. A ocupação que cumpre escolher quem procura a solidão, não deverá ser nem cansativa nem aborrecida, pois de outro modo não valeria a pena isolar-se no intuito de encontrar o repouso. Depende ela da predileção natural de cada um. A minha tendência não me induz a valorizar minhas propriedades; os que apreciam tal atividade a ela se entreguem pois, mas com moderação: "que busquem colocar-se acima das coisas, em vez de se sujeitar a elas", sem o que a ocupação se transformará em servidão, como diz Salústio. Entre as ocupações que comporta a exploração de uma propriedade, algumas há que eu compreendo e desculpo. Cuidar do jardim, por exemplo, o que, segundo Xenofonte, fazia Ciro. E é possível encontrar um meio-termo entre o trabalho grosseiro, pesado, exigente de atenção que se impõe a quem se dedica por inteiro a ele e a displicência profunda, excessiva dos que deixam tudo ao abandono: "O gado dos vizinhos vinha comer as colheitas de Demócrito enquanto, liberto do corpo, seu espírito viajava pelo espaço”. Ouçamos o conselho de Plínio, o Jovem, a seu amigo Carúnio Rufo a respeito da vida solitária: "No retiro absoluto que criaste, e onde tens a possibilidade de viver como entendes, aconselho-te abandonares a teus servidores as tarefas penosas e humilhantes, e te entregares ao estudo das letras, a fim de chegares a produzir alguma coisa pessoal". Plínio quer dizer com isso que aplicasse seus lazeres em criar um nome. E o que pensava Cícero, que dizia querer empregar a solidão e o repouso que lhe deixariam os negócios públicos em conquistar com seus escritos uma glória imortal: "Teu saber nada valerá se não souberem que tens saber". Seria normal, a meu ver, que olhasse para fora do mundo quem dele quer retirar-se. Plínio e Cícero só o fazem entretanto por metade; tudo dispõem para o momento em que se hão de retirar, mas por uma ridícula contradição, embora separados do mundo, deste é que pretendem tirar sua satisfação. Os que por devoção procuram a solidão, e se animam na certeza de outra vida acenada pelas promessas divinas, são mais coerentes. Aspiram a Deus, infinitamente bom e poderoso, e sua alma, livre, encontra à saciedade a satisfação dos desejos que concebe no retiro. Aflições e dores são-lhes vantajosas, porquanto constituem créditos a mais para um dia possuírem a saúde e a felicidade eternas. A morte se lhes afigura desejável porque os introduzirá na perfeição. O rigor das regras que se impõem é atenuado desde o início pelo hábito, e os apetites da carne, repelidos sem cessar, adormecem afinal, pois nada os entretém melhor do que o uso e os exercícios. Essa outra vida feliz e imortal que se lhes promete, merece, sozinha, que renunciem sem restrições às comodidades e doçuras da nossa. Quem pode abrasar a alma com a chama dessa fé que nada abala e dessa esperança que engendra uma convicção real e constante, leva na solidão uma existência cheia de volúpias e de delícias, que deixa muito distantes todas as satisfações outorgadas por qualquer outro gênero de vida. Nem o objetivo que aponta Plínio, nem o meio que propõe satisfazem portanto. Vamos assim de mal a pior. Dedicar-se às letras é trabalho tão penoso como outro qualquer e igualmente perigoso para a saúde, o que é o ponto essencial a ser considerado. E não nos devemos deixar encantar pelo prazer que tiramos dele, pois é sempre o prazer excessivo, que o homem aufere da satisfação do que mais aprecia, que o perde, seja ele avarento, voluptuoso ou ambicioso. Os sábios advertem-nos assaz contra a traição de nossos apetites; ensinam-nos a discernir, entre os prazeres que se nos oferecem, os verdadeiros e não suscetíveis de amargor dos que não são sem mistura e dos quais cumpre esperar mais fadiga do que satisfação. A maior parte dos prazeres, dizem, acaricia-nos e nos abraça para nos estrangular, como faziam os bandidos a que os egípcios chamavam filistas. Se a dor de cabeça da embriaguez ocorresse antes e não depois, evitaríamos beber demais; pois a volúpia age como a embriaguez: para melhor nos enganar vai à frente, escondendo-nos as consequências que acarreta. As letras são um agradável passatempo, mas se nos devemos absorver nelas a ponto de perdermos a alegria e a saúde, o que em suma nos é mais precioso, renunciemos. Sou de opinião que as vantagens que elas nos oferecem não compensam tais prejuízos. Os homens enfraquecidos por alguma enfermidade prolongada acabam por se entregar ao médico e se submetem a determinadas regras de vida a que não devem desobedecer; ora, quem, por desgosto ou aborrecimento, se retira da vida na sociedade deve guiar-se pelas regras da razão, e ordenar a nova existência com prudência e sensatez. Deverá renunciar a qualquer trabalho, como quer que se apresente, e também de um modo geral evitar as paixões que perturbam a tranquilidade do corpo e do espírito e "escolher o caminho mais adequado a seu temperamento". Que se dedique ao governo da casa, ao estudo, à caça ou a outro exercício se nisso se compraz, mas que não vá além do prazer porque então começa a fadiga. É preciso não inventar tarefas nem ocupações senão dentro dos limites em que se impõem para nos manter em forma e preservar dos incômodos que acarreta o exagero contrário, a ociosidade que amolece e embota. Há ciências estéreis e árduas que em sua maioria interessam principalmente a sociedade. Que as estudem os que estão a serviço desta. Quanto a mim, só aprecio os livros agradáveis e fáceis, que me distraem, cuja leitura é agradável, ou então os que me consolam e me fornecem regras para orientar a vida e preparar-me para a morte, "passeando em silêncio pelos bosques e ocupando-me de tudo o que é digno de um homem bem-ordenado e virtuoso”. As pessoas mais sábias do que eu, de alma mais forte e elevada, podem criar para si um repouso inteiramente espiritual. Eu, que a tenho como todo mundo, preciso que as comodidades do corpo me ajudem. E, tendo chegado à idade de perder as que mais me apeteciam, procuro as que me permite ainda esta época da vida, e arranjo-me para aproveitá-las. E preciso, por todos os meios possíveis, inclusive unhas e dentes se necessário, que conservemos o gozo das satisfações da vida que os anos nos arrancam aos poucos, umas após outras, das mãos: "gozemos; somente os dias que damos ao prazer são nossos; brevemente não serás mais que cinza, sombra, fábula". Plínio e Cícero sugerem-nos como objetivo a glória. Não me interessa nem de longe. A disposição de espírito mais contrária à vida solitária está na ambição. Glória e repouso são incompatíveis entre si. Plínio e Cícero somente livraram o corpo da multidão; mais do que nunca a ela se prenderam pelo espírito e a intenção: "velho pândego, então só trabalhas para divertir o povo?” recuaram para melhor saltar e mediante violento impulso caíram em cheio no rebanho. Quereis ver a que ponto estão errados? Comparemos sua opinião com as de Epicuro e Sêneca, filósofos pertencentes a escolas diversas e escrevendo um a Idomeneu e outro a Lucílio, seus amigos, a fim de induzi-los a abandonarem a vida pública, com suas grandezas, e a se retirarem: Vivestes até agora - dizem eles - nadando e flutuando pelos mares; voltai ao porto para morrerdes. Passastes a vida em plena luz, vivei à sombra o tempo que vos resta. Não vos libertaríeis de vossas ocupações se ao mesmo tempo não renunciásseis aos benefícios que vos outorgam; eis por que é preciso que abandoneis qualquer ideia de glória e renome. Seria prejudicial para vosso repouso que a irradiação de vossos feitos do passado vos acompanhasse em vosso refúgio, pondo-vos demasiado em evidência. Com os outros prazeres renunciai ao que emana do aplauso dos homens. Quanto a vosso saber e a vossas capacidades, não vos preocupeis; não estarão perdidos se vós mesmos valerdes mais. Lembrai-vos daquele sujeito a quem perguntavam por que se esforçava tanto por adquirir um saber de que poucas pessoas teriam conhecimento; respondeu ele: Contento-me com poucos; contento-me com um; contento-me com nenhum. Estava certo. Vós e mais um já vos bastareis neste teatro da vida, em vos servindo mutuamente de público; e se estais só, sede a um tempo ator e espectador. Que o público seja para vós uma só pessoa e que uma só pessoa tenha a importância de um grande público. É covarde ambição querer auferir glória e renome da ociosidade e da solidão; fazei como os animais que apagam suas pegadas à entrada de seu covil. Não vos deveis esforçar para que o mundo fale de vós; só vos deveis preocupar com o que dizeis a vós mesmos. Recolhei-vos em vós, mas antes preparai-vos para vos receber. Pois seria loucura confiardes em vós se não sabeis governar-vos. Pode-se errar na vida solitária como quando se vive na sociedade. Enquanto não puderdes mostrar uma atitude irrepreensível, enquanto não inspirardes a vós mesmos respeito e pudor, oferecei a vosso espírito nobres imagens; tende sempre presentes à imaginação Catão, Fócion, Aristides, diante dos quais os próprios loucos esconderiam seus erros; e fazei-vos juízes de vossas intenções. Se estas não forem o que deveriam ser, a deferência que por eles tendes vos indicará o caminho certo. Eles vos ajudarão a vos bastardes, a nada pedirdes senão a vós mesmos, a fazerdes com que vosso espírito se atenha às meditações em que possa com prazer-se. Assim compreendereis quais os verdadeiros bens, de que gozamos na medida em que os vamos entendendo, e assim sereis felizes, sem desejar que vossa vida se prolongue e vosso nome se torne famoso. Eis um conselho de verdadeira e natural filosofia, e não de uma filosofia de ostentação e verborragia como a de Plínio e Cícero. CAPÍTULO XL CONSIDERAÇÕES ACERCA DE CÍCERO Mais um fato que ressaltará a diferença entre Epicuro e Sêneca de um lado e Cícero e Plínio de outro; os escritos deste, que se assemelham bem pouco aos de seu tio, e os de Cícero são testemunhos irrecusáveis de naturezas ambiciosas. Pois, entre outras coisas, não solicitam eles abertamente aos historiadores de seu tempo que não os esqueçam em suas obras? O destino, como que para zombar, fez que nos chegassem às mãos esses vaidosos apelos quando de há muito perdidas as obras em que se fala deles. Mas o que revela a mesquinhez de sentimentos desses personagens de alto coturno é terem querido tirar renome e glória de sua intemperança e futilidade de linguagem, e até guardando para a posteridade as cartas que escreviam a parentes e amigos, indo ao cúmulo de publicar algumas que não chegaram a ser enviadas, sob a alegação de não desejarem perder seu trabalho e suas vigílias. Não me parece decente que dois cônsules romanos, primeiros magistrados de uma república que governava o mundo, empregassem seus lazeres em preparar e adornar belas missivas no intuito de adquirir a reputação de bem escreverem a língua de suas amas de leite. Faria pior um simples mestre-escola que com isso ganhasse a vida? Se os feitos de Xenofonte e César não houvessem ultrapassado de muito sua eloquência, duvido que os tivessem escrito. O que procuraram tornar conhecido foi sua conduta nos acontecimentos de que participaram e não sua maneira de os contar. Se a perfeição da linguagem pudesse granjear uma glória de bom quilate, Cipião e Lélio não teriam por certo cedido a um escravo africano a honra que podiam auferir de suas comédias e outros escritos em que ressaltam as mais deliciosas sutilezas da língua latina, pois é indiscutível ser deles a obra de Terêncio, coisa que o próprio autor confessa e se evidencia em sua beleza e perfeição. E lamentaria muito que me provassem o contrário. É grotesco e injurioso procurar valorizar alguém em lhe atribuindo qualidades, por mais louváveis que sejam em si, que não convenham à sua condição social; ou que não devam figurar em primeiro plano. É como se elogiassem um rei por ser bom pintor, ou bom arquiteto, ou bom atirador, ou bom corredor de argolas. Tais elogios somente são honrosos quando se acrescentam aos que a pessoa merece pelas qualidades adequadas à situação que ocupa. No caso tomado como exemplo, o espírito de justiça do príncipe, a habilidade com que governa na paz como na guerra. Assim é que seus conhecimentos de agricultura honraram Ciro; que sua eloquência e sua cultura literária honraram Carlos Magno. Vi outrora personagens, que deviam seus títulos e sua situação a seu talento caligráfico, renegarem seu aprendizado, exibirem uma letra ruim, afetarem profunda ignorância de tão vulgar saber que o povo acredita não se encontrar entre as pessoas de certa classe, e tentarem recomendar-se por qualidades mais importantes. Os companheiros de Demóstenes, enviado em missão junto a Filipe, elogiavam o príncipe por ser belo, eloquente e grande bebedor. Tais qualidades, atalhou Demóstenes, honrariam mais uma mulher, um advogado e uma esponja, do que um rei. Este deve comandar, esmagar o inimigo que resiste, mostrar-se clemente em relação aos que reduz à impotência. Não é profissão real dançar bem ou caçar bem: Que outros discursem com eloquência; que outros, armados de compassos, descrevam os movimentos dos céus, predigam o curso dos astros. Seu papel consiste em saber governar. Plutarco vai mais longe e acha que, mostrar-se alguém superior nas coisas acessórias, é prova de que não aproveitou seu tempo, não o empregou quanto devia no estudo do necessário e do útil. E o que levava Filipe, rei da Macedônia, a dizer a seu filho Alexandre, o Grande, o qual cantava em um festim exibindo um talento suscetível de infundir inveja aos melhores músicos: "Não tens vergonha de cantar assim tão bem?" E idêntico sentimento fez que um músico, com o qual o mesmo Filipe discutia arte, respondesse: "Deus vos preserve, senhor, de experimentardes algum dia desastres de tal monta que possais chegar a ser mais perito do que eu nessa matéria". Um rei deve poder responder como o fez de uma feita Ificrates a um orador que em sua arenga o apostrofara nestes termos: "Quem és, para te mostrares tão bravo? Guerreiro, archeiro, lanceiro?" - "Não sou nada disso, mas sou aquele que sabe comandar toda essa gente." Antístenes viu um indício da mediocridade de Ismênias no fato de o louvarem por ser excelente tocador de flauta. Quando ouço alguém se referir ao estilo dos "Ensaios", preferiria que calasse. Pois não são tanto as expressões que relevam; são as ideias que denigram e com tanto maior mordacidade quanto o fazem de maneira indireta. Pude enganar-me, mas quantos outros se prestam mais ainda à crítica no mesmo gênero! O fato é que, bem ou mal, nenhum escritor ventilou maior número de assuntos, nenhum, em todo o caso, os deitou no papel. Para que aí se agrupem mais e mais, enuncio-os apenas; se os desenvolvesse, muitos volumes mais seriam necessários e não apenas um. Muitos fatos aí se mencionam que nada dizem. Quem os quiser analisar engenhosamente fará longos ensaios. Nem eles nem minhas alegações servem sempre simplesmente de exemplo ou se apresentam para dar autoridade ao texto, e maior interesse à obra. Não os encaro apenas do ponto de vista do partido que deles tiro: comportam por vezes, independentemente de minha intenção, a semente de uma matéria mais rica e ousada e revelam, indiretamente, algo mais requintado, tanto para mim, que não quero exprimir mais, como para os que se encontrarem comigo. Voltando à questão do talento literário, acho que entre só saber exprimir-se defeituosamente e saber unicamente falar bem, não há muito que escolher. "A elegância não é adorno para o homem." Dizem os sábios que, do ponto de vista do saber, só a filosofia, e, do ponto de vista dos atos, só a virtude se acertam a todas as idades e condições sociais. Encontramos em Epicuro e Sêneca alguma coisa semelhante às ideias de Plínio e Cícero: eles também dizem que as cartas que escrevem a seus amigos viverão eternamente. Mas é de outro modo e se adaptando, em vista de um fim útil, à vaidade dos outros. Explicam-lhes que se é o desejo de renome e fama que os amarra ainda às funções públicas e os induz a temerem a solidão, suscetível de prejudicar tal resultado, podem tranquilizar-se: eles, Epicuro e Sêneca, gozam de suficiente crédito sobre a posteridade para lhes assegurar, ainda que tão somente pelas cartas que lhes enviam, que seus nomes serão conhecidos e mais famosos do que o seriam pelos atos de sua vida pública. Além dessa diferença, as cartas de nossos dois filósofos não são dessas cartas vazias e sem consistência que apenas se salientam por alguma delicadeza de expressão, algum ritmo harmônico; são substanciais, cheias de sabedoria, e quem as lê não se faz mais eloquente e sim mais avisado; não nos ensinam a bem dizer, e sim a bem fazer. Abaixo a eloquência que atrai nossa atenção para ela mesma e não para seus temas. Observemos, entretanto, que a de Cícero, de tão perfeita, adquiriu valor próprio. A propósito, contarei uma anedota que põe em evidência a sua natureza. Tinha de falar em público e não lhe sobrara tempo para preparar convenientemente seu discurso. Eros, um de seus escravos, veio preveni-lo de que o comício fora adiado para o dia seguinte. Pois Cícero ficou tão contente com a notícia que o forrou. Uma palavra acerca desse gênero epistolar em que meus amigos julgam que eu poderia alcançar algum êxito e que de bom grado teria escolhido para publicar meus devaneios se soubesse a quem endereçar as cartas. Para tanto fora preciso que tivesse hoje, como tinha outrora, uma pessoa com a qual mantivesse relações contínuas, que me agradassem, me animassem e me inspirassem. Pois raciocinar ao léu como fazem outros, só o faria em sonho. Inimigo declarado de tudo que é falso, não poderia entreter-me de coisas sérias com correspondentes imaginários. Fora mais atento e claro no que escrevo se me dirigisse a um amigo, de cuja inteligência e caráter tivesse ideia precisa, do que me dirigindo a um público formado de toda espécie de gente. E estou certo de que me teria dado muito bem. Meu estilo, espontâneo e familiar, não convém ao trato dos negócios públicos, mas é bem meu, de acordo com minha maneira de falar, que é substancial, desordenada, sincopada, de um tipo muito particular. Não sei escrever cartas cerimoniosas, que são no fundo uma sequência de belas frases amáveis. Os longos protestos de afeição e de dedicação não estão em minhas formas nem são de meu gosto. Não acredito nisso e não sei dizer o que não penso. Eis-me bem longe dos hábitos de hoje, que comportam um esbanjamento de fórmulas obsequiosas e servis, realmente de uma prolixidade jamais vista, e em que se abusa nas relações comuns de palavras como vida, alma, devoção, servo e escravo, de modo que, se desejamos acentuar uma simpatia especial e respeitosa, os termos para fazê-lo nos faltam. Aborrece-me parecer adulador, e como tenho naturalmente a expressão concisa, direta, sem adornos, considera-me algo desdenhoso quem não me conhece por outros aspectos. Os que eu mais admiro e respeito são os que menos demonstro admirar e respeitar, e quando me sinto particularmente feliz esqueço as convenções mundanas. Em relação às pessoas de que dependo, mostro-me pouco solícito e algo altivo; e agrado ainda menos os que me são mais caros. Parece-me que devem ler em meu coração e que minhas palavras trairiam a expressão certa de meus sentimentos. Trate-se de dar boas-vindas, de dizer adeus, de agradecer, de oferecer meus préstimos, ou de quaisquer outros cumprimentos enfáticos que determina o cerimonial da boa sociedade, não conheço ninguém que se sinta tão inibido quanto eu. Nunca escrevi uma carta de recomendação que o destinatário não achasse seca ou mole. Os italianos gostam de editar correspondências. Possuo cerca de cem volumes de cartas, entre as quais as de Aníbal Caro se me afiguram as melhores. Se possuísse todas as cartas que escrevi às mulheres, na mocidade, quando minha pena traduzia os impulsos de meu coração, talvez nelas se encontrassem páginas dignas de ser divulgadas entre os jovens ociosos e atormentados com idênticas paixões. Escrevo sempre minhas cartas às pressas, tão precipitadamente que embora tenha uma péssima caligrafia prefiro ainda escrevê-las eu mesmo a recorrer a alguém, pois não acho quem possa acompanhar-me quando dito. Ademais não recopio nunca. Habituei os altos personagens que me conhecem a admitirem minhas rasuras e correções, bem como meu papel sem dobra nem margens. As cartas que mais exigem de mim são as que menos importam; quando demoro em redigi-las é sinal de que não me sinto disposto a enviá-las. Começo em geral sem plano predeterminado; uma frase puxa a outra. Hoje os preâmbulos e os enfeites ocupam mais espaço do que o próprio assunto. Escrever duas cartas custa-me tanto quanto dobrar e lacrar uma única, por isso deixo a outrem esse cuidado. Não menos alegremente outorgaria a alguém, ao encerrar meu assunto, a tarefa de acrescentar essas longas arengas, esses protestos e cumprimentos com que terminamos nossas cartas e que espero ver abolidos algum dia por alguma nova moda. Da mesma forma, aborrece-me transcrever a teoria de títulos e qualidades do destinatário, o que muitas vezes, de medo de me enganar, me levou a não escrever, principalmente a homens de finanças e de leis. Inventaram-se tantos cargos novos, proliferaram a tal ponto as distinções honoríficas e de tal ordem é sua hierarquia que, além da dificuldade em diferencia-las, nos arriscamos a confusões e ofensas tanto mais graves quanto custaram muito caro a seus donos. Sobrecarregar as páginas de rosto de nossos livros com dedicatórias e louvações parece-me igualmente de muito mau gosto. CAPÍTULO XLI O HOMEM NÃO CEDE A OUTREM A GLÓRIA QUE CONQUISTOU De todas as quimeras do mundo, a mais admitida e universalmente espalhada é a do cuidado com nossa reputação e nossa glória, que apreciamos a ponto de, em troca de tão vã imagem, de uma simples voz sem corpo, renunciarmos às riquezas, ao repouso, à saúde, à vida, bens efetivos e substanciais. "A fama que com a doçura de sua voz vos encanta, arrogantes mortais, e vos parece tão bela, não passa de um eco, um sonho ou, antes, a sombra de um sonho que se dissipa e se esvai com o vento". De todas as ideias despropositadas que podem passar pela mente dos homens é ela a mais indomável e tenaz, "porque não cessa de tentar os espíritos mais avançados na virtude”. Parece, com efeito, que dela mais do que de quaisquer outras se libertam com maior dificuldade os filósofos. Não há nenhuma cuja futilidade seja mais claramente demonstrada pela razão, mas ela tem raízes tão vivas dentro de nós que não sei se jamais alguém conseguiu livrar-se inteiramente dela. Depois de tudo dito a fim de a evitar, quando o pensamos ter conseguido, provoca ela em nós uma tal reação contra os argumentos emitidos que estes não mais se sustentam. Pois, como afirma Cícero, exatamente os que mais a combatem querem que seus nomes figurem nos livros que escreveram a respeito e que o seu desprezo pela glória os glorifique. Com tudo negociamos. Emprestamos se necessário nossos bens e nossas vidas aos amigos, mas despojarmo-nos de honrarias em benefício de outrem ou lhes cedermos um pouco de glória são gestos que ainda não se viram. Durante a guerra contra os cimbros, Lutácio Catulo desenvolveu mil esforços a fim de sustar a debandada de seus soldados diante do inimigo. Nada conseguindo, misturou-se a eles, simulando covardia, para que parecessem segui-lo, e não fugir; sacrificava assim sua reputação para salvar a honra do exército. Quando, em 1537, Carlos Quinto invadiu a Provença, dizem que Antonio de Leve, vendo que o imperador estava decidido e considerando que o resultado da invasão seria infinitamente glorioso, opinou entretanto em sentido contrário e o desaconselhou a fim de que toda a glória e a honra da empresa coubessem inteiramente ao monarca e que se proclamasse que graças à segurança de suas concepções e à sua previdência tinha, em oposição a todos, levado a cabo e com grande êxito o empreendimento. Glorificava-o deste modo em detrimento próprio. Tendo dito os embaixadores da Trácia, ao apresentar suas condolências a Arquileônidas, por ocasião da morte de seu filho, que o jovem não tivera quem o igualasse, refutou o elogio a mãe de Brásidas, endereçando-o a todos: "não faleis assim; Esparta, a meu ver, possui numerosos cidadãos maiores e mais valentes". Na batalha de Crécy o Príncipe de Gales, ainda jovem, comandava a vanguarda. O principal peso do ataque fora dirigido contra ele. Os fidalgos que o acompanhavam, considerando que a situação era crítica, chamaram em seu socorro o Rei Eduardo. Este perguntou pelo filho e, ao ser informado de que estava vivo e a cavalo, observou: "Poderia roubar-lhe a honra de um combate em que se empenhou durante tanto tempo; qualquer que seja o destino, o mérito há de caber-lhe. E não quis ir nem mandar socorro, certo de que se lá fosse teriam dito que tudo se perderia sem ele e lhe houveram atribuído o resultado da jornada". Certas pessoas pensavam em Roma, e isso se dizia comum ente, que os altos feitos de Cipião eram em parte da autoria de Lélio, o qual, entretanto, jamais cessou de exaltar a grandeza e a glória de seu general e de ajudá-lo sem cuidar em absoluto de sua própria fama. A alguém que dizia a Teopompo, rei de Esparta, que se os negócios públicos iam tão bem era porque ele sabia comandar, respondeu o monarca: "Digam, antes, que o povo sabe obedecer". As mulheres que herdavam o título de par, tinham, apesar do sexo, o direito de assistir e opinar nas causas de sua jurisdição; e os pares eclesiásticos, apesar de seu caráter religioso, eram obrigados a assistir nossos reis quando em guerra, não somente enviando seus amigos e servidores mas também em pessoa. Em virtude disso é que vimos o Bispo de Beauvais ao lado de Filipe Augusto na batalha de Bouvines, em que tomou parte e na qual se conduziu com bravura, sem contudo tirar proveito e glória de exercício tão sangrento e brutal. Pôs nesse dia vários inimigos fora de combate entregando-os sempre ao primeiro fidalgo que encontrava para que os degolasse ou os conservasse prisioneiros. Entre outros, assim entregou Guilherme, Conde de Salisbury, nas mãos do Sr. Jean de Nesle. Por sutil desencargo de consciência consentia em espancar mas não em derramar sangue; e por isso combatia unicamente armado de maça. Há tempos, alguém que era censurado pelo rei por ter erguido a mão contra um padre, negou o crime com segurança afirmando que apenas o batera e espezinhara... CAPÍTULO XLII DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS Disse algures Plutarco que a diferença entre um animal e outro é menor do que a que vai de um a outro homem. Referia-se à alma e às qualidades intelectuais. Por mim, acho que há tal desproporção entre Epaminondas, tal qual o imagino, e certa pessoa muito minha conhecida, que não hesitaria em ser mais peremptório, dizendo que a diferença entre tal e tal homem é maior do que entre tal homem e tal bicho. "Ah, como pode um homem ser superior a outro!" O espírito humano comporta tantos graus quantas braças vão daqui ao céu. No que concerne à apreciação das coisas, é espantoso que tudo julgando pelas suas qualidades específicas não nos encaremos da mesma maneira. Elogiamos um cavalo por ser vigoroso e ágil: "Apreciamo-lo por sua rapidez, pelos numerosos prêmios que ganhou em circos sob os aplausos de bulhenta multidão", e não por causa do arreio; elogiamos o galgo pela velocidade e não pela coleira; o falcão pela potência de voo e não pela correia e a sineta; por que, pois, não apreciarmos o homem pelas suas qualidades específicas? Tem um belo trem de vida, um magnífico palácio, tanto de rendimento, comentamos; e tudo isso lhe diz respeito evidentemente, mas não é ele. Ninguém compra nabos em sacos. Se queremos adquirir um cavalo de justa começamos por lhe tirar a manta a fim de examiná-lo nu. E se permanece coberto, como o apresentavam outrora aos príncipes, são as partes menos importantes que se sonegam à vista para que não fiquemos a admirar o pelo e as ancas, e nos atardemos na apreciação das pernas, dos olhos, e dos pés, coisas essenciais no cavalo: "têm os reis por costume quando compram cavalos examina-los cobertos, com receio de se o cavalo tem a cabeça bonita e os pés cansados, o comprador se deixe seduzir pelo aspecto de um traseiro benfeito, de uma certa elegância". Por que, portanto, antes de julgar um homem o encaramos já todo empacotado? Nada do que nos mostra é dele e ele esconde tudo o que pode esclarecer-nos a seu respeito. O que precisamos saber é quanto vale a espada e não a bainha, porquanto talvez não demos grande coisa por ela. E necessário julgar o homem em si e não pelos seus adornos. Como diz espirituosamente um filósofo do passado: "Sabeis por que o achais grande? Porque o medis com o pedestal". O pedestal de uma estátua não é parte integrante dela. Devemos medi-lo sem pernas de pau, nem riquezas, nem dignidades: em mangas de camisa. É o seu físico adequado a suas funções? É ele sadio e alegre? Como tem a alma? Bela, capaz, bem-dotada sob todos os aspectos? Tem a fortuna influência sobre ela? Perturba-se ante um perigo iminente? É indiferente ao tipo de morte que, a cada instante, a pode atingir? É calma, igual, satisfeita com a sorte? Eis o que é preciso procurar saber e nos permite avaliar as diferenças existentes entre os homens: "É sábio e sabe dominar-se? É capaz de resistir às paixões e desprezar as honrarias? Fechado por inteiro dentro de si mesmo, semelhante a uma bola perfeita que nenhuma aspereza impede de rodar, é influenciado pela fortuna?"! Tal homem está quinhentas braças acima dos reinos e ducados; é ele próprio o seu império. "O sábio é o artesão de sua própria felicidade!” Que tem ainda a desejar? "Não estamos vendo que a natureza só exige de nós um corpo sadio e uma alma serena, isenta de preocupações e receios?” Comparemos com ele a turba de homens estúpidos, de alma vil, servil, inconstante, joguetes de toda espécie de paixões tormentosas, dependentes, todos, de outrem; dele a eles a distância é maior que do céu à terra. Entretanto, nossa cegueira é de tal ordem que pouca ou nenhuma atenção damos a esse homem. Quando consideramos um camponês e um rei, um nobre e um plebeu, um magistrado e um simples particular, um rico e um pobre, uma enorme diferença nos salta aos olhos, mas essa diferença não consiste por assim dizer senão na diversidade de calçado que usam uns e outros. Na Trácia o rei distinguia-se do povo de modo singular, muito mais do que podemos imaginar: tinha uma religião própria, um deus particular, Mercúrio, que seus súditos não deviam adorar. Aos deuses do povo, Marte, Baco, Diana, não rendia homenagem. Tudo isso, em suma, não passa de cenário, não constitui diferença essencial entre os homens. Assim, esses atores de comédia que vemos exibirem-se no palco com atitudes de duques e imperadores para logo depois voltarem a ser lacaios ou carregadores, suas profissões originais. Esse imperador, por exemplo, cuja pompa em público nos ofusca, "porque brilham nele, engastadas em ouro, grandes esmeraldas da mais linda água, vestido de magníficos trajes verde-mar que não tardará em sujar nas orgias e nos baixos prazeres", ide espiá-lo atrás da cortina: é apenas um homem vulgar, por vezes mais vil do que a maioria dos outros. "O sábio encontra sua felicidade em si mesmo; os demais não possuem senão uma felicidade superficial”. A covardia, a indecisão, a ambição, o despeito, a inveja perturbam o potentado como qualquer outro homem. Nem os tesouros, nem os fachos consulares, afugentam as inquietações e preocupações que adejam sob os tetos dourados. Mesmo junto de seus exércitos não escapa a elas: a apreensão, as preocupações peculiares ao homem, não se espantam nem com o ruído das armas nem com os golpes cruéis; frequentam ousadamente as cortes dos reis, e não respeitam o esplendor que envolve os tronos. Poupam-no, por acaso, mais do que a nós, a febre, a enxaqueca, a gota? Quando a velhice pesar sobre seus ombros, virão alivia-los os archeiros de sua guarda? Quando tremer com receio da morte, acalmar-se-á com a presença dos seus fidalgos camareiros? Quando o ciúme ou o desejo o atingirem, reconfortá-lo-ão os nossos cumprimentos? Esse dossel recamado de ouro e pérolas não tem o poder de atenuar as dores de uma cólica: "deitado sobre a púrpura, sobre tapetes caros ou na esteira do plebeu, a febre ardente não vos deixará mais cedo". Os aduladores de Alexandre, o Grande, repetiam-lhe sem descontinuar que era filho de Júpiter. De uma feita, olhando o sangue que lhe escorria de um ferimento, disse ele: "Então, que vos parece? Não achais que é um sangue vermelho como o de qualquer ser humano? Ou é ele da cor do sangue que Homero põe nos ferimentos dos deuses?" O poeta Hermodoro compusera em honra de Antígono uns versos em que o denominava filho do sol. "Quem limpa a minha retrete bem sabe que não é verdade", observou-lhe Antígono agastado com a bajulação. Esse homem não passa afinal de um homem. Se não tiver valor próprio não lho dará o império do mundo. "Que as jovens o disputem, que por toda parte as rosas nasçam sob os seus pés", de que servirá tudo isso se tem a alma grosseira e o espírito lerdo? Sem o vigor e sem espírito não se chega a sentir a felicidade e nem mesmo a volúpia. "O valor das coisas depende de quem as possui: boas para os que sabem utilizá-las, são más para os que as empregam mal." Para saborear os bens quaisquer que sejam, que nos outorga a fortuna, cumpre ter o sentimento que a sensação cria. É pelo gozo e não pela posse que somos felizes: não são essas terras, esses palácios, esses montes de ouro e prata, que hão de curar a febre de quem os possui ou lhe purgar a angústia da alma. O gozo exige a saúde do corpo e da alma. Para quem deseja ou teme, que significam tais riquezas? São quadros para olhos remelentos, estufas para paralíticos. Se se trata de um tolo seu gosto estragado nada apreende; não pode apreciar, como um endefluxado não aprecia a suavidade do vinho grego; como um cavalo permanece indiferente à riqueza de seus arreios. Por isso diz Platão que a saúde, a beleza, a força, as riquezas e tudo o que consideramos felicidade são males para quem tem um juízo errado, enquanto quem possui um espírito bem formado os encara como o que realmente são. E essa divergência verifica-se igualmente em sentido inverso. Ademais, para corpo e alma em mau estado, de que servem essas vantagens exteriores? A menor picada basta para tirar todo o prazer que poderia ter em governar o mundo. À primeira pontada da gota, seja senhor e majestade, coberto de ouro e prata perde, ele a lembrança dos palácios e grandezas. E por ser príncipe deixará de corar, de empalidecer, de ranger os dentes quando tomado de cólera? Se se trata de homem inteligente e bem-nascido pouco acrescenta a realeza à sua felicidade: "se tens bom estômago, válidos os pés e os pulmões, as riquezas dos reis nada te darão a mais". Percebe que tudo isso é aparência e trapaça. Será talvez da opinião do Rei Seleuco que dizia que quem soubesse quanto pesa um cetro não se daria o trabalho de o erguer se encontrasse um no chão, e com essas palavras queria mostrar como são grandes e penosos os encargos de um bom rei. E sem dúvida não é fácil lidar com os negócios alheios, se os nossos já nos custam tanto suor. Quanto a mandar, o que se afigura sumamente agradável, em considerando a fraqueza da razão humana e quanto é difícil escolher quando se duvida, sou de opinião que é mais cômodo seguir do que guiar; e repousa o espírito não andar senão por caminhos já abertos e não responder senão por si próprio: "mais vale obedecer tranquilamente que levar a mão ao leme do Estado". Acrescente-se a isso o que afirmava Ciro, a saber, que o comando só deve caber a quem valha mais que os comandados. Segundo Xenofonte, o Rei Híeron pretendia que quanto ao gozo das volúpias íntimas estão os soberanos em piores condições que os particulares, pois a facilidade com que as satisfazem tira-lhes algo desse sabor agridoce que lhes empresta a dificuldade. "Amor demais enjoa, como perturba o estômago um prato agradável comido com exagero". Imaginam que às religiosas do coro apeteça a música? A saciedade torna-a aborrecida. Os festins, as danças, as mascaradas, os torneios divertem quem não os vê amiudadamente e os deseja ver, mas para quem os tem como espetáculo comum são insossos e nada atraentes. Assim também não são as mulheres excitantes para quem delas goza à saciedade. Quem não tem tempo de ter sede, não tem prazer em beber. As peloticas dos prestidigitadores divertem-nos, mas para eles são corveias. Por isso gostam os príncipes de por vezes se fantasiar e viver nas baixas classes da sociedade: "alguma mudança não desagrada aos grandes; às vezes uma refeição frugal, sem tapetes nem púrpuras sob o teto do pobre, lhes desanuvia a fronte”. Nada incomoda mais do que a abundância. Que desejo não se amortecerá diante de trezentas mulheres, como as tem o sultão em seu harém? Que prazer de caçar teria quem o fizesse com sete mil falcões? Além disso o brilho da grandeza comporta a meu ver inconvenientes dos mais incômodos, quando os grandes se dispõem a gozar os prazeres mais doces. Estão por demais visados, gente demais se preocupa com eles, tanto que não compreendo que não exijam deles que escondam melhor e dissimulem seus erros. Pois o que é para nós indiscrição neles considera o povo tirania, desprezo, desobediência à lei. Além da inclinação para o vício, dir-se-ia que juntam a seus desmandos o prazer de violar e espezinhar as ordenações. Pia tão está certo quando em seu "Górgias" define como tirano aquele que na cidade tem licença de fazer o que bem entende e acrescenta que o espetáculo e a publicidade dos abusos chocam mais, por vezes, do que os próprios abusos. Todos receiam ser espionados e controlados; eles o são até em suas atitudes e pensamentos, porquanto todos pretendem ter o direito de julgá-los e interesse em fazê-la. Sem contar que as manchas são tanto mais visíveis quanto o lugar em que se encontram é mais aparente e iluminado. Um sinal ou verruga na fronte veem-se melhor do que uma cicatriz alhures. É por esse motivo que os poetas sempre representam Júpiter, em suas aventuras galantes, sob um aspecto diferente do verdadeiro, e que, entre as muitas cenas do gênero que lhe atribuem, em uma só, ao que me parece, é ele apresentado em toda a sua majestade. Híeron conta igualmente quanto o incomoda a realeza, impedindo-o de viajar livremente, mantendo-o por assim dizer prisioneiro, sem poder ultrapassar as fronteiras, do país e cercando-o por toda parte de uma importuna multidão. E preciso convir em que, as mais das vezes, vendo nossos reis à mesa, assediados por desconhecidos faladores e curiosos, tenho sentido mais dó do que inveja. Dizia o Rei Afonso, a propósito, que a sorte dos asnos era preferível à sua; deixam-nos ao menos pastar à vontade, o que os reis não conseguem de seus servidores. Nunca admiti que pudesse ser agradável para um homem sensato e normal suportar os olhares de dezenas de pessoas quando precisa ir à retrete. Tampouco compreendo que se acomode melhor um rei com os serviços de alguém que possui dez mil libras de rendimento, que tomou Casal ou defendeu Siena, do que com os de um bom e experiente criado de quarto. As vantagens do príncipe são em sua maioria puramente imaginárias e cada camada social tem seus príncipes. César chamava reizinhos aos senhores que, na Gália de seu tempo, tinham o direito de julgar. Salvo o título de Sire, vai-se longe atualmente na imitação dos nossos reis. Nas províncias afastadas da Corte, na Bretanha por exemplo, onde o senhor vive em permanência em seu feudo, a administração da casa, as relações com seus súditos, os oficiais que o cercam, o gênero de vida que leva, as ocupações, o protocolo seguido, sua vida íntima no meio dos servidores, até as próprias ideias, tudo se assemelha e se ajusta ao que se faz na Corte. Ouve falar do rei uma vez por ano, como ouve falar do rei da Pérsia; e se o reconhece é em virtude de algum parentesco longínquo assinalado em seus arquivos. Em verdade, nossas leis dão-nos grande liberdade. O peso da autoridade real não se faz sentir mais do que duas vezes na vida de um fidalgo francês. A sujeição completa e efetiva só se impõe àqueles que a consideram vantajosa porque a trocam por proventos e honrarias. Quem permanece sossegado em suas terras e sabe dirigir seus negócios sem querelas nem processos é tão livre quanto o doge de Veneza: "Poucos homens são atados à servidão, inúmeros a ela se amarram". Mas o que Híeron coloca entre os maiores inconvenientes da realeza é a carência de amizades e relações cordiais que constituem o mais doce e perfeito encanto da existência humana. Pois que prova de afeição posso alcançar de quem, queira ele ou não, me deve tudo o que possui? Posso levar em conta a humildade de suas palavras e a sua respeitosa cortesia, se não tem a possibilidade de se conduzir diferentemente? As homenagens que me prestam os que me temem não me honram, são prestadas à realeza e não a mim pessoalmente. Como diz Sêneca, a maior vantagem da realeza está em que o povo é não somente obrigado a sofrer mas ainda a louvar os gestos do senhor. E não vejo que o bom como o mau rei, o que detestam como que amam, são tratados da mesma maneira? De igual modo, com mesmo cerimonial trataram o meu predecessor e assim tratarão o meu sucessor. O fato de meus súditos não me ofenderem não significa afeição; nem o poderia assim considerar, porquanto ainda que o quisessem não estaria em suas possibilidades ofender-me. Ninguém me frequenta por amizade, porque esse sentimento não pode existir quando as relações e as trocas de ideias são tão raras; a altura de minha posição afasta-me de qualquer intimidade. Entre mim e os outros homens há demasiada desigualdade e desproporção. Seguem-me porque é bonito ou por costume; e mais do que a mim à minha fortuna, a fim de aumentar a deles próprios. Tudo o que me dizem e fazem não passa de dissimulação, estando sua liberdade controlada pelo grande poder que tenho sobre eles. Nada vejo em torno de mim que não se esconda sob uma máscara. Os cortesãos elogiavam de uma feita o Imperador Juliano porque se esforçava por ser justo. "Orgulhar-me-ia de vossas louvações disse - se viessem de pessoas que ousassem denunciar e censurar meus atos, caso me conduzisse de outra maneira." Todas as verdadeiras vantagens de que gozam os príncipes são comuns aos homens de fortuna média (somente os deuses cavalgam animais alados e se alimentam de ambrosia); não diferem de nós quanto ao sono e ao apetite; o aço de suas armaduras não é mais bem temperado do que o das nossas; suas coroas não os abrigam do sol e da chuva. Diocleciano, elevado aos píncaros da fortuna, tudo abandonou um dia para gozar os prazeres de um simples cidadão. Tempos depois, exigindo os negócios públicos que assumisse novamente a direção do Estado, respondeu aos que lhe foram solicitar que aceitasse o cargo: "não procuraríeis persuadir-me se vísseis o belo renque de árvores que eu mesmo plantei em minhas terras, e os melões que semeei". Anacársis é de opinião que o Estado mais feliz seria aquele em que, dadas as condições iguais de tudo e de todos, a preeminência se medisse pela virtude e fosse o vício relegado para o último lugar. Quando o Rei Pirro quis entrar na Itália, Cíneas, seu avisado conselheiro, lhe disse, querendo mostrar-lhe a inanidade de sua ambição: Com que fim, Senhor, concebeis semelhante empreendimento? - Com o fim de me tornar senhor da Itália. - E feito isso? - Passarei à Gália e à Espanha. - E depois? - Irei subjugar a África, e quando afinal for senhor do mundo irei repousar e viver satisfeito e tranquilo. - Por Deus, Senhor, dizei o que vos impede de fazê-lo desde logo se tal é vossa vontade? Por que não gozar imediatamente esse repouso a que aspirais e vos poupar assim tantas dificuldades, tantos acasos a que vos ides aventurar? E sem dúvida porque não conhecia os limites que devemos opor aos nossos desejos, limites além dos quais cessa o prazer verdadeiro. Termino com esta máxima de Cornélio Nepos, que acho singularmente ajustada ao nosso assunto: "E com seus costumes que cada um constrói o seu destino". CAPÍTULO XLIII DAS LEIS SUNTUÁRIAS A maneira pela qual nossas leis procuram regular as nossas despesas extravagantes e ostensivas com a mesa e o vestuário parece contrária ao fim visado. O verdadeiro modo de atingir tal objetivo seria infundir no homem o desprezo pelo ouro e a seda, como coisas vãs e inúteis; e em vez disso, nós as valorizamos ainda mais, o que é maneira bem tola de os desgostar delas. Dizer, como o temos feito, que só os príncipes poderão comer chernote, usar veludo e tecidos de ouro, proibindo-o ao povo, é dar importância a essas coisas e aumentar em todos o desejo de tê-las. Que os reis renunciem corajosamente a esses sinais de grandeza, pois não carecem de outros; semelhantes excessos são mais desculpáveis em particulares do que nos príncipes. O que vemos em certos países mostra-nos que não faltam meios melhores de estabelecer distinções exteriores nos graus de hierarquia social (o que considero aliás medida inteligente em um governo), sem que se recorra a um exibicionismo suscetível de desenvolver a corrupção e que comporte inconvenientes tão visíveis. É realmente admirável ver como, nessas coisas de nonada, impõe o costume com facilidade e rapidez a sua autoridade. Mal decorrera um ano que, em virtude do luto pela morte de Henrique II, se usava tecido de lã, e já a seda tanto se desacreditara que, vendo alguém assim vestido, logo se imaginava fosse algum burguês da cidade. Tornara-se peculiar aos médicos e cirurgiões. E embora em todas as classes da sociedade todos se vestissem de igual modo, a elegância natural de cada um bastava para revelar a que classe pertencia. Da mesma forma, rapidamente se fez moda no exército o uso de usar sujos gibões de camurça ou tecido ordinário; e logo se abandonaram as belas e ricas vestimentas, que passaram mesmo a ser criticadas. Deem o exemplo os reis, renunciando a tais despesas: em menos de um mês, sem decreto nem ordenação, será coisa feita; todos os seguiremos. Ao contrário do que diz hoje, deveria a lei determinar que ninguém, à exceção dos funâmbulos e prostitutas, teria o direito de usar tecidos de cores vivas e joias. Foi assim que Seleuco corrigiu os costumes corruptos dos lócrios. Determinavam suas ordenações que as mulheres de condição livre não podiam fazer-se acompanhar de mais de uma criada, a menos que estivessem embriagadas. Que somente as mulheres públicas e de vida airada pudessem sair à noite, usar joias de ouro e vestidos bordados. Que à exceção dos que, por profissão, prostituem mulher e filhas, nenhum homem tivesse anéis de ouro ou roupa de tecido fino, no gênero do tecido fabricado em Mileto. Com essas exceções, que estigmatizavam quem delas se beneficiava, desviou engenhosamente seus concidadãos das futilidades e dos prazeres perniciosos. Foi um modo muito eficiente de chamar os homens ao dever e à obediência, incentivando neles o sentimento de honra e a ambição. Nossos reis tudo podem nessas reformas exteriores. Seu gosto faz a lei: "tudo o que fazem os príncipes, dir-se-ia que o prescrevem". O resto da França acompanha a Corte. Que abandonem essas braguilhas tão feias que exibem as partes ocultas do corpo; e esses gibões tão amplos e pesados que nos deformam e incomodam quando precisamos armar-nos; e esses cabelos efeminados; e esse hábito de beijar os que saudamos, no rosto ou nas mãos, gesto que só aos príncipes era outrora devido; e que condenem esse hábito de, em lugar de respeito, se apresentar o fidalgo sem espada, desbragado como se saísse da retrete; e mais esse outro costume (contrário ao privilégio que sempre teve a nobreza francesa) de manter a cabeça descoberta em "torno deles, ainda que longe, e não somente deles, mas de cem outros; pois temos numerosos terços e quartos de rei que exigem a mesma coisa. Que o queiram realmente, e essas inovações e outras muitas do mesmo gênero igualmente lamentáveis, logo serão desprezadas e desaparecerão. Trata-se de erros superficiais mas de mau prognóstico: quando vemos rachar o reboco da parede temos aviso de que a estrutura se desconjunta. Platão em suas leis acha que não há no mundo calamidade mais nefasta para a República do que permitir que a mocidade introduza modificações no vestuário, nos gestos, nas danças, nos exercícios e nas canções, em obediência a impressões instáveis; e que corra atrás das novidades e aplauda os inventores. Pois com isso se corrompem os costumes e se tornam as antigas instituições objeto de desprezo. Em tudo, com exceção do que é ruim, devem-se temer as mudanças: das estações, dos ventos, dos alimentos e dos humores. Nenhuma lei tem valor efetivo, fora daquelas a que Deus deu uma duração tal que ninguém lhes conhece a origem nem as viu diferentes. CAPÍTULO XLIV DO SONO Ordena-nos a razão que sigamos sempre o mesmo caminho, mas não nos diz que o façamos sempre com o mesmo passo. E embora o sábio não deva permitir que as paixões humanas o desviem do caminho certo, pode ele muito bem ponderá-las a fim de apressar ou retardar a própria marcha, em vez de se manter no meio delas como um gigante imóvel e impassível. Se a própria virtude fosse encarnada, o pulso bater-lhe-ia mais rapidamente, segundo fosse ela jantar ou se lançasse ao assalto. Há mesmo circunstâncias em que é necessário que se inflame e se exalte. Eis por que observei como coisa rara que por vezes os grandes personagens em seus mais importantes empreendimentos se conservam tão serenos que nem sequer perdem o sono. No dia da batalha que travou contra Dario, Alexandre, o Grande, dormiu tão profundamente e até já manhã alta, que, em sendo quase hora de combater, Parmênion foi obrigado a entrar-lhe no quarto a fim de acordá-lo, chamando-o duas ou três vezes pelo nome. Na noite em que resolveu suicidar-se, o Imperador Otão, depois de pôr em ordem seus negócios domésticos, dividir seu dinheiro entre seus servidores, afiar a espada com a qual se ia matar, já tão somente à espera de saber se seus amigos estavam em segurança, adormeceu tão profundamente que seus criados o ouviam roncar. A morte desse imperador apresenta certa analogia com a do grande Catão. Este, às vésperas de se suicidar e à espera da notícia de que os senadores que afastava de si tinham embarcado em Útica, pôs-se a dormir tão bem que do quarto vizinho lhe ouviam o ruído da respiração. A pessoa que mandara ao porto tendo-o acordado para dizer que a tempestade perturbava consideravelmente a manobra das velas, enviou ele outro e se enfiando novamente no leito voltou a adormecer; e assim ficou a dormir até a volta do segundo mensageiro com a notícia de que a partida se efetuara. Encontramos ainda em Catão certa similitude com o que contamos de Alexandre. Quando da grande e perigosa borrasca que por pouco não fez vingar a sedição do tribuno Metelo, o qual, a propósito da conjuração de Catilina, queria publicar o decreto chamando a Roma Pompeu e seu exército, ao que somente Catão se opusera, graves palavras e pesadas ameaças tinham sido trocadas no Senado entre Metelo e ele. No dia seguinte, devia efetuar-se a publicação no Forum. Os dois adversários iam encontrar-se. Metelo, apoiado pelo povo e por César, então favorável a Pompeu, devia apresentar-se acompanhado de numerosos escravos estrangeiros e de espadachins dispostos a todas as violências; Catão tinha por si apenas sua indomável coragem. Por isso, seus parentes, servidores e muita gente boa estavam preocupadíssimos. Pensando no perigo que ia correr, houve muitos que passaram a noite em casa dele, mas não puderam descansar nem comer. Sua mulher e filhas não paravam de chorar. Ele, ao contrário, reconfortava todo mundo. Depois de haver ceado como de costume, foi deitar-se e dormiu um sono tão profundo que pela manhã um de seus colegas do tribunato teve que ir acordá-lo a fim de que chegasse até o tribunal onde os partidos se defrontariam. Conhecendo, pelos atos de sua vida, quanto era grande sua coragem, podemos sem receio de nos enganarmos atribuir essa calma em tais circunstâncias ao fato de estar sua alma muito acima de semelhantes acidentes, os quais para ele não eram motivo de maior preocupação que os incidentes habituais da vida. Na batalha naval que ganhou na Sicília contra Sexto Pompeu, Augusto, no momento de iniciar o combate, dormia tão profundamente que foi preciso que seus amigos o acordassem. Isso deu ensejo a que Marco Antônio mais tarde alegasse não ter tido ele a coragem sequer de assistir às evoluções de seus navios e de não se ter mostrado a seus soldados senão depois que Agripa lhe veio anunciar que a vitória era sua. Mário, o Jovem, fez pior ainda: no dia de seu último esforço contra Sila, após haver ordenado a tropa, dado a palavra de ordem e o sinal de combate, deitou-se à sombra de uma árvore para descansar e dormiu tão profundamente que só acordou quando seus homens em fuga passaram por ele; nada tinha visto da luta. Atribuem o fato a uma fadiga excessiva provoca da por exagerado trabalho e falta de sono. Não podia mais consigo. Cabe aos médicos dizer-nos se o sono é tão necessário ao homem que sua vida dele dependa. Em apoio dessa asserção temos em Roma o caso de Perseu, rei da Macedônia, que fizeram morrer impedindo-o de dormir. Mas, por outro lado, Plínio relata casos de pessoas que viveram durante muito tempo sem dormir. Heródoto fala de povos que dormem a metade do ano e velam os outros seis meses. E os biógrafos de Epimênides contam que esse sábio dormiu durante cinquenta e sete anos seguidos. CAPÍTULO XLV A BATALHA DE DREUX Houve em nossa batalha de Dreux particularidades raramente vistas. Os que não são favoráveis ao duque de Guise observam que não há desculpas para o fato de ter ele sustado a ação de sua tropa e contemporizado enquanto o inimigo esmagava o Sr. Condestável, comandante dos exércitos, e lhe arrebatava a artilharia. E dizem que ele teria feito melhor, a fim de evitar as perdas consideráveis que se verificaram, atacando o adversário pelo flanco em lugar de aguardar a possibilidade de fazê-lo pela retaguarda. Além do que demonstra o resultado da batalha, devemos convir, sem sectarismo, em que não somente os chefes mas também cada soldado deve ter em vista unicamente o êxito final, e que nenhum incidente particular por mais interessante que seja deve desvia-los desse objetivo. Filopêmen, em um encontro com Macânidas, fizera-se preceder de numeroso grupo de archeiros e lanceiros. O inimigo, depois de tê-los rechaçado, divertiu-se em os perseguir a galope e se encontrou assim desfilando ao longo do corpo de batalha de Filopêmen. Este, apesar da emoção provoca da em seus soldados, não julgou conveniente mexer-se para ir em socorro dos seus. Deixou que a cavalaria os perseguisse e os liquidasse sob suas vistas e só atacou os infantes inimigos quando os viu sem possibilidade de serem apoiados pelos cavaleiros. E embora se tratasse de lacedemônios, derrotou-os facilmente tanto mais quanto os atacou quando imaginavam ter ganho e começavam a debandar. Isso feito, lançou-se contra Macânidas. É este um caso que tem grande analogia com o do Duque de Guise. Na batalha, tão vivamente disputada, de Agesilau contra os beócios, batalha a que Xenofonte assistiu e declara ter sido a mais encarniçada que jamais presenciou, Agesilau não quis aproveitar a vantagem que a sorte lhe oferecia, de deixar desfilar o corpo principal do exército inimigo e atacá-lo pela retaguarda, muito embora não duvidasse da vitória. Achava que assim agindo daria prova antes de habilidade que de valentia. Para demonstrar seu valor e sua coragem excepcional, preferiu atacar de frente. E errou, pois sofreu sério malogro e foi gravemente ferido. Obrigado a reunir de novo sua gente, tomou então o partido que recusara antes. Abriu uma brecha na tropa para dar passagem aos ardorosos beócios e depois que estes passaram e já marchavam em desordem como gente que se acredita fora de perigo, perseguiu-os carregando contra eles pelos flancos. Não conseguiu, entretanto, romper suas fileiras nem apressar-lhes a retirada. Foram-se devagar, sempre agressivos, até se porem a salvo. CAPÍTULO XLVI DOS NOMES Por grande que seja a diversidade das ervas, chamam a tudo salada. Vou fazer o mesmo e, a propósito de nomes, apresentar aqui uma salgalhada de coisas. Cada país tem, não sei por que, nomes que são levados a mal. Assim, em nossa terra, João, Guilherme, Benedito. Dir-se-ia igualmente que na genealogia dos príncipes certos nomes se reproduzem fatalmente: Ptolomeu, no Egito; Henrique, na Inglaterra; Carlos, em França; Baudouin, nas Flandres; e em nossa velha Aquitânia, os Guilhermes, de que dizem derivar o nome atual de Guyenne, etimologia que não se aceitaria facilmente se outras tão pouco admissíveis não se encontrassem no próprio Platão. É coisa de nonada e no entanto digna de nota, em virtude de sua singularidade, o que relata uma testemunha ocular: Henrique, Duque da Normandia, filho de Henrique, segundo rei da Inglaterra, deu em França um festim no qual o número de nobres convidados era tão considerável que, por divertimento, sendo os mesmos divididos em grupos de pessoas de nomes idênticos, o mais numeroso foi o dos Guilhermes, pois cento e dez cavalheiros assim batizados tomaram lugar à mesa. E não se contaram os simples fidalgos nem os serviçais. Não é mais singular agrupar à mesa os convivas pelos nomes do que servir os pratos na ordem de suas iniciais, como o fez o Imperador Geta. Serviram em primeiro lugar os que começavam por m: e em seguida os outros. Dizem que é vantajoso ter bom nome ou renome, isto é, ter Crédito e reputação. Há igualmente utilidade em ter um nome bonito e que seja fácil de se pronunciar e reter na memória. Nós mesmos, entre nossos serviçais, chamamos de preferência os que nos vêm mais facilmente aos lábios. Vi o Rei Henrique II não poder pronunciar exatamente o nome de um fidalgo daqui da Gasconha e esse mesmo príncipe opinar que se desse a uma das camareiras da rainha o nome de sua terra natal, porquanto considerava que o nome de sua família era por demais vulgar. Sócrates considera que dar belos nomes a seus filhos é um cuidado que os pais não devem esquecer. Conta-se que a fundação de Notre Dame La Grande, em Poitiers, é devida ao fato de um jovem debochado, que morava no local, haver encontrado uma prostituta à qual indagou do nome. Em lhe respondendo que era Maria, acordou nele repentinamente seus sentimentos religiosos. Tornado então de respeito pelo santo nome da Virgem, não só expulsou imediatamente a mulher como se corrigiu em definitivo. Em vista desse milagre, ali se construiu uma capela a Nossa Senhora e mais tarde a igreja que conhecemos. Foi pela voz e o ouvido que a devoção, atuando diretamente sobre a alma, provocou essa reviravolta no jovem. O fato seguinte, do mesmo gênero, verificou-se em consequência de ação imediata sobre os sentidos: Pitágoras, em companhia de alguns jovens, em uma festa, percebeu que, em se esquentando os espíritos, se propunham penetrar violentamente em uma casa respeitável. Determinou então à orquestra que tocasse outras músicas, graves, severas, monótonas, as quais adormeceram pouco a pouco os entusiasmos. E não dirá a posteridade que essa Reforma que surgiu em nossos dias não foi exata e vigilante, pois se aplicou não apenas em combater os erros e os vícios, em encher o mundo de devoção, humildade, obediência, paz e toda sorte de virtudes, mas também em proscrever nossos nomes de batismo, Carlos, Luís, Francisco, substituindo-os por Matusalém, Ezequiel, Malaquias, muito mais de acordo com os dogmas da fé? Um fidalgo da minha vizinhança, suputando a superioridade do passado sobre os tempos atuais, não esquecia de levar em conta o sabor e a elegância dos nomes da nobreza antiga: Grumedan, Quedragan, Agesilau. Só em os ouvir já se sentia que eram de gente bem diferente dos Pedros e Miguéis! Agrada-me que Jacques Amyot tenha conservado em seus escritos em francês os nomes latinos em latim. Agrada-me que não os tenha alterado e modificado, a fim de lhes emprestar um feitio francês. A princípio isso me pareceu algo estranho, mas já sua tradução, tão conhecida, de Plutarco contribuíra para que o estranhasse menos. Muitas vezes desejei que os que escrevem crônicas em latim, transcrevessem os nomes próprios como são; metamorfoseando-os em grego ou romano para tomá-los mais graciosos, fazendo de Vandemont, "Vallemontanus", acabam confundindo-nos. Não sabemos mais onde estamos. Encerrando nossas reflexões sobre os nomes, digamos que é mau hábito e de péssimas consequências chamar cada qual pelo nome de suas terras ou de seu castelo. Isso, mais do que tudo, faz que se misturem as raças e não mais possam distinguir-se uma da outra. Um caçula de boa farm1ia que recebeu uma terra cujo nome tomou de empréstimo, e com ele se tornou conhecido e respeitado, não o pode honestamente abandonar. Em falecendo, dez anos após, passa a terra às mãos de um estranho que faz a mesma coisa. Como será possível deslindar tal embrulhada? A esse respeito, aliás, não é necessário procurar exemplos fora de nossa casa real, em que há tantos nomes quantas partilhas houve, a ponto de não mais sabermos sua origem. Com tal liberdade e fantasia procedem nesse sentido em nossos dias, que não sei de pessoa elevada pela fortuna a uma situação qualquer, que não lhe descubram logo títulos genealógicos ignorados de seu progenitor, enxertando-o em alguma ilustre linhagem. E são as mais obscuras famílias que melhor se prestam a tais falsificações. Quantos fidalgos não temos nós em França que, pelo que dizem (mais do que pelo que dizem os outros), são de raça real! Isso foi observado um dia muito espirituosamente por um de meus amigos nas seguintes circunstâncias: em certa reunião, tendo-se verificado uma desavença entre dois senhores, um dos quais, pelos seus títulos e alianças, tinha preeminência incontestável sobre a nobreza comum, procurava cada um dos presentes igualar-se ao mais ilustre alegando sua origem, a semelhança do nome, velhos títulos familiares, o brasão, sendo que o que menos podia alegar se dizia tataraneto de um rei de além-mar. Quando passaram à sala de comer, meu amigo, em vez de se dirigir para seu lugar, começou a recuar, multiplicando as reverências e suplicando à assistência que lhe desculpasse a temeridade que tivera de se manter até então em pé de igualdade com tão eminentes fidalgos. Só agora porém estava sendo informado de suas qualidades e privilégios e solicitava que lhe permitissem desde já prestar homenagem à sua condição social, e que não lhe cabia sentar-se junto a tão numerosa corte de príncipes. E terminando a brincadeira com mil sarcasmos disse: "Contentemo-nos, por Deus, com aquilo com que se contentaram nossos pais e com o que somos. Que nossa condição nos baste, e nos bastará se soubermos honrá-la; não neguemos a fortuna e a condição de nossos antepassados. Evitemos essas ridículas invencionices que não podem senão confundir quem quer que tenha a impudência de alegá-las. Como os nomes, nada provam os brasões. É o meu "de blau semeado de trevos de ouro, com uma pata de leão do mesmo, armada de goles e posta de frente". Quem me garante que não sairá de minha família? Não poderá um genro transporta-lo alhures? E talvez um novo rico se apodere dele em não tendo outro. Não há coisa mais sujeita a frequentes mudanças e confusões. Estas reflexões acarretam outras de ordem diferente. Examinemos sobre que assenta essa glória e essa reputação pelas quais revolvemos céu e terra; em que consiste essa fama que tanto nos esforçamos por conquistar? Em suma é a Pedro ou a Guilherme que se aplica, a eles cabe guardá-la, a eles interessa. Admirável faculdade a da esperança! Em um simples mortal ela abarca o infinito, a imensidade, a eternidade, e, como por efeito de uma miragem, substitui à indigência absoluta tudo o que pode imaginar e desejar! Com ela, deu-nos a natureza um brinquedo maravilhoso. Mas, afinal de contas, que são Pedro ou Guilherme senão um som ou três ou quatro rabiscos de pena, e em verdade tão pouco precisos que podemos por vezes indagar, perplexos, a quem cabe a honra de tantas vitórias: Guesquin, Glesquin ou Gueaquin? O problema poderia dar azo a uma polêmica ainda mais espinhosa do que a que Luciano imaginou entre as letras sigma e tau. O prêmio, no caso atual, não é de valor desprezível, pois a coisa tem sua importância, tratando-se, como se trata, de determinar a qual dos nomes diversamente ortografados se devem atribuir tantos assédios empreendidos e sustentados, tantas batalhas travadas, ferimentos recebidos, cativeiro suportado, serviços prestados à coroa real pelo famoso condestável. Nicolas Denisot ocupou-se unicamente com as letras de seu nome, cujo arranjo modificou para fazer "Conde d'Alsinois", tornando esse nome ilustre com suas poesias e sua pintura. Suetônio, historiador, apreciava o significado do seu: não podendo chamar-se Lenis (doce) que era o sobrenome de seu pai, adotou o de Tranquilo ao qual fez herdeiro da reputação de seus escritos. Quem sabe que o Capitão Bayard tirou sua fama dos feitos perpetrados por Pierre Terrail? E que Antoine Escalin deixou que o Capitão Paulin e o Barão de La Garde lhe roubassem a glória de tantas viagens marítimas e de funções exercidas em terra e mar? Além das variações que sofrem, esses rabiscos de pena são comuns a milhares de pessoas. Quantos em um país não têm os mesmos nomes e sobrenomes? E quantos outros em países e raças diferentes, através dos séculos? A história conservou os nomes de três Sócrates, cinco Platões, oito Aristóteles, sete Xenofontes, vinte Demétrios, vinte Teodoros; e quantos mais não permaneceram ignorados? Nada impede que meu palafreneiro se chame Pompeu, o Grande; e nada se opõe a que finalmente a ele, depois de morto, e não ao homem que foi executado no Egito, se atribua a glória do nome. E qual dos dois a aproveitará? "Acreditais que com isso se preocupem as cinzas e os manes dos mortos?” Que podem sentir Epaminondas e Cipião, o Africano, esses dois êmulos pelo valor que os eleva acima dos outros homens, o primeiro diante de tão belo verso gravado no pedestal de sua estátua há tantos séculos: "Por mim Lacedemônia perdeu seu esplendor"; e o segundo ante o dístico escrito em seu louvor: "Do levante ao poente não há guerreiros cujas frontes cinjam tão nobres louros”. Tais testemunhos impressionam de modo agradável os sobreviventes, excitando neles a inveja e a ambição; e, sem refletir, estes emprestam aos mortos suas próprias sensações, iludindo-se ao mesmo tempo acerca de sua capacidade de conquistar a celebridade. Só Deus sabe entretanto. Contudo: "essa esperança incitou gregos, romanos e bárbaros. Nela está a razão de seus trabalhos, dos perigos que correram, pois mais que de virtude têm os homens sede de renome". CAPÍTULO XLVII DA INCERTEZA DOS NOSSOS JUÍZOS De qualquer coisa é fácil falar: pró ou contra, diz Homero com muita razão. Eis, por exemplo, o que afirma Plutarco: "Aníbal venceu os romanos mas não soube aproveitar a vitória". Quem assim pensasse e considerasse um erro, como é comum entre nós, não ter o partido católico explorado o êxito que alcançamos em Montcontour, ou censurasse ao rei da Espanha não haver aproveitado a vantagem conseguida contra os franceses em St. Quentin, poderia, em apoio de sua tese, apresentar os seguintes argumentos: semelhantes erros procedem de uma alma embriagada pelo êxito inicial e cuja coragem limitada, satisfeita com um princípio de sorte, perde a vontade de prosseguir, já embaraçada com o resultado obtido; seus braços não podem abarcar mais. Semelhante chefe não merece o bem que o destino lhe pôs nas mãos, pois dá ao inimigo a possibilidade de se refazer. Poder-se-á esperar dele que ouse renovar seu ataque contra um adversário recuperado, e armado, já agora, de despeito e ansioso por se vingar, se não ousou ou não soube persegui-lo em desordem e tomados de pavor? "Quando a sorte já se decidira e que ao terror tudo cedia?” Mesmo porque, que há de esperar melhor do que o que deixou escapar? A guerra não é como a esgrima em que quem consegue maior número de toques ganha; se continua de pé cumpre recomeçar, sempre com mais resolução, não havendo vitória enquanto não terminem as hostilidades. Em seguida àquela batalha perto de Oricum, em que correu os maiores riscos, César criticou os soldados de Pompeu por terem perdido a oportunidade de ganhar se houvessem sabido vencer. E ele próprio agiu de outra maneira quando lhe coube persegui-los. Em apoio da tese contrária, pode-se dizer que não opor limites a seus desejos é característico dos espíritos impacientes e insaciáveis; que querer ultrapassar as medidas em que nos é concedida a proteção divina constitui um abuso; que se expor a um malogro após uma vitória é entregá-la novamente à mercê da sorte; que um dos princípios mais sábios da arte militar consiste em não impelir o inimigo ao desespero. Sila e Mário durante a guerra civil haviam batido os marses; vendo um punhado deles retomar a ofensiva, como que furiosos, porque desesperados, acharam que não deviam enfrentá-los. Se o Sr. de Foix não se tivesse deixado levar pelo entusiasmo a perseguir encarniçadamente o inimigo depois de sua vitória em Ravena, não a houvera estragado com sua morte. Seu exemplo, ainda recente, serviu, de resto, de lição ao Sr. de Enghien, em Cerisolles, preservando-o de igual desventura. É perigoso assaltar um homem ao qual se tirou toda possibilidade de salvação fora da luta, pois a necessidade é um mestre-escola violento: "terríveis são as mordidas da necessidade excitada” e "quem desafia a morte só é vencido com danos para o vencedor”. Foi o que fez com que Pharax impedisse que o rei da Lacedemônia, que acabava de vencer os mantineanos, se atirasse contra um milhar de argensianos, os quais, ainda intatos, haviam escapado ao desastre. E persuadiu-o a que os deixasse se retirarem sossegadamente, a fim de não ter de guerrear com homens valentes e despeitados, estimulados pela desgraça. Clodomiro, rei da Aquitânia, depois de sua vitória contra Condemar, rei da Borgonha, perseguiu-o tão ardorosamente que o obrigou a voltar-se contra o perseguidor. No combate que se seguiu foi ele morto e perdeu assim por causa de sua obstinação o fruto da vitória. Será preferível ter soldados abundante e suntuosamente armados ou será melhor armá-los tão somente de acordo com as necessidades? Sertório, Filopêmen, Bruto, César e outros são favoráveis à primeira alternativa; alegam que a honra e a vaidade estimulam o soldado; que, ademais, em devendo salvar armas que, pelo seu valor venal, constituem uma espécie de fortuna e um como que legado, tanto mais tenaz se mostra na luta. E diz Xenofonte que por esse motivo os povos da Ásia levavam para a guerra com seus exércitos suas mulheres e concubinas, com suas joias e o que possuíam de mais precioso. Quanto ao segundo método, pode-se alegar que mais vale desviar do soldado a ideia de conservação do que o induzir a pensar nisso, pois assim dobraremos seu desprezo aos perigos. Fazer exibição de luxo é, também, excitar no inimigo o desejo de vencer para se apropriar de ricos despojos, como se observou mais de uma vez, e o que constituiu o móvel dos romanos contra os salamitas. Antíoco mostrava com orgulho a Aníbal o exército que reunia contra Roma, faustoso e magnífico em toda espécie de equipamentos, e lhe perguntava: - Achais que este exército será suficiente para os romanos? - Será sem dúvida suficiente, respondeu Aníbal, por cobiçosos que sejam. Licurgo proibira aos seus concidadã os não somente qualquer luxo no equipamento de guerra mas ainda que despojassem o inimigo vencido, querendo desse modo que se honrassem de sua pobreza e frugalidade tanto quanto da vitória. Nos assédios e outras circunstâncias que nos põem ao alcance do inimigo, permitimos em geral a nossos soldados que lhe dirijam bravatas e insultos. Não sem razão aliás. É de certa importância afastar da tropa qualquer esperança de mercê ou entendimento, mostrando-lhe que nada devem esperar de um inimigo que de tal modo insultou e que só lhe resta portanto vencê-lo. Vitélio fez a experiência mas em seu detrimento. Achando-se em presença de Otão cujo exército se compunha de soldados de reduzido valor, desacostumados de há muito à guerra, amolecidos pelos prazeres da cidade, de tal modo os agastou com ditos venenosos, censurando-lhes a pusilanimidade, a saudade das mulheres belas e das festas deixadas em Roma, que acabou por fazer-lhes das tripas coração e jogá-los contra si, o que nenhuma exortação conseguira. E em verdade as ofensas graves podem facilmente fazer com que os que, de má vontade, combatem a serviço de seu rei, lutem com outra disposição a seu próprio serviço. Considerando-se a importância da preservação do chefe em um exército, e que a sua cabeça, de que dependem as demais, é a mais visada, parece não se deva desprezar essa determinação, seguida por numerosos grandes chefes, de se fantasiar ou camuflar ao entrarem em combate. Entretanto, o inconveniente dessa tática não é menor do que as vantagens, pois, em não sendo reconhecido pelos seus, a coragem que lhes inspira com seu exemplo e presença pode faltar. Não percebendo as marcas distintivas que de hábito o assinalam, imaginam que tenha morrido ou que, desesperando do êxito, se haja retirado do campo de batalha. Quanto aos fatos, vemo-los corroborar ora um ora outro desses métodos. O que ocorreu com Pirro na batalha travada na Itália contra o cônsul Levínio depõe a um tempo a favor e contra. Tornara-se irreconhecível, tomando para lutar as armas de Demogacles a quem dera as suas. Salvou-lhe por certo a vida essa ideia, mas quase foi vítima do referido inconveniente e quase perdeu a batalha. Alexandre, César, Luculo gostavam de ir para o combate com vestimentas e armas luxuosas, de cores vivas, reveladoras de suas personalidades; Ágis, Agesilau, O grande Gilipo, ao contrário, iam para a guerra com costumes severos que não denunciavam sua condição de chefes. Entre as críticas que fizeram a Pompeu, relativas à batalha de Farsália, figura a de ter aguardado firmemente o ataque do inimigo. Eis o que a propósito diz Plutarco, mais conhecedor do assunto do que eu: "isso, além de atenuar a violência com que se dão os primeiros golpes ao fim de uma carga, priva os combatentes do entusiasmo que, quando se lançam aos berros uns contra os outros, como ocorre habitualmente, com impetuosidade e excitação, lhes aumenta a coragem no momento do choque decisivo. Ao passo que, em permanecendo imóveis no lugar, em vez de se esquentarem como que se lhes coalha o sangue". Mas se César houvesse perdido não se diria, de maneira igualmente sensata, que uma posição é tanto mais forte e difícil de se tomar quanto nela nos mantemos firmemente? E que quem suspende a marcha, se concentra e poupa suas forças para o momento decisivo, leva vantagem sobre quem já se acha abalado por uma carga que quase lhe esgotou o fôlego? Por outro lado, um exército compõe-se de tantas frações diversas que não pode, ao se atirar com fúria contra o adversário, fazê-lo com precisão suficiente para que sua ordem de batalha não se perturbe e rompa, e para que os mais entusiastas não se empenhem antes de contar com o apoio dos companheiros de armas. Na batalha, tão contrária às leis da moral, em que dois irmãos disputaram o império persa, o lacedemônio Clearco, que comandava os gregos (os quais haviam abraçado o partido de Ciro) conduziu-os tranquilamente, sem se apressar, ao combate, e ao chegar a cinquenta passos do inimigo mandou-os que acelerassem. Diminuindo assim o espaço a ser transposto com rapidez, poupava-lhes as forças, e conquanto os conservasse em formação, dava-lhes a vantagem da impetuosidade que aumentava sua potência de choque e a precisão das armas de arremesso. Outros, nos exércitos sob suas ordens, assim resolveram esse ponto controvertido: “Se o inimigo vos ataca, aguardai-o de pé firme; se ele assim vos espera, atacai-o”. Quando da invasão da Provença por Carlos Quinto, o Rei Francisco I teve que escolher entre ir ao encontro dele na Itália, ou o esperar em seus Estados. Optou por esta decisão, embora soubesse da vantagem que consiste em levar a guerra para fora de suas fronteiras, de maneira a ter intatos os recursos do país em homens e dinheiro. Ademais, as necessidades da guerra acarretam devastações a que de bom grado não podemos expor o que nos pertence, tanto mais quanto o habitante se resigna menos a elas quando são causadas pelos seus, o que pode levar a sedições e motins, do que quando provocadas pelo inimigo. Finalmente, a licença de roubar e pilhar, que atenua grandemente as misérias da guerra para o soldado, não se pode exercer em seu próprio país; e como, então, não há mais nenhum benefício a esperar senão o soldo, difícil se faz segurá-lo, tão perto de sua mulher e de seu lar. Acrescentemos que quem põe a toalha paga as despesas da festa; que é mais agradável atacar do que se defender; que o abalo provocado pela perda de uma batalha é tão violento que, em ocorrendo ela em nosso solo, é raro que o país inteiro não seja atingido, pois nada é tão contagioso quanto o medo, nada se espalha mais depressa, sendo de temer que as cidades a cujas portas a borrasca se abate, que recolham chefes e soldados ainda pasmos e tremendo de pavor, tomem, sob a emoção, qualquer resolução perniciosa. Todas essas considerações não impediram que o rei chamasse suas forças de além Alpes e resolvesse aguardar o inimigo. Na verdade, apoiava-se em razões de outra ordem: imaginou que estando em seu próprio território, no meio de populações amigas, teria todas as facilidades. Rios e meios de comunicação estando em sua posse, os comboios de víveres e de dinheiro se efetuariam com segurança e sem escolta. Seus súditos se mostrariam tanto mais dedicados quanto mais próximo o perigo. Dispondo de numerosas cidades e pontos de resistência seguros, poderia combater quando quisesse e somente quando achasse oportuno e vantajoso. Em lhe convindo contemporizar, fá-lo-ia sem riscos, deixando que o inimigo se consumisse na espera e se desagregasse sozinho em virtude das dificuldades que teria de vencer em uma região onde tudo seria contra ele; onde tudo, em frente, atrás, nos flancos, lhe seria hostil e onde estaria na impossibilidade de dar repouso a seus homens, de acampar em caso de epidemias; onde não encontraria com que proteger seus feridos; onde não poderia obter dinheiro e víveres senão pela força; onde não teria a oportunidade de se refazer e tomar fôlego; onde, não conhecendo a região nem em conjunto nem em seus pormenores, não se defenderia contra as emboscadas e os ataques de surpresa; e onde finalmente, em perdendo uma batalha, veria sua situação irremediavelmente comprometida, não tendo onde reunir os destroços de seu exército. Em suma, não faltariam exemplos que se invocassem em prol de uma ou outra resolução. Cipião considerou - e com razão - muito mais vantajoso levar a guerra ao território de seu inimigo na África do que defender sua própria terra e combater na Itália um adversário que aí já se encontrava. Aníbal, ao contrário, perdeu-se por abandonar suas conquistas em país estrangeiro a fim de ir defender o seu. A sorte foi contrária aos atenienses que deixando o inimigo em seu próprio território invadiram a Sicília. Mostrou-se entretanto favorável a Agátocles, rei de Siracusa, o qual, desprezando o inimigo às portas de sua capital, foi ataca-lo na África. Temos por hábito dizer, e com justeza, que os acontecimentos e suas consequências decorrem - particularmente na guerra - da sorte que não quer sujeitar-se às regras de nossa inteligência e de nossa razão, o que assim exprime um poeta latino: "muitas vezes a imprevidência acerta e a prudência engana; a sorte não está forçosamente com os mais dignos; sempre inconstante, como cega, joga-se de qualquer lado. Uma força superior nos domina, dita nossos atos e mantém a ordem mortal sob suas leis". Dir-se-ia que essa influência se exerce sobre nossos projetos? e deliberações; e que até os nossos raciocínios se ressentem da incerteza da sorte. Raciocinamos ao acaso e inconsideradamente, diz o Timeu de Pia tão, porque, como nós mesmos, é a nossa razão grandemente influenciada pelo acaso. CAPÍTULO XLVIII DOS CAVALOS DE GUERRA Eis-me agora gramático, eu que nunca aprendi nenhuma língua senão pela prática e que não sei ainda o que seja adjetivo, subjuntivo ou ablativo. Parece-me ter ouvido dizer que os romanos tinham cavalos a que chamavam funales (de tiro) e outros que denominavam dextrarios, os quais se conduziam à direita ou se empregavam nas postas fora das diligências. Daí chamarmos "destriers" aos cavalos de sela. E os nossos autores que escrevem em romanos dizem comumente "adestrer" para acompanhar. Tinham também os romanos os desultorios equos, cavalos adestrados para que, sem freio nem sela, galopassem com igual rapidez um ao lado do outro, sem se afastar, de modo que ao sentir o cavaleiro a fadiga de seu animal pudesse pular no outro sem diminuir ou atenuar a corrida. E isso inteiramente armado. Os guerreiros númidas tinham igualmente à mão um segundo cavalo para trocar de montaria no meio do combate: "como nossos cavaleiros que pulam de um cavalo para o outro, os númidas costumavam ter sempre dois cavalos, e por vezes, no auge da luta, lançavam-se armados do cavalo cansado ao cavalo fresco, tão grande era sua agilidade e tão dóceis seus cavalos". Há cavalos ensinados a defender o cavaleiro, a jogar-se contra quem lhes apresenta uma espada nua, a precipitar-se com coices e mordidas contra os que os atacam e os enfrentam. Mas ocorre que, assim, mais mal fazem aos amigos do que aos inimigos. Sem contar com o fato de que não podeis domina-lo à vontade e que uma vez na batalha ficareis à mercê do que acontecer. Tal desgraça aconteceu a Artíbio, que comandava os persas contra Onesilo, rei de Salamina, e montava um cavalo desse. Empenhara-se em combate singular com Onesilo, do que se aproveitou o escudeiro deste último para lhe cravar uma foice entre as espáduas. Contam os italianos que na batalha de Fornuovo o cavalo de Carlos VIII se desvencilhou com coices e corcovos de bom número de inimigos seus, os quais de outro modo o teriam desacatado. Se a coisa é exata, eis um bem feliz acaso. Vangloriam-se os mamelucos de terem os cavalos de guerra mais hábeis e bem ensinados do mundo, os quais, por instinto ou por educação, são adestrados a distinguir e reconhecer o inimigo contra o qual, a um sinal do dono, se precipitam com dentadas e coices. E chegam a pegar no solo lanças e dardos com a boca para os entregar ao cavaleiro, a seu pedido. Dizem de César, e também do grande Pompeu, que entre outros talentos de primeira ordem possuíam o de ser cavaleiros eméritos. César na mocidade montava a cavalo sem sela nem freio e, mãos às costas, entregava-se ao galope do animal. A natureza, que fez dele e de Alexandre dois prodígios da arte militar, parece tê-los igualmente dotado de montarias excepcionais. Todos sabem que Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, tinha a cabeça à semelhança de um touro, que não se deixava cavalgar por ninguém senão por seu dono e só por este fora adestrado; que depois de morto honras divinas lhe foram rendidas e que seu nome foi dado a uma cidade construída a fim de lhe perpetuar a memória. César possuía também um cavalo cujas patas dianteiras tinham a forma semelhante à do pé humano. O casco era cortado como dedos. Somente César fora capaz de adestrá-lo e só ele o montava. Ao morrer o animal, mandou ele colocar sua imagem no templo de Vênus. Quando monto a cavalo, não tenho pressa em largar a montaria, pois doente ou com saúde é o meu meio de locomoção preferido. Platão recomenda a equitação como favorável ao físico e Plínio diz que ela convém ao estômago e conserva a flexibilidade das articulações. Mas continuemos nossos comentários. Xenofonte cita uma lei proibindo que viajasse a pé quem possuísse um cavalo. Trogo-Pompeu e Justino relatam que os partos tinham por costume não somente combater a cavalo mas ainda do mesmo modo tratar de seus negócios públicos ou particulares, fazer suas compras, discutir, conversar, passear; e que entre eles a diferença entre homens livres e servos consistia em andarem estes a pé e aqueles a cavalo. Tal instituição remontaria a Ciro. Dá-nos a história romana - e Suetônio o observa em César particularmente - exemplos de capitães que prescreviam a seus guerreiros a cavalo que abandonassem suas montarias nos momentos críticos, tanto para tirar do soldado toda a esperança de fuga, como por causa das vantagens que pensavam auferir desse gênero de combate "em que, sem dúvida, excele o romano", diz Tito Lívio. Como quer que fosse, a primeira precaução tomada para dominar as revoltas dos povos que iam subjugando consistia em lhes confiscar as armas e os cavalos. Por isso, lemos comumente em César: "manda que entreguem as armas, tragam os cavalos e deem os reféns". O sultão não permite até hoje em todo o seu império que judeu ou cristão possua um cavalo. Nossos antepassados, em particular durante a guerra contra os ingleses, combatiam a pé nos combates de certa importância e nas batalhas campais, não confiando senão na força, na coragem e no vigor pessoais para defender tão preciosas coisas quanto a honra e a vida. Em que pese a opinião de Crisanto, em Xenofonte, quando combatemos a cavalo temos nossa sorte ligada à do cavalo; os ferimentos e a morte que os podem atingir podem também provocar a nossa desgraça; que não o possamos segurar ou tocar para a frente, e eis nossa honra entregue ao acaso. Por isso não acho estranho que os combates que nossos antepassados travaram a pé tenham sido mais sérios do que os travados a cavalo: "vencedores e vencidos precipitavam-se uns contra os outros massacrando-se. Ninguém pensava em fugir. A vitória era outrora muito mais disputada, enquanto hoje a derrota é imediata: os primeiros berros e a primeira carga decidem do êxito. Em uma questão em que o acaso contribui com tão grande parte, é preciso pôr de nosso lado as maiores probabilidades de êxito. Por isso aconselharia o emprego das armas de mão as mais curtas possíveis, porquanto são aquelas que mais dependem de nós em seus efeitos. É evidente que temos muito mais certeza da eficiência de nossa espada que de uma bala de arcabuz, o qual compreende elementos diversos como a pólvora, a pedra, a rodar que falhe um só deles e eis comprometida a sorte. Mais seguro é o golpe dado pessoalmente que aquele que mandamos pelos ares: "os golpes cuja direção se subordina ao vento são incertos; a espada é a força do soldado. Todas as nações guerreiras combatem com a espada". Quanto às armas de fogo de nossa época, falarei mais pormenorizadamente quando as comparar com as da antiguidade. Salvo o ruído da detonação, que surpreende, mas a que já estamos habituados, são elas, creio, pouco eficazes e espero que um dia renunciem ao seu emprego. A arma que os italianos usavam outrora era muito mais terrível: era a um tempo uma arma de arremesso e uma arma de fogo: denominavam-na falárica e era uma espécie de azagaia com uma ponta de ferro de três pés, capaz de traspassar um homem com sua armadura. Arremessava-se à mão em campanha rasa ou com máquinas nos sítios, quando a empregavam como arma de defesa. A haste revestia-se de estopa embebida de pez e óleo e se inflamava no ar; em penetrando o corpo ou o escudo impedia que a vítima se valesse de suas armas, imobilizando-lhe braços e pernas. Contudo, parece que quando chegavam ao corpo-a-corpo, ela se tornava um transtorno para o atacante e o solo juncado desses troços incandescentes a todos perturbava: "semelhante ao raio a falárica fendeu o ar com um horrível assobio". Possuíam ainda outros meios de ação que, em virtude do hábito, eram de grande eficácia e supriam a ausência de pólvora e canhão, mas nos quais mal podemos acreditar com nossa inexperiência. Arremessavam o dardo com tamanha violência que por vezes traspassavam dois homens com seus escudos e os pregavam um no outro. Suas fundas alcançavam tão longe e com tanta precisão quanto nossas armas atuais: "Arremessando seixos ao mar com suas fundas, adestrados em acertar em círculos de pequenas dimensões, atingiam seus inimigos não somente na cabeça como em qualquer parte do rosto que visassem". As máquinas que empregavam para derrubar as muralhas produziam resultados e estrépito idênticos aos das nossas. Ao ruído terrível que repercutia nas muralhas sob os golpes dos sitiantes, a inquietação e o pavor apoderaram-se dos sitiados. Os gauleses da Ásia, da mesma origem que a dos nossos, adestrados no combate com armas de mão, mais exigentes de coragem, detestavam essas armas traiçoeiras que atingem à distância: "a amplitude dos ferimentos não os amedronta; e quando são mais largos do que profundos até se vangloriam deles, como provas de valentia. Mas se, ao contrário, uma ponta de flecha, ou uma bala de chumbo arremessada com a funda, lhes penetra profundamente a carne, deixando apenas um leve vestígio à superfície da pele, furiosos por morrer de uma simples picada, rolam no chão de raiva e vergonha". Não se aplicam essas palavras quase textualmente aos nossos arcabuzes? Os gregos, na tão longa e difícil retirada dos "Dez mil", depararam com um povo que lhes causou graves perdas, atirando com grandes e fortes arcos flechas de tal comprimento que arremessadas mesmo com a mão, à maneira de um dardo, atravessavam um escudo e com este o homem que o usava. Às catapultas que Dionísio inventou em Siracusa para arremessar troncos e pedras enormes com tamanha violência correspondem ou se assemelham os nossos recentes inventos. Não há como esquecer tampouco a graciosa atitude, em sua mula, de um tal Sr. Pedro Pol, doutor em teologia, e que Monstrelet nos descreve como tendo por hábito passear pela cidade de Paris sentado de lado como as mulheres. Esse mesmo historiador escreve, em outro trecho de suas crônicas, que os gascões possuíam cavalos terríveis acostumados a dar meia-volta a galope, sem parar, o que maravilhava os franceses, pícardos, flamengos e brabantinos, os quais "não estavam habituados a vê-los", como diz. César observou a propósito dos suevos: "nos encontros a cavalo, saltam muitas vezes à terra e combatem a pé; seus cavalos, estando acostumados a não se mover do lugar em que os deixam, correm a eles em caso de necessidade. A seu ver nada é menos honroso nem mais efeminado que usar selas e armaduras para as montarias, e desprezam os que as têm. Graças a esses métodos não temem, ainda que em pequeno grupo, atacar um inimigo superior em número". O que muito admirei há tempos ao ver um cavalo que com uma simples vareta e sem auxílio de rédeas tudo fazia como se queria, era comum entre os massilianos: Os massilianos, montando seus cavalos em pelo e sem freios, conduziam-nos com uma vareta. Os númidas guiavam seus cavalos sem freio. "Desprovidos de freios, seus cavalos são disformes, têm o pescoço rígido e a cabeça esticada". O Rei Afonso, fundador da ordem dos Cavaleiros da Lista, ou da Banda, estabeleceu, entre outras ordenações, que não se montasse mula nem besta sob pena de um marco de prata de multa, segundo se consigna nas cartas de Guevara, às quais deram, alguns, o qualificativo de douradas, tendo delas melhor juízo do que eu. Lê-se em "O Cortesão" que, antes da época em que foi escrito o livro, incorria em censura o fidalgo que cavalgasse uma mula. Ao contrário, entre os abissínios, quanto mais perto do príncipe pela condição social, maior dignidade e luxo consideram montar uma bela mula. Xenofonte conta que os assírios mantinham seus cavalos sempre amarrados em suas casas, a tal ponto eram fogosos e selvagens; e precisavam de tanto tempo para os arrear e desamarrar que, a fim de que isso não lhes acarretasse prejuízos, caso fossem colhidos desprevenidos, jamais acampavam sem cercarem o campo de fossos e estacadas. Ciro, seu rei, grande conhecedor de cavalos, só dava repouso e comida aos seus depois que os sujeitava mediante um bom e rude exercício. Os citas na guerra, quando a necessidade os forçava a tanto, sangravam seus cavalos e usavam o sangue como alimento: "nutre-se assim o sármata com sangue de seus cavalos". Os cretenses, sitiados por Metelo e sem outro meio de estancar a sede, recorreram à urina de seus cavalos. Para provar que os exércitos turcos se sustentam com menos do que os nossos, dizem que além de só beberem água e comerem arroz com farinha de carne salgada, de que cada qual leva consigo o suficiente para um mês, vivem, se preciso, como os tártaros e os moscovitas do sangue de seus cavalos, que salgam para conservar. , Esses povos novos da India imaginavam, ao chegarem os espanhóis, que homens e cavalos fossem deuses ou pelo menos seres de natureza superior à sua. Alguns, depois de vencidos, vinham implorar perdão e pedir paz e, depois de oferecer ouro e viandas aos homens, o mesmo faziam aos cavalos com idênticas palavras, interpretando os relinchos como assentimento dado às propostas de trégua. Nas Índias Orientais, montar um elefante era outrora a maior das honras, reservada exclusivamente aos reis; vinha em seguida andar em carro puxado por quatro cavalos; em terceiro lugar montar um camelo; em último valer-se de veículo puxado por um só cavalo. Um contemporâneo nosso escreve ter visto nessas mesmas regiões, lugares onde cavalgam bois com cangalha, estribo e rédeas; e dão-se bem com a montaria. Vendo Quinto Fábio Máximo Rutiliano, na guerra contra os samnitas, que seus cavaleiros não tinham conseguido romper as fileiras inimigas após duas ou três cargas, mandou que tirassem os freios dos cavalos e os esporeassem com energia, de modo que nada os podendo deter, por cima de armas e homens derrubados abriram passagem para a infantaria, o que completou a sangrenta derrota dos adversários. Igual conduta teve Quinto Fúlvio Flaco contra os celtiberos: "A fim de se tornar mais impetuoso o choque, tirai os freios aos cavalos e lançai-os contra o inimigo; é uma manobra que não raro favoreceu a cavalaria romana e muito a honra (...). Arrancam os freios, rompem as fileiras inimigas, e voltam em seguida, atravessando-as novamente, partem todas as lanças e fazem enorme carnificina”. O Duque de Moscóvia devia outrora, como sinal de respeito, ir a pé ao encontro dos embaixadores tártaros e oferecer-lhes um copo de leite de jumenta (o que muito apreciavam); se, em o bebendo, algumas gotas caíssem sobre o pelo de seus cavalos, cabia-lhes lambê-las. O exército que Bajazet enviou à Rússia foi assaltado por tamanha tempestade de neve que para se abrigar e preservar do frio inventaram alguns soldados destripar seus cavalos e se meter dentro deles para aproveitarem o calor vital. Bajazet, após essa violenta batalha em que foi derrotado por Tamerlão, fugiu a toda velocidade num jumento árabe; teria escapado ao inimigo se ao atravessar um riacho não tivesse deixado o animal beber à saciedade, o que, em lhe tirando o vigor, o tornou tão lerdo que foi facilmente alcançado pelos perseguidores. Dizem que os deixar urinar lhes diminui as forças; mas quanto a beber eu imaginava, ao contrário, que os reanimasse. Ao atravessar a cidade de Sardes, Creso encontrou uma grande pastagem onde havia quantidade de serpentes que os cavalos comeram com apetite; o que, diz Heródoto, foi de mau augúrio para seus empreendimentos. Chamamos cavalos inteiros aos que têm crina e orelhas; os outros não são admitidos nas paradas. Os lacedemônios, vencedores dos atenienses na Sicília, ao entrar em Siracusa fizeram entre outras bravatas tosar os cavalos dos vencidos e os agregar a seu desfile triunfal. Alexandre teve de lutar contra um povo, os daas, que iam à guerra com dois soldados para cada cavalo; na refrega um descia e combatia a pé, enquanto o outro continuava a lutar a cavalo; e nisso se revezavam. Não creio que nenhuma nação ganhe da nossa em equitação. E em nossa maneira de falar, a expressão bom cavaleiro diz antes respeito à coragem do que à destreza. O homem mais hábil, firme e gracioso a cavalo, que eu conheci, foi o Sr. de Carnavalet, que era escudeiro do Rei Henrique II. Ocorreu-me ver um cavaleiro de pé sobre a sela, afrouxá-la, tirá-la, substituí-la e tornar a sentar-se com o cavalo sempre a galope; pular por cima de um chapéu no chão e crivá-lo de flechas de costas; pegar ao solo o que queria, um pé no estribo e o outro solto; e realizar outras tantas proezas para ganhar a vida. Em meu tempo viram-se em Constantinopla dois homens montados no mesmo cavalo e que no mais forte da galopada se atiravam ao chão alternativamente e tornavam a pular em cima do animal; outro que com os dentes unicamente arreava o seu. Outro que a todo galope cavalgava dois cavalos ao mesmo tempo, um pé em cada um e carregava sobre os ombros um segundo homem. Este, de cima do primeiro, e sem que se reduzisse a velocidade da montaria, atirava flechas certeiras com seu arco. Outros corriam de pernas para o ar, a cabeça sobre a sela entre lâminas de alfanjes amarrados aos arreios. Na minha infância o Príncipe de Sulmone em Nápoles obtinha o que queria de seu rude cavalo, sustentando sob os joelhos e os pés peças de moeda que não se moviam sequer, a fim de mostrar a firmeza com que montava. CAPÍTULO XLIX DOS COSTUMES ANTIGOS Desculparia de bom grado em nosso povo a tendência para não admitir como modelo e regra de perfeição senão os próprios usos e costumes, pois é defeito generalizado, não somente no homem comum como em quase todos os homens, ver e seguir apenas o que se praticou desde o berço. Não me aborrece que o povo se surpreenda com Lélio ou Fabrício e os considere bárbaros porque não se vestem como nós e não têm boas maneiras. Mas lamento encontrar em meus compatriotas essa inconsequência que faz que se deixem tão cegamente influenciar e iludir pela moda do momento, que são capazes de mudar de opinião tantas vezes quantas ela própria muda, isto é, de mês em mês, e forjando cada vez novas razões para justificar a seus próprios olhos seus juízos mais díspares. Quando se usavam barbatanas no gibão até o meio do peito, à altura dos seios, todos descobriam excelentes argumentos para achar que assim devia ser. Anos depois, a moda fê-las descerem ao nível das ancas e cada qual moteja agora a moda anterior e a declara absurda tanto quanto insuportável. A maneira de hoje se vestir acarreta crítica imediata à de se vestir ontem, crítica que se exerce tão precisamente e de comum acordo que se diria estarmos, quanto a isso, dominados por uma mania perturbadora de nossa inteligência. E sendo essa mudança tão repentina e rápida, não pode a imaginação de todos os alfaiates do mundo criar novidades em número suficiente, ocorrendo então, o que se verifica amiúde, reaparecerem ao fim de algum tempo as modas abandonadas, enquanto outras, ainda recentes, deixam de agradar. E assim chegamos a emitir sobre uma mesma coisa, em espaço de tempo de quinze a vinte anos, duas ou três opiniões não apenas diferentes mas, por vezes, absolutamente contrárias, revelando uma inconstância e uma leviandade incríveis. Os mais espertos dentre nós não evitam essas contradições e insensivelmente não mais as percebem. Proponho-me colecionar aqui certos costumes antigos que me vêm à memória. Entre eles, alguns nós os conservamos; outros divergem dos nossos. Ante o espetáculo dessas mudanças contínuas das coisas humanas, nossa inteligência talvez se aclare e nosso julgamento se torne mais estável. Dizemos combater com capa e espada. Isso já se praticava no tempo dos romanos, e César diz: "envolvem a mão esquerda no saio e puxam a espada". Assinala ele igualmente essa feia brincadeira, ainda em voga entre nós, de fazer parar os transeuntes, obrigando-os a declinar nome e qualidades para em seguida os injuriar e/ ou os provocar, se se recusam a responder. Os antigos tomavam banhos cotidianos antes das refeições e os tomavam tão seguidamente quanto nós lavamos as mãos. A princípio lavavam apenas os braços e as pernas. Mais tarde porém (e isso durou séculos e se propagou por toda parte) mergulhavam completamente nus em banhos acrescidos de substâncias perfumadas. Empregar água natural era prova de grande simplicidade. As pessoas particularmente delicadas e requintadas perfumavam o corpo todo ao menos três ou quatro vezes por dia. Arrancavam todos os pelos como nossas mulheres se acostumaram a fazer com os da fronte, de algum tempo para cá: "tens o peito, as pernas e os braços depilados" e os arrancavam, embora possuíssem unguentos para o mesmo fim: "Unta a pele de unguento depilatório ou a embebe de giz derretido no vinagre". Gostavam de deitar-se em leitos muito moles e consideravam prova de austeridade fazê-lo em colchões. Comiam reclinados sobre camas mais ou menos como os turcos atualmente: "Então, de cima do leito assim falou Enéias"? Dizem que desde a batalha de Farsália, em sinal de luto pelo péssimo estado dos negócios públicos, Catão, o Jovem, comeu sempre sentado, adotando uma vida austera. Beijavam as mãos dos grandes para os homenagear e adular. E beijavam-se entre amigos, como os venezianos: "e eu te saudarei com palavras e beijos". E tocavam os joelhos dos grandes a quem saudavam ou de quem solicitavam alguma coisa. Pásicles, filósofo, irmão de Crates, em vez de levar a mão ao joelho de alguém a quem se dirigia, levou-a as partes genitais. Repelindo-o brutalmente o outro, disse-lhe Pásicles: "Pois não achas que esta parte do corpo vale tanto quanto qualquer outra?" Comiam frutas no fim da refeição como o fazemos também. Limpavam o eu (deixemos às mulheres a vã superstição das palavras) com uma esponja; eis por que o vocábulo spongia é obsceno em latim. Essa esponja era fixada na extremidade de um bastão, como o prova a história do indivíduo que levado às arenas a fim de ser entregue às feras pediu para satisfazer suas necessidades e, não tendo outro meio de suicídio, enfiou a esponja e o bastão na garganta, asfixiando-se. Enxugavam o membro com tecido de lã perfumado depois de usa-lo: "não te farei nada senão te lavar com esta toalha de lã", diz Marcial. Havia nos cruzamentos das ruas em Roma recipientes e meias-tinas para que os passantes urinassem dentro: "Não raro os meninos em sonho pensam erguer suas vestimentas diante da tina em que se urina". Faziam colação entre as refeições. No verão vendia-se neve para refrescar o vinho; algumas pessoas também a usavam no inverno, não achando ainda bastante fresca a bebida. Tinham os ricos trinchantes e copeiros para os servir à mesa, bem como histriões para os divertir. No inverno serviam a carne sobre pequenos braseiros. Possuíam cozinhas portáteis, como vi algumas, nas quais quando viajavam carregavam todo o serviço: "guardai esses pratos para vós, ricos voluptuosos, não gostamos da cozinha ambulante”. No verão, em suas salas baixas, faziam correr água fresca e límpida em canaletes junto ao chão e nos quais colocavam peixes vivos que o conviva podia pegar e mandar preparar a seu gosto. O peixe sempre teve esse privilégio, que ainda tem de pretenderem os ricos saber prepara-lo a seu modo; e a meu paladar sabe mais deliciosamente do que a carne. Em matéria de magnificência, festins, invenções voluptuosas, lazer e luxo, fazemos o possível para ombrear com eles, pois nossas vontades são igualmente pervertidas, mas não temos o talento necessário para alcançar o seu nível, trate-se de vícios ou virtudes, porque em ambos os casos o ponto de partida é um vigor de espírito que era sem dúvida muito maior neles do que em nós. E, também, porque as almas, na medida em que são menos fortes, contam com menos meios de realizar o bem em grande ou de executar o mal na mesma proporção. O lugar de honra para eles era o do meio. Citar alguém antes ou depois, em escrevendo ou falando, não significava em absoluto preeminência, como se vê de sua literatura. Diziam Opio e César, mas também César e Ópio, e indiferentemente eu e tu e tu e eu. Observei de uma feita, na tradução francesa da vida de Flamínio, por Plutarco, um trecho em que, falando da rivalidade que se desenvolvera entre os italianos e os romanos, acerca do direito à maior parte da vitória que juntos haviam obtido, o tradutor, no intuito de resolver a questão, deu importância ao fato de serem citados os etolianos antes dos romanos, nos cantos gregos em que se alude ao acontecimento. Penso que nessa apreciação ele foi influenciado pelas regras da língua francesa. Mesmo quando estavam nas salas em que tomavam seus banhos de vapor, as mulheres recebiam as visitas dos homens. E aí se entregavam aos cuidados de seus criados que lhes faziam massagens e as untavam: "um escravo com um avental de couro preto, aguarda tuas ordens, quando, nua, tomas teu banho quente". Tinham certos pós para absorver o suor. Os antigos gauleses, diz Sidônio Apolinário, usavam os cabelos compridos na frente e curtos atrás, moda que vem sendo novamente seguida neste século de costumes efeminados e relaxados. Os romanos pagavam aos barqueiros o preço de sua passagem ao embarcar, o que nós só fazemos depois da chegada: "hora inteira decorre em pagar passagens e em jungir os animais de tiro". As mulheres dormiam no leito do lado do beco entre a cama e a parede; daí o apelido dado a César: "o beco do Rei Nicodemo". Tomavam alento ao beber e batizavam o vinho: "que escravo irá temperar depressa o falemo com a água viva que corre aqui perto?" Encontramos igualmente nessa época as atitudes impudentes dos lacaios de nosso tempo: "Ó Jano, ninguém te põe comos por trás, nem orelhas de asno; nem a língua, como o faria um cão sedento das Apúlias". Para as senhoras de Argos e Roma, o branco era a cor do luto, como entre nós até há bem pouco tempo, costume que não se devia ter abandonado, a meu ver. Mas há livros inteiros sobre estes assuntos. CAPÍTULO L SOBRE DEMÓCRITO E HERÁCLITO É o juízo um instrumento útil em tudo. Estes ensaios me fornecem amiúde a oportunidade de empregá-lo. Se não entendo de algum tema, recorro a ele e o ponho à prova, com ele sondando o vau. E se verifico ser este demasiado profundo, fico na margem. E o reconhecimento de que não posso ir além é a um dos serviços que me presta e de que mais se orgulha. Por vezes, quando o assunto é fútil procuro ver a que ponto lhe dará consistência, apoio e alicerce. E se ventilo coisa importante e já batida, ele me ajuda a descobrir o melhor desses caminhos, tão frequentados que não há como o evitar. E entre mil veredas diferentes indica a que devo seguir. Ao acaso escolho um assunto, pois todos me são igualmente bons e não pretendo esgotar nenhum, porquanto de nenhum chego a ver o fundo. E os que nos prometem mostrá-lo não cumprem suas promessas. Entre cem aspectos da mesma coisa, tomo um. E ora o debico apenas, ora o mordisco, ora vou até o osso. Escruto-o, não em larga superfície, mas tão profundamente quanto mo permite o meu saber, e as mais das vezes me comprazo em o encarar por um ângulo diferente do habitual. Gostaria de tratar a fundo um tema qualquer, mas me conheço demais para me iludir acerca de minha incapacidade. Agindo como ajo, arriscando uma palavra aqui, outra acolá, amostras tiradas do todo, isoladas, sem intenção preestabelecida, e nada prometendo, não tenho por obrigação realizar uma obra de real valor, nem sequer me acho comprometido em relação a mim mesmo e conservo a liberdade de variar, quanto me apeteça, os assuntos de que trato e a maneira de fazê-lo, sem que me retenham dúvidas ou incertezas ou (o que acima de tudo me domina) a ignorância. Qualquer ato nosso revela o que somos. A personalidade de César tanto se manifesta na preparação da batalha de Farsália, e na maneira por que a conduziu, quanto nas reuniões de prazeres e galanteios que organizava. Julga-se um cavalo não apenas pelo galope, mas ainda pelo passo natural e até em seu descanso na estrebaria. Entre as funções da alma algumas há que são mesquinhas; quem não a julga também por esse prisma não a conhece senão imperfeitamente. É em geral quando está calma que melhor se observa. O vento das paixões não a atinge na serenidade, tanto mais quanto ela se dá por inteiro em cada caso, nunca se preocupando com duas coisas ao mesmo tempo, e tratando do que a ocupa, não segundo o seu temperamento e sim segundo o nosso. As coisas em si mesmas podem ter peso, medida, condições intrínsecas; dentro de nós, a alma as transforma como entende. A morte é coisa terrível para Cícero, desejável para Catão, indiferente para Sócrates. A saúde, a consciência, a autoridade, a ciência, a riqueza, a beleza e seus contrários, em se incorporando a nós, despojam-se do que lhes é peculiar e, graças à nossa alma, recebem nova vestimenta, da aparência que ela lhes empresta: marrom, clara, verde, preta, ácida, doce, profunda, superficial, a que mais em harmonia esteja com cada uma, pois as almas não se puseram de acordo acerca de seus estilos, regras e formas. Cada uma delas é soberana em seu domínio. Portanto não nos desculpemos com as qualidades externas das coisas; cabe-nos, a nós, determiná-las. Nosso bem como nosso mal só dependem de nós. A nós mesmos e não à fortuna devemos endereçar as nossas preces e a expressão de nossos desejos; ela nada pode sobre nossos costumes, de que é, ao contrário, a consequência. São eles que a arrastam e a fazem tal qual é. Por que não julgar Alexandre à mesa, conversando, bebendo, ou jogando xadrez? Qual a fibra de seu espírito que não vibre e não se movimente nesse jogo tolo e pueril que detesto e evito porque é um jogo que não é jogo, um passatempo demasiado sério e exigente de uma atenção que lamentaria dar-lhe, porquanto tenho para ela melhor aplicação. A preparação e a conquista das Índias não solicitaram maior trabalho desse herói macedônio, como de tal outro não o exigiu a interpretação de um texto essencial à salvação do homem. Vede como nossa alma amplia e engrandece esse jogo ridículo: vede como ele absorve todas as suas faculdades, a ponto de dar a cada um a possibilidade de se conhecer tal qual é. Nunca me vejo e me sinto melhor do que quando jogo xadrez. Todas as minhas paixões se expandem: a cólera, o despeito, o ódio, a impaciência e também a ambição de vencer em uma coisa em que fora preferível ser vencido; pois não é de um homem de honra buscar em coisas fúteis, como em partidas de xadrez, uma superioridade excepcional. E o exemplo aplica-se às demais circunstâncias da vida. Todo pormenor da existência do homem, toda ocupação a que se entregue, o revelam e o mostram com suas qualidades e defeitos. Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e ridícula, apresentava-se sempre em público a rir e motejar. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava permanentemente triste e de lágrimas nos olhos: "Logo que punham o pé fora de casa, um ria e o outro chorava”. Prefiro o primeiro, não porque seja mais agradável rir do que chorar, mas porque sua atitude é testemunha de seu desdém, porque ela nos condena mais do que a outra e acho que nunca podemos ser desprezados quanto o merecemos. Piedade e comiseração misturam-se a alguma estima por aquilo de que temos dó; o de que se caçoa, consideramo-lo sem valor. Penso que há em nós mais vaidade do que infelicidade, mais tolice do que malícia, mais vazio do que maldade, mais vileza do que miséria. Diógenes, em seu tonel, divertindo-se com seus botões em zombar das vaidades humanas, escarnecendo de Alexandre, encarando os homens como moscas ou bexigas cheias de vento, foi um crítico mais acerbo e agudo, e por conseguinte mais de meu agrado, do que Timão, a quem chamavam o Misantropo porque odiava os homens. O que odiamos, por algum aspecto nos interessa e preocupa. Timão desejava o nosso mal, aspirava a nossa ruína, fugia da nossa conversação que achava perigosa porque de gente ruim e depravada. Diógenes estimava-nos tão pouco que não supunha sequer que nossa frequentação o pudesse perturbar ou lhe alterar o humor. Se não desejava nossa companhia, não era por temor de contágio, mas por desprezo. Não nos acreditava capazes nem de fazer o bem nem de fazer o mal. A resposta de Estatílio a Bruto, que procurava filia-lo à conspiração contra César, está impregnada da mesma ideia: "Era justo empreendimento, a seu ver, mas os homens para os quais o tentavam não eram dignos de qualquer esforço em seu favor." Dentro do mesmo espírito Hegésias afirmava como regra que "o sábio nada deve fazer senão para si próprio, porque só ele merece o que por ele fazem". E Teodoro estabeleceu que "não é justo que o sábio se arrisque pelo bem de seu país e comprometa a sua sabedoria em favor da loucura". Nossa condição própria é tão ridícula quão risível. CAPÍTULO LI VÃS SÃO AS PALAVRAS Dizia um retórico do passado que sua profissão consistia em "fazer com que as coisas pequenas parecessem grandes e como tal se aceitassem". O que equivale a dizer um sapateiro fazendo sapatos grandes para pés pequenos. Em Esparta tê-lo-iam fustigado por exercer ofício tão mentiroso e enganador. E penso que foi sem espanto que Arquimedes, um de seus reis, ouviu esta resposta de Tucídides, a quem indagava qual o mais forte na luta: Péricles ou ele. É difícil verificá-lo, porque quando o derrubo ele persuade os espectadores de que não caiu, e ganha. Os que maquilam as mulheres causam menor mal (porquanto pouco se perde com não as ver ao natural) do que os que têm por profissão abusar, não de nossos olhos, mas da nossa inteligência, abastardando e corrompendo a própria essência das coisas. As repúblicas bem organizadas e administradas não deram muita importância aos oradores. Assim foi em Creta e na Lacedemônia. Aríston diz com sabedoria que a oratória é a ciência de persuadir o povo. Sócrates e Platão a definem como a arte de enganar e adular. E os que se erguem contra esta definição geral, comprovam-na em seus preceitos. Os maometanos proíbem-lhe o ensino às crianças, por inútil. E os atenienses, entre os quais ela fora tão apreciada, ordenaram a supressão de suas artes mais importantes e que mais atuam sobre os sentimentos: o exórdio e a conclusão, ao verificarem quanto lhes era prejudicial. Trata-se de um instrumento muito adequado a excitar ou acalmar o populacho alvoroçado e que, como a medicina, só se aplica aos Estados enfermos. Naqueles em que o vulgo ou os ignorantes tiveram todo o poder, como em Atenas, Rodes e Roma, e onde a coisa pública sofreu contínua agitação, proliferaram os oradores. Em verdade não se veem muitos personagens adquirir grande influência nessas repúblicas, sem ajuda da eloquência. Para Pompeu, César, Crasso, Lúculo, Lêntulo, Metelo, foi ela o principal fator de sua grandeza e de seu poder. Auxiliou-os mais do que a sorte das armas, o que não aconteceria em tempos melhores. L. Volúmnio, falando em público a favor da eleição de A. Fábio e P. Décio, ao consulado, dizia: "São homens que se fizeram na guerra, homens de ação pouco afeitos às justas oratórias, caracteres como devemos exigir dos que elevamos ao Consulado; os de espírito manhoso, eloquentes e eruditos, são bons para os cargos que se exercem sem sair de Roma, cargos de pretores, por exemplo, encarregados de aplicar as leis." Foi quando os negócios andavam pior, quando a tempestade das guerras civis abalava a cidade, que a eloquência floresceu em Roma; assim as ervas daninhas em um campo abandonado ou não roteado ainda crescem com mais vigor. Pode-se concluir daí que os governos dependentes de um monarca têm menos do que os outros necessidade de eloquência, pois a tolice e a credulidade da maioria, impelindo-a a ser manejada e orientada pelo ouvido ao doce som daquela música, sem que possa pesar nem conhecer a verdade das coisas pela forma da razão, não se encontram tão facilmente em um só homem, o qual é possível assegurar contra os efeitos de tal veneno, mediante uma boa educação e bons conselhos. Nem a Macedônia nem a Pérsia tiveram oradores famosos. Uma palavra acerca de um italiano com o qual acabo de me entreter e que serviu junto ao falecido Cardeal Caraffa na qualidade de mestre de hotel, cargo que exerceu até a morte do prelado. Falamos de seu cargo e, a respeito da ciência gastronômica, deu-me ele verdadeira preleção com gravidade e atitude de professor como se desenvolvesse um ponto da teologia. Enumerou-me as diversas espécies de apetites: o que se tem em jejum; os que se experimentam depois do segundo e terceiro pratos; os meios de os satisfazer simplesmente ou de os excitar; a técnica dos molhos, a princípio de um modo geral e em seguida pormenorizada mente, entrando na minúcia dos ingredientes e de seus efeitos; a variedade de saladas segundo a estação, as que devem ser servidas cozidas e as que devem ser servidas frias, a maneira de as apresentar agradavelmente. Entrou depois em considerações acerca da ordem com que convém servir os pratos: "pois não é coisa de pouco saber como cortar uma lebre ou trinchar um frango". E tudo isso ornamentado de belas palavras como as que se usam para falar de um governo, de um império, o que me lembrou este trecho de Terêncio: "Salgado demais! Queimado demais! Insosso! Está bom! Repita isso outra vez! Dou-lhes meus melhores conselhos, de acordo com o pouco que sei. Finalmente insisto, Demea, para que tenham por espelho sua baixela, E ensino-lhos tudo". Observe-se que os próprios gregos elogiaram, e muito, o banquete que lhes ofereceu Paulo Emilio de volta da Macedônia. Mas não me ocupo aqui de fatos e sim das palavras que se usam para os relatar. Não sei se outros sentem o que sinto, mas quando ouço nossos arquitetos lançar estas palavras pretensiosas: pilares, arquitraves, cornijas, ordem coríntia ou ordem dórica, e outras de seu jargão, não posso impedir-me de pensar imediatamente no palácio de Apolídon e, por comparação, o que citam com tanta ênfase não me parece muito superior às mesquinhas peças da porta de minha cozinha. Quando ouvis falar de metonímia, metáfora, alegoria e outras expressões da gramática não vos parece que sejam locuções de uma língua rara e peregrina? Pois se aplicam muito simplesmente às formas de linguagem que vossa criada de quarto emprega na sua tagarelice. E erro semelhante aplicar aos cargos de nosso Estado político os pomposos títulos que usavam os romanos, pois não há nenhuma relação nem quanto às funções nem no que concerne à autoridade e ao poder. E é erro igualmente, que nos censurará a posteridade, atribuir a quem bem entendemos - e não são dignos deles - esses gloriosos cognomes com que a antiguidade honrou um ou dois personagens apenas em sua longa sequência de séculos. Pia tão foi chamado "divino" por universal consenso e sem que ninguém pensasse em contestar-lhe o título, e eis que os italianos, que no entanto se vangloriam, com alguma razão, de ter o espírito mais vivo e o juízo mais equilibrado do que os demais povos, acabam de gratificar o Aretino com igual apelido, esse Aretino que, salvo pelo falar empolado, marchetado de saídas em verdade espirituosas, porém demasiado requintadas e rebuscadas, nada tem a meu ver, afora a eloquência, que o coloque acima dos autores comuns deste século e que o aproxime, ainda que de longe, daquele que os antigos divinizaram. Quanto ao epíteto "grande" a quantos príncipes não o concederam, que em nada ultrapassam os outros? CAPÍTULO LII PARCIMÔNIA DOS ANTIGOS Atílio Régulo, que comandava o exército romano na África, no auge de sua glória pelas vitórias contra os cartagineses, comunicou ao governo de Roma que um agricultor que deixara em sua fazenda, a qual tinha apenas três hectares, fugira com seus instrumentos de trabalho. Em consequência do que pedia licença para voltar a seu lar a fim de resolver o assunto, pois temia que sua mulher e seus filhos viessem a sofrer. O Senado encarregou-se de colocar outro agricultor no lugar do desaparecido, entregou-lhe outros instrumentos de trabalho e ordenou que a mulher e os filhos fossem sustentados pelo Estado. Catão, o Velho, ao voltar da Espanha onde exercera o cargo de cônsul, vendeu seu cavalo a fim de economizar o dinheiro que lhe teria custado o transporte por mar, para a Itália. O governador da Sardenha fazia suas inspeções a pé, levando em sua companhia unicamente um oficial que lhe carregava a toga e um vaso destinado à cerimônia dos sacrifícios. As mais das vezes carregava ele próprio a sua maleta. Vangloriava-se de nunca haver possuído toga de mais de dez escudos, de não gastar mais do que dez soldos por dia na feira e de não ser nenhuma de suas casas de campo rebocada e caiada. Cipião Emiliano depois de duas vitórias e dois consulados foi como legado para uma província somente com sete servidores. Dizem que Homero nunca teve mais de um, Pia tão três e que Zenão, o chefe dos estoicos, não tinha nenhum. A Tibério Graco não se concederam senão cinco soldos e meio por dia quando desempenhou missão especial da República, e era o personagem mais importante de Roma. CAPÍTULO LIII DE UMA SENTENÇA DE CÉSAR Se nos divertíssemos com nos examinar e se o tempo que empregamos em observar os outros e em nos informar acerca do que não é de nossa conta nós o consagrássemos a ver dentro de nós mesmos, compreenderíamos logo quão frágeis e insignificantes são as peças de que somos feitos. Não constitui, com efeito, prova de imperfeição o fato de que nada nos dê inteira satisfação? E que nossa própria imaginação e nossos próprios desejos nos impeçam de escolher o que nos convém? E a evidência dessa impossibilidade está na grave questão pendente entre os filósofos de saber em que consiste o soberano bem dos homens, questão que continua sem resposta e assim continuará eternamente, sem que jamais se chegue a um acordo: "O bem que não temos parece preferível ao resto; quando obtemos a coisa desejada logo queremos outra, e nossa sede é inestancável". Por grandes que sejam os conhecimentos que adquirimos e os bens de que podemos usufruir, sentimos que algo nos falta e suspiramos pelo futuro desconhecido, tanto mais quanto não nos sacia o presente. E isso, a meu ver, não porque nos ofereça com que nos embriagarmos, mas porque só aceitamos o que nos apresenta com reticência e prevenção: "quando viu que os mortais já dispõem de quase tudo o que lhes é necessário; que apesar das riquezas, das honrarias, da glória, dos filhos bem formados, não escapam à angustia nem aos dolorosos conflitos interiores, Epicuro compreendeu que o mal vem do próprio continente, o qual, por se haver corrompido, estraga o bem que se derrame dentro dele". Nossos desejos carecem de resolução e convicção. Não sabemos conservar nem desfrutar convenientemente. Obcecado pela ideia de que o que possui é imperfeito, o homem entrega-se por inteiro e pela imaginação às coisas que não tem e não conhece, nelas concentra seu desejo e sua esperança e as encara com respeito e amor; o que César assim exprime: "Em consequência de um vício de nossa natureza, e comum a todos os seres, tememos sobretudo as coisas que não conhecemos e se nos ocultam, ao mesmo tempo que nelas confiamos de preferência. CAPÍTULO LIV DAS VÃS SUTILEZAS Os homens recorrem por vezes a sutilezas fúteis e vãs para atrair nossa atenção. Assim, os que escrevem poemas inteiros em que todos os versos começam pela mesma letra. Na antiga literatura grega deparamos com poemas em forma de ovo, de bola, de asa, de machadinha, obtidos mediante a variação das medidas dos versos que se encurtam ou alongam para, em conjunto, representar tal ou qual imagem. A ciência de Fulano que se divertiu com calcular de quantas maneiras se combinavam as letras do alfabeto, e achou esse número incrível que Plutarco menciona, também participa desse gênero de singularidades. Aprovo a atitude daquele personagem a quem apresentaram um homem que com tamanha habilidade atirava um grão de alpiste que o fazia passar pelo buraco de uma agulha sem jamais errar o golpe. Tendo pedido ao outro que lhe desse uma recompensa por essa habilidade excepcional, atendeu o solicitado, de maneira prazenteira e justa a meu ver, mandando entregar-lhe três medidas de alpiste a fim de que pudesse continuar a exercer tão nobre arte. E prova irrefutável da fraqueza de nosso julgamento apaixonarmo-nos pelas coisas só porque são raras e inéditas, ou ainda porque apresentam alguma dificuldade, muito embora não sejam nem boas nem úteis em si. Ultimamente jogamos em minha casa um jogo que consiste em achar o maior número de palavras que se liguem pelos extremos em suas aplicações. Por exemplo: "Sire" é um título que se dá ao mais alto personagem do Estado, o rei; mas se aplica igualmente ao vulgo, aos comerciantes, sem jamais se empregar entretanto em relação às pessoas de classe média. Às senhoras da classe alta chamam "dames": às da classe média "demoiselles": e às da classe mais baixa "dames" também. Os dados só se jogam nos palácios dos príncipes e nas tavernas. Demócrito dizia que os deuses e os bichos tinham sentimentos mais delicados do que os homens, os quais estão no meio da escala. Os romanos usavam vestimentas idênticas nos dias de luto e de festa. É sabido que o medo desesperado e a extrema coragem atuam sobre o organismo, perturbam os intestinos e os relaxam. O apelido de "trêmulo" dado a D. Sancho, décimo segundo rei de Navarra, mostra que a valentia, tal qual o medo, provoca tremores no corpo. Os que lhe vestiam a armadura procuravam tranquiliza-lo, atenuando o perigo a que se ia expor: "Conheceis-me bem mal", respondeu ele, "se minha carne soubesse onde meu arrojo vai conduzi-la ficaria absolutamente transida". Se a repugnância e a indiferença ocasionam a impotência nos jogos de Vênus, à mesma fraqueza levam o desejo violento e o imoderado ardor. O frio intenso e o exagerado calor queimam e assam igualmente. Diz Aristóteles que as barras de chumbo, que fundem à temperatura elevada, fundem também e escorrem quando o frio é excessivo. O desejo e a saciedade machucam igualmente os nossos órgãos antes e depois de nos satisfazermos. A estupidez e a sabedoria comportam-se de maneira análoga na dor; os sábios a dominam e os outros ignoram. Estes ficam, por assim dizer, aquém do sofrimento; os outros vão além. O filósofo, depois de ter pesado e considerado as coisas, depois de as ter medido e analisado, coloca-se acima delas mercê de um corajoso esforço, despreza-as e as rechaça, porque possui uma alma forte e sólida, contra a qual se partem, sem a penetrar, as flechas da fortuna. Os homens em sua maioria situam-se entre estes extremos: percebem o mal, sentem-no e não o podem suportar. A infância e a decrepitude têm em comum a simplicidade de espírito. A avareza e a prodigalidade mostram idêntico desejo de adquirir e monopolizar. Parece haver motivos para afirmar que existe uma ignorância inicial que precede a ciência e uma ignorância doutoral que a segue. A ciência faz e engendra esta última, assim como desfaz e destrói a primeira. Fazem-se bons cristãos com espíritos simples, pouco curiosos e pouco instruídos e que tanto por respeito como por obediência acreditam singelamente e observam os mandamentos. É entre as pessoas de espírito e capacidade médios que nascem as opiniões errôneas; adotam pela simples aparência qualquer interpretação primária das Escrituras e se imaginam autorizadas a considerar tolice e estupidez continuarmos fiéis à antiga crença, alegando não assentar a nossa opinião em nenhum estudo prévio. Os grandes espíritos, mais sérios e clarividentes, fornecem outra espécie de bons crentes. Mediante longas e minuciosas investigações alcançaram um conhecimento aprofundado dos textos sagrados, penetraram-lhes e sentiram-lhes o segredo misterioso e divino que regula o governo dos negócios eclesiásticos. Vemos entretanto alguns, da categoria intermediária, que chegaram com maravilhoso resultado e fé ao extremo limite da inteligência cristã e gozam sua vitória sobre a ignorância entre ações de graças. Reformam seus costumes e demonstram resignada modéstia. Não incluo porém entre estes os que, a fim de afastar de si a suspeita de terem abraçado o erro que hoje renegam e na esperança de dar provas de sua convicção, se revelam extremados e indiscretos na defesa de nossa causa, manchando-a com inúmeras violências. Os camponeses simples são gente honrada; e o são também os filósofos ou, como se diz hoje, os espíritos fortes e esclarecidos que possuem, sobre as ciências úteis, conhecimentos extensos. OSI que não são sábios nem tampouco ignorantes venceram a primeira etapa no estudo das letras, mas não puderam alcançar o grau superior que completa a nossa instrução. Assim, com o traseiro entre duas selas, são perigosos, absurdos e incômodos. São pessoas, como eu e tantas outras, que perturbam o mundo. No entanto, no que me diz respeito, procuro agarrar-me como posso àquilo que constitui naturalmente minha primeira crença e da qual, de uma feita, tentei em vão desprender-me. Da mesma forma, a poesia, quando eclode no seio do povo, revela uma pureza e uma graça que rivalizam com o que de mais belo oferece quando, por efeito da arte, atinge a perfeição. E o que podemos observar em nos reportando aos vilancetes de Gasconha e às canções que se conservaram de nações a que era estranha a ciência e não conheciam sequer a escrita. Entre esses dois gêneros temos a poesia medíocre, pouco apreciada e de nenhum valor. Observei que quando o espírito dá seus primeiros passos, consideramos - como ocorre comumente - difícil e raro o que muitas vezes não possui absolutamente esse caráter; e logo que nossa fantasia descobre o caminho da inspiração, encontra um número infinito de exemplos como aqueles a que aludo neste capítulo. Aos quais acrescentarei apenas o seguinte: se estes Ensaios fossem dignos de ser julgados, não agradariam muito aos espíritos comuns e vulgares, nem às inteligências superiores que constituem a exceção. Os primeiros não os achariam assaz compreensíveis, e os segundos os compreenderiam de sobra. Talvez os aceitassem as pessoas de mediana envergadura. CAPÍTULO LV DOS ODORES Conta-se de alguns homens, como de Alexandre, o Grande, que seu suor, em virtude de uma compleição especial, tinha um cheiro bom. Plutarco e outros autores procuram explicar o fenômeno. Mas em geral ocorre o contrário, e a melhor qualidade que podem ter é não cheirar. O hálito mais puro é tanto mais doce quanto sem cheiro nenhum, como no caso das crianças saudáveis. Eis por que Plauto diz: "o mais delicioso perfume de uma mulher está na ausência de qualquer odor". Quanto aos bons odores provenientes dos perfumes agregados ao corpo há que desconfiar de quem os usa, pois é de se temer que sirvam a disfarçar algum defeito natural dessa espécie, o que deu aliás origem a estes aforismos de poetas antigos: "é sinal de fedor o bom odor". Caçoas de nós, Coracino, porque não nos perfumamos, mas prefiro não ter cheiro nenhum a cheirar bem. Ou ainda: "Quem sempre cheira bem, póstumo, cheira mal". Entretanto gosto muito de um ambiente que exale bons odores e tenho horror aos maus que sinto de mais longe que qualquer outro: "Meu olfato distingue os maus cheiros mais sutilmente do que um excelente cão sente o lameiro do javali". E os perfumes mais simples e naturais são para mim os mais agradáveis. O uso de perfumes é principalmente reservado às mulheres. As mulheres da Cítia, região em que a barbárie imperava de maneira absoluta, cobriam o rosto e o corpo depois do banho com certa droga odorífera de sua terra. E quando se aproximavam dos homens, tiravam a crosta ficando com a pele mais lisa e cheirosa. É espantoso a que ponto um cheiro qualquer se impregna em mim facilmente. Quem se queixava de que a natureza não dotara o homem de instrumento capaz de levar os odores ao nariz, laborava um erro, porquanto os próprios odores sabem encontrar seu caminho. A mim, em particular, serve-me de veículo o espesso bigode. Se aproximo as luvas ou o lenço, o cheiro nele permanece o dia todo; daí estar ele sempre a denunciar por onde andei. Os beijos apaixonados da juventude, saborosos, gulosos e úmidos, nele deixavam outrora vestígios que se percebiam muitas horas mais tarde. Sou no entanto pouco propenso às epidemias provenientes de um ar contaminado e que se transmitem até pela simples conversação. Permaneci imune a todas as que em nossas cidades como em nossos exércitos se verificaram em meu tempo; e que foram de toda espécie. Lê-se, a propósito de Sócrates, que nunca deixou Atenas durante a peste que a dizimou mais de uma vez, e jamais se contagiou. Os médicos, creio, poderiam tirar melhor partido de que tiram dos odores, pois verifiquei amiúde que atuam sobre mim, segundo sua natureza, e impressionam meu espírito de diversas maneiras; o que me induz a considerar exato o que dizem a respeito do incenso e dos perfumes usados nas igrejas, a saber, que esse costume tão antigo, e tão encontradiço nas diferentes nações e religiões, tem por objetivo acordar, purificar e tornar eufóricos os nossos sentidos, a fim de melhor nos predispor à contemplação. Gostaria de ter tido a oportunidade de saborear a obra desses cozinheiros que sabem temperar o sabor das viandas mediante perfumes escolhidos, o que se pôde ver e foi muito notado quando dos jantares oferecidos pelo rei de Túnis em Nápoles, onde desembarcou para se entender com o Imperador Carlos Quinto. Recheavam-se essas viandas com plantas odoríferas e com tamanha abundância que um pavão e dois faisões assim guarnecidos vinham a custar cem ducados. Ao se trincharem, exalavam um aroma dos mais deliciosos, que se espalhava não somente pela sala, mas ainda por todos os aposentos do palácio e até nas ruas da vizinhança, persistindo durante algum tempo. Meu principal cuidado, quando tenho de me hospedar, é evitar os bairros onde o ar é pesado e empestado. Apesar de sua beleza, Veneza e Paris perdem muito de seu encanto a meus olhos, por causa do mau cheiro. Na primeira dessas cidades são causa disso os canais e as lagunas que a cercam; na outra a lama das ruas. CAPÍTULO LVI DAS ORAÇÕES À semelhança do que fazem nas escolas os que põem em discussão questões controvertidas, enuncio ideias fantasistas e mal definidas: não a fim de provar a verdade pois não tenho tal pretensão mas para a procurar. E essas ideias, eu as submeto ao juízo daqueles a quem cabe não somente orientar meus atos e meus escritos mas ainda meus próprios pensamentos. Que me aprovem ou me condenem, igualmente útil me será a sentença, e a aceito de antemão, reconhecendo desde já como absurdo e ímpio tudo o que, por ignorância ou inadvertência de minha parte, possa, nesta compilação, imiscuir-se de contrário às decisões e prescrições da Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, na qual nasci e na qual morrerei. Embora muito temerariamente me meta, como faço aqui, a tudo discutir, conformo-me inteiramente com sua censura, diante da qual me inclino de maneira integral. Não sei se me engano, mas visto que por favor especial da bondade divina uma oração nos foi prescrita e ditada palavra por palavra pela boca de Deus, sempre me pareceu que a ela devíamos recorrer mais do que o fazemos. Se minha opinião pesasse no assunto, nós a diríamos no início e no fim das refeições, ao deitar e ao levantar. Em todos os momentos em que é costume rezar, gostaríamos que fosse o padre-nosso a oração de todos os cristãos. Pode a Igreja aumentar o número de orações e modificá-las segundo nossas necessidades e os fins a que ela visa, e bem sei que o espírito e o fundo são sempre os mesmos, essa é a oração por excelência e ela diz incontestavelmente tudo o que há para se dizer, convém a todas as circunstâncias em que nos podemos encontrar e portanto justificaria o privilégio de a ter sempre nos lábios o povo. E a única oração de que me valho, sempre e sempre a repito em vez de variar, porquanto nenhuma tanto se gravou em minha memória. Estava a pensar de onde nos vem o erro de recorrer a Deus a propósito de todos os nossos projetos, de todos os nossos empreendimentos; de para ele apelar em todas as ocasiões, qualquer que seja a nossa preocupação, cada vez que nossa fraqueza precisa de auxílio, sem mesmo ponderarmos se temos ou não razão, invocando assim o seu nome e o seu poder em qualquer situação, sejam ou não repreensíveis os nossos atos. Ele é por certo o nosso único protetor e tudo pode quando nos ajuda. Mas, ainda que nos honrando com seu apoio paternal e benevolente, não deixa de ser justo na medida em que é bom e poderoso. E como costuma empregar mais comumente a justiça do que o poder, é-nos favorável enquanto ela o permite e não segundo o que pedimos. Em suas "Leis", Platão admite três casos em que nossas crenças se revelam injuriosas aos deuses: quando lhes negamos a existência; quando negamos sua intervenção em nossas vidas; e quando afirmamos que não rechaçam jamais nossas súplicas, nossas oferendas e nossos sacrifícios. A primeira dessas crenças, a seu ver, não é imutável no homem, o qual pode mudar de ideia no decurso de sua existência; as outras duas podem ser mantidas indefinidamente. A justiça e o poder de Deus estão inseparavelmente ligados; em vão apelaremos para Ele se nossa causa é má. E preciso, quando lhe suplicamos, que esteja nossa alma em estado de pureza e que pelo menos nesse momento não estejamos animados de maus sentimentos, sem o que lhe damos nós mesmos o látego para que nos castigue. Em vez de nos redimirmos, agravamos os nossos pecados em nos apresentando, a quem deveríamos pedir perdão, com o coração cheio de ódio e irreverência. Eis por que não admiro em absoluto aqueles que vejo orar a Deus amiudada e regularmente, sem que os atos que acompanham suas preces testemunhem arrependimento ou intenção de se corrigirem: "Para te entregares, à noite, ao adultério, cobres a cabeça com um embuço gaulês". A conduta de um homem que associa à devoção uma vida execrável parece-me até certo ponto mais condenável que a de quem, coerente consigo mesmo, se mostra dissoluto sob todos os aspectos. No entanto, vemos a Igreja recusar diariamente licença, para que penetrem em sua sociedade, às pessoas que se obstinam em palmilhar caminhos particularmente irrepreensíveis. Rezamos por hábito e costume. Ou antes: lendo e murmurando preces fingimos rezar. É-me penoso ver persignarem-se ao "Benedicite” pessoas que durante as demais horas do dia praticam o ódio, a avareza, a injustiça. Isso me desagrada tanto mais quanto tenho esse sinal em grande veneração e o emprego continuadamente, até mesmo quando me pego bocejando. Os vícios têm sua hora, Deus a dele; como por compensação ou composição. É espantoso ver sucederem-se ações tão diversas, tão bem ligadas umas às outras que não se lhes percebem interrupções e mudanças, quando da passagem de uma a outra, nem se vê quando uma termina e outra começa. Que prodigiosa consciência, essa cuja calma não se desmente conquanto abrigue o criminoso e o juiz numa tranquila vida em comum. Um homem que tem sempre na cabeça ideias libidinosas e consciência da reprovação divina que elas lhe acarretam, que pode dizer a Deus quando com Ele se entretém? Que se arrepende? Mas se logo em seguida volta ao vício? Se estivesse compenetrado de sua justiça e de sua presença, como o diz, e se sua alma as sentisse, por curto que fosse o momento de penitência, o simples temor o haveria de preocupar tão seguidamente que acabaria por triunfar de seus vícios habituais, por mais arraigados que se achassem. E que dizer dessa gente que passa a vida inteira a gozar e beneficiar-se do que sabe constituir pecado mortal? E, no entanto, quantas profissões e quantos divertimentos admitidos e que vivem do vício, não temos nós? Confessando-se a mim, disse-me certo indivíduo que passara a vida a praticar uma religião que acreditava lhe comprometesse a salvação eterna e contrária à que tinha no coração, a fim tão somente de não perder prestígio e honrarias. Quanto não lhe devia custar semelhante atitude? Como esses indivíduos justificarão sua conduta ante a justiça divina? Seu arrependimento os obrigaria a uma reparação efetiva e manifesta; em não a satisfazendo, não a podem alegar perante Deus nem perante os homens. E que ousadia, essa deles, de pedir perdão sem repararem nem se arrependerem? A meu ver, os primeiros, os que misturam a devoção à má conduta, são iguais aos outros, os que vivem na devassidão; mas é menos fácil ainda reconduzi-los ao bom caminho. As variações incessantes e súbitas de opinião, que vão de um extremo ao outro, são para mim incompreensíveis: elas revelam um espírito tomado de insopitável angústia. Como me parece absurda a imaginação daqueles que, nestes últimos anos, tinham por hábito tachar de hipócrita quem quer que tivesse a inteligência um pouco mais lúcida e praticasse a religião católica, indo até a afirmar que no íntimo estava de acordo com a Reforma. Triste enfermidade essa desses indivíduos, de se acreditarem tão fortes a ponto de se persuadirem de que os outros não podem crer o contrário do que eles próprios creem. Pior ainda, pois essa gente prefere os benefícios imediatos auferidos de uma religião, em que no fundo não acreditam, às esperanças da vida eterna. Podem crer-me: se algo devesse tentar-me na mocidade, o risco e os obstáculos inerentes à Reforma teriam influído por certo na decisão. Não é sem razão séria, parece-me, que a Igreja proíbe que quem quer seja, sem distinção de pessoa, idade e sexo, se arrogue o direito temerário e indiscreto de comentar e salmodiar esses divinos cantos que o Santo Espírito inspirou a Davi. Não se deve imiscuir Deus em nossas ações, senão com reverência e atencioso respeito. Esses cantos, pela sua origem divina, têm outra finalidade que não a de desenvolver nossos pulmões e encantar nossos ouvidos. É da consciência e não da boca que devem emanar. Não é admissível que permitam a um caixeiro qualquer falar disso e com isso se divertir enquanto enche, concomitantemente, a cabeça com ideias fúteis e tolas. Não é, tampouco, razoável ver o Livro Santo, em que se descrevem os sagrados mistérios de nossa fé, serem lidos e comentados na copa e na cozinha. Tais textos eram outrora mistérios; hoje não passam de pretexto para debates e divertimentos. Não é de passagem e em tumultuosas assembleias que cumpre atentar para assunto tão sério e tão digno de veneração. Deve ser um ato meditado e sereno, e que sempre deverá ser precedido de um Sursum corda. Essa introdução ao ofício divino. E que nossa atitude seja de particular atenção, evidenciando nosso respeito. Tal estudo não é da alçada de qualquer um; a ele só se entregarão os que a ele se dedicam e que por Deus foram escolhidos; maus, os ignorantes tornam-se piores do que antes. Não é história a ser contada e sim a ser venerada, temida, adorada. Ingênua gente, em verdade, essa que a imagina ter colocado ao alcance do povo, somente porque a traduziu em linguagem popular! Será unicamente questão de palavras e bastará mudá-las para que a entenda o vulgo? Direi mais: em assim fazendo, afastam-no de Deus em vez de o aproximar. A ignorância total e que confia em outrem é mais salutar e avisada do que essa ciência verbosa e vã, alimentada de presunção e ousadia. Creio também que a liberdade dada a todos de propagar, traduzida em tantos idiomas diversos, a palavra sagrada, de tão considerável importância, é muito mais perigosa do que útil. Os judeus, os muçulmanos, e quase todos os povos de outras religiões, conservam, com veneração e devoção; seus mistérios sagrados na língua original em que lhes foram comunicados. E não é sem razões de sobra que se proíbe a introdução neles de quaisquer modificações. Haverá, por exemplo, entre os bascos e os bretões gente bastante categorizada para dar autoridade a uma tradução desses textos em sua língua? Nada na Igreja Universal é mais árduo e de maior alcance. Faladas ou pregadas, as interpretações permanecem vagas, não se impõem, podem ser modificadas e somente dizem respeito a pontos parciais. O mesmo não acontece com as traduções. Um historiador grego, que era cristão, critica com razão o seu século porque então se divulgaram os segredos de nossa religião e se permitiu ao mais insignificante artesão que os comentasse à vontade. Nós que, por graça de Deus, temos o privilégio de conhecer os mais puros mistérios confiados à nossa devoção, deveríamos envergonhar-nos de os ver profanados na boca das pessoas ignorantes do povo, quando os gentios proibiam a Sócrates, a Platão - e aos demais sábios - se interessarem pelas coisas entregues à discrição dos sacerdotes de Delfos. Esse mesmo historiador diz também que a intervenção dos príncipes em matéria de teologia não é ditada pelo zelo mas pela cólera. O zelo procede da razão divina e da justiça e sua ação é equilibrada e moderada; transformando-se, sob a influência da paixão, em ódio e inveja, em vez de trigo e uva produz joio e urtigas. Outro historiador conduziu-se de maneira igualmente certa quando, dando um conselho a Teodoro, lhe disse que as discussões não só não evitam os cismas da Igreja mas ainda os suscitam, engendrando as heresias; que, conseguintemente, era preciso evitar qualquer debate, toda argumentação metódica e ater-se unicamente às prescrições e às fórmulas da lei, tais como as estabeleceram os antigos. O Imperador Andronico, encontrando em seu palácio dois grandes personagens discutindo com Lapódio acerca dos pontos mais importantes de nossa religião, admoestou-os vivamente, chegando a ameaçá-los de os jogar no rio se continuassem. Em nossos dias, as mulheres e as crianças querem saber mais de leis eclesiásticas que os velhos mais experimentados. Entretanto, a primeira das prescrições de Platão os proibia de se ocuparem sequer das razões das leis civis, que substituem as divinas. E, ao permitir aos velhos que falassem a respeito com os magistrados, acrescentava: "mas sempre longe dos jovens e dos profanos". Escreveu certo bispo que no outro lado do mundo há uma ilha, por nome Dioscórida, notável pela sua fertilidade em árvores de toda espécie, suas frutas e clima. O povo é cristão; tem igrejas e altares de que a cruz, com exclusão de qualquer outra imagem, constitui o único ornamento. Observa com regularidade os jejuns e as festas, paga o dízimo ao clero, e tal é a sua pureza de costumes que ninguém tem mais de uma mulher em sua vida. Ademais, satisfeito com sua sorte a ponto de não conhecer o uso dos navios, embora isolado no meio do mar, é tão simples que, apesar de estrito observador da religião, dela não sabe uma só palavra; o que há de parecer incrível a quem ignorar que os pagãos, tão devotos em sua idolatria, só conhecem de seus deuses o nome e a estátua. "Menalipe", uma das antigas tragédias de Eurípides, assim começava: "Ó Júpiter, de quem conheço apenas o nome!" Tenho visto também, ultimamente, queixarem-se de que certas obras tratam de assuntos exclusivamente literários ou filosóficos sem intromissão de teologia. Isso pode entretanto defender-se; pois é preferível que a doutrina divina, como soberana que tudo domina, tenha seu lugar à parte. Convém que onde entre constitua o assunto principal, e não se relegue para o segundo plano, como que em apoio simplesmente da tese que se desenvolve. Se nos ocorre ter necessidade de exemplos, podemos antes colhê-los na gramática, na retórica, na lógica, ou nas peças representadas nos teatros, nos jogos, nos espetáculos públicos, do que nos textos sagrados. Há mais respeito e veneração em tratar separadamente, em estilo adequado, os assuntos referentes à religião do que incidentemente em obras profanas. Escrever sobre as coisas sagradas no estilo de todo mundo, como fazem certos teólogos, é erro mais comum do que o dos homens de letras que abusam da teologia. A filosofia, diz São Crisóstomo, foi de há muito banida da teologia, como acessório inútil. Consideram-na indigna até de lançar, de passagem, um olhar no santuário em que se guardam os dogmas sagrados da doutrina celeste. A linguagem comum a todo mundo tem formas menos escolhidas, o que faz que não possa ser empregada na expressão de uma maneira assaz digna da majestade real da palavra sagrada. No que me diz respeito, consinto em que se qualifiquem como verbis indisciplínatis os termos fortuna, destino, felicidade, desgraça, deuses e outros que costumo empregar. É verdade que os assuntos fantasistas de que trato, eu os considero isoladamente e os encaro unicamente do ponto de vista deste mundo, a meu modo, e não como fixados e já regulados pela lei divina, caso em que nem dúvidas nem discussões me foram permitidas. É minha maneira de ver que exprimo e não um artigo de fé que contesto; raciocino de acordo com o que me vem ao espírito e não acerca do que participa de minha crença religiosa; falo como um leigo e não como um clérigo, sem que jamais, entretanto, venha a ferir a religião. Assim como as crianças que executam lições úteis à sua instrução e não à dos que as instruem. Talvez observem, e com razão, que seria útil e perfeitamente justificável proibir, a quem não o tenha por profissão, que escreva acerca da religião, embora discretamente. E talvez digam que, pessoalmente, faria melhor calando. Disseram-me que os que se separaram da Igreja proíbem, eles também, que se invoque em vão o nome de Deus nos fatos da vida comum. Que não querem tampouco que o usem como interjeição ou exclamação; que se lhe invoque o testemunho ou que o tomem por termo de comparação. Acho que nisso têm razão e cada vez que invocamos a Deus em nossos propósitos e negócios devemos fazê-lo seriamente, e por devoção. Há, parece-me, em Xenofonte, um trecho em que se expõe como deveríamos apelar menos para Deus, tanto mais quanto não é fácil fazer com que nossa alma se encontre tantas vezes nesse estado de calma, pureza e devoção que se exige em tais casos e sem o que nossas preces não somente são inúteis mas ainda viciadas: "Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam", dizemos. Que significará isso senão que oferecemos a Deus uma alma isenta de rancor e de desejo de vingança? E, no entanto, quantas vezes não invocamos a Deus e não lhe pedimos que nos ajude, associando-o a nossos erros e convidando-o a praticar injustiças? "Pedindo coisas que não podeis confiar aos deuses senão em segredo". O avarento reza para a conservação ilusória e supérflua de seus tesouros; o ambicioso para que a vitória e a sorte lhe sejam fiéis; o ladrão para vencer os riscos que lhe perturbam as más intenções ou para agradecer a facilidade com que pôde degolar um transeunte. Rezam ao pé da casa que vão assaltar, com o espírito prenhe de crueldade, de luxúria e cobiça: Dize a Staius o que desejarias obter de Júpiter, e Staius exclamará: ó Júpiter, ó bom Júpiter! Pode-se pedir-vos tais coisas? - Quanto a Júpiter, não te responderá ele do mesmo modo? Margarida, rainha de Navarra, conta de um jovem príncipe, que ela não nomeia mas cujos feitos tornaram famoso, que para se encontrar amorosamente com a mulher de um advogado de Paris tinha que atravessar uma igreja pela qual não passava nunca, nem na ida nem na volta, sem parar para uma oração. Deixo-vos imaginar o que podia pedir a Deus, com o espírito tomado pela sua aventura. Cita entretanto a rainha esse fato como testemunho de grande devoção. Eis uma prova (e não é a única) de que às mulheres não cabe tratar de coisas da religião. Uma verdadeira oração e uma reconciliação com Deus não podem provir de uma alma impura, e portanto sob o domínio do demônio. Quem apela para a ajuda de Deus em palmilhando o caminho do vício, faz como o bandido que apelasse para a justiça ou como quem invocasse o nome de Deus para cometer falso testemunho. "Murmuramos em voz baixa criminosas orações". Poucos homens ousariam repetir publicamente as súplicas que em segredo endereçam a Deus: Não seria fácil expulsar do templo as preces feitas em voz baixa; pouco numerosos são os capazes de exprimir seus anseios em voz alta. Por essa razão queriam os pitagóricos que as preces fossem públicas, ouvidas de todos, a fim de que não se solicitassem coisas indecentes e injustas como fazia aquele que dizia distintamente em voz alta: Apolo e acrescentava mexendo apenas com os lábios de medo de ser ouvido: bela Laverna, dá-me os meios de enganar e passar por homem de bem; cobre meus erros com o véu da noite e meus furtos com uma nuvem". Os deuses puniram severamente os iníquos desejos de Édipo, fazendo com que se realizassem. Pedira em suas preces que a sorte das armas decidisse qual de seus filhos deveria suceder-lhe no trono de Tebas, e foi suficientemente infeliz para se ver atendido. Não devemos pedir que as coisas aconteçam de acordo com o que queremos, e sim de conformidade com o que manda a prudência. Parece, efetivamente, que usamos as orações e preces como uma espécie de linguagem cabalística, como fazem os que abusam da sagrada palavra de Deus nas suas feitiçarias e mágicas, como se acreditássemos dependerem seus efeitos do contexto, da inflexão da voz ou de nossa atitude. Mergulhada a alma na concupiscência, sem arrependimento nem desejo de reconciliação com Deus, aproximamo-nos d'Ele repetindo palavras que nossa memória dita à nossa língua e vemos nisso expiação suficiente para nossos erros. Nada é mais suave, fácil, acessível do que a lei divina. Atrai-nos, por mais inclinados que nos mostremos a cometer pecados, por mais detestáveis que sejamos. Ela nos estende os braços e nos recebe em seu seio, por mais vis e impuros que nos revelemos e possamos nos tornar, mas ainda assim cumpre sermos gratos ao perdão recebido e, pelo menos na hora em que dela necessitamos, estarmos realmente arrependidos, aborrecermos de fato as paixões que nos impeliram a ofender a Deus. Nem os deuses, nem os homens de bem aceitam o presente do tratante: A mão inocente que toca o altar aplaca mais seguramente a cólera dos deuses com um simples bolo de farinha e alguns grãos de sal do que imolando vítimas suntuárias. CAPÍTULO LVII DA IDADE Não posso aprovar a maneira por que entendemos a duração da vida. Vejo que os filósofos lhe assinam um limite bem menor do que o fazemos comumente. "Como podem alegar que renuncio prematuramente à vida?", disse Catão, o Jovem, aos que procuravam evitar que se suicidasse. Tinha apenas quarenta e oito anos e considerava essa idade já avançada, dado o reduzido número de homens que a atingem. Os que falam de certa duração normal da vida, estabelecem-na pouco além. Tais ideias seriam admissíveis se existisse algum privilégio capaz de os colocar fora do alcance dos acidentes, tão numerosos, a que estamos todos expostos e que podem interromper essa duração com que nos acenam. E é pura fantasia imaginar que podemos morrer de esgotamento em virtude de uma extrema velhice, e assim fixar a duração da vida, pois esse gênero de morte é o mais raro de todos. E a isso chamamos morte natural como se fosse contrário à natureza um homem quebrar a cabeça numa queda, afogar-se em algum naufrágio, morrer de peste ou de pleurisia; como se na vida comum não esbarrássemos a todo instante com esses acidentes. Não nos iludamos com belas palavras; não denominemos natural o que é apenas exceção e guardemos o qualificativo para o comum, o geral, o universal. Morrer de velhice é coisa que se vê raramente, singular e extraordinária e portanto menos natural do que qualquer outra. É a morte que nos espera ao fim da existência, e quanto mais longe de nós menos direito temos de a esperar. Constitui efetivamente o limite além do qual não iremos, que a natureza nos fixou como não devendo ser ultrapassado; mas é um privilégio viver até esse limite, privilégio que só é concedido em dois a três séculos a um de nós, preservando-o das aflições e dos percalços tão abundantemente espalhados em tão longo percurso. Por isso, minha opinião é que se considere a idade a que cheguei como ao alcance de poucos. Desde que em condições normais o homem não vive tanto, já estamos além do fim fixado. E, ultrapassados esses limites habituais que dão a medida exata da vida, não devemos esperar ir adiante. Pelo próprio fato de termos escapado de morrer em tantas ocasiões fatais a tanta gente, devemos reconhecer que uma sorte tão extraordinária, que nos mantém vivos a despeito da regra comum, não se há de prolongar demasiado. É um erro da lei imaginar que um homem não é capaz de gerir seus bens antes dos vinte e cinco anos e que só então pode orientar sua vida como bem entende. Augusto reduziu para trinta anos, diminuindo assim de cinco, a idade em que o acesso à magistratura era permitido pelas ordenações romanas. Sérvio Túlio dispensara do serviço militar os cavaleiros que tinham ultrapassado quarenta e sete anos; Augusto liberou-os aos quarenta e cinco. Aposentar os homens antes de cinquenta e cinco ou sessenta anos não me parece muito acertado. A meu ver deveriam manter-nos em nossos cargos e empregos tanto tempo quanto possível, enquanto com isso não se comprometesse o interesse geral; mas acho, por outro lado, um erro não nos aproveitarem mais cedo. E Augusto que, com dezenove anos, presidia ao destino do mundo, considerava necessário que tivesse trinta anos o encarregado de consertar uma goteira. Sou de opinião que aos vinte anos nosso espírito já se desenvolveu completamente, já é o que será e mostra o de que é capaz. O espírito que até essa idade não deu demonstração evidente de sua fortaleza, nunca o dará mais tarde. As qualidades e virtudes de nossa natureza já revelaram, então, o que têm de vigoroso e belo - ou nunca o revelarão: "Se o espinho não pica ao nascer, bem pouco ou nada picará", dizem no Delfinado. Penso que, em sua maioria, as mais belas ações que conheço, deste século ou dos séculos passados, foram praticadas antes dos trinta anos e não depois; e isso às vezes pelo mesmo indivíduo, Não o podemos assegurar; por exemplo, quanto às de Aníbal e Cipião, seu grande inimigo? Viveram ambos a mais bela metade da vida da glória que granjearam na juventude. Posteriormente, se os comparamos aos outros, ainda são grandes homens; não, porém, se os comparamos a eles mesmos. Quanto a mim, creio ser evidente que meu espírito e meu físico antes diminuíram, depois dessa idade, do que aumentaram em forças e lucidez; antes retrocederam do que progrediram. É possível que o saber e a experiência cresçam com os anos em quem emprega bem seu tempo; mas a vivacidade, a rapidez, a firmeza de ânimo e as demais partes físicas ou morais, integrantes de nós mesmos, as mais importantes e essenciais se desgastam e se atrofiam: "quando o corpo se abate ao peso dos anos, e as molas da máquina estão usadas, oblitera-se a inteligência, obscurece-se o espírito, delira a língua". Ora é o corpo que primeiro cede diante da velhice, ora a alma. Muitos vi cuja mente fraquejou antes do estômago e das pernas, mal tanto mais perigoso quanto não o percebe a vítima. É o que me leva a considerar desajustadas as nossas leis, não porque nos deixam trabalhar até uma idade demasiado avançada, mas por não o permitirem suficientemente cedo. Parece-me que, dado o enfraquecimento que nos pode atingir e os numerosos escolhos com que deparamos naturalmente no decurso de uma vida comum, não se deveria dar tanta importância ao ano de nosso nascimento, nem nos deixar tanto tempo entregues à ociosidade ou presos ao aprendizado. Livro 2 CAPÍTULO I DA INCOERÊNCIA DE NOSSAS AÇÕES Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de Vênus. Dizem que o Papa Bonifácio VIII assumiu o papado como uma raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cão. E quem diria que Nero, essa verdadeira imagem da crueldade, como lhe apresentassem para ser assinada, de acordo com a lei, a sentença contra um criminoso, observou: - Prouvera a Deus que eu não soubesse escrever! - tanto lhe apertava o coração condenar um homem à morte. Há tantos exemplos semelhantes, e tão facilmente os encontrará sozinho quem quiser, que estranho ver por vezes gente de bom senso procurando juntar tais contradições, mesmo porque a irresolução me parece ser o vício mais comum e evidente de nossa natureza, como o atesta este verso de Públio, o satírico: "Má opinião, a de que não se pode mais mudar". É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma ideia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de dissimulá-las quando não as deformam para que entrem dentro do molde preconcebido. O Imperador Augusto escapou-lhes: deparamos nesse homem com tal flagrante diversidade de ações, tão inesperada e contínua no decurso de sua existência, que os mais ousados juízes, renunciando a julgá-lo em seu conjunto, tiveram de deixa-lo assim indefinido. Acredito que a constância seja a qualidade mais difícil de encontrar no homem, e a mais fácil a inconstância. Quem os julgasse pormenorizadamente de acordo com seus atos, um por um, estaria mais apto a dizer a verdade a seu respeito. Fora difícil encontrar em toda a antiguidade uma dúzia de homens que tenham orientado sua vida em obediência a determinados princípios, o que é o fim principal da sabedoria. A qual, segundo um autor antigo, se resume em uma frase que enfeixa, em uma só, todas as regras da vida: "querer e não querer são sempre a mesma e única coisa". E poderia acrescentar: à condição de que o que queremos ou não queremos seja justo, pois, se não o é, impossível se faz que permaneça constantemente a mesma coisa. Efetivamente, sei de há muito que o vício nada mais é senão desregramento e falta de medida e por conseguinte não o podemos imaginar constante. Atribui-se a Demóstenes a seguinte máxima: a virtude, qualquer que seja, consiste de início em recolhimento e deliberação; a constância, a seguir, comprova-lhe a perfeição. Em refletindo seguimos sempre o melhor caminho, mas ninguém pensa antes de agir. "Desdenha o que pediu, volta ao que largou e, sempre hesitante, contradiz-se sem cessar". Nossa maneira habitual de fazer está em seguir os nossos impulsos instintivos para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, segundo as circunstâncias. Só pensamos no que queremos no próprio instante em que o queremos, e mudamos de vontade como muda de cor o camaleão. O que nos propomos em dado momento, mudamos em seguida e voltamos atrás, e tudo não passa de oscilação e inconstância. "Somos conduzidos como títeres que um fio manobra". Não vamos, somos levados como os objetos que flutuam, ora devagar ora com violência segundo o vento: "Acaso não vemos todo mundo indeciso; uns procurando sem descontinuar, outros mudando de lugar, como para largar uma carga pesada demais?" Cada dia nova fantasia, e movem-se as nossas paixões de acordo com o tempo: "o pensamento dos homens assemelha-se na terra aos cambiantes raios de luz com que Júpiter a fecunda". Hesitamos em tomar partido; nada decidimos livremente, de maneira absoluta, coerente. Se alguém traçasse e estabelecesse determinadas leis de conduta e regime político de vida, veríamos brilhar em seus atos e atitudes uma harmonia cabal e em seus costumes uma ordem e uma correlação evidentes. Empédocles observa a seguinte contradição entre os agrigentinos: alguns se entregam aos prazeres como se devessem morrer no dia seguinte e outros edificam como se a vida não tivesse de acabar jamais. O plano de vida fora entretanto fácil de se estabelecer, como se vê em Catão, o Jovem: quem nele toca uma tecla, toca todas, pois há nele uma harmonia de sons bem afinados que nunca se entrechocam. Não seguimos, nós outros, tão sábio exemplo e cada uma de nossas ações decorre de um juízo específico. E em minha opinião seria até melhor procurar-lhes as causas nas circunstâncias do momento sem mais aprofundada pesquisa e sem tirar delas quaisquer consequências. Durante as desordens que agitaram nosso pobre país, disseram-me que uma jovem, bem perto do local onde eu me encontrava, se jogara pela janela a fim de escapar à brutalidade de um soldado que hospedava. Não teve morte instantânea e para se acabar tentou cortar o pescoço com uma faca, o que não a deixaram fazer. Nesse triste estado, confessou que o soldado nada mais fizera do que lhe declarar seu amor, solicitá-la e presenteá-la, mas ela temera que chegasse a violentá-la. Daí seus gritos, sua atitude, o sangue derramado, como se se tratasse de uma nova Lucrecia. Entretanto, eu soube que antes e depois dessa ocorrência sempre se mostrou muito menos arisca. Como dizem por aí, "por mais belo e decente que sejas, se não és aceito pela tua amada, não concluas, sem mais amplas informações, ser ela de uma castidade a toda prova; isso não impede que o arrieiro tenha a sua possibilidade". Antígono, que se afeiçoara a um de seus soldados por causa de sua valentia e coragem, mandou que o médico tratasse de uma doença que o atormentava havia muito. Observando, após a cura, que o homem se expunha muito menos nos combates, perguntou qual a razão dessa mudança que o tornara poltrão: Vós mesmo, Sire, porquanto me libertastes dos males que faziam com que eu não apreciasse a vida. Um soldado de Luculo fora roubado pelo inimigo. Para se vingar executou contra ele um golpe de mão notável, amplamente compensador de seus prejuízos. Luculo, que ficara com excelente opinião dele, quis empregá-lo em uma arriscada expedição e, a fim de decidi-lo, usava todos os meios de persuasão, "com palavras capazes de entusiasmar os mais tímidos". Mas o soldado atalhou: "Mandai algum soldado miserável que tenha sido roubado". E recusou peremptoriamente. Como diz Horácio: "Irá quem tiver perdido a bolsa". Maomé II admoestara violentamente Chasan, chefe de seus janízaros cuja tropa fora desfeita pelos húngaros, sendo que se conduzira ele próprio covardemente durante o combate. Como única resposta, Chasan, sozinho, sem precisar de ninguém, precipitou-se furioso, espada na mão, contra o primeiro pelotão inimigo que percebeu e desapareceu em poucos instantes como se fora por ele tragado. Nesse ato, parece que foi movido menos pelo desejo de se reabilitar do que em virtude de uma reviravolta em seus sentimentos: não agia sob o impulso da coragem moral e sim por despeito. Quem ontem vistes tão temerário, não vos espanteis em vê-lo poltrão no dia seguinte. A cólera, a necessidade, a companhia ou o vinho, ou o som de uma trombeta, terão feito de suas tripas coração. Não foi o raciocínio que lhe deu coragem: foram as circunstâncias. Não nos espantemos, pois, de ver que mudou ao mudarem elas. Essa variação e essa contradição, tão comuns em nós, levaram muitas pessoas a pensar que possuímos duas almas, ou duas forças que atuam cada qual num sentido, uma no sentido do bem e outra no do mal. Uma só alma e uma só força não poderiam conciliar-se com tão repentinas variações de sentimentos. Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal e avarento, e pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra. "Distinguo" é o termo mais encontradiço em meu raciocínio. Embora acredite sempre que é preciso falar bem do que é justo e interpretar com simpatia o que a tal juízo se presta, nossa condição é tão singular que não raro o próprio vício nos impele a bem fazer (se o bem não se julgasse unicamente pela intenção que o determina). Daí não se dever tirar de um ato corajoso a conclusão de que um valente o praticou. Valente será efetivamente quem o for sempre em todas as ocasiões. Se fosse um hábito e não um gesto imprevisto, a virtude faria que um homem mostrasse sempre igual resolução; seria o mesmo, só ou acompanhado, na justa como em campo raso; pois, diga-se o que se disser, a coragem não é uma na rua e outra no campo de batalha. Suportaria esse homem com igual atitude uma enfermidade em seu leito e um ferimento na guerra e não temeria mais a morte em seu lar do que em um assalto. Não o veríamos lançar-se através de uma brecha com insopitável bravura e em seguida chorar como uma mulher a perda de um processo ou de um filho; ser covarde diante da infâmia e resoluto na miséria, ter medo da navalha do barbeiro e desafiar a espada do adversário. Em tais casos, a ação é louvável, não o homem. Há gregos, diz Cícero, que tremem à vista do inimigo e se mostram tenazes quando enfermos, e tem-se o inverso nos cimbros e nos celtiberos: "Nada pode ser estável se não parte de um princípio sólido". Não há maior valentia, no gênero, do que a de Alexandre, o Grande, e no entanto não se verifica em tudo. Por incomparável que seja, tem suas falhas, o que o faz perturbar-se à mais insignificante suspeita de conjuras e o leva a incrível e absurda crueldade na repressão e a temores em nada compatíveis com sua apreciação habitual das coisas. A superstição que lhe era peculiar participa também da pusilanimidade, e a exagerada penitência que se impõe a si mesmo após o assassínio de Clito prova igualmente a desigualdade de sua coragem. Somos um amontoado de peças juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tornamos a sua máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela, forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que só se tira com a própria pele. Eis por que para julgar um homem é preciso seguir suas pegadas, penetrar sua vida, e se não deparamos com a constância alicerçando os seus atos, "com um plano de vida bem ponderado e previsto", se sua marcha, ou antes, seu caminho (pois é lícito acelerar ou diminuir o passo) se modifica segundo as circunstâncias, abandonemo-lo. Como a ventoinha gira de acordo com o vento, assim reza a divisa de nosso Talbot. Não é de espantar, diz um autor antigo, que o acaso tenha tanta força sobre nós, pois por causa dele é que existimos. Quem não orientou sua vida, de um modo geral, em determinado sentido, não pode tampouco dirigir suas ações. Não tendo tido nunca uma linha de conduta, não lhe será possível coordenar e ligar uns aos outros os atos de sua existência. De que serve fazer provisão de tintas se não se sabe que pintar? Ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida; só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando. O archeiro precisa antes escolher o alvo; só então prepara o arco e a flecha e executa os movimentos necessários; nossas resoluções se perdem porque não ternos um objetivo predeterminado. O vento nunca é favorável a quem não tem um porto de chegada previsto. Não estou de acordo com o juízo que se fez, ao assistir a uma tragédia de Sófocles, declarando-o, contra a opinião de seu filho, capaz de administrar seus bens. Não acho tampouco muito mais lógico o que fizeram os párias enviados com a missão de reformar o governo dos milésios. Depois de visitar a ilha, observando o cultivo cuidadoso da terra, a boa ordem das propriedades, e registrando os nomes dos proprietários, reuniram em assembleia os cidadãos e entregaram o governo a esses proprietários, considerando que a atenção e a eficiência demonstradas na administração de seus negócios particulares eram uma garantia de que de igual modo iam gerir os negócios do Estado. Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: "Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem". Se a ambição pode impelir o homem a ser valente, sóbrio, liberal e mesmo justo; se a avareza pode dar coragem a um caixeiro criado no ócio e na indolência e infundir-lhe bastante confiança para que se lance à aventura em frágil navio, à mercê de Netuno, e lhe ensina a discrição e a prudência; se a própria Vênus arma de resolução e audácia o jovem ainda sob a autoridade paterna, e faz com que se mostre impudica a virgem de coração temo ainda sob a égide de sua mãe: "Passando furtivamente entre os guardas que dormem, protegida por Vênus, vai a jovem sozinha, dentro da noite, juntar-se a seu amante”. Se assim é, não deve um espírito refletido julgar-nos pelos nossos atos exteriores; cumpre-lhe sondar as nossas consciências e ver os móveis a que obedecemos. É uma tarefa elevada e difícil e desejaria por isso mesmo que menor número de pessoas se dedicasse a ela. CAPÍTULO II DA EMBRIAGUEZ O mundo não é senão variedade e dessemelhança. Os vícios têm entretanto em comum o fato de serem vícios. Contudo, acrescentam os estoicos, embora igualmente vícios não são os vícios iguais entre si. Assim, quem ultrapassou de cem passos esse limite "além e aquém do qual o direito não mais existe", é sem dúvida mais culpado do que aquele que apenas deu dez passos. Nem se dirá que o sacrilégio não é pior do que o roubo de um repolho de nossa horta: "Nunca se poderá provar que seja igualmente condenável surripiar repolhos da horta alheia e roubar, à noite, no templo dos deuses". Há tanta diversidade no vício quanto em qualquer outra coisa. Não levar em consideração a escala de gravidade dos pecados, confundindo-os, é por certo perigoso, pois disso tirarão vantagem os assassinos, os traidores e os tiranos. Não é justo que sua consciência se alivie com a ideia de que Fulano é preguiçoso, lascivo ou pouco assíduo à missa. Todos têm tendência para agravar o pecado de outrem e atenuar o próprio. E não raro até as próprias pessoas encarregadas de esclarecê-los os classificam mal, a meu ver. Assim como para Sócrates o principal papel da sabedoria consiste em ensinar a distinguir o bem do mal, para nós, em quem o melhor ainda é vício, esse papel deveria consistir em estabelecer as diferenças existentes entre os diversos vícios, pois em não havendo exatidão confundem-se virtuosos e maus. Entre outros vícios, o da embriaguez parece-me grosseiro e brutal. O espírito entra por alguma coisa nos demais vícios, alguns há que têm mesmo algo generoso; outros estão ligados à habilidade, à esperteza, à coragem, à prudência, à finura: a embriaguez é bestial e avilta tão somente. Por isso mesmo é na nação menos civilizada que em nossos dias é esse vício mais comum. Os outros vícios alteram o nosso bom senso; esse o aniquila, perturbando-nos igualmente o físico: "Quando o vinho nos penetra, os membros tornam-se pesados, as pernas vacilam, a língua engrola, embota-se o espírito, os olhos amortecem; em seguida vêm os berros, os soluços, os insultos". A pior das condições humanas é aquela em que o homem não tem mais consciência de si, não mais se domina. E dizem que assim como o mosto a ferver faz subir à superfície do tonel tudo o que estava no fundo, o vinho faz transbordar os mais íntimos segredos de quem o bebeu exageradamente: Ó Baco, é teu alegre vinho que arranca aos sábios seus mais secretos pensamentos. Conta Josefo que, em o fazendo beber além da medida, induziu certo embaixador enviado por seus inimigos a confiar-lhe tudo o que tinha interesse em saber. Entretanto Augusto, que se abrira com Lúcio Piso, o conquistador da Trácia, nunca teve a oportunidade de se arrepender; nem Tibério foi jamais traído por Cássio a quem tudo contava; e sabemos de fonte segura que Piso e Cássio gostavam tanto de beber que mais de uma vez foi preciso retira-los do Senado por estarem inteiramente embriagados: "inchados, como de costume, pelo vinho bebido na véspera". Com igual confiança Cássio, bebedor de água, comunicou a Amber, que se embebedava continuamente, sua intenção de acabar com César. Ao que respondeu o bêbado: "como queres que vença o tirano quem não pode sequer vencer o vinho?" E vemos os alemães saturados de vinho lembrarem-se de seus quartéis, da palavra de ordem e de seus lugares nas fileiras: "e não é fácil vencê-los, ainda que embriagados, gaguejantes e titubeantes". Nunca acreditara que pudesse haver embriaguez tão profunda e aniquiladora, se não houvesse lido na história que Atalo convidou Pausânias a cear, no intuito de cometer com ele grave indignidade, esse mesmo Pausânias que pelo mesmo motivo matou mais tarde Filipe da Macedônia, notável pela educação que recebeu de Epaminondas e de sua família. Átalo deu tanta bebida a seu conviva que pôde converter-lhe insensivelmente o corpo no de uma prostituta de baixa extração a entregar-se aos criados e mais abjetos arrieiros da casa. Da mesma ordem de ideias é o fato que me foi referido por uma senhora que muito honro e aprecio: perto de Bordéus, para o lado de Castres onde tem propriedade, uma viúva da aldeia, de uma castidade a toda prova, sentindo alguns sintomas estranhos dizia a sua vizinha que se fosse casada acreditaria estar grávida. Os sintomas, dia a dia mais precisos, tornaram-se afinal evidentes, levando-a a declarar ao cura do lugar que a quem se confessasse culpado de a ter posto naquele estado, não somente ela perdoaria como o desposaria se concordasse. Um de seus lacaios, encorajado pela proclamação, confessou então que de uma feita, ao vê-la bêbada e profundamente adormecida, e em posição indecorosa, dela abusara sem a acordar. Casaram e continuam casados. É sabido que na antiguidade esse vício não era muito condenado. Chegam mesmo alguns filósofos a referir-se com muita indulgência à embriaguez; e entre os próprios estoicos houve quem recomendasse beber de vez em quando à vontade, até a embriaguez, a fim de alegrar o espírito: "dizem mesmo que nessa nobre justa venceu por vezes o grande Sócrates". Ao severo Catâo, censor dos demais, censurou-se a tendência para este vício: "conta-se também que Catão, o Ancião, aquecia sua virtude no vinho". Ciro, príncipe de tão grande renome, cita entre outras provas de superioridade sobre seu irmão Artaxerxes, o fato de suportar melhor a bebida. Nas nações mais bem administradas e governadas era habitual exercitar-se em beber. E ouvi de Sílvio, excelente médico parisiense, que a fim de conservar a eficiência do estômago é útil acordá-lo e estimulá-lo uma vez por mês com excessos dessa natureza. Diz-se ainda que os persas discutiam seus negócios depois de beber. Mais por gosto e temperamento do que pela razão, sou inimigo de tais excessos, pois, conquanto de bom grado acomode minhas opiniões à autoridade dos antigos e considere a embriaguez um vício vergonhoso e estúpido, acredito-o menos perverso e nefasto do que os outros, os quais prejudicam diretamente a sociedade. Se, como afirmam, não há prazer que não nos custe algum sacrifício, é esse vício o menos pesado à nossa consciência; é, por outro lado, o de mais fácil realização, o que precisa ser ponderado. Um senhor já de idade e de certa condição social dizia-me contá-lo entre os três prazeres principais de que ainda podia gozar na vida. E, de fato, onde encontrar satisfações preferíveis às que a própria natureza nos oferece? Mas essa pessoa não agia com bom senso, pois o requinte não é de rigor em tais circunstâncias e é supérfluo escolher vinhos finos para tanto. Se gostais de saborear o que bebeis, experimentareis no caso em apreço o desgosto de beber em condições diferentes, porquanto para ser beberrão é necessário um paladar mais grosseiro, menos requintado. Os alemães bebem qualquer vinho com igual prazer, não pensam senão em engolir. Têm-no assim mais barato, mais copioso e fácil. Beber como os franceses somente às refeições e moderadamente é restringir demasiado os favores de Baco. A tal exercício cumpre consagrar mais tempo e constância. Os antigos consagravam-lhe noites inteiras e às vezes os dias também; é preciso, pois, dar-lhe lugar mais importante na vida cotidiana. Conheci um grande senhor ao qual missões de responsabilidade foram confiadas e cujos êxitos são conhecidos, que bebia regularmente e sem incômodo às refeições seus cinco lotes de vinho e que ao levantar da mesa não se mostrava menos clarividente e precavido nos negócios, o que nos foi dado comprovar em nosso detrimento. E necessário dedicar-se mais a esse prazer, se se deseja que conte na vida; é necessário fazer como esses caixeiros e operários que nunca recusam uma oportunidade de beber e têm esse desejo sempre em mente. Dir-se-ia que o prazer da mesa vai diminuindo dia a dia em nossa terra; parece-me que no meu tempo de infância os almoços, os jantares, as ceias, eram mais frequentes e mais comuns do que hoje. Estaremos, em algo pelo menos, nos corrigindo? Por certo que não, mas talvez nos inclinemos mais do que nossos pais para a libertinagem, e o vinho e as mulheres são coisas que levadas ao exagero se prejudicam mutuamente. A libertinagem debilita o estômago. Por outro lado a sobriedade faz-nos mais galantes, mais requintados no amor. É admirável o que ouvi de meu pai acerca da castidade de seu século. E cabia-lhe dizê-lo pois tudo tinha, por natureza e educação, para ser muito querido das mulheres. Falava pouco e bem, e entremeava sua conversação com reminiscências dos livros mais afamados, principalmente espanhóis, entre os quais "Marco Aurélio" era o que mais prezava. Era de uma gravidade suave, discreto, muito modesto, de uma polidez esquisita, sempre bem vestido e cuidado, a pé como a cavalo. Escravo de sua palavra, e tão devoto em matéria religiosa que tendia para a superstição. De estatura pequena, bem proporcionado, andava sempre bem aprumado e era muito vigoroso. Agradável de rosto, moreno de pele, era hábil e sobressaía em todos os exercícios a que se entregam as pessoas de categoria. Para fortalecer os braços fazia esgrima, lançava pedras e erguia barras de ferro. Ainda cheguei a ver os bastões chumbados que serviam para o treinamento e os sapatos de solas de chumbo com que se exercitava na corrida e no salto. A esse respeito deixou a lembrança de feitos espantosos. Vi-o aos sessenta anos, desafiando nossa agilidade, saltar num cavalo com suas vestimentas forradas de pele e fazer a volta da mesa sobre as mãos. Quando se retirava para seus aposentos, amiúde subia a escada de três em três degraus. Quanto à boa opinião que tinha das mulheres, dizia que em uma província inteira havia apenas uma senhora distinta de reputação duvidosa, e narrava também casos singulares de galanteria, seus em geral, em que andara na companhia de mulheres honestas, sem se comprometer de modo algum. E jurava que se casara virgem, embora muito depois de ter tomado parte nas guerras além Alpes, guerras a respeito das quais deixou um diário em que relata ponto por ponto tudo o que ocorreu e que testemunhou. No entanto tinha trinta e três anos em 1528 quando em voltando da Itália se casou. Tornemos agora às nossas garrafas... Os incômodos da velhice, que exigem nós algum alívio, podiam com razão excitar em mim o desejo de beber, último dos prazeres de que nos privam os anos. O calor natural, dizem os galhofeiros, sente-se primeiramente nos pés, durante a infância; daí sobe para a parte média do corpo onde permanece longo tempo, dando-nos os únicos verdadeiros prazeres da vida animal e ao lado dos quais os outros são insignificantes; finalmente, como o vapor que sobe sempre e se exala, chega à garganta onde faz a última parada. Não consigo, entretanto, compreender como se encontra ainda satisfação em beber sem ter sede e a criar pela imaginação um desejo artificial contrário à natureza. Meu estômago não resistiria, pois já tem dificuldade em dar cabo do que toma dentro dos limites de suas necessidades. Minha constituição faz que só tenha vontade de beber depois de comer, por isso mesmo é o gole final o mais copioso. Na velhice o nosso paladar se vicia com defluxos e corrompe-se com outras deficiências de nosso organismo; parece-nos então melhor o vinho na medida em que vai desobstruindo e lavando os nossos poros; é pelo menos a sensação que tenho e raramente percebo o gosto do vinho quando começo a bebê-lo, Anacársis espantava-se com ver os gregos beberem ao fim da refeição em copos maiores do que no início. Creio que isso provém da mesma causa que leva os alemães a agirem da mesma maneira, porque é no fim que se põem a ver quem bebe mais. Platão determina que não bebam as crianças antes dos dezoito anos; e aos homens que não se embriaguem senão aos quarenta. Aos que ultrapassam esta idade admite que se comprazam nisso e que reservem maior parte a Baco em suas refeições, essa boa divindade que devolve a alegria ao homem, e ao ancião, a mocidade; que suaviza as paixões da alma, tira-lhes a agudeza como o fogo amolece o ferro. Em suas leis, concorda em que reunir-se para beber tem sua utilidade, conquanto sejam as reuniões presididas por alguém que as regule e as mantenha dentro dos limites do razoável, sendo a embriaguez, diz ele, uma maneira eficiente de ressaltar a natureza do indivíduo, e também eminentemente adequada a dar às pessoas idosas a coragem de participar dos prazeres da dança e da música, recreações úteis que não ousarão buscar se não estiverem algo excitadas. Platão reconhece igualmente a virtude que tem o vinho de temperar as agitações da alma e conservar a saúde do corpo. Aprova contudo as seguintes restrições copiadas em parte dos cartagineses: proibição de vinho aos soldados na guerra ou em expedição; aos magistrados quando no exercício de seus cargos; durante o dia a todo mundo, bem como nas noites em que pretendam unir-se a suas mulheres no intuito de procriar. Dizem que o filósofo Estílpon, acabrunhado pela velhice, apressou voluntariamente seu fim bebendo vinho puro. Agindo de igual maneira, embora não deliberadamente, o filósofo Arcesilau viu abaladas as poucas forças que ainda lhe restavam. E antiga e graciosa pergunta a que indaga se o espírito do sábio é capaz de resistir à força do vinho, "no caso em que o vinho ataque o sábio". A vaidade incita-nos por demais a ter boa opinião de nós mesmos. A alma mais ponderada, mais perfeita, já precisa esforçar-se muito para se sustentar de pé e evitar ser derrubada pela sua própria fraqueza. Não há uma só em mil que durante um minuto de existência se mantenha estável e a prumo; a julgar pela nossa própria natureza, podemos duvidar de que isso aconteça; e se acontecesse, e de modo constante, seria o supremo grau de perfeição. Mas para tanto fora necessário que nenhum choque a abalasse, coisa que mil acidentes podem provocar. Que adiantou a Lucrécio, esse grande poeta, filosofar e observar-se? Um filtro amoroso enlouquece-o. A apoplexia tanto pode atingir um carregador como Sócrates. Há quem esqueça o próprio nome em consequência de uma doença, outros em virtude de um ferimento perdem a razão. Por mais sábio que seja, o sábio não passa afinal de um homem; e haverá algo mais caduco, mais miserável, mais insignificante do que um homem? Não é capaz a sabedoria de melhorar nossas condições naturais: "sob a influência do medo o corpo torna-se lívido e molhado de suor, a língua embaraçada: extingue-se a voz, perturba-se a vista, zumbem os ouvidos, todo o organismo se relaxa e desmantela". Não pode o sábio, mais do que qualquer um, impedir que instintivamente se fechem os olhos à ameaça de um golpe, nem que lhe tremam as pernas à beira de um precipício, tal qual ocorreria com uma criança. A natureza quis reservar para si esses pequenos sinais de seu poder a que não escapam nossa razão nem a virtude dos estoicos, e assim o quis porque nos lembra que somos mortais, e pouco pesamos. O medo fá-lo empalidecer, a vergonha corar, a cólica gemer ao menos em surdina, senão desesperadamente: "jamais poderia imaginar que está livre de qualquer acidente". Os poetas que tudo acomodam à sua fantasia não ousam cantar heróis incapazes de chorar: "Assim falava Enéias debulhado em lágrimas enquanto a frota vogava a toda vela". Que o sábio se contente, pois, com conter e moderar seus instintos; aniquilá-los não está em seu poder. O próprio Plutarco, juiz perspicaz, ao considerar que Bruto e Torquato mandaram matar os próprios filhos, duvida que a virtude possa levar a tanto e pergunta se alguma paixão não os terá movido. Todos os atos humanos que saem do comum prestam-se a más interpretações, tanto mais quanto não admitimos nem o que se acha acima nem o que se coloca abaixo do que aprovamos. Sem buscar nossos exemplos nessa seita que professa expressamente a altivez, atentemos para a outra que dizem mais fracas e ouçamos as fanfarronadas de Metrodoro: "Dominei-te, ó destino, e te reduzi à impotência, barrei todas as avenidas pelas quais podias chegar a mim". Quando Anaxarco, por ordem de Nicocreonte, tirano de Chipre, deitado em leito de pedra, esmagado a marteladas repete sem cessar: "Batei, quebrai, não é Anaxarco que estais macetando, é seu invólucro"; quando vemos os mártires proclamar na fogueira: "este lado já está bem assado, passemos ao outro agora"; quando Josefo assinala aquela criança que, com o corpo rasgado pelas torqueses e traspassado pela sovela de Antíoco, o desafiava ainda clamando com voz firme: Tirano, perdes o teu tempo; sinto-me à vontade. Onde essa dor de que me ameaçavas? Onde os tormentos? É tudo o que sabes fazer? Minha tenacidade aborrece-te mais do que me causa pena a tua crueldade. Covarde imbecil! Cansas-te e eu estou cada vez mais decidido. Faze com que me queixe, me lamente, me renda, se o podes. Reanima a coragem de teus satélites e de teus carrascos. Não podem mais. Carecem de nervos. Dá-lhes novos instrumentos de tortura e que se encarnicem; quando vemos semelhantes fatos, somos por certo levados a reconhecer que essas almas têm algo errado e estão presas de uma espécie de frenesi, o qual, por santo que seja, continua sendo frenesi. Quando deparamos com essas saídas da escola estoica: "prefiro ser louco furioso a ser voluptuoso", como diz Antístenes, ou como observa Sêxtio: "prefiro o abraço da dor ao abraço da volúpia": quando Epicuro parece deleitar-se com a gota e recusando alegremente repouso e saúde desafia o mal que pode atingi-lo, e desdenhando as dores que suporta não as combate, antes as conclama maiores e mais dignas dele, "não se preocupando com esses animais tímidos, desejaria que um javali furioso o atacasse ou que um leão de ruiva juba descesse das montanhas", logo percebemos que tais invectivas provêm de uma coragem exasperada pela própria superexcitação. Nossa alma em condições normais não poderia erguer-se tão alto. É preciso que ela saia de seu estado habitual, que se eleve e, tomando o freio nos dentes, arraste o seu homem tão longe que, em voltando a si, ele próprio se espante do que fez. É o que ocorre na guerra onde o calor do combate empurra os valentes soldados a tão ousadas aventuras que, voltando a si, são os primeiros a tremer de susto. Fato análogo se observa nos poetas que, transportados de admiração por suas próprias obras, não compreendem como puderam produzi-Ias, o que se denomina neles estro e entusiasmo poéticos. Um homem sério, diz Platão, baterá em vão à porta da poesia. Por seu lado Aristóteles pretende que, por perfeita que seja, a alma não está isenta de uma pitada de loucura, e chama com razão loucura a esses voos que, embora louváveis, ultrapassam nossa inteligência e nossa razão. A sabedoria não é outra coisa senão uma orientação regular dada à nossa alma, a fim de a conduzir com medida e equilíbrio. E assim sustenta Platão a sua tese: "Sendo a faculdade de profetizar superior às nossas luzes, necessário se faz que nos encontremos fora de nós quando a praticamos; o sono, a doença, paralisam então nossa inteligência ou uma inspiração divina a domina". CAPÍTULO 111 A PROPÓSITO DE UM COSTUME DA ILHA DE CEOS Dizem que filosofar é duvidar. Com maior razão ainda fantasiar e divagar. Cabe porém aos aprendizes inquirir e indagar; e só aos mestres resolver. O meu mestre é a autoridade da vontade divina, a qual sem contestação possível nos rege, pairando acima das vãs indagações humanas. Tendo Filipe entrado no Peloponeso com seu exército, disse alguém a Damidas que os lacedemônios muito iriam sofrer se não pedissem mercê. "Poltrão", exclamou Damidas, "que podem sofrer os que não temem a morte?" Perguntaram a Agis como devia fazer um homem para viver livre: "desprezando a morte", respondeu. Tais palavras, e outras semelhantes, que se ouvem a esse respeito, implicam evidentemente outra coisa que não apenas aguardar a chegada da morte, pois há na vida numerosos acidentes que fazem sofrer mais do que a morte. Haja vista aquele menino da Lacedemônia feito prisioneiro por Antígono e vendido como escravo. Instado a um trabalho abjeto, respondeu: "Vais ver quem compraste; seria uma vergonha fazê-lo, tendo a liberdade a meu alcance". E precipitou-se do alto da casa. Antípatro ameaçava duramente os lacedemônios a fim de os obrigar a atender a uma de suas exigências: "Se tu nos ameaças", responderam eles, "com coisas piores do que a morte, preferimos morrer". A Filipe, que os advertia de que faria malograr tudo o que empreendessem, observaram: "Quererás impedir-nos de morrer?" Eis por que se diz que o sábio vive quanto deve e não quanto o poderia; e o que de melhor recebemos da natureza e que nos tira todo direito de queixa, foi a possibilidade de desaparecer quando bem quisermos. Criou ela um só meio de entrar na vida, mas cem de sair. Podemos carecer de terras para viver; não faltam para morrer, como diz Boiocatus em sua resposta aos romanos: Por que te queixas deste mundo? Não te convém? Vives infeliz? Culpa apenas a tua covardia. Para morrer basta desejá-lo; a morte está em toda parte, devemo-la à bondade dos deuses; podem tirar a vida a um homem: não lhe podem tirar a morte. Mil caminhos abertos a ela conduzem. E não se trata de receita para uma só doença. A morte é um remédio para todos os males, é um porto de inteira segurança que não é de se temer jamais e sim de se procurar não raro. Tudo consiste nisto: que o homem decida acabar, que corra à frente de seu fim ou o aguarde, é sempre ele que está em causa: em qualquer ponto que se rompa o fio, ei-lo fora do jogo. E a extremidade do rojão que arrebenta ao ser atingida pelo fogo. A morte voluntária é a mais bela. Nossa vida depende da vontade de outrem; nossa morte, da nossa. Em nenhuma coisa, mais do que nesta, temos liberdade para agir. A reputação não atinge tal empresa, é tolice pois qualquer respeito. Viver é ser escravo, sem a liberdade de morrer. De costume a cura só se obtém em detrimento da vida; fazem-nos incisões, cauterizam-nos, privam-nos de alimento, tiram-nos sangue; um passo a mais e eis-nos curados para sempre. Por que não teríamos a liberdade de nos cortar a garganta, como temos a de proceder a uma sangria? Quanto mais grave a doença tanto mais exigente de remédio enérgico. Sérvio, o gramático, sofrendo de gota não achou solução melhor do que tomar um veneno que lhe paralisou as pernas. Conquanto se tornassem insensíveis, pouco lhe importava ficassem impotentes. Deus muito faz por nós em nos dando a possibilidade de agir como entendemos desde que julguemos ser a vida pior do que a morte. Ceder ao mal é sinal de fraqueza, mas entretê-la é loucura. Consideram os estoicos que o sábio obra de acordo com a natureza quando abandona a vida, ainda que se sinta feliz, desde que a deixe no momento oportuno; e é próprio do louco aferrar-se à existência quando ela é insuportável. Assim como não violo as leis contra os ladrões quando carrego meus haveres e tomo minha bolsa a mim mesmo; nem as leis contra os incendiários quando queimo a minha lenha; não desobedeço tampouco às que punem o assassínio quando me tiro a vida. Hegésias dizia que, dependendo de nós as condições de nossa vida, devemos dispor igualmente das condições de nossa morte. Diógenes, ao encontrar de liteira o filósofo Espeusipo de há muito atacado de hidropisia, exclamou: "Não te desejo nada, já que desejas viver no estado em que estás". Algum tempo depois, cansado de tão penosa existência, Espeusipo suicidou-se. Mas quantas objeções a isso! Alguns consideram que não podemos abandonar este mundo em que estamos aquartelados, sem ordem expressa de quem nele nos colocou; e a Deus, que para cá nos enviou não apenas para nosso prazer mas para sua glória e serviço de nossos semelhantes, cabe despedir-nos quando Lhe agradar e não quando nós o desejarmos. Não nascemos apenas para nós, mas também para a nossa terra. As leis, em seu próprio interesse, exigem que prestemos contas de nós e podem punir-nos como homicidas; por outro lado, no outro mundo seremos castigados por deserção: "além, mantêm-se acabrunhados de tristeza OS que, embora não hajam cometido crime nenhum, se deram a morte por ódio à luz e para rejeitar o fardo da vida". Há mais coragem em esperar que caiam por aí, roídos pelo uso, os ferros de nosso cativeiro, do que em os quebrar nós mesmos. Régulo foi mais forte de ânimo que Catão. São a falta de discrição e a impaciência que nos induzem a apressar o momento fatal. A virtude realmente digna desse nome não cede ante nenhum acidente, qualquer que seja; males e doenças são por assim dizer seu alimento; ela os procura. As ameaças dos tiranos, os tormentos, os carrascos animam-na e a fortalecem: "Assim o carvalho nas negras florestas do Algido; desbastado pelo machado, apesar de suas perdas e chagas, recobra novo vigor sob o ferro que o talha”. Pode-se ainda dizer com esses autores: "a virtude, meu pai, não consiste como pensas em temer a vida, mas em nunca fugir dela e em enfrentar a adversidade”. "Na desgraça é fácil desprezar a morte; e há mais coragem em saber ser infeliz". É sinal de covardia, e não de virtude, ir agachar-se em um buraco sob o túmulo maciço, a fim de escapar aos golpes do destino. Por maior que seja a tempestade, a virtude não modifica seu caminho nem seu passo: "que o universo partido se desmantele, sem temor ela ficará sob as ruínas". O mais comum é que cheguemos à morte para fugir de outros inconvenientes; por vezes mesmo é para fugir desta que vamos a ela: "Digam-me, peço, morrer de medo de morrer não será loucurar”. Assim fazem os que com receio do precipício nele se atiram: "O pavor do perigo faz que nos atiremos ao perigo. O homem corajoso é o que enfrenta o perigo se preciso e o evita se possível. "O homem temeroso da morte desgosta-se da vida, fica com horror à luz; mata-se ele próprio, esquecido de que a fonte dos males é o medo de morrer." Platão em suas leis ordena que uma sepultura ignominiosa se reserve a quem prive da vida seu parente mais próximo e seu melhor amigo, em outras palavras, ele próprio, e assim interrompa o curso do destino, sem a tanto ser constrangido pela opinião pública, por algum triste e inevitável acidente da sorte, por uma insuportável vergonha, tendo tido apenas como móvel a covardia ou a fraqueza de um espírito temeroso. Desdenhar a vida é ridículo, porque afinal de contas a vida é nosso ser, nosso tudo. As coisas de essência mais rica e nobre podem acusar nossa vida; é porém ir de encontro à natureza desprezar-se a si mesmo e odiar-se; é uma doença de gênero especial que não se depara em nenhuma outra criatura senão o homem. É também vaidade desejarmos ser diferentes do que somos; tal desejo não leva a nada: contradiz-se e traz em si o obstáculo à sua realização. Quem deseja que o homem se faça anjo, não trabalha por si; se seu desejo se realizasse, não o aproveitaria, pois não mais existindo não poderia regozijar-se com a transformação e sentir-lhe os efeitos. "Nada há que temer de um mal futuro, se não devemos existir quando esse mal ocorrer". A segurança, a indolência, a impassibilidade, a isenção dos males da vida, que compramos pelo preço da morte, não se nos tornam de nenhuma vantagem. É por nada que evita a guerra quem não pode gozar a paz; por nada que foge da pena quem não pode saborear o repouso. Entre os que pensam seja lícito suicidar-se, um ponto é controvertido: quando as circunstâncias justificam suficientemente que um homem se mate? Embora admitam que causas insignificantes possam muitas vezes motivar semelhante resolução, tendo tudo na vida importância relativa, cabe estabelecer uma medida. Há disposições de espírito inteiramente desprovidas de sentido e lógica que levaram não somente homens, mas também povos, à autodestruição. Citei exemplos, mas eis mais outro: em seguida a um entendimento nascido de loucura furiosa, as jovens de Mileto puseram-se a enforcar-se umas após outras, o que só terminou quando o magistrado, intervindo, determinou que arrastassem pela cidade, inteiramente nuas e com a corda ao pescoço, as que assim haviam morrido. Tericião instava junto a Cleômenes para que se matasse, dado o mau estado de seus negócios. Visto que escapara a uma morte honrosa no combate perdido, aceitasse outra, a qual, embora o sendo menos, privaria o vencedor de lhe impor uma morte - ou uma vida - vergonhosa. Cleômenes, com uma coragem bem lacedemônia e realmente estoica, recusou o conselho por considera-lo covarde e efeminado: "eis", disse, um recurso que não me faltará nunca e de que não me valerei enquanto houver a menor parcela de esperança; viver é por vezes dar prova de ânimo e valentia; quero que minha própria morte seja útil a meu país, seja um ato que testemunhe minha coragem e me honre. Tericião, coerente com suas ideias, matou-se. Cleômenes também, mais tarde, mas somente depois de ter tentado até o fim vencer a sorte. Nenhum dos males da vida justifica que nos suicidemos para evitá-lo. Ademais, as coisas humanas estão sujeitas a tais reviravoltas, que se faz difícil julgar em que momento nos cumpre renunciar a qualquer esperança: "Estendido na arena, o gladiador vencido espera ainda viver, quando já a multidão ameaçadora faz o gesto da morte". O homem tem o direito de tudo esquecer enquanto vive, diz um aforismo antigo. Sim, atalha Sêneca, mas por que dizer que a sorte tudo pode para quem está vivo, em vez de afirmar que ela nada pode contra quem sabe morrer? Conhecido é o caso de Josefo que, achando-se em grave perigo por se haver sublevado o povo inteiro contra ele, não podia, razoavelmente, esperar qualquer salvação; aconselhado por alguns de seus amigos a matar-se, seguiu o caminho de se obstinar na esperança. Contra toda previsão humana, a sorte mudou e Josefo se viu salvo sem ter sofrido dano algum. Não perderam Cássio e Bruto os últimos restos da liberdade romana, de que eram os sustentáculos, pela precipitação que mostraram em se matar antes que as circunstâncias o exigissem realmente? Na batalha de Cérisoles, o Sr. de Enghien tentou por duas vezes atravessar a garganta com sua espada, no desespero de ver o combate perder-se no lugar em que se encontrava. E com essa precipitação quase deixou de gozar uma bela vitória. Vi cem lebres fugirem quando estavam quase nos dentes dos cães. "Há quem tenha sobrevivido ao seu carrasco”. "O tempo, os diversos acontecimentos podem acarretar mudanças felizes; não raro em seus jogos a sorte caprichosa volta àqueles que enganou e os eleva”. Plínio disse que há três espécies de doença em virtude das quais temos o direito de nos matar para as evitar, e cita como a mais dolorosa de todas a pedra quando obstrui a bexiga e ocasiona retenções de urina. Sêneca só admite as que comprometem durante muito tempo as funções do espírito. Outros são de parecer que para abreviar uma morte dolorosa podemos matar-nos quando o julgamos conveniente. Demócrito, chefe dos etólicos, levado em cativeiro para Roma, descobriu certa noite um meio de fugir; perseguido pelos guardas e a ponto de lhes cair nas mãos, atravessou o próprio corpo com a espada. Antínoo e Teódoto, cidadãos do Epiro, vendo sua cidade prestes a ser destruída pelos romanos, aconselharam a todos que se matassem. Tendo vencido a ideia da rendição, decidiram-se eles pela morte e, a fim de a buscar, atiraram-se contra o inimigo, esforçando-se unicamente por atacar, sem se preocuparem com a própria segurança. Quando há poucos anos a ilha de Gozo caiu em poder dos turcos, um siciliano que aí se achava e tinha duas belas filhas em idade de casar, matou-as com as próprias mãos, bem como a mulher que acorrera para socorrê-las; isso feito, saiu à rua com uma besta e um arcabuz e, ao se aproximarem os turcos, descarregou suas armas matando os dois primeiros. Em seguida, de espada na mão, precipitou-se contra os outros. Imediatamente cercado, foi picado em pedaços, escapando da escravidão depois de haver livrado os seus do mesmo risco. As mulheres judias, a fim de fugir à crueldade de Antíoco, jogavam-se em um precipício com os filhos depois de mandá-los circuncidar. Contaram-me que estando na prisão certo senhor de elevada condição social, seus parentes, avisados de que seria seguramente condenado à morte, para obviar a vergonha do suplício pediram a um padre que lhe transmitisse o meio certo de se libertar: que se recomendasse a tal ou qual santo com tal ou qual promessa e que ficasse oito dias sem tomar o menor alimento, por mais fraco que se sentisse. Acreditou ele nisso e assim, sem pensar, libertou-se da vida e do perigo em perspectiva. Escribônia aconselhou seu sobrinho a suicidar-se antes que se desse a intervenção da justiça, mostrando que era precisamente ir ao encontro da vontade dos outros conservar a vida para entregá-la nas mãos dos que dentro de três ou quatro dias o viriam buscar. E que guardar seu sangue para que o bebessem seus inimigos era em verdade servi-los. Lê-se na Bíblia que Nicanor, perseguindo os fiéis, mandou alguns guardas se apoderarem de Razias, ancião de grande virtude, por todos respeitado e apelidado o "Pai dos judeus". Vendo-se perdido, queimada a sua casa e quase em mãos do inimigo, esse homem de bem procurou matar-se com sua espada, preferindo morrer nobremente a sofrer um tratamento indigno de sua condição. Com a pressa o golpe falhou e ele correu a jogar-se de cima de um muro sobre os assaltantes e, em tendo estes se afastado, caiu de ponta-cabeça. Conservando entretanto um resto de vida, mediante terrível esforço levantou-se e, ensanguentado e ferido, forçou o cerco a fim de alcançar um rochedo a pique. Mas exausto, obrigado a parar, arrancou com as mãos as entranhas por um dos ferimentos, despedaçando-as e as jogando à cara dos perseguidores. E invocava o testemunho dos céus para a justiça de sua causa, apelando para a vingança divina. Entre as violências perpetradas contra a consciência, as que mais se devem evitar, a meu ver, são as que dizem respeito à castidade das mulheres, tanto mais quanto envolvem o prazer físico, razão pela qual a resistência não pode ser total, unindo-se necessariamente à força certa aquiescência inconsciente da vítima. A história eclesiástica venera a memória de muitas santas que preferiram a morte aos ultrajes que os tiranos infligiram à sua religião e à sua consciência. Pelágia e Sofrônia, ambas canonizadas, mataram-se, a primeira jogando-se ao rio com sua mãe e suas irmãs a fim de evitar a brutalidade dos soldados, e a segunda, para escapar à insistência do Imperador Maxêncio. Talvez os séculos vindouros venham a louvar esse sábio parisiense! que se esforça por persuadir as mulheres de não tomarem tão desesperada resolução em casos análogos. Lamento que esse autor não tenha conhecido, a fim de reforçar sua argumentação, as palavras que ouvi de uma senhora de Tolosa, a qual passara pelas mãos de alguns soldados: "Louvado seja Deus, pois ao menos uma vez em minha vida me fartei sem pecar". Matar-se por causa de semelhante aventura é, em verdade, uma crueldade indigna da doçura dos costumes franceses. Graças a Deus, depois de tais conselhos vemo-nos vingados dessas crueldades, pois basta que as mulheres digam "não" enquanto sofrem a violência, segundo a regra do bom Marot. A história está cheia de exemplos de pessoas que trocaram pela morte uma vida difícil de suportar. Lúcio Arúncio matou-se, dizem, "a fim de fugir do passado tanto quanto do futuro". Grânio Silvano e Estácio Próximo a quem Nero perdoara, mataram-se para não dever a vida a um homem tão cruel, e não se expor a um segundo perdão, em virtude da facilidade com que esse indivíduo desconfiado ouvia as acusações aos homens de bem. Spargapizes, filho da Rainha Tômiris, feito prisioneiro por Ciro, aproveitou a primeira oportunidade que lhe deu o monarca, para se matar, pois da liberdade não queria senão a possibilidade de punir-se pelo fato de se ter deixado aprisionar. Boges, governador de Eione, no tempo de Xerxes, estando sitiado pelos atenienses sob as ordens de Címon, recusou as propostas de retirada em segurança, não podendo resignar-se a sobreviver à perda daquilo que seu senhor lhe confiara. Depois de defender a cidade até esgotar os últimos recursos, e já sem víveres, mandou jogar no rio Estruma o ouro e tudo o que pudesse ser aproveitado pelo inimigo. Acendeu em seguida imensa fogueira em que jogou suas mulheres, seus filhos, suas concubinas e seus servidores previamente degolados e na qual se precipitou então ele próprio. Ninachetuen, senhor indiano, tendo ouvido que o vice-rei português, sem motivo aparente, premeditava destituí-lo do cargo que ocupava em Malaca a fim de dá-lo ao rei de Campar, tomou a seguinte resolução: mandou erguer um palanque mais comprido do que largo, sustentado por colunas, ricamente atapetado, ornamentado de flores e impregnado de perfumes. Vestiu uma túnica bordada de ouro, guarnecida de pedras preciosas, saiu à rua e subiu ao tablado a uma das extremidades do qual ardia uma fogueira de madeiras aromáticas. Acudiu o povo para ver a que se destinavam tais preparativos inesperados, e Ninachetuen expôs então, com semblante corajoso, mas sem esconder seu ressentimento, os serviços prestados por ele à nação portuguesa. Disse da eficiência com que desempenhara os cargos que tivera e acrescentou que tendo demonstrado sempre de armas na mão ser para ele a honra mais preciosa do que a vida, não falharia agora. E tendo-lhe a sorte recusado qualquer outro meio de se opor à injúria que lhe era feita, sua coragem ordenava-lhe não sobreviver à desonra, não constituir motivo de mofa para o povo nem colaborar para o triunfo de gente de pouco valor. E, assim dizendo, precipitou-se na fogueira. Sextília, mulher de Escauro, e Páxea, mulher de Labeo, a fim de encorajar os maridos a evitar, com a morte, os perigos que os ameaçavam e cujas consequências elas só sentiriam como esposas, sacrificaram voluntariamente a vida, querendo com isso não somente dar o exemplo, mas ainda acompanha-los. O que essas heroínas fizeram com seus consortes, fê-lo por sua pátria Coceio N erva, menos utilmente por certo, mas com igual determinação. Esse grande jurisconsulto, que tinha saúde, riqueza, reputação e prestígio junto ao imperador, matou-se unicamente por considerar lamentável a situação do governo de Roma. Nada porém pode ultrapassar em estranheza a morte da mulher de Fúlvio, que era amigo de Augusto. Tendo este percebido que Fúlvio divulgara um segredo importante, acolheu-o muito mal certa manhã. Fúlvio voltou para casa desesperado e disse à mulher que ante tão grande desgraça estava resolvido a suicidar-se, ao que ela respondeu de imediato: "Fazes bem, pois já tendo verificado várias vezes que eu não sei calar, não tomaste nenhuma precaução; mas deixa que me mate em primeiro lugar". E sem nada acrescentar mergulhou uma adaga no seio. Quando do cerco de Cápua pelos romanos, Víbio Viro, descrente de salvar a cidade bem como da generosidade do inimigo, depois de discutir longamente no Senado as medidas possíveis de defesa, chegou à conclusão de que a morte era o melhor meio de lutar contra a má sorte; que os inimigos os respeitariam mais e Aníbal compreenderia melhor quão fiéis eram os amigos que abandonara. Convidou os que o aprovavam para um festim em sua casa, onde, depois de lauto banquete, beberiam algo que livraria seus corpos dos tormentos físicos, suas almas das aflições, seus olhos e ouvidos do espetáculo que aos vencidos seria imposto por vencedores cruéis e despeitados. "Providenciei", acrescentou, "para que logo depois de nossa morte nossos corpos sejam queimados diante de minha residência." Muitos concordaram com essa resolução de um grande caráter, mas poucos a seguiram. Vinte e sete senadores somente juntaram-se a ele, os quais, após buscarem no vinho o esquecimento, acabaram por tomar a bebida fatal. Abraçando-se então, e lamentando o destino do país, retiraram-se alguns e ficaram os demais com o anfitrião a fim de serem incinerados. A morte de todos foi lenta, pois o vinho perturbou o efeito do veneno e muitos correram o risco de ver o inimigo entrar em Cá pua, no dia seguinte, e de suportar as misérias que procuravam evitar. Voltando o Cônsul Fúlvio da terrível carnificina em que por sua causa pereceram duzentos e vinte e cinco senadores, foi orgulhosamente interpelado por Táurea Jubélio, cidadão de Cápua, o qual lhe disse: "manda trucidar-me como os demais, e depois poderás vangloriar-te de teres matado alguém mais valente do que tu". Fúlvio desdenhou essas palavras que se lhe afiguravam de um louco, e também porque acabava de receber de Roma uma censura à sua crueldade ordenando que sustasse a matança. Mas Jubélio continuou: "Visto que meu país já esta vencido, que meus amigos morreram, que matei minha mulher e meus filhos para lhes evitar as calamidades que acarreta a nossa ruína, e que não posso morrer como meus concidadã os, que a coragem me ajude a deixar esta vida odiosa". E puxando a espada que escondera enfiou-a no peito, vindo a morrer aos pés do cônsul. Assediava Alexandre uma cidade indiana. Vendo-se sem mais recursos, os sitiados resolveram privá-lo do prazer da vitória mediante um gesto viril. Incendiaram a cidade e pereceram todos nas chamas, apesar do sentimento de humanidade que reconheciam no vencedor. E viu-se o fato inédito de uma batalha em que os assaltantes se esforçavam por salvar os sitiados, os quais para não serem salvos tudo puseram em prática como se lutassem pela vida. Não tendo a cidade de Astapa, na Espanha, fortificações sólidas nem meios de defesa contra os romanos, juntaram os habitantes os seus móveis e riquezas na praça pública, colocaram em cima suas mulheres e filhos, cercando tudo de lenha e outros materiais combustíveis. Encarregando cinquenta jovens da execução de seus projetos, saíram todos para o ataque, jurando morrer desde que não lhes era possível vencer. Enquanto isso os cinquenta jovens procediam à matança dos seres vivos que encontravam, precipitando-se em seguida no fogo. Sua liberdade chegava ao fim e assim não se impressionavam com essa perspectiva, graças ao ato generoso que lhes poupava a dor e a vergonha de perdê-la, ato pelo qual mostravam que, se a sorte não lhes tivesse sido contrária, poderiam ter tido a coragem de tirar-lhes a vitória, como também tomá-la frustrada e horrenda, e até mortal, pois numerosos eram os adversários que, atraídos pela isca do ouro em fusão, se aproximavam demasiado das chamas sufocando-se e se queimando, porquanto não podiam recuar sob a pressão dos outros que vinham atrás. Os habitantes de Abido, em idêntica situação, tornaram igual resolução. Tarde demais, porém. O Rei Filipe, a quem repugnava assistir a tão cruel e precipitada carnificina, depois de apreender todos os tesouros e móveis que queriam queimar ou deitar ao mar, retirou seus soldados e concedeu-lhes três dias para que pudessem pôr em execução com mais ordem e serenidade o projeto de matança em massa. Durante esses três dias o sangue correu e verificaram-se cenas que ultrapassaram tudo o que o mais cruel inimigo poderia cometer. Ninguém sobreviveu. A história relata bom número de resoluções análogas, tomadas por populações inteiras. Impressionam tanto mais quanto atingem todos sem exceção, e no entanto são menos difíceis de ocorrer com multidões do que com indivíduos isolados, pois o raciocínio que não fariam sozinhos aceitam-no quando coletivo. A febre que nos agita, reunidos, obnubila a razão de cada um em particular. No tempo de Tibério os condenados à morte, quando executados pelo carrasco, perdiam seus bens e eram privados de sepultura. Os que se adiantavam e se matavam a si próprios, eram inumados e podiam, mediante testamento, dispor de suas riquezas. Deseja-se às vezes a morte, na esperança de um bem futuro: o desejo de morrer, disse São Paulo, "para estar com Jesus no outro mundo". E de outra feita: "quem me romperá os laços que aqui me retêm?" Tendo lido o "Fedon", de Platão, Cleômbroto de Ambrácia viu-se presa de tal desejo da vida futura que, sem motivo, se precipitou no mar. Vemos por esses exemplos quanto erramos em atribuir ao desespero certas mortes voluntárias, a que nos induz por vezes uma esperança radiosa e que também são, não raro, consequência de determinações tomadas com calma, maduramente refletidas. Jacques de Chatel, Bispo de Soissons, que acompanhara São Luís em uma de suas expedições de além-mar, vendo que a volta do rei com seu exército era coisa decidida, quando os interesses religiosos que a fizeram empreender não tinham sido ainda atendidos, resolveu apressar sua entrada no Paraíso. Disse adeus aos amigos e sozinho, às vistas de todos, caminhou contra o inimigo, sucumbindo. Em um reino desse continente recém-descoberto, em certos dias de procissão solene o ídolo que adoram é levado em triunfo sobre enorme carro. Durante a procissão numerosas pessoas cortam pedaços de sua carne para oferecê-los em homenagem, enquanto outras, prosternando-se, deixam-se esmagar sob as rodas, a fim de conquistar uma reputação de santidade que as tome veneradas depois da morte. A morte desse bispo comparada a tais sacrifícios demonstra mais grandeza, porém o sentimento religioso parece menor, mascarado em parte pelo entusiasmo na luta. Houve governos que estabeleceram os casos em que a morte voluntária era justificável e oportuna. Em nosso país mesmo, em Marselha, conservava-se outrora à custa do tesouro e sempre à disposição do público um pouco de cicuta para os que quisessem abreviar seu fim. Era necessário que antes o conselho dos seiscentos, que representavam o Senado, aprovasse as razões do suicida. Não era permitido matar-se sem a autorização do magistrado ou sem motivos legais. Esta lei existiu também alhures. Sexto Pompeu, a caminho da Ásia, passava pela ilha de Ceos no Negroponto. Aí, relata um membro de seu séquito, aconteceu que uma senhora da alta sociedade, que advertira seus concidadãos de seu suicídio, explicando-lhes os motivos, solicitou de Pompeu que a honrasse com sua presença. Ele aceitou o convite e depois de ter longamente e em vão tentado demovê-la, empregando todos os recursos de sua maravilhosa eloquência, consentiu em que ela agisse como decidira. Tinha ela mais de noventa anos e se achava em pleno gozo de suas faculdades físicas e mentais. Estendida sobre um leito magnificamente ornamentado, apoiando-se sobre o cotovelo, assim falou: Ó Sexto Pompeu, que os deuses, antes os que deixo nesta terra do que os que vou encontrar, te protejam por não teres desdenhado ser meu conselheiro dos últimos instantes e testemunha de minha morte. Sempre fui favorecida pela fortuna, mas com receio de que me abandone em se prolongando demasiado a minha vida, renuncio em circunstâncias felizes aos poucos dias que ainda poderia viver; e parto, deixando duas filhas e uma legião de sobrinhos!" Isso dito, deu alguns conselhos aos seus, exortando-os a viverem unidos e em paz, procedeu à partilha de seus bens, recomendou seus deuses domésticos à sua filha mais velha, e, segurando com mão firme a taça, solicitou de Mercúrio que a conduzisse a algum lugar agradável do outro mundo e, de uma só vez, engoliu o veneno. A partir de então, não cessou de se entreter com os presentes acerca da marcha da intoxicação, indicando as diferentes partes do corpo que se iam finando até o momento em que, sentindo os efeitos nas entranhas e no coração, chamou suas filhas para os derradeiros ritos e a fim de lhe cerrarem os olhos. Conta Plínio que em certa nação hiperbórea o clima é tão ameno que a vida dos habitantes só termina por vontade própria. Cansados de viver, fartos da existência, ao alcançar uma idade avançada, depois de um bom jantar, arrojam-se ao mar do alto de um rochedo destinado a esse uso. Somente a insuportável dor ou a certeza de uma morte pior do que o suicídio se me afiguram motivos justificáveis para abandonar a vida. CAPÍTULO IV FIQUEM PARA AMANHÃ OS NEGÓCIOS Entre todos os nossos escritores franceses, coloco em primeiro lugar, e com razão, creio, Jacques Amyot. Não somente pela simplicidade e clareza de seu estilo (no que ultrapassa os demais), não apenas pela persistência que precisou ter para levar a cabo tão longo trabalho como a tradução de Plutarco, mas também pelos conhecimentos aprofundados que lhe permitiram, com tamanha felicidade, exprimir um amor tão difícil e conciso, pois digam o que disserem, embora eu nada entenda de grego, vejo sua tradução apresentar um sentido tão adequado e seguro, que sou impelido a concluir que, ou ele lhe apreendeu admiravelmente as ideias ou praticou tão amiudadamente o autor que delas se impregnou - e tão fortemente - que nada lhe acrescenta suscetível de desmenti-lo ou contradizer. E lhe sou grato ainda por ter escolhido, entre muitas, uma obra de tal mérito e atualidade. Nós outros, ignorantes, estaríamos perdidos se esse livro não nos houvesse arrancado do tremedal em que andávamos mergulhados. Graças a ele, ousamos hoje falar e escrever, e até as mulheres podem dar lições aos mestres-escolas: É nosso breviário. Se esse excelente homem ainda vivesse, eu lhe indicaria Xenofonte como igualmente digno de ser traduzido. Seria tarefa mais fácil e mais adequada à sua idade avançada. E depois, parece-me que, apesar da facilidade e da precisão que evidencia nos trechos difíceis, seu estilo é mais pessoal e natural quando não tem pressa e escreve à vontade. Estava naquele trecho em que Plutarco, falando de si mesmo, conta que Rústico, assistindo em Roma a uma de suas conferências, recebeu uma mensagem do imperador e aguardou o fim da palestra para abri-Ia, discrição que valeu a esse personagem a calorosa aprovação da assistência. A anedota é contada a propósito da curiosidade, essa paixão ávida e insaciável de notícias, de novidades, que nos impele a tudo abandonar com indiscrição e impaciência, para nos entretermos com o recém-chegado; e que nos induz a abrir sem mais demora as cartas recebidas, onde quer que estejamos. Plutarco tem razão em louvar a reserva de Rústico; podia ter acrescentado o elogio de sua polidez e cortesia, porquanto assim agiu com o fim de não perturbar o conferencista. Não creio, porém, que lhe devesse elogiar a prudência, pois quando se recebem cartas inesperadas e em particular do imperador, diferir a leitura talvez se torne realmente grave. O defeito contrário é a displicência, a que me inclino por temperamento, e conheci quem a levasse a ponto de guardar no bolso, sem abrir, as cartas que recebera três ou quatro dias antes. Quanto a mim, nunca abri as que me confiaram nem as que o acaso me pôs nas mãos, e perturba-me a consciência deitar sem querer o olhar sobre algum escrito de importância que porventura alguém leia perto de mim. Nunca houve quem se preocupasse menos com as coisas alheias. No tempo de nossos pais, M. de Boutiêres quase perdeu Turim porque, jantando em boa companhia, adiou a leitura de uma advertência que lhe entregaram acerca da traição tramada na cidade sob seu comando. Plutarco afirma que Júlio César se houvera salvo se, a caminho do Senado, no dia em que foi morto pelos conjurados, tivesse lido o relatório que lhe apresentaram. O mesmo autor nos conta que na noite em que se executou o projeto arquitetado por Pelópidas para matar Arquias, tirano de Tebas, e devolver a liberdade à sua pátria, um ateniense homônimo lhe escreveu uma missiva relatando o que se tramava. Árquias recebeu a carta durante a ceia e deixou de abri-la, dizendo estas palavras que se tornaram proverbiais em Atenas: fiquem para amanhã os negócios. A meu ver um homem prudente, por educação, a fim de não cometer uma descortesia para com as pessoas em cuja companhia se encontra, como fez Rústico, ou a fim de não interromper algo importante de que se ocupe no momento, pode adiar para mais tarde o conhecimento de uma notícia que lhe enviam. Mas será indesculpável se não o fizer por interesse ou prazer pessoal, principalmente quando ocupa um cargo público, caso em que lhe cabe até interromper seu repouso e seu sono. Outrora em Roma, havia, à mesa, o lugar dito consular, considerado o mais honroso, e era o de mais fácil acesso ou retirada, o que bem demonstra que, embora à mesa, não se desinteressava o seu ocupante dos demais negócios nem dos acontecimentos que pudessem ocorrer. Mas pode-se ter dito tudo acerca das ações humanas, sempre será difícil traçar uma regra de conduta que obvie às surpresas do acaso, por mais justa que pareça do ponto de vista da razão. CAPÍTULO V DA CONSCIÊNCIA Achando-nos certa vez em viagem durante as nossas guerras civis, meu irmão, Sr. de Ia Brousse, e eu, encontramos um fidalgo de boa aparência. Era do partido contrário mas eu não o sabia, porquanto simulava ser dos nossos. Aí está um dos maiores percalços dessas guerras: as cartas tanto se misturaram que o inimigo não se distingue do amigo de um modo visível, nem pela língua nem pela conduta; condicionam-se a idênticos costumes e leis, têm igual aparência, sendo assim difícil evitar a confusão e a desordem. Isso me levava mesmo ao receio de encontrar os nossos exércitos em um lugar em que eu não fosse conhecido, do que resultaria ter dificuldade em provar minha identidade e expor-me assim aos piores vexames, como me aconteceu de uma feita, quando perdi homens e cavalos e um pajem, morto estupidamente, fidalgo italiano que eu vinha educando cuidadosamente e muito prometia. Nosso companheiro de jornada estava tão apavorado, eu o via tão desnorteado cada vez que deparávamos com alguns grupos de cavaleiros ou que atravessávamos cidades do partido do rei, que acabei por adivinhar que seus temores provinham de uma consciência intranquila. Parecia-lhe que, em sua fisionomia e através das cruzes que trazia ao casaco, se liam seus mais íntimos pensamentos, talo efeito maravilhoso e irresistível da consciência. Obriga-nos a nos denunciarmos, a combater-mo-nos a nós mesmos e, na ausência de outra testemunha, depõe contra nós: "servindo ela própria de carrasco e fustigando-nos com látego invisível". Eis uma anedota que está sempre na boca das crianças: um Sr. Besso, da Peônia, a quem censuravam por ter destruído, sem motivo plausível, um ninho de pardais e matado os filhotes, respondeu que não o fizera sem razão, pois as avezinhas não cessavam de acusá-lo erroneamente do assassínio de seu pai. Esse parricida permanecera até então ignorado, mas as fúrias vingadoras da consciência fizeram que fosse denunciado por quem devia arcar com a punição, isto é, por ele mesmo. Diz Platão que o castigo segue de perto o pecado. Hesíodo assim retifica o aforismo: nasce o castigo no momento mesmo em que nasce o pecado. Quem quer que receie o castigo já o está recebendo. E quem o merece o apreende. A maldade engendra os próprios tormentos: "o mal recai em quem o faz". Assim a vespa, ao picar, perde o ferrão e com este as suas forças, para sempre: deixa a vida no ferimento que provoca. As cantáridas trazem em si o contraveneno de seu veneno. É o que também ocorre com quem se compraz no vício; engendra um desprazer que lhe atormenta a consciência, na vigília como no sono: "numerosos culpados revelam durante o sono ou o delírio da febre, crimes de há muito escondidos". Apolodoro via em sonhos os citas esfolarem-no, jogarem-no dentro de uma marmita, enquanto sua alma murmurava: sou a causa desses suplícios. O mau, diz Epicuro, não tem onde se esconder, porque não tem certeza de estar escondido, pois que sua consciência o denuncia a si próprio: "o primeiro castigo do culpado está em não poder absolver-se a seus próprios olhos". Se a consciência nos inspira temor, dá-nos igualmente segurança e confiança. Posso afirmar que me conduzi em várias circunstâncias difíceis com muito maior decisão em virtude da convicção íntima em que estava da pureza de minhas intenções e de minha vontade de não desistir: "Enche-se a alma de esperança ou temor segundo o testemunho que damos de nós a nós mesmos". E há mil exemplos disso. Contentar-me-ei com três. Estava Cipião certa vez sobgrave acusação contra ele lançada diante do povo romano. Em vez de se desculpar ou procurar enternecer os juízes, disse-lhes: "Não vos cabe, em verdade, julgar uma acusação capital contra quem vos deu o poder de julgar o mundo inteiro". Outra vez, em lugar de se defender contra as imputações de que era alvo por parte de um tribuno do povo, exclamou: "Cidadãos, como resposta, iremos render graças aos deuses pela vitória que me deram contra os cartagineses e cujo aniversário se festeja hoje". Tendo Catão incitado Petílio a pedir-lhe que prestasse contas dos dinheiros postos à sua disposição para administrar a província de Antioquia, Cipião, no Senado, apresentou seu caderno de notas afirmando que receita e despesas aí se inscreviam com fidelidade. E como o instassem para que o depositasse no arquivo, recusou observando que não desejava impor a si mesmo semelhante humilhação; e o rasgou em pedaços. Não penso que alguém com a consciência suja pudesse demonstrar igual confiança em si. Cipião tinha naturalmente um belo caráter e estava habituado à fortuna, escreve Tito Lívio, para se rebaixar à defesa de sua inocência. A tortura é uma invenção perigosa que parece antes pôr à prova a resistência à dor do que a sinceridade. Quem a não pode suportar esconde a verdade tanto quanto quem a suporta; pois por que a dor o levaria a confessar o que é mais do que o que não é? E, inversamente, se quem não cometeu o que lhe recriminam é bastante resistente para suportar a tortura, por que não o há de ser o culpado que em tal circunstância joga a vida? Penso que o emprego desse processo tem sua origem na ação da consciência; dir-se-ia que no culpado em a enfraquecendo ela colabora com a tortura e o induz à confissão, enquanto fortalece a determinação do inocente. Em verdade, trata-se de um meio cheio de incertezas e perigos, pois que não se há de dizer e fazer a fim de obviar a tais suplícios? "A dor obriga o próprio inocente a mentir". Daí ocorre que aquele a quem o juiz inflige a tortura para não se expor a condenar um inocente, na realidade morre inocente e torturado. Mil e muitos acusados sob os efeitos da tortura confessam o que não fizeram. Entre esses incluo Filotas, a julgar pelas circunstâncias do processo que lhe moveu Alexandre e os resultados das torturas a que foi submetido. Como quer que seja e embora se diga que é o que de menos falho encontrou o homem em sua fraqueza, para chegar à verdade, considero a tortura um processo inumano e bem pouco útil. Muitos povos, menos bárbaros a esse respeito do que os gregos e os romanos que assim os chamavam, achavam horrível e cruel torturar alguém cuja culpabilidade não estivesse estabelecida. Que culpa terá ele de nossa ignorância? Não somos injustos em obrigá-lo a suportar coisa pior do que a morte, a fim de não matá-lo sem razão? E não se negará que assim seja, pois vemos muitos inocentes preferirem a morte a submeter-se a tal meio de informação mais penoso do que a execução e que pela sua violência não raro acarreta de antemão a morte. Não me lembro onde deparei com este caso; mas ele mostra bem como encarar esse processo justiceiro: diante de um general de exército muito rigoroso, uma camponesa acusava um soldado de ter roubado a seus filhos o pouco de sopa que lhes restava. Não havia prova. O general, depois de advertir a mulher acerca do alcance do que dizia e de chamar sua atenção para a responsabilidade que assumia, mandou abrir o ventre do soldado a fim de verificar o fundamento da acusação. E aconteceu que a camponesa tinha razão. Condenação instrutiva. CAPÍTULO VI DO EXERCÍCIO É difícil que o raciocínio e o conhecimento, se bem que nossa convicção nos ajude, sejam assaz poderosos para nos levar à ação se, ademais, não nos exercitamos, e pela prática não adaptamos a alma ao que queremos. De outro modo, no próprio momento de agir ela se encontrará em dificuldade. Eis por que os filósofos que visaram à perfeição não se contentaram com aguardar na serenidade do repouso os rigores da sorte. De medo de que ela nos achasse desprevenidos e inexperientes para a luta, foram-lhe ao encontro, enfrentando riscos e tormentos de moto próprio, renunciando uns a suas riquezas, a fim de se acostumarem a uma pobreza voluntária, exercitando-se outros por meio das mais duras tarefas e austeridades de uma vida de privações, em se calejarem. Outros ainda se mutilaram, privando-se de seus órgãos mais preciosos, como os olhos ou as partes genitais, com receio de que, sentindo exagerado prazer em seu uso, tivessem enfraquecido a alma. Mas não nos é possível exercitar-nos a morrer, o que constitui entretanto a mais árdua tarefa que nos cumpre enfrentar. Podemos, pelo hábito e a experiência, fortalecer-nos contra a dor, a vergonha, a indigência etc. No que concerne à morte só a podemos experimentar uma vez, e quando chega não passamos todos nós de aprendizes. Houve outrora homens tão ciosos de bem empregar seu tempo, que procuraram, ao passarem da vida à morte, fixar suas impressões e analisá-las. Mas nenhum deles voltou para nos comunicar o que pôde aprender: "Jamais acorda quem, uma vez, adormeceu no frio repouso da morte". Um nobre romano, Cânio Júlio, dotado de notável coragem e caráter, entre outras provas espantosas de sua resolução, deu a seguinte: condenado à morte por esse monstro que se chamou Calígula, ao ser executado pelo carrasco e ouvindo de um filósofo seu amigo: "Então, Cânio, qual o teu estado de alma neste momento? Em que pensas?", respondeu: "Penso em estar preparado para morrer e em procurar com todas as minhas forças, neste instante tão curto, verificar o que sentirá minha alma, se experimentará algum tremor ao separar-se do corpo, e se eu conseguir algo hei de voltar, em podendo, para dizê-lo a meus amigos". Eis um filósofo que continuou filósofo até durante a morte. Quanta coragem, quanta firmeza de ânimo em desejar que ela servisse de lição, em conservar uma tal liberdade de espírito, em poder pensar assim noutra coisa em semelhante ocasião! "Que domínio tinha sobre a alma na hora da própria morte”! Parece-me contudo que haja possibilidade de nos familiarizarmos com a morte, de apreciá-la de perto. Podemos tentar a experiência, se não inteira e perfeita, ao menos em condições em que nos seja proveitosa, fortalecendo nossa coragem e dando-nos alguma segurança. Se não podemos alcançá-la, podemos aproximar-nos dela, reconhecê-la. Se não podemos penetrar no edifício, podemos palmilhar as avenidas de acesso. Não sem razão, comparam-na ao sono, que mui parecidos são. Com que facilidade adormecemos, perdemos a noção da luz e de nós mesmos, quase sem nos apercebermos. Talvez esse sono, que nos priva momentaneamente de movimento e sensação, se nos afigurasse inútil e inexplicável se não víssemos nisso uma lição da natureza, a de que estamos destinados tanto a morrer como a viver. Para que nos acostumemos e não tenhamos receio, ela nos mostra no decurso da vida o estado que nos reserva para quando deixarmos a existência. Quem, em consequência de algum acidente, desmaiou e perdeu por completo o conhecimento das coisas, esteve, imagino, bem perto da morte natural. Quanto ao instante preciso da passagem da vida à morte não há como temer que comporte esforço ou dor. Pois nada podemos sentir sem a presença do tempo. Nossas sensações precisam de tempo para serem sentidas e o tempo é demasiado curto no momento da morte. E a aproximação da morte que cabe temer, e essa aproximação é passível de estudo. Muitas coisas parecem maiores quando pensamos nelas do que quando com elas deparamos. Passei boa parte de minha existência em perfeita saúde, não somente ignorando a doença, mas ainda cheio de vida e atividade. Esse estado de verdor e alegria fazia-me temer a tal ponto a enfermidade que, ao experimentá-la, a achei menos horrível do que imaginara. Eis um fato que se repete cotidianamente comigo: se me encontro comodamente aquecido no meu quarto durante uma noite de tempestade, tremo pelos outros e me apiado deles. No entanto, se me acho eu próprio na tempestade não procuro sequer um refúgio. Estar constantemente fechado dentro de um quarto, parecia-me insuportável. Uma doença que muito me aborreceu, mudou-me e me enfraqueceu a ponto de me obrigar a guardar o leito durante cinco semanas. Verifiquei então que, quando estava com saúde, os doentes me pareciam muito mais dignos de pena do que eu em idêntica circunstância e que minha apreensão dobrava quase a desgraça real. Espero que ocorra o mesmo quanto à morte e que ela não valha em verdade todo o esforço que faço para me preparar a recebê-la dignamente, nem todos os recursos que tento juntar a fim de resistir a seu ataque. Em todo caso não convém negligenciar nenhum de seus aspectos. Quando da terceira, ou segunda (não me lembro exatamente) guerra de religião, estando um dia a passear a uma légua de minha casa situada no centro do teatro das guerras civis e julgando-me em segurança, pensei não me ser necessário mais do que um cavalo ágil mas pouco resistente. Ao voltar, uma circunstância inesperada fez que me visse forçado a exigir dele mais do que podia dar. Procurando auxiliar-me, um de meus homens, grande e forte e que cavalgava um atlético rocim duro de boca, quis mostrar sua habilidade e chegar antes de seus companheiros, de modo que se precipitou a todo galope diante de mim e caiu com seu peso colossal sobre o homenzinho e o cavalinho que éramos nós, jogando-nos ambos de pernas para o ar. Assim ficou o cavalo atordoado e eu sem sentidos, a doze passos, de costas para o chão, todo machucado e esfolado, a espada ao longe, a cinta em pedaços. Foi, até agora, o único desfalecimento que tive. Os que me acompanhavam, depois de tudo fazer para que voltasse a mim, acreditaram-me morto. Tomando-me então nos braços, transportaram-me com muita dificuldade durante cerca de meia légua francesa até a minha casa. No caminho, após duas horas durante as quais estive como morto, comecei a fazer alguns movimentos e a respirar. Tamanha quantidade de sangue se expandira em meu estômago que a fim de aliviá-lo teve a natureza de provocar uma reação. Puseram-me em pé e eu expeli em grandes golfadas um balde cheio de sangue puro. Várias vezes durante o caminho o fato ocorreu. Graças a isso comecei a recuperar minhas forças, mas aos poucos, e tanto tempo foi preciso que a princípio o que eu sentia participava mais da morte que da vida: "porque ainda incerta de sua volta, a alma atônita não pode afirmar-se". Essa recordação, que se gravou fundamente em meu espírito, de um acidente em que a morte me apareceu por assim dizer com o aspecto que deve realmente ter, causando-me a impressão que devemos sentir, essa recordação reconcilia-me até certo ponto com ela. Quando comecei a ver de novo, minha vista estava tão turva, tão fraca, extinta, que não discerni a princípio senão um pouco de luz: "como alguém que, meio acordado meio dormindo, ora abre os olhos e ora os fecha". Quanto às funções do espírito, voltavam à vida juntamente com o corpo. Vi-me ensanguentado, com o gibão empapado de sangue perdido. O meu primeiro pensamento foi o de haver recebido um tiro de arcabuz na cabeça, pois ouviam-se tiros de quando em quando nos arredores. Parecia-me que a vida estava suspensa a meus lábios e eu fechava os olhos a fim de ajudá-la a desprender-se de mim, comprazendo-me nesse estado de langor e também em me sentir esvair. Em meu espírito ocorria a sensação vaga da volta da faculdade de pensar, mal definida ainda, mais suspeitada do que percebida, sensação terna e doce como tudo o que experimentava, não somente isenta de desprazer mas ainda lembrando a quietude que se apodera de nós ao sermos dominados pelo sono. Creio que é nesse estado que se devem sentir os que na agonia desfalecem de fraqueza. E julgo que deles nos apiedamos sem razão, pois imaginamos erroneamente que sua agitação provém de dores excessivas ou de pensamentos penosos. Sempre fui de opinião, contrariamente a outros, inclusive La Boétie, que os vemos assim perturbados e acabrunhados nos seus últimos instantes, seja em consequência de longa enfermidade, seja de ferimentos, de apoplexia ou epilepsia. "Muitas vezes um infeliz tomado de mal súbito cai repentinamente diante de nós como que fulminado: a boca espuma, o peito geme, os membros tremem; fora de si, retesa-se, torce-se ofegante, exaure-se em toda espécie de movimentos convulsivos”. Fui sempre de opinião que os que vemos engrolar as palavras suspirando fundamente, sem que nada indique que ainda estão conscientes nem que estejam privados de qualquer movimento, já tinham então a alma e o corpo adormecidos e como que amortalhados: "vivem sem ter consciência de que estão vivos". E não creio que, dada a fraqueza dos membros, o embotamento dos sentidos, possa o nosso espírito conservar força suficiente para sentir o que quer que seja. Portanto, esses moribundos não estão sujeitos a pensamentos que os atormentem e lhes revelem a triste condição em que se acham. Por conseguinte não nos devem inspirar piedade. Quanto a mim, não sei de nada tão insuportável e horrível como ter uma alma aflita sem poder expressá-lo: assim os que são enviados ao suplício após se lhes cortar a língua (se bem que nesse gênero de morte uma atitude silenciosa e uma fisionomia severa e grave sejam o que melhor convém), e do mesmo modo os que caem nas mãos dos soldados transformados em carrascos e que são torturados cruelmente a fim de pagarem um resgate impossível, e que enquanto não o fazem permanecem presos em condições e locais ignóbeis, sem possibilidade de tornarem conhecidos os seus pensamentos. Os poetas inventaram alguns deuses favoráveis à liberação dos que arrastam desse modo uma morte lenta: "executo as ordens que recebi", diz Íris, e liberto o teu corpo cortando o fio de cabelo louro consagrado ao deus dos infernos. As palavras, as respostas breves e sem nexo que lhes arrancam em lhes gritando aos ouvidos, os movimentos que fazem e parecem ter alguma relação com o que se lhes pergunta, não são provas de que vivem. Acontece o que se verifica quando adormecemos e que o sono ainda indeciso não se assenhoreou completamente de nós: temos, como em sonho, alguma ideia do que ocorre em torno de nós, acompanhamos o que se diz, mas o percebemos apenas vagamente e de maneira imperfeita que mal toca o espírito. Assim as nossas respostas participam mais do acaso que da lógica. Agora que tive uma experiência, não duvido da exatidão de minhas ideias. Antes de mais nada, embora desmaiado trabalhava com as unhas (pois estava desarmado) para abrir o meu gibão e no entanto não tinha a impressão de haver sido ferido. Mas temos muitas vezes movimentos inconscientes: "os dedos agonizantes contraem-se e se cerram sobre a lâmina que lhes escapa". Quando caímos, estendemos os braços, em um impulso natural de nossos membros que se prestam mútuos serviços e se movimentam com autonomia: "dizem que, nos combates, os carros armados de foices decepam com tamanha rapidez os membros dos combatentes que os vemos ainda palpitantes no chão, antes que a dor de tão súbito golpe lhes atinja a alma". Estava com o estômago oprimido por esse sangue coalhado. Minhas mãos o procuravam espontaneamente como fazem, sem intervenção de nossa vontade, quando sentimos coceiras. Há animais - e isso também se vê entre os homens - cujos músculos se contraem e mexem mesmo depois da morte. E todos sabem que certas partes do nosso corpo se agitam, se retesam e se relaxam sem que haja qualquer intenção de nossa parte. Ora, esses sofrimentos que mal nos roçam não nos pertencem; para que fossem nossos seria necessário que nos tomassem por inteiro. Assim, as dores que enquanto dormimos nos tomam o pé ou a mão, não nos pertencem. Quando me acerquei de casa, onde já chegara a notícia do acidente e minha família me acolhia com os gritos comuns a tais circunstâncias, não somente respondi com algumas palavras, mas ainda, ao que soube depois, dei ordens também para que arranjassem um cavalo para minha mulher que eu via em dificuldades no caminho íngreme e penoso. Dir-se-á que semelhante preocupação era prova de ter eu recuperado a razão, mas assim não era. Eram rasgos de lucidez, confusos, provocados pelo que percebiam meus olhos e meus ouvidos e que não provinham de dentro de mim. Eu não sabia nem de onde vinha nem para onde ia; não podia tampouco entender o que me perguntavam, nem refletir; o pouco que então me era possível fazer ou dizer decorria de meus sentidos agindo maquinalmente; o espírito não participava disso. Este se encontrava como em um sonho, ligeiramente impulsionado pela débil impressão dos sentidos. Contudo a sensação que tinha era de calma e de doçura; não pensava em mim nem em ninguém, estava em um estado de languidez e de fraqueza extremas, sem sentir dor alguma. Vi a minha casa mas não a reconheci. Quando me deitaram, o repouso causou-me infinito bem-estar. Fora terrivelmente sacudido e abalado pelos pobres diabos que se haviam revezado no transporte de meu corpo durante a longa e extenuante caminhada. Deram-me inúmeros remédios que eu recusei, certo de que estava mortalmente ferido na cabeça. Teria sido, sem mentira, uma morte muito agradável, impedindo-me o enfraquecimento da razão de perceber o do corpo. Deixei-me ir ao léu, tão suavemente, de maneira tão indolente e fácil que nada sei de menos penoso. Quando principiei a viver de novo e a recuperar minhas forças: quando meus sentidos enfim recobraram algum vigor, o que ocorreu duas ou três horas depois, senti-me tomado de dores por todo o corpo, com os membros moídos pela queda. Sofri tanto durante as noites que se seguiram, que pensei morrer novamente mas de morte extremamente dolorosa então, e até hoje me ressinto do choque causado pelo acidente. E de se observar que a última coisa que pude recordar foi a maneira por que se verificou o caso. Tive que fazer com que me repetissem várias vezes para onde eu ia, de onde vinha, a hora da ocorrência, antes de o conceber nitidamente. Quanto à queda mesma, escondiam-me os pormenores dela, inventando outros, por comiseração para com o culpado. No dia seguinte, em me voltando aos poucos a memória, quando revi no estado em que estava ao ver o cavalo jogar-se contra mim (pois eu o percebera no momento em que ia cair-me em cima e me considerava morto, mas o pensamento fora tão rápido que não tivera medo), essa reminiscência foi como um clarão galvanizante e pareceu-me que voltava do outro mundo. Essa narrativa de acontecimento de tão pequena importância seria prova de vaidade, não fosse a lição que dele tirei, pois para se acomodar ao pensamento da morte creio ser preciso ter-se aproximado dela. Ora, como diz Plínio, cada qual é para si mesmo excelente objeto de estudo, desde que tenha qualidades suficientes para se observar. O que exponho aqui não é doutrina, mas experiência; não é lição dada por outrem e sim por mim a mim mesmo; por conseguinte não me devem censurar se a comunico, pois o que me é útil pode ocasionalmente ser útil aos outros. Ademais não prejudico ninguém e, se é tolice, somente em mim repercutirá; e em morrendo comigo não terá consequências. Não conhecemos senão dois ou três filósofos antigos que assim tenham agido, e como os conhecemos apenas de nome ignoramos se o fizeram do mesmo modo. Desde então ninguém os imitou. É mais difícil do que parece acompanhar o espírito na sua marcha insegura, penetrar-lhe as profundezas opacas, selecionar e fixar tantos incidentes miúdos e agitações diversas. E uma ocupação inédita e excepcional, mas das mais recomendáveis, que nos afasta das ocupações habituais a que se entrega em geral a gente. Há vários anos, somente a mim mesmo tenho como objetivo de meus pensamentos, somente a mim é que observo e estudo; se atento para outra coisa logo a aplico a mim ou a assimilo. E não creio seguir caminho errado se, como fazem com as outras ciências incontestavelmente menos úteis, comunico a outrem minhas experiências, embora me considere pouco satisfeito com meus progressos. Não há descrição mais difícil do que a de si próprio, nem mais aproveitável, mas é necessário enfeitar-se, arranjar-se para se apresentar em público. Assim, enfeito-me sem descontinuar, por isso que me descrevo constantemente. Costuma-se condenar quem fala de si; o uso o proíbe de modo absoluto por causa da tendência para nos vangloriarmos, que sempre parece apontar-nos testemunhos que damos de nós mesmos. É como se, para não assoar uma criança, lhe arrancássemos o nariz: "não raro o medo de um mal conduz a outro maior". Um tal remédio se me afigura mais prejudicial do que eficaz. Ainda que fosse verdadeiro, que houvesse necessariamente presunção em entreter o público acerca de si mesmo, não poderia, querendo manter-me fiel à regra que me impus, passar em silêncio o que pode revelar em mim essa disposição doentia, desde que existo. E um erro que não devo esconder, pois, não somente o cometo, como escolhi por profissão cometê-lo. Entretanto, para dizer o que penso, julgo errado esse costume, pois é como se condenassem o vinho porque há quem se embriague. Só se abusa das coisas boas e não falar de si é uma regra que condena apenas o abuso em que podemos cair. São tolices que não embaraçaram nem os santos nem os filósofos; a mim tampouco me apoquentam, embora esteja tão longe de uns como de outros. Se não proclamam que falarão de si, não deixam contudo de o fazer quando se apresenta uma oportunidade. De que fala Sócrates mais abundantemente que de si próprio? Para que encaminha suas conversações com seus discípulos, senão para as suas pessoas? E nunca para uma lição dos livros mas para os movimentos da alma e do ser. Nós, católicos, nos confessamos a Deus e ao nosso confessor, e os protestantes fazem-no em público. Sim, dirão, mas confessamos unicamente os nossos pecados. Ora, confessando-os, tudo dizemos, pois até em nossa virtude podemos falhar e ter motivos para arrependimento. Meu ofício, minha arte, é viver; quem me censura falar disso segundo meu sentimento, a experiência que tenho e o emprego que dou, proíba a um arquiteto referir-se às suas próprias construções, obrigando-o a comentá-las de acordo com as de outrem. Se é vaidade falar das coisas que nos valorizam, por que Cícero não elogia a eloquência de Hortênsio e este a de Cícero? Talvez desejem, para me julgar, que eu apresente atos e não palavras. Mas são sobretudo os pensamentos que me agitam e, em sua forma mal definida, não podem traduzir-se por atos, que procuro reproduzir. Já me custa muito traduzi-los pela voz, que é coisa aérea e sem consistência. Os homens mais sábios e prudentes, e os mais devotos, passaram a vida evitando qualquer ato exterior. Tais atos emanam mais da sorte que de mim; evidenciam o seu papel e não o meu, a não ser de maneira conjetural e incerta; são amostras de uma parte do indivíduo e não de sua totalidade. Eu me mostro por inteiro, como uma pena anatômica, cujas veias, músculos, tendões, divisamos em seus lugares ao primeiro golpe de vista, ao passo que a tosse indica apenas o que ocorre em certo ponto de nosso ser, a palidez e a pulsação o que se verifica em outro ponto, e tudo isso de modo duvidoso. Não são apenas meus gestos que escrevo, sou eu mesmo, é a minha essência. Devemos ser prudentes quando nos observamos e com a mesma consciência nos apreciar quanto ao bem e quanto ao mal. Se me acreditasse bom e avisado, ainda que mais ou menos, proclamá-lo-ia em altos brados. Colocarmo-nos abaixo do que realmente somos, considero-o torpeza e não modéstia; diminuir-se é covardia e pusilanimidade, segundo Aristóteles. Não há virtude que acompanhe a falsidade e a verdade jamais será objeto de terror. Dizer mais do que somos, nem sempre é presunção: é por vezes ingenuidade; comprazer-nos em ultrapassar a medida é cair no indiscreto amor a nós mesmos, o que a meu ver constitui o fundamento desse vício. O único remédio consiste em fazer exatamente o contrário do que nos ordenam os que nos proíbem falar de nós mesmos e portanto pensar em nós mesmos. O orgulho está no pensamento, bem pequena é a participação da língua. Preocupar-se consigo parece aos outros admirar-se. Consideram que observar e sondar a alma é amá-la exageradamente. Mas este excesso só se verifica naqueles que se analisam superficialmente, nos que se estudam após seus negócios, nos que denominam delírio e ociosidade a expressão das sensações próprias, nos que acham que trabalhar em prol do desenvolvimento cultural é construir castelos na Espanha, nos que são estrangeiros e indiferentes a si próprios. Quem se embriaga com sua ciência ao olhar para baixo, erga os olhos para cima e contemple os séculos passados. Baixará o tom vendo milhares de espíritos aos pés dos quais não poderia elevar-se. Se se sente envaidecido com a própria valentia, pense no que realizaram Cipião, Epaminondas e tantos exércitos e povos! De nenhuma circunstância particular se orgulhará quem tenha sempre na memória a debilidade, a imperfeição e a miséria inerentes à natureza humana. Somente Sócrates pôs em prática o preceito que recebera de Apolo: conhece-te a ti mesmo. O que o levou ao desprezo por si próprio e também a ser julgado pela posteridade digno do epíteto de sábio. Quem assim se conhecer, ouse tornar-se conhecido dos outros. CAPÍTULO VII DAS RECOMPENSAS HONORÍFICAS Observam os historiadores do Imperador Augusto que quando se tratava de serviços militares, tinha ele como norma ser exageradamente pródigo em presentes diversos para com quem os merecia, enquanto era muito mais parcimonioso em matéria de recompensas puramente honoríficas. Talvez por lhe ter o seu tio prodigalizado todas as recompensas militares antes mesmo que conhecesse a guerra. É uma bela invenção que perdura na maior parte dos países, essa de se terem criado, a fim de honrar e recompensar a virtude, certas distinções visando à satisfação da vaidade e sem valor em si; tais como coroas de louros, de carvalho, de murta, vestimentas de formas particulares, privilégios de circular de carro nas cidades ou à noite com tochas, lugar reservado nas cerimônias públicas, sinais específicos nos brasões, e coisas semelhantes, variáveis segundo o país. Entre nós e entre certos povos vizinhos existem ordens de cavalaria que não têm outro objetivo. Ideia útil e boa, essa de recompensar o mérito de reduzido número de homens de valor excepcional, contentá-los e satisfazê-los com prêmios que não pesam no tesouro público e nada custam ao príncipe. E prova a experiência que as pessoas de qualidade sempre se mostraram mais desejosas dessas recompensas que das que lhes dão proveitos pecuniários. O que explica e realça o amor que lhes dedicam. Se a um prêmio que deve ser puramente honorífico atribuem vantagens particulares, ou remuneração importante, essa mistura em vez de aumentar o apreço em que o têm, o diminui e o envilece. A Ordem de São Miguel, que foi tão ambicionada durante algum tempo entre nós, tinha como maior vantagem a de não conferir nenhuma. Por isso, outrora, não havia cargo ou situação a que mais aspirasse a nobreza; nada outorgava maior respeito e consideração, aceitando a virtude de preferência uma recompensa que constitui seu apanágio exclusivo por ser mais gloriosa do que útil. Quaisquer outras recompensas são com efeito menos honrosas, tanto mais quanto servem para tudo. Com dinheiro remuneram-se os serviços de um lacaio, a diligência de um estafeta, o talento de um dançarino ou de um cavaleiro, ou de um orador. Todos os serviços que nos prestam, mesmo os mais vis, mesmo os vícios, assim se pagam: adulação, traição, luxúria. Não é pois de espantar que a virtude não aceite de bom grado essa espécie de moeda corrente e opte pela outra, a que não mancha o caráter nobre e generoso que lhe é peculiar. Augusto tinha razão no poupá-la, tanto mais quanto a honra é um privilégio cuja característica essencial está na raridade, a qual é também inerente à virtude: "para quem não enxerga os maus não existem os bons". Não se distingue um homem que se ocupa da educação de seus filhos; não é um título de recomendação, por louvável que seja o ato, pois é coisa corriqueira. Distingue-se uma árvore grande em uma floresta em que todas são iguais? Não creio que jamais um cidadão de Esparta se haja vangloriado de sua valentia, virtude praticada por todos. Nem de sua obediência às leis e de seu desprezo pelas riquezas. Não cabe recompensa para a virtude, por grande que seja, quando ela participa dos costumes. E não creio mesmo que a consideraríamos grande se fosse comum. Assim, não tendo as recompensas honoríficas significação real, senão porque são conferidas a um pequeno número de pessoas, o meio mais fácil de destruí-las está em as conceder profusamente. Ainda que houvesse hoje maior número de pessoas merecedoras dessa ordem - e reconheço que isso possa ocorrer porquanto nenhuma virtude tende a expandir-se mais do que a coragem militar - não é razão suficiente para que, em a multiplicando, a desacreditem. Além da valentia que aqui qualifico como virtude, empregando este vocábulo em sua acepção corrente, existe a virtude propriamente dita, que constitui a perfeição e é a única que reconhecem os filósofos. De natureza mais elevada do que a valentia, ao contrário desta estende-se a tudo. E consiste nessa força de caráter e nessa firmeza de ânimo que tornam a alma indiferente a todas as ocorrências felizes ou infelizes; igual, uniforme, constante é ela, e dela só minimamente participa a valentia. Nossos costumes, nossas tradições, os exemplos, fazem que a valentia nos seja familiar e acessível e a tornam bastante comum como se pode ver em nossas guerras civis. Se alguém pudesse, nesta hora, conseguir a paz e dirigir os esforços de todos para um mesmo objetivo, veríamos reflorescer com ela nosso renome militar. É certo que em outras épocas a atribuição dessa ordem não visava apenas a virtude da valentia; exigia-se mais e ela nunca foi conferida a um soldado unicamente por esse motivo. Outorgavam-na aos chefes que se tivessem particularmente distinguido. Saber obedecer não justificava então tão honrosa distinção. Eram necessários também conhecimentos militares evidentes, abarcando a maior parte e a mais importante das disciplinas da carreira militar: "pois os talentos do soldado e do general não são os mesmos". Ademais era imprescindível ser de uma condição social digna de tão alta recompensa. Como quer que seja, ainda que maior número de indivíduos a merecessem não se devia ter sido tão liberal. Melhor fora não a conferir a todos os que a mereciam que a desacreditar definitivamente, como aconteceu em virtude do abuso com que a distribuíram. Nenhum homem de bem há de querer ostentar o que tem em comum com tantos outros. E em nossos dias os que menos mereceram essa ordem honorífica são os que mais afetam desdenha-la, a fim de se colocar à altura dos que justamente a receberam e aos quais a liberalidade dos que a conferem prejudica. Depois de ter suprimido essa recompensa, criar outra na esperança de vê-la de imediato apreciada, é empresa arriscada nestes tempos perturbados em que vivemos, e é de imaginar que a nova ordem esbarre desde o início nas dificuldades que acarretaram a desmoralização da primeira. Para que se imponha, devem as condições em que será atribuída ser muito severas e rigorosamente observadas. Ora, neste momento confuso não parece possível um freio bem ajustado. Sem contar que antes de lhe conceder algum crédito será preciso esquecer a precedente e o desprezo em que caiu. Poderia acrescentar aqui algumas considerações acerca da valentia e da diferença entre essa virtude e as demais. Mas é assunto de que Plutarco tratou mais de uma vez e não me caberia senão repeti-lo. É de se notar entretanto que entre nós dá-se à valentia o primeiro lugar como o testemunha seu nome, o qual vem de valor; e quando dizemos de um homem "que tem muito valor" ou que é um homem de bem, isso significa na linguagem da Corte e da nobreza que é um homem valente. Assim o entendiam igualmente os romanos. Entre eles a palavra virtude na sua acepção mais ampla queria dizer força. Em França somente o serviço militar concede título de nobreza. É condição essencial e exclusiva. É provável que essa virtude que primeiro assinalou a superioridade de um homem sobre o outro fosse a princípio a que mais impressionou. Através dela os mais fortes e corajosos dominaram os mais fracos e assim granjearam reputação e situação especial, o que lhe valeu o lugar tão elevado e honroso que ocupa em nossa língua. Pode ter acontecido também que nossos antepassados, de temperamento belicoso, tenham dado preeminência a essa virtude que lhes era familiar, designando-a por isso por um vocábulo à altura da estima que por ela nutriam. E um sentimento análogo ao que, na nossa paixão pela castidade da mulher, faz que ao dizermos uma mulher boa, uma mulher de bem, honrada ou virtuosa queiramos apenas referir-nos a uma mulher casta, como se a fim de obrigá-la a ser casta pouca ou nenhuma importância déssemos às outras qualidades e lhe perdoássemos quaisquer faltas contanto que continue pura. CAPÍTULO VIII DA AFEIÇÃO DOS PAIS PELOS FILHOS Senhora, se a originalidade e a novidade que em geral valorizam as coisas não me salvarem, nunca sairei com honra desta tola empresa. Mas ela é tão fantástica e se apresenta sob uma forma tão diferente da comum, que talvez por isso mesmo seja aceita. Uma melancólica disposição de espírito, inimiga de meu temperamento natural, mas provoca da pelas tristezas da solidão em que vivo sumido há alguns anos, engendrou em mim a ideia de escrever. Achando-me inteiramente desprovido de qualquer assunto específico, tomei a mim mesmo como objeto de análise e discussão. Concebido nessa ordem de ideias, extravagante e fora de todas as regras convencionais, meu livro tornou-se o único do mundo no gênero. À parte esse aspecto estranho, não merece ele atrair a atenção, pois a tão magro e insosso tema não daria relevo o melhor artesão da terra. E, senhora, em sendo minha intenção pintar-me com a possível exatidão, omitiria um fato importante se calasse a homenagem que sempre prestei a vossos méritos. Essa homenagem eu a quis confirmar de maneira especial na dedicatória deste capítulo, tanto mais quanto, entre as vossas excelsas qualidades, ocupa o primeiro lugar a afeição que dedicais a vossos filhos. Quem souber da idade em que o Sr. d'Estissac vos deixou viúva, dos grandes e honrosos partidos que se vos ofereceram, como grande dama de França que sois, da constância e da resolução com que durante muitos anos e em meio a dificuldades inúmeras administrastes os bens e negócios de vossos filhos percorrendo sem cessar o país, bens e negócios que ainda agora vos absorvem, dos felizes resultados que alcançastes graças à vossa prudência e que alguns atribuirão à vossa sorte, quem souber disso tudo dirá comigo por certo que não há entre nós nestes tempos mais admirável exemplo de afeição materna. Louvado seja Deus que consentiu fosse essa afeição tão bem empregada. As brilhantes esperanças que dá de si vosso filho são a garantia de que na idade certa tereis dele a gratidão e a obediência de um excelente menino. Por ora não pode ainda compreender os esclarecidos e incessantes cuidados que lhe prodigalizais. Espero que estas linhas se por acaso lhe caírem sob os olhos, quando minha boca se houver cerrado e minha palavra calado, sejam o testemunho desta verdade, a qual lhe será melhor comprovada pelos preciosos resultados que, se aprouver a Deus, terá então alcançado. Não há fidalgo em França que mais deva à sua mãe e ele não poderá mais tarde dar melhor prova de seu bom coração e de sua virtude senão reconhecendo o que fizestes. Se alguma lei natural existe, isto é, algum instinto que se manifeste sempre em todos, bichos e gente (embora haja quem diga o contrário), é, a meu ver, a da afeição que quem engendra dedica ao engendrado, sentimento esse que vem logo após o cuidado que cada qual tem com sua conservação e com evitar o que lhe pode ser nocivo. A própria natureza o parece ter desejado, a fim de que as diferentes peças da máquina por ela criada se desenvolvam e progridam. Daí não ser de se estranhar que a afeição da criança pelos pais se revele menor. A isso se acrescenta a afirmação de Aristóteles de que quem faz bem a outrem ama-o mais do que é por ele amado; que aquele a quem devem ama mais a seu devedor do que este ao seu protetor. Todo operário aprecia mais a obra que criou do que por ela seria apreciado se ela fosse capaz de ter sentimento. O que temos de mais caro é a vida; esta consiste em movimento e ação. Daí certa compensação geral. Quem dá cumpre um ato belo e honesto; quem recebe apenas faz obra útil a si próprio. Ora, o útil agrada menos do que o honesto. O honesto é estável e permanente e proporciona a seu autor uma recompensa que se perpetua, enquanto o útil se perde e a recordação que fica é menos agradável e doce. As coisas boas nos são tanto mais caras quanto mais nos custam. E dar é mais precioso do que receber. Posto que aprouve a Deus dotar-nos de alguma capacidade de raciocínio a fim de que não nos assemelhássemos aos animais, sujeitos às leis comuns, e nos foi permitido aplicá-las judiciosamente de acordo com o nosso arbítrio, devemos atentar para os desígnios da natureza, sem contudo nos escravizarmos a ela, pois somente a razão deve regular as nossas inclinações. Quanto a mim, não sinto nenhuma simpatia por essas inclinações que surdem em nós independentemente da nossa razão. Por exemplo, a respeito do que estou comentando, não posso conceber que se beijem as crianças recém-nascidas ainda sem forma definida, sem sentimento nem expressão que as tornem dignas de amor. Por isso mesmo foi com desagrado que as tive educadas ao meu lado. Uma afeição sincera e justificável deveria nascer do conhecimento que nos dão de si e com esse conhecimento crescer, a fim de que então, se o merecerem, e desenvolvendo-se de par com o bom senso essa disposição para as amar, cheguemos a uma afeição realmente paternal. Se não forem dignos desta, nós o perceberemos dando sempre ouvido à razão, apesar das sugestões em contrário da natureza. Amiúde é o inverso que ocorre. Em geral sentimo-nos mais comovidos com os trejeitos, os folguedos e as bobagens das crianças do que mais tarde com seus atos conscientes, e é como se delas gostássemos à maneira de símios e não de homens. Há quem as encha então de brinquedos e se neguem, quando já grandes, a efetuar a menor despesa em seu benefício. Dir-se-ia mesmo que o ciúme de as ver em boas condições na sociedade, na hora em que já nos cabe abandoná-la, toma-nos mais parcimoniosos e avarentos; como se temêssemos tê-las aos nossos calcanhares a nos empurrarem para fora. Isso em verdade não nos deveria comover tanto, ou então não deveríamos pensar em ter filhos, pois está na ordem das coisas não poderem eles existir, nem viver, senão a expensas de nossa própria existência. Acho cruel e injusto não repartirmos com nossos filhos o gozo de nossos bens, não os associarmos aos negócios domésticos, em se tornando capazes, nem nada sacrificarmos das nossas comodidades para prover as deles quando para tanto é que os pomos no mundo. Não é justo ver um ancião alquebrado, semimorto, gozar sozinho em um canto do lar os bens que dariam para o bem-estar de vários filhos, deixando-os perder-se em seus melhores anos de vida sem que tenham a oportunidade de entrar para o serviço público e de aprender a conhecer os homens. Forçando-os ao desespero, levam-nos a tomar qualquer caminho, por pior que seja, a fim de se sustentarem; e conheci muitos, de boa família, que se habituaram ao roubo, a ponto de não mais o abandonarem, mesmo sendo severamente punidos. Conheço um, de excelente aparência, a quem, a pedido do irmão, mui honesto e valente fidalgo, interroguei a respeito. Confessou-me francamente que fora levado a isso pela avareza de seu pai e já estava tão habituado a essa vida que não a podia mais deixar. Acabava de ser surpreendido roubando as joias de uma senhora a cujo despertar assistira com outras pessoas. Isso me traz à mente o que me contaram de outro fidalgo, tão condicionado a esse belo ofício que exercera na mocidade que, entrando na posse de seus bens e decidido a renunciar à paixão do roubo, não o conseguia entretanto e se porventura passava por algum armazém em que via algo desejável o roubava, mandando pagá-lo depois. E vi outros muitos que por impulso e hábito roubavam objetos das pessoas de sua sociedade com a intenção de os devolver mais tarde. Sou gascão e no entanto é esse um dos vícios que menos compreendo, e o detesto mais ainda por temperamento do que por razão; mesmo em pensamento não sou tentado a tirar o que quer que seja de alguém. Minha terra é a esse respeito um pouco mais desacreditada do que as outras terras de França, bem o sei, e contudo temos visto ultimamente nas mãos da justiça gente de condição elevada de outras províncias, acusada de roubos cometidos em circunstâncias abomináveis. Creio que essa depravação pode ser imputada, até certo ponto, ao vício que assinalei como peculiar aos pais. Poderão responder-me, como o fez certa vez um senhor de bom senso e mui correto, que me disse que, "se economizava, fazia-o apenas a fim de poder continuar a ser honrado e procurado pelos seus, pois tendo-lhe a idade sonegado qualquer outro meio de ação era esse o único que lhe restava para conservar sua autoridade junto à família e para não ser desprezado por todos". Isso talvez se justifique, mas não é somente a velhice que predispõe à avareza; é, principalmente, como observa Aristóteles, a imbecilidade. Eis uma explicação, porém o mal é que convém extirpar. Infeliz será o pai se a afeição (se é que assim se pode chamar) de seus filhos se subordina à necessidade que têm dele. É pela virtude e a capacidade que impomos o respeito, pela bondade e a cordura dos costumes que somos amados. As próprias cinzas de uma matéria preciosa têm valor e está em nossas tradições respeitar e honrar os ossos e os restos das pessoas que se tornaram ilustres. Por mais caduco e decrépito que se mostre na velhice, um personagem cuja vida foi respeitável não será menos venerável, sobretudo para seus filhos cuja alma terá sido formada no sentimento do dever, sob a égide da razão e não da necessidade ou do constrangimento e da autoridade: "engana-se a meu ver quem imagina ter sua autoridade mais solidamente assegurada pela força do que pela afeição". Sou inteiramente contrário a qualquer violência na educação de uma alma jovem que se deseje instruir no culto da honra e da liberdade. O rigor e a opressão têm algo de servil e acho que o que não se pode obter pela razão, a prudência, ou a habilidade, não se obtém jamais pela força. Fui educado assim, dizem-me, desde a minha primeira infância. Só duas vezes me bateram e ainda assim com muito cuidado. Teria agido da mesma forma com meus filhos, mas todos morreram cedo demais. Leonor, a única filha que não tive a infelicidade de perder em semelhantes circunstâncias, chegou à idade de seis anos - e mais - sem que se empregasse para puni-Ia de seus pequenos erros infantis (de que a mãe, na sua indulgência, era até certo ponto culpada), senão palavras, e bem anódinas. Se as esperanças que pus nela viessem a ser desmentidas, a outras razões o poderíamos atribuir sem incriminar o meu sistema de educação que, estou certo disso, é justo e natural. Com um menino teria observado ainda mais fielmente tais princípios, pois os rapazes se destinam menos a obedecer aos outros e são mais livres; gostaria de desenvolver em seu coração a ingenuidade e a franqueza. O único resultado que pude constatar no emprego da vara ou do chicote foi tomar as almas mais covardes e mais obstinadas no mal. Queremos ser amados de nossos filhos? Evitar que sejam tentados a desejar a nossa morte, embora em nenhuma circunstância tal desejo se desculpe ou justifique, pois "nenhum crime tem justificativa”. Demo-lhes uma vida tão razoável quanto possível. Para tanto não deveríamos casar muito jovens, a fim de que nossa idade não se confunda quase com a deles, do que podem decorrer graves inconvenientes. Digo isso tendo principalmente em vista a nobreza que vive na ociosidade e tão somente de suas rendas, pois nas outras classes da sociedade são forçados a trabalhar para viver e o número de filhos constitui uma fonte de rendimento, porque são verdadeiros instrumentos de enriquecimento. Casei com trinta e três anos, mas acho que deveríamos fazê-lo aos trinta e cinco, como sugere Aristóteles. Platão não quer tampouco que casemos antes dos trinta, mas caçoa com razão dos que contratam núpcias após os cinquenta e cinco, declarando que sua progenitura é indigna de viver. Tales fixou melhor ainda os limites da idade. Na mocidade, à sua mãe, que instava para que casasse, respondeu que "ainda não era tempo". Mais tarde, já maduro, objetou "que não era mais tempo". Cada coisa tem sua hora; o que não chega no momento certo deve ser afastado. Os antigos gauleses consideravam muito repreensível tivesse o homem relações com a mulher antes dos vinte anos e recomendavam expressamente aos que queriam seguir a carreira das armas que se conservassem virgens durante longos anos, pois a energia diminui e se altera ao contato da mulher: "ele é agora o marido de uma jovem, e é pai, essa dupla felicidade diminui-lhe a coragem". Muley Hassem, rei da Tunísia, a quem Carlos Quinto devolveu o trono, censurava a memória de Maomé, seu pai, pelo abuso que fizera das mulheres e o considerava pesadão e efeminado, capaz tão somente de fazer filhos. A história grega relata que Jecus de Tarento, Crisson, Ástilo, Diopompo e outros, a fim de se manterem em boa forma para os jogos olímpicos, se privavam de quaisquer relações com as mulheres durante todo o tempo do treinamento. Em certas regiões das Índias espanholas não autorizavam o casamento dos homens antes dos quarenta anos, embora as mulheres pudessem casar aos dez. Um fidalgo de trinta e cinco anos não pode oferecer um lugar na sociedade a seu filho de vinte; o pai é que está na idade de guerrear e frequentar a Corte; precisa de todos os seus recursos e se algo deve ceder não o fará em detrimento de seus interesses. E com razão dirá isso que costumam dizer os pais: não quero despir-me antes de ir dormir. Mas um pai acabrunhado pelos anos e as enfermidades, obrigado a viver afastado de tudo em virtude de sua saúde e da carência de forças está errado, e prejudica aos seus, se conserva sem a usar uma fortuna acima de suas necessidades. Em sendo bem avisado e tendo meios, sem se despojar da própria camisa na hora de dormir, e conservando ainda um bom roupão bem quente, será levado a dar o resto, que só serve para uma representação fora de suas possibilidades, àqueles que, por direito natural, o deverão herdar. E razoável que lhes entregue tais bens, pois que deles não pode gozar. Agir de outro modo é sem dúvida agir mal e obedecer a um sentimento mesquinho. O mais belo gesto de Carlos Quinto foi ter sabido, a exemplo de alguns antigos de seu quilate, reconhecer que a própria razão nos manda despojar-nos das vestimentas que pesam demasiado sobre nossos ombros e deitar-nos quando as pernas fraquejam. Abdicou a glória e o poder, entregando-os ao filho no momento em que viu se enfraquecerem a tenacidade e a força necessárias para dirigir os negócios públicos com a grandeza que alcançara: "Já é tempo de abandonares teu cavalo velho, se não queres vê-lo ofegante, tropeçando ao fim da corrida, e ridicularizado". Esse erro de não saber reconhecer em tempo oportuno o enfraquecimento e a profunda alteração que a idade acarreta às nossas faculdades físicas e morais, e talvez mais ao espírito do que ao corpo, deu por terra com a reputação de quase todos os grandes homens do mundo. Conheci pessoalmente personagens de elevada condição social que souberam conquistar reputação e autoridade em seu bom tempo e que na decadência as perderam; para o brilho de sua fama houvera querido vê-los retirados em suas casas, tranquilamente, livres dos encargos públicos por demais pesados e deveres militares que já não podiam cumprir. Tive outrora grande intimidade com um fidalgo viúvo e muito idoso, mas bastante conservado. Tinha várias filhas em idade de casar e um filho no ponto de ingressar na sociedade. Isso redundava para ele em uma fonte de despesas assaz pesadas e o obrigava a receber muita gente, o que não lhe agradava nada, não só porque contrariava a sua inclinação para a poupança, mas ainda - e em particular - porque em razão da sua idade levava uma vida diferente da nossa. Disse-lhe um dia, o que era ousado de minha parte mas muito dos meus hábitos, que se por causa de seus filhos não podia evitar os aborrecimentos que lhe causávamos fora mais inteligente que entregasse a casa a seu filho e se retirasse em uma de suas propriedades onde ninguém lhe perturbaria o repouso. Assim fez mais tarde e não se arrependeu. Isso não quer dizer que devamos tudo abandonar a nossos filhos sem possibilidade de voltar atrás. Eu lhes deixaria o gozo da casa e dos bens, mas com a condição de revogar essa disposição caso me dessem motivo para tanto. Dar-lhes-ia o usufruto porque me seria cômodo e quanto à direção geral de meus negócios conservaria o que me apetecesse. Sempre pensei que deve ser grande satisfação para um pai, em sua velhice, ter iniciado os filhos na gestão de seus negócios e poder assim, ainda em vida, julgar sua maneira de agir, ajudando-os com os conselhos de sua experiência. Entregando ele próprio nas mãos de seus sucessores, com as tradições do passado, a honra e a direção de sua casa, verifica assim que esperanças pode alimentar acerca de seu destino. Não evitaria sua companhia e gozaria com eles, na medida do possível, das alegrias e festividades. Sem viver com eles, o que não poderia fazer sem os perturbar com o gênio melancólico decorrente de minha idade, e com os incômodos de minhas enfermidades, bem como sem mudar o gênero de vida e regime a que estaria adstrito, gostaria de viver perto deles, em algum recanto da residência que não seria o mais em evidência e sim o mais cômodo. Não faria como o decano de Saint-Hilaire de Poitiers que vi há tempos confinado em tal solidão pela melancolia de que fora contaminado que, quando entrei em seu aposento, havia vinte e dois anos que não saía dele, e no entanto tinha os movimentos livres e fáceis e somente sofria de um defluxo que lhe passara ao estômago. Estava sempre SÓ, fechado no quarto. Uma vez por semana permitia que entrassem para visitá-lo; um criado trazia-lhe a refeição uma vez por dia, mas devia entrar e sair apenas. O resto do tempo passeava no quarto e lia, pois era versado no estudo das letras. Disposto a assim continuar até a morte, faleceu pouco depois. Com boas maneiras procuraria desenvolver em meus filhos uma afeição sincera e impregnada de benevolência para comigo, o que não é difícil conseguir com gente de bons sentimentos. Mas se fossem animais furiosos como nosso século produz aos milhares, trataria de odiá-los e fugir deles. Sou inimigo desse costume que proíbe às crianças chamarem a seus pais, "pai e mãe", e impõe como mais respeitosa uma denominação que não acentua o parentesco, como se a natureza não coadjuvasse nossa autoridade. Damos o nome de pai a Deus Todo-Poderoso e não queremos que nossos filhos o empreguem conosco. Eis um erro que corrigi em casa. É igualmente estultice e injustiça não tratar os nossos filhos, quando em idade conveniente, com certa familiaridade, e desejar manter em relação a eles uma altivez austera e desdenhosa, na esperança de assim os educar no respeito e na obediência. É uma farsa inútil que torna os pais aborrecidos e, o que é pior, ridículos. Tem os filhos por si a mocidade e a força, por conseguinte a aprovação da sociedade. As atitudes altivas e tirânicas de um velho já sem sangue nas veias fazem sorrir; são espantalhos para afugentar os pássaros do jardim. Mas ainda que me fosse possível tornar-me temido preferiria ser amado. Há tantos defeitos na velhice, tanta impotência, ela presta-se tão bem ao desprezo, que o que de melhor pode juntar a seu ativo é a afeição, o amor dos seus. O mando e o terror já não são armas em suas mãos. Conheci alguém que foi muito autoritário na mocidade. Atingiu-o a idade, mas ele ainda se conserva em boas condições; bate, morde, invectiva, mostra-se o senhor mais difícil de França; esgota-se em cuidados e vigilância. Tudo isso não passa de comédia. Em torno dele há uma verdadeira conjura de que participa sua própria família. A maior parte do que existe em sua adega, no seu celeiro, na sua bolsa é para os outros, embora ele guarde as chaves consigo e delas cuide mais que dos próprios olhos. Enquanto se contenta com viver de poupanças e com uma mesa mesquinha, em todos os recantos de seu lar impera o desregramento; divertem-se, esbanjam, motejam das quimeras que criam sua cólera vã e sua previdência. Todos estão de sentinela; se por acaso algum insignificante servidor se revela dedicado a ele, excitam contra o importuno as desconfianças do patrão, o que é coisa fácil, porquanto tendência natural dos velhos. Muitas vezes jactou-se ele junto a mim da firmeza com que segura as rédeas da casa, da obediência absoluta e do respeito que lhe devotam. Em verdade enxerga muito mal os seus negócios! "Só ele ignora o que ocorre em sua casa". Não conheço ninguém com maiores recursos naturais e de experiência para dirigir uma casa e nenhum outro mais enganado; foi o que me fez escolhê-lo como exemplo típico de casos semelhantes que conheço. Será melhor assim ou não? Eis uma questão escolástica que daria margem a muito devaneio. Aparentemente cedem sempre, mas trata-se de concessão de nenhum alcance; não lhe resistem, escutam-no, temem-no, respeitam-no quanto quer. Despede um criado? Este arranja seus trapos e se vai, mas tão somente para fora de sua presença. A velhice é tão vagarosa, seus sentidos perturbam-se tão facilmente que dito criado continuará a seu serviço durante um ano ainda sem que ele o perceba. Ao fim de um lapso de tempo suficiente, começam a chegar cartas de longe implorando mercê e prenhes de promessas, e ei-lo novamente nas boas graças do amo. Fecha algum negócio ou escreve alguma carta desagradável, suprimem-nos e posteriormente se encontra uma desculpa para a não execução de suas ordens. Nenhuma carta de fora lhe é entregue de imediato; vê apenas as que não são de recear que tome conhecimento. Se por acaso põe a mão em alguma que se tenha interesse em esconder, como tem por hábito passá-la a outrem para que a leia, leem-lhe o que bem entendem. Assim é que não raro quem o insulta parece pedir-lhe perdão. Em suma, todas as coisas se oferecem a seus olhos sob um aspecto satisfatório, regrado de antemão, a fim de que não se desperte sua cólera nem seu mau humor. Com variantes conheci muitas casas em que os negócios domésticos se regulavam de maneira igualmente fantasista. As mulheres têm sempre uma tendência natural para contrariar os maridos; não perdem uma só ocasião de fazer o contrário do que eles querem e a mais tola desculpa basta para justificá-las plenamente aos próprios olhos. Conheci uma que roubava quantias importantes para, como dizia a seu confessor, dar esmolas maiores. Ide confiar-vos nessas obras pias! Nenhum prazer se lhes afigura digno se com ele concorda o marido; para que lhes seja agradável e o considerem, é preciso que dele se apropriem com habilidade e autoridade e nunca da maneira por que deveriam fazê-lo. Quando acontece, como no caso acima citado, que a mulher tem a ver com um pobre ancião e age em benefício dos filhos, isso se torna uma verdadeira paixão de que se jacta. E para libertar-se ela e os seus da servidão comum, chega facilmente a conspirar contra o domínio e a administração do marido. Se os filhos já são grandes, não hesitam em subornar pela intimidação ou a corrupção o mordomo, o agente de negócios e os outros. Quem não tem nem mulher nem filhos está mais do que os outros ao abrigo dessas desgraças, mas, quando nelas cai, é de maneira mais cruel e indigna. Dizia Catão, de sua época: "tantos criados quantos inimigos". Não pensais que, dada a relativa pureza de seu século, comparativamente ao nosso, ele diria hoje: "mulher, filhos, criados, todos inimigos?" Felizmente a decrepitude traz consigo um defeito de clarividência, uma ignorância do que se passa em torno de nós, uma facilidade em nos deixar enganar que são verdadeiros favores dos deuses. Se assim não fosse e quiséssemos protestar, que nos aconteceria nestes tempos em que os juízes chamados a intervir nas dissensões tendem eles próprios a dar razão aos filhos interessados na questão. Se não percebo tais artes domésticas não quero com isso dizer que me sinta livre de riscos. Por isso nunca se encarecerá demasiado a superioridade de um amigo sobre essas relações sociais. O que vejo na sociedade dos animais inspira-me maior respeito pela sua pureza. Se os demais me enganam, ao menos não me engano a mim mesmo, não forjo a ilusão de me acreditar tão forte que possa evitar uma armadilha, nem dou tratos à bola para alcançar esse privilégio. Consolo-me com meus recursos interiores, não com curiosidade inquieta e sempre alerta, mas com diversões que invento e resoluções que tomo. Quando ouço contar o que acontece a alguém, não me apiado: volto-me para mim mesmo e observo em que medida o fato poderia aplicar-se a mim. Tudo o que diz respeito ao próximo me diz respeito igualmente; qualquer acidente que lhe ocorra é uma advertência para a qual atento. Todos os dias e a todas as horas dizemos de outrem o que mais justamente poderíamos dizer de nós, se nos soubéssemos observar tão bem quanto aos outros. Muitos autores prejudicam sua causa entregando-se irrefletidamente a ataques contra o adversário, lançando-lhe censuras e motejos que podem ser devolvidos. O falecido Marechal de Monluc tendo perdido um filho na ilha da Madeira, jovem fidalgo que muito prometia, contava-me sua tristeza insistindo principalmente sobre o fato de nunca ter tido maior intimidade com ele. Para conservar em relação a ele a gravidade e a distância de que as mais das vezes se reveste a autoridade paterna, privara-se voluntariamente do prazer de apreciar e conhecer melhor o seu filho e também de lhe revelar a profunda afeição que lhe votava e a estima que lhe dedicava por suas qualidades: "esse pobre rapaz", dizia, “nunca me viu senão carrancudo e aparentemente desdenhoso; levou consigo a crença de que eu não o soube amar nem lhe apreciar os méritos. A quem deveria eu, senão a ele, demonstrar a ternura de meu coração? Com ele sem dúvida devia abrir-me para que tivesse alguma alegria e gratidão. Esforcei-me, torturei-me para conservar essa máscara vã de indiferença; isso me fez perder o prazer de sua companhia, bem como de sua afeição, pois nunca foi senão maltratado e por vezes tiranicamente". Acho tais sentimentos justos e razoáveis. Bem o sei, por experiência, que nada suaviza mais a tristeza que sentimos com a perda de um amigo quanto a certeza de não havermos omitido o que quer que fosse do que cumpria dizer-lhe, e de ter estado com ele em comunicação perfeita de ideias e emoções. Ó meu amigo, essa permuta de ideias entre nós terá sido um bem para mim? Ou um mal? Foi um bem, sem dúvida; a saudade que conservo de ti honra-me e me consola. É dever piedoso e agradável de minha vida rememorar constantemente os fatos que passaram, mas cuja privação nenhum gozo compensa. Abro-me aos meus o quanto posso e lhes mostro de bom grado a disposição de espírito em que me acho; assim faço aliás com todos. Apresso-me em me apresentar como sou, porque não quero que se enganem. Lê-se em César que entre os costumes peculiares aos nossos antepassados gauleses os filhos não se apresentavam aos pais, nem ousavam aparecer em público com eles, enquanto não atingiam a idade de se armarem, como se com isso sugerissem que então chegara o momento para os pais de os receberem e se mostrarem familiares. Tenho observado ainda outro gênero de abuso em alguns pais de família. Não satisfeitos com ter privado seus filhos de sua parte na renda que naturalmente lhes devia caber - e isso durante longo tempo - deixam a suas mulheres a posse de todos os bens com o direito de disporem deles a seu bel-prazer. Conheci um fidalgo que ocupava um dos cargos mais importantes de França e que pelos seus direitos tinha a esperança de receber mais de cinquenta mil escudos de renda e morreu aos cinquenta anos em dificuldades, crivado de dívidas, com a mãe inteiramente decrépita desfrutando toda a fortuna por vontade do pai, o qual vivera cerca de oitenta anos. Isso não me parece razoável. E no entanto não vejo vantagem em que alguém, em boa situação financeira, procure aliar-se a uma mulher que lhe traga bom dote; de todas as dívidas que podemos ter não há nenhuma mais suscetível de causar a ruína de uma casa. Meus pais muito judiciosamente o evitaram. E eu também. Contudo os que se afastam das mulheres ricas com receio de que sejam orgulhosas e dominadoras, não procedem tampouco ajuizadamente, pois perdem uma vantagem real e tangível de medo de uma conjetura duvidosa. Uma mulher insensata, não a detém a fortuna nem a pobreza: o que gosta é de seus próprios erros; o mal a atrai como a virtude atrai as boas. As mais ricas são muitas vezes as mais corda tas, como não raro as mais belas são as mais castas. É justo que se entregue a gerência dos bens dos menores às mães; mas os terá muito mal educado o pai se na maioridade não puder contar mais com eles do que com a mulher, dada a fraqueza inerente ao sexo. Concordo entretanto em que é ainda mais antinatural deixar a mãe dependente dos filhos. É preciso provê-Ia de quanto necessite para manter sua posição social, tanto mais quanto a indigência é muito mais penosa para a mulher do que para o homem. Que sofram antes os filhos, portanto, que a progenitora. Em geral a melhor partilha que podemos fazer de nossos bens ao morrer consiste em obedecer aos costumes do país, e as leis os levaram em conta melhor do que o faríamos, e é preferível que elas se enganem na escolha a incorrermos nós mesmos no erro agindo inconsideradamente. Nossos bens, em verdade, não nos pertencem, por isso que os dispositivos legais determinam, sem ponderar a nossa vontade, os que os devem possuir depois de nós. Embora tenhamos alguma liberdade de escolha, acho que é preciso um motivo sério, indiscutível, para que tiremos de alguém o que os fados lhe reservaram e as leis lhe autorizam a possuir. E é abusar dessa liberdade pô-la a serviço de nossas fantasias pessoais e por vezes fúteis. O destino não me deu oportunidade para que me sentisse tentado a desviar minha afeição daqueles a quem devia legitimamente dedicá-la, mas vejo muita gente com a qual perdemos tempo em nos afeiçoarmos. Uma simples palavra mal interpretada destrói o mérito de dez anos: Feliz então quem tem a sorte de se aproveitar dos últimos momentos! A derradeira ação é a vencedora, não a melhor nem a mais constante; a mais recente e presente é que produz efeito. Assim, pois, há pessoas que usam seu testamento como se se tratasse de doces ou chicotes a fim de premiar ou punir os interessados nele. O testamento exige porém reflexão e é coisa demasiado importante para que se modifique ao sabor da hora. Os homens sensatos fixam sua vontade de um modo definitivo, sem que os movam senão a razão e a obediência às leis. Também nos preocupamos demais com fazer cair a herança nas mãos dos varões, na esperança de dar a nossos nomes uma eternidade ridícula. De igual maneira ponderamos exageradamente as conjeturas incertas do futuro que vislumbramos nos filhos. Não fora injusto me postergarem em benefício de meus irmãos por ter sido eu o mais lento, lerdo, e embotado na infância, e não somente quanto aos exercícios físicos mas também intelectuais? É loucura estabelecer distinções baseadas no que pensamos adivinhar e que raramente se confirma. Se podemos infringir essa lei e corrigir a sorte reservada a nossos herdeiros, só devemos fazê-lo a fim de atender a uma situação especial, uma deformidade física, por exemplo, o que constitui vício insanável e para mim, grande apreciador da beleza, causa de grave prejuízo. Aqui transcrevo, para dar maior brilho à minha prosa, o divertido diálogo do legislador de Platão com seus concidadãos: "Como, dizem-lhe, sentindo nosso fim próximo não poderemos dispor do que nos pertence em favor de quem nos apeteça? O deuses! Que crueldade! Tirai-nos a possibilidade de dar mais ou menos, segundo a nossa vontade, àqueles que nos prodigalizaram seus cuidados quando estávamos doentes, durante a nossa velhice, ou que geriram nossos bens!" Ao que responde o legislador: "Meus amigos, sem dúvida não tardareis a morrer e - assim se inscreve no templo de Delfos - como vos é difícil conhecer-vos e conhecer o que é vosso, eu que faço as leis julgo que não vos pertenceis e aquilo que desfrutais tampouco vos pertence. Vós e vossos bens pertenceis à vossa família passada e futura. Mais ainda, vós, vossa família e vossos bens pertenceis ao povo. Eis por que, de medo que algum adulador esperto, durante a vossa velhice ou a vossa doença, ou alguma paixão vos inspirem um testamento iníquo, eu vos preservarei do risco. E como respeito o interesse comum da República, e de vossa casa, farei leis em que, como é natural, o interesse público primará sobre o particular. Ide, pois, onde o destino comum vos chama; a mim, que não me apaixono nem por uma coisa nem por outra e que na medida do possível só me preocupo com o interesse de todos, cabe cuidar do que deixardes". Voltemos ao nosso tema. Parece-me, qualquer que seja o nosso ponto de vista, que poucas mulheres nascem com aptidões bastantes para que sua autoridade se imponha ao homem, fora da autoridade materna e da influência que por sua própria natureza exercem. Somente os temperamentos fracos, os que são incapazes de opor um dique à febre amorosa, se submetem, para sua desgraça, voluntariamente a elas; mas isso não diz respeito às velhas de que aqui falamos. Por esse motivo certamente se estabeleceu essa lei, tão favoravelmente acolhida e cujo texto nunca se viu, que priva as mulheres do direito à coroa. Não há soberania no mundo em que a questão não tenha sido discutida em virtude dos motivos que justificam o princípio, mas em verdade certos países a resolveram diferentemente. É perigoso permitir que a mulher disponha à vontade de seus bens, pois a escolha que faz entre seus filhos é sempre iníqua e fantasista, porquanto os apetites estranhos e os gostos depravados que se manifestam durante a gravidez ficam gravados em sua alma. Não raro as vemos dar preferência aos filhos mais doentios e aleijados ou ainda aos que trazem ao colo. Não possuindo uma inteligência bastante forte para apreender e compreender as coisas segundo seu valor próprio, entregam-se comumente às impressões e intuições como os animais que só reconhecem os filhotes enquanto os amamentam. É de resto fácil julgar por experiência quão pouco profundas são as raízes dessa afeição natural a que outorgamos tamanha autoridade. Mediante ínfimo salário, arrancamo-lhes os filhos dos braços para que cuidem dos nossos. Entregam os seus a alguma desprezível companheira, a quem não daríamos as crianças, ou a uma cabra, e ainda por cima são obrigadas a não tratar deles a fim de empregarem todo o seu tempo em atender aos nossos. Vemo-las em sua maioria, e sem dúvida por hábito, nutrir uma afeição bastarda pelos intrusos que aleitam não raro mais viva do que a natural, demonstrar mais solicitude do que o fariam com seus próprios filhos. Se falei de cabra é porque em nossa terra quando as mulheres não podem amamentar seus filhos recorrem às cabras. Estas acostumam-se rapidamente a aleitar as crianças, conhecem-nas pela voz e acorrem quando gritam. Se lhes apresentam uma estranha, recusam-na; por seu lado a criança aborrece um animal que não o habitual. Sei de um menino a quem retiraram a cabra que o pai pedira emprestada a um vizinho: não quis de jeito nenhum a substituta e morreu, provavelmente de fome. Entre os animais a afeição natural se altera e se abastarda tão facilmente quanto entre os homens. Aquilo que, segundo Heródoto, se praticava em certas partes da Líbia onde homens e mulheres se uniam indiferentemente e onde a criança ao principiar a andar reconhecia o pai entre os demais homens e corria ao seu encontro naturalmente, devia provocar inúmeros enganos, a meu ver. Se consideramos como única razão de amar os nossos filhos o fato de os termos engendrado, o que nos leva a enxergá-los como parte de nós mesmos, outras coisas emanam igualmente de nós, que não me parecem menos dignas de ser amadas. O que nossa alma engendra, o que nasce de nosso espírito, de nossa coragem, de nossa capacidade, provém da parte mais nobre do nosso corpo e são mais nós mesmos do que os nossos filhos, pois são a um tempo pai e mãe. Essas criações custam-nos muito mais caro, mas também quando dão certo nos honram muito mais. Nossos filhos valem pelo que são, nossa parte neles é pequena; nessas outras emanações de nós, ao contrário, a beleza, a graça, tudo o que as valoriza é de nossa exclusiva autoria. Por isso nos representam melhor do que os filhos e mais do que estes chamam a atenção dos outros para nós. Platão acrescenta que elas é que alcançam a imortalidade, imortalizando seus genitores até fazer deuses deles: Licurgo, Sólon, Minos bem o exemplificam. Estando a história cheia de fatos que comprovam a afeição dos pais pelos filhos, parece-me não ser fora de propósito citar alguns casos dessa afeição que devotamos às vezes às criações de ordem imaterial. Heliodoro, esse bom bispo de Trica, preferiu perder a dignidade, os proveitos de tão venerável cargo, a renegar a autoria de uma novela de amor intitulada Teagenes e Charicléia, filha ainda viva e mui gentil mas porventura demasiado picante, e amorosa, para um pai eclesiástico. Em Roma houve um personagem de alto valor e prestígio chamado Labieno, que se distinguia como escritor. Era, creio, filho do grande Labieno, o primeiro dos lugar-tenente de César na guerra da Gália e que posteriormente abraçou o partido de Pompeu no qual se conduziu muito bem, sendo afinal derrotado pelo próprio César, na Espanha. O Labieno a que me refiro granjeou inúmeros invejosos, por causa de sua virtude, e provavelmente, também, muitos inimigos entre os cortesãos e favoritos dos imperadores, graças à sua franqueza e seu espírito de oposição à tirania, que herdara do pai e devia transparecer em seus escritos. Seus adversários processaram-no e conseguiram que fossem alguns de seus livros, que o haviam tornado ilustre, queimados por sentença judicial. Com Labieno iniciou-se em Roma a destruição de escritos e obras dos grandes, o que ocorreu não raro posteriormente. Sem dúvida era reduzido o campo de nossa crueldade e precisávamos levá-la às coisas que a natureza isentou de dor e sofrimento, como as criações de nosso espírito. Tínhamos necessidade de submeter aos rigores da disciplina e da tortura a inspiração das musas. Labieno não pôde suportar a destruição de suas obras, nem sobreviver à perda das filhas a que dera vida e fez-se enterrar vivo no monumento funerário de seus antepassados, onde encontrou morte e sepultura. É difícil deparar com afeição paternal mais veemente. Cássio Severo, amigo de Labieno, ao ver queimarem-se os livros gritou que igual sorte devia ter ele próprio, pois conservava na memória todo o conteúdo das obras. Análogo acidente ocorreu com Cremúcio Cordo, acusado de haver elogiado Bruto e Cássio. O miserável senado, servil e corrupto, digno de um monarca pior do que Tibério, condenou à fogueira as suas obras. Cremúcio Cordo, a fim de acabar juntamente com elas, deixou-se morrer de fome. Lucano, esse homem de bem, condenado pelo monstro que foi Nero, mandara cortar as veias pelo seu médico. Agonizava e já perdera quase todo o sangue, já o frio lhe invadia os membros e atingia os órgãos essenciais quando se pôs a recitar certos versos de seu poema sobre a batalha de Farsália. Extinguiu-se recitando-o. Era uma terna e paternal despedida a seus filhos, à semelhança dos adeuses e abraços que damos aos nossos ao abandonarmos o mundo, a par da tendência natural que temos para nos lembrarmos na hora suprema das coisas que nos foram mais caras em vida. Epicuro, ao morrer, atormentado por terrível cólica, sentia vivo consolo à ideia da beleza da doutrina que dera ao mundo. Teria sentido igual satisfação se houvesse deixado uma prole numerosa e sadia? E se tivesse de optar entre deixar um filho contrafeito e doentio ou um livro tolo e inepto, não escolheria a primeira desgraça? Se, por exemplo, houvessem proposto a Santo Agostinho a destruição dos escritos que tantos frutos deram à nossa religião ou a perda dos filhos que porventura tivesse, não seria uma impiedade sacrificar os primeiros? Não sei em verdade se não preferiria ter engendrado um filho perfeito, nascido de um comércio com as musas, a um produto das minhas relações com minha mulher. A este que sou forçado a aceitar tal qual é, o que dou, dou-o simplesmente e de maneira irrevogável como tudo o que damos a nossos filhos de carne e osso; o bem que lhe faço deixa de imediato de ser meu. Ele pode saber coisas que já não sei mais e ter recebido de mim coisas de que não recordo. Se devesse emprestar-lhe algo, precisaria um contrato como se fora um estranho; se sou mais prudente do que ele, ele é mais rico. Poucos homens que cultivam a poesia teriam preferido ser autores da "Eneida" a engendrar o mais belo rapaz de Roma e mais sofreriam com a perda daquela, tanto mais quanto, segundo Aristóteles, de todos os criadores é o poeta o que mais facilmente se apaixona pelas próprias obras. Dificilmente acreditaríamos que Epaminondas, que se vangloriava de deixar como descendência apenas duas belas filhas capazes de honrar o pai (referia-se às vitórias contra os lacedemônios), consentisse em trocá-las pelas mais belas mulheres da Grécia; ou que Alexandre e César tenham jamais desejado sacrificar a celebridade granjeada com suas conquistas, à vantagem de alguns filhos que lhes sucedessem, por perfeitos que fossem. Duvido também que Fídias ou qualquer outro escultor de gênio houvesse preferido a conservação dos filhos naturalmente concebidos à das obras que à força de trabalho e estudo teria levado à perfeição. Mesmo essas paixões contrárias à natureza que nada detém, e que impeliram por vezes o pai a amar a filha e a mãe a se enamorar do filho, se encontram nesse parentesco espiritual. Assim é que Pigmalião, tendo esculpido uma estátua de singular beleza, por ela se apaixonou tão perdida e violentamente que, cedendo ante sua angústia, os deuses lhe sopraram a vida. “Toca o marfim e o marfim, esquecendo sua dureza natural, cede e amolece”. CAPÍTULO IX AS ARMAS DOS PARTOS Considero um erro e um hábito efeminado o de não se decidir, a nobreza de nossa terra, a pegar em armas enquanto a tanto não a obriga uma necessidade urgente, e que as deponha tão logo se esboce a menor probabilidade de desaparecer o perigo. Nasce disso grande confusão: cada qual se põe a gritar e correr em busca de suas armas no momento mesmo da batalha e, enquanto alguns ainda se ocupam com ajustar a couraça, já outros estão derrotados. Nossos pais entregavam unicamente aos servidores, para que os carregassem, o capacete, a lança e a manopla, conservando o resto do equipamento enquanto durava a guerra. Hoje entre as nossas tropas reina a desordem em consequência da confusão das bagagens e dos lacaios que precisam caminhar ao lado de seus senhores, cujas armas transportam. Falando de nossos antepassados, já dizia Tito Lívio: "incapazes de resistir à fadiga mal podiam carregar suas armas aos ombros". Muitos povos vão entretanto para a guerra - e iam na antiguidade - sem armaduras, protegendo-se apenas com armas defensivas pouco eficientes: "cobrindo a cabeça com capacetes de cortiça. Alexandre, o mais ousado capitão de todos os tempos, quase nunca revestia a armadura. Os que entre nós a desdenham, não correm em verdade maior risco, pois se há quem morra por não a usar, menor não é o número dos que se perderam em virtude do peso da couraça e da dificuldade em com ela se movimentarem. Na realidade, ante a espessura e o peso das nossas couraças, dir-se-á que com elas buscamos unicamente defender-nos. O incômodo é maior do que a garantia que nos oferecem. E, tão só a fim de carregá-las, já temos trabalho demais para as nossas forças; e é como se o combate se limitasse a um choque de armaduras e não tivéssemos a mesma obrigação de defendê-las que elas têm de nos proteger. Tácito pinta de modo pitoresco os guerreiros gauleses, a tal ponto armados, que mal se mantinham de pé e não podiam atacar nem ser atacados, e quando caíam não mais se erguiam. Vendo Luculo os soldados medos que formavam a vanguarda do exército de Tigranes, pesada e incomodamente armados, e como que encerrados em prisões de ferro, pensou vencê-los sem dificuldade e contra eles iniciou o ataque, o que constituiu o prelúdio de sua vitória. Agora que preponderam os mosqueteiros em nossos exércitos, inventarão sem dúvida uma muralha atrás da qual estaremos ao abrigo dos tiros, e iremos para a guerra embutidos em baluartes semelhantes aos que os antigos ajustavam a seus elefantes. Essa maneira de combater está longe da que praticava Cipião, o Jovem, o qual censurava amargamente a seus soldados terem semeado de armadilhas o fundo do fosso da cidade que sitiava, no lugar em que os sitiados podiam executar sortidas, pois, dizia, os sitiantes devem preocupar-se com atacar e não com se defender; e supunha que uma tal precaução pudesse enfraquecer a vigilância. E a um soldado que lhe exibiu um belo escudo, observou: "Magnífico, com efeito, mas um soldado romano deve confiar mais na mão direita do que na esquerda". Somente o costume de não as usar constantemente faz que não lhes suportemos o peso; "dois dos guerreiros que aqui canto, tinham couraça e capacete; nem de dia nem de noite, desde que haviam entrado no castelo, despiam essa armadura que carregavam com a mesma desenvoltura com que usariam suas vestimentas, a tal ponto se haviam acostumado a elas". O Imperador Cara cala marchava a pé, e inteiramente armado, à testa de suas tropas. Os infantes romanos usavam não somente o morrião, a espada e o escudo como também víveres para quinze dias e certo número de estacas para edificar as fortificações (cerca de setenta libras). E diz Cícero que estavam tão habituados a carregar suas armas, que eram para eles como braços e pernas: "dizem que as armas do soldado são como seus membros". Assim carregados, os soldados de Mário faziam cinco léguas em cinco horas, e até seis léguas se necessário. Sua disciplina militar era muito mais rude do que a nossa e os resultados melhores, portanto. Cipião, o Jovem, ao reformar o exército em operações na Espanha, determinou que seus soldados só comessem de pé e nada cozido. Eis a propósito um fato espantoso: a reprimenda feita a um soldado lacedemônio que, estando em campanha, se abrigara em uma casa; que era vergonhoso procurasse outro refúgio senão a abóbada celeste, por pior que fossem as condições climatológicas. Nossos soldados seriam incapazes de suportar tais provações. Marcelino, homem afeito às guerras romanas, relata como se armavam os partos e insiste tanto mais no assunto quanto a maneira por que o faziam diferia muitíssimo da dos romanos: "Tinham", diz, "armaduras como que tecidas de pequenas plumas (provavelmente escamas metálicas entrosando-se umas nas outras, em uso entre os nossos antepassados), as quais não lhes tolhiam os movimentos e eram tão resistentes que nossos dardos não as penetravam e se viam rechaçados ao tocá-las". Em outro trecho, comenta: tinham cavalos vigorosos e calmos, com caparazões de couro espesso; eles próprios se armavam dos pés à cabeça com grossas lâminas de ferro entrelaçadas e flexíveis nas articulações, de maneira a facilitar os movimentos. Pareciam homens de ferro. A parte da cabeça adequava-se às formas do rosto e era tão bem ajustada que não havia possibilidade de se atingir a cara senão pelos buraquinhos redondos dos olhos, ou através das fendas correspondentes às narinas pelas quais respiravam penosamente. O metal flexível parece animado pelos membros que recobre. É horrível de se ver: dir-se-iam estátuas de ferro em movimento, incorporando-se o metal ao guerreiro que o usa. Assim também os corcéis, testa escondida sob o ferro, flancos resguardados contra os ferimentos. Não lembra esta descrição o equipamento de um guerreiro nosso, com sua armadura completa? Plutarco conta-nos que Demétrio mandou fabricar para si e para Alcino, seu primeiro capitão, duas armaduras pesando cento e vinte libras cada uma. As que usavam geralmente não ultrapassavam sessenta. CAPÍTULO X DOS LIVROS Bem sei que me ocorre não raro falar de coisas que são melhor e mais precisamente comentadas pelos mestres do ofício. O que escrevo resulta de minhas faculdades naturais e não do que se adquire pelo estudo. E quem apontar algum erro atribuível à minha ignorância não fará grande descoberta, pois não posso dar a outrem garantias acerca do que escrevo, não estando sequer satisfeito comigo mesmo. Quem busca sabedoria, que a busque onde se aloja; não tenho a pretensão de possuí-la. O que aí se encontra é produto de minha fantasia; não viso explicar ou elucidar as coisas que comento, mas tão somente mostrar-me como sou. Talvez as venha a conhecer a fundo um dia, ou as tenha conhecido, se por acaso andei por onde elas se esclarecem. Mas já não as recordo. Embora seja capaz de tirar proveito do que aprendo, não o retenho na memória: daí não poder assegurar a exatidão de minhas citações. Que se veja nelas, apenas, o grau de meus conhecimentos atuais. Não se preste atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão somente à maneira por que as trato. E, no que tomo de empréstimo aos outros, vejam unicamente se soube escolher algo capaz de realçar ou apoiar a ideia que desenvolvo, a qual, sim, é sempre minha. Não me inspiro nas citações; valho-me delas para corroborar o que digo e que não sei tão bem expressar, ou por insuficiência da língua ou por fraqueza dos sentidos. Não me preocupo com a quantidade e sim com a qualidade das citações. Se houvesse querido tivera reunido o dobro. Provêm todas, ou quase, dos autores antigos que hão de reconhecer embora não os mencione. Quanto às razões, às comparações e aos argumentos que transplanto para meu jardim, e confundo com os meus, omiti muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores, a fim de pôr um freio nas ousadias desses críticos apressados que se espojam nas obras de escritores vivos e escritas na língua de todo mundo, o que dá a quem queira o direito de as atacar e insinuar que planos e ideias sejam tão vulgares quanto o estilo; e eu quero que deem um piparote nas ventas de Plutarco pensando dar nas minhas; e que insultem Sêneca de passagem. Preciso esconder minha fraqueza sob essas grandes reputações, mas de bom grado veria alguém, clarividente e avisado, arrancar-me as plumas com que me adornei, distinguindo simplesmente pela diferença de força e beleza as minhas das alheias. Se por falta de memória não consigo deslindar-lhes as origens, sei reconhecer entretanto que minha terra é pobre demais para produzir as ricas flores que entre elas se acham desabrochadas e que apesar dos maiores esforços não as igualaria jamais. Respondo porém pela confusão e erros de meus escritos, quando, por mim mesmo, por vaidade ou insensatez, me mostro incapaz de corrigi-las porque não os percebo ou não os sinto, ainda que mos apontem. Efetivamente, às vezes certos erros nos escapam; o mal está em não os admitir quando no-las mostram. A verdade e a ciência podem alojar-se em nosso espírito, embora sem que as saibamos julgar e discernir, como pode a razão nele habitar sem a companhia daquelas qualidades. Saber reconhecer nossa ignorância é mesmo uma das mais belas e seguras garantias de que não carecemos da faculdade de julgar. Só o acaso guia meus passos na escolha de meus assuntos. Na medida em que meus devaneios tomam corpo eu os agrupo: ora chegam aos magotes ora de um em um. Quero que me contemplem ao natural, na atitude que assumo habitualmente, por desordenada que seja, sem esforço nem artifício. Não falo senão de coisas que ninguém ignora e de que é lícito tratar com liberdade e sem preparação especial. Gostaria por certo de possuir, acerca do que comento, um conhecimento completo, mas, para o adquirir, não quero pagar o elevado preço que custa. Tenho a intenção de viver tranquilamente, sem me aborrecer, durante o tempo que me resta, e não desejo quebrar a cabeça com o que quer que seja, nem mesmo com a ciência que muito prezo. Não busco nos livros senão o prazer de um honesto passatempo; e nesse estudo não me prendo senão ao que possa desenvolver em mim o conhecimento de mim mesmo e me auxilie a viver e morrer bem, "essa meta para onde deve correr o meu corcel". As dificuldades com que deparo lendo, não me preocupam exageradamente; deixo-as de lado após tentar resolvê-las uma ou duas vezes. Se me detivesse nelas, perder-me-ia e perderia meu tempo, pois meu espírito é de tal índole que o que não percebe de imediato menos entende em se obstinando. Não sou capaz de nada que não me dê prazer ou que exija esforço, e atardar-me demasiado em um assunto, ou nele me concentrar demorada mente, perturba minha inteligência, cansa-a e me entristece. Embacia-se-me a vista e se enfraquece, de modo que tenho de interromper a leitura e repeti-la, como quando queremos perceber o brilho de certos tecidos, e precisamos olha-los várias vezes e de vários modos. Se um livro me entedia, pego outro e só me dedico à leitura quando não sei que fazer; e o enfado me domina. Quase não leio livros novos; prefiro os antigos que me parecem mais sérios e benfeitos; não procuro tampouco os autores gregos, porque meu espírito não pode tirar partido do conhecimento insignificante que tenho da língua grega. Entre as obras de mero passatempo, agradam-me entre os modernos o "Decamerom" de Boccaccio, Rabelais e "Os Beijos" de Jean Second, se é que este último, escrito em latim, pode incluir-se entre os modernos. Quanto aos Amadis e outros romances do gênero, não me interessaram sequer quando os li em criança. Direi mesmo, o que há de parecer ousado ou temerário, que meu espírito envelhecido não aprecia mais a leitura, não somente de Ariosto mas ainda do bom Ovídio. Sua imaginação, sua facilidade, que outrora me encantavam, não me distraem mais agora. Exprimo livremente minha opinião acerca de tudo, mesmo daquilo que, por ultrapassar meus conhecimentos intelectuais, considero fora de minha alçada. O meu comentário tem entretanto por fim revelar meu ponto de vista, e não julgar do mérito das coisas. Se digo que o "Axioco" de Platão me enfada, por se tratar de obra fraca, dado o valor e a força do autor, não o faço convencido da infalibilidade de meu juízo; não tenho a pretensão de contestar a autoridade de tantos outros juízes de renome da antiguidade, que considero meus mestres, diante dos quais me inclino e com os quais desejara enganar-me. A mim mesmo me condeno, pois, ou terei julgado superficialmente, não penetrando profundamente a obra, ou a terei encarado de mau ângulo. Contento-me com não me deixar perturbar, nem ser impelido ao devaneio; quanto à fraqueza de meu juízo, reconheço-a e a confesso. Penso dar uma interpretação justa às aparências que apreendo, mas como são enganosas, imperfeitas! Em sua maioria as fábulas de Esopo apresentam vários sentidos e significações. Os que as interpretam mitologicamente palmilham por certo um terreno bem adequado à fábula; mas é permanecer à superfície; há outra interpretação mais viva, essencial e interior, a que não puderam chegar os eruditos. Prossigamos, porém. Sempre pensei que, entre os poetas, Virgílio, Lucrécio, Catulo e Horácio se situam longe dos outros, em primeiro plano. Em particular, Virgílio, cujas "Geórgicas" são a meu ver a obra poética mais perfeita; se a compararmos com a "Eneida", percebemos que há neste poema certos trechos que o autor houvera retocado se tivesse tido tempo. O livro quinto da "Eneida" é o que considero mais acabado. Gosto também de Lucano e o leio com grande prazer, menos pelo estilo do que pelo alcance de suas opiniões e juízos. Quanto ao bom Terêncio, em quem deparo com todas as elegâncias e as graças da língua latina, julgo-o admirável quando trata dos sentimentos e descreve com vivacidade os nossos costumes. A todo instante eu o recordo e por mais que o leia sempre descubro nele alguma beleza nova. Lamentavam os contemporâneos de Virgílio que o comparassem, alguns, a Lucrécio. Também eu acho a comparação infeliz, mas não a considero tão desacertada quando me detenho em algum trecho mais belo de seu êmulo. Se se contrariavam com o paralelo, que diriam dos que hoje o comparam tola e ignorantemente a Ariosto? E que pensaria o próprio Ariosto? "O século grosseiro e sem gosto!"! Sou de parecer que mais razão tinham ainda os antigos de lamentar os que equiparavam Plauto a Terêncio (este muito mais nobre). Para julgar do mérito de Terêncio e da preferência que lhe devemos dar, devemos atentar para o fato de Cícero, pai da eloquência romana, o citar constantemente, o que não faz com ninguém mais. E também a crítica severa que Horácio, o maior crítico dos poetas latinos, dirige a Plauto. Muitas vezes pude constatar quanto, em nossa época, os que escrevem comédias (como os italianos felizes no gênero) se inspiram em Terêncio e Plauto, a quem tomam de empréstimo três ou quatro enredos para arquitetar um dos seus. E assim procedem igualmente com Boccaccio, reunindo em uma só comédia cinco ou seis contos seus. O receio de não poder sustentar o interesse das peças com seus próprios recursos é que os leva a procurar algo sólido em que as assentar. E não o podendo tirar de si próprios, querem que nos divirtam as peripécias. O contrário ocorre com Terêncio: a perfeição e a beleza de seu estilo nos induzem a esquecer o tema; sua delicadeza e sua graça cativam-nos em todas as cenas; é um autor tão agradável, "tão fluido e semelhante a uma água límpida", e nos seduz a tal ponto com seu donaire que mal percebemos o assunto de suas comédias. Estas observações levam-me ainda a notar que os bons poetas da antiguidade evitaram a afetação e o rebuscamento, não somente das fantasias exageradas que se encontram nos espanhóis e nos petrarquistas, mas também das graças mais atenuadas que se deparam nas obras poéticas dos séculos seguintes. Assim o crítico competente lamenta observá-las porventura nos antigos, e admira mais a perfeição do acabado, a doçura perpétua, e a beleza florida dos epigramas de Catulo que todos os sarcasmos das sátiras de Marcial. E o que disse acima também o disse Marcial de si próprio: "não era mister que se esforçasse; o assunto substituía o espírito". Os antigos poetas, os que brilham pela imaginação, logram o efeito visado sem se agitar exageradamente nem se picar para se excitarem; têm com que provocar o riso sem necessidade de cócegas; os outros precisam de ajuda estranha; quanto menos espírito tem, mais precisam de corpo e montam a cavalo porque não podem sustentar-se sobre as pernas. Assim, em nossos bailes públicos, esses cavalheiros de baixa extração e que ensinam a dançar, na impossibilidade de exibir uma nobre e decente atitude, tentam valorizar-se com saltos perigosos e outros movimentos extravagantes, à maneira dos acrobatas. E as damas mostram-se mais desenvoltas nas danças que comportam figurações e balanceios do que nas cerimônias em que lhes cumpre apenas andar, conservando sua atitude e graça naturais. Observa-se igualmente que os palhaços que exercem sua profissão com talento tiram todo partido possível de sua arte, mesmo quando vestidos com seus trajes cotidianos, enquanto os aprendizes, de menor competência, precisam enfarinhar a cara, mascarar-se, gesticular, e fazer caretas para nos obrigar a rir. Minha opinião se esclarecerá melhor se compararmos a "Eneida" com "Orlando Furioso". No primeiro poema mantém-se o poeta nas alturas, em voo reto, poderoso e firme; no segundo o autor borboleteia saltitante, de episódio em episódio, como se, não confiando em suas asas, pulasse de galho em galho, de medo de perder o fôlego, de carecer de forças: "tenta apenas pequenas corridas", como diz Virgílio. Eis os autores que mais me agradam nesses gêneros. Quanto às minhas demais leituras, as que me instruem e deleitam ao mesmo tempo, as que me ensinam a pensar e a conduzir-me, tiro-as de Plutarco, na tradução francesa, e de Sêneca. Ambos apresentam a vantagem, dado o meu temperamento, de me oferecer os ensinamentos que neles busco, de um modo fragmentário e por conseguinte não exigente de leituras demoradas de que sou incapaz. Os opúsculos de Plutarco e as epístolas de Sêneca constituem a parte mais formosa de seus escritos, e também a mais proveitosa. Para empreender tais leituras não se faz mister um grande esforço, e posso sustá-las quando quero, pois nenhuma ligação existe entre os capítulos dessas obras. Esses dois autores, que concordam na maioria de suas ideias fundamentais, têm ainda outros pontos em comum: viveram no mesmo século, foram ambos preceptores de imperadores romanos, nasceram ambos em países estrangeiros, foram ambos ricos e poderosos. Suas lições são da melhor filosofia e se apresentam da maneira mais simples, com competência. Plutarco é em geral mais igual, Sêneca mais variado. Este se esforça, se retesa, tenta defender a virtude contra a pusilanimidade, o temor, o vício; o outro não parece preocupar-se com esses inimigos, não apressa o passo para fugir do perigo. Plutarco é da escola de Platão, suas ideias estão isentas de exagero e se acomodam à sociedade tal qual é. No outro, que é da escola dos estoicos e dos epicuristas, elas se afastam mais do que se admite na vida comum, mas são ao meu ver mais cômodas para o indivíduo e impregnadas de firmeza. Sêneca parece ter feito algumas concessões à tirania dos imperadores de sua época, pois creio que foi por imposição que condenou a causa desses homens generosos que mataram César. Plutarco conserva sempre sua independência. Sêneca abunda em comentários e críticas, ao passo que em Plutarco predominam os fatos. O primeiro comove mais e entusiasma; o segundo dá mais satisfação e compensa melhor o tempo que lhe consagramos; este nos guia, o outro nos empurra. Quanto a Cícero, as obras que mais convêm ao fim que me propus, são as obras filosóficas que tratam da moral. Mas, para dizer a verdade, e por mais ousado que se afigure, sua maneira de escrever, bem diferente da dos precedentes, parece-me aborrecida. Seus prefácios, suas definições, suas classificações, suas etimologias, ocupam efetiva e inutilmente quase toda a obra; o que nesta há de vivo e nervoso é abafado por esses excessos preliminares. Se passo uma hora a lê-lo - o que já é demais para mim - e recapitulo tudo o que dele tirei de substancial e nutritivo, não encontro a maior parte das vezes senão vento, pois ainda não cheguei nem às razões, nem aos argumentos relativos ao fundo do problema. Para mim, que não procuro ampliar o meu saber ou a minha eloquência, essa exposição lógica, obediente às regras de Aristóteles, é inadequada; gostaria que começasse pelo fim. Sei muito bem em que consistem a morte e a volúpia, para que se divirtam em as analisar minuciosamente em minha intenção. Procuro de imediato as razões sérias e certas que me reconfortem pelo esforço que me cabe suportar. Nem as sutilezas caras aos gramáticos, nem o engenhoso arranjo das frases e da argumentação me ajudam a gostar: Quero pensamentos que desde o início ataquem o ponto principal do problema, e os seus se arrastam em torno da questão. São bons para a escola, o tribunal, o púlpito onde temos tempo de cochilar e ainda reatar o discurso ao despertarmos um quarto de hora depois. Assim é que se fala aos magistrados quando se deseja ganhar uma causa, com ou sem razão; ou às crianças, ou à multidão, às quais é preciso tudo dizer e repetir para que entendam alguma coisa. Mas eu não quero que me gritem cinquenta vezes: "ouça bem isto". Os romanos diziam em suas orações litúrgicas: "hoc age" e nós "sursum corda". São palavras inúteis para quem, como eu, está disposto a escutar. Condimentos e molhos não me agradam pois gosto de carne crua. E em vez de provocar o apetite, esses preâmbulos me cansam e me desencantam. Será a licença de nossa época uma desculpa para que ache igualmente tediosos, exaustivos os diálogos do próprio Platão? Lamento o tempo que perde, em vãs interlocuções preparatórias, um homem que tinha tanta coisa importante a dizer. Minha ignorância justificará sem dúvida o desprazer que me causa seu estilo. Em geral prefiro os livros em que me encontro com o conhecimento daqueles que o explanam. Plutarco, Sêneca, Plínio, o Velho, e outros não nos dizem "hoc age"; têm eles por leitores os que se advertem a si mesmos. E, se chamam porventura a nossa atenção, é para pontos essenciais. Leio de bom grado as epístolas a Atico, de Cícero, porque nos fornecem muitos pormenores acerca da história de seu tempo e mais ainda porque nos esclarecem a respeito de seu caráter e, como disse alhures, é grande em mim a curiosidade pela alma e o espírito dos autores que leio. Somente sua capacidade, e não seus costumes nem ele próprio, podemos julgar pela leitura de suas obras. Mil vezes lamentei que a obra de Bruto sobre a virtude não tenha chegado até nós; fora admirável aprender a teoria com quem tão bem a praticou. Contudo como quem prega, e o que prega, são coisas diferentes, prefiro ainda ver Bruto pintado por Plutarco a vê-lo assinalado por si mesmo, mas gostaria antes saber exatamente de que assuntos se entretinha com seus amigos íntimos, na véspera de uma batalha, do que os discursos feitos ao exército depois do combate; e antes o que fazia em seu quarto e em seu gabinete do que na praça pública e no Senado. Quanto a Cícero, participo da opinião geral: fora de seu saber, seu caráter, de muitos pontos de vista, não era perfeito. Era bom cidadão, indulgente, como a maioria dos homens gordos e alegres, mas no fundo havia nele certa carência de fibra, muita vaidade e ambição. Não posso explicar de outro modo o apreço em que tinha sua poesia, pois, se não constitui defeito grave escrever versos maus, era fraqueza sua não sentir quanto os que fazia eram indignos de seu renome. Sua eloquência era incomparável e, creio, ninguém jamais poderá ombrear com ele na arte de falar. Cícero, o Jovem seu filho, que do pai só tinha o nome, comandava um exército na Asia. De uma feita reuniu à sua mesa vários estrangeiros, entre os quais Céstio, que se achava em uma das pontas, como um intruso. Cícero indagou quem era; mas, distraído, não ouviu a resposta e tornou a perguntar duas ou três vezes. O criado, para não repetir sempre as mesmas palavras e a fim de fixar a atenção do anfitrião em alguma particularidade, acrescentou: "é aquele Céstio de quem já nos disseram que não faz grande caso da eloquência de vosso pai comparada à dele mesmo". Irritado, Cícero ordenou que prendessem Céstio e o açoitassem na presença de todos. Eis um anfitrião bem pouco delicado! Mesmo entre os que julgavam sua eloquência incomparável, alguns houve que não deixaram de apontar certas imperfeições. O grande Bruto, seu amigo, dizia que era uma eloquência descosida e sem vigor. Os oradores posteriores censuraram-lhe o curioso afã de certa cadência exagerada no final dos períodos, bem como as palavras de "efeito" que tão seguidamente empregava. Apesar disso, embora raramente, não era muito eufórico como pude verificar nesta frase: "em verdade, quanto a mim, preferiria envelhecer durante menos tempo do que antes do tempo". Os historiadores constituem meu passatempo predileto. Sua leitura é-me fácil e agradável. Em seus livros encontro o homem que procuro penetrar e conhecer, apresentado com maior nitidez e mais completamente do que alhures. Sua maneira de ser neles se projeta com mais relevo e verossimilhança, tanto nos pormenores como no conjunto. Assim, também, seu caráter formado por um complexo de qualidades e defeitos, bem como pelos acidentes a que se expõem. Entre os historiadores, os que se atêm menos às ocorrências do que às causas, e ponderam mais os móveis a que obedecem os homens do que lhes acontece, são os que me agradam particularmente. Eis por que, em todos os pontos de vista, Plutarco é meu autor predileto. Sinto muito não termos uma dúzia de Diógenes Laércio ou que Sua obra não seja mais extensa ou mais inteligentemente composta, pois me interesso tanto pela vida dos grandes educadores quanto por seus dogmas e suas ideias. Quando nos dedicamos a estudos históricos desse gênero, precisamos folhear inúmeros autores, velhos ou novos, escritos em bom ou mau francês, a fim de conhecermos os diferentes pontos de vista sob os quais cada coisa se apresenta. Mais do que os outros, César merece ser estudado, a meu ver, não Somente pela história mas por si mesmo. Tão grandes são a sua perfeição e superioridade que o colocam acima de todos os outros, mesmo de Salústio. Eu o leio com um respeito e uma concentração de espírito maiores do que em geral se dedicam às obras humanas, atentando para a pureza e a inimitável correção de seu estilo superior ao de todos os demais historiadores, como diz Cícero, e por vezes ao do próprio Cícero. Com tanta sinceridade julga seus adversários que, salvo as falsas aparências de que reveste a causa que defende e a pestilência de sua ambição, só se lhe pode criticar o fato de não falar bastante de si mesmo, pois tão grandes coisas não podiam ter sido realizadas, se sua parte não fosse maior do que afirma ter sido. Entre os historiadores, aprecio os que são muito simples - ou os excelentes. Os que são simples, não podendo acrescentar algo de seu ao que contam, recolhem com cuidado e exatidão tudo o que chega a seu conhecimento, tudo registram de boa-fé, sem selecionar, sem nada fazer que possa influir no nosso julgamento, na descoberta da verdade. Assim é, por exemplo, o bom Froissart, o qual em sua obra se mostra tão franco e ingênuo que, se comete algum erro, não deixa de o reconhecer, retificando o trecho assinalado. Todos os boatos em curso, ele os anota com as possíveis variantes: consigna todas as versões que obtém; são material bruto e informe que colige e servirá a quem lhe suceder. Os historiadores perfeitos têm a inteligência necessária para discernir o que merece passar à eternidade. São capazes de distinguir, entre dois relatos, o mais verossímil. Da situação em que se encontram os príncipes e de seu caráter, induzem os móveis que ditam suas determinações e põem em sua boca as palavras adequadas às circunstâncias. São levados a impor-nos sua maneira de ver, mas isso é peculiar tão somente a um pequeno número deles. Os que ocupam um lugar intermediário - a maioria - estragam tudo. Querem mastigar os fatos para nós; pretendem julgar e falseiam a história de acordo com o que dela pensam; pois uma vez que se julgou num dado sentido não há como deixar de deturpar os fatos ou os apresentar de maneira a comprovarem a ideia preconcebida. Selecionam o que imaginam se deva conservar e escondem muitas vezes tal ou qual palavra, tal ou qual ação particular que esclareceriam a situação; eliminam, por incrível que pareça, o que não compreendem e mesmo o que não sabem exprimir em francês ou em latim. Que desenvolvam tão ousada e eloquentemente quanto puderem suas deduções, que julguem como pensam dever fazê-lo, mas que nos deixem a possibilidade de também julgarmos depois deles! Que nada alterem nem suprimam a pretexto de serem concisos e exatos e que nos apresentem seu material sem falsificação, na íntegra. Escolhem-se, geralmente, para historiógrafos - sobretudo em nossa época - indivíduos medíocres, somente porque sabem falar bonito como se fosse para aprender gramática que precisássemos de suas obras. Quanto a eles, tendo sido escolhidos unicamente por causa de sua tagarelice com isto se preocupam; e, recheadas de belas frases e boatos ouvidos nas praças das cidades, compõem as suas crônicas. As únicas histórias valiosas são as que escreveram os que dirigiam os negócios por eles relatados, ou outros do mesmo gênero. E o caso de quase todos os historiadores gregos ou romanos, pois se várias testemunhas oculares escrevem sobre o mesmo assunto (ocorria frequentemente, então, encontrarem-se reunidos altos cargos e saber) e que haja erro, este tem que ser de somenos ou referir-se a algum incidente duvidoso. Que esperar de um médico que fala de guerra ou de um estudante que disserta acerca dos desígnios do príncipe? Um só exemplo bastará para mostrar a que ponto os romanos eram exigentes nesse domínio. Asínio Pólio assinala nos próprios comentários de César alguns erros que seriam devidos ao fato de não ter ele podido ver pessoalmente tudo o que acontecia nos exércitos, ou ter acreditado em pessoas que lhe narravam coisas insuficientemente verificadas, ou ainda não estar, no momento, a par dos relatórios de seus lugares-tenente a respeito das manobras realizadas durante a sua ausência. Por aí se percebe quanto essa procura da verdade é delicada, porquanto não podemos confiar sequer em quem dirigiu, organizou, fez, nem nos soldados, a menos de confrontar os testemunhos e ouvir as objeções, antes de admitir como provados os menores detalhes de cada fato. O conhecimento do que se passa em nossa época é bem mais vago ainda, mas o assunto foi muito bem tratado por Bodin, e de acordo com o meu ponto de vista. A fim de remediar um pouco as traições de minha memória, tão fraca que me aconteceu mais de uma vez voltar, como se não os conhecesse, a livros lidos anos antes com atenção e anotando, habituei-me de uns tempos para cá a escrever, no fim dos volumes que não pretendo tornar a consultar, a data do término da leitura, e, em grandes caracteres, a impressão sentida, ao menos para ter a qualquer momento uma ideia geral do que li. Eis algumas dessas anotações: Há dez anos mais ou menos em meu Guichardin (qualquer que seja a língua dos livros, eu lhes falo na minha), eu escrevia: Historiógrafo cuidadoso, no qual se pode, melhor do que em qualquer outro, colher a verdade acerca dos negócios de seu tempo, na maior parte dos quais desempenhou um papel honroso. Não me parece que, por ódio, condescendência ou vaidade, tenha deturpado alguma coisa. Pode-se vê-lo pela imparcialidade de seus juízos sobre os grandes, particularmente os que, como o Papa Clemente VII, o empregaram e o promoveram nos cargos que ocupou. Prevalecem em sua obra as digressões e os discursos, e os há muito bons e enriquecidos com belas tiradas, mas neles se compraz demasiado. E a fim de nada esquecer, embora o assunto em si já seja muito amplo, ele o dilui ainda ao infinito e seu estilo degenera em falatório escolástico. Observei também que, embora aprecie muito homens e coisas, acontecimentos e resoluções, nunca atribui nada à virtude, à religião, à consciência, como se isso tudo não existisse neste mundo. Todas as ações, por mais belas que sejam na aparência, ele as atribui sempre ,a alguma causa viciosa ou ao partido que o autor pode tirar delas. E entretanto impossível admitir que nessa infinidade de fatos nenhum se depare cuja causa seja louvável. A corrupção não deve ter sido tão generalizada que ninguém lhe escapasse. Isso me induz a crer que carece de senso crítico e talvez haja julgado os outros por si mesmo. No meu Commines, escrevi: Eis uma linguagem doce e agradável e extremamente simples. A narração vem isenta de circunlóquios, a boa-fé do autor é manifesta. Fala de si mesmo sem vaidade, e dos outros sem parcialidade nem inveja. Seus relatos e comentários evidenciam uma autoridade e seriedade que demonstram tratar-se de um homem de família ilustre, familiarizado com negócios importantes. Nas memórias dos Srs. Ou Bellay: É sempre agradável ler coisas escritas pelas pessoas que por experiência viram como manejá-las. Mas é evidente que nesses senhores observa-se uma falta grande de franqueza e da liberdade que fora de desejar como a que brilha nos antigos cronistas - em Joinville, por exemplo, da Corte de São Luís, Egínard, ministro de Carlos Magno, e mais recentemente Filipe de Commines. A obra em questão é mais uma defesa do Rei Francisco I contra o Imperador Carlos Quinto do que uma história. Não quero crer que, quanto ao fundo, tenham os autores modificado os fatos que relatam, mas os apresentam não raro erroneamente, sob um aspecto favorável a nós, omitindo tudo o que há de particularmente delicado na vida de seu senhor. Trata-se sem dúvida alguma de trabalho encomendado. As desgraças dos Srs. de Montmorency e de Brion não são mencionadas, nem se lê o nome de Madame d'Etampes. Pode-se admitir que se silenciem as coisas secretas, mas calar acerca do que todo mundo conhece, ignorar o que tamanha importância teve nos negócios públicos é indesculpável. Em suma, se me acreditam, convém que se dirijam a outros se quiserem ter um completo conhecimento do Rei Francisco I e das ocorrências de sua época. O que se lê com proveito é a narrativa das batalhas e feitos de guerra a que assistiram esses fidalgos, algumas palavras e atos da vida privada de certos príncipes, as gestões e negociações levadas a efeito pelo Senhor de Langeais em que se consignam muitas coisas que merecem divulgação e se acompanham de reflexões notáveis. CAPÍTULO XI DA CRUELDADE Parece-me que a virtude é coisa diferente, e mais nobre, do que as inclinações para a bondade, que nascem em nós. As almas bem-nascidas e naturalmente bem equilibradas seguem caminhos idênticos e apresentam em suas ações fisionomia igual à das virtuosas. Mas a virtude revela não sei que de maior, mais ativo, do que deixar-se, sob a influência de uma feliz compleição, serenamente conduzir pela razão. Quem, por doçura e inclinação natural, esquece as ofensas recebidas, comete uma bela ação, digna de louvores; mas quem, profundamente ferido e irritado, luta contra um terrível desejo de vingança e pela razão consegue dominar-se, faz melhor sem dúvida. Aquele age certo; este virtuosamente. O ato do primeiro é de bondade, o do segundo de virtude. Dir-se-ia que a virtude pressupõe dificuldade e oposição e não pode existir sem luta. Talvez seja por isso que qualificamos Deus como bom, liberal, justo, mas não "virtuoso", porquanto tudo o que faz é natural, não necessitando nenhum esforço para realizá-lo. Os filósofos, e não apenas os estoicos, mas também os epicuristas, julgam que não basta seja a alma animada por bons sentimentos, veja com justiça e se ache predisposta à prática da virtude, nem que por palavras e resoluções se eleve acima das vicissitudes da sorte, é preciso ainda que procure as oportunidades de prova-lo. Vão assim ao encontro da dor, da miséria, do desprezo a fim de os combater, mantendo sua alma nas alturas: "a virtude consolida-se na luta", diz Sêneca. Eu disse não somente os filósofos estoicos mas também os epicuristas, seguindo assim a opinião comum que coloca os primeiros acima dos segundos, erroneamente aliás, em que pese à saída espirituosa de Arcesilau respondendo a alguém que lhe perguntava por que tantas pessoas passavam de sua escola para a de Epicuro, sem que se observasse o contrário: "muito simples; com galos fazemos capões, mas com capões não se fazem galos". Na verdade, a seita dos epicuristas, pela inteireza e rigidez de seus princípios e preceitos, não fica atrás da seita de Zenão. E um estoico que discutia com mais seriedade do que aqueles que, para combater Epicuro, lhe emprestam palavras que jamais disse, ou as deturpam, armando-se de regras gramaticais para o interpretar de má-fé e apontar ideias contrárias às que o filósofo professava e praticava, um estoico afirmava ter deixado de seguir Epicuro, entre outras razões, porque o caminho lhe parecia demasiado elevado e inacessível, pois "aqueles a quem chamamos amigos do prazer, são na realidade amigos da honestidade e da justiça, respeitando e praticando todas as virtudes". É porque a virtude se fortalece na luta que Epaminondas, adepto, entretanto, de uma terceira seita, recusa as riquezas que muito legitimamente lhe oferecem os fados, pois quer, diz, lutar contra a pobreza, e a sua era grande e nunca o abandonou. Sócrates, parece-me, submetia-se a prova mais rude ainda, conservando sua mulher que era má, e se engenhava em o atormentar, verdadeira e permanente armadilha em seu caminho. Em Roma, Metelo, escutando apenas a voz da virtude, só entre os senadores, resistia às violências do tribuno do povo, Saturnino, o qual se batia pela aprovação de uma lei injusta em favor da plebe. Tendo assim incorrido na pena de morte, que Saturnino estabelecera para quem se opusesse a seu projeto, dizia aos que o acompanhavam ao lugar da execução: "é fácil fazer mal; isso não exige muita coragem. Fazer bem sem correr riscos é coisa vulgar. Mas fazer bem, quando há perigo em fazê-lo, é próprio do homem virtuoso". Essas palavras comprovam o que eu quis demonstrar: que a virtude recusa a companhia da facilidade; e que esse caminho cômodo, de declive suave, pelo qual nos deixamos levar naturalmente, não é o da verdadeira virtude. O caminho desta é árduo e espinhoso. A virtude exige luta para se realizar, ou contra os obstáculos exteriores como no caso de Metelo, cujas penas o destino se comprouve em abolir, ou contra as dificuldades íntimas provocadas em nós por nossos desordenados apetites e as imperfeições da nossa natureza. Até aqui minha tese se defende bem, mas percebo de repente que, a ser justa, a alma de Sócrates, a mais perfeita a meu ver, não se recomendaria particularmente, pois não concebo que tenha sido algum dia presa de desejos condenáveis. Sua virtude, não creio que experimentasse jamais alguma dificuldade em praticá-la, ou tivesse para tanto que entrar em luta consigo mesmo. Seu raciocínio era tão perfeito, e tal o seu domínio sobre si mesmo, que nunca deve ter nascido nele o menor apetite repreensível. Sua virtude era tão elevada que não posso admitir alguma coisa censurável tenha existido nele, e o vejo andando sempre com passo vitorioso e triunfante, solene, sem embaraço, sem nada que o detenha ou perturbe. Se, para existir, precisa a virtude de lutas contra as paixões contrárias, deveremos concluir que ela não pode prescindir da colaboração do vício e que este lhe é indispensável a fim de que alcance a honrosa reputação em que é tida? Que seria então dessa corajosa e generosa volúpia que propugna Epicuro, a qual exibe sentimentos maternais pela virtude, essa virtude que ela embala, anima e diverte com os brinquedos da febre, da vergonha, da pobreza, da morte, das prisões? Se eu admitir que a virtude perfeita se reconhece pela maneira por que combate a dor; a paciência com que suporta a violência da gota sem se comover; se a rispidez e as dificuldades são condições essenciais à sua existência, como se definirá então essa virtude elevada a um tal diapasão que não somente despreza o sofrimento mas com ele goza, deleitando-se sob o peso de uma cólica extenuante? Essa virtude, em obediência a cujos princípios, estabelecidos por eles próprios, os epicuristas moldaram seus atos e que muitos outros, como Catão, ultrapassaram? Quando penso em Catão a arrancar-se as entranhas para morrer, não posso crer que o haja feito simplesmente porque sua alma estava isenta de medo e inquietação, nem que assim tenha agido unicamente para obedecer às regras dos estoicos, os quais exigiam que o ato executado o fosse deliberadamente, sem emoção e sem que a impassibilidade se desmentisse. Creio que devia haver em sua virtude um excesso de energia, que ela era de uma têmpera excepcional. E penso que encontrava prazer e volúpia na realização de tão nobre gesto, comprazendo-se nele mais do que em qualquer outro de sua existência: "saiu da vida, feliz por ter encontrado uma razão para morrer". E tanto assim o creio, que duvido tivesse ele desejado que tão boa oportunidade para tal feito não se apresentasse. E eu estaria convencido disso, não fosse a elevação de sentimento que o levava a colocar o bem público acima do seu próprio; e estou persuadido de que foi grato ao destino, o qual, em favorecendo um bandido inimigo das liberdades de sua pátria, lhe reservara tão bela provação. Parece-me ver em sua conduta, nessa circunstância, sua alma, a qual devia experimentar um prazer extraordinário, uma volúpia viril ao considerar a nobreza e a elevação do que ia fazer, tanto mais orgulhosa de si quanto ia morrer e sustentado não pela vontade de conquistar glórias, como pretenderam alguns que o julgaram como julgam as massas, pelo lado mesquinho - o que fora indigno de tão generoso e escrupuloso espírito -, mas pela beleza do gesto, cuja sublimidade apreciava melhor do que nós, porquanto mais do que ninguém lhe conhecia os móveis. Os filósofos, felizmente, acharam que esse ato tão belo em ninguém melhor do que em Catão se acertaria, e que somente a ele cabia acabar assim. E, no entanto, teve ele igualmente razão em ordenar a seu filho e aos senadores que o acompanhavam resolução bem diferente: "Catão, que recebera da natureza uma severidade incrível; que, pela sua constância e a imutabilidade de seus princípios, consolidara ainda mais seu caráter, tinha que morrer de preferência a suportar a presença de um tirano”. Toda morte deve estar de acordo com a vida a que põe fim. No momento de morrer, não devemos ser diferentes do que fomos. Sempre julgo a morte pela vida e se aludem a alguém cuja morte revela energia em contraste com uma vida de fraqueza, penso que se trata apenas de uma aparência, que na realidade essa morte foi provoca da por uma causa fraca e adequada à vida do morto. Diante da satisfação e da facilidade com que Catão suportou a morte, a que atingiu pela força de caráter, deveremos imaginar que em algo se ofusca o brilho de sua virtude? Quem tem em seu cérebro algumas noções, embora sucintas, de filosofia, poderá representar-se Sócrates em sua prisão, acorrentado e condenado, livre unicamente de seus temores? Quem não percebe nele, além da firmeza de ânimo e da tenacidade que possuía normalmente, algo mais, uma espécie de contentamento, de alegria, nas palavras que pronunciou e nas atitudes que teve nos últimos momentos? O estremecimento de prazer que sentiu ao passar a mão nas marcas dos ferros, não será um reflexo da felicidade que lhe inundava a alma por se libertar dos incômodos do passado e por se achar tão próximo o momento em que o futuro lhe seria revelado? Catão há de perdoar-me, espero: sua morte é mais trágica e impressiona mais, mas a de Sócrates, não sei por que, é ainda mais bela. Aristipo, respondendo aos que dela se apiedavam, exclamou: "Quisessem os deuses dar-me uma igual". Depara-se nas almas de Catão e Sócrates, e nas dos que os imitaram (pois duvido que alguém os haja igualado), uma prática tão perfeita e constante da virtude que se diria ter ela se incorporado à natureza deles. Não é uma virtude nascida de um esforço, nem ditada pela razão; a própria essência de suas almas, sua vida normal e cotidiana elevaram-na a tal altura, mercê do prolongado exercício da filosofia, a qual encontrou neles um esplêndido e rico temperamento. E desse modo as paixões nefastas, que em nós germinam e crescem, não acharam brecha por onde penetrar seus espíritos. A rigidez e a firmeza de seus caracteres afogou e extinguiu a concupiscência, tão logo tentou inquietá-los. Ora cumpre reconhecer que é mais belo, em consequência de uma elevada e divina resolução, impedir as tentações de nascerem e edificar a virtude abafando o vício em embrião do que se esforçar por detê-lo em sua evolução e contra ele triunfar após se ter entregue às suas primeiras seduções. E esta segunda maneira de se conduzir é por sua vez mais meritória do que ser senhor de um temperamento bondoso e fácil, por natureza alheio ao vício e à devassidão. Nesta terceira e última hipótese, o homem, ao que me parece, pode permanecer inocente, mas não será virtuoso. Não faz o mal, mas não tem energia suficiente para fazer o bem. E isso constitui uma condição vizinha da imperfeição e da fraqueza, cujos limites são tão difíceis de se estabelecerem quanto as próprias palavras "bondade" e "inocência", as quais já então só despertam desprezo em nós. Observo que várias virtudes, como a castidade, a sobriedade, a temperança, podem desenvolver-se em nós em consequência de um enfraquecimento de nossas faculdades físicas. A energia diante do perigo (se é que se há de chamar energia), o desprezo pela morte, a resignação na desgraça podem provir - e provêm muitas vezes - do fato de não saber o homem julgar os acidentes e não os conceber tal qual são; por isso, por não compreender ou por tolice, por vezes parece alguém virtuoso, e vi elogiarem certas pessoas por atos que lhes deviam censurar. Um senhor italiano disse-me de uma feita o seguinte, que não depõe em favor de seus patrícios: "a sutileza de espírito dos italianos e a vivacidade de suas concepções são tão grandes, preveem com tal antecedência os perigos e acidentes, que não há como estranhar que, na guerra, tratem de sua segurança antes mesmo de surgir o risco". Os franceses e os espanhóis, acrescentava, que não têm tão bom olfato, o que os torna temerários, precisam ver o perigo e tocá-lo com as mãos para se atemorizarem. Quando ocorre o acidente, não o sabem enfrentar. Quanto aos alemães e aos suíços, concluía, mais grosseiros e embotados, nem sequer se dão conta do perigo antes de serem abatidos pelo golpe. Em verdade tal opinião pode não passar de piada, mas uma coisa é certa: na guerra os estreantes arriscam-se não raro com uma imprudência que não mais demonstram depois de escaldados: "bem sabemos quanto podem sobre um guerreiro a sede de glória e a doce honra de um primeiro embate". Eis por que, quando se julga uma ação particular, é necessário ponderar as circunstâncias em que se verificou, e, em seu todo, o homem que a praticou, antes de se pronunciar acerca de sua classificação. A propósito, uma palavra a meu respeito. Ouvi meus amigos denominarem prudência o que em mim era sorte, e considerarem resultante de minha coragem e de minha tenacidade o que decorria de minha clarividência na análise da situação, atribuindo-me assim ao acaso qualidades más ou boas. Aliás estou tão longe daquele grau de perfeição em que a virtude se torna hábito, que nunca dei provas de haver sequer alcançado o grau precedente, não me tendo nunca esforçado de fato para conter os meus desejos. Minha virtude não passa de inocência, ou melhor, ela é acidental e fortuita. Se tivesse vindo ao mundo com um temperamento mais desordenado, creio que meus sofrimentos houveram sido grandes, pois quase nunca sei opor uma vontade firme ao assalto das paixões. Por um pouco violentas que se tivessem mostrado, houvera-me rendido. Não sei alimentar querelas e conflitos dentro de mim. De sorte que não tenho grandes méritos em não exibir muitos vícios: "Se minha natureza é boa, se tenho apenas uns leves defeitos, um belo rosto também pode ter algumas manchas”. E o devo menos à razão que ao destino. Este fez-me nascer de uma raça reputada por sua honradez, e de um pai excelente. Não sei se herdei em parte o seu caráter, se os exemplos de minha família, a boa educação que recebi na infância para isso contribuíram insensivelmente,ou se nasci com tais predisposições: "seja porque a Balança me viu nascer, ou o Escorpião temível e funesto na hora do nascimento, ou o Capricórnio que impera tiranicamente sobre os mares do Ocidente". O que é certo é que aborreço os vícios. As palavras de Antístenes, a alguém que lhe indagava qual o melhor aprendizado da vida, parecem aplicáveis a meu caso: "desaprender o mal". A repulsa que sinto por ele parte de um sentimento tão natural e pessoal que esse instinto, essa impressão que remonta aos meus primeiros anos se perpetuaram sem que nenhuma circunstância os modificasse, embora, por não obedecer a princípios rigorosos, me ocorra perpetrar atos que no íntimo reprovo. Pode isso parecer uma enormidade, não é menos certo porém que meus costumes são mais morigerados do que minha inteligência, minha concupiscência menos desregrada do que minha razão. Aristipo professava ideias tão ousadas em prol das riquezas e dos prazeres, que revoltaram todos os filósofos; era no entanto muito diferente na vida privada. Tendo-lhe Dionísio, o Tirano, apresentado três belas jovens para que escolhesse, respondeu que as levava todas, porquanto Páris errara ao preferir uma às outras. Em chegando em casa, porém, mandou-as embora intatas. Queixava-se o seu criado certa vez em viagem do peso do dinheiro que carregava; sugeriu Aristipo que tirasse o excesso e o deixasse à beira do caminho. Epicuro, cujos dogmas não são religiosos e nos incitam a gozar a vida, viveu muito preso às práticas religiosas e ao trabalho. Assim é que escreve a um de seus amigos dizendo que vive somente de pão preto e água e pedindo-lhe que lhe envie um pedaço de queijo a fim de ter a possibilidade de uma refeição abundante. Será verdade que, para sermos completamente bons, tenhamos de o ser por disposição natural e inconsciente, independentemente de leis, raciocínios e exemplos? Meus desregramentos não foram, graças a Deus, dos mais repreensíveis; condenei-os como mereciam, porque não chegaram a perturbar o meu discernimento. Reprovo-os mesmo mais acerbamente em mim do que em outrem. É tudo, porém, pois lhes oponho resistência diminuta e deixo-me levar facilmente por eles, conquanto saiba evitar abusos e impedir que degenerem em excessos, porque, se não tomamos cuidado, novos vícios nascem dos vícios antigos e acabam por atuar simultaneamente. Esforcei-me por restringir os meus, isola-los e atenua-los na medida do possível. "Afora isso, não sou viciado”. Afirmam os estoicos que, quando o sábio age, todas as suas virtudes participam da ação, embora uma delas, segundo a natureza do ato, pareça predominar. Vemos algo semelhante no corpo humano, o qual não pode, por exemplo, entregar-se à cólera sem que todos os humores se ponham em movimento. Daí a conclusão de que, se nos abandonamos a um vício, todos os outros se apossam de nós. Não creio que assim aconteça, pois percebo em mim o contrário. São, tais coisas, sutilezas sem fundamento, em que se comprazem por vezes os filósofos. Se sou vítima de certos vícios, fujo de outros como fugiria um santo. Os peripatéticos negam essa união indissolúvel e Aristóteles é de opinião que um homem pode ser avisado e justo apesar de imoderado e incontinente. Sócrates confessava, a quem lhe observava que sua fisionomia revelava uma tendência para o vício, que, efetivamente, se sentia inclinado para o desregramento, mas se corrigira por considerar um dever fazê-lo. Os amigos do filósofo Estílpon diziam que, tendo nascido com um gosto acentuado pelo vinho e pelas mulheres, chegara, pela força de vontade, a abster-se de ambas as coisas. Ao contrário, as boas qualidades que tenho, devo-as à boa estrela que presidiu ao meu nascimento; não as obtive por decreto, preceitos ou aprendizado. Minha inocência é inata e ingênua; tenho pouca vontade e pouca malícia. Entre os vícios, um há que detesto particularmente: a crueldade. Por instinto e por reflexão, considero-o o pior de todos; e cheguei mesmo a esta fraqueza de não poder ver matarem um frango sem que me seja desagradável, nem posso ouvir uma lebre gemer nos dentes dos cães, apesar de adorar a caça. Os que combatem a volúpia, a fim de mostrar que é viciosa e absurda, alegam que, "quando levada ao paroxismo, nos domina a ponto de destruir-nos a razão"; e em apoio de sua tese invocam o que sentimos ao nos unirmos à mulher "quando, à aproximação do prazer, o sexo vai fecundar o sexo", momento em que a satisfação dos sentidos como que nos destrói e destrói a razão enlevada pela volúpia. Acho que pode ocorrer coisa diferente e que nos é possível, em querendo, ter outros pensamentos nesse instante, mas para tanto há que fortalecer a alma. Acho, por experiência, que podemos conter o efeito desse prazer e não penso que Vênus seja uma deusa imperiosa, como afirmam alguns mais castos do que eu. Nem considero milagre, Como diz a rainha de Navarra em um conto de seu "Heptameron" (livro muito agradável no gênero), nem excessivamente difícil passar noites inteiras, com calma e tranquilidade, ao lado da mulher desejada durante longo tempo, cumprindo a promessa feita de nos contentarmos simplesmente com beijos e presença palpável. Creio que a caça nos dá melhor exemplo da impotência momentânea da razão; o prazer é menor, mas as surpresas são maiores, e nossa razão maravilhada perde a faculdade de agir quando, inopinadamente, após demorada espera, surge o animal onde menos o aguardamos. O incidente, os gritos, comovem-nos de tal modo que seria difícil, para quem aprecia a caça, dela desviar o pensamento. Por isso os poetas representaram Diana indiferente às chamas do amor e às flechas de Cupido: pois "como não esquecer então as malícias do amor?” Volvamos ao nosso tema. Entristecem-me grandemente as misérias alheias. Quando, por uma circunstância qualquer, me encontro com alguém em lágrimas, choraria facilmente junto, se alguma coisa me arrancasse lágrimas. Nada me comove mais do que ver chorar, de verdade ou fingidamente, e até em pintura. Não me apiado dos mortos: antes os invejaria, mas tenho dó - e muito - dos agonizantes. Os selvagens, que assam e comem o corpo dos mortos, provocam em mim uma impressão menos penosa do que os que os atormentam e torturam quando ainda em vida; não posso sequer assistir calmamente às execuções capitais impostas pela justiça, por mais razoáveis que sejam. Alguém, querendo dar uma prova da demência de Júlio César, dizia: era suave em suas vinganças. Tendo forçado alguns piratas a se renderem, piratas que o haviam aprisionado antes exigindo resgate, contentou-se com os mandar estrangular, só os crucificando depois de mortos. E tendo Filêmon, seu secretário, tentado envenena-lo, mandou-o simplesmente executar, sem antes o torturar. Sem dizer quem foi esse historiador latino? que se atreve a considerar demência o fato de apenas mandar matar o ofensor, fácil é adivinhar que estava sob a impressão dos horríveis e repugnantes exemplos de crueldade que os tiranos de Roma puseram em voga. Quanto a mim, parece-me cruel, mesmo nos atos de justiça, tudo o que vai além da simples morte. É mais cruel ainda de nossa parte, a nós que deveríamos cuidar de fazer com que as almas abandonem a terra serenamente, o que se torna impossível se as submetemos a tormentos intoleráveis e atrozes suplícios. Ultimamente um soldado preso, percebendo do alto da torre em que se achava, que a multidão se reunia e carpinteiros construíam um patíbulo, imaginou que se tratasse dele. Resolveu então matar-se; e, como não encontrasse senão um prego enferrujado, vibrou dois golpes na garganta. Vendo que não obtinha o resultado desejado, deu novo golpe no ventre, deixando o prego no ferimento. O primeiro guarda a entrar na cela encontrou-o nesse estado, ainda vivo mas quase sem forças. Com receio de que falecesse, sem perda de tempo - e às pressas -leu-lhe a sentença. Ao saber que estava condenado apenas a ser degolado, o preso como que recobrou o ânimo, aceitou o vinho antes recusado e louvou seus juízes pela brandura da pena, declarando que resolvera suicidar-se de medo de sofrer mais dolorosamente, pois pensara que os preparativos a que assistira fossem para ele. E parecia ter-se livrado da morte, tão somente porque trocara a maneira de morrer. Acho que esses exemplos de rigor, pelos quais procuram impor respeito ao povo, só deveriam ser praticados com os despojos mortais dos criminosos. Vê-los privados de sepultura, queimados, esquartejados produziria o mesmo efeito nas pessoas quanto os suplícios que lhes infligem em vida, embora na realidade pouco signifiquem, pois como se diz nos Evangelhos: "matam o corpo; nada mais podem fazer depois". Mas os poetas ressaltam muito bem o horror que essas sevícias acrescentam à morte: "Ah! que se arrastem desonrosamente por terra, gotejando sangue, os restos de um rei semiqueimado, ossos à mostra". Encontrei-me um dia em Roma, no momento em que executavam Catena, ladrão famoso. Estrangularam-no primeiramente, sem que os assistentes manifestassem nenhuma emoção, mas quando o começaram a esquartejar, já não dava o carrasco um só golpe sem que o povo o acompanhasse com gemidos e exclamações, como se cada qual atribuísse os próprios sentimentos àquela carniça. Tais atrocidades devem exercer-se não no que ainda vive e sim na carcaça. Inspirado em pensamento análogo é que Artaxerxes temperava o rigor das antigas leis persas e determinava que os fidalgos que faltassem ao seu dever, em vez de serem açoitados, fossem despojados de suas roupas, as quais seriam açoitadas em lugar deles, e que, em vez de lhes arrancar os cabelos, lhes tirassem simplesmente os chapéus. Os egípcios, tão devotos, achavam que atendiam às exigências da justiça divina, sacrificando-lhe porcos, vivos ou em efígie. Ideia ousada, essa de querer pagar com pinturas e simbolicamente a Deus, que é substância essencial! Vivo em uma época em que, por causa de nossas guerras civis, abundam os exemplos de incrível crueldade. Não vejo na história antiga nada pior do que os fatos dessa natureza, que se verificam diariamente e aos quais não me acostumo. Mal podia eu conceber, antes de o ver, que existissem pessoas capazes de matar pelo simples prazer de matar; pessoas que esquartejam o próximo, inventam engenhosos e desconhecidos suplícios e novos gêneros de assassínios, sem ser movidos nem pelo ódio nem pela cobiça, no intuito único de assistir ao espetáculo dos gestos, das contorções lamentáveis, dos gemidos, dos gritos angustiados de um homem que agoniza entre torturas. E o último grau a que pode atingir a crueldade: "que um homem mate um homem, sem ser impelido pela cólera ou o medo, e unicamente para o ver morrer". Quanto a mim, nunca pude sequer ver perseguirem e matarem um inocente animal, sem defesa, e do qual nada temos a recear, como é o caso da caça ao veado, o qual, quando sem fôlego e sem forças, e sem mais possibilidade de fuga, se rende e como que implora o nosso perdão com lágrimas nos olhos: "gemendo, ensanguentado, pede mercê”. Tal espetáculo sempre me pareceu muito desagradável. Se pego algum animal vivo, dou-lhe liberdade. O mesmo fazia Pitágoras que comprava peixes e pássaros para os soltar: "Foi, creio, com o sangue dos animais que o ferro se tingiu pela primeira vez”. Os que são sanguinários com os bichos, revelam uma natureza propensa à crueldade. Quando se acostumaram em Roma com os espetáculos de matanças de animais, passaram aos homens e aos gladiadores. A própria natureza, a meu ver, agrega ao homem certa tendência para a inumanidade: ninguém se compraz em ver os bichos brincarem e se acariciarem, mas todos se excitam ante suas lutas ferozes. Para que não riam desta simpatia que demonstro pelos animais, observarei que a própria teologia os recomenda à nossa benevolência. Considerando que o Criador nos pôs na terra para servi-Lo e que eles são como nós da mesma família, anda bem a teologia em recomendar algum respeito e afeição pelos animais. Pitágoras foi buscar nos egípcios o dogma da metempsicose. Posteriormente essa ideia foi aceita por outros povos, entre os quais os nossos druidas: "as almas não morrem; após abandonarem suas primeiras residências passam a outras, e assim é eternamente”. A religião dos antigos gauleses admitia que a alma é imortal e deduzia que mudava sempre de lugar transportando-se de um corpo para outro. A esta ideia juntava-se a da justiça divina, pois, segundo a conduta da alma durante a sua permanência em dado corpo, Deus lhe designa outro em condições mais ou menos semelhantes: "aprisiona as almas em corpos de animais: a que foi cruel no urso, a do ladrão no lobo, a do velhaco na raposa... e depois de ter assim passado por mil metamorfoses, purificadas enfim no rio do Esquecimento, são devolvidas às suas primitivas formas humanas". A alma valente, encarnavam-na em um leão: concupiscente, em um porco; covarde, em um veado ou uma lebre; maliciosa, em uma raposa; e assim por diante, até que, purificada pela penitência, voltasse para o corpo de um homem: "eu mesmo, recordo-me, quando da guerra de Tróia, era Eufórbio, filho de Panteu”. Não concordo com esse parentesco entre os animais e nós. Não compartilho a maneira de ver de certos povos, entre os mais antigos e civilizados, que não somente admitiam os animais na sociedade dos homens, mas ainda os colocavam muito acima de si mesmos. Encaravam-nos uns como familiares privilegiados dos deuses e por eles demonstravam maior respeito e consideração do que por qualquer ser humano; outros, indo mais longe, reconheciam-nos por deuses e não adoravam outras divindades: "os bárbaros divinizaram os bichos porque deles tiravam proveito." "Uns adoram o crocodilo, outros contemplam com santo terror a íbis alimentada com serpentes. Aqui brilha no altar a imagem em ouro de um símio de cauda comprida... além, adora-se um peixe do Nilo; alhures, cidades inteiras prosternam-se diante de um cão". A interpretação muito aceitável que dá Plutarco desse erro é também honrosa para os animais; não era o gato ou o boi, por exemplo, que os egípcios adoravam e sim os atributos divinos que simbolizavam: no boi a paciência; no gato a vivacidade; ou como entre os borguinhões e os alemães, o gosto pela liberdade que eles colocavam acima de tudo o que vinha de Deus. Quando encontro em autores muito sensatos dissertações tendentes a provar certa semelhança entre os animais e nós, quanto participam de nossos próprios privilégios e quanto temos em comum, torno-me muito menos presunçoso e abdico sem dificuldade essa realeza imaginária do homem sobre as demais criaturas. Mas, ainda que tudo isso seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito não somente pelos animais, mas também por tudo o que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede. Os turcos possuem estabelecimentos em que recolhem os animais e hospitais em que os tratam. Os romanos alimentavam a expensas do tesouro os gansos que tinham salvo o Capitólio. Os atenienses haviam decidido que as mulas e os burros empregados na construção do templo de Hecatompedon seriam deixados em liberdade e pastariam onde quisessem sem que ninguém os pudesse impedir. Os agrigentinos tinham por costume corrente enterrar cerimoniosamente os animais queridos, cavalos dotados de alguma qualidade rara, cães e pássaros úteis ou simplesmente divertidos. A riqueza e a quantidade dessas sepulturas, que se admiraram ainda séculos depois, não ficavam atrás das que lhes eram peculiares em tudo. Os egípcios enterravam os lobos, os ursos, os crocodilos, os cães e os gatos em lugares sagrados. Embalsamavam-nos e usavam luto em sua memória. Címon deu honrosa sepultura às éguas com que ganhou três vezes consecutivas as corridas olímpicas. Xantipo, o Antigo, enterrou seu cão em um promontório, no mar que desde então teve seu nome. E o próprio Plutarco teve escrúpulos, diz-nos, em vender com algum lucro, e enviar ao matadouro, um boi que lhe fora útil durante muito tempo. CAPÍTULO XII APOLOGIA DE RAYMOND SEBOND É em verdade a ciência coisa importante e útil. Os que a desprezam dão prova de estupidez. Não considero entretanto seu valor tão elevado quanto o imaginam alguns, como o filósofo Herilo, por exemplo, que a encara como o soberano bem e lhe atribui o poder que não tem, a meu ver, de nos tornar sensatos e satisfeitos. Ou como outros que nela veem a mãe de todas as virtudes, resultando da ignorância todos os vícios. Se assim é, cabe interpretá-lo. Minha casa esteve sempre aberta aos homens de ciência, e eles a conhecem bem. Meu pai, que a dirigiu durante mais de cinquenta anos, animado por esse entusiasmo do Rei Francisco I pelas letras, procurou sempre com cuidado e grande interesse a companhia dos doutos. Recebia-os como se fossem santos, inspirados na sabedoria divina. Recolhia seus preceitos e discursos como oráculos e com tanto maior reverência e fé quanto não estava à altura de julgá-los, não tendo tido, como não tiveram seus avós, íntimo contato com as letras. Eu também os aprecio muito, mas não os adoro. Entre os que recebeu meu pai figura Pierre Bufiuel, homem de grande reputação e que se demorara alguns dias em Montaigne, com outros sábios. No momento de partir presenteou-nos com uma obra intitulada "Teologia Natural ou Livro das Criaturas", de Raymond Sebond. Meu pai conhecia perfeitamente o italiano e o espanhol, e sendo a obra escrita nesta última língua, embora mesclada com terminações latinas, pensava Buñuel que, com alguma ajuda, ele a pudesse ler e dela tirar proveito. Recomendou-lhe o livro por ser muito útil e apropriado às circunstâncias, pois estávamos na época em que a Reforma de Lutero começava a expandir-se e a abalar em muitos países as antigas crenças. A esse respeito Buñuel mostrava-se clarividente, prevendo, simplesmente pelo raciocínio, que esse princípio de doença degeneraria logo em execrável ateísmo, e isso porque o vulgo, não sendo capaz de julgar as coisas em si, se atém às aparências. Quando se tem a temeridade de, por uma vez que seja, incitá-lo a desprezar e controlar as opiniões ante as quais respeitosamente se inclina, porquanto implicam em sua salvação; quando se põem em dúvida certos pontos de sua religião, submetendo-os a seu julgamento, ele acaba muito rapidamente por sentir a mesma incerteza para com todas as suas demais crenças, pois as que ficam têm menos autoridade e fundamento do que aquelas de que o despojaram. Liberta-se, então, como de um jugo tirânico, de todos os princípios que recebera com apoio nas leis ou nos antigos costumes, "pois calcamos aos pés de bom grado aquilo que mais veneramos" e decide desde logo não mais aceitar o que não tenha antes examinado e aprovado. Dias antes de morrer, tendo meu pai por acaso encontrado o livro sob um monte de papéis abandonados, pediu-me que o vertesse para o francês. É tarefa das mais fáceis traduzir autores como esse, em quem o fundo é tudo; já o mesmo não ocorre com os que sacrificam muito à graça e à elegância do estilo, principalmente quando nos devemos expressar em uma língua mais pobre que a do original. Para mim tratava-se de trabalho inédito, mas ocorrendo, por felicidade, ter então alguns lazeres, e nada podendo recusar ao melhor dos pais, fiz o possível e terminei a tradução. Meu pai ficou satisfeitíssimo e quis que a obra se imprimisse, o que se fez depois de sua morte. Achei belas as ideias do autor, sólida a estrutura da obra e piedosa a sua inspiração. Como muitas pessoas se distraem em sua leitura, entre as quais senhoras a quem devemos obrigações, não raro me foi dado ajudá-las, destruindo as duas principais objeções que fazem ao livro. O objetivo deste é ousado e corajoso, pois se propõe estabelecer e provar, contra os ateus, todos os artigos de fé da religião cristã, baseando-se unicamente em razões humanas e naturais. E, em verdade, acho-o tão firme e tão brilhante desse ponto de vista, que não creio seja possível conseguir mais, nem penso que alguém o tenha conseguido. Parecendo-me a obra demasiado rica e bela para autor tão pouco conhecido e de quem nada sabemos, senão que era médico, espanhol, e residira em Tolosa há cerca de duzentos anos, indaguei de sua importância junto a Adriano Tournebus que tudo sabe. Este respondeu-me que, a seu ver, podia muito bem tratar-se de uma quinta-essência tirada de Santo Tomás de Aquino, cuja infinita erudição e sutileza de espírito eram as únicas capazes de tais ideias. Como quer que seja (e a hipótese de Tournebus não basta para despojar Sebond), trata-se por certo de um homem eminente que escreveu belíssimas páginas. A primeira objeção ao livro é que os cristãos se enganam em querer sustentar com argumentos puramente humanos uma crença que só se concebe pela fé e por intervenção particular da graça divina. Parece-me que tal objeção provém de uma exagerada piedade, por isso mesmo convém refutá-la com tanto maior delicadeza e respeito. E é neste espírito que gostaria de responder. Seria tarefa para alguém mais versado em teologia do que eu, que a ignoro. Entretanto, julgo que em uma coisa tão elevada e divina, que sobre excede a inteligência humana, como essa verdade com que a bondade de Deus houve por bem iluminar-nos, cumpre que Ele nos continue a auxiliar, e que só por um favor especial de Sua parte podemos concebê-la e penetrá-la. Abandonados unicamente à nossa inteligência, não seremos capazes, pois se assim não fosse, muitos espíritos superiores e privilegiados como os que floresceram nos séculos passados teriam chegado à fé por intermédio da razão. E somente a fé que nos revela os inefáveis mistérios de nossa religião e nos confirma a sua verdade; o que não significa não seja bela e louvável empresa pôr a serviço dessa fé os meios de investigação que o homem recebeu de Deus. E não há como duvidar um momento sequer seja este o emprego mais digno que nos caiba dar a nossas faculdades mentais, nem exista ocupação e objetivo mais elevados para um cristão do que os de orientar seus estudos e meditações no sentido de embelezar, estender e ampliar os alicerces de sua crença. Não nos contentemos com colocar ao serviço de Deus nosso espírito e nossa alma; devemos também prestar-lhe uma homenagem física, pois todos os nossos órgãos, todos os atos e atitudes concorrem para a Sua glorificação. Nossa razão deve agir do mesmo modo e dedicar-se a amparar nossa fé, sempre porém sob a reserva de não imaginar que por si só, pela força que pode alcançar, lhe seja dado adquirir essa ciência sobrenatural que provém de Deus. Se essa ciência não nos penetrasse por extraordinária graça, se não entrasse em nós senão pela força do raciocínio e outros processos humanos, não ocuparia o lugar nem teria o esplendor que deve ter. Creio, porém, que assim é que nos penetra. Se estivéssemos unidos a Deus por uma fé ardente, se a Ele nos prendêssemos por Ele próprio e não por nós, se nossa fé assentasse em fundamento divino, as tentações humanas não teriam o poder de nos abalar como têm; resistiríamos sem dificuldade a tão fracos assaltos. O amor à novidade, a tirania dos príncipes, a sorte de um partido, as mudanças temerárias e fortuitas de nossas opiniões, não conseguiriam estremecer ou alterar as nossas crenças; não nos deixaríamos perturbar por argumentos novos e nenhuma retórica no mundo nos impressionaria. Resolutos e serenos, enfrentaríamos esses golpes: "assim um vasto rochedo opõe sua massa ao furor das ondas que rugem e se quebram de encontro a ele". Se esse raio divino nos atingisse ainda que de leve, em tudo o veriam. Nossas palavras e nossos atos lhe refletiriam o clarão, tudo o que emana de nós seria iluminado por tão nobre claridade. Deveríamos envergonhar-nos. O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja, a ela adapta rigorosamente sua conduta, e nós outros cristãos só nos unimos à nossa divina doutrina por palavras. Quereis a prova? Comparai nossos costumes aos dos maometanos e pagãos e vede quanto os nossos são inferiores, mesmo quando devido à superioridade de nossa religião deveríamos brilhar extraordinariamente. Cumpriria que dissessem: são justos, caridosos, bons, logo devem ser cristãos. O resto é comum a todas as religiões: a esperança, a confiança, os acontecimentos que fortalecem, as cerimônias, as penitências, os mártires. O que deveria distinguir a nossa verdade fora a virtude, o mais celestial distintivo, o mais digno e mais árduo produto da verdade. É porque não somos o que deveríamos ser, que nosso bom São Luís insistia em desaconselhar o rei tártaro que se convertera a vir a Lião beijar os pés do papa e admirar a pureza de nossos costumes, pois temia que, ao contrário, nossos desregramentos lhe esgotassem a admiração por nossas crenças. Isso, entretanto, não se verificou com aquele que, visitando Roma com idênticas intenções e observando a dissolução do clero e do povo, mais entusiasta se tornou de nossa fé, considerando quanto devia ser forte e divina para manter sua dignidade e seu esplendor em meio a tamanha corrupção. Se tivéssemos um pingo somente de fé, removeríamos montanhas, dizem os Evangelhos. Nossas ações, inspiradas pela divindade que presidiria igualmente à sua execução, não se incluiriam apenas entre as que o homem pode cumprir, mas participariam do milagre, como nossas próprias crenças: "crê, e o caminho que te conduzirá à virtude e à felicidade será curto”. Uns se engenham em fazer crer que creem, e não creem; os outros - a maioria - persuadem-se a si próprios e não sabem o que seja crer. Achamos estranho, nas guerras que atualmente assolam nosso país, que os acontecimentos flutuem na indecisão; é que não pomos nossa fé nessas lutas. Um dos partidos tem por ele a justiça, mas faz dela apenas uma bandeira e uma máscara; ostenta-a mas não lhe obedece. Não é ela que impele a ação; não a desposou realmente o partido, o qual não a traz no coração mas tão somente nos lábios, como faria um advogado. Ora, Deus deve Seu apoio extraordinário à fé e à religião e não a nossas paixões. E nessa luta são os homens que a orientam. Para eles a religião é um meio, quando deveria ser um fim. Atentai para os acontecimentos e vereis como acomodamos a religião, tal qual uma cera mole, a nossos caprichos, obrigando-a a assumir as formas que queremos. Jamais se viu em França semelhante abuso. Que a puxem para a esquerda ou para a direita, que digam branco ou preto, todos a colocam igualmente a serviço de suas ambições, e agem de maneira tão idêntica em seus desregramentos e injustiças que tornam difícil acreditarmos na divergência de opiniões que alegam para justificar seus atos, porquanto nossa opinião é que deve inspirar nossa conduta e regular nossa vida. Uma só e mesma escola, com os mesmos princípios, não produziria costumes mais homogêneos, mais uniformes. Vede a horrível impudência com que jogamos com a palavra divina, a irreligiosidade com que acolhemos ou rejeitamos, segundo o lugar que nos assinam os fados nessas tempestades públicas. Que partido, há um ano, sustentava solenemente ser permitido ao cidadão revoltar-se e armar-se contra seu rei em defesa de sua religião? Que defendia o partido contrário? E vede de que lado se situam um e outro agora, e se as armas se entrechocam menos por se terem invertido as posições! E queimamos as pessoas que afirmam ser preciso modificar a verdade de acordo com os interesses de nossa causa! Sejamos francos: se selecionássemos no exército, mesmo no exército da legalidade, os que servem unicamente para defender sua fé, e até os que querem o império da lei e do príncipe, não se constituiria com eles uma companhia sequer. Como se explica que sejam tão poucos os que permanecem fiéis à sua fé, qualquer que seja o desenvolvimento dos sucessos, e tão numerosos os que ora vão a passo e ora a galope, e malbaratam os nossos interesses passando da violência à moleza e à indiferença? Não será porque a massa obedece a considerações pessoais e ocasionais, cuja diversidade a impulsiona? E evidente, para mim, que somente nos conformamos com os deveres que se coadunam com nossas paixões. Não há hostilidade mais eficaz que a dos cristãos. Nosso zelo é capaz de maravilhas quando secunda nossa inclinação natural para o ódio, a crueldade, a ambição, a avareza, a intriga, a rebeldia. Ao contrário, só por milagre, ou temperamento especial, nada nos induz à bondade, à benevolência e à moderação. Nossa religião tem por objetivo extirpar os vícios; mas fazem com que os dissimule, os alimente e os incentive. É preciso não trapacear com Deus. Se acreditássemos n'Ele - não chego a dizer se tivéssemos fé -, se tão somente acreditássemos n'Ele, e com vergonha o digo, se O tivéssemos em nós como um amigo, por exemplo, nós O amaríamos acima de tudo pela Sua infinita bondade, e pela beleza que n'Ele resplende. Ao menos ocuparia Ele o mesmo lugar que ocupam as riquezas, os prazeres, a glória, os companheiros. O melhor dentre nós, que receia magoar seu vizinho, seus parentes, seu mestre, não teme ultrajá-lo. Haverá alguém, por mais simples de espírito que seja, que não queira trocar um desses prazeres que nos oferecem os vícios pela esperança de uma glória eterna? E no entanto quantas vezes renunciamos a essa glória por simples desdém, pois, que nos induz à blasfêmia senão o próprio desejo de ofender? Quando iniciavam o filósofo Antístenes nos mistérios de Orfeu, disse-lhe o sacerdote que os que praticavam essa religião receberiam, ao morrer, as mais admiráveis recompensas. "Por que então não morres?", observou o filósofo. Diógenes, mais grosseiramente ainda, como de hábito, respondeu ao sacerdote que lhe recomendava que abraçasse sua religião a fim de alcançar a felicidade eterna: "Queres que acredite que grandes homens como Agesilau e Epaminondas serão miseráveis enquanto tu, que és um burro e nada fazes, serás um bem-aventurado somente porque és sacerdote?" Se acolhêssemos essas grandes promessas de beatitude eterna com o mesmo respeito que demonstramos pelas doutrinas filosóficas, não teríamos tanto medo da morte: "Em vez de lamentarmos a desagregação de nosso ser, nos alegraríamos com partir e abandonar nossa carcaça mortal, como a serpente muda de pele, como o veado se desfaz de seus velhos cornos". Quero desaparecer, diríamos, para estar com Jesus. A eloquência de Platão no que concerne à imortalidade da alma não impeliu alguns de seus discípulos ao suicídio, a fim de gozar mais cedo a recompensa que o filósofo prometia? Tudo isso é sinal muito evidente de que não compreendemos nossa religião, senão a nosso modo e a nosso bel-prazer, como compreendemos qualquer outra religião. Se é nossa, é porque o destino nos fez nascer em um país onde ela existe, porque é muito antiga, ou porque os homens que a estabeleceram merecem nosso respeito, ou porque tememos os castigos com que ameaça os que não a seguem, ou ainda porque nos seduzem suas promessas. Todas essas considerações podem pesar em nossas crenças, mas são secundárias; são laços de ordem puramente humana. Em outras regiões, outras influências, promessas e ameaças poderiam igualmente impor-nos outras crenças. Somos cristãos como somos perigordinos ou alemães. Diz Platão que poucos ateus o são a ponto de não apelarem para o poder divino nos momentos de perigo. O aforismo não se aplica ao verdadeiro cristão. Isso diz apenas respeito às religiões criadas pelo homem. Que espécie de fé será essa que se desenvolve com a covardia e a pusilanimidade? Linda fé, a que existe somente porque não se tem mais a coragem de deixar de crer! Sentimentos tão falhos quanto a inconstância e o medo poderão provocar em nossa alma uma influência sadia? Há quem pretenda provar, diz ainda Platão, que a razão ordena que consideremos puras invenções tudo o que se afirma do inferno e dos castigos futuros. Mas, apresente-se a oportunidade de serem coerentes, surja a velhice, apareçam as enfermidades e com elas a ameaça do túmulo, logo veremos que o receio do futuro lhes modificará as convicções. E é porque tais impressões enfraquecem o ânimo, que o filósofo proíbe em suas leis as alusões a essas ameaças e procura persuadir os homens de que dos deuses não receberão jamais o mal, a não ser quando necessário ao bem, como remédio para as afecções morais. Diz-se de Bion que, adepto fervoroso do ateísmo de Teodoro, durante muito tempo caçoou dos devotos, mas, surpreendido pela morte, entregou-se às práticas mais supersticiosas, como se os deuses existissem ou deixassem de existir segundo as suas conveniências. Platão conclui e os exemplos o confirmam - que pela razão ou pela força somos sempre levados a crer na existência de Deus. O ateísmo é uma concepção monstruosa e antinatural, e difícil de ser aceita pelo espírito humano, ainda que insolente e anárquico, embora se encontre quem a ostente, seja por rebeldia, seja pela vaidade de emitir opiniões originais e reformadoras; mas se esses ateus são bastante loucos para se dizerem ateus, não são suficientemente fortes para implantar tal convicção em sua consciência. Uma boa estocada no peito e ei-los de mãos postas a implorar o céu. E quando o medo e a doença tiverem abatido esse licencioso e volúvel ardor, voltarão a si e mui discretamente farão como os outros, acreditando naquilo em que todos acreditam. Uma coisa é um dogma seriamente estudado e aceito por todos, outra coisa essas impressões passageiras que, nascidas de espíritos desequilibrados, vão alimentando as mais temerárias ideias e as mais fantasistas. Pobres loucos que se esforçam por ser piores do que está em suas forças. Os erros do paganismo e a ignorância de nossa santa verdade, fizeram ainda que a grande alma de Platão, grande na medida da humana grandeza, caísse outro absurdo da mesma ordem, a saber, a afirmação de que as crianças e os velhos são mais acessíveis à religião, como se esta resultasse de uma fraqueza de espírito. O laço que deveria unir nosso julgamento à nossa vontade, envolver nossa alma e ligá-la ao Criador, não deveria decorrer de nossas considerações, nem de nossos raciocínios e sim de um abraço divino e sobrenatural sob uma só forma, um só aspecto, um só brilho emanado da autoridade de Deus e de Sua graça. Ora, sendo nosso coração e nossa alma regidos pela fé, esta deve poder valer-se de todas as demais partes de nosso ser de acordo com o que cada uma pode dar. Não é crível, portanto, que esse conjunto que constitui o mundo, que essa admirável máquina não revele vestígios denunciadores da presença do grande arquiteto que a construiu e que não se perceba em algumas de suas peças algo suscetível de lembrar o artesão que as fez e juntou. E, efetivamente, Suas obras principais denotam o caráter de Sua divindade, o qual somente a nossa fraqueza impede de perceber. Pois, como diz Deus, Suas obras invisíveis manifestam-se pelas visíveis. Sebond dedicou-se a esse estudo digno de nossa atenção, mostrando-nos que nada neste mundo desmente a grandeza do Criador. Aliás seria contrário à bondade divina que o universo não oferecesse apoio à verdade de nossa fé: o céu, a terra, os elementos, nosso corpo e nossa alma, tudo concorre para justificá-la. Cabe-nos encontrar o meio de utilizarmos tudo isso. Confiam-nos o seu segredo com a condição de que o saibamos compreender, pois o mundo é por excelência o templo sagrado a que o homem tem acesso a fim de contemplar monumentos que não foram construídos pela mão humana, mas sim erguidos pela divina sabedoria, a qual no-los tornou sensíveis como o sol, as estrelas, as águas, a terra, que representam as coisas inteligíveis. As invisíveis, diz São Paulo, nós as concebemos pelo que vemos desse mundo que Ele criou, testemunho de Sua eterna sabedoria e de Sua divindade. "Não sonegando à terra o espetáculo do céu, desenrolando-o sem cessar sobre nós, Deus se descobre em todos os seus aspectos; oferece-se a nós e em nós se inculca; desejando ser claramente percebido em Sua obra, mostra-nos como é e nos convida a meditar as Suas leis". Ora, todos os raciocínios humanos são inertes e estéreis, e só tomam forma na medida em que Deus, por meio da graça, lhes dá tal oportunidade e lhes determina o valor. Os gestos de Sócrates e Catão permaneceram vãos e inúteis porque não tinham por objetivo o amor e a obediência que devemos a Deus, verdadeiro criador de tudo e que eles não conheciam. O mesmo se verifica com nossos raciocínios é discursos: parecem possuir uma forma, mas na realidade não passam de massas confusas e condenadas à impotência sem a fé e a graça. A fé, colorindo e dando brilho aos argumentos de Sebond, dá-lhes consistência e solidez e os torna capazes de servir de guia a um neófito e conduzi-lo pelo caminho que leva ao conhecimento da verdade, moldando-o até certo ponto e o predispondo a receber a graça de Deus que lhe fortalece a fé e a faz perfeita. Conheço um senhor de categoria, versado no estudo das letras, que me confessou ter sido afastado da incredulidade pelos argumentos de Sebond. E ainda que os despojássemos do ornamento, ajuda e aprovação da fé, e os encarássemos como fantasias puramente humanas destinadas a combater as ideias dos que se precipitaram nas pavorosas e temíveis trevas da irreligiosidade, seriam contudo tão valiosos e eficientes quanto quaisquer outros que se lhes oponham. De sorte que podemos dizer com razão aos seus adversários: "se tendes melhores argumentos, apresentai-os, se não, concordai". Reconheçam a validez de nossas provas ou nos deem outras mais substanciais. E eis-me, sem dar por isso, a discutir a segunda objeção que me proponho refutar em nome de Sebond. Há quem ache seus argumentos fracos, insuficientes para provar o que desejam provar e facilmente refutáveis. Essa gente merece que lhe responda com mais energia, pois é mais perigosa porque mais maliciosa. Deturpam de bom grado as palavras alheias no intuito de valorizar as próprias: para o ateu tudo o que se escreve tem alguma relação com o ateísmo e ele envenena com seu próprio veneno o mais inocente pensamento. Uns têm escrúpulos que os levam a achar insossos os argumentos de Sebond; acham que favorece os ateus e permite-lhes que combatam nossa religião com armas humanas, essa religião que não ousariam atacar se ela lhes aparecesse em todo o seu esplendor, na plenitude da autoridade e do mando. O meio que emprego para rebater essa objeção - e me parece o mais adequado - é o de humilhar e espezinhar o orgulho e a arrogância do homem; o de lhe fazer sentir sua inanidade, sua vaidade, seu vazio; de lhe arrancar das mãos as armas mesquinhas que lhe fornece a razão; de o forçar a inclinar-se e beijar o chão ante a autoridade e imponência da divina majestade. Só a esta pertencem a ciência e a sabedoria; só ela pode avaliar sozinha alguma coisa e dela tiramos aquilo com que nos enfeitamos e tanto prezamos em nós. "Deus não permite que ninguém se orgulhe, senão Ele", deitemos pois por terra nossa orgulhosa pretensão, ponto de partida da tirania que sobre nós exerce o diabo: "Deus enfrenta os soberbos e perdoa os humildes". A inteligência é apanágio dos deuses, diz Platão; os homens pouca ou nenhuma têm. Por isso é de grande consolo para o cristão ver nossos instrumentos mortais e frágeis se adaptarem tão bem ao que exige nossa fé santa e divina, que, quando os utilizamos nos atos mortais e frágeis como eles próprios não se revelam mais adequados nem mais poderosos. Vejamos se o homem dispõe de argumentos mais eficazes que os de Sebond, e se lhe é possível chegar a uma certeza mediante provas e raciocínio. Refutan o os incrédulos, censura-lhes Santo Agostinho a injustiça de considerarem falso tudo aquilo que, em nossas crenças, a razão não consegue provar. E a fim de mostrar que muitas coisas são, ou podem ter sido, sem que nossa inteligência lhes desvende a natureza e as causas, cita-lhes fatos conhecidos e indiscutíveis que o homem confessa não poder explicar. Nisso, como em tudo o que faz, aliás, Santo Agostinho demonstra muita sutileza e engenho. É preciso ir mais longe e ensinar-lhes que para que se convençam da debilidade de sua razão, não há necessidade de recorrer a exemplos singulares e peregrinos. Ela apresenta tantos pontos fracos, é tão cega que não há verdade, por luminosa que seja, que assim lhe pareça. O fácil e o difícil são para ela uma só coisa. Tudo enfim o que ela pretende julgar e a natureza em geral se sonega à sua jurisdição e competência. Que nos prega a verdade quando nos convida a fugir à filosofia deste mundo? E quando nos adverte de que nossa sabedoria é simples loucura diante de Deus? Quando nos diz que de todas as vaidades o homem é a mais vã; e que quem se vangloria de seu saber não sabe o que é o saber; e que o homem não é nada quando pensa ser alguma coisa; e que se exalta e se engana a si próprio? Estas sentenças que emanam do Espírito Santo exprimem tão claramente e de um modo tão vivo o que pretendo demonstrar, que não precisaria lançar mão de nenhuma outra prova contra pessoas que se inclinassem diante de sua autoridade; mas estes a que nos referimos aqui se obstinam em pagar o açoite com que serão açoitados e não admitem que se combata sua razão, senão com a própria razão. Consideremos, pois, um momento o homem isolado, abandonado a si próprio, armado unicamente de graça e conhecimento de Deus, o que constitui sua honra e toda a sua força, e o fundamento de seu ser; e vejamos o de que é capaz com esse equipamento. Que me explique pelo raciocínio em que consiste a grande superioridade que pretende ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza a pensar que o movimento admirável da abóbada celeste, a luz eterna dessas tochas girando majestosamente sobre sua cabeça, as flutuações comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuem a existir unicamente para sua comodidade e serviço? Será possível imaginar algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilégio que se arroga de ser o único capaz, nesse vasto edifício, de lhe apreciar a beleza? E de poder sozinho render graças ao arquiteto, e de lhe computar os recursos e os valorizar? Que nos dê as provas de tão grande e admirável faculdade, nem mesmo aos mais sábios concedida! Bem poucos a possuem e seriam dignos dela os loucos e os perversos? Seriam os piores preferidos aos demais? E deveremos acreditar em quem disse: "Para quem diremos que o mundo foi criado? Sem dúvida para os seres animados dotados de razão, isto é, os deuses; e os homens que são as criaturas mais perfeitas". Não, nunca estigmatizaríamos suficientemente a impertinência de semelhante emparelhamento. Que terá, então, em si, o pobrezinho, para se tornar digno de tal distinção? Consideremos a vida incorruptível dos corpos celestes, sua beleza e grandeza, seu movimento contínuo e regulado com tamanha exatidão: "quando contemplamos, no espaço celeste do vasto mundo, o éter imóvel com suas cintilantes estrelas, e meditamos nas sendas do sol e da lua"; consideremos o domínio e o poder que esses corpos exercem não somente sobre nossas existências e nosso destino, "pois todos os atos e a vida dos homens dependem da influência dos astros","mas também sobre nossas tendências, nossos raciocínios, nossas vontades, que governam e perturbam segundo o sentido dessa influência como no-lo demonstra a razão: "percebendo o secreto império que tão longínquos astros têm sobre os homens, as leis fixas que regulam os movimentos periódicos do universo e os sinais que determinam o curso dos acontecimentos"." Se não somente o homem isolado, mas também os reinos e os impérios, tudo neste mundo sofre a influência dos mais insignificantes movimentos celestes ("as maiores revoluções são provocadas por esses movimentos insensíveis, tão grandes são as leis que comandam os próprios reis"): se nossa virtude, nossos vícios, nossas faculdades, nosso saber, essa intuição que temos da influência dos astros, essa compreensão das relações existentes entre nós e eles, se tudo nos vem deles e resulta de sua ação, como somos induzidos a crer: "um, louco de amor, atravessa o mar e vai destruir Tróia; outro tem por destino escrever leis; aqui os filhos matam os pais, além os pais matam os filhos, ou os irmãos lutam contra os irmãos e se trucidam. Não cabe acusar os homens; o destino, mais forte do que eles, os arrasta, os obriga a se castigarem e se esquartejarem mutuamente. Tudo precisa acontecer como o quer o destino, se é afinal ao céu que devemos a parcela de razão que possuímos, como pode esta parte equiparar-se ao todo? Como poderemos submeter ao nosso saber seu princípio e as condições em que este existe? Tudo o que vemos desses astros é mistério e maravilha: "que instrumentos, que alavancas, que máquinas, que operários ergueram tão vasto edifício". Por que os julgaremos privados de alma, vida, razão? Deram-nos porventura provas de estupidez e insensibilidade, a nós que não temos outras relações senão de dependência? Diremos que nunca constatamos em nenhuma criatura outra que o homem o testemunho de uma alma dotada de razão? E que provaria isso? Nada vemos que se assemelhe ao sol, mas do fato de nada termos visto de semelhante concluiremos que não existe, como não existiriam seus movimentos de rotação porque não conhecemos coisa equivalente? Se tudo o que não vemos não existisse, nossa ciência se acharia muito empobrecida: "tão estreitos são os limites de nosso espírito". Não é um sonho da vaidade humana fazer da lua uma terra celeste; pensar, como Anaxágoras, que nela haja montanhas e vales, imaginar como Platão e Plutarco que aí se encontram residências para colônias de seres humanos; e ainda que nossa terra é um astro luminoso? "Entre outras doenças da natureza mortal há que apontar a cegueira da alma que não somente induz o homem ao erro mas ainda a amar o seu erro. O corpo corruptível entorpece a alma e essa morada terrena a deprime no próprio exercício do pensamento. A presunção é doença natural e inata em nós. De todas as criaturas, a mais frágil e miserável é o homem, mas ao mesmo tempo, como diz Plínio, a mais orgulhosa. Ele se sente e se vê colocado na lama e no esterco do mundo, amarrado, pregado à pior parte do universo, à mais morta, à mais afastada dos céus, junto com os animais da mais baixa categoria das três existentes, e ei-lo que pela imaginação se alça acima da órbita da lua e supõe o céu a seus pés! Pela vaidade mesma dessa imaginação, iguala-se a Deus, atribuindo-se a si próprio qualidades divinas que ele mesmo escolhe. Separa-se das outras criaturas; distribui as faculdades físicas e intelectuais que bem entende aos animais, seus companheiros. Como pode conhecer com sua inteligência os móveis interiores e secretos deles? Em virtude de que comparações entre eles e nós chega à conclusão de que são estúpidos? Quando brinco com minha gata, sei lá se ela não se diverte mais do que eu. Distraímo-nos com macaquices recíprocas, e se tenho o meu momento de iniciar ou terminar o folguedo, ela também o tem. Platão em sua idade de ouro, sob Saturno, inclui entre os principais privilégios do homem de então o de se comunicar com os animais. Assim, questionando-os e os estudando, conhecia exatamente as faculdades de cada um bem como as diferenças, o que tornava mais agudo seu raciocínio, mais perfeita sua prudência e mais eficiente sua conduta na vida. Haverá melhor prova da insensatez do homem em querer julgar os animais? Esse grande filósofo crê que, quanto à forma corporal de que os dotou a natureza, esta só atendeu aos prognósticos possíveis naquela época. Essa falha que impede nossa comunicação recíproca tanto pode ser atribuída a nós como a eles, que consideramos inferiores. Está ainda por se estabelecer a quem cabe a culpa de não nos entendermos, pois se não penetramos o pensamento dos animais, eles tampouco penetram os nossos e podem assim nos achar tão irracionais quanto nós os achamos. E nada há de extraordinário em que não os entendamos, pois o mesmo ocorre em relação aos bascos e aos trogloditas. Alguns entretanto pretenderam entendê-los: Apolônio de Tiana, Melampo, Tirésias, Tales etc. E se nos dizem, os que se ocupam com a descrição do mundo, que há povos que têm um cão por monarca, é de se admitir que seus súditos entendam algo de seus latidos e atitudes. Observemos ademais algumas semelhanças existentes entre o homem e os animais. Conhecemos alguma coisa de seus sentimentos, pouco mais ou menos o que conhecem dos nossos, pois nos fazem festa, nos ameaçam ou nos pedem o que querem, quase da mesma maneira por que nos conduzimos com eles. De resto, entendem-se entre si perfeitamente e não só entre os da mesma espécie, mas também entre os de espécie diferente. "Os animais domésticos, como os bichos ferozes, emitem sons diferentes segundo o medo, a dor ou o prazer que sentem". Pelo latido do cão sabe o cavalo de sua cólera; não o receia quando outra é a modulação da voz. Quanto aos animais que não têm voz, podemos verificar facilmente, pela comunicação e inteligência que entre eles se observam, que possuem outros meios de se compreender, valendo-se de movimentos com significações específicas. Pelo mesmo motivo vemos as crianças suprirem por gestos a palavra que lhes falta. E por que não acreditar nisso? Não é assim que os mudos discutem, conversam, contam histórias? Eu conheci alguns, tão hábeis e afeitos aos gestos, que de nada careciam para se exteriorizar. Os amorosos brigam, reconciliam-se, imploram, agradecem, marcam encontros unicamente com olhares: "o próprio silêncio tem sua linguagem". E não nos exprimimos com as mãos? Pedimos, prometemos, chamamos, despedimo-nos, ameaçamos, suplicamos, rezamos, negamos, interrogamos, admiramos, recusamos, contamos, confessamos, manifestamos nosso arrependimento, nossos temores, nossa vergonha, nossas dúvidas; informamo-nos, comandamos, incitamos, encorajamos, blasfemamos, testemunhamos, exprimimos nosso desprezo, nosso despeito; caçoamos, adulamos, desafiamos, injuriamos, aplaudimos, benzemos, humilhamos, reconciliamo-nos, exaltamo-nos, regozijamo-nos, queixamo-nos, entristecemo-nos; demonstramos nosso desânimo, nosso desespero, nosso espanto; exclamamos e calamos, e que mais não externamos, unicamente com as mãos, cuja variedade de movimentos nada fica a dever às inflexões da voz? Com a cabeça convidamos, aprovamos, reprovamos, desmentimos, saudamos, honramos, veneramos, desprezamos, solicitamos, lamentamos, acariciamos, censuramos, concordamos, desafiamos, exortamos, ameaçamos, asseguramos, inquirimos. E com as sobrancelhas? E com os ombros? Não há gesto ou movimento em nós que não fale, de uma maneira inteligível que não é ensinada e todos entendem. Tudo isso faz que, em se atentando para a variedade das línguas e o trabalho que exigem para que as aprendamos, possamos considerar essa comunicação por meio de sinais a linguagem natural do homem. Deixo de lado o que a necessidade ensina em certos casos, bem como o alfabeto dos dedos, a gramática inculca da por gestos, as artes assim executadas, os povos que, segundo Plínio, não falam senão por esse meio. Um embaixador da cidade de Abdera, depois de ter falado longamente com Ágis, rei de Esparta, perguntou-lhe que resposta devia dar a seus concidadãos. "Dize que te deixei falar quanto quiseste, e tudo o que quiseste, sem pronunciar uma palavra." Eis um silêncio que fala de modo muito claro. Que faculdade teremos ainda que não encontremos nos animais? Haverá organização social mais perfeita que a das abelhas? A divisão do trabalho e dos encargos é tão bem regulada entre elas, que a não podemos imaginar sem supormos esses insetos dotados de inteligência: por esses sinais, e exemplos, julgaram alguns sábios que as abelhas possuíam uma parcela de espírito divino e tinham uma alma. As andorinhas que, na primavera, vemos esquadrinharem os recantos todos de uma casa, escolherão por acaso sem discernimento e ponderação o mais cômodo dentre mil lugares? Quando constroem seus ninhos, tão admiráveis pela contextura, podem os pássaros adotar a forma quadrada ou redonda, o ângulo obtuso ou reto sem conhecimento das condições e efeitos de cada uma dessas formas? Ao misturarem a água com a argila, ignorarão que aquela amolece esta? Atapetando seus palácios de musgo ou de plumas, não estarão prevendo a conveniência da moleza para os membros delicados dos filhotes? Será que se resguardam do vento e da chuva e instalam seus ninhos voltados para o oriente sem conhecerem as condições climáticas e atentarem para as mais favoráveis? Por que faz a aranha sua teia mais espessa em certos lugares e por que a tece diferentemente, ora de um jeito ora de outro, se antes não pensou, e decidiu? Constatamos que na maior parte de seus trabalhos e obras os animais nos são superiores e que nossa arte não consegue imitar-lhes com grande êxito as realizações, e no entanto no que fazemos, inferior ao que fazem os bichos, pomos toda a nossa alma e apelamos para todas as nossas faculdades. Por que não acreditarmos que agem de igual maneira? Que motivo nos leva a atribuir a não sei que instinto natural e servil tais obras que somos incapazes de levar a cabo, nem por instinto nem com a ajuda da razão? Com isso, sem pensar, outorgamo-lhes grandes vantagens, pois admitimos que a natureza, em virtude de uma afeição especial, os acompanha e guia nos atos e situações da existência, enquanto nos abandona ao acaso e à sorte, obrigando-nos a recorrer à arte para obtermos as coisas necessárias à nossa conservação e recusando-nos sempre os meios de alcançarmos, nem mesmo mediante a mais violenta concentração de espírito, a habilidade natural dos animais. Assim a estupidez deles seria mais admirável do que a nossa divina inteligência! Teríamos portanto motivo de sobra para considerar a natureza uma injusta madrasta. Entretanto erraríamos, porquanto nossa maneira de ser não é tão desordenada nem absurda. A natureza cuida igualmente de todas as suas criaturas. Não há nenhuma que ela não tenha abundantemente provido de meios necessários à sua conservação. E as recriminações que ouço (pois a licença de nossas opiniões ora nos eleva acima das nuvens ora nos rebaixa aos antípodas) carecem de fundamento. Dizem essas queixas que o homem é o único animal abandonado nu sobre a terra nua. Chega amarrado, arrochado, e para se armar e se defender precisa recorrer aos despojos de outrem. A natureza revestiu todas as criaturas de carapaças, casca, pelos, lã, espinhos, couro, escamas, seda, segundo suas necessidades; armou-as de garras, dentes, chifres para o ataque e a defesa, ensinando-lhes ainda nadar, correr, voar, cantar, ao passo que o homem não pode, sem aprendizado, andar, falar, comer. Apenas sabe chorar. "Como o marinheiro lançado à praia pelas ondas furiosas, jaz a criança na terra, nua, sem palavra, privada de quaisquer socorros para a vida, desde o momento em que a natureza a arranca do ventre materno a fim de a expor à luz. Enche então o ar de gemidos, e com razão, tantos são os males que aqui a esperam. Ao contrário, os animais domésticos e os bichos ferozes crescem sem cuidados; não precisam nem de chocalho nem de carícias, nem da linguagem infantil de uma ama; a diferença de temperatura não os obriga a trocar de roupas; não necessitam enfim de armas, nem de torreões para sua segurança, porquanto a natureza amplamente os provê de tudo". Tais queixas não são justas. Há na organização do mundo maior equidade e uniformidade. Nossa pele, como a dos animais, pode opor resistência suficiente às injúrias do tempo. Provam-no numerosos povos que não usam roupas. E nossos antepassados gauleses pouco se cobriam, tal qual os habitantes da Irlanda, cujo clima é tão frio. Julgamo-lo melhor ainda por nós mesmos, pois todas as partes do corpo que nos comprazemos em expor ao sol e ao vento, como o rosto, os pés, as mãos, os ombros, a cabeça, suportam-no muito bem. E se há uma parte em nós que parece dever recear o frio é o estômago, no qual se efetua a digestão. Nossos pais expunham-no ao ar e as senhoras de hoje, tão frágeis, tão delicadas, usam por vezes vestidos abertos até o umbigo. O enfaixamento das crianças, as precauções que tomamos para sustentar-lhes o corpo, não são tampouco indispensáveis: as mães lacedemônias criavam seus filhos deixando-lhes inteira liberdade de movimentos, não lhes arrochando os membros. Se choramos, também choram os animais. Há bem poucos que não fiquem a gemer e lamentar-se durante muito tempo ainda após o nascimento, o que é inerente ao seu estado de fraqueza. Quanto a alimentar-se, é coisa natural neles como em nós; não há como ensiná-la, pois "todo animal sabe de suas formas e necessidades”. Atingida a idade em que o peito já não lhe basta, a criança pede comida. E a terra produz espontaneamente, e oferece ao homem, em quantidade suficiente, o que necessita para sua alimentação, sem que seja preciso cultivo ou preparação. Nem sempre, é certo; mas os animais como nós - comprovam-no as formigas - sabem fazer provisões para as estações estéreis do ano. Esses povos que acabamos de descobrir, tão copiosamente providos de carnes e bebidas naturais, sem que as cultivem ou fabriquem, mostram-nos que o pão não é nosso único alimento e que, sem cultivo, nos fornece a natureza tudo o que nos é indispensável, provavelmente com maior abundância e variedade do que depois que interviemos na produção: "No princípio criou a terra, por si própria, as mais ricas messes e os mais risonhos vinhedos; ela mesma formou seus mais doces frutos e alegres pastagens, o que agora só obtemos com suor, exaurindo os bois e os lavradores". Mas as exigências desregradas dos nossos apetites crescem mais do que a nossa possibilidade de satisfazê-los. Quanto às armas, a natureza nos deu maior número do que aos animais. Nossos membros são capazes de mais movimentos e deles tiramos melhor partido, sem mesmo nos termos exercitado antes. E os homens que se habituaram a combater nus enfrentam os mesmos perigos que nós; e se alguns animais levam vantagem sobre nós, em relação a muitos outros a vantagem é nossa. E a precaução de aumentar nossa força e de nos proteger por meios artificiais é em nós instintiva. O elefante afia os dentes que emprega na luta (tem-nos especialmente para tal fim); o touro envolve-se em uma nuvem de pó que levanta raspando o solo com os cascos; o javali aponta suas defesas; quando o mangusto resolve atacar o crocodilo, cobre o corpo com uma camada de lama bem compacta e amassada, que forma uma espécie de couraça. Será menos natural o fato de fabricarmos armas de madeira e ferro? Quanto à linguagem, pode-se dizer que se não é natural tampouco é imprescindível. Penso que uma criança entregue a si mesma e criada em pleno isolamento, sem relações com outros seres humanos (experiência difícil de se realizar) inventaria uma espécie de palavra para se exprimir. Não é admissível que a natureza nos tenha negado esse instrumento que deu a muitos outros animais, pois que outra coisa será, senão uma linguagem, isso que lhes permite queixar-se ou manifestar sua alegria, chamar por socorro, ou para o amor, o que fazem por meio da voz? Por que não falariam conosco? E não falamos com eles? Quantas coisas dizemos nós aos cães, que eles compreendem e a que respondem! A linguagem que com eles empregamos não é a mesma que nos serve para falar aos pássaros, aos porcos, aos bois, aos cavalos. Mudamos de idioma segundo o animal a que nos dirigimos. "Assim no meio de negro batalhão uma formiga chega-se a outra, talvez para saber de seu caminho ou de seus tesouros."! Parece-me até que Lactâncio atribui aos animais não somente a faculdade de falar mas também de rir, e a diferença de línguas que se observa entre os homens, segundo sua terra de origem, igualmente se constata entre os animais de uma mesma espécie. Aristóteles cita como exemplo o canto da perdiz que varia segundo esteja em região plana ou montanhosa. "E as aves mudam de voz em diversas épocas e algumas há que, ao mudar a estação, mudam de gorjeio." Resta saber que linguagem falaria a criança, mas nenhuma conjetura apresenta possibilidades de verossimilhança. Se me alegarem que os surdos de nascimento não falam, responderei que a única razão não está em que não lhes ensinaram com sons, mas sim porque existe uma correlação natural entre o ouvido e a voz, de sorte que o que dizemos, dizemos principalmente a nós mesmos, fazendo-o soar aos ouvidos antes de transmiti-lo aos estranhos. Disse tudo isso para estabelecer a semelhança que há entre os seres da criação e recolocarmo-nos entre as demais criaturas. Não estamos acima nem abaixo delas. Tudo o que existe sob os céus está sujeito à mesma lei e às mesmas condições: "tudo se prende ao destino". Há diferenças, ordens e graus diversos, mas de um modo geral os caracteres essenciais são os mesmos: "cada coisa tem sua organização própria, e todas conservam as diferenças estabelecidas pela natureza". E preciso limitar o homem e colocá-lo entre as barreiras dessa ordem universal. Na realidade não poderia o infeliz assaltar, preso que está pelos entraves que o retêm e o amarram a todas as outras obrigações das criaturas de sua espécie, e isso sem nenhuma prerrogativa essencial. A que se atribui, ou por crença real ou por fantasia, não existe e nem sequer tem a aparência da realidade. E ainda que a tivesse, que sozinho entre os outros animais tivesse a liberdade de imaginação, ou a desordem de pensamento, que lhe permitem representar-se a um tempo o que é e o que não é, seria uma vantagem muito cara de que não deveria envaidecer-se, pois é a fonte principal dos males que o acabrunham: o pecado, a doença, a indecisão, a inquietação, o desespero. Eis por que eu não digo que não haja razão para pensar que os animais fazem instintivamente e determinadamente o que nós mesmos fazemos por vontade e invenção próprias. Os mesmos resultados decorrem de idênticas faculdades, e quanto mais ricos os resultados mais ricas as faculdades, o que nos leva a concluir que raciocínios e meios idênticos aos que acompanham nossos atos acompanham os atos dos animais, os quais têm, ocasionalmente, faculdades superiores às nossas. Por que imaginar que neles a ação é maquinal e em nós mesmos não? Além do que, é muito mais fácil ser obrigado a agir acertadamente, por natural e inevitável constituição, o que nos aproxima ainda mais de Deus, do que agir acertadamente por livre e espontânea vontade, exposto a erros e temeridades. Nestas condições, o melhor seria abandonarmos à natureza o cuidado de orientar nossa maneira de fazer. Mas somos tão presunçosos que preferimos dever o que somos capazes de fazer a nossas forças a dever à liberalidade divina nosso valor e nossas possibilidades. E enriquecemos os animais com bens naturais a que renunciamos, achando mais honrosos e nobres os que nos cumpre adquirir; e isso, a meu ver, por simplicidade de espírito, pois apreciaria muito mais prendas inatas e pessoais do que as que precisasse mendigar e exigissem aprendizado. Não está ao nosso alcance obter melhor recomendação que a de ser favorecido por Deus e pela natureza. Os habitantes da Trácia, quando têm que atravessar um rio gelado, servem-se de uma raposa que caminha à sua frente. Vê-se o animal aproximar o ouvido do gelo, até toca-lo para verificar se a água corre perto ou longe. E verifica da a espessura do gelo, avança ou recua. Não somos levados a pensar que em seu cérebro se observa Um processo racional semelhante ao que se processaria no nosso? "O que faz barulho mexe; o que mexe não é gelo; o que não é gelo é líquido; e o que é líquido afunda sob o peso de um fardo." Atribuir o ato da raposa à acuidade de seu ouvido, sem reflexão de sua parte, é uma quimera que nosso espírito não pode aceitar. Igual opinião devem merecer todas as invenções e astúcias a que recorrem os bichos para se verem livres de nossa perseguição. Se, em prol de nossa superioridade, quisermos argumentar com o fato de os aprisionarmos, empregá-los à vontade a nosso serviço, direi que o mesmo podemos fazer com outros homens. Assim é que temos escravos e as "climácides" eram, na Síria, mulheres que se punham de quatro para servirem de estribo às senhoras a fim de que estas subissem em seus carros. E em sua maioria as pessoas livres entregam sua vida e seu ser a outrem em troca de insignificantes vantagens. Na Trácia, as esposas e as concubinas disputavam entre si a honra de serem imoladas sobre o túmulo do senhor. Aos tiranos nunca faltaram homens que lhes fossem inteiramente devotados, e os arrastaram à morte quando quiseram. E exércitos inteiros não se acham presos por idêntico dever a seus chefes? A fórmula de juramento na rude escola dos gladiadores comportava as seguintes promessas: "juro deixar-me acorrentar, queimar, bater, morrer pela adaga, e suportar todos os sofrimentos que os gladiadores leais concordam em sofrer por seu senhor". E religiosamente lhe consagravam o corpo e a alma: "Queima minha cabeça se quiseres, traspassa-me o corpo com o ferro, e corta-me as costas com o látego". Constituía o juramento uma obrigação sagrada, contraída certos anos por mais de dez mil indivíduos, os quais, todos, morriam. Os citas, à morte de seu rei, estrangulavam sobre o corpo do defunto sua concubina predileta, seu copeiro, seu escudeiro, seu camareiro, seu porteiro e seu cozinheiro. No aniversário da morte matavam cinquenta cavalos montados por cinquenta pajens empalados do ânus à garganta, e assim os dispunham em volta do túmulo para maior glória do morto. Os homens que nos servem, fazem-no mais barato e em condições menos agradáveis e menos vantajosas que as de nossos pássaros, cavalos e cães. Quantos sacrifícios não aceitamos em prol do bem-estar desses animais? E nem os mais abjetos servidores fariam de bom grado por seus senhores o que os príncipes se vangloriam de fazer por seus bichos. Diógenes, vendo seus parentes em dificuldades para resgatá-lo, dizia: "E loucura desesperar-se; quem cuida de mim e me sustenta é meu criado". Os que sustentam bichos deveriam dizer também que são seus servidores e não que se servem deles. Os animais são ainda mais generosos do que nós, pois nunca se viu um leão escravo de outro leão, nem um cavalo de outro cavalo. Assim como vamos à caça dos animais, os tigres e leões vão à caça do homem. Esse exercício praticam-no também reciprocamente: os cães correm as lebres, a solha caça a tenca, as andorinhas perseguem as cigarras, os gaviões procuram melros e cotovias. "A cegonha alimenta seus filhotes com serpentes e lagartixas caçadas nos campos incultos; a águia, servidora de Júpiter, caça nas florestas as lebres e os cabritos." Repartimos o produto da caça com nossos cães e as aves que nos auxiliam. Na Trácia, além de Anfípolis, caçadores e falcões selvagens repartem pela metade os despojos. Às margens dos pantanais Meótides os lobos, se não lhes deixam os pescadores sua parte, destroem-lhes as redes. Há caçadas em que empregamos mais a habilidade do que a força, a caçada com laços e a pesca com vara, por exemplo; assim as têm igualmente os animais. Aristóteles diz que a siba projeta do pescoço uma membrana semelhante a um caniço de pesca, que estica e encolhe à vontade, quando percebe aproximar-se algum peixinho. Deixa-o morder, escondida no lodo, e aos poucos puxa a membrana até trazer a presa ao seu alcance. Quanto à força, não há animal no mundo mais exposto a riscos do que o homem. Sem falar da baleia, do elefante, do crocodilo, e outros animais que sozinhos podem dar cabo de muitos homens, os simples piolhos bastam para destruir a ditadura de Sila, um animalzinho qualquer, um verme, pode comer ao almoço o coração e a vida de um imperador no apogeu de sua glória. Dizemos que graças à ciência e à razão, o homem obtém os conhecimentos necessários para distinguir as coisas úteis à sua alimentação, e ao tratamento de suas enfermidades, das que lhe são nocivas. Assim pode saber quais as virtudes do ruibarbo e do polipódio. Mas quando vemos as cabras de Cândia, ao se ferirem, escolherem entre mil ervas o ditamno para sua cura; a tartaruga que comeu víbora, procurar o orégão para se purgar; o dragão limpar os olhos com funcho; a cegonha ministrar-se clisteres de água do mar; os elefantes retirarem do seu próprio e dos corpos de seus companheiros, e até dos de seus donos (como temos o exemplo no Rei Porus vencido por Alexandre) os dardos e flechas, com uma destreza sem igual; como não atribuir tais fatos igualmente à ciência e à sabedoria dos animais? Alegar, para amesquinhá-los, que obedecem simplesmente à natureza, sua orientadora, realmente não significa que careçam de saber e discernimento, significa, isso sim, que possuem essas qualidades em mais alto grau do que nós, graças a tão admirável professora. Crisipo, que desdenhava a inteligência dos animais, como desdenhava de tudo e mais do que qualquer outro filósofo, quando reflete acerca dos movimentos do cão à procura do dono ou de uma caça, deparando com uma encruzilhada de três caminhos, farejando um sem resultado, e o outro também sem êxito e afinal escolhendo resolutamente o terceiro, convém em que o animal fez o raciocínio seguinte: "segui as pegadas de meu dono até esta encruzilhada; necessariamente tomou um desses caminhos; ora, não foi este nem aquele, logo, forçosamente, foi o outro". E apoiado nessa dedução não hesita em seguir o terceiro caminho sem mais pesquisa, sem mesmo o verificar antes pelo faro, obedecendo apenas à força de sua razão. Esse esforço dialético, esse emprego de proposições examinadas separadamente e em conjunto, valerá menos por fazê-lo o cão instintivamente do que se o fizera em consequência de lições de Jorge de Trebizonda? Não podemos tampouco afirmar que os animais são incapazes de se instruírem como nós homens. Ensinamos a falar aos melros, às pegas, aos papagaios. E com tanta facilidade se ajeita a sua voz aos sons que lhes ensinamos, às sílabas que lhes comunicamos, que é evidente a existência neles de um processo de raciocínio. Todos viram sem dúvida, e estão fartos de ver, as inúmeras macaquices que os pelotiqueiros ensinam a seus cachorros, danças em obediência ao ritmo da música, saltos e movimentos de acordo com as ordens recebidas. E o que fazem os cães que servem de guia aos cegos, nos campos como nas cidades? Vede como se detêm diante de determinadas casas, como evitam os veículos ao passarem por certos lugares onde, aparentemente, teriam tempo para atravessar. Vi um cão que, ao longo de um fosso, abandonou o caminho cômodo para tomar por uma trilha difícil a fim de afastar o seu dono do perigo a que se arriscava. Como se ensinou a esse animal que lhe cumpria preocupar-se exclusivamente com a segurança do dono, sem levar em conta a própria comodidade? Como podia saber que o caminho, bastante largo para ele, não o era para o cego? Explicar-se-á isso sem a interferência do raciocínio? Não é de se esquecer o que nos conta Plutarco de um cão que viu em Roma, no Teatro Marcelo, onde se encontrava o Imperador Vespasiano. O cachorro pertencia a um pelotiqueiro e desempenhava o papel em certa peça teatral. Entre outras coisas, cabia-lhe fingir de morto, durante algum tempo, por ter engolido determinada droga. Depois de comer o pão com que simulava o veneno, punha-se a tremer, a vacilar, como se tomado de tonturas, e afinal deitava-se no chão, esticado, morto, deixando-se arrastar de um lado para outro de acordo com as exigências do enredo. Em seguida, quando calculava que era chegado o momento, principiava a mexer-se devagar, como se despertasse de um longo sono, erguia a cabeça e olhava para todos os lados de um modo que pasmava os espectadores. Os bois, empregados na irrigação dos jardins reais de Susa, faziam girar grandes rodas com baldes ou tinas, como se veem no Languedoc. Esses bois deviam dar cem voltas cada um e conheciam tão bem esse número que ao ser atingido, era impossível, por quaisquer meios que fosse, obter mais deles. Cumprida a tarefa, paravam imediatamente. Ora, nós alcançamos a adolescência sem saber contar até cem e certos povos recém-descobertos não têm ideia dos números. Ensinar os outros exige maior raciocínio do que aprender. Mas deixemos de lado o que Demócrito afirma e prova, a saber, que a maior parte das artes nós as aprendemos com os animais: a tecer e a coser com a aranha, a edificar com a andorinha, a fazer música com o rouxinol e o cisne, e a curar com certos bichos. Aristóteles acha que os rouxinóis ensinam os filhos a cantar e a tanto dedicam tempo e desvelos, daí o fato de perderem muito de seu encanto os que criamos em gaiolas e não aprendem com os pais. Podemos, portanto, deduzir que esses passarinhos melhoram seu canto pelo estudo e a disciplina, e mesmo entre os que estão em liberdade não há dois cujo canto seja idêntico. Cada qual aproveitou a lição segundo sua capacidade. Mostram-se ciosos de seu talento e competem por vezes com tal ardor que chegam alguns a morrer por falta de fôlego, não se resignando a parar nem a se considerar vencidos. Os mais jovens ruminam pensativos e tentam imitar as árias que ouvem; o aluno escuta com muita atenção seu mestre; ora um ora outro para de cantar e percebe-se que o preceptor lhe corrige os erros e, mesmo, que o repreende. Arrio conta ter visto um grupo de elefantes entre os quais um tocava címbalos. Trazia-os amarrados às coxas e à tromba. Ao som da música dançavam os outros, obedecendo à medida; o conjunto agradava pela harmonia. Em Roma, nos espetáculos de circo, viam-se elefantes ensinados a se movimentar e dançar com figuras complicadas e ritmos diversos. Outros havia que se exercitavam sozinhos, recordando os passos para não serem castigados por seus donos. A história da pega que Plutarco assegura ser verdadeira é muito curiosa. Era seu dono um barbeiro de Roma, e o pássaro fazia maravilhas, imitando quantos sons ouvia. Aconteceu em certa ocasião que se detiveram diante da casa uns trombeteiros, tocando durante longo tempo. Depois de os ter ouvido, passou a pega o dia seguinte inteiro tristonha, pensativa e muda. Todo mundo se espantou e pensou que o som das trombetas a aturdira e que com o ruído se lhe extinguira o canto. Mas, afinal, descobriram que na realidade a pega estava afundada em profunda meditação, recolhida em si mesma, exercitando seu espírito e preparando a voz para imitar a música dos tais instrumentos. E a primeira vez que voltou a cantar após esse silêncio, foi para arremedar perfeitamente o toque das trombetas com todos os seus matizes; e desde então desprezou totalmente o que antes aprendera. Não quero tampouco esquecer o caso de um cão que Plutarco diz ter visto (não procedo com muita ordem na apresentação de meus exemplos, mas é preciso considerar que assim ocorre com o próprio livro). Achava-se Plutarco em um navio e viu um cão que se esforçava vigorosamente por beber o azeite de uma vasilha. Não o podendo alcançar com a língua por ser o orifício do gargalo muito estreito, pôs-se a catar pedras e a jogá-las na vasilha até que o azeite subiu a uma altura acessível. Haverá raciocínio mais sutil? Dizem que os corvos da Berberia assim agem também quando o nível da água que querem beber está muito baixo. Esses casos se assemelham ao que Juba, um dos reis dessas regiões, conta dos elefantes. Para pegá-los, cavam-se fossos profundos que se cobrem de galhos e capim. Quando um deles cai na armadilha, acorrem os outros com pedras e troncos a fim de encher o fosso e facilitar a saída. Mas os atos desses animais parecem-se tanto com os dos homens, que se relatasse tudo o que sei facilmente provaria a minha tese, a de que há maior diferença entre um homem e outro do que entre um dado animal e o homem. O guarda de um elefante pertencente a um senhor sírio, sonegava-lhe a cada refeição a metade da ração. Quis um dia o dono tratar pessoalmente do animal. Encheu a manjedoura com a quantidade exata de cevada que cabia ao elefante. Este, olhando com raiva para o guarda, dividiu em duas partes a cevada e deixando uma de lado revelou o prejuízo de que era vítima. Outro elefante tinha um guarda que punha pedras em sua comida, para aumentar a medida; pois o animal, aproximando-se da marmita em que o homem fazia sua própria sopa, encheu-a de cinzas. São casos especiais, sem dúvida, mas o que todo mundo sabe, o que todos ouviram dizer, é que outrora, em todos os exércitos do Oriente, os elefantes constituíam um dos elementos mais importantes, e nas batalhas davam resultados melhores do que os que obtemos hoje com a artilharia, a qual ocupa mais ou menos o espaço antes ocupado pelos elefantes (como o sabem os que conhecem a história antiga): "Seus ancestrais tinham sido utilizados pelo cartaginês Aníbal, pelos generais romanos e pelo rei do Epiro; transportavam no lombo coortes e torres para a batalha". Era necessário que confiassem nesses animais e em seu raciocínio, para colocá-los à frente do exército, em lugar em que a menor parada, o mais insignificante incidente que os fizesse recuar, bastava para tudo deitar a perder por causa de seu tamanho e peso. E, efetivamente, poucos exemplos se viram de elefantes se lançarem contra as próprias tropas, ao passo que nos ocorre mais amiúde jogar-nos uns contra os outros e nos matarmos a nós mesmos. No entanto, cumpria-lhes executar não somente movimentos simples mas ainda evoluções complicadas. Análogos serviços prestaram os cães aos espanhóis na conquista das Índias, e eles lhes pagavam soldo, além de lhes darem parte dos despojos do combate. Esses cães mostravam grande destreza e discernimento na perseguição do inimigo e na consecução da vitória, avançando e recuando segundo os casos, distinguindo amigos e adversários e lutando com valentia e tenacidade. Admiramos e apreciamos mais as coisas estranhas e singulares do que as que vemos diariamente, sem o que não me teria dado o trabalho de tão longa enumeração, pois creio que, simplesmente em examinando de perto os animais que vivem junto de nós, já depararíamos com fatos tão notáveis quanto os que vamos buscar em outros países e outras épocas. Idêntica é a natureza e inalterável o seu curso; e quem haja penetrado suficientemente o presente poderá com segurança conhecer as leis do passado e do futuro. Vi outrora homens vindos por mar de longínquos países. Como não compreendíamos sua língua e seus costumes, suas atitudes e suas vestimentas não se assemelhavam aos nossos, consideramo-los selvagens e estúpidos. Atribuímos à sua estupidez o fato de não falarem francês e se calarem, de ignorarem o beija-mão, nossas reverências requintadas, nossas maneiras, tudo isso a que, sob pena de incorreção, desejaríamos se moldasse toda a humanidade. Condenamos tudo o que nos parece estranho e também o que não compreendemos. E por esse prisma julgamos os animais. Sob certos aspectos têm alguma semelhança conosco e podemos, então, por comparação, formular algumas hipóteses. Mas que sabemos do que lhes é peculiar? Os cavalos, os cães, os bois, as ovelhas, os pássaros e a maioria dos animais vivem a nosso lado, reconhecem nossa voz e atendem ao nosso chamado, o que também fazia a moréia de Crasso e o que fazem as enguias da fonte Aretusa. E isso não é difícil de comprovar, pois vi muitas vezes viveiros em que os peixes acorriam para comer quando os chamavam de certo modo: cada qual tem seu nome e acorre ao chamado do dono. Podemos dizer igualmente que os elefantes têm certo sentimento religioso. Vemo-las efetivamente, após suas abluções e purificações, erguerem a tromba para o céu, de olhos postos no sol nascente e assim permanecerem em contemplação durante algum tempo, a certas horas do dia, entregues à meditação, e isso sem terem sido instruídos nem forçados. Quanto aos outros animais, por não sabermos de coisa semelhante não devemos deduzir que não tenham religião, não nos sendo possível manifestar-nos pró ou contra o que ignoramos. O fato seguinte, citado pelo filósofo Cleantes, apresenta alguma analogia com o que nós mesmos praticamos. Viu ele formigas carregarem para outro formigueiro o corpo de uma companheira morta. Deste segundo formigueiro saíram várias formigas que foram ao encontro das primeiras como a parlamentar. Depois de uns instantes juntas, voltaram as últimas talvez para conferenciar com as companheiras de seu próprio formigueiro. Assim fizeram duas ou três vezes, provavelmente em consequência de dificuldades nas negociações. Finalmente trouxeram uma minhoca, dir-se-ia a fim de resgatar o corpo da morta. As primeiras carregaram então o verme, deixando o pequeno cadáver às outras. Cleantes vê nisso uma prova de que, embora certos animais não tenham voz, não são desprovidos de meios de comunicação. E considera uma inferioridade nossa não podermos participar dessas relações, e uma tolice arvorarmo-nos em juízes. Os animais fazem ainda muitas coisas que ultrapassam de muito aquilo de que somos capazes, que não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos permite sequer conceber. Vários historiadores relatam que na última e grande batalha naval que Augusto perdeu para Antônio, a galera almirante foi detida em sua marcha por esse pequeno peixe a que os romanos chamam rêmora, por causa da propriedade que lhe é peculiar de deter os navios aos quais se gruda. Esse mesmo peixe sustou repentinamente a marcha da galera de Calígula que vogava com uma grande frota pelas costas da România. O imperador mandou retirá-lo do casco e ficou muito despeitado por ver que tão pequeno animal, preso apenas pela boca ao navio (pois trata-se de um peixe de concha), pudesse enfrentar o mar, os ventos e o impulso dos remos. Espantou-se também de que, fora da água, perdesse o bichinho toda a sua força. Um cidadão de Cizico adquiriu outrora a reputação de muito bom matemático por ter observado os costumes do ouriço. Esse animal cava o seu covil com vários orifícios diversamente orientados. Segundo a direção prevista do vento, fecha o buraco que a ela corresponde. Guiando-se pelo ouriço, o nosso homem predizia aos seus a direção futura dos ventos. O camaleão toma a cor do meio em que se encontra. O polvo vai mais longe: colora-se da cor que bem entende segundo as circunstâncias, seja para fugir a um animal que teme, seja para atingir o que deseja pegar. No camaleão, a mudança não se subordina à sua vontade; no polvo, sim. Nosso rosto também muda por vezes de cor sob a influência do terror, da cólera, da vergonha e outras emoções e sentimentos; resulta de uma causa que a impõe, como no caso do camaleão. Sob o efeito da icterícia tudo amarelece, independentemente de nossa vontade. Essas coisas que os animais podem fazer e que não conseguimos igualar são uma prova de que, em certos pontos, eles possuem meios mais desenvolvidos do que os nossos, e de nós ignorados. E é possível - e provável - que outros haja cuja existência nada nos revele. De todos os meios de previsão empregados no passado, os mais antigos e seguros eram os que se tiravam do voo dos pássaros. Nada temos tão admirável. A maneira de bater as asas, pela qual se tem a noção do futuro, devia provir de algo intimamente ligado a essa ciência de caráter tão nobre. Atribuir resultado tão peregrino ao instinto, sem o concurso da inteligência e do raciocínio, e tomar as coisas demasiadamente ao pé da letra sem se deter na interpretação, é uma suposição absolutamente falsa. E que dizer da raia que tem a propriedade de entorpecer os membros que a tocam e, mesmo através das linhas do anzol e das redes transmitir esse entorpecimento às mãos dos que as manejam? Essa faculdade maravilhosa não é inútil à raia; ela tem consciência dela e a emprega: afundada no lodo à espera da presa, aguarda que os outros peixes deslizando por cima dela sejam paralisados e caiam em seu poder. Os grous, as andorinhas e outros pássaros migratórios demonstram que podem adivinhar o tempo e exercem à vontade essa faculdade. Asseguram os caçadores que a melhor maneira de escolher entre vários cachorrinhos os que se devem considerar superiores aos demais, é colocar a cadela em condições de proceder ela mesma à seleção. Apartando dela os filhotes, o primeiro que ela vai buscar é o melhor. E se simularem uma fogueira em torno do ninho, o que primeiro for salvo será o mais forte. Infere-se disso que os animais sabem prever o que nós não prevemos, ou são senhores de alguma virtude singularíssima de julgar as qualidades de seus filhos que nos é desconhecida. Os bichos nascem, reproduzem-se, alimentam-se, movem-se, vivem e morrem como nós. As vantagens que atribuímos à nossa condição, em menoscabo das suas, são gratuitas; a nossa razão é incapaz de demonstrar sua superioridade. Para nos conservar em boa saúde, aconselham os médicos a vivermos como os animais e o seguinte ditado está na boca do povo: "Resguarda os pés e a cabeça e quanto ao resto faze como os bichos". O principal ato a que nos incita a natureza é o de engendrar; para executá-lo certas posições de nosso corpo são preferíveis às outras, pois os médicos consideram que a posição dos animais é a que melhor convém: "julga-se comum ente que para ser fecunda a união dos esposos deve fazer-se na posição dos quadrúpedes. porque então a posição horizontal do peito e a elevação dos rins favorecem a direção do fluido gerador". Os movimentos indiscretos e provocantes que a mulher imaginou acrescentar são considerados prejudiciais e se devem proibir. Que ela atente para o exemplo dos animais entre os quais a fêmea se conduz com mais modéstia e calma: "os movimentos lascivos pelos quais a mulher excita o marido são um obstáculo à fecundação; afastam o arado do sulco e desviam os germes de seu objetivo". Se, para sermos justos, devemos dar a cada um o que lhe é devido, diremos que os animais servem, amam, e defendem seus benfeitores; perseguem e agridem os estranhos e os que os ofendem, praticando uma justiça igual à nossa. E vemos também que tratam com equidade perfeita seus filhos. Quanto à amizade, praticam-na os animais, sem dúvida alguma, de maneira mais constante e viva do que o homem. Hircano, o cão do Rei Lisímaco, não quis abandonar o leito de seu dono quando este morreu, nem comer nem beber, e no dia em que o cremaram atirou-se à fogueira. O cão de um indivíduo chamado Pirro assim fez igualmente; não quis sair do leito quando seu dono morreu e, ao transportarem o corpo, deixou-se levar igualmente, jogando-se afinal ao fogo no momento em que se queimavam os restos mortais de Pirro. Nascem por vezes no homem certas afeições que nada devem ao raciocínio e resultam de uma causa fortuita a que chamam simpatia. Os animais são, como nós, capazes de tê-las. Assim é que se veem cavalos se afeiçoarem uns aos outros, a ponto de se tornar difícil fazê-los viverem e viajarem separadamente. Outros se apaixonam pelos de tal ou qual cor, como nós por certo tipo de fisionomia, e quando divisam algum de sua cor predileta logo se aproximam e fazem festa e demonstram sua alegria; ao passo que hostilizam os de outro matiz e só os aceitam de má vontade. Os animais têm como nós preferências em amor e sabem escolher a fêmea. Não são isentos de ciúme, o qual os pode levar a atos de violência. Os apetites são naturais e necessários como beber e comer, ou, embora naturais, não exigem satisfação absoluta, como o comércio entre machos e fêmeas. Há finalmente os que não são naturais nem necessários. Esta última categoria compreende a maioria dos apetites humanos que objetivam quase exclusivamente coisas supérfluas e necessidades fictícias. E, com efeito, maravilhoso ver como a natureza se contenta com pouco e como nos incita a pouco desejar. A arte de nossos cozinheiros não é de sua alçada. Uma azeitona por dia, dizem os estoicos, basta para alimentar um homem. Não é ela, a natureza, quem nos incita aos vinhos mais ou menos delicados nem ao que acrescentamos aos prazeres do amor: "A volúpia não lhe parece mais viva nos braços da filha de um cônsul”. Esses desejos supérfluos, introduzidos em nós pela ignorância do bem e a predominância das ideias falsas, são tão numerosos que rechaçam quase todos os apetites naturais. Verificou-se a esse respeito nem mais nem menos do que o que ocorreria em uma cidade onde os estrangeiros fossem tão numerosos que acabassem expulsando os autóctones, destruindo-lhes a autoridade e usurpando-lhes o poder. Os animais são muito mais ordenados do que nós e se mantêm com mais moderação dentro dos limites que lhes impõe a natureza, não a ponto, entretanto, de não serem por vezes impelidos a desregramentos análogos aos nossos. E assim como há homens que premidos por desejos loucos são induzidos a amar animais, há animais que procuram o amor do homem, observando-se desse modo afeições monstruosas entre espécies diferentes. Prova-o o elefante rival de Aristófanes, o gramático, que se enamorou da mesma jovem vendedora de flores de Alexandria, desempenhando seu papel como o mais apaixonado dos amantes. Passeava pelo mercado de frutas, colhia-as com a tromba e as levava à sua amada; procurava não perdê-la de vista, acariciava-lhe familiarmente os seios por baixo da blusa. Citam-se também um lagarto amoroso de uma moça, um ganso apaixonado por uma criança em Acopa, um carneiro que amava Gláucia, cantora de rua. Diariamente veem se macacos apaixonados por mulheres, bem como certos animais se entregarem a carícias amorosas com indivíduos do mesmo sexo e espécie. Opiano e outros autores dão-nos alguns exemplos do respeito que os bichos têm pelos laços de parentesco, mas a experiência mostra-nos amiúde o contrário: "a novilha entrega-se sem pudor ao pai; a égua ao cavalo de que nasceu; o bode às cabras que engendrou e o pássaro à fêmea que procriou". Em matéria de sutileza maliciosa, haverá mais evidente que a do asno do filósofo Tales? Carregado de sal, atravessava um riacho quando por acaso deu um passo em falso. Os sacos que carregava molharam-se, o sal dissolveu-se e a carga ficou mais leve. Percebeu-o o asno, e desde então, cada vez que deparava com um córrego, entrava na água com sua carga, até que, descobrindo a malícia, seu dono passou a carregá-lo com lã. Não produzindo mais o banho o resultado almejado, deixou o asno de entrar na água. Há animais que revelam, em seu modo de ser, sinais característicos de avareza. Vemo-los procurar constantemente apoderar-se de tudo o que podem e o esconder com cuidado, embora não tirem proveito disso. Em matéria de economia doméstica, os animais nos ultrapassam não somente pela sua previdência, que os leva a acumular e poupar para o futuro, mas ainda em muitos outros pontos de importância. As formigas expõem ao ar, arrastando-os para fora de seus subterrâneos, os grãos de toda espécie que armazenam, a fim de arejá-los e refresca-los e fazê-los secar quando percebem que estão mofando e se tornando rançosos, de medo que se estraguem ou apodreçam. Sua precaução em roer uma das extremidades de cada grão de trigo sobre-excede o que possa imaginar a prudência humana. Como o trigo não permanece sempre seco e bem conservado, mas amolece e desfaz-se em uma pasta leitosa ao germinar, perdendo então suas qualidades nutritivas, as formigas roem a ponta do grão por onde se inicia a germinação. Quanto à guerra, a maior e mais pomposa das ações humanas, e de que tanto nos vangloriamos, quisera saber se prova a nossa superioridade ou ao contrário demonstra a nossa imperfeição. Em verdade, a ciência de nos entre matarmos, concorrendo para a destruição da espécie, não me parece uma prerrogativa que os bichos nos possam invejar: "quando se viu um leão mais forte matar o mais fraco? E quando na floresta morreu algum javali das dentadas de um javali mais vigoroso?" Nem todos os animais estão entretanto isentos desse mau espírito, como se vê pelas furiosas lutas em que se digladiam as abelhas e pelos duelos singulares entre suas rainhas: "Muitas vezes um combate se verifica entre duas rainhas; é de se ver então o furor guerreiro de seus povos". Nunca leio essa magnífica narrativa sem que me venham ao espírito a inépcia e a vaidade do homem. Esses movimentos guerreiros, que nos empolgam pelo horror e o pavor, essa tempestade de sons e gritos: "Aqui, em um clarão que brilha até nos céus pelo choque do bronze, a terra fulgura; e treme sob o passo dos soldados, e as montanhas enviam às estrelas os ecos dos clamores”, essa terrível refrega de milhares de homens armados, combatendo com tamanho denodo, ardor e coragem, quase sempre decorre de causas vãs, e cessa em circunstâncias insignificantes: "conta-se que pelo amor de Páris a Grécia deflagrou funesta guerra contra os bárbaros”, toda a Ásia se esgotou nessa guerra provocada pelo adultério de Páris; o desejo de um só homem, o despeito, um momento de prazer, o ciúme de um marido, coisas que não justificariam a briga de duas peixeiras, eis a causa de toda essa enorme anarquia. Ouçamos, a propósito, os autores de tão grave ocorrência. Ouçamos o que diz o imperador mais poderoso e mais vitorioso que jamais houve, divertindo-se em ridicularizar com muito espírito os acontecimentos que abarcam várias batalhas por mares e terras, nas quais, a fim de atender a seus interesses, quinhentos mil homens se expuseram aos azares da guerra e esgotaram os recursos e riquezas dos dois continentes: "Porque Antônio se apaixonou por Gláfira, Fúlvia se empenha agora em me forçar a amá-la. Eu amar a Fúlvia? E se Mânio o quiser também, deverei amá-lo? Sejamos prudentes! Guerra ou cama, diz ela. Como! Melhor pensar em algo mais agradável. Soem as trombetas. Talvez abuse de meu latim, mas vós me permitistes, senhora, que o usasse. Um exército, esse grande corpo de tantas cabeças e movimentos, que parece ameaçar céus e terras: "como as ondas que rolam pelo mar da Líbia quando o fogoso Orion mergulha em suas águas, ou como as espigas que o sol de verão doura nos campos de Hermo ou nos ruivos prados de Lícia, o solo pisado treme e os escudos ressoam”, esse monstro furioso com tantos braços e cabeça é o homem, sempre o homem, frágil, calamitoso, miserável. Não passa de um formigueiro agitado e excitado, "negro batalhão em marcha pela planície”, um vento contrário, um grasnido de corvos, o passo em falso de um cavalo, o voo fortuito de uma águia, um sonho, uma palavra, um sinal, a neblina da manhã bastam para dar com ele por terra. Que um raio de solo ofusque, e eis o inimigo aturdido; que o vento nos sopre um pouco de poeira nos olhos, como as abelhas do poeta, e eis no mesmo instante nossas bandeiras e nossas legiões, ainda que com o grande Pompeu à frente, destroça das e impotentes, pois se não me engano, na Espanha, Sertório empregou com êxito essas armas que haviam usado Êumenes contra Antígono e Surena contra Crasso. Joguem contra um exército um enxame de abelhas e estes animaizinhos acabarão com sua força e arrojo. Sitiando os portugueses a cidade de Tamly, no território de Xiátirna, transportaram os habitantes para as muralhas grande número de colmeias, as quais abundam entre eles, e com um pouco de fumaça expulsaram as abelhas na direção do inimigo. Este viu-se forçado a desistir do empreendimento, não podendo suportar as picadas. Com tão engenhoso expediente defenderam a cidade e conquistaram a liberdade e a sorte fez que, terminada a batalha, não faltasse uma só abelha nas colmeias. As almas dos imperadores e as dos sapateiros provêm do mesmo molde. Encarando apenas os atos dos príncipes e suas consequências, imaginamos que tenham outras causas e também mais peso e alcance. E um erro. Eles se movem impelidos pela mesma mola que nos impulsiona. O mesmo motivo que nos leva a disputar com o vizinho, impele os príncipes à guerra; a razão que nos induz a açoitar um lacaio é bastante para que o príncipe devaste uma província. Sua vontade se exerce tão levianamente quanto a nossa, mas ele tem maior poderio. Os mesmos apetites existem no verme e no elefante. No que concerne à fidelidade, não há no mundo animal mais traiçoeiro do que o homem. Numerosos são os fatos que se citam de cães que encarniçadamente procuraram vingar a morte de seus donos. Tendo o Rei Pirro encontrado um cão que velava o cadáver do dono, mandou enterrar o corpo e levou o animal. Dias depois, passando em revista o seu exército, o cão ao deparar com os assassinos correu-lhes atrás a ladrar furiosamente, demonstrando violenta irritação. Foi o primeiro indício que levou à descoberta dos culpados, logo após punidos pela justiça. O mesmo se verificou com o cão de Hesíodo que denunciou os filhos de Ganistor, de Naupacto, como autores do assassínio de seu dono. Outro cão, que guardava o templo de Atenas, viu o ladrão sacrílego que carregava as mais valiosas joias. Pôs-se logo a latir mas os guardas não acordaram. O cão seguiu então o gatuno; de dia mantinha-se à distância, mas sem o perder de vista. Se lhe dava de comer, recusava, ao passo que dos demais transeuntes o aceitava, abanando a cauda. Quando o ladrão parava para dormir, o cão fazia o mesmo. Tendo chegado essa conduta estranha ao conhecimento dos guardas, indagaram eles das características do animal, seguiram-lhe as pegadas e o alcançaram afinal em Crômion, bem como o ladrão, que trouxeram de volta a Atenas onde foi condenado. Como recompensa pelo serviço prestado, ordenaram os juízes que se alimentasse o cão à custa do tesouro e ficasse ele a cargo dos sacerdotes. Plutarco, que narra o fato, garante-nos a sua autenticidade. Teria ocorrido em seu tempo. Quanto à gratidão, virtude que em nossos dias anda muito precisada de reforçar o seu crédito, um só exemplo bastará. E-nos contado por Apio, que se encontrava entre os espectadores. Um dia, em Roma, dava-se ao povo em espetáculo um combate de feras, principalmente de leões de tamanho respeitável, em meio aos quais havia um cujos rugidos e musculatura atraíam a atenção geral. Entre os escravos que compareceram para serem entregues às feras, figurava um certo Androcles da Dácia, pertencente a um personagem consular de Roma. Ao vê-lo, deteve-se o leão imediatamente, como que tomado de espanto; aproximou-se em seguida, passo por passo, como se procurasse reconhecê-lo. Tendo verificado quem era, começou a abanar a cauda como fazem os cães e a beijar as mãos e é!s pernas do pobre miserável transido de medo. Recobrando a calma, Androcles reconheceu por sua vez o leão e ambos se puseram a festejar-se mutuamente, e o povo dava gritos de alegria. O imperador mandou chamar o escravo para que lhe explicasse as razões de tão extraordinária ocorrência e esta admirável história lhe foi contada: "Quando meu amo e senhor era pro cônsul na África, vi-me forçado a deixá-lo, tal a crueldade com que me tratava. Todos os dias era eu açoitado e precisei fugir. A fim de escapar às buscas de um personagem de tão grande autoridade na província, pareceu-me mais fácil ganhar o deserto. Foi o que fiz, resolvido a morrer de uma maneira ou outra, caso nessas regiões arenosas e inabitáveis não conseguisse alimentar-me. Por volta de meio-dia, estando o sol violentíssimo e o calor insuportável, descobri uma caverna de difícil acesso e aí me abriguei. Pouco depois chegou um leão; estava ferido na pata, que trazia ensanguentada. A dor provocava-lhe gemidos. Ao vê-lo, eu ficara apavorado, mas ele, deparando comigo encolhido a um canto, achegou-se e me estendeu a pata como para pedir ajutório. Tomei-a, arranquei uma lasca de madeira que nela se espetara, limpando a ferida como pude. Aliviado, começou a dormir, descansando a pata em minhas mãos. Desde então vivemos juntos, os dois, na caverna, comendo as mesmas carnes, pois me trazia sempre os melhores pedaços de suas caças; eu as assava ao sol e com elas me alimentava. Isso durou três anos, mas eu já andava cansado dessa vida selvagem e certa vez em que o leão fora à caça como de hábito, abandonei o abrigo. Três dias mais tarde, surpreendido pelos soldados, fui preso e entregue aqui a meu dono, que logo me condenou às feras. Segundo me parece, o leão deve ter sido aprisionado mais ou menos na mesma época; reconhecendo-me, quis testemunhar sua gratidão pelos cuidados que lhe prodigalizei". A história, contada ao imperador, propagou-se rapidamente entre os espectadores e, a pedido geral, concedeu-se graça a Androeles, em nome do povo. O escravo conquistou sua liberdade e recebeu como presente o leão. Depois disso, conta ainda Ápio, viram-no passear pela cidade com o animal. Ia de taverna em taverna recolhendo o dinheiro que lhe davam e o leão deixava-se cobrir de flores. E quem os encontrava dizia: eis o leão que deu hospitalidade a esse homem e o homem que foi o médico do leão! Choramos por vezes a perda de um animal querido; os bichos também nos choram: vinha em seguida, despojado de arreios, Éton, seu cavalo de guerra, cujos olhos se enchiam de lagrimas. Há povos entre os quais as mulheres pertencem a vários homens e outros em que cada um tem a sua. É o que se verifica também entre os animais, e a fidelidade conjugal é igualmente observada. Quanto à associação e união que mantêm entre si para se defenderem e auxiliarem, veem-se bois, veados e outros animais, os quais acodem ao chamado dos companheiros. Quando o escaro engole o anzol que lhe estende o pescador, juntam-se os outros e roem a linha. Quando por acaso um deles cai na rede, pegam-no os de fora pelo rabo e puxam com força para fazê-lo sair. Os barbos, quando um deles é fisgado, raspam a corda do arpão com as costas, as quais são armadas de um osso em forma de serra, e se esforçam por cortá-la. Quanto aos serviços pessoais que nos prestamos na vida, o mesmo fazem animais de várias espécies. Dizem que a baleia não anda sozinha: precede-a por toda parte um peixinho a que chamam piloto. Acompanha-o a baleia, deixando-se orientar por ele como o navio se orienta pelo marujo do leme. Em compensação, enquanto tudo o que (bicho ou barco)! Entra na boca do monstro é logo engolido, o guia, ou piloto, penetra-a sossegadamente e nela dorme, sem que a baleia se mexa; mas quando ele volta à água o cetáceo segue-o sem hesitação e, se porventura o perde de vista, principia a errar de um lado e de outro chegando a chocar-se contra os rochedos como um barco sem timoneiro. Plutarco afirma ter observado o fato perto da Ilha de Antícira. Semelhante associação existe entre o pássaro chamado corruíra e o crocodilo. A corruíra serve-lhe de sentinela e quando o mangusto, seu inimigo, se aproxima, a corruíra desperta o crocodilo com cantos e bicadas, prevenindo-o do perigo. Em compensação vive dos restos do monstro, o qual a recebe familiarmente na goela e a deixa bicar entre os dentes para comer as parcelas de carne aí remanescentes. Quando o crocodilo quer fechar a goela, avisa o pássaro, para que saia, cerrando-a a pouco e pouco sem o magoar. A concha conhecida por madrepérola vive com uma espécie de siri, que lhe serve de porteiro. Estacionando à entrada da concha, mantém-na aberta até que algum pequeno peixe a penetre. Entra ele então igualmente e belisca o animalzinho, forçando-o a fechar-se; e assim comem ambos a presa. A maneira de viver dos atuns demonstra um conhecimento singular dos três ramos da matemática. Quanto à astronomia podem ensiná-la aos homens, pois se detêm onde os surpreende o solstício do inverno e não se mexem mais até o equinócio seguinte, razão pela qual Aristóteles lhes atribuía o conhecimento dessa ciência. Revelam também conhecer a geometria e a aritmética, porquanto se reúnem em cardumes da forma de um cubo quadrado por todos os lados, de sorte que formam um batalhão sólido de seis faces iguais. Nadam nessa ordem de dimensões idênticas atrás e na frente, de modo que quem os encontra e conta uma fileira tem ideia precisa do todo, porquanto a largura do cardume é igual à profundidade e ao comprimento. Em matéria de magnanimidade será difícil deparar com mais belo exemplo que o do enorme cão enviado de presente a Alexandre. Apresentaram-lhe primeiramente um veado para que lutasse, em seguida um javali e depois um urso; não se dignou sequer sair do lugar, mas quando o puseram diante de um leão, ergueu-se imediatamente, considerando-o assim o único adversário de porte. Como prova de arrependimento e reconhecimento de seus erros, citemos um elefante que, dizem, tendo matado seu guia em um acesso de raiva, lamentou-o tanto que não aceitou mais alimento e morreu de fome. A clemência dos animais é atestada por este caso que atribuem a um tigre, o mais inumano dos bichos. Haviam-lhe dado um cabrito; durante dois dias passou fome por não querer fazer-lhe mal; no terceiro dia quebrou a jaula para buscar outra coisa, não desejando atacar o hóspede de que se tornara familiar. A familiaridade e as relações que nascem da convivência podem existir entre os animais. Acontece efetivamente que vivam juntos, e muito bem, cães, gatos e lebres. Porém o que a experiência revela aos que viajam por mar - no mar da Sicília em particular - acerca dos alciões ultrapassa tudo quanto o homem possa imaginar. Nunca a natureza atentou tão protetoramente para o parto e o nascimento de nenhum outro animal. Dizem os poetas que a Ilha de Delos, outrora flutuante, foi tornada imóvel a fim de permitir que Latona desse à luz a ApoIo, mas no caso em apreço Deus é quem quer que o mar suste seu movimento, permaneça estável e calmo, sem ondas, nem ventos, nem chuvas enquanto o alcião põe seus filhotes no mundo, exatamente na época do solstício, no dia mais curto do ano. Graças a esse privilégio de que goza o pássaro, não há perigo para a navegação nesse período, em pleno coração do inverno. Entre os alciões a fêmea tem um só macho; com ele vive a vida inteira sem nunca o abandonar. Se ele se enfraquece ou se inutiliza, carrega-o às costas e o serve até a morte. Ninguém conseguiu ainda compreender de que modo maravilhoso constroem os alciões os seus ninhos. Plutarco, que os viu e os teve nas mãos, pensa que são feitos com espinhas de certo peixe que o pássaro junta, liga e entrelaça, dispondo umas em um sentido e outras noutro, curvando-as e arredondando-as de maneira a formar uma espécie de esfera capaz de flutuar. Quando terminado, expõe-no às ondas, as quais chocando-o devagar revelam os pontos fracos, não suficientemente aglutinados e que precisam ser rebocados, pois tais pontos cedem ao choque da água e o alcião verifica que os deve consolidar. Ao contrário, os que nada deixam a desejar, comprimem-se ainda mais e se fortalecem a ponto de não se desfazerem a pauladas ou pedradas, senão à custa de ingentes esforços. As proporções e os dispositivos internos do ninho são extraordinários. E construído de tal maneira e com tais dimensões que só pode receber o pássaro que o edificou e que só esse nele pode entrar. Inacessível a qualquer outro, fechado e firme, nem mesmo a água do mar o penetra. Por mais clara que seja esta descrição, a qual provém de boa fonte, parece-me que não esclarece bastante as dificuldades da construção. E portanto inexplicável a nossa vaidade de querer considerar inferior e interpretar desdenhosamente o que não somos capazes nem de imitar nem de entender. Levemos um pouco mais longe este estudo comparativo acerca dos pontos comuns ou análogos entre nós e os bichos. Nossa alma vangloria-se de elevar a seu nível tudo o que concebe; de despojar todo ser que se apresente a ela de tudo o que tem de material e mortal; de considerar as coisas que preza, dignas de sua atenção independentemente do que nelas é passível de alteração, deixando de lado, como acessórios supérfluos e vis, a espessura, a largura, a profundidade, o peso, a cor, o odor, a rugosidade, o polimento, a dureza, a moleza, em uma palavra, tudo o que é tangível e perecível, para se acomodar à sua condição que é a de ser imortal e espiritual; de tal maneira que se Paris ou Roma ocupam meu pensamento, Paris, por exemplo, eu a imagino e a represento em mim mesmo abstraindo suas dimensões, sua localização, a pedra, o gesso, a madeira que nela se encontram, suas construções em suma. Não me parece que essa faculdade seja privilégio exclusivo de nossa alma; é evidente que a possuem também os bichos. Um cavalo habituado às trombetas, aos tiros, aos combates, e que vemos agitado, comovido no seu sono, mexendo-se e tremendo como se estivesse em plena ação, tem em sua alma, sem dúvida, a concepção de um som mudo de tambor de um exército sem armas e sem soldados: "vereis generosos corcéis, embora adormecidos, suarem, resfolegarem e se retesarem como se disputassem uma corrida". A lebre que em seu sonho o cão de caça imagina perseguir, arquejante, cauda esticada e tendões tesos, é uma lebre sem pelo nem ossos: "por vezes em meio a profundo sono, os cães de caça se agitam de repente, latem e farejam como se estivessem correndo um animal; às vezes mesmo, ao despertarem, continuam a perseguir o vão simulacro de um veado que imaginam em fuga, até que, acordando definitivamente, se apercebem do erro". Vemos também os cães de guarda grunhirem durante o sono, ladrarem enfim e despertarem como se vissem algum estranho. Esse estranho que veem em imaginação é um homem sem corpo, imperceptível aos sentidos, sem dimensões nem cor. Não existe. "Não raro o hóspede fiel e carinhoso da casa, o cão, ergue-se repentinamente em meio a um sono leve, porque pensou ver uma forma estranha, um rosto desconhecido”. Quanto à beleza do corpo, dever-se-ia, antes de falar, saber se estamos de acordo acerca daquilo em que consiste. Não me parece que de uma maneira geral concordemos a respeito. Não sabemos ao certo como e de que se constitui, pois ao que consideramos beleza no homem damos as formas mais diversas. Se alguma regra natural houvesse, nós todos a reconheceríamos como nos entendemos quando aludimos ao calor produzido pelo fogo, ao passo que em relação à beleza todas as fantasias se admitem: "A tez dos belgas não conviria a um rosto romano". Os índios pintam essa beleza negra e queimada de sol, lábios espessos e carnudos, nariz chato e largo, a cartilagem das narinas ornada de argolas que a esticam até a boca, o lábio inferior enfeitado com anéis incrustados de pedrarias e caído até o queixo a mostrar os dentes e as gengivas. No Peru a orelha quanto maior tanto mais bonita. Alguém diz ter visto em um país do Oriente aumentarem-na e carregarem-na de joias pesadas e a furarem com buracos tão amplos que podiam por eles passar o braço sem levantar a manga. Há povos que enegrecem os dentes cuidadosamente, porque os dentes brancos são desprezíveis; outros, pintam-nos de vermelho. Entre os bascos, as mulheres pensam desenvolver seus encantos raspando a cabeça; em outros lugares o mesmo se verifica e, o que é mais estranho, nas regiões boreais, segundo Plínio. As mexicanas acham bela uma testa estreita, por isso arrancam os pelos do corpo e se esforçam por fazer com que nasçam na fronte. Os seios grandes são tão apreciados, que há mulheres que dão de mamar aos filhos por cima dos ombros. A isso chamaríamos horror. Entre os italianos o ideal de beleza está em ser gorda e atarracada; entre os espanhóis em ser magra e esbelta; entre nós em ser loura para uns e morena para outros; mole e delicada ou rija e vigorosa, há quem exija dela graça e doçura e quem a queira altiva e majestosa. Platão acha que nada é mais belo do que a forma esférica, ao passo que Epicuro prefere a pirâmide e o cubo, e não admite um deus à semelhança de uma bola. Como quer que seja, a natureza não nos beneficiou, a esse respeito, mais do que qualquer ser vivo e se há animais menos favorecidos do que nós, há outros, em maioria, que o são mais: "muitos animais nos sobre-excedem em beleza? mesmo entre os que, como nós, vivem na terra. Quanto aos que vivem no mar, deixamos de os considerar porquanto suas formas diferem demasiado das nossas para que se comparem, mesmo porque já pela cor, a limpeza, o brilho, lhes somos inferiores, como o somos em relação aos que vivem no ar. A prerrogativa que invocam os poetas de nos sustentarmos verticalmente sobre os pés, olhando para os céus, de onde vimos, não passa de uma licença poética: "Deus curvou os animais e prendeu-lhes o olhar ao solo; dando ao homem uma cabeça reta, quis que contemplasse os céus e os astros. Mas vários animaizinhos olham para o céu e os camelos e os avestruzes têm o pescoço mais comprido e reto do que nós. Existirão animais que não tenham a cabeça colocada no alto e na frente do corpo, podendo como nós, na sua posição normal, perceber certa extensão do céu e da terra? Que qualidades físicas teremos nós, entre as descritas por Cícero e Platão, que não sejam igualmente apanágio de numerosos animais? Entre estes, com os feios e abjetos é que temos maior semelhança: o macaco, por exemplo, quanto ao aspecto e forma do rosto: "por mais disforme que seja o macaco se parece conosco": o porco, no que concerne à nossa organização interna e partes vitais. Quando atento para o homem nu (mesmo esse sexo a que se atribui a maior parte da beleza), para suas taras e imperfeições, acho que mais do que nenhum outro animal temos razão de nos cobrirmos. E somos desculpáveis por termos aproveitado os despojos daqueles aos quais a natureza favoreceu, usando a lã, a pena, o pelo e a seda para nos vestirmos. Observemos ainda que o homem é o único animal cuja imperfeição se afigura chocante aos seus semelhantes, o único que se esconde dos demais de sua espécie a fim de satisfazer suas necessidades naturais. E não é igualmente fato digno de consideração que os mestres no assunto ordenem como remédio contra as paixões eróticas o espetáculo total e livre do corpo que ambicionamos? Pois basta, para extinguir o desejo, contemplar sem peias o que se deseja: há quem, por ter visto a descoberto as partes secretas do objeto amado, sentiu extinguir-se a paixão no momento mesmo de sua realização. E embora tal receita possa provir de alguém de temperamento delicado e já serenado, não deixa de ser uma prova manifesta de nossa imperfeição desgostarmo-nos uns dos outros pela frequentação e a intimidade. Não é propriamente o pudor, mas a prudência que torna as nossas mulheres tão circunspetas e as leva a proibir-nos a entrada em seus toucadores enquanto se maquilam e se enfeitam para aparecerem em público: "Defendem-se as nossas beldades - e com razão - evitando o acesso dos bastidores da vida aos amantes que pretendem conservar sob o seu jugo”. Ora, nada há, em muitos animais, de que não gostemos, que não agrade a nossos sentidos, a ponto de tirarmos de seus próprios excrementos e secreções manjares requintados, ornatos valiosos e perfumes suaves. Claro está que isso diz respeito tão somente ao homem e às mulheres comuns; não sou tão sacrílego que o estenda a essas belezas divinas, sobrenaturais, que vemos por vezes resplandecer entre nós como astros caídos na terra e que dissimulam mal as formas humanas tomadas de empréstimo. Quanto ao resto, a parte mesma dos benefícios da natureza que concedemos aos animais é vantajosa a estes. Atribuímo-nos bens imaginários e sobrenaturais, bens futuros e remotos, e de cuja posse o homem é incapaz de se assegurar; ou bens que em virtude do desregramento de nosso espírito pretendemos falsamente possuir, como a razão, a ciência e a honra. Aos outros seres deixamos, em compensação, os que são materiais e palpáveis: a paz, o repouso, a segurança, a inocência, a saúde, o mais admirável e rico presente que podemos receber da natureza, pois até a filosofia estoica declara que se Heráclito e Ferecides tivessem podido trocar sua sabedoria pela saúde e livrar-se com isso, um da hidropisia e outro da doença cutânea que o atormentava, houveram-no feito de bom grado. Do que se deduz que dão maior valor ainda a essa sabedoria, que comparam à saúde, do que nesta outra proposição igualmente deles filósofos: se Circe tivesse apresentado a Ulisses dois filtros com a propriedade, um deles, de tornar um louco sábio e o outro um sábio louco, devia Ulisses preferir a loucura a ver-se metamorfoseado à semelhança de um animal, pois a própria sabedoria teria dito: "deixa-me, abandona-me, de preferência a alojar-me em um corpo de asno". E eis nossos filósofos a darem menor importância à grande e divina ciência que à carcaça de nosso corpo nesta terra! Não são pois a razão, a reflexão ou a alma que nos tornam superiores aos animais; são nossa beleza, nossa linda tez, a harmônica disposição de nossos membros, ao lado do que nossa inteligência, nossa prudência e o resto são de pouca valia. Tomo nota de tão ingênua e franca confissão, pois significa que reconhecem que as prendas de que tanto nos vangloriamos não passam de fantasia. E assim, ainda que os animais tivessem todas as virtudes, a ciência, a sabedoria, a inteireza dos estoicos, continuariam animais e não poderiam ombrear com um homem miserável, mau e insensato! A meu ver, em suma, tudo o que não se nos assemelha nada vale. Deus mesmo, e é um ponto a que tornaremos, vale somente porque é feito a nosso modo. Disso se conclui que não é em virtude de um raciocínio judicioso, mas unicamente por orgulho e obstinação que nos sobrepomos aos animais e nos afastamos de sua companhia. Voltemos ao nosso assunto. Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com o futuro, inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga e da curiosidade. Pagamos pois bem caro a tão decantada razão de que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar. E nem sequer contamos, por não apreciá-la mais do que Sócrates, a prerrogativa que temos do prazer sexual a qualquer momento, quando aos bichos impôs a natureza limites e épocas razoáveis. Assim como é preferível não dar vinho aos enfermos, porque, sendo-lhes normalmente nocivo, raramente proveitoso, com duvidosa esperança de melhoria incorre-se em risco manifesto, assim também seria preferível que não se houvesse outorgado ao homem a faculdade de pensar, a compreensão, a perspicácia, a razão em suma, a qual a todos foi liberalmente concedida mas a poucos beneficia e prejudica a muitos. Que vantagens tiraram Varro e Aristóteles dessa sua inteligência peregrina? Isentou-os dos incômodos inerentes à natureza humana? Eximiu-os dos acidentes a que se expõe um carregador? A lógica consolou-os da gota? Sentiram-na menos por saberem como ela se aloja nas articulações? E por não ignorarem que entre certos povos a morte é recebida com alegria, foi-lhes ela mais suave? E por saberem que em alguns países as mulheres pertencem a todos, consolaram-se das infidelidades das suas? Por outro lado, embora pelo seu saber tenham ocupado o primeiro lugar, um entre os gregos, outro entre os romanos, em uma época em que a ciência florescia, não nos consta que suas vidas se tivessem aproximado da perfeição. A de Aristóteles, em particular, apresenta algumas manchas importantes que com dificuldade se limpariam. Estará demonstrado que o prazer e a saúde tenham mais sabor nos que conhecem a astronomia e a gramática? "Sustenta o ignorante com menos vigor os combates do amor?” Cem artesãos conheci, e cem lavradores, mais prudentes e felizes do que professores universitários. Com os primeiros gostaria de me parecer. A meu ver, a erudição deve incluir-se entre as coisas necessárias à vida, como a glória, a nobreza, a grandeza, a dignidade, a beleza e a riqueza. Talvez, mas não de um modo essencial. Os princípios de moral e as leis não nos são muito mais indispensáveis para vivermos em comum do que seriam aos grous e às formigas, muito organizados embora careçam de erudição. Se o homem fosse sensato, a cada coisa daria um valor, segundo sua utilidade e sua adequação à vida. Quem nos julgasse por nossos atos e nossa conduta, observaria maior número de indivíduos perfeitos entre os ignorantes do que entre os sábios e isso em relação a quaisquer virtudes. A antiga Roma parece-me ter sido muito superior, na paz como na guerra, à Roma sábia que se arruinou por suas próprias mãos; e ainda que admitíssemos terem sido iguais, a probidade, a pureza predominariam na primeira em consequência da simplicidade que aí reinava. Para encerrar esta dissertação que nos levaria muito longe, limitemo-nos a constatar que só a humildade e a submissão engendram homens de bem. Não é possível deixar ao livre-arbítrio de cada um a escolha de seu dever; é preciso prescrever-lho. De outro modo, dada a variedade infinita de opiniões e inteligências, forjaríamos deveres que nos impeliriam a nos destruirmos uns aos outros, como diz Epicuro. A primeira lei que Deus impôs aos homens foi obedecer; uma ordem simples, sem complicações, poupando o trabalho do conhecimento e do raciocínio. A obediência é, aliás, a condição natural de uma alma que reconhece em Deus seu superior e benfeitor. Obedecer e submeter-se são o princípio de todas as virtudes, como a presunção é o princípio de todos os pecados. Foi indo de encontro a esse princípio que o homem experimentou sua primeira tentação e que o diabo pôde inocular-lhe seu primeiro veneno, prometendo-lhe ciência e saber: "Serás como os deuses quando conheceres o bem e o mal". Em Homero, as sereias, a fim de enganar Ulisses e atraí-lo a seus perigosos recantos, oferecem-lhe a ciência. O mal no homem está em pensar que sabe, por isso nossa religião recomenda-nos com tanta insistência a ignorância como meio adequado a determinar em nós a fé e a obediência: "cuidai de que ninguém vos iluda com a filosofia, nem com as vãs seduções das doutrinas do mundo”. Todos os filósofos de todas as seitas concordam em que o soberano bem reside na serenidade da alma e do corpo. Mas como alcançar essa serenidade? "O sábio só é inferior a Júpiter; sente-se rico, livre, honrado, belo, rei do mundo enfim, a menos que o defluxo o atormente”. Dir-se-ia em verdade que para nos consolar de nossa condição miserável e doentia a natureza só nos deu presunção. E a opinião de Epicteto: "Nada existe no homem que lhe pertença integralmente, a não ser sua opinião; somente vento e fumaça constituem nosso patrimônio. Os deuses têm a saúde, pelo próprio fato de serem deuses e só conhecem a doença porque lhes é dado saber tudo. O homem, ao contrário, traz em si o princípio do mal; o bem é uma miragem. Temos muita razão para nos vangloriarmos da força de nossa imaginação, pois nossos bens só existem em sonho". Ouvi um exemplo do orgulho desse pobre e calamitoso animal: "Nada é tão suave (Cícero é quem fala) quanto nos dedicarmos às letras; a essas letras, digo, que nos revelam o conhecimento da infinidade de coisas existentes; da natureza no que tem de maior; dos céus enquanto ainda somos deste mundo de terras e águas. Por elas fomos instruídos na religião, conhecemos a moderação e a coragem no que têm de mais nobre. Por elas nossa alma foi tirada das trevas para ser iniciada em todas as coisas, tanto as de ordem superior como as de ordem inferior, as que ocupam o primeiro como o último lugar. E assim envelhecemos sem desprazer nem sofrimento". Não vos parece que de Deus e de Deus vivo e Todo-poderoso é que fala o autor? Na realidade, mil camponeses viveram em suas aldeias uma existência mais sossegada, doce e tranquila do que a de Cícero. "Foi um Deus, ilustre Mêmio, quem primeiro descobriu esse gênero de vida a que chamam sabedoria, graças à qual a calma e a luz sucederam à agitação e às trevas." Lindas, magníficas palavras! Entretanto, apesar desse deus tão decantado e de sua divina sapiência, um simples acidente bastou para que a inteligência de quem as disse caísse ao nível da de um pobre pastor. Tão impudente quanto esses devaneios é o que promete Demócrito quando diz: "Vou falar de todas as coisas"; e o ridículo título que Aristóteles dá aos homens, "deuses mortais"; e a opinião de Crisipo a respeito de Díon cuja vittude "o elevava à altura de Deus"; e esta asserção de Sêneca de que "a Deus deve a vida mas a si mesmo o fato de bem viver"; e esta outra que se assemelha à precedente: "com razão nos jactamos de nossa virtude, o que não deveríamos fazer se proviesse de um deus em vez de provir de nós mesmos”, e esta ainda, igualmente de Sêneca: "o sábio alia à fraqueza humana uma força de alma semelhante à de Deus e nisso ele lhe é superior". Nada é tão comum como encontrar exemplos de análoga ousadia. Nenhum homem se ofende com se ver comparado a Deus, mas deprime-se se o nivelam aos animais, prova evidente de que prezamos mais a nós mesmos do que a glória do Criador. E preciso dominar tão tola vaidade e solapar ousada e energicamente os fundamentos ridículos sobre os quais se erguem as opiniões errôneas. Enquanto o homem imaginar alguma força e meios de ação próprios, nunca reconhecerá o que deve a seu Senhor. Suas ilusões serão infinitas. Eis por que é preciso despi-lo, reduzi-lo à indigência. Vejamos alguns exemplos dos resultados de sua filosofia. Possidônio, torturado por uma doença tão cruel que seus braços se torciam e seus maxilares se contraíam, pensava demonstrar seu desprezo pela dor, invectivando-a: "Faze o que quiseres, não direi jamais que és um mal." Sofria tanto quanto um lacaio, mas acreditava-se corajoso porque falava uma linguagem obediente aos preceitos de sua seita: não devia sucumbir ante a realidade quem se jactava com palavras de sua coragem. Achando-se Arcesilau atacado de gota, Carnéades, que o fora visitar, quis retirar-se, embargado pela piedade. Chamou-o o paciente e, mostrando-lhe os pés e o peito, disse: "Nada sinto aqui do que sofro lá." Isto me parece mais honesto, pois reconhecia que sofria e quisera livrar-se do sofrimento, mas não se abatia nem se enfraquecia ao passo que Possidônio, penso, afetava uma serenidade que não possuía. E Dionísio de Heracléia, sofrendo cruelmente dos olhos, viu-se forçado a desprezar suas resoluções estoicas. Mas ainda que a ciência produzisse os resultados que os filósofos lhe atribuem, ainda que atenuasse a violência dos males a que estamos expostos, que poderia fazer a mais do que faz a ignorância, e melhor? O filósofo Pirro, vítima de uma tempestade no mar, não achou coisa melhor para animar seus companheiros de infortúnio senão incita-los a imitar a serenidade de um porco que estava a bordo e contemplava o fenômeno sem se apavorar. A filosofia, como último recurso, apresenta à nossa consideração os exemplos do atleta e do arrieiro que, em geral, não temem a morte nem os tormentos e são capazes de maior resolução do que a ciência pôde jamais impor a nenhum homem não predisposto naturalmente à resistência física. Que é que faz, se não a ignorância, que se amputem os membros delicados de uma criança, ou os de um cavalo, mais facilmente do que os nossos? E quanta gente fica doente unicamente por efeito da imaginação! E frequente vermos quem se faça sangrar, purgar e medicamentar para curar males que só existem porque os imagina ter. Quando nos faltam inales verdadeiros, a ciência no-los fornece. Pela cor de nosso rosto devemos estar sob a ameaça de alguma doença catarral; o calor da estação predispõe-nos a um acesso de febre; a linha de vida de nossa mão esquerda apresenta um aspecto que pressagia séria e próxima indisposição. A ciência ataca mesmo de frente a saúde: temos uma vitalidade, uma força que não pode continuar, é preciso que nos tirem algum sangue e nos enfraqueçam, sem o que a saúde poderá voltar-se contra nós mesmos. Compare-se a existência de um homem escravizado a essas ideias imaginárias com a de um lavrador que se entrega ao fluxo normal da vida, levando em conta as coisas no momento em que ocorrem e sem se preocupar com o que diz a ciência, sem se prender às conjeturas; que só adoece quando a doença chega, ao passo que outros já trazem os cálculos na alma antes que alcancem a bexiga, antecipando-se pela imaginação aos sofrimentos reais, correndo ao seu encontro como se não lhes sobrasse tempo para sofrer na hora certa. O que digo dos efeitos nefastos da medicina aplica-se igualmente a qualquer outra ciência. Daí a opinião de certos filósofos antigos que consideravam a felicidade suprema termos consciência da fraqueza de nosso julgamento. Quanto a mim, minha ignorância tanto me induz a esperar como a temer: para regular minha saúde, guio-me pelos exemplos dos outros e pelo que vejo verificar-se alhures nas condições em que me acho. Essas observações são de toda espécie e decido de acordo com a comparação que estabeleço entre elas, escolhendo o que me parece conveniente. Recebo com a maior cordialidade a saúde, por julgá-la coisa essencial e que nos torna livres. Subordino-lhe o resto e procuro gozá-la tanto mais quanto já se vai fazendo menos comum, mais rara. Por isso evito perturbar-lhe o repouso e a cordura com os aborrecimentos de uma nova e forçada maneira de viver. Os animais que devem à sua quietude uma saúde mais robusta do que a nossa, mostram-nos a que ponto a inquietação de espírito pode ser causa de doença. Dizem que no Brasil as pessoas só morrem de velhice, o que se atribui à pureza e à calma do ar que respiram, e que, a meu ver, provém antes da serenidade e da tranquilidade de suas almas isentas de paixões, de desgostos, de preocupações que excitam e contrariam. Ignorantes, iletrados, sem lei nem rei, nem religião alguma, sua vida desenvolve-se numa admirável simplicidade. Como explicar que os indivíduos mais grosseiros, de espírito mais curto, sejam os mais dados ao amor? E que o amor de um arrieiro seja mais desejável por vezes que o de um fidalgo? Não será porque neste último as agitações do espírito influem nos meios físicos, desequilibram-nos, cansam-nos, enfadam-nos, como cansam e enfadam a própria alma? Que é que torna essa alma desregrada e a impele à loucura, senão a vivacidade e a agilidade que constituem sua força? Que diferencia a loucura mais sutil da mais sutil sabedoria? Das grandes amizades nascem as grandes inimizades; as saúdes vigorosas são o ponto de partida das doenças mortais; assim também as mais notáveis e belas inteligências podem conduzir às mais sublimes loucuras e extravagâncias. De umas a outras vai apenas um passo. Pelo que são capazes de fazer os loucos, podemos julgar quão próxima da generosidade da alma se encontra a loucura. Quem ignora quanto é imperceptível a linha de demarcação entre a loucura e as inspirações mais ousadas de um espírito completamente livre, ou as resoluções que pode tornar, em dadas circunstâncias, uma virtude excepcional? Diz Platão que os melancólicos são os mais aptos à disciplina e os melhores, mas não há também mais propensos à loucura. Inúmeros espíritos se consomem pela sua própria força e brilho. Assim vimos que, pela fulgurante excitação de seu espírito, se consumiu o mais judicioso, engenhoso e superior de todos os poetas italianos, na tradição da antiga e pura poesia. Sim, tem de ser grato realmente à vitalidade que o matou! A claridade que o cegou! Ao acertado, e constante exercício de suas faculdades que lhe destruiu a razão! A curiosa e laboriosa investigação científica que o levou à loucura! À rara aptidão para os trabalhos do espírito que o deixou sem espírito e sem possibilidade de trabalhar! Ao vê-lo em Ferrara, em tão lamentável estado, não se reconhecendo nem reconhecendo as suas obras que se publicaram sem que as pudesse rever, embora vivo, senti mais despeito pela fragilidade da natureza humana do que compaixão pela sua infelicidade. Quereis que um homem seja sadio, ponderado em seus atos, com atitudes seguras e firmes? Envolvei-o nas trevas, na ociosidade e evitai que seu espírito trabalhe. Para sermos sensatos, precisamos atoleimarmo-nos; para nos guiarem devem cegar-nos. Dirão que a vantagem de ser pouco sensível às dores e aos males traz consigo o inconveniente de tomar menos requintado o gozo dos bens e prazeres. Com efeito, mas a miséria de nossa condição é causa de que nos cabe fugir mais do que gozar e um prazer total nos impressiona menos do que uma ligeira dor: "os homens são menos sensíveis ao prazer do que à dor". Mal percebemos o bem-estar que acompanha a perfeita saúde, tortura-nos porém a mais insignificante enfermidade. "Somos sensíveis ao menor arranhão e no entanto a plenitude da saúde deixa-nos indiferentes. Alegramo-nos com não sermos atormentados pela pleurisia ou a gota, porém mal percebemos que somos sadios e vigorosos”. Nosso bem-estar consiste em não sentir dores, por isso a seita filosófica que colocou o prazer acima de tudo definiu-o pela ausência do sofrimento. É este o maior bem que o homem pode esperar, como dizia Ênio. Essa comichão, essa excitação que nos causam certos prazeres, afiguram-se a um tempo excesso de saúde e de mal-estar. Essa volúpia que nos atrai e a que cedemos, apesar do que comporta de irritante, não terá por objeto aplacar em nós a sensação? O impulso que nos leva às mulheres obedece tão somente à necessidade de aplacar o mal-estar que produz em nós o desejo ardente e excessivo; e não visa a outra coisa senão sacia-lo, extinguindo a febre e devolvendo-nos a calma. O mesmo acontece com os demais prazeres. Parece-me, pois, que se a simplicidade de espírito nos induz a preservar-nos do mal, conduz-nos a um estado de felicidade, dada a nossa natureza. Mas que não seja entretanto tão total que se dispa de toda sensibilidade, e Crantor tinha razão em combater essa indiferença preconizada por Epicuro, que a exagerava a ponto de não confessar a existência do mal, mesmo quando por ele atingido: "não aprovo uma insensibilidade elevada a esse grau, a qual em verdade não existe e não é desejável. Alegra-me não estar doente, mas se o estou quero sabê-lo, e se me cauterizam ou me operam quero sentir". Efetivamente, quem nos tirasse a sensação da dor nos privaria ao mesmo tempo do prazer. Seria em suma o aniquilamento do homem. "Essa indiferença não se conquista sem grande dureza de coração e insensibilidade do corpo”. O mal e o bem revezam-se no homem; a dor não o persegue sem descontinuar e ele não corre sem cessar atrás do prazer. Constitui argumento poderoso em prol da ignorância o fato de a própria ciência nos jogar em seus braços quando não encontra o meio de nos tornar superiores ao sofrimento demasiado intenso. Pois a ciência vê-se forçada a transigir recomendando-nos a ignorância e entregando-nos à proteção dela a fim de nos resguardar contra os golpes e insultos da sorte. Não significa outra coisa o que nos diz a ciência quando nos incita a não pensar em nossos sofrimentos e a recordar os prazeres de outros tempos; quando nos consola dos males presentes com a lembrança das alegrias idas; quando opõe, ao que nos oprime hoje, o que ontem nos deu satisfação: "Epicuro diz que é preciso obviar aos pensamentos tristes e atentar para os alegres". Carecendo de força, recorre a ciência à esperteza. E mediante trejeitos e peloticas supre o vigor dos braços. Mas recordar a doçura dos vinhos da Grécia não somente a um filósofo mas simplesmente a um homem sensato em luta contra a febre, eis um estranho remédio bem capaz de piorar a situação: "a recordação da felicidade passada duplica a desgraça presente”. De igual natureza é este outro conselho da filosofia: "guarde-se na memória apenas a lembrança das alegrias tidas e apague-se a recordação das tristezas". Como se de nosso arbítrio dependesse o esquecimento! Outra prova de nossa insignificância. "Doce é a lembrança das tristezas idas". Então a filosofia que me deve dar armas para combater os azares do destino, que deve temperar-me o caráter para que possa desprezar as adversidades humanas, confessa sua impotência, recorrendo a escapatórias ridículas e covardes? Sim, porque a memória não fixa o que queremos e sim o que lhe aprazo Mais ainda: nada imprime mais profundamente alguma coisa na memória do que o desejo de esquecer. Este é mesmo o melhor meio de gravar em nós alguma coisa. É errado pretender que "depende de nós enterrar para sempre no olvido as nossas desgraças passadas e lembrar unicamente as alegrias". Mas é certo dizer: "Lembro-me das coisas que quisera esquecer e esqueço as que desejara lembrar”. E de quem é este princípio? Daquele que superou com seu gênio a raça humana e eclipsou todos os homens, como o sol ao surgir apaga as estrelas, do único que entre todos ousou dizer-se sábio. Esvaziar a memória não será seguir o verdadeiro caminho da ignorância. A ignorância que tudo aceita sem discussão é um remédio para os nossos males. Outros preceitos há, em virtude dos quais nos é permitido tomar de empréstimo ao vulgo certas aparências frívolas que nos sirvam de consolo. Quando não podem curar a chaga satisfazem-se com atenuar a dor. Creio que ninguém recusaria aceitar, ainda que em troca de certa simplicidade de espírito, uma existência agradável e tranquila cuja ordem e continuidade se lhe assegurassem: "começaria por beber e jogar flores, embora pudesse passar por louco". Por certo encontraríamos muitos filósofos da opinião de Licas. Este, aliás, de costumes morigerados, vivia calmamente com sua família, cumprindo seus deveres para com os seus e os estranhos, sabendo muito bem evitar o que lhe era prejudicial. Um transtorno qualquer de seus sentidos induziu-o a imaginar que se encontrava sempre no teatro assistindo às mais belas peças. Tendo-o curado os médicos, pouco faltou para que os processasse, a fim de lhe devolverem as delícias da imaginação: "Ah! meus amigos, que fizestes! Salvando-me, vós me matastes, pois me privastes de toda a volúpia extirpando o erro que me encantava a vida". Trasilau, filho de Pitodoro, sofria de mania semelhante. Imaginava que todos os navios que tocavam no Pireu trabalhavam por conta dele. Alegrava-se quando não se verificavam avarias e acolhia com júbilo a chegada dos barcos. Curando-se, graças a seu irmão Críton, lamentava o passado em que vivera feliz. É o que exprime este verso de um autor grego da antiguidade: "Há grande vantagem em não ser demasiado sensato". E no Eclesiastes se diz: Muita sabedoria é fonte de desprazer; quem adquire saber adquire ao mesmo tempo trabalho e tormento. Admite geralmente a filosofia, como último remédio para os nossos males, que ponhamos fim à vida, desde que não a possamos suportar: "Agrada-te a vida? Suporta-a. Estás cansado dela? Sai como quiseres". "A dor te molesta ou te inferniza? Se não tens defesa, estende o pescoço; mas se trazes as armas de Vulcano, isto é, se és forte, resiste." E este ditado: "que beba ou que se vá", com que costumavam os gregos saudar seus convivas e aplicavam às situações críticas mudando o b em v, como fazem os gascões, que significa senão a confissão da impotência da filosofia? Pois não somente apela para a ignorância, mas também para a estupidez humana, preconizando o abandono de todo sentimento e até da existência: "Se não sabes como empregar a vida, cede o lugar aos que sabem. Já te divertiste bastante, já comeste e bebeste; está na hora de te aposentares, pois poderias embriagar-te e te tornares alvo do escárnio dos jovens, nos quais o desregramento é mais desculpável do que em homem da tua idade. Demócrito, vendo que os anos lhe haviam enfraquecido as faculdades, matou-se voluntariamente”. Antístenes exprime a mesma ideia: "Fazer provisão de bom senso para viver tranquilo ou arranjar uma corda para se enforcar". E Crisipo assegura, a propósito de um verso de Tirteu, que "é preciso chegar à virtude ou morrer". Crates dizia igualmente: "o amor cura-se com a fome ou com tempo; àqueles a quem nem um nem outro desses meios satisfaz resta recurso da corda para o pescoço". Sexto, de quem Sêneca e Plutarco falam com tanta consideração, tudo abandonara para estudar a filosofia. Progredindo lentamente e se prolongando seus estudos, resolveu precipitar-se ao mar. Não podendo alcançar a ciência, matava-se. Eis os termos da lei dos estoicos: "se porventura ocorrer alguma desgraça para a qual não tenhamos remédio, o porto está próximo; podemos salvar-nos a nado, abandonando o corpo, como um barco que faz água. E o medo de morrer e não o desejo de viver que retém o louco amarrado ao corpo". A simplicidade torna a existência mais agradável e a alma mais pura e melhor. Os simples e os ignorantes, diz São Paulo, elevam-se e conquistam o reino dos céus; nós, com todo o nosso saber, afundamos nos abismos do inferno. Não lembrarei nem Valentiniano, inimigo declarado da ciência e das letras, nem Licínio, ambos imperadores e que as consideravam nocivas como a peste; nem Maomé que, ao que ouvi dizer, proibia o ensino da ciência; mas invocarei o exemplo de Licurgo. A autoridade do legislador merece todo o nosso respeito, como o merece também a divina legislação que ele deu à Lacedemônia, onde durante tanto tempo reinaram a virtude e a felicidade sem que se admitissem o conhecimento e a prática das letras. Os que voltam desse Novo Mundo que os espanhóis descobriram no tempo de nossos pais, podem testemunhar como esses povos, que não possuem leis nem magistrados, são mais bem governados do que nós com nossos tão numerosos funcionários e leis tão abundantes que ultrapassam em quantidade os atos a serem julgados: "têm as mãos cheias de convocações, requerimentos, informações, procurações e também maços de comentários, pareceres, processos. Com tais indivíduos os infelizes nunca se acham em segurança na sua cidade. São assaltados por todos os lados por uma multidão de escrivães, procuradores, advogados". Um senador romano dos últimos séculos do império exprimia a mesma ideia: "nossos antepassados recendiam fortemente a alho, mas tinham o estômago perfumado por uma boa consciência, ao passo que em nossa época as pessoas exalam bom odor, mas por dentro o cheiro é nauseabundo e provém da fermentação de seus vícios". Em outras palavras, com muito saber e capacidade, careciam totalmente de consciência. A falta de educação, a ignorância, a simplicidade de espírito, a franqueza aliam-se em geral à ingenuidade. A curiosidade, a sutileza, o saber acarretam a malícia. A humildade, o temor, a obediência, a bondade elevada até a fraqueza e que constitui o alicerce sobre o qual assenta a conservação da sociedade humana, são peculiares a uma alma vazia, dócil, e presumindo pouco de si. Os cristãos mais do que os outros sabem a que ponto a curiosidade é um mal natural e original no homem. O desejo de aumentar sua ciência foi a causa primeira da queda do homem, que lhe acarretou a danação eterna. O orgulho perdeu-o e corrompeu-o. E o orgulho que expulsa o homem dos caminhos batidos e o induz a abraçar as novidades, a preferir ser chefe de um bando errante, desviado em uma senda de perdição e professor de erros e mentiras, a ser aluno de uma escola em que se ensine a verdade, e a marchar sob a direção de outrem, pela estrada larga que leva direito à meta. É sem dúvida o que exprime esta antiga máxima grega: "a superstição segue o orgulho e lhe obedece como a um pai". Ó presunção, quanto nos prejudicas! Quando Sócrates foi avisado de que o Deus da sabedoria lhe outorgara o epíteto de sábio, espantou-se. Sondando-se, analisando-se, nada achava suscetível de motivar a declaração da divindade, pois conhecia muitos justos, corajosos, sábios como ele, e mais eloquentes, mais belos, mais úteis a seu país. Acabou por concluir que o que fazia que fosse sábio era o fato de ele próprio não se considerar sábio; que seu Deus devia encarar como tolice do homem a opinião que este tem de sua ciência e de sua sabedoria; e que a melhor doutrina está na ignorância, como na simplicidade de espírito está a verdadeira sabedoria. Nossos Evangelhos consideram bem miseráveis os que se superestimam: "És barro e cinza, podes em verdade vangloriar-te?" E ainda: "Deus fez o homem semelhante a uma sombra; que se pode ver dele quando, em se afastando a luz, desaparece a sombra?" Na realidade nada somos. Muito falta para que possamos atingir as alturas em que paira a divindade, e as obras do Criador que mais evidenciam a Sua presença são as que menos podemos alcançar. Deparar com algo incrível é para o cristão uma oportunidade de crer; tanto mais se aproxima da razão quanto mais escapa à inteligência humana. Se esta o pudesse entender, deixaria de ser milagre, e se fosse análogo a qualquer outra coisa não seria incrível. "Conhece-se melhor Deus não O procurando compreender". "É mais nobre e respeitoso crer que aprofundar os desígnios dos deuses", diz Tácito. Platão igualmente acha até certo ponto irreverente interessar-se alguém, demasiado curiosamente, por Deus, o mundo e as causas primeiras das coisas. E finalmente lemos em Cícero que "é difícil conhecer o criador deste universo; e se conseguirmos descobri-lo será impossível torná-lo compreensível ao vulgo". Deus é poder, verdade e justiça, dizemos nós. Estas palavras sugerem uma ideia de grandeza, mas o que representam realmente nós não o vemos, não o concebemos. Dizemos que Deus tem medo ou está zangado, ou que ama, "exprimindo o divino em termos humanos", segundo Lucrécio; são emoções, essas, de que somos suscetíveis mas que não podem existir em Deus como as concebemos, do mesmo modo que não concebemos o que Ele possa sentir. Só Deus tem a possibilidade de Se conhecer e de explicar Seus atos, que não se traduzem senão impropriamente em nossa linguagem, a qual Ele emprega entretanto para, abaixando-Se, descer até nós que jazemos na terra. Como a sabedoria, que constitui um ponto de equilíbrio entre o bem e o mal, poderia ser-Lhe inerente, se nem o bem nem o mal O atingem? Que Lhe importam essa razão e essa inteligência que nos permitem deduzir das coisas que mal conhecemos outras nitidamente definidas, a Ele para quem nada é obscuro? A justiça que tem por objetivo dar a cada um o que lhe cabe, foi engendrada pelos homens em sociedade e não pode figurar entre os atributos divinos. A temperança, que consiste em moderar o gozo dos prazeres materiais, não tem nenhuma relação com a divindade. A coragem, que nos induz a suportar e enfrentar a dor, o trabalho, os perigos, nada tem tampouco com Deus: as três coisas Lhe são estranhas. São considerações idênticas que levam Aristóteles a julgar que Deus está isento de vícios e virtudes: "não é suscetível nem de amor, nem de ódio, porque tais coisas são inerentes aos seres frágeis". A participação grande ou pequena que temos no conhecimento da verdade, não a obtemos com nossas próprias forças; demonstrou-nos Deus, escolhendo no povo gente simples e ignorante para nos revelar Seus admiráveis segredos. Nossa fé, não a adquirimos, é um presente puríssimo de liberalidade alheia. Não foi pelo raciocínio, pela inteligência, que acolhemos nossa religião; foi porque assim o quis uma autoridade situada fora de nós. Ajuda-nos a fraqueza mais do que a força de nosso juízo, e nossa cegueira mais do que nossa clarividência. Graças à nossa ignorância, mais do que ao nosso saber, temos conhecimento das coisas divinas. Não é de espantar aliás que nossos meios, que são os que recebemos da natureza e se aplicam às coisas da terra, não nos permitam conceber as coisas sobrenaturais e celestes. Tudo o que podemos fazer é submeter-nos e obedecer, pois está escrito: "destruirei a sabedoria dos sábios e deitarei por terra a prudência dos prudentes". Onde está o sábio do século? E o censor? Não reduziu Deus a zero a ciência humana? Pois em não chegando o mundo ao conhecimento de Deus pela ciência, prouve a Deus que, pela prédica dos ignorantes e dos simples, fossem salvos os crentes. Examinemos, portanto, se está ao alcance do homem encontrar o que procura e se essa procura a que se vem entregando há séculos lhe trouxe alguma força nova, alguma verdade sólida. Creio que reconhecerão, se falarmos honestamente, que tudo o que tirou de tão longa busca foi a certeza de sua impotência. Nesse longo estudo, a ignorância, que nos é naturalmente inerente, ficou confirmada e demonstrada. Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo, as quais se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens, depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua presunção e reconheceram a sua insignificância. É o que Veleio Patérculo censura a Cota e a Cícero, quando diz: "Aprenderam com Fílon que não aprenderam nada". Ferecides, um dos sete sábios da Grécia, às vésperas da morte, escrevia a Tales: "determinei aos meus que, depois de me enterrarem, te entregassem meus escritos. Se te agradarem, a ti e aos outros sábios, publica-os; se não, destrói-os. Nenhuma certeza contêm que a mim mesmo satisfaça; aliás não pretendo conhecer a verdade, nem mesmo atingi-Ia. Entrevejo as coisas mais do que as penetro". Sócrates, o homem mais sábio que já houve, respondeu ao lhe perguntarem o que sabia: "uma coisa sei - e muito bem: que nada sei". Sua resposta confirma o que se diz comumente, isto é, que por mais que saibamos nada sabemos ao lado do que ignoramos. Em outras palavras, aquilo mesmo que pensamos saber não passa de uma ínfima parcela do que ignoramos. Conhecemos as coisas, diz Platão, em sonho, mas as ignoramos na realidade, "porque todos os autores antigos nos disseram que nada podemos conhecer, nada compreender, nada saber, eis que nossos sentidos são limitados, nossa inteligência demasiado frágil, a vida exageradamente curta". O próprio Cícero, que aufere todo o seu valor de seu saber, principiava, em sua velhice (segundo Valério Máximo) a desprezar as letras. Quando as cultivava, fazia-o sem optar por nenhuma solução, tendendo ora para uma seita ora para outra, segundo o que lhe parecia mais certo, sem contudo se afastar da dúvida da Academia: "Vou falar, mas sem nada afirmar; tudo investigarei, sempre desconfiado de mim mesmo". Não teria dificuldade em considerar o homem em sua maneira habitual de ser, mas, se o fizesse, o estaria imitando, julgando a verdade não pelo valor das testemunhas e sim pelo seu número. Deixemos de lado o povo, que dorme acordado, e agoniza embora viva e tenha os olhos abertos, que não se sente, não se julga, e deixa na ociosidade suas faculdades naturais; e vejamos o que de melhor existe na humanidade. Estudemos nessa reduzida plêiade de homens excelentes, selecionados com carinho e que, naturalmente dotados de um espírito particularmente belo, ainda o temperaram e requintaram pela erudição e a arte, elevando-se tão alto quanto o permite a sabedoria humana. Esses indivíduos trabalharam seu espírito de todas as maneiras, por todas as suas facetas, preparando-o para tudo, buscando em todas as fontes suscetíveis de auxiliá-los o que podiam assimilar; enriquecendo-o, enfeitando-o com tudo o que poderia concorrer para seu aperfeiçoamento interior e exterior. Neles a natureza humana alcançou seu mais alto grau de perfeição. Deram ao mundo leis e instituições, desenvolveram as artes e as ciências e ofereceram-lhe os exemplos admiráveis de sua conduta e de seus costumes. Desses invocarei o testemunho e a experiência. Vejamos até onde foram, onde pararam. As enfermidades e falhas que observamos nessa elite, deveremos julgá-las comuns a todos nós. Quem procura alguma coisa acaba por declarar, ou que a encontrou ou que não a pôde descobrir, ou que continua a busca. Toda a filosofia tende a uma dessas três conclusões; seu objetivo é procurar a verdade, penetrá-la e convencer-se dela. Os peripatéticos, os epicuristas, os estoicos e outros pensam tê-la encontrado; estabeleceram o rol dos nossos conhecimentos e os consideram indiscutíveis. Clitômaco, Carnéades e os acadêmicos em geral desesperam de encontrar a verdade e julgam que nossas faculdades são incapazes de descobri-la; daí concluírem pela fraqueza e ignorância do homem. Sua doutrina foi a que mais se expandiu e conta entre seus adeptos os mais nobres espíritos. Pirro e os outros céticos, cujos dogmas, dizem alguns autores antigos, são tirados de Homero, dos sete sábios, de Arquíloco, de Eurípides, escola a que se filiam Zenão, Demócrito, Xenófanes, acham que a verdade ainda está por se encontrar. Acham que os que acreditam tê-la descoberto laboram em profundo erro, e os que afirmam não serem as nossas forças capazes de alcançá-la, são, embora em menor grau, demasiado temerários ainda em sua asserção, pois determinar em que medida podemos conhecer as coisas e ajuizar da dificuldade de tal conhecimento é ciência tão elevada, ultrapassando a tal ponto qualquer outra, que duvidam esteja o homem em condições de possuí-la: "quem quer que pense que o homem nada pode saber, não sabe sequer se sabemos algo suscetível de afirmarmos que não sabemos nada". A ignorância que se conhece, se julga e se condena não é uma ignorância completa. Para que o fosse, fora necessário que se ignorasse a si mesma, de sorte que a tarefa dos pirrônicos consiste em duvidar das coisas, investigá-las sem afirmar nem assegurar. O espírito concebe, deseja, admite; destas três impressões, aceitam as duas primeiras e mantêm a última em situação ambígua, sem a aprovar por pouco que seja, nem a negar. Essas três faculdades do espírito, representa-as Zenão por gestos: a mão estendida e aberta significaria a aparência das coisas; a mão entreaberta e com os dedos ligeiramente recurvados, o desejo de aprofundar; a mão fechada, a compreensão; a mão esquerda apertando o punho representava a ciência. Essa atitude reta e inflexível de seu espírito, considerando os objetos sem aplicação nem consentimento, encaminha-os para a ataraxia, estado de alma sereno e tranquilo, inatingível às agitações que nos causam o sentimento e o conhecimento que podemos ter das coisas e que provocam o temor, a avareza, a inveja, os desejos imoderados, a ambição, o orgulho, a superstição, o amor à novidade, a rebeldia, a desobediência, a obstinação, e a maior parte dos males a que está exposto o nosso corpo. Tal estado de espírito os liberta mesmo da intransigência em relação à sua doutrina, que defendem apenas, não receando ser vencidos em suas discussões. Se sustentam que os corpos buscam o centro de gravidade, aborrece-os nossa aquiescência, pois preferem a contradição para que se engendre a dúvida e se adie o julgamento, o que constitui seu objetivo. Só apresentam proposições no intuito de as opor às que supõem se encontrarem na mente dos adversários. Se adotamos seu ponto de vista, defendem de bom grado a tese contrária: não têm preferência. Se dizemos que a neve é preta, afirmam que é branca; se achamos que não é nem preta nem branca, sustentam logo que é de ambas as cores; se concluímos que não sabemos ao certo o que seja, esforçam-se por demonstrar que o sabemos muito bem. E ainda que pelo raciocínio estabeleçamos de maneira evidente a nossa dúvida, eles discutirão a fim de provar que a dúvida não existe em nós ou que não poderíamos demonstrar que tal dúvida tenha fundamento e subsista realmente. Graças a essa dúvida levada às últimas consequências, os pirrônicos dividem-se e se separam quanto às opiniões acerca das questões que tratam, inclusive a respeito da própria dúvida e da ignorância. Por que não lhes seria permitido duvidar, perguntam, quando se concorda em que entre os dogmáticos um possa dizer verde e outro amarelo? Poderá alguém propor-nos que aceitemos ou neguemos alguma coisa, sem que nos seja lícito optar pela dúvida? E enquanto os demais são levados pelos costumes de seu país, sua família, o acaso, como por uma tempestade, sem reflexão nem escolha, às vezes mesmo antes da idade da razão, a tal ou qual opinião, a favor da seita estoica ou da epicurista, às quais se escravizam sem possibilidade de se libertar, "presos a qualquer doutrina como se jogados sobre um rochedo pela tempestade", por que não lhes dar a eles, pirrônicos, o direito de se conservarem livres, encarando as coisas sem entraves em seu julgamento? Não será muito mais vantajoso ver-se desligado das necessidades que detêm os outros? Não será mil vezes preferível evitar um julgamento a se meter em discussões fantasistas e puramente polêmicas? Que escolher? Se pouco importa e se se trata apenas de escolher, seria grande tolice. É no entanto ao que impele o dogmatismo, o qual não nos autoriza a ignorar o que ignoramos. Ainda que se adote o melhor partido, nunca será ele tão seguro que não se faça necessário, para defendê-lo, atacar e combater centenas de partidos contrários. Não será melhor ficar fora da confusão? Se a qualquer pessoa se permite defender como a honra e a vida a crença de Aristóteles na eternidade da alma; se se admite que se discuta o ponto de vista de Platão a respeito, por que se há de impedir que duvidem os céticos? Se Panécio se abstém de opinar acerca do conhecimento do futuro pelas entranhas, os sonhos, os oráculos, os vaticínios em que acreditam os estoicos, por que não ousaria um sábio, em relação aos demais assuntos, o que ousa Panécio acerca dos pontos que seus mestres aceitam e aprovam? Se é uma criança que emite um juízo, dizem que o faz por ignorância; se é um sábio, está sendo vítima de suas preocupações. Assim os pirrônicos levam grande vantagem nas discussões, pois pouco lhes importam os ataques dos adversários, desde que possam atacar também. Tudo lhes serve de argumento; se vencem, nossas razões não têm valor; se ganhamos, as deles é que não prestam; se erram, fica demonstrado que a ignorância existe; se nos enganamos, nós é que fornecemos a prova de sua existência; se conseguem convencer de que nada é certo, confirmam a tese que defendem; se não o conseguem, ei-la naturalmente confirmada: "encontrando a propósito de um mesmo assunto razões idênticas a favor ou contra, é-lhes fácil suspender seu julgamento em um sentido ou noutro"." Consideram que é mais fácil encontrar argumentos para provar que uma coisa é falsa do que para provar que é verdadeira; provar o que não é do que o que é; o que não creem do que o que creem. Suas expressões habituais são: "não pretendo ter estabelecido que", "não há mais razões para que seja assim do que de outro jeito", "não percebo", "as aparências são iguais em um caso como noutro", "não há como falar mais a favor do que contra", "nada parece verdadeiro que não possa parecer falso". Sua palavra sacramental é "sustento", isto é, "argumento, mas não vou além e não julgo". Eis seus estribilhos. Disso resulta que, eludindo decididamente e de maneira absoluta a obrigação de se pronunciar, adiam o julgamento. Só usam a inteligência a fim de descobrir pontos suscetíveis de discussão e de debater, sem jamais optar ou tomar uma decisão. Imagine-se uma contínua confissão de ignorância, um juízo sempre indeciso acerca de todos os assuntos, e ter-se-a a escola de Pirro. Se tento descrever como me é possível esse estado de espírito, é porque muitos não o percebem e mesmo os que escrevem a respeito fizeram-no com obscuridade, de diversas maneiras. Na vida comum procedem os pirrônicos como todo mundo. Deixam-se levar por seus instintos, tanto quanto pela tirania das paixões; acomodam-se às leis e aos costumes e seguem a tradição das artes. "Pois Deus não quis que penetrássemos o sentido dessas coisas, mas tão somente que as usássemos."! São guiados pelo que guia os outros, sem externa r suas preferências nem emitir juízos. Por isso não me parece muito verossímil o que contam de Pirro, apresentando-o estúpido e inerte, a viver uma existência de selvagem insociável, caminhando sem desviar dos carros ou dos buracos e recusando-se a atentar para as leis. Pinta-lo assim é exagerar. Não quis ele transformar-se em pedra ou tronco; quis ser um homem vivo para discutir, argumentar, gozar as comodidades postas à nossa disposição pela natureza, fazer uso de todas as suas faculdades físicas e mentais honestamente e na medida do permitido. Ao que renunciou, desprezando-o, foi o direito absurdo, imaginário e falso que o homem se arrogou de decretar, ordenar e administrar a verdade. Não há seita filosófica que não seja forçada a praticar e seguir infinidade de preceitos que não compreende nem aceita, se quer viver no mundo. Quando por exemplo quer viajar por mar tem que o fazer sem saber se terá êxito ou não; calcula que o navio é bom, o piloto experimentado, favorável o vento. São probabilidades apenas a que precisa entregar-se, confiando nas aparências. Tem um corpo e uma alma, impelem-no os sentidos, agita-o o espírito. Ainda que não sinta em si essa competência especial de julgar e reconheça que não pode pronunciar-se com segurança, porquanto tudo pode ser falso embora pareça verdadeiro, não deixa de conduzir sua vida nas condições mais cômodas e melhores. Quantas artes há que assentam em conjeturas mais do que na ciência! Quantas em que a questão do verdadeiro e do falso importa pouco e nas quais o que parece é a única regra! O verdadeiro e o falso existem, dizem os pirrônicos, e temos em nós os meios de o pesquisar, mas não estamos em condições de averiguar o valor do que descobrimos. E melhor para nós não nos entregarmos a buscas vãs e atentarmos tão somente para a ordem estabelecida neste mundo. Um espírito isento de preconceitos é uma vantagem preciosa para a nossa tranquilidade. Quem julga e controla seus juízos não se submete jamais convictamente. Como são mais dóceis e obedientes às leis da religião e às leis políticas os simples de espírito e sem curiosidade, do que os que investigam e dogmatizam acerca das coisas humanas e divinas! Nada do que concerne ao homem apresenta mais incontestável utilidade do que essa simplicidade. Nessa filosofia pirrônica ele aparece nu e vazio, consciente de sua fraqueza natural e suscetível de receber de cima, até certo ponto, a força de que carece. Estranho a todos os conhecimentos humanos, acha-se tanto mais preparado a se tornar um domicílio para a ciência divina; faz abstração de sua própria inteligência a fim de dar maior espaço à fé; crê e não propõe nenhum dogma contrário às leis e aos costumes; humilde, obediente, disciplinado, estudioso, inimigo declarado da heresia, está portanto livre dessas vãs opiniões contrárias à religião e introduzidas pelas seitas dissidentes; é uma página em branco, preparada para receber tudo o que apraz a Deus nela traçar. Valemos tanto mais quanto mais nos submetemos e nos encomendamos a Deus, renunciando a nós mesmos: "Aceita de bom grado e cotidianamente", diz o Eclesiastes, "as coisas com o aspecto que a teus olhos oferecem; tudo o mais ultrapassa os limites de teu conhecimento." E reza o salmo: "Deus sabe que os pensamentos dos homens não são senão vaidade". Eis como entre as três seitas gerais da filosofia, duas professam expressamente a dúvida e a ignorância; quanto à terceira, a dos dogmáticos, é fácil verificar que, em sua maioria, seus adeptos optaram pela certeza por presunção. Pensaram menos em estabelecer princípios indiscutíveis do que em mostrar a que ponto chegaram na investigação da verdade: "os sábios a imaginam mais do que a conhecem". A fim de iniciar Sócrates no que sabe dos deuses, do mundo e dos homens, Timeu propõe-lhe conversar de homem para homem, bastando assim que seus argumentos constituam probabilidades, pois os exatos não estão ao seu alcance nem tampouco nas mãos de nenhum mortal. O que imitou um filósofo da mesma escola: "Explicar-me-ei como puder; não tomem minhas palavras como oráculos, como se saíssem da boca de Apolo. Frágil mortal, não viso senão ao provável". Alhures, esse mesmo filósofo traduz o próprio texto de Platão: "Se discorrendo sobre a natureza dos deuses e a origem do mundo, eu me explico imperfeitamente, não se espantem; lembrem-se de que eu que lhes falo e vocês que me escutam somos homens e nada mais podemos exigir senão probabilidades". Quanto a Aristóteles, apresenta-nos em geral um punhado de opiniões que compara com as suas, a fim de nos mostrar quanto estas ultrapassam as outras, aproximando-se mais da verossimilhança. Mas não é sobre o testemunho e a autoridade de outrem que a verdade se afirma. E quanto a Epicuro, é de se observar que em seus escritos evita religiosamente qualquer citação. Aristóteles é o príncipe dos dogmáticos e no entanto por ele ficamos cientes de que muito saber nos leva a duvidar mais ainda. Não raro vemo-lo envolver-se, voluntariamente, em uma obscuridade espessa e inextricável, a ponto de não podermos discernir sua opinião. Trata-se na realidade de um pirrônico dissimulado. Ouça-se a palavra de Cícero, expondo a ideia essencial dessa escola e a fazendo sua: "os que querem saber o que pensamos de cada coisa são por demais curiosos... Esse princípio, em filosofia, de tudo discutir sem nada afirmar, estabelecido por Sócrates, aceito por Arcesilau, adotado por Carnéades, floresceu até os nossos dias... Somos da escola que diz que o falso por toda parte se mistura ao verdadeiro e a isto se assemelha tanto, que é impossível distingui-lo de um modo preciso". Por que, não somente Aristóteles, mas também a maioria dos filósofos requintaram em apresentar todas as questões obscuramente, senão para ressaltar a que ponto são ociosas e distrair a nossa curiosidade, dando-nos como pitéu ossos vazios e sem carne para roer? Clitômaco afirma nunca ter conseguido saber qual a opinião de Carnéades pelos seus escritos. E também por esse motivo que Epicuro evitou a clareza nos seus e que os de Heráclito lhe granjearam o apelido de "Tenebroso". A obscuridade é moeda que usam os sábios, como os prestidigitadores que ocultam com destrezas e peloticas a inanidade de sua arte, pois com isso o público se acomoda de bom grado: "é pela obscuridade de sua linguagem que Heráclito conquistou a veneração dos ignorantes. Os tolos, com efeito, só estimam e admiram o que se lhes apresenta em termos enigmáticos". Cícero censura a alguns de seus amigos consagrarem à astronomia, ao direito, à dialética e à geometria mais tempo do que merecem tais ciências, o que os desvia dos deveres da vida a um tempo mais proveitosos e sutis. Os filósofos cirenaicos desprezam também a física e a dialética. Zenão, no início de seus escritos sobre a "República" declara inúteis todos os ramos da educação liberal. Crisipo diz, do que Platão e Aristóteles escreveram sobre a lógica, que o fizeram apenas como exercício e passatempo e não acredita que se tenham aplicado a falar seriamente de um assunto tão vazio. Plutarco observa a mesma coisa a respeito da metafísica. Epicuro acrescenta a retórica, a gramática, a poesia, as matemáticas e as outras ciências em geral, excetuada a física. Sócrates igualmente as desprezava todas, afora as que tratam dos costumes e da conduta na vida. O que quer que lhe perguntassem, achava sempre meio de orientar o interlocutor para a vida presente e passada, que ele examinava e julgava, considerando qualquer outro ensinamento subordinado a este, e acessório: "gosto pouco das letras que nunca tornaram virtuoso quem as pratica". Em sua maioria as ciências foram desdenhadas por esses grandes pensadores, os quais, contudo, não julgaram fora de propósito nelas exercitar o espírito, embora não pensassem em tirar delas algum proveito sério. Alguns veem em Platão um dogmático, outros acham-no cético. Há quem o classifique de certa maneira em certos casos, e de outra em outros. O personagem principal de seus diálogos, Sócrates, suscita sempre várias questões, provoca o debate mas nunca lhe põe fim e nem conclui. Sua ciência, pelo que ele próprio confessa, consiste unicamente em apresentar objeções. Homero, seu precursor, foi o ponto de partida de todas as seitas filosóficas sem distinção, mostrando assim quão pouco lhe importava a maneira de ver de cada um. Dizem que Platão deu origem a dez escolas diferentes; a meu ver, ao lado da sua, não há doutrinas mais indecisas e menos categóricas. Sócrates observava que as parteiras, adotando o oficio de ajudar a procriar, renunciavam elas próprias a engendrar; e o mesmo lhe ocorria. Tendo os deuses feito dele um homem sábio, por amor à humanidade e ao pensamento, desfizera-se da faculdade de engendrar, contentando-se com assistir os que obedecem a essa lei da natureza e com ajuda-los no parto, auxiliando-os a tirar a criança, examinando-a, batizando-a, criando-a, fortalecendo-a, circuncidando-a, pondo seus próprios meios à disposição de outrem. Em sua maioria, os filósofos desta terceira categoria - e os antigos já o haviam realçado quanto aos escritos de Anaxágoras, Demócrito, Parmênides, Xenófanes e outros - investigam mais do que julgam, emprestam voluntariamente a seu estilo a forma dubitativa, mesmo quando o entremeiam de afirmações. O mesmo se verifica em Sêneca e Plutarco, que falam de uma só coisa, ora em um sentido ora em outro. Os que procuram conciliar os jurisconsultos precisam, antes de tudo, pôr cada um de acordo consigo mesmo. A preferência que dá Platão, de caso pensado, ao diálogo, parece-me provir do fato de que, pelo diálogo, pondo suas ideias na boca de várias pessoas, pode mais comodamente expô-las em toda a sua diversidade, com todas as sutilezas que comportam. Tomemos a nós mesmos como exemplo. As decisões da justiça exprimem-se em uma linguagem afirmativa e decisiva ao mais alto grau. Em particular as que nossos tribunais tornam públicas, são eminentemente de natureza a alimentar no povo o respeito que deve a essa magistratura em razão da capacidade dos que a constituem. Ora, a beleza desses atos não resulta tanto da decisão que contêm (decisões, toma-as diariamente qualquer juiz) quanto dos debates e da apreciação dos argumentos contraditórios que a ciência do direito permite se apresentem. Assim ocorre também com as mais acaloradas críticas dos filósofos às suas opiniões recíprocas, as mais diversas e contraditórias, nas quais cada qual mais se enreda, seja propositadamente a fim de demonstrar a que ponto o espírito humano vacila, seja por ignorância quando pela sua sutileza a questão foge a seu entendimento. E o que exprime esta frase encontradiça em seus discursos: "em assunto tão escorregadio evitemos julgar". Eurípides diz, por sua vez: "a compreensão das• obras de Deus, em seus diversos aspectos, é causa de muitos transtornos". E é a mesma ideia que Empédocles, como que tomado de um furor inspirado pelos deuses e forçado a aceitar a verdade, reproduz amiúde em suas obras: "Não, não sentimos nada, não vemos nada; tudo se nos esconde; não há nada cuja existência possamos afirmar". E eis o que se escreve no Livro da Sabedoria: "os pensamentos dos mortais são tímidos, sua previdência e sua imaginação incertas". Não há como achar estranho que essa gente, embora desesperando de atingir o objetivo, não tenha renunciado ao prazer de visá-la. O estudo é em si coisa agradável. Tão agradável que, entre os prazeres proibidos pelos estoicos, figura o que provém dos exercícios do espírito. Querem-no moderado, e saber demasiado é para eles intemperança. Demócrito, tendo comido figos que sabiam a mel, pôs-se imediatamente a procurar, na memória, de que provinha tão inesperada doçura. A fim de verificá-la, já se levantava para ir examinar o lugar onde os frutos haviam sido colhidos, quando sua criada, que percebera o motivo da inquietação, lhe disse rindo que não se preocupasse mais, pois fora ela que os colocara em um recipiente em que havia mel. Ele se irritou por lhe sonegarem a oportunidade de pesquisar e de exercitar sua curiosidade: "não é um prazer que me dás", observou, "mas nem por isso deixarei de verificar como isso ocorreu, tal qual tivesse resultado de um efeito da natureza". E naturalmente houvera encontrado uma razão com aparência de verdadeira, a fim de explicar algo que só existia em seu espírito. Essa anedota acerca de um grande filósofo exemplifica bem a paixão pelo estudo, capaz de nos induzir ao desespero por termos alcançado o conhecimento das coisas que procurávamos conhecer. Plutarco cita também o exemplo de alguém que se recusava a ser esclarecido acerca de suas dúvidas, para não se privar do prazer de procurar por si próprio. Como aquele que não desejava curar-se da febre, e da sede que ela lhe dava, a fim de não perder o prazer de beber para estancá-la: "mais vale aprender coisas inúteis do que nada aprender". Alguns alimentos não passam de prazer, não são nutritivos nem saudáveis, assim também o que nosso espírito obtém da ciência, embora sempre agradável, nem sempre é nutritivo e saudável. Eis como a tal respeito se expressam esses filósofos: "a contemplação da natureza alimenta o nosso espírito; ela nos eleva e engrandece; faz que diante das coisas de ordem superior e celeste nos desprendamos do que é terrestre e vil. A própria investigação da grandeza que ignoramos é agradável, mesmo se não logramos senão maior respeito por ela e temor em julgá-la". A vã imagem dessa curiosidade doentia evidencia-se ainda melhor neste exemplo muito citado. Eudóxio aspirava a que, pelo menos uma vez, lhe fosse dado ver o sol de perto, a fim de se inteirar de sua estrutura, de sua grandeza e de sua beleza; pedia aos deuses que lhe concedessem esse privilégio, ainda que devesse morrer queimado. Oferecia a vida para adquirir essa ciência de que seria privado no momento mesmo em que a alcançasse; e por esse saber efêmero renunciava a tudo o que já sabia e podia ainda vir a saber. Duvido que Epicuro, Platão e Pitágoras tenham acreditado seriamente em suas teorias dos átomos, das ideias e dos números; eram demasiado sábios e prudentes para crerem em coisas tão pouco assentadas e tão discutíveis. O que na realidade pode assegurar-se é que, dada a obscuridade das coisas do mundo, cada um desses grandes homens procurou encontrar uma imagem luminosa delas. Seus espíritos acharam explicações que tinham pelo menos certa verossimilhança e que, embora não averiguadamente verdadeiras, podiam ser sustentadas contra as ideias contrárias: "esses sistemas são ficções do gênio de cada filósofo e não o resultado de suas descobertas”. Um antigo, a quem censuravam que se jactasse de ser filósofo quando não levava em conta a filosofia em seus juízos, respondeu "que, nisso precisamente, ela consistia". Quiseram os filósofos tudo examinar, tudo comparar, e assim encontraram uma ocupação suscetível de alimentar a curiosidade natural que há em nós. Alguns princípios se estabeleceram como evidentes, em benefício e proveito do sossego coletivo, como os das religiões; por isso não aprofundaram demasiado as doutrinas geralmente aceitas, a fim de não engendrar a rebeldia contra as leis e o acatamento dos costumes. Platão em particular mostra-se muito franco. Quando exprime suas ideias próprias nada afirma. Quando escreve na qualidade de legislador, o seu estilo torna-se preciso e autoritário, propugnando ousadamente as ideias mais extraordinárias que considera útil inculcar no povo e nas quais seria ridículo que acreditasse, sabendo muito bem a que ponto somos inclinados a aceitar as coisas mais absurdas e inadmissíveis. Eis por que em suas leis preocupa-se em recomendar que se recitem em público poesias cujos argumentos sejam úteis, pois sendo fácil despertar no espírito humano fantasmas e fantasias, mais vale se lhes ofereçam mentiras proveitosas do que inúteis e perniciosas. Assim se exprime abertamente em sua "República": "para ser útil aos homens é necessário às vezes enganá-los". Certas seitas, como se pode verificar, apegaram-se sobretudo à verdade; outras, à utilidade. Estas tiveram mais êxito. A miséria de nossa condição faz que aquilo que se nos apresenta como mais verdadeiro nem sempre é o que nos fora mais útil. Assim se observa com as seitas mais ousadas, as de Epicuro, Pirro, e da Academia após as últimas modificações por que passou, as quais se viram forçadas a dobrar-se ante as leis civis. Os filósofos também se ocuparam de outras questões, que ventilaram em todos os sentidos, cada qual a seu modo, bem ou mal. Como empreenderam falar até das coisas mais recônditas, acharam-se amiúde impelidos a conjeturas sem consistência, não raro extravagantes, que eles próprios não consideravam de valor ou tão somente úteis ao exercício do estudo: "dir-se-ia que escreveram menos por convicção do que para exercitar o espírito com a dificuldade do assunto". Se não admitirmos que assim tenha sido, como explicar então essa tão grande variedade de opiniões, por vezes frívolas, constantemente modificadas, que emitiriam espíritos tão eminentes e admiráveis? Haverá coisa mais vã do que tentar adivinhar Deus por meio de analogias com o nosso próprio ser? Do que O julgar, e ao mundo, pelas nossas capacidades e as nossas leis? Do que usar a expensas d'Ele a escassa inteligência que Se dignou conceder-nos? E em não podendo a nossa vista atingi-Lo na plenitude de Sua glória, forçamo-lo a descer e O associamos à nossa corrupção e às nossas misérias! De todas as opiniões humanas formuladas pelos antigos acerca da religião, parece-me mais verossímil e judiciosa a que faz de Deus uma força que não podemos compreender, dando origem a todas as coisas e as conservando, essencialmente boa, absolutamente perfeita, recebendo e aceitando graciosamente as homenagens que lhe prestam os homens, sob qualquer forma, nome ou maneira: Todo-Poderoso Júpiter, pai e mãe do mundo dos deuses e dos reis". Essas homenagens são sempre bem vistas no céu. Todos os povos se beneficiaram com a prática religiosa, e os homens perversos e as ações ímpias receberam sempre o castigo que mereceram. Os historiadores pagãos reconhecem dignidade, ordem, justiça (com que se beneficiaram e instruíram os povos) nos milagres e oráculos de suas divindades fabulosas. O Criador, em sua infinita misericórdia, dignou-se por vezes fomentar, mediante benefícios temporais, as boas disposições que, com a ajuda da razão, Lhe demonstravam através de falsos ídolos sob os quais O representavam; e não somente falsos mas também injuriosos. De todos os cultos que São Paulo viu em Atenas, o que se lhe afigurou mais desculpável foi o que dedicavam a uma "divindade escondida e desconhecida". De todos os filósofos, Pitágoras foi o que teve mais vivo o sentimento da verdade, ao considerar que essa causa primeira, esse ser princípio de tudo o que é, não se pode exprimir e submeter-se a qualquer regra ou definição; que é talvez o que a nossa imaginação, em seu mais extremado esforço, concebe como perfeição, cada qual ampliando a ideia segundo sua capacidade. Numa quis orientar nesse mesmo sentido a religião de seu povo, torná-lo devoto de uma crença puramente espiritual, sem objetivo determinado, estranha a tudo o que é material. Mas o projeto era impraticável, o espírito humano não podendo satisfazer-se com a vagueza desse infinito abstrato. Ele precisa adaptá-lo a algo preciso, a seu alcance. A majestade divina consentiu em se deixar circunscrever de certo modo dentro de limites naturais: seus sacramentos sobrenaturais e celestiais manifestam-se em condições acessíveis a nós; nossa adoração exprime-se por meio de cerimônias e palavras compreensíveis ao homem, porque é o homem quem crê e reza. Deixo de lado todos os demais argumentos a favor desta tese: a simples vista do nosso crucifixo, a reprodução desse suplício que desperta a piedade, os ornatos e a pompa do culto em nossas igrejas, as vozes que tão exatamente traduzem nossa devoção, a emoção de nossos sentidos, incutem na alma das multidões uma paixão religiosa real. Se tivesse tido que escolher entre as divindades que naqueles tempos de cegueira universal a necessidade criou, parece-me que houvera seguido os que adoravam o sol. Luz de todos, olho do mundo. Se Deus tem olhos, os raios do sol são esses olhos radiosos que a todos dão vida, crescimento e proteção, e contemplam no mundo os feitos dos homens. Esse belo e grande sol que faz as estações segundo entra ou sai de suas doze casas; que enche o universo com suas virtudes; um só de seus olhares dissipa as nuvens. Espírito, alma do mundo ardente e flamejante, percorrendo o inteiro céu em um só dia, enorme e redondo, vagabundo e reto, mantendo em sua dependência o mundo todo, sempre em repouso e sempre em ação. Filho mais velho da natureza, e pai do dia. Além de sua grandeza e beleza é, dentre as peças que entram na estrutura do mundo, a que se encontra mais longe de nós e portanto a que menos conhecemos. Por isso eram desculpáveis os que admiravam e veneravam o sol. Tales, o primeiro a estudar o assunto, achava que Deus é um espírito que tirou da água todas as coisas. Para Anaximandro os deuses nascem e morrem em certas épocas e constituem mundos cujo número é infinito. Anaxímenes pensa que Deus é ar, existe em quantidade incomensurável e está sempre em movimento. Anaxágoras foi o primeiro a afirmar que a maneira pela qual alguma coisa existe e se conduz decorre da força e da razão de um espírito que não podemos conceber. A1cméon classifica entre as divindades o sol, a lua, os astros, e a alma. Pitágoras atribui a qualidade divina a um espírito que existe naturalmente em todas as coisas e do qual nascem nossas almas. Parmênides vê Deus em um círculo que envolve o céu e sustenta o mundo pela intensidade de sua luz. Empédocles coloca ao nível dos deuses os quatro elementos: o ar, a água, o fogo e a terra de que são feitas todas as coisas. Protágoras declara não poder dizer se existem ou não, nem o que são. Demócrito define como deuses ora as próprias imagens que os representam, ora os dons da natureza que elas simbolizam, bem como nosso saber e nossa inteligência. Platão tem a respeito diversas maneiras de ver. No "Timeu", é de opinião que não se pode dizer quem criou o mundo. Nas "Leis", que não adianta indagar o que seja Deus. Em outros trechos de suas obras diviniza o mundo, o céu, os astros, a terra, as almas; reconhece ademais, como deuses, tudo o que as antigas instituições admitiram como divindades. Por intermédio de Xenofonte, deparamos com semelhante hesitação na doutrina de Sócrates: ora acha que não se deve investigar a essência de Deus, ou diz que o sol é Deus, ou que o é a alma; ora é único, ora há mais de um. Segundo Espeusipo, sobrinho de Platão, Deus é uma força animada que governa todas as coisas. Aristóteles, em dado momento, diviniza o espírito; em outro, o mundo; alhures, a esse mundo dá um senhor, ou diviniza o calor do céu. Xenócrates enumera oito deuses: os cinco planetas conhecidos em seu tempo, um sexto constituído pelo conjunto das estrelas fixas, sendo cada uma delas fração da divindade; e mais o sol e a lua. Heraclides Pôntico, hesitando entre várias opiniões, chega a considerar Deus um ser desprovido de sentimentos e passando de uma forma a outra. Afinal faz deuses a terra e o céu. Ás ideias de Teofrastes refletem idêntica indecisão: ora, a seu ver, é o bom senso que dirige o mundo; ora é o céu; ora são as estrelas. Estráton pensa que a natureza tem o poder de engendrar, fazer crescer, aniquilar, sem ter ela própria uma forma definida nem a faculdade de sentir. Zenão acha que o mundo resulta de uma lei natural que ordena o bem, proíbe o mal e tem poder de produzir movimento e vida; e com isso derruba de seus pedestais os deuses que está habituado a ver: Júpiter, Juno, Vesta. Para Diógenes, de Apolônia, é o ar o criador de todas as coisas. Xenófanes representa Deus sob a forma de uma bola vidente e inteligível, mas não respirando e nada tendo em comum com a natureza humana. Aríston é de parecer que Deus escapa à nossa inteligência; ele O representa desprovido de sentidos, não sabe se tem poder criador e ignora tudo d'Ele. Cleantes vê n'Ele a razão, ou o próprio mundo, ou a alma da natureza, ou, ainda, o calor suprema mente vivificante que tudo envolve. Perseu, que aprendeu as lições de Zenão, diz que chamaram deuses aos homens que foram particularmente úteis à humanidade e através deles às coisas inventadas ou descobertas. Crisipo faz um amálgama confuso das opiniões precedentes, e obtém assim um milhar de deuses de todos os tipos, entre os quais os homens que se imortalizaram. Diágoras e Teodoro os representam resplendentes, translúcidos, permeáveis ao ar, habitando entre os dois mundos do céu e da terra, onde, inacessíveis, estão ao abrigo de tudo. Teriam rostos como os nossos e também membros de que, no entanto, não se serviriam: "Quanto a mim, sempre pensei que existisse uma raça de deuses. Explico-me: uma raça celeste, indiferente aos atos dos homens". Depois disso, ide, confiar na filosofia! Vangloriai-vos de terdes encontrado a fava no bolo, descoberto a verdade nessa barafunda de concepções contraditórias! A confusão das ideias humanas fez que os múltiplos costumes e crenças opostos aos meus, mais me instruíssem do que me contrariassem. Não me envaidecem tanto quanto me humilham e hão sido causa, ademais, de que tudo aquilo que não vem expressamente de Deus, eu o considere sem fundamento. As instituições deste mundo tanto quanto as escolas estão em contradição entre si, daí podermos deduzir que o acaso não é mais diverso e variável do que a razão, nem mais cego e imponderável. As coisas que mais ignoramos são as mais adequadas à divinização; por isso fazer de nós mesmos deuses, ultrapassa a fragilidade, por grande que seja, de nossa inteligência. Neste ponto, teria seguido de preferência os que adoravam a serpente, o cão, o boi, pois a natureza desses animais nos é menos conhecida do que a nossa e por conseguinte é mais lógico que pensemos o que quisermos dos animais e lhes outorguemos faculdades extraordinárias. Porém ter feito deuses de seres como nós, com as imperfeições que conhecemos; ter-lhes atribuído nossos desejos, cóleras e vinganças; tê-los feito casar, procriar e constituir família; amar, ter ciúmes, carne e ossos, e idêntica organização física; sujeitá-los às febres, ao prazer, à morte; dar-lhes sepultura como a nós mesmos, "coisas indignas dos deuses e que nada têm em comum com sua natureza": "dar as características desses deuses, sua idade, os ornatos de suas vestes, sua genealogia, enumerar seus casamentos, suas alianças; ombreá-los com a tolice humana; torná-los acessíveis às mesmas paixões, tristezas e cóleras? é prova de incrível imaginação, da mesma forma que haver divinizado, não somente a fé, a virtude, a honra, a concórdia, a liberdade, a vitória, a piedade, mas também a volúpia, a fraude, a morte, a inveja, a velhice, a miséria, o medo, as febres, o azar e outras enfermidades de nossa existência frágil e decrépita. "Para que introduzir em nossos templos a corrupção dos costumes, ó almas presas à terra e vazias de pensamentos celestiais!” Os egípcios, com uma prudência cínica, proibiam, sob pena de enforcamento, que alguém dissesse que Serápis e Isis tivessem sido homens outrora, o que ninguém ignorava. As imagens desses deuses representavam-nos com um dedo nos lábios, o que, segundo Varro, lembrava a seus sacerdotes essa misteriosa determinação que lhes prescrevia se calassem acerca dessa origem mortal, como medida necessária à veneração de que deviam ser objeto. Se era tão vivo nos homens o desejo de se igualarem a Deus, diz Cícero, melhor houveram feito apropriando-se das qualidades divinas e forçando-as a descer à terra do que enviando aos céus sua corrupção e sua miséria. Na realidade, impelidos sempre pela vaidade, fizeram ambas as coisas. Não posso acreditar que os filósofos falem seriamente, quando discutem a preeminência dos deuses entre si, e se esforçam por realçar suas alianças, suas funções, seu poder. Quando Platão nos descreve pormenorizada mente o vergel de Plutão, as vantagens e castigos corporais que nos aguardam ainda após a ruína e aniquilamento do corpo, bem como a relação que existe entre o que nos reserva o outro mundo e a nossa vida neste; "Lá no fundo de um bosque de mirtos a que conduzem atalhos perdidos, escondem-se as vítimas do amor; a própria morte não os libertou de suas preocupações”, quando Maomé promete aos seus um paraíso coberto de tapetes, bordado de ouro e pedras preciosas, povoado por cortesãs da mais requintada beleza, com vinhos e acepipes deliciosos, vejo logo que se divertem ambos. Colocam-se ao nível de nossa estupidez para nos engabelar e nos seduzir com ideias e esperanças adequadas a nossos apetites de pobres mortais que somos! Alguns, entre nós cristãos, laboraram em erro semelhante, prometendo, após a ressurreição, uma nova vida terrestre e física, acompanhada de todos os prazeres e comodidades deste mundo. Podemos nós acreditar que Platão, cujas concepções foram tão elevadas, que se aproximou da divindade a ponto de ser tachado de divino, haja pensado que o homem, essa misérrima criatura, tivesse em si algo desse poder que não compreendemos? E tenha imaginado, dado o pouco de que somos capazes e dada a nossa fraqueza, que pudéssemos participar da beatitude eterna ou ser punidos com castigos infindáveis? Cumpre responder-lhe com a razão humana: se os prazeres que nos prometes na outra vida são os que gozamos nesta, nada têm eles em comum com o infinito. Ainda que nossos cinco sentidos recebessem plena satisfação, que nossa alma experimentasse todo o contentamento que pode desejar e esperar - e bem sabemos o de que é capaz - tudo isso não seria nada. Se alguma coisa sobrar de nós, nada terá de divino. Se não passar do que temos nas condições presentes, não valerá a pena. Tudo o que nos é motivo de satisfação antes da morte, é mortal como nós. Se no outro mundo, encontrando parentes, filhos, amigos, isso nos puder comover e ser agradável, não teremos deixado de ser sensíveis às satisfações terrestres de duração limitada. Não podemos conceber dignamente a grandeza das altas e divinas promessas que nos foram feitas, a nós cristãos, se delas temos uma concepção qualquer. Para as imaginarmos como são, é-nos imprescindível imaginá-las inimagináveis, inexperimentais, incompreensíveis e essencialmente diferentes daquelas de que tivemos uma miserável experiência. O olho não pode conceber a felicidade que Deus destina a seus eleitos. Se, para nos tornarmos dignos dela corrigimos e transformamos nosso ser, como supõe Platão, por meio de purificações que imagina, a mudança operada deve ser tão radical e total que, do ponto de vista físico, cessaremos de ser nós mesmos: "Heitor era bem Heitor, enquanto vivia e lutava; mas seu cadáver arrastado pelos cavalos de Aquiles não era mais Heitor"; e será outra coisa, que não nós, que receberá tais recompensas: "o que muda, dissolve-se e portanto perece; na realidade, desintegradas as partes, não há mais corpo”. Acreditamos, por exemplo, que, segundo a metempsicose de Pitágoras, o leão para o qual passou a alma de César tenha as suas paixões e seja ele próprio? Se isso ocorresse, teriam razão os que, sustentando essa ideia contra as doutrinas de Platão, a respeito, objetam que poderia então ocorrer um filho cavalgar sua mãe transformada em égua - e outros absurdos semelhantes. Poderíamos admitir que, embora a passagem se efetuasse de certos animais a outros da mesma espécie, não fossem estes diferentes daqueles? Das cinzas de uma fênix nasce, dizem, um verme, o qual se transforma em outra fênix. Quem dirá que esta não é diferente da outra? Os bichos que fabricam a seda, vemo-los morrerem e secarem e de seus corpos nascer uma borboleta, a qual dá nascimento a um verme que fora ridículo julgar ser o mesmo que deu origem à borboleta. O que deixou de ser uma vez, não é mais. "Ainda que o tempo juntasse a matéria de nosso corpo depois de desfeito e o reconstituísse tal qual é, e lhe devolvesse a vida, já não seríamos nós, por isso que houve interrupção no curso da existência". E quando, alhures, diz Platão que a parte espiritual do homem é que deverá gozar as recompensas da outra vida, a asserção parece igualmente pouco plausível: o olho arrancado de sua órbita e separado do corpo não pode mais ver um objeto. Com efeito, não será mais então o homem, não seremos mais nós, porquanto somos constituídos de duas peças principais e essenciais cuja separação determina a morte e a ruína de nosso ser: Desde que se interrompe a vida, nossos sentidos perdem sua possibilidade de ação. Dizemos que o homem sofre quando os vermes lhe roem os membros que proviam à sua existência? "Isso não nos perturba porque somos um todo formado pela união da alma e do corpo". Mais ainda: em que hão de basear-se os deuses para, com justiça, reconhecer e recompensar no homem, depois da morte, os atos bons e virtuosos, se eles próprios os prepararam e os provocaram nele? E por que se ofenderiam com os atos viciosos e os puniriam se eles próprios assim criaram esse homem quando, em o querendo, poderiam impedi-lo de pecar? Estas objeções, Epicuro não as oporia a Platão, com aparência de razão humana, se já não se tivesse posto a coberto declarando que: é impossível dizer algo certo acerca da natureza imortal, tomando como ponto de partida a natureza mortal. Em tudo a nossa razão se confunde, e mais ainda quando se mete a divisar as coisas divinas. Quem mais do que nós, cristãos, pode melhor convencer-se disso, embora lhe tenhamos dado, para se conduzir, princípios certos e infalíveis? Apesar de lhe iluminar os passos com a tocha sagrada da verdade que prouve a Deus comunicar-nos, não a vemos diariamente, por pouco que se desvie da senda habitual, afastar-se do que determina a Igreja, sem a qual ela perde a direção, e se entrava, girando e flutuando ao léu nesse vasto mar perturbado e instável das opiniões humanas? Desde que abandone o caminho por todos seguidos, vai-se dividindo e dissolvendo por mil atalhos diversos. O homem não pode ser senão o que é, e sua imaginação só pode exercitar-se dentro dos limites a seu alcance. E diz Plutarco: tem maior presunção quem, não sendo senão homem, fala e devaneia acerca de deuses e semideuses do que quem, ignorando música, julga os que cantam; ou, ainda, quem nunca tendo estado em campos de batalha, discute armas e guerra, imaginando, porque possui algumas noções do assunto, estar apto para compreender os resultados de uma arte que desconhece. A meu ver a antiguidade pensou glorificar a divindade, colocando-a ao nível do homem, revestindo-a de faculdades humanas, atribuindo-lhe os nossos caprichos e provendo-a das necessidades que comprovam nossa fraqueza. Assim, ofereceram aos deuses manjares para que comessem, bailados e farsas para que se divertissem, vestimentas para que se cobrissem; casas para que morassem, e incenso e música, e guirlandas, e, a fim de melhor acomoda-los às nossas viciosas paixões, invocaram-lhes a justiça imolando vítimas humanas, procurando fazer que se regozijassem com a ruína e a dissipação das coisas que eles criaram e lhes devem a existência. Assim, Tibério Semprônio mandou queimar em homenagem a Vulcano os ricos despojos de armas que tomara ao inimigo; Paulo Emílio sacrificou as da Macedônia a Marte e a Minerva; Alexandre, o Grande, alcançando o mar Negro, jogou nas águas inúmeros vasos de ouro de grandes dimensões como homenagem a Tétis, imolando também em seus altares não somente quantidade de animais mas também de homens, numa verdadeira carnificina, como é dos costumes de muitos povos, inclusive do nosso. Talvez não haja mesmo nenhum que tenha ignorado nossa prática: "arrebata quatro jovens guerreiros, filhos de Sulmone, e quatro outros crescidos à margem do Ufens para os imolar aos manes de Pales”. Os getas consideravam-se imortais e morrer era, para eles, ir ao encontro de seu deus Zálmoxis. De cinco em cinco anos despachavam-lhe um dos seus, a fim de que se certificasse das coisas necessárias à vida. Esse deputado era sorteado e sua partida assim se efetuava: depois de aqueles a quem cabia proceder à cerimônia lhe comunicarem verbalmente a resolução, três dentre eles mantinham as lanças voltadas para o sorteado, enquanto os outros o jogavam de encontro a elas com violência. Se morresse imediatamente, era sinal de que o deus estava favoravelmente disposto; se escapasse, o mensageiro não servia. Despachavam então outro, procedendo-se de igual modo. Améstris, mãe de Xerxes, já em idade avançada, mandou enterrar vivos catorze jovens das principais famílias persas a fim de render graças a algum deus subterrâneo, segundo os costumes do país. Hoje ainda, os ídolos de Tenochtitlán constroem-se cimentando com sangue de crianças os materiais que entram em sua composição, e tais deuses não aceitam sacrifícios que não sejam dessas criaturas sem mancha. Justiça sedenta de sangue inocente! "Quantos crimes cometeu a superstição". Os cartagineses imolavam seus próprios filhos a Satumo. Os que não tinham filhos, compravam-nos. E os pais eram obrigados a assistir alegremente ao holocausto. Estranha ideia a de querer obter as graças dos deuses por meio do sofrimento, como os lacedemônios que, para serem agradáveis a Diana, martirizavam os jovens, açoitando-os em honra da deusa, por vezes até a morte. Era um sentimento bárbaro esse de querer agradar ao arquiteto em lhe destruindo a obra, bem como esse de, para poupar aos culpados, o merecido castigo, atingir os inocentes, como se verificou no porto de Aulide com essa infeliz Ifigênia, imolada a fim de resgatar com a morte as ofensas feitas aos deuses pelos exércitos gregos: casta e infortunada vítima que no próprio momento de seu himeneu foi imolada pela mão criminosa de seu pai. E os dois Décios, pai e filho, de tão belas e generosas almas, precipitaram-se no seio do inimigo para conquistar os favores dos deuses em benefício de Roma. "Que injustiça a dos deuses, em só consentirem em ser favoráveis aos romanos à custa do sangue de homens de tal têmpera!” Acrescentemos que não cabe ao criminoso fazer-se açoitar, quanto e como lhe convenha; cumpre ao juiz ordena-lo, levando em conta no castigo somente a pena que prescreveu e não ponderando a que o culpado se impôs voluntariamente. A justiça divina pressupõe nisso total dissentimento, não só ante sua decisão como ante nossa desgraça. Ridícula é a ideia que teve Polícrates, tirano de Samos, que, para acabar com sua permanente felicidade, e compensá-la, jogou ao mar a mais preciosa de suas joias, pensando com esse transtorno livremente aceito satisfazer as vicissitudes do destino! E este, ridicularizando-o, devolveu-lha no ventre de um peixe. Que utilidade podia ter, para os coribantes, rasgarem-se as carnes e se esquartejarem? E, hoje em dia, de que serve a certos maometanos mutilarem o rosto, o pênis ou o estômago pensando render homenagem ao seu profeta? A ofensa está na intenção e não no peito, nos olhos, nas partes genitais, nos ombros ou na garganta: "tal a perturbação de seu espírito que, fora de si, em seu delírio, pensam apaziguar os deuses ultrapassando todas as crueldades dos homens". Cumpre resguardar o nosso físico, não apenas por nós mesmos, mas por Deus e para os outros homens. Não temos o direito de comprometê-lo conscientemente, como, por exemplo, nos matando sob qualquer pretexto. Parece-me grande traição profanar e degradar as funções do corpo, em si mesmas inconscientes e dependentes da alma, a fim de evitar que esta as dirija com toda a solicitude que a razão determina: "Com o que pensam que se irritam os deuses, aqueles que os tentam assim apaziguar? Homens foram castrados para atenderem ao prazer dos reis, mas nunca um escravo se mutilou a si próprio em obediência a seu dono. Assim foi que os antigos introduziram em sua religião várias práticas condenáveis: "outrora a religião, as mais das vezes, inspirava o crime e a impiedade”. Nada do que está em nós pode atribuir-se ou assimilar-se, de qualquer maneira, à natureza divina, sem a manchar ou lhe imprimir a marca de nossa imperfeição. Como essa beleza, esse poder, essa bondade infinita, poderiam, sem experimentar um prejuízo extremo, sem diminuição de sua divina grandeza, aceitar uma semelhança qualquer com a coisa abjeta que nós somos? "Deus fraco é mais forte do que o homem no esplendor de sua força; sua loucura é mais sábia do que nossa sabedoria". Estilpon, o filósofo, a quem perguntaram se os deuses se regozijavam com nossas homenagens e nossos sacrifícios, respondeu: "Sois indiscretos; retiremo-nos alhures para falar desse assunto". No entanto estabelecemos limites a essa natureza divina, restringimos-lhe o poder emprestando-lhe nossa maneira de raciocinar (nossos devaneios, nossos sonhos, como diz a filosofia; "o próprio louco e o perverso têm sua razão, mas é uma razão especial"); queremos submetê-la às concepções de nosso espírito tão frívolo e tão frágil, ela que criou a nós e o que sabemos. Porque nada se faz de nada, Deus não teria podido criar o mundo do nada! Ter-nos-ia Ele entregue as chaves de Seu poder e Se teria comprometido a não ultrapassar nossa ciência? Admitamos, ó homem, que tenhas conseguido assenhorear-te de alguns vestígios do que Ele fez; imaginas que Ele haja dado tudo o que pode dar, empregado todas as formas possíveis, esgotado todas as ideias? Só enxergas a ordem e a regra que reinam no porão em que te alojas, se é que as enxergas. Mas a jurisdição de Sua divindade estende-se muito além, ao infinito, ao lado do qual o espaço que abarcas nada representa: "o céu, a terra e o mar juntos, nada são ao lado da universalidade do grande Todo". A lei que invocas diz respeito apenas à esfera em que vives; não conheces a lei universal. Ocupa-te com o que te concerne e não com Deus, que não é teu confrade, nem teu concidadão, nem teu companheiro. Se Ele Se comunicou um pouco contigo, não foi para abaixar-Se até a tua pequenez, nem para que Lhe controles o poder; o corpo humano não pode voar, assim essa comunicação não se estende ao que não compreendes. O sol cumpre sem parar a sua tarefa habitual; não se confundem os limites do mar e da terra; a água é mole e não oferece resistência; um muro são será, sem perfuração, penetrado por um corpo sólido; o homem não pode conservar a vida nas chamas; ele não pode estar ao mesmo tempo presente no céu, na terra e em mil lugares diversos; mas essas leis, foi para ti somente que Deus as fez, somente a ti elas obrigam. Ele próprio forneceu aos cristãos a prova de que nenhuma o detém quando Ele o quer. E em verdade, todo-poderoso que é, por que teria renunciado a esse privilégio? Em nada alcança a tua razão maior verossimilhança nem fundamento mais sólido do que quando te convences da pluralidade dos mundos: "a terra, o sol, a lua, o mar e tudo o que existe, não são únicos em seu gênero; são em número infinito”. Os mais famosos espíritos do passado assim pensaram e também alguns do presente. Levou-os a tal convicção a razão humana, por isso que em nosso universo nada se encontra isolado e único. "Não há na natureza um só ser que não tenha seu semelhante, que nasça e cresça isolado”. Todas as espécies existem em número mais ou menos variado, o que nos induz a crer que não seja este mundo a única obra isolada de Deus, nem que a matéria de que se serviu para cria-lo se haja esgotado, "devemos portanto concordar em que há alhures outros conjuntos de matérias, análogos a este que o éter abraça" principalmente se essa obra traz em si a vida, como é de se acreditar pelos seus movimentos, o que Platão assegura e muitos dos nossos o confirmam; ou não o ousam negar. Não parece tampouco inverossímil a concepção antiga de que o céu, as estrelas e as demais partes do universo se constituam de um corpo e de uma alma mortais, quanto aos elementos que os compõem, mas imortais pela vontade do Criador. Ora, se há vários mundos, como pensavam Demócrito, Epicuro e quase todos os filósofos, poderemos saber se os princípios e regras que presidem ao nosso são os mesmos nos outros? Talvez sejam diferentes seu aspecto e sua conformação. Epicuro admite-os semelhantes mas também diversos. Neste nosso mundo percebemos uma infinidade de variedades por causa da distância que nos separa delas. No pedaço de terra recém descoberto por nossos pais não há trigo nem vinho, nem nenhum dos nossos animais. Tudo é diferente. E vede, no passado, em quantos países não se conheciam Baco e Ceres. A acreditar-se em Plínio e Heródoto, existem, em certas regiões, homens que quase não se assemelham a nós. Em outras participam, pela sua conformação bastarda, do ser humano e do animal. Haveria regiões onde os homens nascem sem cabeça, com os olhos e a boca no peito; outras onde cada indivíduo reúne em si ambos os sexos; outras onde andam de quatro; outras onde têm um só olho na testa e cuja cabeça se assemelha à do cão; outras onde a parte inferior dos seres que vivem dentro da água se parece com a de um peixe; outras onde os homens têm a cabeça tão dura e a pele da fronte tão resistente que o ferro não fere; outras onde eles não têm barba; outras onde o fogo é desconhecido; e há ainda regiões onde o esperma do indivíduo é preto; e, outras mais, onde o homem se transforma naturalmente em lodo ou em mula e volta a ser homem. Se tais asserções são exatas e se, como diz Plutarco, em alguns lugares da Índia há homens sem boca que se alimentam respirando certos perfumes, quantos erros se deparariam em nossas descrições da espécie humana? Se não se trata de zombaria, tais homens não devem provavelmente ser dotados de razão, nem capazes de viver em sociedade. Em todo caso as regras de nossa organização interior não lhes seriam em sua maioria aplicáveis. Ademais, quantas coisas conhecemos que se chocam com essas belas regras que nós mesmos traçamos e atribuímos à natureza! E desejaríamos submeter-lhes o próprio Criador! Quantas coisas se consideram milagrosas e antinaturais, segundo a origem e o grau de ignorância de quem as julga! E em quantas outras descobrimos propriedades maravilhosas acima de tudo o que podemos esperar da natureza! Pois "agir de acordo com a natureza" não é senão "agir segundo nossa inteligência", dentro dos limites que ela pode alcançar. O que os ultrapassa, achamo-lo monstruoso e contrário à normalidade. Dessa maneira, tudo seria monstruoso e anormal para os mais instruídos e hábeis, pois a eles principalmente deu a razão humana a convicção de que ela própria carece de fundamentos, não apenas para garantir que a neve é branca, quando Anaxágoras a diz preta, mas ainda para afirmar se alguma coisa existe ou se não existe nada; se há ciência ou se tudo é ignorância, o que Metrodoro, de Quio, asseverava não ser da alçada do homem julgar; e até se vivemos, incapaz de nos tirar dessa dúvida que não sem aparência de razão exprimia Eurípides: "A vida que vivemos é a vida, ou é, esta, aquilo a que chamamos morte?" Efetivamente, por que pretendemos ser, quando isso dura um instante, um relâmpago numa noite eterna, uma simples e curta interrupção em nossa condição natural e perpétua, porquanto a morte ocupa tudo o que precede e segue esse instante e até boa parte dele? Outros afirmam que o movimento não existe, que tudo é imóvel, como o pretendem os discípulos de Melisso. Se há um só mundo, dizem, nem o movimento de rotação, nem o de translação, de que o imaginamos dotado, teriam qualquer utilidade, como o prova Platão. Outros pensam que não há geração nem corrupção na natureza. Na opinião de Pitágoras só a dúvida existe; acerca de tudo podemos discutir, inclusive acerca da afirmação de que tudo é discutível. Nausífanes diz que as coisas que parecem ser nem são nem não são; que só a incerteza é certa; Parmênides, que nada deve existir, à exceção de um Ser único; Zenão, que nem sequer um Ser único existe e que não há nada. Se houvesse um Ser único, observa, estaria em outro e não em si mesmo; se estivesse em outro, já seriam dois e se estivesse em si mesmo seriam igualmente dois: o continente e o conteúdo. A conclusão de todos esses conceitos é que a natureza não passa de uma sombra confusa e vã. Sempre se me afigurou que, da parte de um cristão, dizer: "Deus pode morrer; Deus pode desdizer-Se; Deus não pode fazer isto ou aquilo", é maneira de falar absolutamente indiscreta e irreverente. Acho errado envolver assim o poder divino em termos que empregamos; e o que desse modo queremos exprimir cumpriria expressá-lo mais respeitosa e religiosamente. Nossa linguagem tem seus defeitos e suas insuficiências, como todas as coisas. Em sua maioria, as desordens deste mundo têm sua origem nas sutilezas dos gramáticos. Nossos processos nascem somente de discussões engendradas pela interpretação das leis; as guerras, quase sempre, decorrem de nossa incapacidade em exprimir claramente as convenções e tratados concluídos pelos príncipes. Quantas querelas, e querelas importantes, têm resultado da dúvida na interpretação da sílaba "Hoc”. Tomemos uma frase cuja construção e clareza a lógica demonstra: "faz bom tempo"; se diz eis a verdade, o tempo é bom. Trata-se de uma forma precisa da linguagem. No entanto pode induzir-nos em erro, pois se, com efeito, prosseguindo em nossa demonstração, afirmardes "estou mentindo" e disserdes a verdade, mentires. Em uma e outra frase, a construção, a lógica, a força conclusiva são idênticas e eis que estais em dificuldades, porquanto apresentam ambas deduções contrárias. Isso põe os filósofos da escola de Pirro na impossibilidade de empregar nossa maneira de falar para exprimirem a dúvida que, em tudo, constitui sua regra. Precisariam de outra língua; a nossa, inteiramente formada de afirmações, opõe-se à sua doutrina, de sorte que quando dizem: "duvido" poderíamos objetar que incorrem em contradição, pois afirmam que sabem que duvidam. Assim, para evitar semelhante objeção, tiveram de tomar de empréstimo à medicina uma comparação sem a qual não explicariam seu pensamento. Ao dizerem "eu ignoro", ou "eu duvido", acrescentam que ambas as proposições desaparecem com o resto da frase, assim como o ruibarbo expele os humores e com estes a si mesmo. Tal estado de espírito enuncia-se interrogativamente de maneira mais segura, dizendo-se Que sei eu? E é minha divisa. E a acompanho de uma balança. Vede como, nas atuais discussões acerca de nossa religião, se prevalecem desse modo de falar irreverente e que eu condeno. Se insistis junto ao adversário, dirão sem hesitar que "não está no poder de Deus fazer com que Seu corpo se encontre ao mesmo tempo no céu, na terra e em outros lugares!" Do que tirou proveito aquele autor antigo que tanto apreciava a zombaria: "que consolo para o homem ver que Deus não pode tudo: mesmo que quisesse não poderia matar-Se, o que é sem dúvida nosso maior privilégio; não pode fazer com que os mortais sejam imortais nem que os mortos não sejam mortos; nem tampouco que quem haja vivido não tenha vivido; que quem tenha sido homenageado não o tenha sido; Sua intervenção no passado restringe-se ao esquecimento". E continua demonstrando esse parentesco de Deus com os homens mediante argumentos antes divertidos do que sérios: "Não pode fazer com que dez mais dez não sejam vinte". Assim fala esse autor que um cristão tem por dever não imitar. Mas o homem em seu orgulho compraz-se nessa linguagem, a fim de reduzir Deus à medida humana: "Que amanhã o pai dos deuses cubra o céu de nuvens ou faça brilhar o sol no ar puro, não fará jamais que o que foi não tenha sido nem destruirá o que a hora passada levou em suas asas. Quando dizemos que a infinidade dos séculos, passados e futuros, representa apenas um instante para Deus; que Sua bondade, Sua sabedoria, Seu poder estão em Sua própria essência, fala a nossa boca, mas a nossa inteligência não entende. Em nossa presunção, queremos submeter a divindade à nossa apreciação. Daí os devaneios, os erros espalhados pelo mundo, o qual coloca e pesa em sua balança coisas a serem pesadas com pesos de que não dispõe: "E espantoso verificar até onde vai a arrogância humana após o mais insignificante êxito". Com que dureza de desprezo os estoicos criticam Epicuro por afirmar que só Deus é um Ser verdadeiramente bom e feliz e que o sábio só tem a aparência desses atributos! Com que temeridade submetem Deus ao destino! Oxalá não se encontre entre os cristãos alguém capaz de fazer o mesmo! De seu lado, Tales, Platão, Pitágoras escravizam-no à necessidade. Essa pretensão de querer mostrar-nos o que é Deus levou um de nossos grandes doutores a atribuir-Lhe um corpo, o que é causa de Lhe atribuirmos igualmente os acontecimentos importantes de nossa vida. Quando estes nos parecem de certa gravidade, imaginamos que assim também os encare e lhes dê maior atenção do que quando nos interessam menos: "os deuses preocupam-se com as grandes coisas e negligenciam as pequenas”. Mas continua e vereis onde vos conduz tal raciocínio: "os próprios reis não descem aos pormenores ínfimos de sua administração", como se a esse rei custasse mais derrubar um império do que uma folha de árvore, como se a providência se exercesse diferentemente segundo determine a sorte de uma batalha ou o salto de uma pulga. Entretanto, ela governa todas as coisas da mesma maneira com idêntica ordem; nosso interesse não influi em nada, nem nossos movimentos e sentimentos. "Deus, perfeito artesão nas grandes coisas, não o é menos nas pequenas." Nosso orgulho volta-nos sempre para essa assimilação que constitui uma blasfêmia. Como nossas ocupações nos são pesado fardo, Estráton liberta os deuses de quaisquer deveres, como o faz com seus sacerdotes. A seu ver a natureza é que tudo produz e lhe assegura a conservação; os diversos elementos do mundo mantêm-se em virtude de seus próprios movimentos e o homem não tem a temer o juízo divino "porque um ser feliz e eterno não tem sofrimentos nem os provoca". Querendo a natureza que haja uma relação constante entre as coisas da mesma ordem, a um dado número de mortais corresponde um dado número de imortais, às coisas que destroem e matam opõem-se as que conservam e vivificam. Como as almas dos deuses, sem língua, olhos ou ouvidos entendem-se entre si e julgam nossos pensamentos, as almas dos homens, quando liberadas pelo sonho ou algum encantamento e desprendidas do corpo, adivinham, prognosticam e veem o que seriam incapazes de perceber ligadas à matéria. Tornando-se loucos, diz São Paulo, em se acreditando sábios, os homens transformam a glória de Deus, que é incorruptível, na imagem do homem que não é senão corrupção. Observe-se o charlatanismo das deificações da antiguidade: após a pompa de esplêndidas exéquias, no momento em que o fogo, atingindo o alto da pirâmide, se comunicava ao leito sobre o qual jazia o defunto, soltavam uma águia que simbolizava em seu voo a alma do morto subindo ao paraíso. Representando essa cena, cunharam-se várias medalhas, em particular uma de uma mulher chamada Faustina, em que a águia se apresenta transportando sobre as asas as almas divinizadas. É triste ver como nos esforçamos por nos enganar a nós mesmos com nossas macaquices e invenções: "temem o que eles próprios inventaram", como a criança que se apavora diante da cara do camarada que ela própria pintou: "que haverá mais infeliz do que o homem escravizado pelas suas quimeras?” Há uma diferença grande entre honrar quem nos criou e render homenagens ao que criamos. Augusto teve maior número de templos que Júpiter, os quais foram igualmente visitados e reputados pelos seus milagres. Os feaces, a fim de demonstrarem sua gratidão pelos favores recebidos de Agesilau, foram dizer-lhe que o haviam colocado entre os deuses: "se vosso povo", observou-lhes Agesilau, "tem o poder de fazer deuses à vontade, fazei um deles com um de vós a fim de que eu o veja. Depois, quando tiver visto como ele é, saberei se vos devo agradecer". Como o homem é insensato! Incapaz de forjar o mais microscópico animal, faz deuses às dúzias! Ouçamos Trismegisto elogiar a humana invenção: "Entre as coisas admiráveis", diz, "uma há que a todas sobre-excede, que o homem tenha podido descobrir a natureza divina e imaginar em que consiste". Eis a respeito alguns dos argumentos em voga nas escolas de filosofia: "às quais é dado - e somente a elas - conhecer os deuses e as forças celestiais, ou saber que é impossível conhecê-los”. Se Deus existe, é um ser animado; se é um ser animado, tem sentidos; se tem sentidos, está sujeito à corrupção. Se não tem corpo, não tem alma e então nada pode: se tem um corpo é perecível. Em verdade trata-se de argumento peremptório, resistente a qualquer objeção! Somos incapazes de ter feito o mundo, há pois alguma natureza superior que o fez. Seria tola arrogância considerarmo-nos a criatura mais perfeita do universo; há pois algo melhor: Deus. Quando vedes uma rica e luxuosa residência, ainda que não saibais a quem pertence, não dizeis que foi construída pelos ratos; não devemos também acreditar que esse divino edifício, o palácio dos céus, é a residência de alguém maior do que nós? Quem se encontra no degrau superior não é em verdade o mais digno? Por isso nos achamos aqui embaixo. Nada, desprovido de alma e razão, fora capaz de criar um ser provido de razão e suscetível de dar vida; o mundo produz-nos, logo tem alma e razão. Cada fração de nós mesmos é menor do que nós mesmos; somos uma fração do mundo, logo o mundo é dotado de sabedoria e razão e em grau superior ao nosso. E uma bela coisa ter um bom governo; o mundo deste ponto de vista comprova pois a excelência do princípio que preside a nossos destinos. Os astros não nos prejudicam, a bondade se encontra portanto entre as suas qualidades. Nós temos necessidade de alimentos, os deuses estão no mesmo caso: nutrem-se com os vapores da atmosfera. Os bens deste mundo não são bens aos olhos de Deus, aos nossos não devem ser tampouco. Quem ofende alguém e quem é ofendido por outrem mostram igualmente suas imperfeições; não há pois como temer Deus. Deus é bom naturalmente, o homem por sua vontade, logo com maior mérito. A sabedoria divina só se distingue da sabedoria humana por ser eterna, mas a duração nada acrescenta à sabedoria; estamos portanto em pé de igualdade. Temos a vida, a razão, a liberdade; apreciamos a bondade, a caridade, a justiça; logo essas qualidades pertencem a Deus. Em suma, é o homem que admite ou rejeita a existência de Deus, que imagina as condições de sua existência sobre as quais molda as suas próprias; que padrão e que modelo! Amplia as qualidades humanas, dá-lhes elevação e grandeza quanto queiras, enche-te de orgulho, pobre homem, incha-te quanto puderes: "Não, ainda que arrebentes...” "Os homens acreditando pensar em Deus, de quem não têm ideia, pensam em si mesmos; a si próprios e não a Ele se comparam”. No que diz respeito à natureza, os efeitos só em parte dependem das causas; no caso presente, a divindade não depende dela; está demasiado alta, demasiado longe de nós, demasiado superior ao que podemos imaginar, para que nossas conclusões a atinjam e atuem sobre ela. Não será por nós mesmos que conseguiremos esclarecer um tal problema, nosso caminho é por demais rasteiro. Não estamos mais perto do céu sobre o monte Cenis do que se estivéssemos no fundo do mar; se quereis compreendê-lo consultai vosso astrolábio. Os filósofos pagãos chegam até a representar Deus em contato com a mulher. Paulina, esposa de Saturnino e senhora romana de grande reputação, imaginando dormir com o deus Serápis achou-se, em virtude da conivência de um sacerdote, nos braços de certo admirador. Varro, o mais espirituoso e sábio dos autores latinos, escreveu em suas obras de teologia que o servidor do templo de Hércules jogou com o deus, nos dados (uma das mãos por ele e outra pela divindade) uma ceia e uma cortesã. Se ganhasse, as oferendas dos fiéis pagariam a despesa, e se perdesse ele arcaria com elas. Perdeu e pagou a mulher. Esta, que se chamava Laurentina, encontrou-se nos braços do deus, o qual lhe disse que lhe pagaria o que merecia quem primeiro ela avistasse no dia seguinte. Quem ela encontrou foi Terêncio, um jovem muito rico, que a recolheu e mais tarde fez dela sua herdeira. Por sua vez, pensando agradar ao deus, ela legou seus bens ao povo romano, o que lhe valeu honras divinas. Platão descendia dos deuses por dupla filiação, ambas remontando a Netuno. Não bastou isso: considerava-se certo em Atenas que Ariston, marido da bela Perictione, querendo ter relações com ela, não o conseguiu; e em sonho ouviu de Apolo a advertência de a respeitar e deixar intata até que desse à luz. E assim teria vindo Platão ao mundo. Quantas histórias semelhantes contam-nos as religiões antigas, de pobres humanos enganados pelos deuses! E quantos maridos se apresentam vítimas de ultrajes análogos a fim de dar aos filhos uma origem divina! Entre os maometanos a crença popular admite o nascimento de crianças sem pai, concebidas em espírito, e às quais por intervenção divina as virgens dão à luz. Apelidam-nas "merlins", palavra que tem em sua língua esse sentido. Observemos que todos os seres se consideram a si próprios os mais dignos de apreço: o leão, a águia, o delfim nada colocam acima de sua espécie, e todos julgam as qualidades alheias pelas suas próprias. As qualidades que possuímos, podemos julgá-las mais ou menos estimáveis, eis tudo. Fora desta possibilidade, dado que não podemos imaginar o que não existe e não podemos atribuir à divindade, não há como ir além. Daí estas conclusões dos antigos: De todas as formas a mais bela é a do homem; Deus deve portanto ter essa forma. Ninguém pode ser feliz, sem ser virtuoso; nem ser virtuoso sem ser dotado de razão; esta só pode localizar-se em cérebro organizado como o do homem, logo Deus deve ter um cérebro semelhante ao nosso; "é hábito e preconceito de nosso espírito o que faz que não possamos pensar em Deus sem o representar sob forma humana". A isso objetava prazenteiramente Xenófanes que se os animais criam deuses, como é provável, devem eles também concebê-los à sua feição, julgando-se, como nos julgamos, as obras-primas da criação. Pois, por que um pato não diria: tudo isso é feito para mim: a terra serve-me para andar, o sol para me iluminar, as estrelas para orientar o meu destino; tiro partido dos ventos, e também das águas; nada existe que os céus considerem mais favoravelmente do que eu, sou o favorito da natureza? Não trata de mim o homem? E meu servidor: dá-me casa, semeia para mim, e se me come não come igualmente seu semelhante? E não como eu os vermes que o matam e o comem por sua vez? Um grou tem o direito de dizer o mesmo, e mais ainda, porque tem a liberdade de voar. "A natureza amiga é a natureza que induz os seres a se amarem a si mesmos". E assim cremos que para nós se fez o destino, que para nós o mundo existe, para nós brilha o sol, ribomba o trovão. O Criador e as criaturas, tudo se nos oferece. Somos o objetivo de todas as coisas. Anote-se o que em dois mil anos a Filosofia registrou acerca das coisas divinas. Somente para o homem agiram e falaram os deuses, não se lhes atribui nenhum outro ofício, nenhuma outra missão. Ei-los participando de nossas guerras: "os filhos da terra abalaram o augusto palácio do velho Saturno e caíram enfim sob os golpes de Hércules”. Ei-los tomando parte em nossas desavenças e correspondendo assim ao que fizemos mais de uma vez, intrometendo-nos nas suas: "Netuno com seu temível tridente abala os muros de Tróia e revolve a fundo essa soberba cidade; por sua vez a impiedosa Juno apodera-se das portas Scées". Os cáunios, desejosos de manter a supremacia de seus deuses, pegam em armas no dia que lhes é consagrado e vão batendo o ar com suas espadas, expulsando assim os deuses estrangeiros. O poder dos deuses é-lhes outorgado de acordo com as nossas necessidades; há os que curam os cavalos, outros os homens; uns curam a peste, outros a tinha, outros a tosse, outros a sarna etc... , "pois a superstição introduz os deuses nas coisas mais insignificantes". Um faz que as uvas cresçam, outros os alhos. Um protege a luxúria, outro o comércio. Cada ofício tem seu deus; cada divindade tem sua província: o Oriente uma, o Ocidente outra. "Lá estão as armas de Juno, lá seu carro." "Ó Santo Apolo, tu que habitas o centro do mundo ... " "A cidade de Cécrope adora Palas; a ilha de Creta, Diana; Lemnos, Vulcano; Esparta e Micena, Juno; Pã é deus de Mênalo e Marte é venerado no Lácio!” Uns possuem apenas uma aldeia, uma família; outros vivem sós, outros ainda em companhia, seja porque o queiram, seja por obrigação. "O templo do neto une-se ao do divino avô." Há deuses tão miseráveis e tão ínfimos (pois o seu número eleva-se a trinta e seis mil) que é preciso juntar cinco ou seis para que consigam produzir uma espiga de trigo e cada qual toma o nome de sua função na obra comum. Três para uma porta, encarregados cada qual da bandeira, da dobradiça e do caixilho. Quatro para uma criança, atentos às fraldas, ao que bebe, ao que come, ao seio da ama. "Há os autênticos e os que o não são, e muitos que não se consideraram dignos das honras do céu, concordamos em que habitem as terras que lhes cedemos."! Há os que são poetas, médicos e os que não têm profissão; alguns participam a um tempo da natureza humana e da natureza divina; uns intercedem por nós, são nossos intermediários junto às divindades; alguns têm direito a cultos de segunda ordem, outros acumulam títulos e honrarias, uns são bons e outros maus; há-os velhos e alquebrados e mesmo mortais. E Crisipo pensava que no último cataclismo que provocaria o fim do mundo todos morreriam com exceção de Júpiter. Enfim, o homem forja mil relações, por vezes divertidas, entre os deuses e ele. Dão-lhes até berço idêntico ao seu: "Creta, berço de Júpiter”. O grande pontífice Cévola, e Varro, grande teólogo de sua época, assim o explicam: "é necessário que muitas verdades sejam ignoradas do povo e que este acredite em muitas assertivas falsas": - "como procura a verdade apenas para se libertar, podemos ter a certeza de que é de seu interesse ser enganado". O olho do homem só apreende as coisas sob as formas de que tem noção. Testemunha-o o salto desse pobre Fáeton por ter querido, simples mortal, tomar as rédeas dos cavalos de seu pai. Nosso espírito comove-se, perturba-se e se expõe a queda semelhante quando sua temeridade o induz a enfrentar análogas impossibilidades. Pergunta i à filosofia de que se constitui o sol. Ela vos responderá que é formado de ferro, pedra ou tal ou qual matéria familiar. Perguntai a Zenão em que consiste a natureza, e ele dirá: "é um fogo, espécie de artesão com a faculdade de engendrar e agindo segundo leis invariáveis". Arquimedes, esse mestre nessa ciência que se julga a primeira a conhecer a verdade, afirmará: "O sol é um deus de ferro em fusão". Bela definição em verdade, resultante dessas proclamadas conclusões irrefutáveis a que conduzem as demonstrações da geometria, ciência cuja necessidade e utilidade não são entretanto tão incontestáveis, porquanto Sócrates considerava que bastava dela entender o suficiente para medir a terra que compramos e vendemos, e Polieno, doutor famoso, a desdenhou finalmente como falsa e de aparência ilusória, desde que provou os frutos do jardim de Epicuro. A propósito, Sócrates, falando de Anaxágoras que a antiguidade considerava mais entendido do que ninguém nas coisas do céu, diz que o cérebro deste se alterou como acontece com os que perscrutam exagerada mente as questões que ultrapassam sua competência. Fazendo do sol uma pedra em fusão, esquecia que uma pedra não se torna luminosa e que se consome. Considerando que sol e fogo são uma só coisa, esquecia que o fogo não preteja os que o contemplam, que o podemos fixar e que mata plantas e ervas. Na opinião de Sócrates, e também na minha, o julgamento mais sábio que se possa ter acerca do céu, é não julgar. Platão, referindo-se aos demônios, no "Timeu”, diz: tratar do assunto é empresa que sobre-excede nossa capacidade: devemos a esse respeito reportar-nos aos antigos que pretendem descender dos deuses. Não é razoável recusar crer no que nos dizem, eles que são filhos dos deuses, ainda que não assentem em sólidos alicerces suas afirmações, porquanto o que nos asseguram são tradições de família. Vejamos se conhecemos mais acerca das coisas da natureza de que nos ocupamos. Quanto às que confessamos não poder atingir é ridículo forjar-lhes um corpo, e lhes dar formas de nossa inteira invenção, como se verifica no que concerne aos movimentos dos planetas. Nosso espírito não podendo determinar nem conceber como se efetuam esses movimentos, imaginamos pesadas molas de dados modelos: "de ouro era o timão, de ouro também as rodas, com raios de prata”. Dir-se-ia que tivemos cocheiros, carpinteiros e pintores que andaram pelos céus instalando máquinas de movimentos diversos e engrenagens, e entrosando os corpos celestes de varias cores em atenção ao seu uso! Como quer Platão e diz Varro, "o mundo é um edifício imenso, cercado de cinco zonas, atravessado obliquamente por uma franja guarnecido de doze radiosas constelações, a que têm acesso o carro da lua e seus dois corcéis. Sonhos tudo isso, e fantasias! Por que não há de a natureza abrir-nos um dia o seu seio para que vejamos a nu o que produz e regula seus movimentos? Quantos erros e abusos acharíamos em nossa ciência raquítica! Duvido que observássemos uma só dessas asserções justifica da e não adquiríssemos a convicção de que o que mais ignoramos é a nossa ignorância. Não terá sido no próprio Platão que li esta frase divina: a natureza é um poema enigmático? Uma pintura velada e tenebrosa iluminada de enganadoras claridades que servem de pontos de apoio a nossas hipóteses: "Todas essas coisas se envolvem em espessas trevas, e não há espírito bastante agudo para penetrar os céus ou as profundezas da terra". E é verdade: a filosofia não passa de uma poesia feita com sofismas. Pois de onde tiraram sua autoridade, senão dos poetas, os que a ela se dedicaram na antiguidade? Os primeiros filósofos foram poetas e filosofaram como versificavam. Platão é poeta por vezes; Tímon intitula-o ironicamente: "grande inventor de milagres". Todas as ciências que tratam de questões que sobre-excedem a inteligência do homem vestem-se de licenças poéticas. As mulheres usam dentes de marfim quando perdem os dentes naturais; modificam a tez com ingredientes estranhos à pele; condicionam a grossura das pernas com tecidos e feltros, e arredondam suas formas com algodão; sabidamente se embelezam com artifícios. Assim faz a ciência (diz-se mesmo que a do direito admite ficções que constituem o fundamento daquilo que a justiça estabelece como verdade); ela nos oferece, pedindo-nos que as suponhamos verdadeiras, coisas que ela própria declara inventadas. Esses epiciclos, esses círculos excêntricos e concêntricos de que se vale a astronomia para explicar o movimento das estrelas, não os propõe ela senão como o que de melhor pôde encontrar. Do mesmo modo age a filosofia, apresentando-nos, não o que é ou crê ser, mas o que imagina como solução mais elegante e adequada às aparências. Platão, tratando das condições de nosso corpo e do dos animais, assim se exprime: "afirmaríamos que o que dissemos é exato se um oráculo o houvesse confirmado. Limitamo-nos a assegurar que foi o que achamos mais verossímil para asseverar". Não é apenas o céu que a filosofia provê de cordas, máquinas e engrenagens. Vejamos o que diz de nós mesmos e de nossa estrutura. Não há em todo o sistema planetário, e nos outros corpos celestes, maiores trepidações, ascensões, recuos e êxtases do que inventaram os filósofos para o nosso misérrimo corpo humano. Nisso merece ele a denominação que lhe deram de pequeno mundo, a tal ponto empregam para o construir peças das mais variegadas formas. Para explicar os movimentos que observam no homem, suas diversas funções e faculdades, em inúmeras partículas fragmentaram a alma! Localizaram-na em múltiplos órgãos! Estabeleceram divisões sem conta - e subdivisões - em nosso pobre ser, além daquelas que são naturais e normalmente perceptíveis, sobrecarregando-as de usos e ocupações! Fazem dela uma espécie de república imaginária. Deram-se a liberdade absoluta de desmontá-lo, classificá-lo, remontá-lo, apresentá-lo sob tal ou qual aspecto, segundo sua fantasia, e não chegaram ainda a uma certeza qualquer. Nem mesmo a simples hipóteses em que não se deparem algo manco ou dissonante, por enorme que seja a máquina construída e a despeito dos mil remendos inadequados e fantasistas que lhe aplicam. E não há desculpa para isso. Quando os pintores pintam o céu, a terra, os mares, as montanhas, as ilhas remotas, toleramos que nos apresentem vagos esboços. É isso admissível quanto ao que não conhecemos. Mas se pintam do natural, ou se o que copiam nos é familiar, exigimos deles exata e perfeita reprodução das linhas e das cores; em caso contrário não damos importância à obra. Compraz-me a ideia da jovem de Mileto que, vendo o filósofo Tales continuadamente ocupado a contemplar a abóbada celeste, colocou alguma coisa em seu caminho para que tropeçasse, advertindo-o assim de que antes de se divertir em pensar no que ocorre nas nuvens devia preocupar-se com o que acontece a seus pés. Com razão aconselhava-o a examinar-se, ele próprio em vez do céu, pois, assim como diz Demócrito (segundo Cícero): "investigamos os céus e não olhamos para os nossos pés". Somos feitos de tal maneira, que o conhecimento do que se situa ao nosso alcance está na realidade tão longe e confuso quanto os próprios astros. Essa mesma censura que se endereçava a Tales por não ver o que ocorria diante de seus olhos, Sócrates no dizer de Platão a dirigia a todos os que se interessavam pela filosofia, pois todo filósofo ignora o que faz seu vizinho e até o que ele próprio faz, não sabe o que são ambos, se homens ou animais. Os que hoje acham frágeis os argumentos de Sebond, os que nada ignoram, governam o mundo, tudo sabem: "o que manda no mar, o que regula as estações; se os astros obedecem a um movimento espontâneo ou a uma lei estranha; por que a lua cresce e diminui regularmente; enfim como a harmonia do universo resulta da discórdia de seus elementos", terão algum dia prestado atenção, em seus livros, às dificuldades que apresenta o conhecimento de nosso ser? Vemos que nossos dedos se mexem, que nossos pés andam, que certas partes de nosso corpo se movimentam sozinhas, enquanto outras só o fazem quando o desejamos; que certas emoções nos levam a corar, outras a empalidecer; que as ideias que surgem em nós atuam ora sobre o baço ora sobre o cérebro; algumas provocam o riso, outras as lágrimas; outras ainda nos imobilizam de medo ou de espanto; por vezes pensar em alguma coisa causa enjôo, ou nos excita sexualmente; mas nunca ninguém soube como essas impressões do espírito podem produzir tamanho efeito em um corpo sólido, nem qual a natureza das relações que estabelecem um funcionamento harmônico dos nossos órgãos: "todas essas coisas são impenetráveis à inteligência humana e permanecem escondidas na majestade da natureza", escreve Plínio; e Santo Agostinho diz por seu lado: "o laço pelo qual o espírito adere ao corpo... é admirável e não o pode compreender o homem. Essa união é o próprio homem". E embora não o explicando, ninguém o põe em dúvida, porque a opinião dos homens a respeito resulta do que acreditavam os antigos, crenças a que damos crédito como se se integrassem na religião e nas leis. Aceitamos de bom grado o que comumente é por todos admitido. Acolhemos essa verdade com seu aparato de argumentos e provas, como algo sólido, inabalável, inexaminável. Cada qual fortalece e consolida a crença aceita com seus próprios argumentos, com a sua própria inteligência, instrumento dócil, maleável e acomodatício. E, assim, enche-se o mundo de mentiras e estultícias. O que faz que duvidemos de poucas coisas, está em que jamais pomos à prova as impressões comuns a todos; nunca as examinamos em seus pontos fracos. Não indagamos se um princípio é certo, e sim de que jeito foi formulado. Não há pois como estranhar se tenha estendido às artes e às escolas essa tirania de nossas crenças e esse constrangimento de nossa liberdade. Aristóteles é o deus da ciência escolástica; é sacrilégio discutir-lhe os conceitos, como o era em Esparta discutir os de Licurgo. Consideramos sua doutrina fundamental, e no entanto talvez seja tão falsa quanto outras. Não sei por que não aceitaria igualmente as ideias de Platão, ou os átomos de Epicuro, o cheio e o vazio de Leucipo e Demócrito, a água de Tales, a natureza com sua infinidade de formas de Anaximandro, o ar de Diógenes, os números e a simetria de Pitágoras, o infinito de Parmênides, a unidade de Museu, a água e o fogo de Apolodoro, as partes similares de Anaxágoras, a repulsa e a afinidade de Empédocles, o fogo de Heráclito, ou qualquer outra teoria entre essas inumeráveis teorias e afirmações que emite nossa bela inteligência humana, com sua segurança e clarividência habituais. Como admitir a opinião de Aristóteles no que concerne aos princípios que se encontram na origem da natureza, e assentam em três elementos principais: a matéria, a forma e a carência? Haverá algo mais desprovido de sentido do que a ideia de que tudo vem do nada? Que é carência, senão um elemento negativo? E como fazer dele a origem e a causa do que existe? Eis, no entanto, uma assertiva que não se ousaria combater a não ser como exercício de lógica. Se o discutem, porém, não o fazem para esclarecer dúvidas e sim para defender o chefe da escola contra seus contraditores de outras seitas. Manter-lhe a autoridade, eis o objetivo. E facílimo construir à vontade sobre alicerces preestabelecidos, pois segundo a lei e a disposição dos princípios o resto do edifício ergue-se sem incidir em contradição alguma. Com esse processo nossa razão marcha com segurança e nós discorremos sem necessidade de investigações mais aprofundadas; de antemão nossos mestres prepararam o terreno em nosso espírito para a prova do que bem entendem, como os geômetras que provam suas hipóteses pré-admitidas, Com a anuência e a aprovação que lhes outorgamos, conduzem-nos para a direita ou para a esquerda segundo seu capricho. Quem é acreditado naquilo que pressupõe, é nosso senhor e deus; com tal fundamento amplo e cômodo, pode se quiser elevar-nos às nuvens. Na prática e na transmissão do saber, aceitamos como moeda corrente esta frase de Pitágoras: "todo especialista deve ser acatado no que respeita a sua arte". Assim o dialético refere-se ao dramático quanto ao significado das palavras, o retórico toma de empréstimo ao dialético seus argumentos e a arte de os apresentar, o poeta emprega o ritmo do músico, o geômetra vale-se dos cálculos do matemático, o metafísico utiliza as conjeturas do físico, porque todas as ciências assentam seus princípios em hipóteses, o que por todos os lados amarra o raciocínio do homem. Se tentamos derrubar essa barreira que constitui um erro capital, objetam-nos logo com este aforismo: "Não se discute com quem nega os princípios". Ora, não pode haver entre os homens senão os princípios que Deus lhes revelou; fora dessa revelação o princípio, o meio e o fim de todas as coisas não passam de sonho e fumaça. Aos que, para combater, se apoiam em hipóteses, cumpre opor como axioma as teses contrárias àquelas acerca das quais se discute. Todas as que o homem é capaz de imaginar podem emitir-se; têm todas igual autoridade, se entre elas a razão não estabelece uma diferença. É preciso, pois, examiná-las e compará-las; e antes de tudo as que se apresentam como regras gerais e pesam mais. Querer chegar a uma certeza absoluta é, até certo ponto, prova de loucura e de extrema incerteza. Não há gente mais louca e menos filósofa do que os filodoxos de Platão. Que o fogo seja quente, a neve fria, e nada duro ou mole, não o contradizemos, mas que no-lo provem! A tais propósitos contam que os antigos respondiam: quem duvida do calor, jogue-se ao fogo; quem nega o frio da neve, coloque-a sobre o peito. Essas respostas não eram dignas de filósofos. Se nos tivessem deixado em nosso estado natural, aceitando em tudo a aparência das coisas, sem outras necessidades que não as determinadas pelas condições de nossa existência, teriam razões para assim se exprimir, mas foram eles mesmos que nos ensinaram a nos erigirmos em juízes do mundo e nos enfiaram na cabeça a pretensão de que "a razão tem o direito de controle sobre tudo o que existe, tanto sob a abóbada celeste como fora dela, que tem o direito de tudo abarcar, porquanto tudo sabe e tudo pode". Semelhantes respostas seriam aceitáveis entre os canibais, que têm a felicidade de gozar uma vida longa, tranquila, sossegada, sem aplicar os preceitos de Aristóteles, nem conhecer o nome da física. E seriam mais eficazes do que quaisquer outras imaginadas pela filosofia e sugeridos pela razão; estariam também ao alcance dos animais, como tudo o que decorre pura e simplesmente da lei da natureza; mas eles não as aceitam. Para serem consequentes com suas atitudes habituais, não me podem dizer: "Isso é verdadeiro, porque assim o vês e o sentes"; é necessário que me demonstrem que o que eu creio sentir eu o sinto efetivamente; e se o sinto efetivamente, por que o sinto, e como etc., é preciso que digam nome, a origem, os fundamentos e a finalidade do calor e do frio, que faz com que este atue sobre o outro e inversamente; sem o que não seriam filósofos, não admitindo estes nada, nem nada aprovando senão pela razão, pedra de toque (em verdade cheia de erros e fraquezas) a que tudo submetem. Por que meios poderíamos melhor aquilatar a razão, do que por ela mesma? Se não podemos acreditar nela quando fala de si, não será capaz de apreciar o que não está em si. Se pode conhecer alguma coisa, deve ser pelo menos o que é e onde se aloja, visto que está em nosso espírito, de que faz parte ou é efeito. Não se trata aqui da razão por excelência, a única verdadeira e que tão mal batizamos; pois essa reside no seio de Deus. Daí emana quando apraz a Deus mostrar-nos alguns de seus raios, como Palas saiu da cabeça de Júpiter a fim de se mostrar visível ao mundo. Vejamos portanto o que a razão humana nos ensina acerca de si mesma e da alma, do espírito. Não acerca da alma em geral que todos os filósofos outorgam aos corpos celestes e primeiros corpos participantes; nem acerca do que Tales atribui às coisas inanimadas, e às quais foi levado a atribuir uma alma observando o comportamento do ímã; mas acerca da que está em nós e que devemos conhecer melhor: "não se conhece a natureza da alma: nasce ela com o corpo, ou, ao contrário, neste se introduz no momento do nascimento? Morre com ele, vai visitar abismos sombrios, ou passa, por ordem de Deus, ao corpo de animais?" Crates e Dicearco afirmavam que a alma não existia, e que os movimentos e atos corporais obedeciam a um movimento natural; Platão assegurava que era uma substância dotada de movimento próprio; Tales, uma natureza sem repouso; Asclepíades, o exercício dos sentidos; Hesíodo e Anaximandro, uma substância composta de terra e água; Parmênides, de terra e fogo; Empédocles, de sangue - vomitou sua alma de sangue"; Possidônio, Cleantes e Galeno, um calor, ou substância de compleição quente, "as almas têm a força do fogo e uma origem celeste”, Hipócrates, um espírito espalhado pelo corpo; Varro, o ar penetrando pela boca, aquecendo os pulmões, purificando o coração e se expandindo pelos membros; Zenão, a quinta-essência dos quatro elementos; Heraclides Pôntico, a luz; Xenócrates e os egípcios, um coeficiente variável; os caldeus, uma propriedade sem forma determinada: "um certo hábito vital do corpo, a que os gregos chamam harmonia e não olvidemos a opinião de Aristóteles para o qual a alma é o que faz naturalmente mover-se o corpo. Denomina-a enteléquia, mas não se estende a respeito de sua origem, de sua essência, nem de sua natureza e sim, apenas, de seus efeitos. Lactâncio, Sêneca e os principais filósofos dogmáticos confessam que é coisa para eles incompreensível. E agora, depois desta enumeração de opiniões, "qual a verdadeira? Só um deus pode saber", diz Cícero. "Reconheço por experiência própria", diz São Bernardo, "a que ponto Deus escapa a meu entendimento, pois não posso sequer compreender as partes de que se compõe o meu próprio ser." Heráclito, que admitia que tudo fosse almas e demônios, nos seres, declarava entretanto não poder ir bastante longe no conhecimento da alma e compreendê-la, porquanto sua essência é impenetrável. Onde se aloja? A resposta não provoca menores divergências e discussões. Hipócrates e Hierófilo colocam-na no cerebelo; Demócrito e Aristóteles, em todo o corpo, "como quando dizem que a saúde está no corpo e todavia não constitui um membro do corpo são": Epicuro, no estômago: "pois aí sentimos palpitar o medo, o terror, aí experimentamos as doces sensações da alegria os estoicos, em volta e dentro do coração; Erasístrato, unida à membrana do crânio; Empédocles, como Moisés, no sangue, o que levou este último a proibir que comessem o dos animais, porquanto lhes comeriam a alma; Galeno pensa que cada parte do corpo tem sua alma; Estráton aloja-a entre as sobrancelhas. "A que se assemelha a alma e onde reside? Eis o que não convém procurar entender", diz Cícero. Cito suas próprias palavras, a fim de não alterar a linguagem da eloquência, tanto mais quanto pouco benefício se tira com frustrá-lo de suas ideias que são raras, sem muita originalidade e assaz conhecidas. As razões que nos dá Crisipo, e outros filósofos de sua escola, para colocar a alma no coração merecem menção. E, diz, porque quando queremos afirmar alguma coisa pomos a mão acima do estômago, e quando pronunciamos a palavra "ego" (eu, em grego) abaixamos o maxilar inferior na mesma direção. A observação denuncia certa falta de seriedade em tão grande personagem. As outras considerações que expressa são também de reduzido valor e nenhuma prova que a alma se localize, para os gregos, nessa parte do corpo. Daí concluir-se que não há inteligência humana, por brilhante que seja, que por vezes não cochile. Mais ainda: eis os estoicos, pais da humana prudência. Não afirmam eles que a alma do homem que se debate contra a morte, pena e se esgota longamente para sair do corpo, como um rato que não consegue escapar da ratoeira? Há entre eles quem pense que o mundo foi feito para prover de corpo os espíritos que em razão de seus erros perderam a pureza recebida ao serem criados, tendo sido a primeira criação exclusivamente incorpórea. E, segundo sua espiritualidade, se encarnam tais corpos em condições mais ou menos penosas ou fáceis. Assim o espírito, que por causa da magnitude de suas culpas se encarnou no sol, devia ter uma quantidade absurda de pecados. As consequências resultantes afinal de nossa investigação comportam algo inesperado. Ocorre-nos o que, no dizer de Plutarco, se verifica quando nos reportamos às remotas origens da história: descobrimos que os mapas mostram as terras conhecidas confinando com pantanais, florestas imensas, desertos e lugares inabitáveis; assim também os que se ocupam dessas altas indagações e querem ver mais longe, são vítimas de sua curiosidade e sua presunção, e se expõem aos mais grosseiros e pueris devaneios. O fim e o começo dessa ciência participam igualmente da tolice. Vede Platão, elevando-se e pairando nas suas nebulosas concepções poéticas; vede o jargão que põe na boca dos deuses; em que pensava, quando definiu o homem como um bípede sem penas, fornecendo oportunidade a seus adversários de motejá-lo prazenteiramente? Pois, arrancando as penas de um capão, passeavam-no dizendo: "eis um homem de Platão". E os epicuristas! Que simplicidade de sua parte em andarem a proclamar que o mundo provinha dos átomos, e a apresentar estes como corpos ponderáveis e sujeitos a um movimento natural perpendicular! Essa hipótese fez que seus adversários obstassem que em semelhantes condições os ditos átomos não poderiam juntar-se nem se agrupar, porquanto sua queda obedecia a linhas verticais e retas, sempre paralelas. Essa objeção forçou-os a acrescentar à sua descrição a possibilidade, para os átomos, de um movimento oblíquo, fortuito, e a dota-los de caudas curvas como garras que lhes permitiam se agarrassem e se amarrassem uns aos outros. O que não impediu que seus contraditores os embaraçassem ainda, indagando como, "se os átomos, por efeito do acaso, produziram tantas coisas de formas diversas, nunca ocorreu que construíssem uma casa ou fizessem um sapato? E, ainda, por que não admitir que as letras gregas espalhadas ao acaso, em número infinito, chegassem a formar o texto da Ilíada?" Tudo o que é capaz de razão, diz Zenão, é melhor do que o que não o é; nada há melhor do que o mundo, logo o mundo é capaz de razão. Cota, empregando a mesma argumentação, faz o mundo matemático; e também músico e tocador de órgão, aplicando-lhe este outro raciocínio, igualmente de Zenão: "o todo é mais do que a parte; somos capazes de sabedoria e parte do mundo, logo o mundo é sábio". Encontram-se portanto nas críticas que os filósofos dirigem uns aos outros, discutindo acerca de suas divergências, inúmeros exemplos de raciocínios semelhantes, não apenas falsos, mas ineptos, indefensáveis e denunciadores da ignorância e da temeridade de seus autores. Quem, com competência, andasse a compulsar todas as asneiras que emanam da sabedoria humana, assombraria os outros. Eu mesmo, apresentando algumas, a título de amostra, faço obra mais útil do que dissertando a respeito. Podemos julgar por elas em que estima devemos ter o homem, seu bom senso e sua razão, desde que, mesmo nos personagens que tão alto elevaram a inteligência humana, se encontram defeitos tão visíveis e grosseiros. Quanto a mim, prefiro crer que esses filósofos só se ocuparam de ciência ocasionalmente, como divertimento. Usaram a razão como instrumento frívolo e vão, avançando toda espécie de ideias estranhas, ora com seriedade, ora com ironia. Esse mesmo Platão, que define o homem como definiria uma galinha, diz, depois de Sócrates, em outro trecho de sua obra, que, em verdade, não sabe o que seja o homem, "uma das peças do mundo mais difíceis de conhecer". Tais opiniões variáveis e instáveis constituem uma confissão tácita, mas evidente, de sua vontade de não sair da indecisão. Esforçam-se os filósofos para que seu modo de ver nem sempre apareça com nitidez; escondem-no sob as folhagens que lhes oferecem a fábula e a poesia, ou sob outra máscara qualquer, pois nossa imperfeição faz que a carne crua nem sempre convenha a nosso estômago e se deva deixá-la alterar-se, corromper-se. Assim agem; obscurecem por vezes suas opiniões e seus juízos, falsificam-nos para coloca-los ao alcance de todos. Não querem pronunciar-se francamente acerca da ignorância e da fragilidade da razão humana para não fazer medo às crianças, mas as revelam suficientemente sob a aparência de sua ciência confusa e contraditória. Quando eu estava na Itália, aconselhei a alguém que não sabia italiano que se ativesse, se desejava ser compreendido sem pretender empregar uma linguagem correta, às palavras latinas, francesas, espanholas ou gasconhas que, para lhe exprimir o pensamento, lhe viessem aos lábios, acrescentando-lhes simplesmente uma terminação italiana. Assim se encontrariam por certo com algum dos idiomas do país, o toscano, o romano, o veneziano, o piemontês, ou o napolitano. Direi o mesmo da filosofia. Tem tantas formas diferentes e tanto falou, que abarcou todos os nossos sonhos e devaneios. A fantasia humana nada mais pode conceber que não se depare nela: "nada se dirá, por mais absurdo, que não tenha sido dito por algum filósofo". Isso me proporciona maior liberdade ainda para divagar publicamente, tanto mais quanto, embora emanando de mim só, e sem que ninguém mos tenha sugerido, meus propósitos terão sempre alguma relação com outros já mantidos e não faltará quem diga um dia: eis de onde os tirou. Minhas ideias são o que as fez a natureza. Para formá-las procurei não seguir nenhuma regra; e no entanto, por fracas que sejam, quando as quis exprimir e publicar nas melhores condições possíveis, achei de meu dever apoiá-las em raciocínios e exemplos, e maravilhei-me com perceber a que ponto se amoldam a inúmeros raciocínios filosóficos. A que doutrina se ligam? Só o soube depois de as expor e julgar do resultado: pertenço a uma nova espécie, sou um filósofo que se tornou filósofo por acaso e sem premeditação. Mas voltemos à alma. É provável que, colocando a razão no cérebro, a cólera no coração, a cobiça no fígado, Platão tenha antes interpretado os movimentos da alma do que indicado uma divisão e uma distinção a exemplo do corpo. A mais verossímil dessas opiniões todas é a de que a alma é uma só; que tem, por si, a faculdade de raciocinar, recordar, compreender, julgar, desejar, e que todas as demais operações ela as exerce por intermédio das diferentes partes do corpo, como o piloto dirige seu navio segundo sua experiência, ora retesando ou relaxando uma corda ora erguendo uma vela ou se servindo do remo. E igualmente provável que a alma se aloje no cérebro; isso decorre do fato de que os ferimentos e acidentes que afetam esse órgão repercutem de imediato nas faculdades da alma. E natural admitir-se que do cérebro ela se expanda pelo corpo, assim como o sol projeta sua luz e sua fecundidade fora do céu e as derrama sobre o mundo: "O sol, em seu curso, não se afasta jamais do meio do céu e no entanto tudo ilumina com seus raios". A outra parte da alma, espalhada pelo corpo, está submetida e obedece às ordens superiores da inteligência. Houve quem afirmasse haver uma alma original, princípio de todas as outras, algo como um grande corpo de que se extraem as almas particulares e ao qual estas retomam para se fundirem nesse meio continuamente reconstituído: "Deus circula através das terras e mares e profundezas dos céus; outorga aos homens, animais domésticos, feras, ao nascerem, o sopro que os anima; a partir de então nenhum pode perecer e todos devem prestar contas de seu ser ao grande todo de que emanam"." Outros asseveraram que elas ali se juntavam tão somente; outros que eram produtos da substância divina; outros, que provêm dos anjos e são constituídas pelo fogo e a água; uns, que desde sempre existiram; outros, que são criadas quando necessário; outros, que vêm da lua e para lá voltam. Em geral os antigos acreditavam que eram engendradas de pai a Filho, como tudo o que se encontra na natureza. Em apoio dessa hipótese invocavam a semelhança dos pais com os filhos: "a virtude de teu pai a ti se transmitiu com a vida ... Os fortes engendram os fortes; e também que os pais transmitem aos filhos, não somente certos caracteres do corpo, como ainda algo de seu temperamento, de seu espírito: Por que o leão transmite a ferocidade à sua raça? Por que a malícia é hereditária nas raposas? O medo, nos veados?.. senão porque a alma tem seu próprio germe e se desenvolve junto com o corpo. Davam ainda como razão basear-se a justiça divina, para punir os filhos, nos erros dos pais; os vícios destes, por contágio, manchariam a alma daqueles, atuando os desregramentos de uns sobre os outros. Acrescentavam que se as almas tivessem outra origem que não essa natural, se fossem outra coisa fora do corpo com o qual se engendram, recordariam sua condição primeira, dadas as faculdades de discorrer, raciocinar e lembrar de que são dotadas: "se a alma se insinua no corpo quando do nascimento deste, por que não nos lembramos do passado? Por que não conservamos nenhum vestígio de nossos atos anteriores?" Admitir essa hipótese é supor que nossas almas já possuem toda sua ciência quando ainda em sua simplicidade e pureza naturais; mas se assim é, estão livres de não se aprisionarem em um corpo, pois para que a reencarnação, se antes de entrar em seu novo corpo já seriam como o serão ao saírem? E fora preciso ainda que se lembrassem, durante a sua nova vida, do que conheceram na existência anterior, porquanto aprender não é, no dizer de Platão, senão murmurar o que soubemos. Ora, todos sabem, por experiência própria, que tal assertiva é falsa. Em primeiro lugar porque, precisamente, não nos lembramos do que aprendemos e que, se a memória cumprisse sua tarefa, nos sugeriria alguma coisa mais do que o que sabemos de início. Em segundo lugar, a ciência que a alma possuiria seria a ciência perfeita, de sorte que, graças à sua divina inteligência, conheceria todas as coisas na sua realidade. Ora, acontece que se num ponto ou noutro lhe ensinam a mentira ou o vício, ela os retém, não tendo nenhuma reminiscência a opor-lhes porque a imagem e a concepção da verdade nunca entraram nela. Não se poderia dizer que sua prisão no corpo abafa suas qualidades inatas, a ponto de as extinguir; seria antes de tudo contrário a essa outra crença que lhe empresta um poder considerável e tão admirável ação sobre o homem, nesta vida, que disso fizeram uma divindade eterna desde sempre e para sempre: "e se a mudança é tão grande que a alma não guarde lembrança do que fez, seu estado, parece-me, difere bem pouco da Morte". Por outro lado, no caso que nos interessa, são os efeitos produzidos em nós, e não alhures, pela ação da alma que se devem ponderar. Todas as suas demais perfeições são supérfluas e inúteis; pelo seu estado presente é que se deve reconhecer sua imortalidade, não sendo ela responsável senão pela vida do homem ao qual se une. Seria injusto, depois de tirar-lhe os meios de ação, e desarmá-la, julgá-la e condená-la a um castigo de duração exagerada, perpétua, pelo tempo que permanece fechada em sua prisão, fraca e enferma, constantemente sob o efeito do constrangimento que lhe impuseram. Determinar-lhe a sorte em vista de tão curto tempo, por vezes uma hora ou duas, e no máximo um século, um instante enfim comparado com a eternidade, e por causa desse momento dela dispor para sempre, seria estabelecer uma desproporção entre a causa e o efeito, tão iníqua quanto lhe atribuir uma recompensa eterna pelos méritos de tão curta existência. Atentando para essa desproporção, quer Platão que o que nos aguarda após a morte tenha uma duração de cem anos, em relação com a vida humana. Numerosos doutores nossos estabeleceram igualmente limites a tais provações. Em suma, a crença geral era de que a alma nasce e vive nas mesmas condições que o homem. Era opinião de Epicuro e Demócrito, e a mais facilmente aceita, que a alma nasce com o corpo no momento adequado, suas forças, juntamente com as forças físicas do indivíduo; que constatamos sua fraqueza durante a infância e vemos seu vigor e sua maturidade se ampliarem com o tempo, e seu enfraquecimento sobrevir na velhice. E enfim sua decrepitude: "sentimos que nasce com o corpo, cresce e envelhece com ele". Percebiam-na capaz de diferentes paixões, e de agitações penosas, causadoras de lassidão e sofrimento, suscetível de alterações e mutações, de alegrias e langores. E de enfermidades como o pé ou o estômago: vemos que o espírito pode ser tratado pela medicina e curar-se como um corpo enfermo. Viam-na igualmente perturbada e excitada pelo vinho; agitada pela febre, adormecida sob a ação de alguns medicamentos, despertada por outros: "cumpre que a alma seja corporal, pois é sensível às sensações do corpo". Viam-se todas as suas faculdades abaladas pela simples mordida de um cão doente; e por grande que seja a resolução de sua razão, sua inteligência, sua virtude, sua energia, nada a isenta de semelhantes acidentes. A saliva de um cãozinho mau sobre a mão de Sócrates pode atingir-lhe a sabedoria e as ideias, e as aniquilar sem deixar vestígios: "a alma é perturbada, alterada, abalada e partida pela ação desse veneno, o qual não encontra maior resistência em um filósofo do que em uma criança de quatro anos, e fora capaz de transmitir a raiva a toda a filosofia se esta se personificasse em alguém. E assim Catão, que triunfou da própria morte e da má sorte, não houvera suportado a vista de um espelho ou da água e se acabrunharia de pavor se pelo contágio fosse atingido por essa doença a que chamam hidrofobia: "o mal, em se expandindo pelos membros, ataca a alma com violência, como o vento subleva as ondas espumantes do mar". Por certo a filosofia armou o homem contra o sofrimento resultante de qualquer acidente e proveu-o de paciência. E se o mal sobre-excede suas forças, fornece-lhe o meio de escapar e se tornar insensível. Mas são meios, esses, que só estão ao alcance de uma alma forte, segura de si, capaz de raciocínio e decisão; são inúteis no caso de um filósofo cuja alma se aflija, se perturbe e se perca, como ocorre em diversas circunstâncias, por ocasião de uma paixão violenta por exemplo, de algum ferimento em certas partes de nosso ser, de exalações estomacais provocadoras de vertigens ou tonturas: "muitas vezes nas doenças do corpo a alma delira e se expande em discursos sem nexo; outras vezes, uma pesada letargia mergulha-a em um sono profundo e definitivo. Os olhos cerraram-se, a cabeça pende". Em meu entender, os filósofos não se detiveram muito neste ponto como não o fizeram tampouco em outros de importância. Para nos consolar de estarmos destinados a morrer têm sempre nos lábios este dilema: "ou a alma é mortal ou é imortal; se é mortal estará isenta de sofrimento; se é imortal continuará pelo caminho da perfeição". Não encaram nunca o outro caso: "que acontecerá se for sempre piorando?" E deixam aos poetas o cuidado de nos entreter acerca das penas futuras. Com isso vão sustentando facilmente seus sistemas. São omissões que não raro observei em seus diálogos. Mas vejamos a primeira dessas proposições: a alma é mortal. A alma perde em certas circunstâncias o uso da constância e da resolução que os estoicos consideram seus soberanos bens. Cumpre à nossa sabedoria dar-se então por vencida. A esse propósito, a vaidade, inerente à razão humana, levava a considerar não admissíveis a mistura e a coexistência de duas condições antagônicas, como a do mortal com a do imortal: "é loucura unir o mortal ao imortal, imaginá-los de acordo, em um todo harmônico. Que haverá, com efeito, mais distinto, mais contrário do que essas duas substâncias, uma perecível, a outra indestrutível, que pretendeis reunir para as expor juntas aos mais terríveis desastres? Com maior convicção observavam que na hora da morte acabam o corpo e a alma: "ela sucumbe com ele sob o peso dos anos" do que, segundo Zenão, temos uma ideia no sono, que é uma debilitação e uma queda da alma como a do corpo. Se em alguns a alma conserva sua força e seu vigor no declínio da vida, isso se explica, dizem, pela diversidade das doenças. Se, como se vê, certos homens conservam intato até o fim de seus dias algum de seus sentidos, é porque o enfraquecimento não se generaliza sempre: partes do organismo permanecem perfeitas: "assim como os pés podem adoecer sem que a cabeça sofra". Nosso julgamento encara a verdade como o morcego contempla o esplendor do sol, diz Aristóteles. Nada temos melhor do que essa cegueira para penetrar tão esplendente luz; pois a opinião contrária, que defende a imortalidade da alma e que foi, segundo Cícero e os livros, ventilada pela primeira vez por Ferecides, de Siro, contemporâneo de Tulo (e que outros atribuem a Tales, e outros, a outros), sempre constitui objeto de reservas e de dúvidas. Os mais intransigentes dogmáticos veem-se neste ponto forçados a colocar-se sob a proteção da Academia. Ninguém sabe o que pensava Aristóteles a respeito, nem em geral os filósofos antigos, os quais não dão ideia muito precisa do assunto: promessa, evidentemente agradável, de um bem cuja certeza não se prova. Ele dissimula seu pensamento sob uma nuvem de palavras, cujo sentido é obscuro e pouco inteligível, deixando a seus partidários discutir seu juízo tanto quanto a própria matéria. Duas coisas militavam em favor dessa opinião. Uma era que sem a imortalidade da alma não haveria mais sobre que assentar as vãs esperanças de glória que são um estimulante admirável neste mundo. Outra, que se tratava de uma crença salutar, como diz Platão, pois os vícios que escapam ao conhecimento da justiça humana, não se sonegam assim à justiça divina, a qual os pune mesmo depois da morte do culpado. O homem cuida muito de prolongar sua existência. Tudo dispõe para tanto: a conservação do corpo na sepultura; a de seu nome na glória. Preocupado com o que poderia ocorrer, fez tudo o que lhe veio à mente para se reconstruir e consolidar sua presença na terra. Não podendo a alma, em razão de sua fraqueza, encontrar a calma, busca por toda parte consolo, esperança, apoio. Prende-se a circunstâncias estranhas a si mesma, e não as abandona. Por insignificantes , ou fantasistas que sejam, nelas se aloja e repousa de preferência. E de espantar que os partidários mais convencidos dessa ideia tão justa e clara da imortalidade da alma tenham sido tão incapazes de prová-la com o simples auxílio da razão humana: São sonhos de um homem que deseja mas não acha. Pode o homem deduzir, portanto, que deve ao acaso a verdade que por si mesmo descobre, pois mesmo nos momentos em que a tem nas mãos carece de meios para apreendê-la e conservá-la. Tudo o que produzem nossa razão sozinha e nossa inteligência, tanto o verdadeiro como o falso, está sujeito à incerteza e à discussão. E para nos punir de nosso orgulho e fazer-nos sentir nossa miséria e nossa impotência que Deus suscitou a confusão da torre de Babel. Tudo o que empreendemos sem que Sua graça nos ilumine não passa de vaidade e loucura. A própria essência da verdade, uniforme entretanto e constante, nós a corrompemos e ela degenera em virtude de nossa fraqueza, quando a sorte no-la oferece. Qualquer que seja o caminho seguido, Deus o levará à confusão, cuja imagem viva temos no castigo que infligiu a Nemrod, aniquilando sua vã tentativa de construir a Pirâmide: "confundirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes". Que significa a diversidade das línguas que falavam os operários e fez abortar a empresa, senão o infinito e perpétuo conflito de opiniões e raciocínios, inseparável da vã ciência humana? O que de resto não deixa de ser útil, pois quem nos deteria se possuíssemos um átomo de ciência! É grande satisfação para mim ver um santo assim se exprimir: "as trevas em que se envolve a verdade, são um exercício para a humildade e um freio para o orgulho”. A que grau de insolência e presunção atingem nossa cegueira e nosso orgulho! Prossigamos. Nada mais justo e razoável do que recebermos só de Deus e por Sua graça unicamente a possibilidade de conhecer a verdade, pois é de Sua liberalidade que auferimos o que a imortalidade nos oferece de feliz: a beatitude eterna. Confessemos humildemente que somente Deus no-la revelou, e a fé no-la ensina. A natureza e a razão nada têm a ver com isso. E quem, entregue às suas próprias forças, empreenda sondar-se por dentro e por fora, sem levar em conta a revelação divina, e estude o homem sem o embelezar, nada verá, em si, de certo, de provável, impelindo a outra coisa que não à morte, como fim último. Quanto mais damos, devemos e devolvemos a Deus, tanto mais nos conduzimos como verdadeiros cristãos. O que o filósofo estoico afirma provir-lhe de um sentimento fortuito nascido em seu espírito, melhor fora que lhe viesse de Deus: "quando tratamos da imortalidade da alma, procuramos principalmente apoio junto aos homens que temem os deuses infernais ou os veneram; eu me aproveito dessa crença geralmente aceita". A fraqueza dos argumentos humanos a esse respeito revela-se pelas circunstâncias fabulosas que se acrescentaram a essa opinião a fim de se determinar em que condições somos chamados a gozar a imortalidade. Deixemos de lado os estoicos "que dizem que nossas almas vivem como corvos: muito, mas não eternamente" e lhe dão uma vida mais longa que a do corpo, mas não ilimitada. A ideia mais geralmente aceita, e que em muitos lugares chegou até nossos dias, é a de Pitágoras, ao que se diz. Não porque a invenção lhe caiba, mas porque sua aprovação lhe deu grande peso e crédito. Eis a ideia: "As almas, quando nos deixam, passam de um corpo a outro; do corpo de um leão ao de um cavalo; deste ao de um rei; e andam assim de uma residência para outra sem cessar". Pitágoras dizia mesmo, a propósito, lembrar-se de ter sido Etálido, mais tarde Euforbo, Hermotimo em seguida, e enfim Pirro, conservando na memória o que lhe ocorrera em cento e seis anos. Outros acrescentavam que por vezes essas almas subiam ao céu para tornar a descer mais tarde: "Ó meu pai, será verdade que há almas que voltam do céu à terra e revestem uma forma corpórea? Quem inspira a esses infelizes tão grande desejo da vida?” Orígenes considera que vão e vêm eternamente, passando de uma condição boa a uma condição má. Varro declara que, após uma evolução de quatrocentos e quarenta anos, elas tornam a unir-se a seu primeiro corpo. Crisipo afirma que assim ocorre após um lapso de tempo determinado, cuja duração é desconhecida. Platão (que diz ter recebido de Píndaro e dos poetas antigos essa crença), do fato de a alma estar sujeita a inúmeras migrações, e de não receber no outro mundo senão tristezas e recompensas temporais, como na sua vida aqui, conclui que ela adquire um conhecimento particular das coisas do céu, dos infernos e da terra, por onde passou e repassou e de que conservou reminiscências. E explica assim a evolução: "se a alma viveu no bem, alcança o astro que lhe está assinado; se viveu no mal, passa para um corpo de mulher; se neste estado não se corrige, passa para um animal de costumes em relação com os seus vícios; e só vê o fim de suas penas quando volta a seu estado primitivo, depois de se haver desembaraçado das qualidades grosseiras e estúpidas que nela existiam em germe". Não me furtarei ao prazer de transcrever esta divertida objeção que apresentavam os epicuristas a uma tal transmigração das almas: "que aconteceria se o número de mortes excedesse o número de nascimentos? "As almas desalojadas de sua residência iriam atropelar-se para se acharem em primeiro lugar diante dos novos invólucros." E mais: "em que empregariam o tempo as que fossem obrigadas a aguardar vagas? Por outro lado, se nascem mais animais do que morrem, em que situação se achariam os que não se provessem de almas? Alguns por certo morreriam antes de nascer. "É ridículo supor que as almas já se encontram prontas e à espera no momento preciso da cópula dos animais ou de seu nascimento e que, substâncias imortais, se atropelem em torno de um corpo mortal, disputando entre si o direito de ser a primeira." Outros filósofos se apoderam da alma na hora da morte para insuflá-la nas serpentes, nos vermes e em outros bichinhos que se reproduzem quando o corpo entra em decomposição e até quando já se acha reduzido a cinzas; outros a dividem em duas partes, uma mortal e outra imortal; outros ainda admitem sua imortalidade, embora a julguem incapaz de saber e conhecimento. E há os que pensam, inclusive entre os cristãos, que as almas dos condenados se encarnam em demônios. Por analogia, Plutarco imagina que as almas que se salvam se transformam em deuses. Há poucos assuntos acerca dos quais esse autor se pronuncie com tanta precisão, pois, em geral, se exprime de modo ambíguo: "é necessário observar", diz, "e crer efetivamente, no que concerne às almas dos indivíduos virtuosos, que, como é natural e conveniente à Justiça divina, essas almas transmigram para os santos; as dos santos para os semideuses e as dos semideuses, depois de depuradas e purificadas por sacrifícios expiatórios sem mais a obrigação de pagar tributo ao sofrimento e à morte, tornam-se, não por ordenação civil mas por efeito da razão, deuses inteiros e perfeitos, o que constitui, para elas, um fim glorioso e feliz". Quem quiser ver Plutarco, um dos autores mais prudentes e sensatos, fazer-se campeão dessa tese e contar milagres, poderá reportar-se a seus escritos sobre a lua e o demônio de Sócrates. Aí verá, de maneira evidente, como os mistérios da filosofia apresentam fantasias análogas às da poesia. A inteligência humana perde-se ao querer tudo sondar e controlar a fundo. É o que nos acontece. Acabrunhados pelo trabalho executado durante uma longa existência, voltamos à infância. Tais são os belos ensinamentos, impregnados de certeza, que a ciência humana nos fornece acerca de nossa alma! No que diz respeito à parte material de nosso ser, não é menos temerária a ciência em suas conjeturas. Escolhamos um ou dois exemplos apenas, pois em tudo colher nos perderíamos nesse oceano tão vasto e turvo dos erros cometidos pelos médicos. Vejamos se, pelo menos, reina harmonia acerca da maneira pela qual os homens se reproduzem, pois quanto a sua criação inicial a coisa remonta tão longe na antiguidade que não há como estranhar não possa o espírito humano pronunciar-se. O físico Arquelau (ou Archelau), de quem Sócrates foi discípulo e favorito, segundo Aristóxeno, pensava que os homens e os animais eram engendrados por um barro leitoso produzido pela ação do fogo interno da terra; Pitá goras pensa que o sêmen, de que provimos, é a espuma do que há de melhor em nosso sangue; Platão diz que se trata de um escorrimento da coluna vertebral e dá como prova sentir-se nesse ponto a fadiga da tarefa fecundadora; Aleméon acha que é uma parte da substância de que se constitui o cérebro, e o comprova pelo enfraquecimento da vista nos que abusam da cópula; Demócrito considera que seja uma substância extraída de tudo o que entra na composição do corpo; Epicuro, que essa substância se extrai da alma e do corpo; Aristóteles, que é uma secreção proveniente do sangue e a última a expandir-se pelos membros; outros veem nessa secreção sangue cozido e justificam sua opinião com o fato de por vezes aparecerem gotas de sangue no pênis quando há por demais esforço em suas funções, e é a hipótese mais plausível, se algo pode ser plausível nessa infinidade confusa de opiniões. E quantas ideias diferentes acerca da maneira por que atua esse sêmen! Aristóteles e Demócrito acham que a mulher não segrega esperma, mas tão somente um suor resultante do calor que desenvolve nela o prazer, suor que não teria aliás nenhum papel na fecundação. Ao contrário, Caleno e seus discípulos pensam que essa fecundação só se efetua quando o que provém do homem se mistura ao que vem da mulher. Finalmente, qual o tempo da gestação? Nesta questão os médicos, os filósofos, os jurisconsultos e os teólogos voltam-se para a mulher. No que me concerne, posso apoiar os que sustentam durar a gravidez onze meses. Assim, em tais divergências assenta o mundo! Eis assuntos a cujo respeito qualquer mulherzinha daria um palpite e no entanto são objeto de contestações infindáveis! Basta isso para mostrar que o homem sabe tão pouco de seu corpo quanto de sua alma. Submetemo-lo a seu próprio julgamento, para ver onde o conduziria sua razão. Parece-me que provamos suficientemente a que ponto entende pouco de si mesmo. E quem não entende de si, de que há de entender? "Como se quem ignora a própria medida pudesse sequer medir alguma coisa". Na verdade, Protágoras mostrava-se fantasista ao escolher o homem para medida de todas as coisas, o homem que jamais conheceu sua própria medida. Por outro lado sua dignidade não permite que outorgue tal vantagem a outra criatura. Como está em contradição permanente consigo mesmo, e suas apreciações se destroem mutuamente, propô-lo como medida não pode passar de brincadeira, porquanto nos levaria necessariamente a concluir pela incapacidade do compasso e de quem o manuseia. Tales, achando que o conhecimento do homem pelo homem é muito difícil, mostra ser-lhe impossível o conhecimento de qualquer outra coisa. Dei-me ao trabalho de, contra meus hábitos, estender-me a esse respeito por vossa causa, mas vós não deveis deixar de defender as proposições de Sebond com a argumentação habitual e que se encontram nas instruções que cotidianamente recebeis. Isso exercitará vosso espírito e vos parecerá um objeto interessante de estudo. Quanto ao método de discussão que venho empregando, cumpre só recorrer a ele em última instância; é em caso de desespero que largamos nossas próprias armas para usar as do adversário; é golpe secreto que cabe utilizar raramente e com discrição. Perder-se para levar alguém à perdição é coisa temerária, não se deve querer morrer a fim de assegurar uma vingança, como fez Cobrias: em luta corpo a corpo com um nobre persa, ao ver Dario acorrer de espada em punho, gritou-lhe que desfechasse o golpe embora os matasse a ambos. Vi considerarem iníquos duelos cujas condições e armas empregadas levavam necessariamente a um resultado fatal e à morte de ambos os adversários. Os portugueses haviam aprisionado vários turcos no mar das Índias; estes, ansiosos por se libertarem, resolveram incendiar os navios, destruindo com o mesmo seus senhores e eles próprios, e o fizeram com dois pregos esfregando-os um no outro até que a faísca atingisse um barril de pólvora. Alcançamos assim os limites da ciência. Como a virtude, ela falha nesses pontos extremos. Ficai no caminho habitual, não vos convêm tanta sutileza e finura. Lembrai-vos a propósito do provérbio: "quem sutiliza demasiado, pulveriza-se". Aconselho-vos moderação e reserva nas opiniões que emitis, e nos raciocínios tanto quanto nos costumes, evitai a novidade e a originalidade; tudo o que é extravagante, irrita-me. Vós que, pela autoridade de vossa condição social e, mais ainda, pelas vantagens que vos outorgam vossas qualidades pessoais, podeis mandar em quem vos compraz, fora preferível que houvésseis confiado a tarefa por mim cumprida a alguém que fizesse da literatura sua ocupação normal. Ele vos teria, muito melhor do que eu, informado e documentado a respeito. Contudo já se me afigura suficiente, para o vosso fim, o que se fez. Epicuro dizia, das leis, que mesmo as piores nos são tão necessárias que sem elas os homens se devorariam entre si. E Platão confirma que sem leis viveríamos como bichos. Nosso espírito é um instrumento descontrolado, perigoso e temerário: é difícil usa-lo com ordem e medida. Não vemos em nossa época, os que são superiores aos outros, ou possuem alguma vivacidade excepcional, desmandarem-se em licenças nas suas opiniões e em seus atos? Só por milagre se encontra alguém moderado e sociável. É justo oporem-se ao espírito humano as barreiras mais estreitas possíveis; nos estudos a que ele se entrega, como no resto, cumpre regular-lhe o passo. É preciso delimitar-lhe com arte o terreno da caça. Freiam-no, amarram-no, com a religião, as leis, os costumes, a ciência, os preceitos, os castigos, e as recompensas passageiras e eternas; escapa, assim mesmo, a todos os obstáculos pela facilidade que tem de se mover e iludir. E um corpo sem consistência que não podemos segurar, reter; um corpo de múltiplas formas mal definidas e que não apresenta por onde se pegar. Há por certo bem poucas almas, tão disciplinadas e fortes, e nobres, em cuja conduta possamos confiar e que, entregues a seu próprio juízo, sejam capazes de navegar com prudência, sem temeridades, fora das ideias comumente aceitas; é mais garantido tutelá-las. E o espírito perigosa adaga, mesmo para quem o possui, se dele não se utiliza com oportunidade e prudência; não há animal que melhor justifique a necessidade de tapa-olhos, para que veja por onde caminha e não saia da trilha que os usos e as leis traçaram. Por isso, o que quer que se alegue, será sempre preferível seguir a estrada batida a lançar-se nessas discussões que acarretam graves licenças. Se, no entanto, algum desses novos doutores empreendesse brilhar a expensas de vossa salvação e da dele, para vos desfazerdes dessa perigosa peste que hoje tudo contagia na Corte, os argumentos que vos apresento poderão servir de paliativo, impedindo que o veneno vos atinja, a vós e aos vossos. A liberdade e a ousadia de que se valiam os antigos nas obras do espírito fizeram que, naturalmente, várias seitas se constituíssem na filosofia e em todos os ramos da ciência humana, cada qual se outorgando o direito de julgar e escolher. Mas agora que todos seguem igual caminho, "presos a certos dogmas de que não podem livrar-se, todos são obrigados a defender-lhes as consequências, ainda que os não aprovem": agora que as questões relativas às artes- são reguladas por ordenações, a ponto de se submeterem as escolas todas a um só orientador, e que tais instituições estão sujeitas a determinada disciplina, não se olha mais o que vale e pesa a moeda, mas tão somente se está em circulação. Não se discute se é falsa ou não, mas apenas se a aceitam. E assim ocorre com tudo. O ensino da medicina não se discute mais do que o da geometria; nem tampouco se discutem as mágicas dos prestidigitadores, o comércio com as almas dos mortos, as práticas da astrologia, e até essa ridícula procura da pedra filosofal; tudo se admite hoje sem oposição. Basta-nos saber que Marte se localiza no triângulo formado pelas linhas da mão, Vênus, no polegar e Mercúrio, no mindinho: se a linha do destino se prolonga até a protuberância do indicador, é sinal de crueldade; se para no pai de todos e a linha da cabeça faz com a da vida um ângulo à mesma altura, é sinal de morte violenta; se na mulher essa linha da cabeça não cruza a linha da vida, tem-se um indício de sua inclinação para os prazeres da carne. Com tal ciência, tomo-vos como testemunha, um homem não pode deixar de adquirir reputação e ser favoravelmente recebido na sociedade. Dizia Teofrasto que o saber do homem guiado pelos sentidos podia até certo ponto discernir as causas das coisas; mas que se remontasse às causas primeiras e essenciais devia parar, em virtude de sua fraqueza e das dificuldades com que depararia. É mais agradável a opinião intermediária segundo a qual nosso saber pode levar-nos ao conhecimento de certas coisas, mas nossa perspicácia tem limites além dos quais é-lhe temerário aventurar-se. É uma maneira de ver plausível e proposta por gente sensata. Mas não é fácil assinar limites a nosso espírito; ele é curioso e ávido, e considera não dever deter-se a cinquenta passos em lugar de mil, porquanto a experiência lhe mostrou que se um se malogra outro vence; que o que era desconhecido em dado século, conhecido se tornou no século seguinte; que as artes e as ciências não se moldam de uma só vez, mas se constituem aos poucos e tomam forma em sendo sem cessar manuseadas e polidas; assim o filhote do urso se forma em sendo sem cessar lambido pela ursa. Não deixo de sondar e verificar o que minha capacidade não consegue descobrir; e, em amassando essa matéria nova, virando-a e aquecendo-a, dou a quem vem depois certa facilidade em tirar dela partido, fazendo-a mais flexível e manuseável: "assim a cera do Himeto que amolece ao sol e, amassada pelo polegar, toma mil formas e torna-se mais manuseável pelo uso". O mesmo fará o segundo para o terceiro, e disso resulta que não devo desesperar de minha incapacidade, a qual é somente minha. O homem é capaz de tudo e de nada. Se confessa, como Teofrasto, sua ignorância das causas primeiras e dos princípios, que renuncie à ciência, pois, em lhe faltando a base, seu raciocínio ruirá por terra. Discutir e investigar não têm outro objetivo senão os princípios; se não os atinge, tudo redunda em incerteza: Uma coisa não pode ser mais compreendida do que outra, porque a compreensão é uma só para todas. Se a alma tivesse conhecimento de alguma coisa, é provável que seria primeiramente dela mesma; se conhecesse algo exterior a ela, seria antes de tudo seu corpo, seu estojo; e, no entanto, até agora os deuses da medicina ainda lhe discutem a anatomia: "se Vulcano era contra Tróia, Tróia tinha a seu favor Apolo". Até quando deveremos esperar que se ponham de acordo! Estamos mais próximos de nós que a brancura da neve ou o peso da pedra; se o homem não se conhece a si mesmo, como pode conhecer sua força e por que se encontra na terra? É por acaso que temos alguma noção da verdade, e como é igualmente por acaso que o erro penetra nossa alma, não somos capazes de distinguir o certo do errado, nem escolher entre um e outro. Eram os acadêmicos mais prudentes em seu juízo acerca de nossa ignorância. Achavam demasiado categórico dizer "que não é mais provável ser a neve branca do que preta", nem que não tivéssemos mais certeza do movimento de uma pedra que atiramos do que da oitava esfera. Para obviar a essa dificuldade, que não pode realmente alojar-se em nossa imaginação, embora estabelecessem que éramos absolutamente incapazes de saber o que quer que seja, e que a verdade se enterra nos mais profundos abismos, onde a vista humana não penetra, reconheciam que algumas coisas podem apresentar maior aparência de verdade do que outras; por isso admitiam que houvesse preferência, mas não solução. Os pirrônicos eram mais ousados em sua opinião e ao mesmo tempo pareciam mais próximos da verdade; pois que significa essa propensão dos acadêmicos a preferir uma proposição a outra, senão que há aparência maior de verdade numa mais do que na outra? Ora, se nosso espírito é capaz de perceber a forma, os traços, a estatura da verdade, pode vê-la inteira tanto quanto pela metade, em embrião e imperfeita. Essa aparência de verdade, que nos induz a tomar antes pela direita do que pela esquerda, ampliemo-la; essa onça de probabilidade que já fez inclinar a balança, multipliquemo-la por cem ou mil, e a balança desequilibrar-se-á definitivamente e nossa escolha se fará porque a verdade há de aparecer em seu todo. Mas como podem admitir a verossimilhança se ignoram o que seja a verdade? Como saber se uma coisa se assemelha a outra cuja essência desconhecemos? Ou podemos emitir um juízo preciso ou não o podemos absolutamente. Se falta a base de nossas faculdades intelectuais e suscetíveis de sentir, se elas não assentam em nada, se flutuam ao sabor dos ventos, nosso juízo não nos conduzirá a coisa alguma, quaisquer que sejam o objeto e as aparências. O mais certo e seguro seria que nosso entendimento se mantivesse sereno e inflexível: "entre as aparências verdadeiras ou falsas, nada determina o assentimento da alma". Que as coisas não se alojam em nós com sua forma e sua essência, impondo-se por si mesmas e com sua autoridade, bem o sabemos; pois se assim fosse tudo produziria em todos a mesma impressão; o vinho teria o mesmo gosto na boca de um doente e de um homem são, quem tivesse os dedos adormecidos pelo frio acharia o ferro que maneja tão duro quanto quem não os tivesse. As coisas exteriores a nós alojam-se pois em nós como nos compraz recebê-las. Por outro lado, se o que recebemos o aceitássemos sem o alterar; se os meios de que dispõe a humanidade fossem suficientes para apreendermos a verdade sem recorrer a elementos estranhos; em sendo esses meios conhecidos de todos, a verdade transmitir-se-ia de mão em mão, de uns a outros, e aconteceria que, em tão grande número, uma coisa houvesse ao menos em que, por consenso universal, todos acreditassem. Ora, o fato de não haver proposição que não seja discutida e controvertida ou não o possa ser, mostra muito bem que, abandonado a si mesmo, nosso julgamento não apreende claramente o que apreende, porquanto o meu julgamento não consegue que o de meu vizinho o aceite, o que prova nitidamente que o concebo por outros meios que não os decorrentes de uma força de concepção de que a natureza nos houvesse a todos dotado igualmente. Deixemos de lado essa infinita confusão de opiniões, encontradiça entre os próprios filósofos, e essa perpétua e universal discussão acerca do conhecimento que temos das coisas, pois é evidente que os homens, e os mais sábios e sinceros, e os mais capazes, não estão de acordo acerca de nada, nem mesmo em que o céu se encontra acima de nossas cabeças, porquanto os que duvidam de tudo duvidam disto também. E os que negam possamos compreender o que quer que seja, negam que compreendamos estar o céu nessa posição. E essas duas opiniões, consistindo uma em duvidar e outra em negar, são as mais fortes. Além dessa inumerável diversidade de opiniões, é fácil verificar, pela confusão em que nos joga e a incerteza que todos sentem, que nosso julgamento não tem fundamento sólido. Quantas vezes julgamos diversamente as coisas? Quantas vezes mudamos de ideias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível; todas as nossas faculdades, todos os nossos órgãos se apossam dessa opinião e por ela respondem quanto podem; não poderia aceitar outra verdade nem a conservar com maior convicção; a ela dei-me por inteiro. Mas não me aconteceu, e não uma vez porém cem ou mil, e diariamente, ter aceito do mesmo modo alguma coisa que posteriormente considerei falsa? Que ao menos nos tornemos sensatos a expensas nossas! Se tantas vezes fui traído por meu julgamento, se essa pedra de toque é em geral defeituosa, se a balança está mal regulada, que garantia a mais posso ter desta vez? Não será tolice deixar-me enganar por semelhante guia? E no entanto, ainda que o destino nos leve a mudar quinhentas vezes de ideia, a última, a atual será a verdadeira, a infalível. Por esta sacrificaremos nossos bens, a honra, a vida, a salvação: "a última nos desgosta da primeira e a desacredita em nosso espírito". O que quer que nos preguem, o que quer que aprendamos, é sempre preciso lembrar que o homem o dá e o homem o recebe; a mão de um mortal oferece e a mão de um mortal aceita. Só as coisas que vêm do céu têm direito de persuasão e a indispensável autoridade; só elas trazem a marca da verdade, mas nossos olhos não as distinguem se não as obtemos por nossos próprios meios. Essa santa e grande imagem não elegeria domicílio em tão miserável barraca, se Deus por especial favor não a houvesse preparado para isso, não a houvesse transformado e fortificado com Sua graça. Nossa condição, tão sujeita a desfalecimento, deveria inspirar-nos mais moderação e discrição em nossas variações; deveríamos lembrar que, quaisquer que sejam as impressões de nossa inteligência, muitas vezes são coisas falsas e que as percebemos com esses mesmos instrumentos que amiúde se enganam. E não há como estranhar que se enganem, pois as menores ocorrências os falseiam e embotam. É certo que nossa compreensão, nosso julgamento e as faculdades de nossa alma sofrem de conformidade com o corpo e suas contínuas alterações. Não temos o espírito mais atilado, a memória mais viva, o raciocínio mais rápido, quando a saúde é boa? A alegria não nos predispõe a aceitar as impressões de maneira diferente da tristeza? Crede que os versos de Catulo ou de Safo agradem a um velho avarento e rabugento tanto quanto a um jovem vigoroso e entusiasta? Cleômenes, filho de Anaxandridas, estava doente. Seus amigos censuravam-lhe a disposição de espírito e as ideias novas, que não lhe eram habituais. "Naturalmente", respondeu-lhes, "pois não estou como quando me sinto bem; e, estando diferente, diferentes são minhas opiniões e ideias." A gente da chicana, no tribunal, diz comumente, falando de um criminoso que se apresenta a um juiz bem-humorado: "que aproveite a sorte". É certo que as sentenças são por vezes mais severas e rigorosas e por vezes menos duras, atendendo a circunstâncias atenuantes. E não há dúvida de que o julgamento de quem as profere e sofre da gota, ou anda ciumento, ou acaba de ser roubado, se ressente da disposição de espírito do juiz. O Areópago, venerável senado, julgava à noite de medo que a presença das partes influenciasse a justiça. O próprio estado da atmosfera e a serenidade do céu fazem que varie o nosso julgamento, o que constata este verso grego, citado por Cícero: "o estado de espírito dos homens, de dor ou de alegria, varia cada dia que Júpiter lhes dá". Não são apenas as febres, a bebida, os acidentes graves que nos abalam o juízo; as coisas mais insignificantes o perturbam; e não se deve estranhar, embora não o percebamos, que, se a febre contínua nos enfraquece a alma, altera-a também a febre intermitente, guardadas as proporções; se a apoplexia apaga totalmente a luz de nossa inteligência, um defluxo incontestavelmente a transforma. Por conseguinte, mal se depara uma hora na vida em que nosso juízo é normal. A tal ponto está nosso corpo sujeito a constantes mudanças, e é movido por tantas molas, que na opinião dos médicos muito dificilmente ocorre não haver nenhuma em mau estado. E, para cúmulo, a menos que esteja no apogeu e já sem cura, não é fácil descobrir essa doença que oblitera nosso julgamento, tanto mais quanto a razão, sempre tão falha e manca, se acomoda à mentira como à verdade; o que faz que seja difícil saber quando se desregula e quando podemos confiar nela. Dou esse nome de razão a essa aparência de juízo que cada um forja em si mesmo e que a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciações diversas e contraditórias, instrumento feito de chumbo e cera, que se estica e dobra e se ajeita a todas as circunstâncias, a todos os compromissos, e que um pouco de habilidade basta para levar a amoldar-se a quaisquer moldes. Por melhor que seja sua intenção, se não se examinar de perto, o que pouca gente faz, um juiz pode ser solicitado pela benevolência (para com um amigo ou parente) tanto quanto pela ideia de vingança. Sem ir tão longe, uma simples tendência instintiva o impele a uma predileção, ao escolher, sem razão, entre dois objetos idênticos; um imperceptível impulso qualquer pode atuar sobre seu julgamento e o predispor favorável ou desfavoravelmente a dada causa, forçando a balança a pender para um lado ou outro. Eu que me analiso, a fundo, e tenho os olhos sempre voltados para mim mesmo, como quem não tem muito que fazer alhures, "que não me preocupo em absoluto com saber que rei tudo abalou algures ou com que se alarma Tiridates", mal ouso dizer as falhas e fraquezas que percebo em mim. Tenho o pé tão pouco seguro, fraqueja tão facilmente, titubeia tão sem motivo, e minha vista é tão desregulada, que em jejum me sinto melhor do que depois de comer; se estou satisfeito com minha saúde, se faz bom tempo, eis-me um homem amável; se um calo me dói, fico aborrecido, desagradável, inabordável; um cavalo cujo andar não varia parece-me ora duro ora suave; o mesmo caminho parece-me curto por vezes e por vezes longo; segundo a hora, a forma de um objeto ser-me-á agradável ou não; quero e não quero empreender alguma coisa e o que me apetece agora, contraria-me depois. Mil agitações inoportunas e acidentais verificam-se em mim; ou sou tomado de melancolia ou de cólera; em outro momento é a tristeza que me envolve, mas logo a seguir a alegria vence. Quando pego um livro, certos trechos que considero excelentes me impressionam e encantam; de outras feitas folheio esse mesmo livro e procuro em vão algo que me deleite, tudo se me afigura informe. Nos meus próprios escritos nem sempre redescubro o meu pensamento, não sei mais o que desejei exprimir e não raro me esforço por corrigi-lo, modifica-lo, pois o significado primeiro, por certo mais interessante, me escapa. Não faço senão ir e vir. Meu julgamento não segue uma linha reta, flutua ao léu: "como um frágil barco surpreendido em alto-mar por um vento furioso". Muitas vezes, o que faço de bom grado como exercício defendendo uma tese contrária à minha opinião, absorvo-me a tal ponto na tarefa, que não mais percebo as razões de minha verdadeira ideia e a abandono. Empurro-me, por assim dizer, para o lado de minhas tendências. E deixo-me levar por elas. Todos poderiam dizer o mesmo, se se estudassem como eu. Os que falam em público sabem muito bem que a emoção os induz a acreditarem no que afirmam. Quando estamos com raiva, aplicamo-nos melhor na defesa de nossa ideia; encarnamo-la em nós, abraçamo-la com veemência e a consideramos mais justa do que quando estamos calmos e de sangue frio. Expomos uma questão a um advogado; sentimo-lo hesitante e sem convicção: é-lhe indiferente defender esta ou aquela causa. Se o pagamos bem para se colocar do nosso lado, começa a interessar-se. E se sua vontade se aquece, eis que se aquecem ao mesmo tempo sua razão e seu saber e a verdade aparente deixa de lhe inspirar a menor dúvida. Persuade-se de que assim é, e o crê. Não sei mesmo se o ardor que nasce do despeito e da obstinação que experimentamos ante a opinião e a violência do magistrado, a excitação causada pela ameaça do perigo, ou ainda o desejo de ganhar prestígio, não terão levado certo personagem (que poderia apontar) a subir à fogueira para sustentar sua opinião, pela qual, em liberdade e no meio de seus amigos, não se expusera a queimar um dedo. Os abalos e golpes que atingem nossa alma por causa das paixões do corpo, atuam fortemente sobre ela. Maiores ainda são os que lhe provêm de suas próprias paixões, as quais tanto a instigam que quase poderíamos afirmar que, sem elas, permaneceria inerte, como um navio em pleno mar quando o vento o não assiste. Quem, a exemplo dos peripatéticos, defendesse essa tese, não nos traria prejuízos, pois é sabido que em sua maioria as belas ações da alma procedem de nossas paixões e precisam de seu impulso. Não sustentamos que a valentia se manifesta melhor sob a influência da cólera? "Ajax foi sempre bravo, e mais bravo ainda em seu furor". Não é quando nos zangamos que melhor perseguimos o malfeitor ou inimigo? E há quem pense que os advogados provoquem a cólera dos juízes tão somente para obter ganho de causa. O desejo imoderado das grandes coisas, meta de Temístocles e de Demóstenes, foi o que induziu os filósofos a trabalhar, viajar por países longínquos, e é o que nos conduz à honra, ao saber, à saúde, a tudo o que é útil. A covardia da alma, que faz que suportemos o tédio e o desprazer, dá à nossa consciência a possibilidade de se arrepender, de se resignar ante os flagelos que Deus nos envia para nos punir e ante os que resultam de uma administração corrupta. A compaixão predispõe à clemência; a prudência de que nos valemos para atender à nossa conservação e nos dirigir, é despertada em nós pelo temor. E quantas belas ações se devem à ambição! Quantas à alta opinião que temos de nós mesmos! Em suma, não há virtude mais ou menos elevada e admirável sem alguma agitação desordenada da alma. Não seria essa uma das razões pelas quais os epicuristas isentaram Deus de quaisquer cuidados com os nossos negócios humanos? Tanto mais quanto os efeitos de sua bondade não podem exercer-se sobre nós sem que perturbem o repouso de nossa alma com a movimentação de nossas paixões, as quais são como picadas estimulantes que a incitam aos atos virtuosos. Ou terão esses filósofos pensado de outro modo e considerado as paixões como tempestades que, uma vez desencadeadas, desviam orgulhosamente a alma de sua quietude? "Assim como entendemos por mar calmo a ausência do menor vento sobre suas ondas, também consideramos que a alma está serena quando nenhuma paixão a comove." Que diferenças de sentido e razão apresentam nossas paixões em sua diversidade e quantas ideias dessemelhantes disso resultam? Que segurança nos oferece uma coisa tão instável, tão imóvel, sobre a qual a confusão reina, que só se movimenta por imposição alheia? Se nosso julgamento depende até da enfermidade, e das perturbações que experimentamos; se é preciso que seja presa da loucura para receber a impressão das coisas, como poderemos confiar nele? Parece-me demasiado temerário assegurar a filosofia que os homens não produzem suas maiores obras, as que mais os aproximam da divindade, senão quando fora de si, e furiosos. Assim nos aperfeiçoamos pela privação da razão, ou seu embotamento! Os caminhos naturais que levam ao gabinete dos deuses são pois a loucura e o sono! Linda constatação! É pela desordem das paixões que nos tornamos virtuosos, pelo seu aniquilamento na loucura ou no sono que nos transformamos em profetas e adivinhos! Nunca estive tão inclinado a acreditá-lo. Cedendo à inspiração irresistível da verdade santa, o espírito filosófico vê-se forçado a reconhecer, contra o que sustentava, que a tranquilidade, a calma, a saúde que se esforça por dar à alma, não constituem para ela seu melhor estado. Acordados, estamos mais adormecidos do que se dormíssemos; nossa sabedoria é menos sábia do que a loucura; nossos sonhos valem mais do que nossos raciocínios: o pior lugar que podemos ocupar está em nós mesmos. Mas não pensa a filosofia, por outro lado, que podemos imaginar que a voz que torna o espírito, quando separado do corpo, tão lúcido, grande, perfeito, enquanto mergulha nas trevas quando encarnado, não é a voz que parte do espírito do homem terreno ignorante e privado de luz? Logo, como confiar nela? Como sou mole por temperamento, e pesado, não tenho grande experiência dessas violentas agitações que se apoderam subitamente de nossa alma, sem lhe dar a possibilidade de se reconhecer. Mas essa paixão que dizem ser provoca da pela ociosidade e atinge os jovens, embora se desenvolvendo lentamente, dá bem a ideia, aos que procuraram opor-se a seu progresso, do alcance da mudança e alteração que experimenta o julgamento. Esforcei-me outrora por contê-la e combatê-la em mim, pois não me com prazo nesse vício, e só cedo quando me arrasta. Sentia essa paixão nascer e desenvolver-se, desabrochar-se em mim e me possuir. O efeito produzia-se à maneira da embriaguez: o aspecto das coisas mudava; e via as dificuldades do empreendimento se acertarem e se tornarem fáceis de vencer; minha razão e minha consciência cederam. Em seguida, extinto o fogo, de imediato, com a rapidez do relâmpago, minha alma revelava outros objetivos, modificava-se, meu julgamento mudava; as dificuldades em voltar atrás pareciam aumentar e tornar-se invencíveis; as mesmas coisas tinham outro gosto, e aspecto, diferentes daqueles que sob a influência do desejo antes apresentavam. Qual desses estados é mais verdadeiro? Pirro declara não o saber. Nunca estamos inteiramente isentos de enfermidades. O fogo da febre alterna com o frio dos tremores; dos efeitos de uma ardente paixão, caímos nos de outra excessivamente fria. Quanto mais nos lançamos à frente tanto mais recuamos a seguir: "assim o mar, em seu duplo movimento, ora se precipita em direção da costa, cobre o rochedo de espuma e se expande ao longe pelas praias; ora recua carregando os seixos que trouxera, e foge, deixando a praia descoberta". Conhecendo a instabilidade de meu julgamento, reagi e, excepcionalmente, cheguei a certa continuidade de opinião, conservando mais ou menos intatas as que a princípio tivera. Pois, qualquer que seja a aparência de verdade que pode ter a novidade, não mudo de medo de perder na troca. Incapaz de escolher por mim mesmo, confio na escolha de outrem e atenho-me às condições em que Deus me colocou, sem o que não poderia impedir-me de variar amiúde. Assim é que, com a graça de Deus, conservei inteiras, sem inquietações nem casos, de consciência, as antigas crenças de nossa religião, a despeito de tantas seitas e divisões observadas em nosso século. As obras antigas, refiro-me às boas obras, sérias e de conteúdo, atraem-me e influem grandemente em mim. A que tenho à mão é sempre a que me interessa mais; acho que cada uma por sua vez está com a verdade, mesmo quando as teses são antagônicas. Essa facilidade que possuem os bons autores de tornar verossímil o que apresentam - e não há nada que não se esforcem por pintar com cores suscetíveis de ludibriar uma simplicidade igual à minha - mostra de maneira evidente a fraqueza de suas provas. O céu e as estrelas foram durante três mil anos considerados em movimento. Todos acreditaram, até que Cleantes de Samos ou, segundo Teofrasto, Nicetas de Siracusa, se lembrou de sustentar que a terra é que girava em torno de seu eixo, seguindo o círculo oblíquo do zodíaco; e em nosso tempo Copérnico demonstrou tão bem esse princípio, que dele se vale em seus cálculos astronômicos. Que concluir, senão que não temos que nos preocupar com saber qual dos sistemas é o verdadeiro? Quem sabe se daqui a mil anos outro sistema não os destruirá a ambos? "Assim, o tempo modifica o valor das coisas; o objeto apreciado cai em descrédito, enquanto o desprezado passa a ser apreciado; desejam-no dia a dia mais, é admirado e ocupa o primeiro lugar na opinião dos homens". Temos, portanto, quando se apresenta uma nova doutrina, razões de sobra para desconfiar e lembrar que antes prevalecia a doutrina oposta. Assim como esta foi derrubada pela recente, no futuro uma terceira substituirá provavelmente a segunda. Antes que os princípios de Aristóteles tenham tido crédito, outros existiram que também davam satisfação à razão humana. Que carta de recomendação trazem os últimos? Que privilégio especial lhes garante que as nossas invenções os preservarão eternamente? Não estão mais a salvo de serem rejeitados quanto os outros. Quando me atiram um argumento novo, ponho-me a pensar que o que não pude resolver, outro resolverá e que dar fé a todas as aparências de que não nos podemos defender é grande simplicidade. Isso levaria o comum dos mortais - e nós todos o somos - a ver sua fé girar de todos os lados como um catavento, porquanto a alma maleável e plástica receberia impressões sucessivas, apagando sempre a última os vestígios das precedentes. Quem se considera sem argumentos diante das doutrinas novas, deve responder, como é de uso, que vai consultar seus conselheiros ou reportar-se aos mais sábios dentre os que o educaram. Há quanto tempo existe a medicina? Afirma-se, entretanto, que um inovador chamado Paracelso modifica e destrói as regras antigas e sustenta que até hoje só serviram para matar. Creio que provará facilmente suas afirmações, mas confiar-lhe minha vida para que ateste a superioridade de seus métodos seria grande estupidez. Não se deve confiar em todos, diz a máxima, porque todos são capazes de dizer qualquer coisa que lhes passe pela cabeça. Um homem assim predisposto a inovar e reformar dentro do terreno da física, dizia-me, não faz muito, que os antigos se haviam enganado acerca da natureza e dos efeitos dos ventos, o que me provaria se o quisesse escutar. Depois de ouvi-lo pacientemente desenvolver argumentos muito plausíveis, indaguei: "Como então os que navegavam aplicando os princípios de Teofrasto conseguiam ir para o Ocidente quando os ventos sopravam em direção do Oriente? Iam de lado ou recuando?" "Efeito do acaso", respondeu. "O que é indiscutível é que laboravam em erro." "Pois então", repliquei, "prefiro os efeitos ao raciocínio". Ora, são coisas não raro antagônicas. Afirmaram-me que em geometria (ciência que pretende ter alcançado o mais alto grau de exatidão) há demonstrações incontestáveis que contradizem tudo o que a experiência declara verdadeiro. Assim é que Jacques Peletier me dizia, em casa, haver descoberto duas linhas que embora se dirigissem uma na direção da outra, aproximando-se sem cessar, jamais se encontrariam, nem mesmo no infinito, o que demonstrava. Em tudo empregam os pirrônicos unicamente seus argumentos e seu raciocínio para combater as aparências sob as quais se apresentam, e é maravilhoso ver até onde a sutileza de nossa razão obedece ao desejo de lutar contra a evidência; eles demonstram que não nos mexemos, não falamos, que o peso e o calor não existem; e isso com um vigor de argumentação que nos convence da veracidade das coisas mais inverossímeis. Ptolomeu, que foi personagem de realce, determinara os limites de nosso mundo; os filósofos antigos pensavam nada ignorar a esse respeito acerca do que existia, salvo algumas ilhas longínquas que podiam ter escapado às suas investigações; e, há mil anos, fora agir como os pirrônicos pôr em dúvida o que então ensinava a cosmografia e as opiniões aceitas por todos; referir-se à existência de antípodas era heresia. E eis que neste século se descobre um continente de enorme extensão, não uma: ilha, mas uma região quase igual em superfície às que conhecíamos. Os geógrafos de nosso tempo não deixam de afirmar que agora tudo é conhecido: "pois nos comprazemos com o que temos, o que nos parece superior ao resto". Pergunto então se, visto que Ptolomeu se enganou outrora acerca do que constituía o ponto de partida de seu raciocínio, não seria tolice acreditar hoje resolutamente nas ideias de seus sucessores, e se não é provável que esse grande corpo denominado o "mundo" seja bem diferente do que julgamos? Platão sustenta que sua fisionomia se modifica de todas as maneiras: que o céu, as estrelas, o sol mudam por vezes inteiramente o movimento que os vemos realizar, tornando-se o Oriente, Ocidente. Os sacerdotes do Egito contaram a Heródoto que desde seu primeiro rei, onze mil e tantos anos atrás (e mostravam-lhe efígies e estátuas deles, executadas no tempo em que viviam) a órbita do sol variara quatro vezes; que o mar e a terra se transformam alternativa e reciprocamente; que a criação do mundo é indeterminada, o que também dizem Aristóteles e Cícero. E é também a opinião de um dos nossos sábios, o qual, apoiando-se no testemunho de Salomão e Isaías, apresenta o mundo como tendo sempre existido, sujeito à morte mas renascendo após transformações; o que responde à objeção de que Deus foi em certos momentos um criador em criaturas, que por vezes permaneceu no ócio, deste saindo para retocar Sua obra e estando assim Ele próprio sujeito a mudanças. Na mais famosa escola da Grécia o mundo é considerado um deus, criado por outro deus mais poderoso. Constitui-se de um corpo e de uma alma; esta ocupa o centro de onde se expande para a periferia em obediência às mesmas leis que regulam os acordes musicais; esse mundo tem os apanágios da divindade, é feliz, grande, sábio, eterno; nele se encontram outros deuses: a terra, o mar, os astros, os quais se mantêm em perpétua. e harmônica agitação, espécie de dança divina, ora se encontrando ora se afastando, escondendo-se e se exibindo, mudando a ordem em que perambulam, ora uns à frente dos outros ora atrás. Heráclito considerava o mundo um braseiro incandescente, destinado a inflamar-se e consumir-se um dia, para renascer novamente. Quanto aos homens, diz Apuleio, são mortais como indivíduos e imortais como espécie. Alexandre enviou à sua mãe a narrativa de um sacerdote egípcio, tirada dos monumentos, que testemunhava a antiguidade da nação, a qual se perde no infinito, e relatava a origem autêntica e o desenvolvimento de outros países. Cícero e Diodoro dizem que em seu tempo os caldeus tinham documentos que remontavam a quatrocentos e tantos mil anos. Aristóteles, Plínio e outros, que Zoroastro vivera seis mil anos antes de Platão. Este último afirma que os habitantes de Saís possuem arquivos de oito mil anos e que a construção de Atenas ocorreu mil anos antes da de Saís. Epicuro acha que o que observamos na terra existe igualmente e em idênticas condições em muitos outros mundos. E tal assertiva ele a houvera feito com mais segurança ainda se lhe tivesse sido dado conhecer o novo mundo das Índias Ocidentais, tão semelhante ao nosso de hoje e de outrora. Em verdade, considerando o que sabemos de diversas práticas em curso nesta terra, fiquei muitas vezes maravilhado com ver que em tempos e lugares remotos se encontrem, em número tão grande, opiniões populares e costumes e crenças selvagens tão semelhantes, embora não pareçam ter origem no estado atual de nossa inteligência. O espírito humano realiza realmente grandes milagres, mas essa correlação tem ainda algo mais estranho pela similitude de certos nomes e de mil outras coisas; pois neste mundo novo, veem -se povos que nunca ouviram falar de nós, e entre os quais se pratica a circuncisão. Alguns há cujo governo cabe às mulheres, e entre eles observam-se o jejum e a quaresma, bem como a castidade. Descobriram-se outros que possuíam a cruz como símbolo; outros honram os mortos; outros, ainda, usam a cruz de Santo André como proteção contra as alucinações noturnas e a colocam sobre os leitos das crianças para que as proteja contra feitiços; em certa nação no interior das terras, encontrou-se uma grande cruz de madeira e que era adorada como deus das chuvas. Observaram-se práticas penitenciárias exatamente iguais às nossas, o uso de mitras, o celibato eclesiástico, a arte da adivinhação pelo exame das vísceras dos animais sacrificados, a abstinência em matéria de carnes, e peixes, o emprego pelos sacerdotes de uma língua especial. Observou-se também a existência da ideia de um primeiro deus expulso por seu irmão mais moço, bem como a que os homens foram criados no gozo de todas as comodidades imaginárias, de que depois se viram privados em virtude do pecado; a de que foram expulsos do território que ocupavam, tendo piorado as suas condições; a de que outrora foram submergidos por uma inundação provocada pelas águas do céu e só algumas famílias escaparam subindo ao alto das montanhas e refugiando-se em cavernas com animais de diversas espécies, tapando as entradas para se salvarem. Quando perceberam que as chuvas tinham cessado, fizeram os cães saírem, os quais voltaram limpos e molhados, deduzindo eles que as águas não haviam baixado ainda. Pouco depois soltaram outros que voltaram enlameados; saíram então eles próprios a fim de repovoar o mundo que encontraram cheio de serpentes unicamente. Entre alguns povos existe a crença no juízo final; por isso, sentiam-se profundamente ofendidos quando os espanhóis, escavando os cemitérios, a fim de arrecadar tesouros, dispersavam os ossos dos túmulos, pois esses ossos, espalhados ao acaso, dificilmente se juntariam e se reconstituiriam. O comércio aí se pratica por meio de trocas e existem feiras e mercado com tal objetivo. Anões e indivíduos disformes são empregados no divertimento dos príncipes. A caça com falcões ou pássaros análogos é praticada. Há impostos abusivos. A arte da jardinagem decorativa é conhecida. E conhecidas são as danças, as peloticas, a música instrumental, os brasões, os jogos de bola, de dados e de azar, a que se entregam apaixonadamente, a ponto de jogarem a própria liberdade. A prática da medicina compreende exclusivamente atos de magia e encantamento. A escritura compõe-se de hieróglifos. Encontra-se a crença em um Deus que desceu à terra e viveu na castidade, jejuando e fazendo penitência, pregando a lei natural e a observância do culto, e que desapareceu sem ser atingido pela morte que a todos atinge. Acreditam em gigantes. Usam bebidas suscetíveis de provocar a embriaguez e bebem até o estado de inconsciência. Dispõem de ornatos religiosos com imagens de caveiras e ossos, de água benta, de mantos e fazem aspersões. Mulheres e servidores disputam a honra de morrer com o marido ou senhor. O primogênito herda tudo o que possui o pai; os outros nada percebem e devem obedecer. É costume que os que se designam para o desempenho de tais ou quais cargos mudem de nome. Aspergem as crianças recém-nascidas com um pouco de cal, dizendo: vens do pó, ao pó voltarás. Praticam a arte dos augúrios. Esses vagos simulacros de nossa religião, que se observam em certos exemplos, bem demonstram sua dignidade e divindade. Não somente penetrou as nações infiéis de nosso hemisfério que a imitaram em parte, mas ainda os bárbaros, como por inspiração sobrenatural que a leva a espalhar-se pelo mundo inteiro. Encontra-se até a noção de purgatório, mas sob outra forma: o que entregamos ao fogo, aí se entrega ao gelo e esses povos imaginam que as almas são punidas e purificadas com o sofrimento do frio. Isso me recorda outra divergência nas ideias, assaz divertida: enquanto certas tribos apreciam a circuncisão como os maometanos e judeus, outras, ao contrário, com a ajuda de cordões fixados à pele, esticam o prepúcio até que cubra a extremidade do pênis como se temessem o contato do ar. Outra divergência se nota nos festejos e homenagens aos reis. Em tais circunstâncias, enfeitamo-nos com nossas vestimentas mais nobres. Pois em alguns países, a fim de evidenciarem a superioridade do soberano e sua própria submissão, seus súditos apresentam-se vestidos de miseráveis trapos, e ao entrar no palácio cobrem suas roupas com um manto rasgado, ressaltando assim a personalidade do senhor, resplendente entre os demais. Mas continuemos. Se a natureza encerra, como o faz com todas as coisas, dentro de suas regras naturais, as crenças, os juízos, as opiniões dos homens; se suas evoluções são determinadas, se têm seu momento, se nascem e morrem como os repolhos; se o céu os agita e varre à vontade, que autoridade segura e permanente lhes atribuiremos? A experiência prova-nos que a nossa organização decorre do ar, do clima, do lugar de nascimento; que não somente a nossa tez, a nossa estatura, a nossa compleição, nossos meios físicos disso dependem mas ainda as faculdades de nossa alma; "o clima não contribui apenas para o vigor do corpo, porém igualmente para o do espírito", diz Vegécio, e por isso escolheu a deusa que fundou Atenas um clima em que os homens se tornam mais sábios, como o ensinaram a Sólon os sacerdotes egípcios: "o ar de Atenas é leve, o que dá aos atenienses mais finura; o de Tebas é pesado, por isso têm os seus habitantes mais vigoroso o espírito". Por conseguinte, assim como os animais apresentam diferenças desde o nascimento, os homens nascem mais ou menos belicosos, justos, temperantes, dóceis; aqui amam o vinho, alhures o roubo e a libertinagem; aqui propendem para a superstição; alhures para a incredulidade; aqui apreciam a liberdade, alhures a servidão; são sábios ou artistas, grosseiros ou espirituosos, obedientes ou rebeldes, bons ou maus segundo a influência do lugar onde vivem. Se os transplantam, suas tendências modificam-se como ocorre com as árvores. Por esse motivo Ciro não autorizou os persas a abandonarem seu país duro e montanhoso a fim de emigrar para outro suave e plano, dizendo que as terras fecundas e fáceis engendram homens sem energia, espíritos estéreis. Quando vemos sob alguma influência celeste florescer uma determinada arte, uma crença substituir-se a outra, tal século produzir tais temperamentos e predispor a humanidade a tomar tal ou qual partido, o espírito humano mostrar-se ora vigoroso ora estiolado como se observa com as terras de cultura, onde as prerrogativas de que nos jactamos? Se um sábio pode ter desilusões, cem homens e nações inteiras o podem também, e, em verdade, a meu ver, o gênero humano inteiro se engana há séculos acerca disto ou daquilo. Que certeza podemos alimentar de que por vezes cesse de se enganar e que no século atual não esteja laborando em erro? Entre outros testemunhos da fraqueza de nosso espírito um não deve ser omitido: mesmo quanto ao que deseja, o homem não sabe escolher. Não é apenas quando estamos de posse de alguma coisa que não sabemos o que nos satisfaz; é também quando nossa imaginação trabalha sozinha e que nos basta desejar. Deixemo-la cortar e costurar à vontade, não chegará sequer a designar o que ambiciona: "sabe a razão o que deve temer ou desejar? Quando, jamais, concebeu algo de que não se arrependesse mais tarde, mesmo se os fatos atendem ao que esperava? Isso fazia Sócrates pedir somente aos deuses o que eles sabiam ser-lhe útil. E a prece dos lacedemônios, pública ou privada, visava simplesmente obter o bom e o belo que bem entendessem os deuses. "Pedimos uma esposa e queremos filhos; mas só Deus sabe como devem ser esses filhos e essa esposa”. Nas suas súplicas, diz o cristão a Deus: "seja feita a vossa vontade", e assim evita a desventura que os poetas atribuem a Midas. Este pedira aos deuses que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. Deus quis, e seu vinho virou ouro, e seu pão foi de ouro, até as penas de seu leito e sua camisa, e suas vestes, e ele se acabrunhou com a satisfação dada a seu desejo; pois o presente era insuportável. Foi-lhe necessário suplicar novamente a fim de que cessassem os efeitos de sua solicitação atendida: "espantado com mal tão inesperado, rico e indigente a um tempo, quisera fugir às suas riquezas e se horrorizava com o objeto de suas súplicas". Eu mesmo, na mocidade, pedi ao destino, entre outros favores, a Ordem de São Miguel; era então a mais insigne condecoração da nobreza francesa e muito raramente concedida. Deu-ma o destino, mas em condições divertidas; em vez de fazer com que me elevasse para obtê-la, trouxe-a a mim e mesmo mais baixo. Cléobis e Bíton, Trofônio e Agamedes, tendo pedido, os primeiros a sua deusa e os outros a seu deus, uma recompensa digna de sua devoção, receberam como presente a morte. Eis como o que pensam as potências divinas de nossa felicidade, difere muito do que imaginamos! Deus poderia outorgar-nos riqueza, honrarias, vida e até saúde, e isso nos ser por vezes prejudicial, pois o que nos agrada nem sempre nos é salutar. Se em vez de nos curar, envia-nos a morte ou uma agravação de nossos males: "tua vara e teu bastão consolaram-me", assim o faz porque é o que em sua sabedoria lhe dita sua providência, a qual sabe exatamente o que nos falta. E nós não o podemos saber. E o devemos ter em muito boa conta, vindo de mão tão sábia e bondosa: "se queres um bom conselho, deixa aos deuses o cuidado do que te convém e te é útil; querem mais ao homem do que este a si mesmo". Pedir-lhes honrarias, cargos, é pedir-lhes que nos joguem na batalha ou em uma partida de dados ou em qualquer outra coisa cujo resultado desconhecemos e seja duvidoso. Não há assunto que provoque controvérsias mais violentas entre os filósofos do que o soberano bem. Em que consiste? Varro afirma que duzentas e oitenta e oito seitas nasceram dessa questão. "Ora, desde que não concordemos acerca do soberano bem, nossas opiniões divergirão a respeito de toda a filosofia." Parece-me ver três convivas de gostos diferentes; que lhes dar? Que não lhes dar? Privas um do que ele aprecia e o que ofereces aos dois outros lhes desagrada. Eis a resposta que a natureza deveria dar a suas discussões. Uns acham que nosso bem soberano está na virtude; outros na volúpia; outros que ele consiste em deixar que a natureza opere; outros o encontram na ciência; outros na ausência de sofrimento; outros em não se deixar levar pelas aparências. A esta última maneira de ver, lia-se aquela do tempo de Pitágoras: nada admirar. Numício, é quase o único meio de assegurar a felicidade, objetivo visado pela seita de Pirro. Aristóteles qualifica de magnitude nada admirar; e Arcesilau dizia que o bem consiste em ter um julgamento reto e inflexível, junto a tudo o que contribui para assim o manter. E que o vício e o mal resultam das concessões e aplicações que lhes determinamos. É verdade que, apresentando essas proposições como isentas de dúvida, Arcesilau fugia ao procedimento habitual dos pirrônicos. Quando estes dizem que o soberano bem é a ataraxia, isto é, a calma perfeita, a imobilidade do julgamento, não o querem afirmar de maneira absoluta. O mesmo estado de espírito que os impele a evitar um precipício, preservar-se do frio da noite, leva-os a emitir essa ideia e rechaçar outra; a afirmação carece para eles de consequência. Como eu desejaria que, enquanto vivo, alguém, Justo Lípsio, por exemplo, o homem mais sábio que possuímos, culto, judicioso, primo-irmão, desse ponto de vista, de meu Tournebus, tivesse vontade, saúde e lazeres para coligir e classificar, por categorias, com toda a sinceridade, as opiniões dos filósofos antigos acerca de nosso ser e nossos costumes, bem como as controvérsias de que foram objeto, o crédito de que gozaram. E também como seus autores aplicaram tão memoráveis e edificantes preceitos em sua vida. Seria uma obra bela e útil! A que confusão chegaríamos se buscássemos em nós mesmos uma orientação para a nossa conduta! O que a razão aconselha, e com aparência de verdade, é que cada qual observe as leis de seu país. É a opinião de Sócrates, inspirada, diz ele, pela divindade. E que quer esta dizer com isso, senão que nosso dever se subordina ao acaso? Se o homem conhecesse a justiça e o certo, se tivesse em mira tipos reais, se os pudesse representar em sua essência, não os faria consistir na obediência a tais ou quais costumes; não seria na fantasia dos persas ou indianos que se consubstanciariam. Nada mais do que as leis está sujeito a variações contínuas. Desde que nasci, vi mudarem três ou quatro vezes as dos ingleses, e não somente quanto à política interna, que se admite não ser fixa, mas também com referência ao ponto mais importante de todos: a religião. Sinto-me envergonhado e despeitado, porquanto nossa religião já teve ligações com esse país e em minha família ainda sobram vestígios de antigo parentesco com esse povo. Em nossa província, aqui mesmo, vi atos que constituíam crimes passíveis de pena de morte tornarem-se legais. E atualmente, obedientes a um partido, estamos expostos, segundo os azares da guerra, a nos tornarmos um dia criminosos de lesa-humanidade e divindade. Pois se o partido adverso triunfasse, as ideias contrárias prevaleceriam e nossa justiça passaria a ser injustiça. Não podia aquele deus da antiguidade mais claramente mostrar a que ponto o homem ignora o ser divino, e ensinar-lhe que sua religião era produto da imaginação, útil apenas à consolidação da sociedade, quando declarava aos que o consultavam "que o verdadeiro culto consiste em que cada qual obedeça aos usos e costumes locais". Quanto devemos ser gratos à bondade de nosso soberano Criador por nos haver esclarecido acerca da tolice de nossa fé em tais cultos e por ter feito que nossa crença assente hoje no alicerce de Sua palavra sagrada! Neste ponto capital a filosofia diz-nos que sigamos as "leis de nosso país", isto é, esse mar agitado das opiniões de um povo ou de um príncipe que pintam a justiça com tão variegadas cores e a transformam segundo suas paixões. Meu juízo não tem flexibilidade bastante para aceitar tal solução. Em que consiste esse bem que amanhã já o não será e que a simples travessia de um rio modifica? Que verdade será essa que é uma aquém e outra além das montanhas? São divertidos os que, a fim de outorgar maior autenticidade às leis, dizem que as há imutáveis, perpétuas, a que chamam leis naturais, as quais seriam inatas no homem e em número de três, segundo uns, e de quatro segundo outros; e outros afirmam que existem mais, e outros menos, sinal revelador de ser a dúvida permitida, aqui como alhures. Infortunados! Pois não posso qualificar senão como infortúnio o fato de, nesse número infinito de leis, não haver ao menos uma porventura que o consenso geral aceite como universal. São tão desgraçados, que dessas três ou quatro leis escolhidas nenhuma só há que não seja controvertida e negada, e não apenas por um povo mas por muitos. Ora, a aceitação de todos seria a única característica a invocar-se como prova da existência de leis naturais, pois o que a natureza nos tivesse realmente ordenado, nós o observaríamos de comum acordo, porque qualquer povo, qualquer homem mesmo, se sentiria constrangido e violentado por quem agisse em sentido contrário. Protágoras e Aríston consideravam a origem da justiça das leis a autoridade e a opinião do legislador; fora daí, o bem e a honestidade não são mais qualidades, mas vãs denominações de coisas indiferentes. Trasírnaco, em Platão, julga não haver outro direito que não o vantajoso para o superior. Nada mais heterogêneo no mundo do que os costumes e as leis. Tal coisa, que se recomenda alhures, é aqui abominável. Como por exemplo na Lacedemônia a esperteza do roubo. Os casamentos entre parentes próximos são terminantemente proibidos entre nós; entre outros povos são recomendáveis: "dizem que há povos em que a mãe se une ao filho, e o pai à filha, crescendo o amor em virtude do parentesco". Matar os filhos, matar o pai, emprestar as mulheres, comerciar com objetos roubados, poder entregar-se a toda espécie de prazeres, tudo em suma, por absurdo que seja, ou pareça, é permitido em alguma nação. E possível que haja leis naturais como ocorre com certos animais, mas nós as perdemos, porque nossa bela razão humana em tudo se mete para dominar e comandar, perturbando e confundindo a fisionomia das coisas a seu talante, segundo sua vaidade e sua inconstância: nada sobra que seja nosso; o que chamo nosso é produto artificial". As coisas apresentam-se em condições e sob aspectos diversos, o que constitui a primeira causa da diversidade de opiniões. Um povo encara determinada coisa por um de seus aspectos, o qual fixa suas ideias, outro a vê de modo diferente e por este se guia. Nada me parece mais horrível à imaginação do que um filho comer o pai. Os povos entre os quais esse costume existia outrora encaravam-no entretanto como prova de devoção e afeição, pois visavam dar aos seus progenitores a mais digna e honrosa sepultura, alojando por assim dizer na medula dos próprios ossos o que restava do corpo de seus pais, reavivando-o, regenerando-o através da transmutação da carne morta em carne viva pela digestão. E fácil imaginar que crueldade pareceria, e que abominação, a esses homens supersticiosos enterrar os despojos dos parentes na terra, onde iriam apodrecer e transformar-se em alimento para os vermes. Licurgo considerava que no furto, a vivacidade, a ligeireza, a ousadia, a habilidade que se empregam em surripiar alguma coisa ao vizinho, são úteis à coletividade, porquanto obrigam o indivíduo a cuidar do que é seu. Achava que do ponto de vista da disciplina militar (principal ciência e virtude essencial que desejava inculcar em seu povo) havia maior vantagem em desenvolver essas tendências para o ataque e a defesa do que o inconveniente resultante da desordem e injustiça de se apropriar do bem alheio. Dionísio, o Tirano, ofereceu a Platão uma toga como a usavam na Pérsia, longa, bordada de ouro e prata, e perfumada; Platão recusou-a dizendo que tendo nascido homem não lhe convinha vestir-se à moda das mulheres. Essa mesma toga aceitou-a Aristipo, observando que "nenhum adorno pode corromper quem está resolvido a conservar a castidade". Seus amigos censuravam-no por não se haver sequer magoado com o fato de o tirano lhe ter cuspido no rosto: "os pescadores", respondeu-lhes, "resignam-se, a fim de pegar um simples lambari, a molhar-se dos pés à cabeça". Diógenes limpava uns repolhos quando, ao ver passar esse mesmo filósofo, gritou: "se para viveres te contentasses com repolhos, não adularias o tirano". Ao que o outro retorquiu: "se soubesses viver entre os homens, não limparias repolhos". Eis como a razão dá às coisas as mais diversas aparências: é uma marmita que se pega ora por uma asa ora por outra. "Ó terra que me hospedas, pressagias a guerra; teus corcéis estão armados para o combate e o combate que nos fazem temer; no entanto, esses nobres animais andavam outrora atrelados aos arados e marchavam fraternalmente sob a canga. Toda esperança de paz ainda não está perdida, pois." Censuravam a Sólon o fato de verter lágrimas impotentes e inúteis sobre o cadáver do filho. "E justamente por isso que as verto, por serem impotentes e inúteis." A mulher de Sócrates assim se desesperava: "que injustiça cometem esses malvados juízes que o condenam!" "Preferirias", replicou o filósofo, "que isso fosse justo?" Usamos furar o lóbulo das orelhas, o que os gregos consideravam sinal de escravidão. Escondemo-nos para possuir nossas mulheres; os indianos possuem-nas em público. Os citas imolavam os estrangeiros em seus templos; alhures os templos são asilos. "Cada país odeia as divindades dos países vizinhos, porque cada um considera seus deuses os únicos verdadeiros. Daí o furor cego das multidões”. Ouvi falar de um juiz que, quando encontrava entre Bartole e Baldus algum conflito árduo de resolver e algum assunto que apresentasse dificuldades, escrevia à margem do livro: "questão para o amigo", o que significava que a verdade era tão confusa e controversa que em semelhante causa lhe seria fácil favorecer qualquer das partes. Com algum espírito e um pouco de ciência, pudera escrever sua frase em tudo. Em todos os processos, advogados e juízes de nosso tempo acham meios para chegar ao resultado que bem entendem. Em ciência tão extensa, dependente de opiniões que fazem lei, e nas quais o arbítrio desempenha papel importante, uma extrema confusão deve naturalmente verificar-se nas sentenças. Por isso não há processo, por claro que seja, a cujo respeito as opiniões não variem. O que julga um tribunal é por outro reformado. Acontece até que o mesmo tribunal, julgando de novo, julgue diferentemente da primeira vez. Esses fatos se observam comumente, em virtude do abuso, tão prejudicial à dignidade da autoridade e ao prestígio da justiça, de não se conformarem com o julgamento e de apelarem para todas as jurisdições a fim de se pronunciarem elas sobre a mesma causa. Quanto à liberdade de que usam os filósofos em se referindo ao vício e à virtude, é ponto a cujo respeito não convém estender-se e que deu margem a opiniões que, em atenção aos espíritos fracos, é melhor calar. Arcesilau dizia que em matéria de impudicícia o mal independe do culpado e da maneira por que é cometido: "quanto aos prazeres obscenos, Epicuro pensa que, se a natureza os solicita, não há como olhar a raça, a origem, ou a condição social, e sim tão somente a beleza, a idade, o aspecto". Os amores elevados não se proíbem ao sábio. Vejamos até que idade devemos amar os jovens. Estas duas últimas proposições emanam dos estoicos e mostram, como aliás a censura dirigida contra Platão por Dicearco, a que ponto a filosofia mais esclarecida tolerava exageradas licenças ao que comumente se praticava. A autoridade das leis provém de existirem e terem passado para os costumes; é perigoso fazê-las retornarem à sua origem. Como os rios que se avolumam com o rolar das águas, elas adquirem importância e consideração em se aplicando. Remontai-lhe o curso até a nascente e vereis um insignificante filete de água. Investigai os motivos que no início deram impulso a essa torrente de leis e costumes, hoje considerável e cheio de dignidade, temor e veneração. Vós os achareis tão frágeis, tão pequenos, que não é estranho que esses filósofos que tudo perscrutam, que tudo submetem ao exame da razão, nada admitindo sem autoridade, os julguem tão diferentemente do resto do mundo. Tomam por modelo a imagem primeira da natureza e não há como nos espantarmos de que, na maioria de suas opiniões, se desviem do caminho comum. Poucos, entre eles, por exemplo, teriam aprovado as condições restritivas de nossos casamentos; queriam, em geral, que as mulheres fossem de todos, sem obrigações para com ninguém e recusavam-se a observar aquilo a que chamamos conveniências. Crisipo dizia que, mesmo sem calças, um filósofo faria em público uma dúzia de piruetas, por uma dúzia de azeitonas. E nem tivera procurado convencer Clístenes de não dar sua filha Agarista a Hipóclides que vira "plantando uma bananeira" em cima da mesa. Metrocles, um tanto indiscretamente, dera um peido quando dissertava, cercado de seus discípulos. Envergonhado, fechou-se em casa, até que Crates, indo visitá-lo, juntou o exemplo às consolações e raciocínios e o livrou de seus escrúpulos, levando-o ainda a aderir à seita dos estoicos, seita mais franca que a dos peripatéticos, a qual era mais requintada e que Metrocles seguira até então. Denominamos honestidade fazer às escondidas o que não fazemos a descoberto. Esses filósofos a isso chamavam tolice, e vício ao calar acerca do que a natureza, os costumes e os desejos proclamam. Se lhes parecia loucura celebrar os mistérios de Vênus fora do santuário reservado de seu templo, e expô-los às vistas de todos, era porque tais jogos, sem cortinas, perdem seu sabor; e a vergonha é fardo por demais pesado. Velá-los, e moderar-se na sua prática, emprestam-lhes maior valor. Achavam os filósofos que a volúpia se enobrecia de não se prostituir nas ruas, de não se depreciar aos olhos de todos, de não ser espezinhada, o que ocorreria com a supressão dos locais especiais que lhe são reservados. Daí dizerem alguns que suprimir os bordéis públicos era não somente expandir a impudicícia, mas ainda incitar os vagabundos e os ociosos com o chamariz das dificuldades: "Outrora marido de Aufidia, eis-te, hoje, Corvino, seu amante, hoje que ela é a mulher daquele que antes foi teu rival. Ela te desagradava quando era tua, por que te agrada agora depois que pertence a outro? És tu impotente quando nada tens a temer". Mil exemplos demonstram que assim é, que as dificuldades excitam nossos desejos: "Não houve, Ceciliano, quem quisesse tua mulher gratuitamente, quando era livre; agora que tu a vigias e guardas, os adora dores são legião. És realmente um homem hábil”. Perguntaram o que fazia a um filósofo surpreendido no momento da cópula. "Planto um homem", respondeu friamente, tão pouco envergonhado como se plantara alhos. Um de nossos maiores autores religiosos sustenta, em termos mui dignos e comedidos, e de meu agrado, que a prática desse ato exige tanto que nos escondamos e tenhamos pejo, que não pode acreditar se realizasse na licença dos cínicos. Pensa que se restringia então a movimentos lascivos destinados a dar satisfação à impudência dessa escola. E que para chegar ao fim, que a vergonha impede e inibe, deviam procurar não ser vistos. Não se aprofundara por certo na devassidão deles. Diógenes, masturbando-se em público, lamentava perante a turba de que não pudesse dar gozo ao ventre, em o roçando. A quem lhe perguntava por que comia na rua e não buscava lugar mais apropriado, respondia: "E porque tenho fome na rua". As mulheres filiadas a essa seita entregavam-se aos filósofos em qualquer lugar, e à discrição. Hipárquia só foi admitida na companhia de Crates sob a condição de seguir em tudo os usos e costumes da seita. Davam a maior importância à virtude e só se conduziam pela moral; entretanto, em todos os seus atos obedeciam ao sábio que escolhiam como chefe de escola e cuja opinião era soberana e mais acatada do que as leis. E não conheciam outros limites a seus prazeres senão os da moderação e da liberdade alheia. No fato de o vinho parecer amargo aos doentes e agradável aos sãos; de o remo parecer torto mergulhado na água e reto aos que o veem fora dela; de muitas coisas assim se mostrarem sob aparências antagônicas; Heráclito e Protágoras apontavam a prova de que cada qual traz em si a causa das aparências. Assim o vinho encerra um princípio amargo, que o torna amargo aos doentes, o remo um princípio torto em relação com quem o vê na água etc. O que equivale a dizer que tudo está em todas as coisas e por conseguinte nada em nenhuma, pois não há nada onde há tudo. Essa opinião recorda-me o que ocorre em nós. Não há sentido real ou aparente, amargo ou doce, reto ou sinuoso, que o espírito humano não descubra nos escritos que examina de perto. De quantas falsidades ou mentiras uma frase clara, pura e perfeita quanto possível, é ponto de partida! Qual a heresia que nela não achou um testemunho suficiente para que se exibisse e se sustentasse? Por isso os autores de tais erros não querem nunca renunciar às provas, tiradas da interpretação dada aos textos e que podem favorecê-los. Um alto personagem, desejando justificar a pesquisa a que se entregava, da pedra filosofal, citava-me ultimamente cinco ou seis trechos da Bíblia, nos quais se baseara a princípio a fim de tranquilizar a consciência (pois é eclesiástico). E, em verdade, o que encontrara não era somente original, mas se aplicava muito bem à defesa dessa bela ciência. E dessa maneira que as fábulas dos adivinhos ganham crédito. Não há adivinho, de alguma autoridade, que, em lhe folheando a obra e examinando a fundo as palavras, não se faça dizer o que se queira, como às sibilas. Há tantas maneiras de interpretar, que é difícil, qualquer que seja o assunto, um espírito engenhoso não descobrir o que lhe convenha. Por isso mesmo o estilo equívoco e obscuro se usou desde sempre, e frequentemente. Que um autor consiga interessar a posteridade, o que pode acontecer ou em razão de seu valor real ou da predileção de que goze no momento o assunto tratado; que por estupidez ou esperteza seja seu estilo confuso e rebuscado; pode sossegar: numerosos espíritos, agitando-o e peneirando-o, tirarão dele inúmeras ideias, ou idênticas às próprias, ou algo semelhantes, ou absolutamente contrárias e, todas, o honrarão. Alcançará assim o êxito por intermédio de seus discípulos, como os professores se enriquecem com o dinheiro do Landit. Foi o que valorizou muitas coisas sem valor e pôs em evidência alguns escritos que se interpretaram à vontade, de mil e uma maneiras. Será admissível que Homero tenha dito tudo o que lhe fizeram dizer? Que voluntariamente se tenha prestado a tão numerosas e diversas interpretações, que os teólogos, os legisladores, os guerreiros, os filósofos, e outros que se ocupam das ciências, por diversos e opostos que sejam seus temas, nele se apoiem, a ele se refiram? Para todos é ele o grande mestre em tudo, ofícios, obras, ciências. É o conselheiro de todos os empreendimentos. Quem atenta para oráculos e predições, encontra o que quer. Um amigo meu, mui sábio personagem, nele descobriu indicações realmente admiráveis em prol de nossa religião. Tão maravilhosa é a coisa, que ele não pode deixar de acreditar que foi intencional da parte de Homero, o qual lhe é de resto tão familiar quanto qualquer autor de nosso século. Mas é possível que o que encontra em Homero favorável a nosso culto, muitos, na antiguidade, o encontraram favorável à sua religião. Vede como estudam e aprofundam Platão, cada qual se vangloriando de o ter a seu lado e o interpretando a seu modo. Passeiam-no por todas as opiniões do século e obrigam-no a tomar partido. Forçam-no mesmo à contradição segundo as ideias em voga. Fazem-no reprovar os costumes aceitos em sua época, se já não o são agora, e isso com tanto maior autoridade e nitidez quanto mais autoritário e direto o espírito do intérprete. Dos mesmos fatos que haviam levado Heráclito a emitir esta opinião: "todas as coisas têm em si as aparências que apresentam", Demócrito tirava conclusões opostas: "as coisas nada têm do que nelas encontramos". E do fato de ser o mel doce para uns e amargo para outros, deduzia não ser ele nem doce nem amargo. Os pirrônicos teriam dito não saberem se é doce ou amargo, se não é doce nem amargo, ou se é doce e amargo, pois chegam sempre à conclusão de que o ponto litigioso se presta a dúvidas. Os cirenaicos sustentavam que não percebemos nenhuma sensação exterior, que só as sensações internas nos são perceptíveis. Assim a dor e a volúpia. Não admitiam o som ou a cor, mas tão somente as sensações que nos causam e de que provém o julgamento do homem. Protágoras considerava que a verdade é para cada um o que lhe parece. Os epicuristas localizavam o julgamento nos sentidos pelos quais adquirimos o conhecimento das coisas e sentimos as sensações que provocam. Platão queria que esse julgamento, que nos permite discernir a verdade, e a própria verdade, proviessem não dos sentidos e ideias preconcebidos, mas do espírito e da reflexão. Esta dissertação induziu-me a considerar os sentidos a grande causa e a prova, a um tempo, de nossa ignorância. Tudo o que se conhece, conhece-se pela faculdade de conhecer do indivíduo. Isso é incontestável, porque sendo o julgamento um ato de quem julga, é natural que empregue, em julgar, seus melhores meios e sua vontade; que não seja forçado a reportar-se a outrem, como ocorreria se o conhecimento das coisas se impusesse pela sua natureza própria. Ora, esse conhecimento chega-nos pelos sentidos, que são nossos mestres: "são as vias pelas quais a evidência penetra no santuário do espírito humano". Por eles se inicia a ciência e com eles se afirma. Afinal, seríamos ignorantes como uma pedra, se não conhecêssemos a existência do som, do odor, da luz, do sabor, da medida, do peso, da moleza, da dureza, do amargor, da cor, do tato, da largura, da profundidade, o que constitui a base e o princípio de toda ciência. Tanto assim que, para alguns, ciência é sensação. Quem puder me levar a contradizer os sentidos ter-me-á em suas mãos, pois são o começo e o fim dos conhecimentos humanos: "vereis que a noção do verdadeiro nos vem dos sentidos; seu testemunho é irrefutável, pois que guia merecerá mais do que eles a nossa confiança?" Por menos que lhe atribuam, será sempre necessário confessar que tudo o que sabemos vem deles ou por seu intermédio. Diz Cícero que Crisipo, tendo tentado diminuir a força e as faculdades de seus sentidos, encontrou em si mesmo tais argumentos contrários à sua tese, e tão veementes, que não pôde atingir seu objetivo. O que levou Carnéades a dizer, na polêmica que então mantinha contra ele, e na qual se vangloriava de usar as próprias armas do adversário: "Infeliz, tua força mesma te perdeu! Nada mais absurdo, a meu ver, nada mais excessivo que afirmar que o fogo não aquece, a luz não ilumina, o ferro não pesa, nem é duro, coisas cujo conhecimento nos vem dos sentidos; ou que nenhuma crença pode comparar-se ao que se ensina. Uma primeira observação farei a respeito dos sentidos: a de que não me parece seja o homem provido de todos os que existem na natureza. Vejo animais que vivem muito bem sem enxergar nem ouvir; quem nos diz que a nós não faltam também um, dois, três e até vários sentidos? Pois se algum nos falta não há como percebê-lo. É privilégio dos sentidos constituírem o limite máximo de nossa perspicácia; nada, fora deles, nos pode ajudar a descobri-los. Nem um sentido pode revelar outro. Pode o ouvido retificar a vista, ou o tato, o ouvido? Pode o paladar suprir o tato? E o olfato ou a vista corrigir os erros dos demais? São em verdade os limites mais recuados de nossas faculdades: "cada qual tem seu poder, cada qual sua própria força". É impossível fazer com que um homem naturalmente cego deseje ver e lamente a ausência do sentido de que carece. Portanto não devemos vangloriar-nos da satisfação de nossa alma com os que temos, pois ela não pode sentir sua imperfeição, se a tem. É impossível, pelo raciocínio, a analogia ou a similitude, fazer que a imaginação de um cego adquira a menor noção do que venham a ser a luz, a cor, a vista. Nada nele pode induzi-lo a uma ideia do sentido que lhe falta. Quando um cego de nascença afirma que desejaria ver, não o faz por compreender o que exprime; di-lo, aponta efeitos e consequências, mas ignora, em verdade, o que seja, não o concebe, nem muito nem pouco. Conheço um fidalgo de boa estirpe, cego de nascença ou pelo menos cego desde quando não sabia ainda o que fosse a vista. Tem tão pouca consciência do que lhe falta que emprega como nós locuções que servem para exprimir o que vemos, mas as aplica de maneira muito particular, muito sua. Apresentaram-lhe uma criança de que era padrinho. Tomando-a nos braços, exclamou: "Meu Deus, que linda criança! Bela de se ver! Como seu rosto esplende de alegria!" Dirá como nós: "deste cômodo tem-se uma bela vista; lindo sol! Mais ainda: como a caça, o tiro de arcabuz, o jogo da bola, são exercícios que praticamos, ele os aprecia e no assunto se compraz apaixonadamente, embora deles participe somente pelo ouvido. Gritam-lhe, quando estão em terreno plano sobre o qual pode andar à vontade: "Olha a lebre!" E em seguida: "ei-la morta". E ele se mostra tão orgulhoso da coisa quanto os outros. No jogo de bola, toma-a com a mão esquerda e lança-a com a raqueta em qualquer direção. Com o arcabuz atira ao acaso e acredita quando lhe afirmam que atirou alto demais ou ao lado do alvo. Como saber se o gênero humano não comete tolices análogas, em virtude de alguma carência de sentido, cuja falta faz que em sua maioria as coisas não se mostrem tal qual são? Quem sabe se não provêm disso as dificuldades que sentimos em entender certas obras da natureza? Quem sabe se certas coisas executadas pelos animais e que ultrapassam nossas possibilidades não são resultantes de dadas faculdades? Quem pode dizer se por isso não têm uma vida mais plena e satisfatória do que a nossa? A maçã excita a maior parte de nossos sentidos: é vermelha, lisa, tem perfume, é doce. Talvez tenha outras virtudes, como secar e restringir, que nossos sentidos não percebem. Não é provável que as propriedades a que chamamos ocultas e que observamos em muitas coisas, como no ímã a de atrair o ferro, devem corresponder a faculdades de sentidos naturais cuja incapacidade de perceber nos induz à ignorância de sua essência? E provavelmente em consequência de algum sentido específico que os galos distinguem a hora, pela manhã e à noite, e cantam. E que as galinhas temem o gavião, antes de qualquer experiência e não receiam nem o ganso nem o pavão de estatura muito maior; e que os frangos sabem da hostilidade do gato e não desconfiam do cão, tremendo ante o miado harmonioso e não ante o latido áspero; e as formigas, as abelhas e os ratos escolhem sempre o melhor queijo sem antes o provar; e o veado, o elefante, a serpente conhecem ervas que curam. Não há sentidos que não sejam de grande importância; e os conhecimentos que devemos a cada um deles são em número infinito. Se a inteligência dos sons, da harmonia e da voz viessem a faltar-nos, haveria incrível confusão em todo o resto de nossa ciência, pois, além do que se prende aos efeitos de cada sentido, tiramos inúmeros argumentos, consequências e conclusões da comparação de um com outro. Imagine um entendido o gênero humano desprovido, desde sempre, do sentido da vista, e pesquise a que ponto a confusão conduziria tal lacuna. Quanta treva e cegueira em nossa alma! Julgar-se-á por aí quanto importa ao conhecimento da verdade a privação de um ou mais sentidos. Concebemos a verdade sob um aspecto para o qual contribuem nossos cinco sentidos. Talvez para que seja a verdadeira, e que tenhamos a certeza de apreender integralmente, careçamos de oito ou dez. As seitas filosóficas que contestam a ciência humana sublinham, em particular, a incerteza e a fraqueza de nossos sentidos, porquanto todo conhecimento nos alcança por seu intermédio. Se falham em seus relatórios, se se corrompem, ou alteram o que nos comunicam, se a luz que por eles se introduz em nossa alma se obscurece em caminho, não temos mais em que confiar. Dessa extrema dificuldade surgiu este aforismo: "Toda coisa encerra em si tudo o que nela achamos; e nela não há nada do que pensamos encontrar". E mais este, dos epicuristas: "O sol não é maior do que a nossa vista o considera; as aparências, que nos impelem a ver maior o corpo mais próximo e menor o mais longínquo, são todas verdadeiras"; ou como diz Lucrécio: "se contudo não convimos em que nossos olhos nos iludem, não imputemos nossos erros ao espírito". E, o que é mais ousado: "nossos sentidos não se enganam, estamos na sua dependência e é preciso buscar alhures as razões suscetíveis de explicar as diferenças e contradições que constatamos; inventar mesmo uma mentira ou um devaneio de nosso espírito, de preferência a acusar os sentidos". Timágoras jurava que por mais que piscasse ou esfregasse o olho nunca via em dobro a luz da vela e que essa ilusão provém de um erro da imaginação e não de um defeito do órgão. De todos os absurdos, o mais absurdo, para os epicuristas, consistia em negar o poder e os efeitos dos sentidos: "As indicações dos sentidos são sempre verdadeiras. Se a razão não pode explicar por que o que vê quadrado, de perto, vê comprido de longe, é melhor ainda, sem solução verdadeira para esse duplo fenômeno, dar uma falsa, de preferência a deixar escapar a evidência, a mentir à fé primeira e destruir os fundamentos da credibilidade em que assentam nossa conservação e nossa vida, pois os interesses da razão não são aqui os únicos em jogo. A própria vida só se conserva com o apoio dos sentidos; é em vista de seu testemunho que evitamos os precipícios e outras coisas nocivas. Este conselho desesperado e tão pouco filosófico não significa senão que a ciência só pode existir na medida em que lhe emprestamos a ajuda de uma razão desarrazoada, maluca, obstinada; e que, para satisfação da vaidade do homem, mais vale ainda isso ou servir-se de qualquer fantasia, do que confessar a sua estupidez; o que não honra demasiado a humanidade. O homem não pode impedir que os sentidos não sejam os soberanos mestres dos conhecimentos que possui; mas estes não oferecem certeza e sempre podem induzi-lo em erro. É preciso insistir nesse ponto. Na falta do que deveria dar-lhe força, ele o supre com a obstinação, a temeridade, a impudência. Se os epicuristas estão certos, isto é, "se a ciência não existe visto que as aparências comunicadas pelos sentidos são falsas", e se o que dizem os estoicos é igualmente verdadeiro, "que as aparências transmitidas pelos sentidos são tão falsas que não podem criar nenhuma ciência", somos levados a concluir que não há ciência. Quanto ao erro e à incerteza das operações dos sentidos, não faltam exemplos à mão, tão abundantes são essas falhas e ilusões. Em virtude do eco no vale, o som da trombeta parece vir de frente quando na realidade vem de trás. "As montanhas que se erguem acima do mar parecem-nos de longe uma só massa, embora em verdade sejam distantes umas das outras. As colinas e campos que margeamos, parecem fugir em direção à popa do navio em que navegamos. Se o cavalo para no meio de um riacho, parece que caminha obliquamente, correnteza acima, como impelido por estranha força." Se manuseio uma bala de arcabuz com os dedos entrelaçados, é preciso violentar-me para admitir que não sejam duas. Que os sentidos dominam muitas vezes a razão e nos impõem sensações que ela sabe serem falsas é coisa que se vê comumente. Deixo de lado o tato, que tem funções mais imediatas, vivas e substanciais e que, pela dor que pode provocar, desmente as resoluções estoicas e força a gritar quem está com cólicas, embora proclame este o dogma de que a cólica, como qualquer outra doença ou dor, é indiferente e não tem o poder de diminuir em nada a felicidade que a virtude outorga ao sábio. Mas não há coração, por mais efeminado que seja, que o som de nossos tambores e trombetas não entusiasme; nem o há tão duro que a música não desperte e amoleça; nem alma tão ríspida que não se sinta comovida na sombria imensidade de nossas igrejas, com seus ornatos e cerimônias; ou que, ouvindo os órgãos, não se eleve misticamente; mesmo os que entram nesses edifícios com desdém, impressionam-se e experimentam uma espécie de temor supersticioso que lhes abala a opinião. Quanto a mim, não me considero bastante forte para permanecer insensível aos versos de Horácio ou Catulo, recitados com inteligência por jovens e belos lábios. A voz, dizia Zenão, é a flor da beleza. De uma feita quiseram persuadir-me de que um homem que todos conhecemos, me impressionara com seus versos somente por causa da voz. Diziam que não eram tão bons como pareciam e meus olhos julgariam diferentemente de meus ouvidos, tanto a dicção valoriza as obras. Não andou portanto errado Filóxeno quando, ao ouvir alguém ler de maneira incorreta os seus escritos, se pôs a sapatear e a espezinhar os tijolos do importuno, dizendo: "Quebro o que te pertence como quebras o que é meu". Por que razão as pessoas que ordenam a própria morte viram a cabeça para não ver o golpe? E os que, doentes, desejam e pedem que os sangrem ou cauterizem não podem suportar a vista dos preparativos do cirurgião, se a vista não influi na dor? Não provam esses exemplos o domínio dos sentidos sobre a razão? Embora não ignoremos que a cabeleira do pajem ou do lacaio é falsa, que o rosado vem da Espanha, a palidez brilhante se deve a produtos exóticos, nossa vista, contra toda razão, compraz-se na contemplação do objeto. "Somos seduzidos pelo adorno; o ouro e a pedraria escondem os defeitos; a jovem mesma é a menor parte do que nela nos aprazo Não raro temos dificuldade em achar o que amamos sob tantos ornatos; é sob essa égide opulenta que o amor engana os olhos. E que poder emprestam os poetas ao sentidos quando nos mostram Narciso enamorado de seu reflexo! "Admira tudo o que é admirável. Insensato! Deseja-se a si próprio; é a si mesmo que aprecia e aspira; queima-se com a paixão que ele próprio acende. Por isso, mostram-nos também Pigmaleão com o espírito perturbado pela impressão que lhe causa a vista de sua estátua de marfim, a que ama e da qual se torna escravo como se ela fosse animada: "cobre-a de beijos e imagina ser correspondido; abraça-a freneticamente; pensa sentir nos dedos o estremecimento da carne e receia, ao calcá-la, deixar uma impressão lívida". Ponha-se um filósofo em uma gaiola de arame fino e pendure-se no alto das torres de Notre-Dame. Verá de maneira evidente que não pode cair e apesar disso, a menos de estar familiarizado com o ofício de pedreiro, não evitará o medo, transido de pavor pela vista da altura. Já nos é difícil sentirmo-nos à vontade à beira dos terraços de nossos campanários, mesmo quando de pedra; e certas pessoas não o suportam sequer em pensamento. Jogue-se entre as torres da catedral uma tábua suficientemente larga para passarmos; não haverá sabedoria filosófica, por mais admirável que seja, capaz de nos infundir a coragem de andar em cima dela como o faríamos se a tábua assentasse no chão. Não raro senti nas montanhas dos Pireneus, e embora não me assuste facilmente, que não podia suportar a vista desses abismos imensos sem que me tremessem as pernas e as coxas, apesar da distância bastante em que me encontrava da beirada e de saber que uma queda só fora possível se voluntariamente me expusesse ao perigo. Observei também que uma árvore ou um rochedo, ainda que pequenos, servindo como ponto de repouso para a vista, me tranquilizavam, como se, em caso de queda, nos pudessem ser úteis. Mas os precipícios sem obstáculos, não os podemos olhar com segurança: somos tomados de vertigem, como diz Tito Lívio. E eis uma evidente impostura dos olhos. Foi o que levou esse belo filósofo a vazar os próprios olhos a fim de se isentar das impressões desregradas que provocavam, impedindo-o de filosofar livremente. Mas, desse modo, também deveria ter tapado os ouvidos com algodão, pois são, no dizer de Teofrasto, os nossos órgãos mais perigosos, suscetíveis, pela violência das impressões, de confundir e alterar nossas ideias. E deveria afinal privar-se igualmente de todos os outros sentidos, isto é, do próprio ser, da vida, pois todos exercem influência em nossa razão: "Acontece não raro que tal ou qual espetáculo, voz, canto impressionam vivamente nosso espírito; muitas vezes também a dor e o medo produzem os mesmos efeitos". Pretendem os médicos que certas pessoas se agitam até à loucura sob a ação de certos sons. Conheci quem não pudesse ouvir os cães roerem um osso embaixo da mesa sem perder a paciência. Poucas pessoas não são incomodadas pelo ruído agudo e penetrante da lima trabalhando o ferro. Assim também, o ruído dos maxilares mastigando ou o falar anasalado irritam até a cólera e o ódio. E para que serviria o tocador de flauta que acompanhava Graco em Roma, atenuando ou ampliando a voz do tribuno, se os sons não tivessem a propriedade de comover e influir no espírito dos ouvintes? Em verdade, não há como nos vangloriarmos tanto de nossa faculdade de julgamento, se um simples sopro a atinge e modifica! Se os sentidos nos induzem em erro, enganam-se também por seu turno. Nossa alma tem por vezes seu revide. Mentem eles uns aos outros. O que vemos e ouvimos sob o domínio da cólera, não nos aparece como é realmente: veem -se então dois sóis e duas Tebas, diz Virgílio. O objeto de nossa afeição parece-nos mais belo do que na realidade é: "muitas vezes vemos a deformidade e a feiura receberem homenagens". E mais feio é o objeto de nossa animosidade. A um homem aborrecido e aflito, a claridade do dia se afigura tenebrosa. Nossos sentidos não somente se alteram mas ainda se estupidificam totalmente, sob o efeito das paixões. Quantas coisas olhamos sem ver se nosso espírito se acha ocupado alhures! "As coisas, mesmo as mais expostas à vista, se nelas não aplicamos o espírito, são como perdidas na noite dos tempos."! Dir-se-ia que a alma se esconde dentro de nós e se diverte em abusar dos sentidos. Assim, o homem é, por dentro e por fora, fraqueza e mentira. Os que compararam nossa vida a um sonho foram mais judiciosos talvez do que pensavam. Em nossos sonhos nossa alma vive, age, exerce todas as suas faculdades, tal qual quando está acordada. Admitamos que o faça de um modo menos eficiente e visível, a diferença ainda não será tão grande quanto entre um dia de sol e a noite, mas apenas como entre esta e o crepúsculo. Se ela dorme durante o nosso sono cochila mais ou menos quando estamos acordados. Em um e outro caso, permanecemos nas trevas mais profundas. Durante o sono, não vemos com nitidez, mas acordados não é tampouco perfeita a claridade. O sono profundo apaga por vezes os nossos sonhos; despertos, nunca o estamos bastante para nos livrarmos de todos os devaneios que são sonhos de gente acordada e piores do que os verdadeiros. Recebendo nossa razão e nossa alma as ideias e os sentimentos que nascem em nós enquanto dormimos, e prestando-se a eles, como o faz com o que concebemos de dia, como duvidar de que, em pensando e agindo, sonhamos? E estar acordado seja uma forma particular do sono? Se os sentidos são os juízes aos quais nos devemos reportar em primeiro lugar, não são apenas os nossos que devemos consultar. Nesse ponto os dos animais têm os mesmos direitos que os nossos, senão maiores. Pois é certo que alguns têm o ouvido mais sensível, outros a vista, outros o olfato, outros o tato ou o paladar. Demócrito dizia que as faculdades pelas quais experimentamos as sensações são mais perfeitas nos deuses e nos animais. Há em verdade enorme diferença entre os efeitos dos sentidos nestes últimos e em nós. Nossa saliva, por exemplo, que limpa e seca as nossas chagas, mata as serpentes. "Entre tais efeitos é tão grande a diferença, que o que é alimento para uns é veneno mortal para os outros. Assim a serpente, em contato com a saliva humana, definha e se devora a si própria". Que qualidades daremos então à saliva, as que concebemos ou as que a serpente concebe? Quem nos dirá de sua essência? Plínio afirma que há nas Índias certas lebres marinhas que constituem um veneno para nós, e reciprocamente. Basta que a toquemos para que pereçam. Qual desses efeitos devemos classificar como veneno? Em quem acreditar? No peixe ou no homem? O homem é envenenado por um certo ar que não ataca o boi; tal outro que não nos prejudica, não o suporta este. Qual dos dois é realmente pestilencial? As pessoas que sofrem de icterícia tudo veem sob um aspecto amarelado. "Tudo parece amarelo a quem tem icterícia", diz Lucrécio. Os que são atingidos pelo que os médicos denominam hiposfagma, que consiste em um derrame de sangue sob apele, veem tudo vermelho. Essas disposições que modificam o que vemos, terão iguais efeitos nos animais? Pois entre eles os há com olhos amarelados ou vermelhos e é possível que não vejam as coisas com as cores que vemos. Quem estará com a verdade? E não se diga que a essência das coisas só aos homens importa. Nada o prova. A dureza, a brancura, a profundidade, o azedume, interessam-lhes tanto quanto a nós mesmos. A natureza outorgou-lhes o uso, como a nós. Quando calcamos o olho, vemos os objetos mais compridos e largos; muitos animais têm o olho assim feito; esse comprimento que atribuímos aos corpos no caso em apreço talvez seja o verdadeiro. Se comprimimos o olho, apertando-o por baixo, vemos as coisas duplica das. "As lâmpadas têm dupla luz, os homens duplo corpo e rosto”. Se temos os ouvidos tapados ou semiobstruídos, percebemos diferentemente os sons; os animais que possuem orelhas peludas, ou apenas um pequeno orifício, não devem pois ouvir como ouvimos. Vemos nos teatros e festas vidros de cor interpostos entre nós e as tochas e tudo o que existe nesses lugares assim iluminados parece verde, amarelo, ou violeta: "assim ocorre com esses véus amarelos, vermelhos e cinzentos pendurados em nossos teatros e flutuando no ar. Seu brilho móvel reflete-se nos espectadores e no palco; os senadores, as mulheres, as estátuas dos deuses, tudo se tinge à luz cambiante". É provável que os olhos dos animais vejam as coisas de acordo com sua cor. Para julgar as operações de nossos sentidos fora necessário portanto que estivéssemos de acordo com os animais e também entre nós. Ora esse acordo não existe. Disputamos sempre acerca do que um ouve ou sente, e é diferente do que o outro ouve ou sente; da mesma forma estamos divididos a respeito da diversidade das imagens que nossos sentidos nos comunicam. Em condições normais, uma criança ouve, vê e sente de maneira diversa de um homem de trinta anos, e este diferentemente de um sexagenário. Em uns os sentidos estão mais embotados, em outros mais agudos. Percebemos as coisas segundo as nossas condições ou o que elas nos parecem ser. E o que nos parece é tão discutível, incerto, que temos o direito de declarar que vemos a neve branca, mas não o podemos assegurar. Com tão limitada certeza no ponto de partida, toda ciência reduz-se a nada. E precisaremos demonstrar que nossos sentidos se contradizem? Uma pintura que se diria em relevo à vista, parece plana ao tato. O almíscar agrada ao olfato e ofende o paladar. Há ervas e unguentos que convêm a certas partes do corpo e irritam outras. O mel é bom de gosto e feio de se ver. Esses anéis em forma de pena que se usam em brasões- "penas sem fim" - e cuja largura o olho não sabe discernir, porquanto parecem engrossar de um lado e afinar de outro, mesmo se as enrolamos no dedo, ao tato se afiguram regulares em todas as suas partes. Houve outrora quem, a fim de alcançar maior volúpia, se servisse de especieiros deformantes que ampliam os objetos neles remetidos. Qual de seus sentidos lhe dava maior satisfação? A vista, exagerando-os, ou o tato, diminuindo-os? São nossos sentidos que comunicam às coisas essas diversas condições, e terão elas uma só? O pão que comemos é unicamente pão, e, no entanto, segundo o uso que dele fazemos, torna-se osso, sangue, carne, pelo, unhas: "os alimentos, infiltrando-se pelo corpo todo, perecem e mudam de natureza" O suco que as raízes das árvores absorveram transforma-se em tronco, folhas e frutos. O ar é um só; entretanto a trombeta o traduz em mil sons diversos. São, indago, os nossos sentidos que mudam de maneira análoga as condições diversas das coisas ou são estas assim? Diante desta dúvida, como julgaremos sua verdadeira natureza? Há mais: se em caso de doença, devaneio ou sono, as coisas nos aparecem diferentes do que quando estamos com saúde, em plena posse de nós mesmos, é provável que em nosso estado normal as vejamos de conformidade com as nossas condições. Não as encaramos então de uma maneira igualmente particular? Por que o moderado não as veria sob um aspecto específico, como ocorre a quem o não é? Quem tem o estômago perturbado acha insosso o vinho; o são acha-o saboroso; o sedento, excelente. Acomodando-se as coisas às nossas condições, como estas se transformam. Não conhecemos a verdade a seu respeito, pois sempre as temos alteradas ou falsifica das pelos sentidos. Quando o compasso, a régua, o esquadro são falseados, todas as medidas o são também, e os edifícios com tais instrumentos construídos são forçosamente defeituosos e pouco sólidos. Da mesma forma, a insuficiência de nossos sentidos torna insuficiente tudo o que produzem: "Se na construção de um edifício, a régua usada foi falseada, se o esquadro desvia da perpendicular, se o nível falha, ocorre necessariamente ser todo o edifício viciado, fora de equilíbrio, sem graça, nem boas proporções. Uma parte pode ameaçar cair, e cair mesmo, por ter sido mal dirigida. Assim, se não pudermos confiar inteiramente nos sentidos, todos os julgamentos serão ilusórios". Mas a quem caberá julgar as diferenças? Dizemos que quando se trata de controvérsias religiosas seria necessário um juiz neutro, isento de preconceito ou preferência, o que não se encontra entre os cristãos. O mesmo fato repete-se aqui. Se o juiz é um ancião, não pode imparcialmente julgar o que sente a mocidade, estando ele próprio interessado no debate. Se é um jovem, idêntico é o caso; como idêntico o será se o juiz for doente, ou são, se estiver acordado ou cochilando. Fora preciso alguém que nunca tivesse estado em nenhum desses casos para que se pronunciasse sem prevenção por uma ou outra das diversas opiniões em presença. Ora, um juiz desse tipo não existe. Para aquilatar das aparências das coisas, precisaríamos de um instrumento aferidor; para controlar esse instrumento necessitaríamos de experiências e mais um instrumento para comprová-las. E eis-nos em um impasse. Se os sentidos não podem decidir serem imperfeitos, é preciso que a razão decida. Mas nenhuma razão se aceitaria sem que outra lhe demonstrasse a validez; e eis-nos de volta ao ponto de partida. Nossa imaginação não se exerce diretamente sobre as coisas que estão fora de nós; é levada a elas pelos sentidos; estes não se ocupam do que lhes é estranho, mas somente do que é objeto de suas impressões. E como a imaginação e a aparência que concebemos das coisas não vêm destas, mas sim dos nossos sentidos, e estas sensações são variáveis, ocorre que quem julga pelas aparências julga por outra coisa que não o próprio objeto. Diremos que as impressões dos sentidos fornecem à alma uma imagem fiel dos objetos. Mas como podem a alma e os sentidos assegurar-se da exatidão da semelhança? Não estão eles próprios em relação com os objetos? Quem não conhece Sócrates e lhe vê o retrato não pode dizer se é parecido. E mesmo quem quisesse julgar pelas aparências não o poderia fazer por todas. Elas se neutralizam, em verdade, pelas contradições e diferenças que apresentam, como no-lo mostra a experiência. Será pois somente por algumas, a serem escolhidas, que seu julgamento se exercerá. Mas, quando houver escolhido uma, será necessário escolher outra para verificar a primeira; uma terceira em seguida para controlar a segunda e assim por diante, indefinidamente. Em suma, nós mesmos e os objetos não temos existência constante. Nós, nosso julgamento, e todas as coisas mortais, seguimos uma corrente que nos leva sem cessar de volta ao ponto inicial. De sorte que nada de certo se pode estabelecer entre nós mesmos e o que se situa fora de nós, estando tanto o juiz como o julgado em perpétua transformação e movimento. Nada conheceremos de nosso ser, porque tudo o que participa da natureza humana está sempre nascendo ou morrendo, em condições que só dão de nós uma aparência mal definida e obscura; e se procuramos saber o que somos na realidade, é como se quiséssemos segurar a água; quanto mais apertamos o que é fluido, tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda coisa estar sujeita à transformação, a razão nada pode apreender na sua busca do que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existência e não está inteiramente formado, ou começa a morrer antes de nascer. Platão dizia que os corpos nunca têm existência; nascem somente. Considerava que Homero, fazendo do Oceano o pai dos deuses e de Tétis a mãe, quisera mostrar que tudo está sujeito a vicissitudes, transformações e variações perpétuas, opinião essa de todos os filósofos anteriores a Platão, com exceção de Parmênides que negava o movimento dos corpos, caro ao Mestre; Pitágoras achava que toda matéria é móvel e sujeita a mudanças; os estoicos, que o tempo presente não existe e que, o que assim designamos, não passa do ponto de junção do passado com o futuro. Heráclito dizia que nunca um homem atravessou duas vezes o mesmo rio; Epicarmo, que quem pediu um dia dinheiro emprestado não se torna devedor, e quem foi à noite convidado para a refeição da manhã seguinte, e se apresenta, chega sem ser convidado, porquanto não são mais os mesmos, e sim outros; "que toda substância perecível não se encontra duas vezes no mesmo estado, porque, por mudanças repentinas e inapreensíveis, ora se evapora ora se condensa; vem e vai; de sorte que o que começa a nascer não se torna jamais um ser perfeito. Pode-se mesmo dizer que seu nascimento não termina e nem para em um fim; desde sua concepção, vai-se transformando e passando de um estado a outro. O germe humano, por exemplo, torna-se inicialmente, no ventre da mãe, um fruto informe; em seguida uma criança nitidamente constituída; depois, ao ser parido, uma criança de peito, que se transforma em menino, e sucessivamente em adolescente, homem, homem maduro e ancião decrépito, de maneira que a idade e a geração seguinte desfazem e estragam a geração que precede: O tempo muda a face do mundo; uma ordem de coisas substitui outra, necessariamente. Nada é estável, tudo se transforma e a natureza está em contínua metamorfose. "E nós, tolos que somos, tememos uma forma particular da morte quando já conhecemos tantas outras; pois, como ressalta Heráclito, não somente a morte do fogo engendra o ar e a do ar engendra a água, como o podemos ver de maneira mais evidente pelo que se verifica em nós, mas também a flor da idade morre ao chegar a velhice, a infância ao surgir a adolescência etc. Hoje assinala a morte de ontem, amanhã assinalará a de hoje. Nada é imutável. Admitamos com efeito que sejamos e permaneçamos o que somos; como se explicaria que nos alegremos ou nos entristeçamos com a mesma coisa segundo o momento? Como explicar que gostemos de coisas contrárias, que as detestemos, e as louvemos? Se demonstramos sentimentos diferentes diante de uma mesma coisa, é porque nosso pensamento se modifica, pois não é verossímil que sem mudança em nós variem os sentimentos. O que a mudança afeta já não é mais o mesmo. Cessando de ser idêntico a si mesmo, cessa pura e simplesmente de existir, torna-se outro, portanto, os sentidos mentem e se enganam acerca da natureza das coisas, quando tomam a aparência pela realidade, e não sabem o que seja esta. "Que há então que seja realmente tal qual o vemos? Somente o que é eterno, isto é, o que nunca teve começo e não terá fim; o que não muda sob o efeito do tempo, pois o tempo é móvel e surge como uma sombra arrastando consigo a matéria fluida, instável, sempre em transformação. Ao tempo se aplicam estas palavras: 'Antes ou depois', 'foi ou será', as quais já mostram à evidência que não se trata de uma coisa que é, porque seria tolice dizer que é algo que ainda não é ou já não é mais. A ideia que temos de tempo exprime-se nestas palavras: 'Presente, instante, agora', as quais parecem constituir-lhe a base. Mas que a razão se detenha nela e de imediato o conjunto rui; desde o primeiro instante a razão o destrói, repartindo-o em passado e futuro e recusando-se a aceitar qualquer outra divisão. O mesmo se dá com a natureza que se mede; nada há nela tampouco que permaneça, subsista. Tudo o de que se compõe foi ou está nascendo ou morrendo. Eis por que seria pecado dizer que só Deus é, foi e será, porque são termos que implicam mudanças, transformações, vicissitudes próprias ao que não dura e cuja existência não é contínua. Daí dever-se concluir que 'só Deus é', não segundo uma medida qualquer do tempo, mas segundo a eternidade imutável e fixa, que não é função do tempo e não está sujeita a variações. Nada O precedeu, nada se Lhe seguirá, e nada é mais novo e recente; Ele é realmente, agora e sempre, o que para Ele são a mesma coisa. Nada a não ser Ele existe verdadeiramente, de que se possa dizer 'foi e será', porquanto Ele não teve começo e não terá fim." A essa conclusão tão religiosa de um pagão, acrescentarei apenas para terminar tão longa e aborrecida digressão sobre assunto em verdade inesgotável, isto que disse outro filósofo pagão e que apresenta afinidade com o que se transcreveu: "Vil e abjeta coisa o homem, se não se eleva acima da humanidade!" Eis uma reflexão inspirada em bom sentimento e no desejo de ser útil, e no entanto absurda. É com efeito impossível e contrário à natureza, um punhado maior do que o punho, uma braçada maior do que o braço, um passo maior do que a perna. Não pode tampouco ocorrer que o homem se eleve acima de si mesmo e da humanidade, porque só pode ver com seus olhos e aprender com seus próprios meios. Elevar-se-á. se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e se deixar erguer e elevar-se unicamente pelos meios que lhe vêm do céu. É nossa fé cristã, e não a virtude estoica dos filósofos, que pode operar essa divina e milagrosa metamorfose. CAPÍTULO XIII DE COMO JULGAR A MORTE Quando julgamos do ânimo que alguém demonstra no momento da morte - o mais importante por certo da vida humana - devemos levar em conta que raramente pensamos ter chegado a nossa hora. Poucas pessoas morrem convenci das de que estejam nos últimos instantes, e nada há a cujo respeito a esperança nos iluda tanto. Não cessa de nos soprar aos ouvidos: "outros estiveram bem pior, e não morreram; a coisa não é tão desesperada como pensam; ademais, Deus fez outros milagres". Disso se deduz que damos excessiva importância a nós mesmos; é como se tudo sofresse, de algum modo, com o nosso desaparecimento, e se apiedasse de nós, pois nossa visão perturbada faz-nos ver as coisas diferentes do que realmente são. Parece-nos que elas se afastam de nós, quando nossos olhos é que fraquejam. Assim, para os que viajam por mar, as montanhas, os campos, as cidades, o céu e a terra também se afiguram em movimento: "saímos do porto; a terra e o mar parecem afastar-se". Quem jamais viu a velhice não louvar o passado, não criticar o presente, imputando ao mundo e aos costumes de sua época sua miséria e sua tristeza? "Sacudindo a cabeça calva, o velho lavrador suspira; compara o presente ao passado, louva a felicidade de seu pai e fala sem cessar da moral dos tempos antigos". Tudo vemos em relação a nós mesmos, daí darmos à nossa morte grande importância, pensarmos que não pode ocorrer facilmente e sem solene consulta aos astros: "Quantos deuses incomodados com a vida de um só homem!" E assim fazemos porque nos estimamos demasiado: "pois tanta ciência se perderia e tão grande prejuízo não seria objeto de particular atenção do destino? O desaparecimento de tão bela alma, e tão exemplar, não valerá mais do que o da mais inútil? Esta vida que tantas outras sustenta, pela qual tantos se interessam, com tantas funções e cargos, deverá ser deitada fora como qualquer outra insignificante?" Nenhum de nós imagina suficientemente que não passa de uma unidade. Daí estas palavras que César dirigiu ao piloto de seu barco e mais inchadas de vaidade que o mar grosso: "Se o céu se recusa a conduzir-te às costas da Itália, segue sob meus auspícios. Se tens medo é porque ignoras quem conduzes; com o meu apoio, enfrenta sem receio a tempestade”. Estas outras decorrem da mesma ideia: "César julga enfim o perigo à altura de sua coragem: terão os deuses necessidade de tão grande esforço para me destruir? Jogam o furor do mar contra a minha frágil embarcação”. Assim também a loucura de um povo a exigir que durante um ano inteiro o sol se enlute por causa de sua morte: "participou igualmente da desgraça de Roma e cobriu-se com um véu de luto". E mil outros exemplos poderiam invocar-se da ilusão do mundo a pensar que seus interesses perturbem os céus: a aliança entre nós e o céu não é de tal ordem que os astros devam extinguir-se com nossa morte. Não estamos certos ao julgar a resolução e o ânimo de alguém quando este não tem a certeza de se achar em perigo de morte; embora se ache. Em sua maioria, os homens assumem suas atitudes e escolhem suas palavras a fim de alcançar uma reputação de que ainda venham a aproveitar-se em vida. Quantos vi morrer, cuja atitude não pôde ser preparada e se deveu tão somente ao acaso! E entre os que, na antiguidade, se mataram, cumpre distinguir os que tiveram morte imediata dos que a tiveram lenta. Certo cruel imperador romano, falando de suas vítimas, dizia que queria fazer com que sentissem a morte; e acerca de uma delas, que se suicidara, observava: "essa me escapou!" Quisera que sofressem com a morte, através dos tormentos que esta provoca. "Vimo-lo vivo em um corpo mortificado, cuja agonia prolongavam com requintes de crueldade". Em verdade não é assim tão difícil resolver matar-se, quando a gente goza saúde e nada tem a temer; é fácil mostrar-se valente antes do momento fatal, a ponto que Heliogábalo, o mais efeminado dos homens, projetara matar-se, em meio à sua luxúria, em condições faustosas. Para que essa morte não lhe desmentisse a vida, mandara construir uma suntuosa torre, incrustada, embaixo e na frente, de ouro e pedras preciosas, a fim de se precipitar do alto dela. E mandara confeccionar cordéis de metal precioso e seda purpurina para se enforcar, bem como uma espada de ouro para se traspassar, e guardava veneno em vasos de esmeralda e topázio para se envenenar, pois não sabia que gênero de morte escolheria. São os "corajosos por necessidade", a quem se refere Lucano. A despeito de tantas precauções, é provável que houvesse recuado na hora da decisão, tal o luxo do aparato. Mas, mesmo entre os que, mais resolutos, levaram a cabo sua resolução, cumpre verificar se a morte se deu mediante golpe que não permitisse sentir-lhe os efeitos ou se quiseram que a vida abandonasse aos poucos seu corpo e sua alma, o que lhes teria dado tempo de se arrependerem ou provarem, em perseverando, sua firmeza de ânimo e sua obstinação na intenção primeira. Durante as guerras civis de César, tendo Lúcio Domício, aprisionado nos Abruzos, se envenenado, arrependeu-se em seguida. Ocorre também que alguém, decidido a morrer, não o tenha conseguido de chofre e se ferisse novamente duas e mais vezes, sem resultado, em virtude da revolta da carne que impede o braço de golpear profundamente. Enquanto se instruía o processo de Plauto Silvano, Urgulânia, sua avó, passou-lhe um punhal com o qual ele não conseguiu matar-se. Mandou então que seus servidores lhe cortassem as veias. Albucila, no tempo de Tibério, querendo suicidar-se, golpeou-se com insuficiente vigor, o que deu tempo a seus inimigos de a socorrerem e a fazerem morrer a seu bel-prazer, Foi também o que aconteceu a Demóstenes, depois de sua derrota na Sicília. E, C. Fímbria, falhando por falta de energia, pediu ao criado que o acabasse. Ao contrário, Ostório, embora não podendo usar o braço, desdenhou a ajuda do lacaio, senão para manter o punhal reto e firmemente; e jogou-se sobre a arma traspassando a garganta. Na verdade, trata-se de uma coisa que se deve engolir sem mastigar, a não ser que se tenha garganta de ferro. Entretanto, Adriano mandou o médico marcar com um círculo no peito o lugar que devia ser golpeado por quem ele encarregasse de matá-lo. Eis por que César, quando lhe perguntaram qual o gênero de morte mais desejável, respondeu: "a menos premeditada e mais rápida". E se César ousou dizê-lo, não é covardia minha acreditá-lo. "Uma morte rápida", observa Plínio, "é a grande felicidade da vida." Aborrece entretanto a alguns reconhecê-lo. Ninguém pode assegurar que estava resolvido a morrer, se evita encarar a morte e não a pode ver chegar de olhos abertos. Os condenados que lhe correm ao encontro, a fim de apressá-la, não o fazem por espírito de resolução, mas porque desejam abreviar o tempo em que deverão contemplá-la. Morrer não os atemoriza, o que temem é a passagem da vida à morte: "não quero morrer, mas é-me indiferente estar morto". A esse grau de resolução já verifiquei que posso chegar, como quem, de olhos fechados, atira-se ao perigo ou ao mar. A meu ver, nada é mais belo, na vida de Sócrates, do que ter permanecido durante trinta dias, depois de condenado, examinando serenamente a morte futura, sem emoção, sem revelar nenhuma alteração de humor, agindo e conversando, antes com calma do que com excitação sob o peso de tal pensamento. Pompônio Atico, a quem Cícero escreveu cartas que nos ficaram dele, achando-se enfermo, chamou Agripa, seu genro, e dois ou três amigos, e lhes disse que, não conseguindo curar-se e aumentando-lhe o sofrimento os remédios que tomava para prolongar a vida, estava resolvido a pôr fim a ambos, vida e sofrimento, e pedia a todos que o aprovassem ou, pelo menos, que não tentassem impedi-lo de levar a cabo a resolução. E tendo escolhido a morte pela fome para alcançar seu objetivo, sua abstinência, como por acaso, elimina a doença. Em querendo morrer, recupera a saúde. Seus médicos e amigos congratulam-se então com ele pelo feliz resultado; mas se enganam, pois não muda de decisão: "pois que lhe cumpriria um dia dar esse passo", diz, "não queria, no ponto a que chegara, ter de recomeçar de outra feita". Com lazer suficiente meditara na morte, e não somente não renunciava a ela mas se obstinava e, satisfeito com o início, resolvia bravamente continuar. Provar a morte e saboreá-la é muito mais do que a não recear. A história do filósofo Cleantes se parece muito com a precedente. Estava com as gengivas inchadas e gangrenadas. Aconselham-lhe os médicos um jejum absoluto. Observando-o durante dois dias, sente-se tão melhor que o declaram curado e o autorizam a voltar à vida normal. Mas ele, achando já certa doçura no estado de fraqueza a que chegara, resolve não recuar e, perseverando, acaba por morrer de fome. Um jovem romano, Túlio Marcelino, preocupado com avançar a hora do destino, a fim de se desfazer de uma doença que o fazia sofrer mais do que queria suportar, mas que os médicos prometiam curar, embora com alguma demora, convocou seus amigos para deliberarem juntos. Uns, relata Sêneca, davam-lhe o conselho que, por covardia, teriam eles próprios seguido; outros, para o adularem, o que acreditavam lhe fosse mais agradável. Um, afinal, da escola dos estoicos, disse-lhe: "não te aborreças, como se se tratasse de assunto importante. Viver não é grande coisa; teus lacaios e teus animais vivem; o que importa é morrer honrosamente, sabiamente e com coragem. Imagina só há quanto tempo fazes a mesma coisa: comer, beber, dormir; dormir, comer, beber; não saímos do círculo. Não somente os acidentes penosos e dolorosos nos incitam a sair da vida, mas também a saciedade de viver". Marcelino precisava de alguém para o ajudar a cumprir seu desígnio, e não para lhe dar conselhos. Acabava de encontra-lo. Os servidores receavam meter-se no caso; nosso filósofo demonstrou-lhes que os criados só se comprometem quando há dúvida quanto à vontade de morrer do senhor e que seria tão má ação impedi-lo de se matar quanto o matar, tanto mais que "salvar um homem contra sua vontade é como matá-lo". Avisou em seguida Marcelino de que, assim como se distribuem os restos do banquete aos que o servem, era conveniente, ao fim da vida, deixar alguma coisa aos que, no curso de sua existência, lhe haviam prestado seu concurso. Marcelino, tão liberal quanto corajoso, mandou repartir certa soma entre seus servidores e os consolou da tristeza que manifestavam. Para passar da vida à morte, não recorreu nem ao ferro, nem à efusão de sangue, pois estava decidido a retirar-se da vida e não evadir-se. Não queria fugir da morte, mas sim enfrentá-la. A fim de ter a possibilidade de desafiá-la, renunciou a todo e qualquer alimento, descansando no terceiro dia em um banho morno; e, enfraquecendo sempre mais, morreu lentamente, não sem experimentar, disse, uma espécie de volúpia. Os que por fraqueza têm uma síncope, afirmam também não sentir dor nenhuma, mas antes certo bem-estar, como quando adormecem e repousam. Catão parece ter tido como destino ser em tudo um modelo de virtude. Permitiu-lhe a sorte que, estando com a mão machucada, somente se ferisse ao golpear-se, o que lhe deu a possibilidade de lutar com a morte até a agarrar. As circunstâncias que teriam podido enfraquecer-lhe o ânimo, antes o fortaleceram. Se me fosse dado representa-lo na atitude que considero mais honrosa, mostrá-lo-ia ensanguentado e arrancando as entranhas, e não de espada na mão como fizeram os escultores de sua época. O segundo ato de sua morte revela sem dúvida alguma coragem bem maior que o primeiro. CAPÍTULO XIV COMO O NOSSO ESPÍRITO CRIA SUAS PRÓPRIAS DIFICULDADES Discute-se comumente que decisão tomaria um espírito indeciso entre duas coisas cuja realização deseja exatamente com igual intensidade. E indubitável que em tais condições não se decidirá nunca, pois, se se inclinasse por uma, já seu gesto implicaria desigualdade de valorização. Se, com idêntica necessidade de beber e comer, fôssemos colocados entre uma garrafa e um presunto, não teríamos provavelmente outra solução senão morrer de fome. Atentando para a dificuldade dos que lhes perguntavam que havia em nossa alma que determinasse a escolha entre coisas indiferentes, e fazia que em um saco de escudos pegássemos um e não outro, pois em sendo iguais não se justificava a preferência, respondiam os estoicos que isso se devia a um movimento inconsciente, provocado em nós por um impulso estranho, acidental, fortuito. Poder-se-ia antes afirmar, parece-me, que nada se nos apresenta sem alguma diferença, por pequena que seja, e, ou à vista, ou ao tato, há sempre algo que, embora não o percebamos, nos tenta e atrai, e determina a nossa escolha. Da mesma forma, se supusermos, por exemplo, um barbante igualmente resistente em todo o seu comprimento, será impossível parti-lo, pois em que ponto cederia? E não é de se admitir que ceda em todos os pontos a um tempo. Se a isso acrescentarmos esses teoremas da geometria pelos quais se prova que o conteúdo é maior do que o continente, que o centro de uma circunferência é tão grande quanto a própria circunferência, que duas linhas que se aproximam sem cessar não chegam nunca a se encontrar, e também os problemas da pedra filosofal e da quadratura do círculo, questões todas em que a razão se opõe à realidade, depararemos possivelmente com algum argumento em apoio dessa asserção tão ousada de Plínio: "Nada é certo senão a incerteza, nem nada há mais miserável e orgulhoso do que o homem". CAPÍTULO XV NOSSO DESEJO CRESCE COM A DIFICULDADE Não há argumento ao qual não se possa objetar com argumento contrário, dizem os filósofos mais sensatos. Não faz muito, vinha-me ao espírito esta bela sentença de um personagem da antiguidade em apoio ao desprezo que devemos ter à vida: nenhum bem nos pode dar prazer, senão aquele para cuja perda estejamos preparados. "A tristeza de ter perdido algo e o receio de perdê-lo, são uma só e mesma coisa." Queria dizer com isso que o gozo da vida não pode oferecer-nos real atrativo se a tememos perder. Poder-se-ia entender também que nos apegamos a esse bem e com tanto maior desejo de conservá-lo quanto sabemos sua conservação pouco segura e receamos perdê-lo. Pois sentimos, e isso é absolutamente indiscutível, que assim como o fogo se aviva com o frio, nossa vontade se afia de encontro à oposição: "Se Dánae não tivesse sido fechada em uma torre de bronze, nunca houvera dado um filho a Júpiter". Nada é, por natureza, tão contrário a nossos desejos como a saciedade resultante da facilidade; e nada os excita tanto quanto a raridade e o obstáculo: em tudo o prazer cresce na razão do perigo que nos deveria afastar dele. Rechaça-me, Gala, o amor saciar-se-á logo se suas alegrias não forem temperadas com algum tormento. Na Lacedemônia, Licurgo, a fim de manter desperto o amor, ordenou que os casados só o praticassem às escondidas, e que ser encontrados dormindo juntos fosse tão vergonhoso como se dormissem com outros. As dificuldades dos encontros, o perigo das surpresas, a vergonha do dia seguinte e também o langor, o silêncio, os suspiros vindos do fundo do coração, eis o que põe pimenta ao molho. Que prazeres realmente lascivos podem nascer de conversações honestas e discretas sobre o amor? A própria volúpia busca excitantes na dor; é bem mais doce quando queima e esfola. A cortesã Flora dizia nunca ter dormido com Pompeu sem que o marcasse de mordidas. "Apertam fortemente o objeto de seus desejos; com dente cruel imprimem em seus lábios beijos dolorosos; um secreto ferrão os excita contra aquele mesmo que acende neles o furor dos amplexos". Assim ocorre com tudo. A dificuldade valoriza as coisas. Os habitantes de Ancona cumprem suas promessas em São Tiago de Compostela; os da Galícia em Nossa Senhora de Loreto; em Liêge apreciam muito os banhos de Lucca e na Toscana os de Spa; não se veem os romanos frequentando a escola de esgrima em Roma, cheia de franceses. O grande Catão (como nos ocorre também) cansou da mulher quando sua e tornou a desejá-la ao casar-se ela com outro. Devolvi ao haras um cavalo velho que não resistia à atração das éguas, e que a facilidade de se expandir à vontade com as suas logo saciou. Porém com as demais, não se retém de rinchar. Nosso apetite despreza o que se acha à sua disposição; corre atrás do que não tem: "desdenha o que está à mão e busca o que não pode ter". Proibir-nos alguma coisa é dar-nos vontade dela: "se não fiscalizares tua amante, ela deixará muito breve de ser minha". A privação e a abundância comportam os mesmos inconvenientes: "queixas-te do teu supérfluo e eu da carência do necessário". O desejo e o gozo fazem-nos sofrer igualmente. A seriedade de nossas amantes aborrece-nos, mas em verdade a facilidade com que porventura se entreguem ainda aborrece mais. Pois o descontentamento e a cólera que nascem do valor que emprestamos ao objeto desejado excitam o amor, ao passo que a saciedade engendra o desgosto; não passa então o amor de uma paixão embotada, estupidificada, farta, sonolenta; "se queres dominar muito tempo o teu amante, despreza suas súplicas". "Fingi-vos de desdenhoso, quem se vos negou ontem virá oferecer-se hoje." Por que imaginou Pompéia esconder sob uma máscara sua beleza senão para a valorizar aos olhos de seus amantes? Por que cobrem as mulheres com véus que descem até os calcanhares os encantos que desejariam mostrar e que todos gostariam de ver? Por que amontoam sobre as partes ambicionadas de seu corpo tantas e tantas coisas? Para que servem esses baluartes com que acabam de guarnecer as ancas senão para ludibriar nosso apetite e nos atrair embora nos afastando? "Ela corre a esconder-se atrás do chorão, mas antes faz com que a percebam”. "Por vezes opõe seu vestido a meus impacientes desejos, De que serve essa arte que põe em jogo a fisionomia pudibunda da virgem, essa calculada frieza, essa atitude severa, essa aparente ignorância das coisas que ela conhece melhor do que nós, seus educadores, senão para aumentar o desejo que temos de vencer, senão para estimular nosso apetite com cerimônias e obstáculos? Não somente temos prazer como tiramos alguma vaidade em triunfar da modéstia, da castidade e da temperança; e quem desaconselha às mulheres tais artifícios, as está traindo e com elas se atraiçoando. É preciso que acreditemos que seu coração freme de receio, que o som de nossa voz ao murmurar-lhes palavras de amor fere a pureza de seus ouvidos, que elas se magoam e só cedem a nossas importunas solicitações constrangidas e forçadas. A beleza, por forte que seja, não basta sem tais veleidades de resistência. Vede na Itália, onde ela mais se encontra e é mais atraente, como as mulheres recorrem a meios artificiais e à arte para se tornar agradáveis; pois de outro modo, ainda que venais e públicas, os homens não as procuram com entusiasmo. Ocorre com a beleza o mesmo que com a virtude: dois caminhos conduzem a ela, um fácil, outro semeado de obstáculos e nem sempre atingindo o seu objetivo. É entretanto o último que mais apreciamos, que achamos mais belo e digno. Devemos agradecer à Divina Providência as perturbações e borrascas que desabam sobre a Santa Igreja, pois assim as almas piedosas despertam do sono em que as mergulhara um longo período de tranquilidade. E se compararmos as perdas resultantes do número de desviados com as vantagens de nos havermos retemperado na luta, não sei se o benefício não sobre-excede o prejuízo. Pensamos em tornar mais sólidos os laços do casamento, evitando a possibilidade de rompê-los; mas ocorreu que se relaxaram e desfizeram na mesma proporção em que se apertava o nó do constrangimento. Ao contrário, o que manteve os casamentos em honra durante tanto tempo em Roma foi a facilidade de dissolvê-los à vontade. Tanto mais se preocupavam com guardar sua mulher, quanto mais fácil era perdê-la. E, embora o divórcio estivesse ao alcance de todos, decorreram mais de quinhentos anos sem que ninguém o requeresse: "o permitido não tem encantos; o proibido excita o desejo". Isso me induz a citar esta opinião de um autor antigo: os suplícios, em vez de frearem os vícios, desenvolveram-nos; não nos levam a bem fazer, o que é obra da razão e da educação. Apenas cuidamos com mais atenção de não sermos surpreendidos na prática do mal. "O mal, que imaginavam extirpado, vence e se expande." Ignoro se a asserção é exata, mas o que sei por experiência é que nunca os suplícios modificaram a moral de um povo. De outros meios é que dependem a ordem e a normalidade dos costumes. Os historiadores gregos aludem aos argipeus (tribo vizinha da Cítia) que viviam dentro da ordem, sem açoites nem castigos. Não somente ninguém pensava em atacá-los como ainda quem se refugiasse junto deles encontrava asilo, dadas a virtude e a santidade de sua existência. Os povos vizinhos a eles recorriam nas suas pendências. Citam igualmente uma nação onde as divisas dos campos e jardins são assinaladas com um simples cordel de algodão, o qual, apesar de sua fragilidade, constitui barreira mais respeitada e efetiva do que nossos fossos e cercas: "as fechaduras atraem os ladrões; quem rouba com arrombamento não entra em casas abertas". Talvez a facilidade de nela entrarem tenha sido uma das causas que preservaram minha residência das violências das guerras civis. Defender sugere o ataque: a desconfiança provoca a ofensa. Desinteressei a soldadesca de minha casa, tirando-lhe qualquer probabilidade de glória, o que, em geral, a seus olhos, justifica e desculpa todos os excessos. O que exige coragem é sempre considerado honroso, quando a justiça já não existe, por isso fiz com que a invasão de minha casa parecesse um ato de covardia e traição. Não se fecha ela para ninguém que lhe bata à porta; como única medida de precaução, há um porteiro, educado nos usos do passado e destinado menos a impedir a entrada do que a tornar mais decente e agradável a recepção. Não tenho outra guarda e sentinela além dos astros. Um fidalgo erra em querer resistir, se não se acha perfeitamente organizado para tanto. O que é acessível por um lado é acessível por todos; nossos pais não pensaram nunca em construir praças fortes. Os meios de dominar nossas casas, ainda que sem exército, nem canhão, dia a dia se tornam mais poderosos e fora de proporção com os meios de defesa. É principalmente a ideia de invasão que preocupa os espíritos e interessa todo mundo; a ideia de defesa só preocupa os ricos. Minha casa apresentava resistência suficiente para a época em que foi construída; nada lhe acrescentei e recearia, em a fortificando, que a medida se voltasse contra mim mesmo. Sem contar que ao retornar à calma seria forçado a demoli-la. Em semelhantes baluartes é perigoso não se poder resistir, e não se está seguro de o poder, pois, nas guerras intestinas, o lacaio pode pertencer ao partido contrário; e quando a religião é o pretexto da luta, os próprios parentes se tornam suspeitos, e justificadamente. O tesouro não pode manter guarnições em todas as residências e nós não o faríamos sem nos arruinar ou arruinar o povo, o que comporta maiores inconvenientes ainda, além de ser injusto. E se, sem defesa, for invadido, não me sentirei pior. Se ao contrário me defender, perderei mais: os próprios amigos em vez de se apiedarem se divertirão com criticar minha negligência e ignorância nas coisas de minha profissão. E o fato de se haverem perdido tantas casas preparadas para a resistência, enquanto a minha continua de pé, induz-me a crer que se deva a destruição delas às veleidades de resistência. Inspiraram e ideia do assalto e justificaram o assaltante a seus próprios olhos. Todo preparativo de defesa revela a disposição de lutar. Podem entrar em minha residência se assim o quiser Deus; mas não chamarei ninguém, aconteça o que acontecer. É um lugar de retiro onde me repouso da guerra; é um recanto que procuro isolar das tempestades reinantes, como faço com minha alma. A guerra que nos desola, pode mudar de forma e estender-se; podem outros partidos organizar-se, eu não me mexo. Entre tantos fidalgos que fortificaram suas mansões, fui o único a fiar-se tão somente em Deus para a proteção da sua. Nunca escondi prataria, nem dinheiro, nem tapetes, nada desejando salvar pela metade, nem querendo temer em parte. Se uma inteira confiança na Providência me outorgar a proteção divina, esta há de continuar até o fim. E se não ma outorgar já terei sido protegido durante bastante tempo, o que merece ser notado, pois tal situação se vem verificando há trinta anos. CAPÍTULO XVI DA GLÓRIA Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a palavra que marca e significa a coisa: não faz parte dela, a ela não se incorpora; é um acessório que se acresce, por fora. Deus, que é, em Si, plenitude e inteira perfeição, não pode ampliar-se e crescer por dentro, em essência, mas Seu nome se amplia e engrandece com os louvores e bênçãos que damos às Suas obras manifestas. Esses louvores que não O podem penetrar e se tornar parte integrante d'Ele próprio, tanto mais quanto nada se acrescenta ao que Ele é, nós os atribuímos a Seu nome, o qual, fora d'Ele mesmo, é o que de mais perto O toca. A glória e a honra só a Deus pertencem, portanto nada será mais absurdo do que as reivindicarmos. Somos, essencialmente, tão pobres, tão necessitados, tão imperfeitos, que nossa preocupação constante deve ser a de trabalhar continuadamente, para melhorarmos. Totalmente vazios, não é de vento e de palavras que devemos encher-nos; precisamos, para fortalecer-nos, de alimentos mais substanciais e sólidos. Um homem esfaimado seria um simples de espírito se procurasse obter uma bela roupa em vez de uma boa refeição; cumpre correr sempre ao mais urgente: "Glória a Deus nas alturas e paz aos homens na terra", como dizemos em nossas orações. Temos penúria de beleza, saúde, sabedoria, virtude e outras qualidades essenciais; cabe-nos alcançar essas coisas de primeira necessidade, antes de obter o que nos adorna exteriormente. Mas são questões essas de que a teologia trata mais aprofundadamente e com maior competência. Crisipo e Diógenes foram os primeiros a desprezar a glória, e com maior resolução. Diziam que, entre todas as volúpias, não há mais perigosas, nem de que mais se deva fugir do que a aprovação alheia. Abundam efetivamente os casos em que sua traição causou graves prejuízos. Nada envenena tanto os príncipes quanto a lisonja, e nada há que mais imponham os maus aos que os rodeiam. Cumular as mulheres de lisonjas, repetir-lhas sem cessar é o meio mais comum de triunfar sobre a sua castidade; é o modo de sedução que empregam as sereias para enganar Ulisses: "Vem, Ulisses, vem, tu tão digno de louvores, tu de quem mais se honra a Grécia”. Tais filósofos afirmavam que toda a glória do mundo não justifica que um homem sensato levante um dedo para a conquistar: "que é a glória, por grande que seja, se não passa de gloria? Digo conquistar a glória pela glória, pois não raro ela acarreta vantagens que a podem tornar desejável. Ela nos oferece a boa vontade alheia, e faz que estejamos menos expostos às injúrias e a outras coisas semelhantes. Era também um dos principais dogmas de Epicuro este preceito de sua escola: "esconde tua vida", o qual proíbe que se embarace alguém com cargos e gestões dos negócios públicos. E pressupõe assim que forçosamente desprezemos a glória, a qual consiste na aprovação da coletividade às nossas ações mais evidentes. Ordenar-nos que escondamos a vida, que nos ocupemos de nós mesmos e não queiramos se intrometam os outros no que fazemos, é querer ainda menos que nos honrem e glorifiquem. Por isso Epicuro aconselha a Idomeneu a não orientar seus atos em atenção à opinião comum, a menos que o seja necessário a fim de evitar outros inconvenientes por vezes resultantes do desprezo que os homens venham a demonstrar. Essas recomendações são, a meu ver, perfeitamente certas e razoáveis; mas somos, não sei como, dois seres em um só, o que faz que, em uma mesma coisa, acreditemos e não acreditemos, não podendo desfazer-nos do que condenamos. Reportemo-nos, com efeito, às últimas palavras de Epicuro, ao morrer. São grandes e dignas de um filósofo como ele; revelam contudo vestígios de sua preocupação com a reputação ligada a seu nome e com essa disposição de espírito que censurava em seus preceitos. Eis a carta que ditou pouco antes de exalar o derradeiro suspiro: "Epicuro a Hermaco, salve! - Escrevi o que segue neste último dia de minha vida, dia feliz embora sofra incrivelmente da bexiga e dos intestinos; mas meu sofrimento é compensado pelo prazer que traz à minha alma a recordação das ideias que inovei e da defesa delas. Tu, toma sob tua proteção os filhos de Metrodoro; conto, a esse respeito, com a afeição que desde a infância tiveste por mim e pela filosofia". Eis a carta. O que me leva a pensar que esse prazer, que diz sentir em sua alma por causa das ideias inovadas, se liga à reputação que esperava adquirir depois de morto, são os dispositivos testamentários pelos quais determina que Aminômaco e Timócrates, seus herdeiros, fornecessem anualmente, no mês de janeiro, para a comemoração de seu aniversário, a soma a ser fixada por Hermaco; bem como a necessária às despesas com a recepção de seus amigos filosóficos, os quais se reuniriam no vigésimo dia de cada lua para honrar sua memória e a de Metrodoro. Carnéades foi o chefe da seita de opinião contrária. Afirma que a glória é desejável em si, como natural é a afeição que dedicamos aos filhos a nascerem depois de nossa morte, embora não os devamos conhecer. Esta opinião foi naturalmente a mais comumente seguida, como ocorre com aquelas que correspondem às nossas preferências. Aristóteles coloca a glória em primeiro lugar entre os bens que nos vêm de fora de nós mesmos, e considera igualmente criticável buscá-la exageradamente ou dela fugir. Creio que se possuíssemos o que Cícero escreveu a propósito, veríamos opiniões espantosas, pois ele foi obcecado por essa paixão, a ponto de, se ousasse, cair no absurdo em que outros caíram de considerar a própria virtude válida tão somente, e desejável, na medida em que acarreta honrarias. "A virtude escondida não difere muito da obscura ociosidade." Tal maneira de pensar é tão falsa, a meu ver, que não posso acreditar tenha jamais entrado na cabeça de um homem que teve a honra de figurar entre os filósofos. Se assim fosse, não se deveria praticar a virtude senão em público; e não nos adiantaria manter no bom caminho a nossa alma, verdadeira sede da virtude, desde que seus movimentos não chegassem ao conhecimento de outrem. Bastaria então fazer o mal com suficiente habilidade para que ficasse ignorado. "Se percebes", diz Carnéades, "que uma serpente se esconde no lugar em que, sem o saber, vai sentar-se alguém cuja morte te beneficia, cometerás uma má ação em não o avisar, principalmente se o que fazes só de ti é conhecido." Se não buscamos em nós mesmos a obrigação de fazer o bem, se a impunidade é considerada justiça, quantas maldades não seríamos induzidos a praticar diariamente! Devolvendo fielmente a Plótio os valores que este lhe confiara sem que ninguém o soubesse, e agindo como eu mesmo o fiz não raro, Sexto Peduceu cumpriu menos uma ação propriamente meritória do que deixou de mal agir em não o fazendo. É útil lembrar, em nossos tempos, que Cícero censurava a Sextílio Rufo por ter aceito uma herança que sua consciência condenava, não porque fosse a coisa contrária à lei, mas apesar de não a contrariar. Não se mostra menos severo com relação a Crasso e Hortênsio que, com sua autoridade e influência, haviam sido incluídos em uma herança, obtida por um estrangeiro mediante testamento falso. Contentando-se ambos com não ter participado da falsificação, não haviam recusado os benefícios dela, pois legalmente se encontravam a coberto contra quaisquer acusações ou testemunhos. "Deviam lembrar-se de que havia o testemunho de Deus, isto é, da própria consciência." Seria a virtude coisa vã e frívola, se à glória pedisse recompensa; não valeria a pena, nesse caso, atribuir-lhe um lugar especial e estabelecer uma distinção entre ela e a sorte, pois que haveria de mais fortuito do que a reputação? "A sorte estende seu domínio sobre todas as coisas; eleva uns, abaixa outros, menos em consequência do mérito do que segundo o próprio capricho. Cabe à sorte fazer com que nossas ações sejam vistas e conhecidas; a sorte é que distribui a glória, ao sabor de sua fantasia. Vi-a por vezes preceder o mérito e de outras feitas ultrapassa-lo. Quem primeiro teve a ideia de comparar a glória a uma sombra foi mais feliz do que pensava: são duas coisas vãs. A sombra também nos precede por vezes e não raro excede, de muito, o cumprimento de nosso corpo. Os que ensinam à nobreza a não buscar a glória senão através da valentia, como se uma ação só se tornasse virtuosa com a celebridade que lhe inculcam, senão o cuidado de nunca se expor sem ser vista? Que lhe sugerem, senão que arranje testemunhas capazes de contar suas proezas? Senão a evitar de agir sem ser observada, embora não lhe faltem oportunidades de bem fazer? Quantas belas ações ocorrem em uma batalha! Quem se preocupasse com atentar para os gestos alheios, na confusão, nada produziria e forneceria contra si mesmo os testemunhos que colhesse acerca da conduta de seus companheiros de armas: "Uma alma realmente grande coloca o bem, principal objetivo de nossa natureza, nas ações virtuosas e não na glória”. A glória a que aspiro é a de ter vivido tranquilo, não como o entendem Metrodoro, Arcesilau ou Aristipo e sim a meu modo. Em sendo a filosofia incapaz de mostrar o caminho que conduz ao repouso da alma e a todos convém, que cada qual por seu lado o procure. A que devem César e Alexandre seu imenso renome, senão à sorte? Em tomo de quantos homens estabeleceu ela o silêncio, no momento em que principiavam a aparecer? Quantos, cuja existência ignoramos, tiveram coragem idêntica à desses heróis mas se viram desde o início esmagados pelo azar? Não recordo ter lido que, através dos numerosos e grandes perigos que enfrentou, César tivesse sido ferido; no entanto milhares morreram em circunstâncias muito menos perigosas. Por uma bela ação de que se beneficia o autor, inúmeras outras passam despercebidas, porquanto ninguém houve para testemunhá-las. Nem sempre nos achamos na brecha ou à frente do exército, sob os olhos do general, como em um estrado. Podemos ser surpreendidos entre a cerca e o fosso. E, segundo as exigências do momento, obrigados a destruir um galinheiro ou a desalojar de um barracão quatro pobres arcabuzeiros. Ou ainda, destacados do resto da tropa, ser forçados a agir isoladamente. E não custa verificar que, em verdade, as ações que menos nos colocam em evidência são as que apresentam maior perigo. E nas guerras de nossa época perderam-se mais bravos guerreiros em escaramuças de somenos, ou no assalto a alguma choupana, do que nas batalhas memoráveis e suscetíveis de tornar famosos os seus participantes. Quem considera mal empregada a morte que não traz celebridade, acaba obscurecendo a vida e deixa fugir-lhe numerosas e justas oportunidades de se aventurar. Ora, tudo o que é justo comporta sempre ilustração suficiente, o testemunho da consciência já constituindo por si glória bastante: nossa glória está no testemunho de nossa consciência. Quem só é homem de bem sob a condição de que o saibam, quem só quer fazer o bem para que sua virtude alcance a celebridade, não presta por certo grandes serviços. Creio que o resto do inverno Rolando fez coisas dignas de registro; mas permaneceram tão secretas até agora, que não cabe culpa se não as conto, pois Rolando sempre se mostrou mais disposto a fazer do que a publicar e seus feitos só se divulgaram quando tiveram testemunhas. É preciso ir para a guerra por dever e não esperar senão a recompensa que não falta nunca, mesmo para as ações mais discretas, mesmo para os pensamentos virtuosos, e que consiste na satisfação de uma boa consciência. É preciso ser valente para si mesmo, e pela vantagem de ter a coragem bem alojada e segura, e firme contra os embates da sorte: "a virtude brilha com luz sem mistura; ela ignora a recusa vergonhosa, não se apropria das tochas consulares, nem as abandona ao sabor de um povo volúvel". Não é para se exibir que nossa alma deve desempenhar seu papel; é para nós e em nós, onde ninguém a vê senão nós mesmos, onde nos resguarda do temor à morte, da dor e da vergonha, onde nos dá ânimo se perdemos filhos, amigos e bens, e, quando necessário, nos impele a enfrentar os azares da guerra: não em vista de alguma recompensa mas pela satisfação da virtude. É esse um proveito bem maior, bem mais digno de nossa ambição que a honra e a glória, as quais não passam de uma apreciação favorável a nosso respeito. Para julgar o direito de propriedade de um lote de terra, selecionamos, em toda uma nação, uma dúzia de homens; ao passo que para julgar nossas intenções e ações, coisa mais difícil, e importante, reportamo-nos à opinião pública, à apreciação da massa ignorante, injusta e inconstante. Será razoável entregar ao juízo dos loucos a vida de um sábio? Que haverá de mais insensato do que estimar em conjunto o que se despreza parceladamente? Quem procura agradar à multidão não o consegue jamais; ela oferece apenas um alvo mal definido e inatingível: "nada é menos honroso do que o julgamento da massa”. Demétrio, referindo-se à voz do povo, dizia, zombeteiro, que apreciava tão pouco o ruído que vinha de cima quanto o que lhe saía de baixo. Cícero é mais sarcástico ainda: "digo que uma coisa, embora não o seja, parece vergonhosa se louvada pela multidão". Nenhum talento, nenhuma sutileza conseguem dirigir nossos passos com um guia tão errado e desregrado. Em meio a essa confusão tumultuosa e sem consistência de ruídos, de intrigas, de opiniões vulgares das multidões que nos cercam, nenhum caminho se abre que possamos trilhar. Não nos proponhamos, pois, um objetivo tão flutuante e indeciso e marchemos com a razão. Que a aprovação pública nos siga se quiser, e, como depende unicamente do acaso, não há motivo para esperarmos que tome este ou aquele rumo. Se eu não seguisse o caminho reto, pela sua retidão, ainda o seguiria por ter verificado, pela experiência, que, afinal de contas, é o que de costume nos torna mais felizes e nos é mais útil: É obra valiosa da Providência ter feito com que as coisas honestas sejam igualmente as mais úteis. Durante violenta tempestade um nauta dos tempos antigos assim falava a Netuno: "Deus, tu me salvarás se quiseres, tu me condenarás se preferires, mas eu manterei reta, assim mesmo, a barra do leme." Tenho visto muitas pessoas hábeis, espertas, ambíguas, indubitavelmente mais prudentes do que eu nos negócios deste mundo, perderem-se em circunstâncias em que me salvei: "ri-me de ver que a esperteza pode malograr-se". Paulo Emílio, de partida para sua gloriosa expedição na Macedônia recomendava acima de tudo ao povo de Roma que não desse com a língua nos dentes acerca de suas operações. Quão nociva, com efeito, aos negócios importantes, é a licença com que os julgam, sem contar que nem todos têm, em relação aos movimentos populares, às injúrias e à oposição, a firmeza de ânimo de Fábio, o qual preferiu ser despojado de sua autoridade a prejudicar o que lhe parecia certo, embora com isso granjeasse reputação e popularidade. Há não sei que doçura natural em sentir que nos louvam. Mas damos demasiada importância a isso: "não odeio o aplauso, porque tenho sensibilidade; mas nunca os muito bem, bravo me hão de parecer o objetivo que se deva propor à virtude. Preocupo-me bem menos com o que posso ser aos olhos de outrem do que com o que sou a meus próprios olhos; quero ser rico por mim mesmo e não mediante empréstimos. Os estranhos não veem no que nos concerne senão as aparências exteriores, mas todos podem mostrar-se satisfeitos por fora e ser devorados internamente pela febre e o medo. Nosso coração não se vê, e sim nossa atitude. E justo que condenemos a hipocrisia na guerra, pois nada é mais fácil a um homem experiente do que se furtar ao perigo e fingir de valente, com um coração de covarde. Há tantos meios de evitar as oportunidades de se expor seriamente, que é possível enganar mil vezes os outros antes de se encontrar em situação de não poder evitar um risco; e ainda que o risco se verifique, ocasionalmente, é possível, uma vez ao menos, fazer das tripas coração e embora com pavor na alma mostrar alguma segurança. Quantos, se possuíssem o anel de Giges, referido por Platão, que tornava invisível quem o trouxesse ao dedo, virado para a palma da mão, quantos não o utilizariam a fim de se esconder nos momentos em que mais deveriam mostrar-se? E não se arrependeriam de se achar, em vista de sua situação honrosa, na obrigação de assumir atitude resoluta! "Quem pode ser sensível à lisonja e temer a calúnia, senão o desonesto ou o mentiroso? Eis por que todos os juízos que assentam nas aparências exteriores são eminentemente incertos e duvidosos, e ninguém tem mais fiel testemunha de si do que a própria consciência. Quanto malandro temos por companheiro de glória! E quem fica bravamente na trincheira fará mais e melhor do que os cinquenta infantes que, por cinco soldos diários, vão à frente, abrindo passagem e cobrindo-lhe o corpo? "Quando a tumultuosa Roma deprecia alguma coisa, tu não aprovas o julgamento nem tentas reequilibrar os pratos da balança; não procures, portanto, o que és fora de ti mesmo." Achamos que tornar um nome ilustre é coloca-lo em bocas numerosas; esforçamo-nos por que seja considerado e que o lustre adquirido nos traga proveito - e é a melhor desculpa que possamos dar de nossa conduta. Mas a doença leva-nos tão longe que muitos tentam fazer com que falem deles de qualquer maneira. Trogo Pompeu e Tito Lívio diziam de Heróstrato e de Mânlio Capitolino que preferiam uma grande a uma boa reputação. O mal é frequente. Preocupamo-nos mais com que falem de nós do que com o modo por que falam. Basta-nos que o nosso nome ande de boca em boca. Dir-se-ia que ser conhecido consiste em outorgar a outrem o cuidado de nossa vida e sua duração. Quanto a mim, considero que sou somente eu mesmo. Essa outra vida, feita com o que meus amigos sabem de mim, a encará-la como é, despojada de qualquer artifício, bem sei que o que dela tiro e o gozo que me dá não passam de vaidade produzida pela imaginação. Quando morrer, sentirei ainda menos esse efeito; perderei então, totalmente, o uso das coisas realmente úteis que por vezes devemos à vida. Não poderei mais usufruir de minha reputação nem ela poderá tocar-me, atingir-me. Não posso, efetivamente, confiar em que ela se ligue a meu nome, e antes de mais nada porque não sou o único a usa-lo: sobre os dois que tenho, um é comum a todos os membros de minha família, e de outras. Uma destas existe em Paris e Montpellier a que chamam Montaigne; outra na Bretanha e Saintange, a qual se intitula "de Ia Montaigne". Essa interposição de uma sílaba não basta para que nossos feitos e gestos não se confundam a ponto de não poder eu participar de sua glória e não poderem eles ser respingados pela minha indignidade; e isso embora os meus se tenham chamado outrora Eyquem, sobrenome aplicável igualmente a uma família conhecida na Inglaterra. Quanto a meu outro nome, é prenome que pertence a quem o queira usar e a honra que lhe couber poderá caber também a um carregador. Por outro lado, ainda que me tornasse um personagem marcante, que significará a marca? Poderá designar algo inexistente e dar-lhe brilho? "Que a posteridade me aplauda, ser-me-á mais leve a pedra que cobrir meus ossos? Meus manes, meu túmulo, minhas cinzas afortunadas, se cobrirão com isso de violetas?" Mas desse assunto já tratei alhures. Numa batalha em que dez mil homens são mortos ou feridos, falar-se-á de uma quinzena apenas. É preciso que a sorte nos gratifique com um feito de armas realmente importante para que se evidencie alguma ação particular, perpetrada já não digo por um arcabuzeiro mas por um capitão; pois, embora matar um homem, dois ou dez, e enfrentar corajosamente a morte sejam de fato alguma coisa para qualquer um de nós, que tudo jogamos na parada, para o mundo nada têm de extraordinário. Veem-se tantas coisas semelhantes diariamente, e são necessárias tantas para que se obtenha um resultado sensível, que não podemos esperar venham a chamar a atenção de um modo especial: São acidentes comuns, ocorridos com muitos outros e que figuram entre os inúmeros azares do destino. Entre os milhares de valentes soldados que morreram em França, de armas nas mãos, não há cem cuja memória nos tenha alcançado. A recordação, não somente dos chefes mas igualmente dos próprios exércitos, extinguiu-se. Os acontecimentos marcantes de mais de metade do mundo, por não se haverem registrado, não os conheceu ninguém fora do lugar onde ocorreram. Caíram no esquecimento. Se possuísse os relatos das ocorrências ignoradas, acharia neles, creio, exemplos de toda espécie mais importantes do que nos fornecem os fatos conhecidos. Temos a prova na história da Grécia e de Roma, tão rica de feitos nobres e raros. Embora com fartos testemunhos e tantos escritores para os registrar, bem poucos chegaram até nós. "Com dificuldade, um vento brando trouxe-nos a sua fama”. E dentro de cem anos, talvez nem se lembrem de que em nossa época houve guerras civis em França. Os lacedemônios, ao entrar em guerra, ofereciam sacrifícios às musas, a fim de que seus feitos fossem bem e dignamente transmitidos à posteridade, pois consideravam que é por favor divino, raramente concedido, que as belas ações encontram testemunhas que as saibam contar e rememorar. Suponhamos que todas as vezes que nos expomos ao fogo dos arcabuzes, ou corremos um risco, um escrivão se encontre no local para registrá-lo. Que outros cem escrivães o reproduzam, falar-se-á, ainda assim, da coisa durante três dias, se tanto, e ninguém mais dela se ocupará em seguida. Não possuímos a milésima parte dos escritos antigos; a sorte é que lhes dá uma vida mais ou menos longa; e os que nos sobram podem ser os piores ou os melhores. Cabe-nos duvidar, porquanto não conhecemos os restantes. Não se faz história com tão pouco; é preciso ter conquistado impérios e ganho cinquenta batalhas, como César. Dez mil bons companheiros morreram com ele, corajosamente, "sepultos na glória de um momento". Mesmo a memória daqueles de que vimos pessoalmente a obra, não dura mais do que dois ou três anos; esquecem-se, depois, e são como se nunca houvessem existido. Quem quer que atente para a glória que alcançaram as pessoas e os feitos cuja recordação se perpetua nos livros, há de concluir que, guardadas as proporções, bem poucos terão direito a igual destino, Quantos homens virtuosos conhecemos que, sobrevivendo à sua reputação, tiveram a desgraça de ver, ainda em vida, apagarem-se a honra e a glória, justamente conquistadas em sua mocidade! Nesse ponto, tão importante, propõem os sábios um fim mais belo e justo: "a recompensa a uma nobre ação está em a ter realizado; o fruto do serviço prestado é o próprio fruto”. Será possivelmente muito compreensível que um pintor ou qualquer artista, ou um retórico, ou um gramático, se esforce para ganhar renome com sua obra; mas os atos que nos inspira a virtude são demasiado nobres em si para que busquemos uma recompensa fora deles, principalmente na inanidade dos juízos humanos. Se, entretanto, essa ideia falsa contribui para manter os homens no caminho do dever, e os predispõe à virtude; se os príncipes são sensíveis ao fato de se honrar a memória de Trajano e se execrar a de Nero; se os comove ver o nome deste grande malfeitor, outrora objeto de terror, hoje maldito e insultado livremente por qualquer estudante; deixemo-la desenvolver-se à vontade e cuidemos dela com carinho. Platão, que atentava para tudo o que pudesse impelir seus concidadãos à virtude, aconselha-os, entre outras coisas, a não desprezarem a consideração e a estima do povo, e diz que, por uma espécie de inspiração divina, até os maus sabem distinguir, em seus juízos, o mal do bem. Esse filósofo e Sócrates, seu mestre, entendem-se perfeitamente e não hesitam em fazer intervirem as revelações divinas sempre que a força humana se revela impotente, "a exemplo dos poetas trágicos que recorrem aos deuses quando não sabem encontrar um desenlace para sua peça". Eis talvez por que Tímon, invectivando-o, o tachava de grande fabricante de milagres. Se os homens são incapazes de apreciar a moeda verdadeira, usa-se a falsa. Todos os legisladores assim o fizeram; não há legislação em que não se depare com alguma mistura de cerimônias fúteis ou de lendas fantasistas que servem para manter o povo no caminho do dever. É por isso que em sua maioria têm elas origem na fábula e se enriquecem de mistérios sobrenaturais, o que deu crédito a essas religiões nascidas do erro e fez que pessoas sensatas as aceitassem. É também por isso, para levar mais seguramente os homens a acreditarem neles, que Numa e Sertório os alimentavam com tolices. E dizia um de sua ninfa Egéria e outro de sua corça branca que lhes comunicavam as opiniões dos deuses. Essa mesma autoridade que Numa emprestava às suas leis mediante intervenções divinas dava Zoroastro às suas, servindo-se de Oromasdes; e Trismegisto, através de Mercúrio, assim se conduziu com os egípcios. Zámolxis valeu-se de Vesta junto aos citas; Carondas, de Saturno, na Calcedônia; Minos, de Júpiter, em Cândia; Licurgo, de Apolo, na Lacedemônia; Draco e Sólon, de Minerva, em Atenas. Toda legislação traz um deus à frente. Em todas trata-se de um falso deus; somente emana do verdadeiro Deus a que Moisés deu ao povo da Judéia à saída do Egito. A religião dos beduínos, diz Joinville, declara, entre outras coisas, que a alma de quem morre por seu príncipe passa para um corpo mais feliz, mais belo, mais forte do que o primeiro, o que os induz a se exporem de bom grado ao perigo: "desafiavam o ferro, abraçavam a morte, considerando covardia poupar uma vida que devia renascer". Eis uma crença salutar, embora falsa. E cada nação possui certo número de crenças semelhantes. Mas o assunto merece comentário especial. Uma palavra ainda. Não aconselho tampouco às senhoras denominarem honra o que constitui seu dever, "assim como na linguagem comum só se chama bem ao que parece glorioso ao povo". O dever é o fruto, a honra, a casca, e as mulheres se prejudicam a si mesmas invocando tal desculpa quando se recusam a entregar-se, pois sua intenção, seu desejo, sua vontade nada tem a ver com a honra, e devem ser mais considerados, no caso, do que o fato em si: "já sucumbiu aquela que recusa porque não lhe é permitido sucumbir”. A ofensa a Deus e à consciência é tão grande quando resulta do desejo como quando provém do fato consumado. Ademais, são fatos que ocorrem em lugares geralmente ocultos, e ser-lhes-ia muito fácil escondê-los dos outros, que outorgam a honra, se não praticassem a castidade por si mesma. Toda pessoa honrada prefere perder a honra a agir contra a própria consciência. CAPÍTULO XVII DA PRESUNÇÃO Há outro tipo de glória que consiste em termos opinião demasiado boa de nós mesmos. Essa afeição imprudente faz que nos representemos aos nossos próprios olhos diferentes do que somos. E atua como a paixão amorosa, que empresta ao objeto de seu amor a beleza e a graça, turvando e alterando a razão de quem ama e fazendo da pessoa amada um ser muito mais perfeito do que é. Não quero, entretanto, passando de um extremo a outro, que um homem se despreze ou se estime menos do que vale. Nosso julgamento deve conservar sua retidão e é justo que nisso, como em outras coisas, veja em que consiste a verdade. Se é César, que se considere corajosamente o maior guerreiro do mundo. Tudo é convenção; as convenções guiam-nos e nos levam a menoscabar a realidade. Penduramo-nos aos galhos e largamos o tronco, que é essencial. Ensinamos as mulheres a corar ao ouvirem o que em absoluto não receiam fazer; não ousamos chamar a nosso sexo pelo nome certo, mas não tememos empregá-lo na devassidão. Não querem as convenções que nos refiramos aos atos lícitos e naturais que entretanto praticamos; a razão aconselha-nos a não cometer os ilícitos e maus, mas ninguém a ouve. Eu mesmo, neste momento, estou sendo tolhido por essas regras que as convenções nos impõem e que nos recomendam não falarmos de nós mesmos, nem bem nem mal. Mas não as observamos. Aqueles que os fados, bons ou maus, escolheram a fim de que vivessem em situações elevadas, podem com seus atos públicos revelar o que são; mas os que a sorte deixou mergulhados na massa e de quem ninguém há de falar se eles próprios não o fizerem, são desculpáveis quando, a exemplo de Lucílio, ousam falar de si aos que por eles se interessam: "confiava seus segredos ao papel como a um amigo fiel, e, feliz, ou infeliz, nunca teve outro confidente; por isso toda a sua longa vida aí se expõe, e aparece pintada como em um quadro votivo". O papel era depositário de seus atos e pensamentos, nele se pintava como se via. Rútilo e Escauro em fazendo o mesmo não tiveram menor crédito nem foram menos apreciados. Lembro-me de que em minha infância observavam em mim certos gestos que evidenciavam alguma vaidade e uma absurda altivez. A esse respeito, quero dizer desde já que não é raro termos qualidades e tendências próprias que se enraízam em nós a ponto de não as percebermos. O corpo retém por vezes alguns vestígios delas, bem contra a nossa vontade. Alexandre tinha o hábito de inclinar a cabeça levemente para um lado, o que se coadunava com seu tipo de beleza. Alcibíades falava lenta e gravemente. Júlio César coçava a cabeça com o dedo, indício de graves preocupações. Cícero, se não me engano, franzia o nariz, sinal de temperamento zombeteiro. Hábitos semelhantes podem surgir em nós sem que os percebamos. Não falo de outros, estudados, como as saudações e reverências que nos outorgam, por vezes erroneamente, a reputação de humildade e cortesia. Ora, a humildade eu só a admito quando se trata de glória. Sou pródigo em saudações, principalmente no verão, e nunca as recebo sem as devolver, venham de quem vierem, a menos que as pessoas estejam a meu serviço. Desejaria que certos príncipes de minhas relações se mostrassem mais parcimoniosos e as distribuíssem somente a quem as merecesse. Não sendo discretos, desvalorizam-nas. Entre as atitudes estranhas mencionemos a arrogância do imperador Constâncio que em público mantinha a cabeça ereta, não a virando nem inclinando, nem mesmo para enxergar quem o saudava, a seu lado. Mantinha-se imóvel, não acompanhado sequer o movimento de seu carro, não ousando cuspir, nem se assoar, nem enxugar o rosto diante dos outros. Não sei se os gestos que observavam em mim eram dessa natureza e se eu realmente tinha tendência para a vaidade; é possível. Não posso responder por meus defeitos físicos, mas quanto aos movimentos da alma quero confessar aqui o que sinto. A presunção exerce-se de duas maneiras: em nos superestimando e em subestimando os outros. Quanto à primeira maneira, parece-me que certas considerações devem ser ponderadas. Sou vítima de um erro sentimental que me desagrada e se me afigura iníquo e ainda mais importuno. Tento corrigi-lo, mas não posso libertar-me: subestimo o valor das coisas que possuo e, ao contrário, superavalio as que não me pertencem ou se acham fora de meu alcance. Assim, o privilégio da autoridade impele certos maridos a desprezarem suas mulheres, e certos pais a desdenharem os filhos. Chamado a escolher entre duas obras iguais, preteriria sempre a minha, não porque meu julgamento, preocupado com o desejo de progredir continuamente, não me dê satisfação, mas porque a própria posse já diminui o valor do que possuímos e influi em nosso livre-arbítrio. Aprecio particularmente as constituições, os costumes e as línguas da antiguidade e verifico que pela sua nobreza o latim me seduz mais do que fora natural e me impressiona como impressiona as crianças e o povo. O nível de vida, a residência, o cavalo de meu vizinho parecem-me superiores aos meus, embora importem em despesas idênticas, somente porque não são meus. Mais ainda, não tenho consciência do que possa valer; admiro a segurança que todos exibem e a confiança que têm em si, enquanto não há nada que eu imagine saber nem que eu pense poder executar. Quando me proponho fazer tal ou qual coisa, não tenho de antemão a noção exata dos meios de que posso dispor para obter êxito e somente percebo o que está em minhas forças pelo resultado. Duvido de mim como dos outros. Disso decorre que quando faço um trabalho merecedor de louvores, atribuo-o antes à sorte do que ao meu talento, tanto mais quanto só o acaso me guia; e o temor. Tenho ainda isso de particular que habitualmente, entre as opiniões que a antiguidade emitiu acerca do homem em geral, agradam-me mais as que revelam maior desprezo por nós, que nos aviltam e desdenham. A filosofia nunca se me afigura mais certa do que quando combate nossa presunção e nossa vaidade, quando reconhece de boa fé sua ignorância e sua fraqueza. Parece-me que a origem dos maiores erros de nosso julgamento, tanto do indivíduo como da massa, e o que os mantém vivos, é a opinião demasiado favorável que o homem tem de si. Esses sujeitos que cavalgam a órbita de Mercúrio e veem tão claramente o que ocorre no céu, fazem-me dar de ombros. Deparo, com efeito, neste meu estudo, que tem por objeto o homem, com tal variedade de juízos, tal labirinto de dificuldades, tanta incerteza e indecisão entre os que ensinam a sabedoria, que se essa gente não consegue sequer conhecer-se a si mesma, nem entender as condições de sua existência, que tem continuadamente sob os olhos, que nela reside, se essa gente não sabe como se move o que ela própria põe em movimento, nem como nos descrever as molas que tem nas mãos, eu, por meu lado, sinto-me pouco propenso a nela acreditar quando nos expõe as causas a que atribui o fluxo e o refluxo do Nilo. A curiosidade de tudo conhecer é um flagelo da humanidade, rezam as Escrituras. Voltando ao meu caso particular, parece-me difícil que alguém se subestime tanto. Conduzo-me como todo mundo, salvo em relação a mim mesmo. Tenho os piores defeitos, os mesmos que se encontram em todo mundo, mas os reconheço, e só me vanglorio de saber o que valho. Se tenho alguma vaidade, é superficial e provém da traição de meu temperamento. Não tendo raízes profundas, tal defeito escapa a meu julgamento, e se me borrifa, não chega a molhar-me. Pois, em verdade, as minhas obras, quaisquer que sejam, não me satisfazem nunca e não considero recompensa a aprovação dos outros. Tenho o julgamento delicado e difícil, especialmente quanto ao que me concerne; sinto-me indeciso, irresoluto e fraco; nada de mim satisfaz a razão. Sou bastante perspicaz e vejo com justeza, mas, à obra, minha vista se turva. É o que experimento nitidamente na poesia; aprecio-a muito e sei julgar as obras alheias, mas quando procuro escrever poemas sou como uma criança, e o que faço não o suporto: "tudo proíbe a mediocridade aos poetas: os deuses, os homens, as colunas dos pórticos onde se afixam os versos". Prouvera Deus se encontrasse tal pensamento nos mostruários dos impressores, a fim de vedar a entrada a bom número de versificadores! "Porém, ninguém acredita mais em si do que um mau poeta”. Por que não somos como alguns povos? Dionísio, o Antigo, apreciava sua poesia acima de tudo. Por ocasião dos jogos olímpicos, juntamente com carros que sobre-excediam os outros em magnificência, as tendas e os pavilhões luxuosamente decorados, enviou poetas e músicos para que apresentassem seus versos. Ao serem julgados, interessaram a princípio, graças à dicção dos atores, mas percebendo-lhes a mediocridade em seguida, o povo os ridicularizou e, exasperando-se, assaltou as tendas do tirano e as desmantelou. Seus carros não tiveram melhor êxito na corrida de que participaram; o navio que transportava o seu séquito não pôde ancorar na Sicília e foi espatifar-se de encontro às costas de Tarento. E esse mesmo povo não duvidou um só instante de que não se tratasse de um efeito da cólera dos deuses irritados com o mau poema. E os marinheiros salvos do naufrágio eram da mesma opinião. O oráculo que predisse a morte de Dionísio pareceu mesmo ratificar o julgamento. Dizia que teria chegado ao fim quando vencesse os que valiam mais do que ele. Quis o tirano aplicar o vaticínio na guerra contra os cartagineses, cujo poderio ultrapassava o seu. Não explorava a fundo as vitórias e continha seus exércitos para não cair no caso previsto, mas na verdade não aprendera o sentido recôndito do oráculo. O deus visara o momento em que, pela intriga, venceria em Atenas os poetas trágicos, mais talentosos, obtendo contra toda justiça que uma sua peça fosse representada. Logo após o sucesso, morreu subitamente, em parte por causa da grande alegria que experimentara. Quando porventura acho em minha produção algo desculpável, não penso no seu valor próprio; o que a meus olhos lhe dá crédito são as coisas piores que vejo apreciarem. Invejo a felicidade dos que se satisfazem com o que produzem, pois é meio fácil que temos de alcançar o prazer, visto que o tiramos de nós mesmos, e os invejo principalmente quando demonstram persistência e constância. Conheço um poeta ao qual, delicada ou brutalmente, em público ou em particular, céus e terra declaram que não entende do riscado. Nem por isso renuncia ao que quer que seja, e sempre recomeça e consulta e persiste, tanto mais confiante em sua própria opinião quanto é o único a pensar que julga com justeza. Falta muito para que minhas obras me satisfaçam, e quanto mais as retifico mais me aborrecem: "quando as releio, envergonho-me de as ter escrito, pois vejo nelas muitas coisas que, mesmo a meus olhos indulgentes de autor, são indignas de perdurar". Tenho sempre uma ideia em mente, mas não a percebo com nitidez. Sem cessar entrevejo, como em sonho, uma forma melhor, mas não a posso apreender nem realizar. Quanto à ideia mesma, não é nunca de primeira ordem. Isso me induz a concluir que as produções desses espíritos tão ricos e grandes de outrora ultrapassam, de muito, o extremo limite de minha imaginação e do que aspiro atingir. Seus escritos não somente me cativam, mas ainda me maravilham; aprecio-lhes a beleza, a qual talvez não me apareça em sua plenitude mas tão somente na medida do que posso perceber. O que quer que empreenda, invoco as Graças, a fim de, como diz Plutarco de alguém, conciliar seus favores, "pois tudo o que agrada, e encanta os sentidos dos mortais, às Graças o devemos"; mas nunca elas me atendem. Tudo em mim é grosseiro; careço de gentileza e beleza; não sei valorizar as coisas além de seu valor; minha maneira de apresentá-las não põe em relevo a matéria, por isso necessito tê-la consistente, interessante e brilhante em si. Quando trato certos assuntos mais vulgares com algum espírito, faço-o por inclinação natural, não me comprazendo nessa sabedoria convencional, impregnada de tristeza, que granjeia a simpatia da sociedade. E por desejo de me divertir, bem mais do que por convirem a meu estilo, mais adequado aos temas severos, se é que posso chamar estilo, a uma linguagem informe, desobediente a todas as regras, verdadeiro jargão popular, unida a uma redação inominável, mal equilibrada, falta de clareza e inconclusiva, à moda de Amafínio e de Rabírio. Não sei agradar, nem divertir, nem interessar: a melhor história do mundo, dita por mim, perde graça e encanto. Só sei falar quando me sinto tomado pelo assunto, e careço inteiramente dessa facilidade que vejo em muitas pessoas de minhas relações, as quais prendem a atenção de todos, divertem um príncipe sem o cansar, com toda espécie de considerações. Não lhes falta assunto porque têm a faculdade de se apoderar de qualquer um e tratá-lo segundo a disposição de espírito e o grau de inteligência dos que os ouvem. Aos príncipes não apetecem as conversações sérias, nem a mim contar lorotas. As razões que primeiro se me apresentam à ideia, as mais acessíveis e em geral as mais facilmente aceitas, não as sei empregar. Sou um mau orador de improviso e qualquer que seja o tema vou diretamente ao fundo, e digo o que sei. Cícero reconhece que nas questões filosóficas o mais difícil é a entrada em matéria. Talvez por isso mesmo passo logo prudentemente à conclusão. Mas é preciso também saber afinar seu instrumento e regular-lhe as cordas, a fim de que o som mais agudo seja o menos comum. Há pelo menos igual talento em dar realce a um assunto vazio de sentido quanto em defender outro de peso. Ora cumpre tratá-lo com leveza, ora ir a fundo no tema. Bem sei que em sua maioria os homens se atêm ao menos complexo desses processos, e encaram as coisas superficialmente. Xenofonte ou Platão são por vezes seduzidos por essa maneira simples e habitual de ventilar as questões, condimentando-as entretanto com esse encanto que lhes é peculiar. Minha linguagem nada tem de fácil e fluida; é antes áspera, livre, desregrada. Quero-a assim, não por decisão, e sim por tendência natural, mas sinto que às vezes não me controlo suficientemente e que em me esforçando por evitar o artifício e a afetação, caio no excesso contrário: "procuro ser breve e torno-me obscuro". Platão diz que a sobriedade e a prolixidade são qualidades que não intervêm no mérito da linguagem. Por mais que tentasse tornar a minha igual, uniforme, bem ordenada, não o conseguiria. Embora as frases curtas e ritmadas de Salústio se acertem melhor à maneira de me exprimir, acho o estilo de César mais nobre e menos passível de imitação; e apesar de ser mais levado a aproximar-me do de Sêneca, o fato não me impede de preferir o de Plutarco. Nos atos e nas palavras obedeço à minha natureza, o que faz que talvez me saia melhor falando do que escrevendo. O movimento e a ação dão vida às palavras, principalmente nos que, como eu, têm o gesto brusco e se entusiasmam. A atitude, a expressão, a voz, a roupa, as circunstâncias podem valorizar o que por si mesmo não tem grande valor, como a loquacidade. Messala, em Tácito, queixa-se das vestimentas demasiado estreitas que então se usavam e do tipo das tribunas que prejudicavam os efeitos da eloquência. Meu francês é alterado pela pronúncia e outros defeitos inerentes à minha região; nunca vi alguém, do sul do Loire, cuja maneira de falar não lhe revelasse francamente a origem e não ferisse os ouvidos puramente franceses. No entanto, não sou muito sabido no dialeto perigordino e não o emprego mais do que o alemão, nem me preocupo muito com o saber. Trata-se aliás de uma língua (como as demais dessa região, do Poitou a Auvergne) sem grande força expressiva. Mais abaixo, do lado das montanhas, há no entanto um falar gascão que acho particularmente belo, seco, sóbrio, expressivo, mais viril e marcial do que os outros e tão nervoso e forte quanto o francês é gracioso, delicado e rico. No que concerne ao latim, minha língua materna, por não o praticar perdi a facilidade de o falar correntemente e mesmo de o escrever, o que fazia outrora e me valera o apelido de mestre João. A beleza é elemento de importância nas relações sociais. É o meio mais eficiente de aproximação, e não há homem, por mais grosseiro e sorumbático que seja, que não se sinta influenciado pelo que ela tem de agradável. O corpo é parte importante de nós, ocupa um lugar relevante; sua estrutura e seu funcionamento merecem portanto toda consideração. Erram os que o querem encarar, à parte, isolando-o da alma, outro elemento primordial do nosso ser. E necessário, antes, juntá-los se se acham desunidos e apertar o nó que os prende um ao outro. Cumpre exigir da alma que não tente afastar-se do corpo, desprezando-o, abandonando-o (o que só se poderia fazer em virtude de uma inspiração infeliz), mas que se aproxime dele, que o envolva, o acarinhe, o assista, o controle, o aconselhe, o corrija e o reponha no bom caminho quando se perde. Que lhe sirva em suma de esposa, de forma a não se verificarem divergências aparentes nos atos de ambos e agirem de comum acordo. Os cristãos têm a esse respeito orientação preciosa. Sabem que a justiça divina impõe essa ligação, essa vida em comum, a ponto de ter tornado o corpo suscetível de recompensas eternas, pois Deus dá ao homem inteira liberdade de ação e quer que participe totalmente, e segundo seus méritos, dos castigos e prêmios. A seita dos peripatéticos, a mais compenetrada das necessidades das coletividades, atribui à sabedoria sozinha o cuidado de promover a associação benéfica dos dois elementos. Essa escola demonstra com clareza o erro em que laboraram as outras seitas ao não apreciar devidamente essa ligação íntima e encarar separadamente cada uma das partes, declarando-se umas favoráveis ao corpo e outras à alma, perdendo de vista o objeto de seus comentários, o homem, e o seu guia, que em geral afirmam ser a natureza. A primeira distinção que se verificou entre os homens, a consideração que inicialmente determinou a preeminência de uns sobre outros, foi determinada provavelmente pela vantagem da beleza: "a repartição das terras fez-se a princípio proporcionalmente à beleza, ao vigor e à inteligência de cada um; porque então a beleza e o vigor eram as principais recomendações". Sou de estatura pouco abaixo da mediana; é um defeito não somente nocivo à beleza mas ainda incômodo para os que exercem comandos e cargos, pois carecem assim da autoridade que outorgam uma bela estatura e um físico imponente. C. Mário não aceitava de bom grado os soldados cuja altura não alcançasse seis pés. O Cortesão tem razão quando recomenda para o fidalgo perfeito uma estatura mediana e proscreve qualquer particularidade que o distinga especialmente. Mas a aceitar-se essa mediania, não o escolheria como soldado se ele estivesse antes aquém do que além dela. Os homens pequenos, diz Aristóteles, são bonitos, mas não belos; pois assim como a grandeza dos feitos revela uma grande alma, a estatura e o porte associam-se à beleza. Os etíopes e os indianos, diz igualmente esse autor, levavam em conta a beleza e a estatura na escolha de seus reis e magistrados. Estavam certos, porque um chefe com tais qualidades, à frente de uma tropa, inspira respeito aos seus e temor aos inimigos. À testa marcha Turno de armas à mão, magnífico e ultrapassando de uma cabeça os que o cercam. Nosso divino e soberano rei que está nos céus e cujos atos todos devem ser religiosamente meditados, com atenção e respeito, não desdenhou distinguir-se pela beleza física: "era o mais belo dos filhos dos homens". E Platão deseja que aqueles que coloca à testa da República, unam a beleza à moderação e ao caráter. É humilhante para o nosso amor-próprio ver alguém procurar-nos em meio à criadagem: "onde está o senhor?" Sobram-nos então, apenas, os restos das saudações endereçadas ao barbeiro e ao secretário. Tal desventura ocorreu com o pobre Filopêmen. Chegara antes dos seus à casa em que o esperavam. Sua anfitrioa não o conhecia e ante seu aspecto bisonho pediu-lhe que fosse ajudar os servidores a carregarem água e atiçarem o fogo para a recepção de Filopêmen. Vendo-o nessa tarefa, ao chegarem, perguntaram-lhe os fidalgos de seu séquito o que fazia: "Pago a desgraça de ser feio", respondeu-lhes. Os outros gêneros de beleza são do domínio da mulher: o da estatura é o único peculiar ao homem. Nem a fronte ampla e bem desenhada, nem a limpidez e a doçura dos olhos, nem o nariz benfeito, nem as orelhas e a boca pequenas, nem a bela barba castanho-escura, abundante e regular, nem a cabeleira altiva, nem a proporção perfeita da cabeça, nem o frescor da tez, nem os traços agradáveis, nem o corpo sem odores, nem os membros bem equilibrados podem fazer de um homem pequeno um belo homem. Sou atarracado e forte, tenho o rosto cheio sem ser balofo; meu humor flutua entre jovial e melancólico, meu temperamento é algo sanguíneo, o que faz que tenha as pernas e o peito peludos, a saúde boa, robusta e raramente, até a idade bem avançada, a perturbou a doença. Assim foi, pelo menos, até hoje, pois agora já me aproximo da velhice, tendo ultrapassado há muito os quarenta, e já não vou tão bem: "pouco a pouco extinguem-se as forças, esgota-se o vigor e a decrepitude cresce". O que serei doravante não será mais do que um meio ser, não será mais eu mesmo: "os anos arrancam-nos sem descontinuar algum pedaço. Fisicamente não tive nem destreza nem talentos especiais, embora filho de um pai muito vivo e de uma agilidade que conservou até a mais avançada velhice. Não havia em seu tempo homem que o igualasse nos exercícios do corpo, como não encontrei muitos que não me sobre-excedessem, salvo na corrida a pé na qual, contudo, não fui além dos medíocres. Na música, vocal ou instrumental, fui inepto e nunca puderam ensinar-me coisa alguma. Na dança, no jogo da bola, na luta, revelei-me sempre fracalhão e vulgar. Era absolutamente nulo em natação, na esgrima, na acrobacia e no salto. Sou tão desajeitado de mão que mal posso reler o que escrevo, a ponto de preferir escrever de novo a decifrar minhas garatujas. Não leio muito melhor do que escrevo, e sinto que canso quem me escuta. Sou todavia suficientemente letrado. Incapaz de dobrar com eficiência uma carta, não sei tampouco apontar a pena. Não sei trinchar à mesa, nem arrear um cavalo, nem carregar um falcão ao punho e lança-lo sobre a presa, nem me fazer entender dos cães, pássaros e cavalos. Minhas qualidades físicas estão em suma perfeitamente de acordo com as de minha alma; não há em mim nenhuma vivacidade, mas apenas um vigor geral bem caracterizado. Resisto facilmente ao trabalho, sob a condição de mo impor eu mesmo e em meu proveito: "o prazer que me causa o trabalho, faz-me esquecer a fadiga". Se não encontro prazer na tarefa, se outra coisa que não minha simples e livre vontade me obriga a trabalhar, já não valho mais nada. Mesmo porque cheguei a um ponto em que, salvo em benefício da saúde e da vida, nada quero que me aborreça ou me constranja: "por esse preço não desejaria toda a areia do Tejo com o ouro que carreia para o oceano”. Sem ocupação obrigatória, livre por natureza e pela vida que escolhi, preferiria dar meu sangue a meu esforço. Minha alma ama a liberdade e a independência e está habituada a conduzir-se a seu bel-prazer. Não tendo tido até agora nem chefe, nem senhor, fiz o que quis e do jeito que me apeteceu; isso amoleceu-me e me tornou inútil aos outros, e somente a mim mesmo útil. Não fui forçado a lutar contra esse temperamento preguiçoso e tardo, pois achei-me desde a infância em situação financeira de tal ordem que não a pude mudar (situação que mil outros de minhas relações teriam aproveitado para conquistar glórias e honrarias, agitar-se e aborrecer-se). Tal circunstância, unida a minhas tendências inatas, fez que nada buscasse nem conquistasse: "o Aquilão em verdade não incha as minhas velas, mas Austro não perturba a minha marcha serena; em força, talento, beleza, virtude, berço e bens, figuro entre os últimos da primeira classe e os primeiros da última". Não precisei senão contentar-me com o que tinha, o que constitui entretanto decisão com a qual não se depara comumente, e menos ainda entre os ricos do que entre os que nada possuem, porquanto a sede de riquezas, como as demais paixões, desenvolve-se na medida em que se pratica, e a moderação é virtude mais rara do que a paciência. Nunca me dediquei a qualquer trabalho aborrecido e só me ocupei com gerir meus próprios negócios, ou, se tive outros, o que só aconteceu quando pude impor a condição de tratá-los como bem entendesse, deles fui encarregado por pessoas que me conheciam, confiavam em mim e não me atormentavam. Os indivíduos espertos sabem tirar proveito até mesmo de um cavalo asmático e turrão. Minha infância foi orientada com doçura; deram-me grande liberdade e pouparam-me toda disciplina rigorosa. Atribuo a tal regime o meu temperamento sensível, incapaz de enfrentar qualquer preocupação, a tal ponto que me esforço por ignorar prejuízos e situações incômodas; E bem sei, pelas minhas despesas, quanto me custa alimentar um desinteresse que faz com que "o supérfluo escape aos olhos do dono e aproveite aos ladrões". Prefiro não saber exatamente o que possuo, o que me permite ignorar ao certo o montante dos prejuízos. Aos que vivem comigo, peço que me enganem e salvem as aparências se não me podem dar sua afeição. Sem força de vontade suficiente para suportar as contrariedades a que somos sujeitos e não sendo forçado a prestar uma atenção constante aos negócios, alimento em mim, quanto posso, o sentimento de tudo abandonar aos fados, tudo encarando com pessimismo e resignado a sofrer o pior com doçura e paciência. Somente em o conseguir é que me aplico; é o objetivo a que visa o meu raciocínio. Se corro algum perigo, penso menos em o evitar do que na desvalia do que evito; e pergunto sempre que mal haveria nisso. Não podendo regular os acontecimentos, regulo-me a mim mesmo. Submeto-me a eles, porque não os posso submeter a mim. Não sei desviar o azar, nem como escapar-lhe ou dominá-lo: nem tenho a prudência necessária para dirigir e corrigir as coisas segundo meus interesses, e mais incapaz ainda me acho dessa paciência que exige atenção minuciosa e exaustiva para assim agir. O que me parece mais penoso, entre as coisas que me oprimem, é ficar na expectativa, tomado de receio e esperança a um tempo. Resolver, mesmo a respeito dos atos menos importantes, é-me desagradável; e meu espírito sofre mais quando presa de agitação e dúvida, e instado a ponderar, do que quando se resigna e aceita a imposição do destino. As paixões jamais perturbaram o meu sono mais do que o faz a necessidade de uma resolução. Por isso, evito igualmente os caminhos íngremes e escorregadios e sigo as estradas batidas, por barrentas e esburacadas que sejam, porque são mais seguras e delas não se pode rolar. E prefiro uma desgraça irremediável que provoque imediato e violento sofrimento, mas na qual não mais pensarei e que não procurarei remediar - sem certeza de êxito - mediante mil tormentos: "os males incertos são os que mais pesam". Na hora dos acontecimentos conduzo-me virilmente, depois de ter agido como uma criança nas circunstâncias que os provocam. O receio da queda dói-me mais que a própria queda, custa mais a mecha do que o sebo. O avarento vive pior do que o pobre por causa de sua paixão: e o ciumento pior que o enganado; e não raro há menor prejuízo em perder o vinhedo do que lhe disputar a posse nos tribunais. A marcha mais lenta é a mais eficiente e a mais fácil de manter; não exige ajuda de ninguém. O exemplo seguinte, de um fidalgo que muitos conheceram, apresenta certo caráter filosófico: casou tarde, tendo vivido à tripa forra na mocidade. Ademais, grande conversador e mui zombeteiro. Lembrando-se de que os maridos enganados lhe haviam servido de alvo para comentários jocosos, desposou uma mulher que fora buscar onde as tem, quem queira, por dinheiro; e com ela estabeleceu certas convenções. Assim é que se saudavam dizendo ele: bom dia, puta! - ao que ela respondia: bom dia, como! E com essa combinação entretinha abertamente os que o visitavam. Desse modo antecipava-se às zombarias e fazia-se insensível a quaisquer alusões. Quanto à ambição, vizinha da presunção, ou antes filha, fora preciso para que eu alcançasse uma alta posição que a sorte me viesse buscar pela mão, pois esforçar-me por uma esperança aleatória, submeter-me a toda espécie de obrigações, como os que, no início de sua carreira, desejam sobressair, não o saberei fazer: "não pago esse preço pela esperança"? Apego-me ao que vejo e alcanço e não me afasto muito do porto: "um de meus remos afunda na água, o outro toca a areia da praia". Por outro lado, é difícil atingir uma posição sem arriscar o que se tem, e sou de opinião que, se basta para manter a condição em que se nasce e foi educado, é loucura largá-lo na esperança de aumentá-lo. É desculpável que se aventure quem não teve a sorte de um domicílio e a possibilidade de viver tranquilamente; a necessidade leva sempre à procura da fortuna: "cumpre ser ousado na desgraça". Desculpo mais o caçula que arrisca a herança do que o mais velho a quem cabe manter intata a honra da família e que só pode tornar-se necessitado por culpa própria. Eu, felizmente, graças aos conselhos de bons amigos, encontrei o meio mais rápido e fácil de me libertar de tais veleidades e sossegar ("haverá coisa mais suave do que gozar a vitória sem ter combatido?"). Pois percebi que minhas forças não dão para grandes coisas e recordo sempre as palavras do Chanceler Olivier: "os franceses assemelham-se a macacos que pulam de galho em galho até o topo das árvores, só parando quando atingem o mais alto, e aí, então, mostram o traseiro". E vergonhoso pôr à cabeça um peso impossível de carregar, para depois afrouxar e fugir ao fardo. As próprias qualidades, de que posso jactar-me, são inúteis neste século: a simplicidade de meus hábitos seria tachada de covardia e fraqueza; minha fé e meus escrúpulos, de superstição; minha franqueza e liberdade de atitude seriam julgadas importunas e ousadas. Há males que vêm para bem: é vantajoso nascer neste século de depravação, porque passamos por virtuosos com bem pouco; quem não é, em nossos dias, parricida ou sacrílego é homem de bem: "hoje em dia, se teu amigo não nega que lhe hajas confiado um dinheiro; se te devolve teu velho saco com tua moeda intata, é um prodígio de boa fé que deves inscrever no livro dos toscanos, sacrificando uma ovelha aos deuses". Nunca houve para os príncipes tempo e lugar mais propícios a excepcional recompensa pela prática da bondade e da justiça. O primeiro que se disponha a conquistar crédito. e poder trilhando esse caminho, ou me engano muito ou suplantará todos os demais. A força e a violência podem muito, mas nem sempre podem tudo. Os comerciantes, magistrados e artesãos de nossas aldeias rivalizam com a nobreza quanto à valentia e à ciência militar; sustentam honrosamente os combates, tanto individual como coletivamente; batem-se, defendem as cidades nas lutas atuais e um príncipe entre eles não saberia como realçar-se. Cumpre-lhe pois ilustrar-se por sua humanidade, seu amor à verdade, sua lealdade e moderação e, sobretudo, seu espírito de justiça. São qualidades raras hoje, ignoradas, banidas, e são as que pedem os povos que ele deve governar, e são as que lhe granjeariam a afeição das massas, porque delas tiram estas maiores vantagens: "nada é tão popular quanto a bondade". Em relação ao meu século, poderia achar-me grande e raro tanto quanto me considero pequeno e vulgar se me comparo aos homens de alguns séculos passados, em que se viam indivíduos que, além de dotados das qualidades comuns e importantes, eram moderados na vingança, indulgentes com as ofensas recebidas, fiéis à palavra empenhada, hostis à duplicidade e à moral demasiado inconsistente, intransigentes com a sua fé. Por mim, preferiria ver ruírem as coisas públicas a subordinar-lhes minha crença. Quanto a essa nova virtude do artifício e da dissimulação, tão apreciada nestas eras, odeio-a supremamente. Entre todos os vícios, não conheço nenhum que revele tanta covardia e tanta baixeza. E característico da covardia e do servilismo, e predispõe à perfídia, fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar como se é. Acostumados que andam todos a exprimir sentimentos falsos, não lhes constitui caso de consciência desmentirem as palavras pelos atos. Um homem generoso não deve falar contra seu pensamento, pois deseja que se possa ler em sua alma. Tudo nela é bom ou humano, ao menos. Aristóteles define pela magnanimidade o fato de odiar e amar abertamente, de julgar e falar com franqueza e de não atentar para a aprovação ou a crítica alheias em detrimento da verdade. Apolônio dizia que mentir era peculiar ao escravo e falar a verdade a característica do homem livre. A verdade é a condição primeira, fundamental da virtude, é preciso amá-la por si mesma. Quem se atém à verdade por obrigação, por lhe ser ela útil, e não teme mentir quando isso não acarreta consequências, não está suficientemente preso a ela. Por temperamento fujo da mentira; o simples pensamento da mentira é-me odioso; sinto vergonha em mim mesmo e um pesado remorso se por vezes me ocorre mentir, quando surpreso e obrigado a responder sem refletir. Não há como dizer sempre tudo; seria tolice; mas o que se diz deve ser o que se pensa. Não sei que vantagem podem esperar dissimulando e agindo continuadamente ao contrário do que pensam, senão a de que os outros acreditam como quando falam a verdade. Dessa maneira podem enganar uma ou duas vezes as pessoas, mas vangloriarem-se de dissimular constantemente o pensamento e proclamarem, como alguns dos nossos príncipes, que "jogariam a camisa ao fogo se ela pudesse vislumbrar-lhes as verdadeiras intenções"; o que foi dito por Metelo Macedônio, um homem da antiguidade; ou dizerem em público que "quem não sabe dissimular não sabe reinar", é advertir que não dirão senão mentiras: "quanto mais fino e hábil o homem, mais odioso e suspeito se torna ao perder sua reputação de honestidade". Seria ingenuidade levar a sério quem, voluntariamente, se apresenta, como Tibério, diferente por fora do que é por dentro. Não sei como tais indivíduos podem ter relações com outros, pois quem é desleal com a verdade é igualmente desleal com a mentira. Aqueles que em nossa época consideram dever precípuo do príncipe tratar unicamente de seus negócios, os quais se sobreporiam à fé e à consciência, podem aconselhar com aparência de razão a que assim aja quem se encontre em situação tal que lhe seja dado consolidá-la em faltando uma só vez à palavra. Mas as coisas não acontecem desse modo: estamos sujeitos a repetir semelhantes barganhas. Assinam-se tratados de paz mais de uma vez na vida. A tentação do lucro incita a uma primeira deslealdade, para a qual há sempre uma oportunidade, como em todas as más ações. Sacrilégios, assassínios, rebeliões, traições sempre decorrem da esperança de um resultado favorável; mas a primeira vantagem dá origem a numerosas desvantagens e rouba ao príncipe, por causa do exemplo dado, todas as suas relações e possibilidades de negociar. Quando Solimão, da raça dos otomanos, raça pouco escrupulosa quanto às promessas e aos pactos, invadindo Otranto, no meu tempo de infância, soube que Gratinare e os habitantes de Castro tinham sido feitos prisioneiros após a rendição da praça e a despeito do ato de capitulação, mandou imediatamente liberta-los, observando que ainda tinha grandes empreendimentos em vista e que essa deslealdade, apesar da possível vantagem momentânea, o desmoralizaria e provocaria uma onda de desconfiança capaz de lhe acarretar prejuízos consideráveis. Quanto a mim, prefiro ser indiscreto e importuno a ser lisonjeador e dissimulado. Confesso que pode haver alguma altivez e obstinação na inteira liberdade e sinceridade que mantenho para com todos sem distinção, pois creio que me mostro mais independente com as pessoas com as quais menos o deveria ser. O receio de parecer demasiado respeitoso leva-me a um excesso de altivez, não por cálculo, certamente, mas em virtude de um impulso natural. Empregando com os grandes a mesma liberdade, a mesma linguagem e a mesma desenvoltura que uso com os meus, sinto que friso por vez a incivilidade e a indiscrição; mas além de ser eu assim, não tenho o espírito bastante rico, nem para esquivar-me a uma pergunta imprevista mediante algum circunlóquio, nem para mascarar a verdade. E careço de memória suficiente para recordar o que então tenha dito, bem como de segurança para continuar. E é por fraqueza que me mostro altivo. Daí resulta abandonar-me à minha ingenuidade de dizer sempre o que penso, tanto por temperamento como por decisão, contando com a sorte quanto ao que possa ocorrer. Aristipo dizia que o principal fruto que colhera na filosofia fora falar livremente e de coração aberto a quem quer que fosse. É a memória um maravilhoso instrumento; sem ela o julgamento não poderia cumprir com eficiência a sua tarefa. Pois dela careço totalmente. É preciso que me digam as coisas separadamente, ponto por ponto, porque não está em meu poder sustentar uma conversação acerca de vários assuntos ao mesmo tempo, e não seria capaz de transmitir sequer um recado sem o anotar por escrito. Quando devo pronunciar um discurso sobre assunto importante e exigente de fôlego, sou forçado à triste contingência de aprendê-lo de cor, palavra por palavra. De outro modo não teria forma e me faltaria segurança pelo temor de uma falha de memória. Mas esse meio não deixa de comportar menor dificuldade: para aprender três versos, preciso de três horas e em uma obra por mim composta, a liberdade e a possibilidade de retocar, mudar uma palavra, provocam modificações constantes no texto, o que torna menos fácil, para mim, fixa-lo na memória. Ora, quanto mais desconfio da minha memória, tanto mais ela se perturba; sua eficiência depende de sua disposição: cumpre-me solicitá-la sem pressa; se insisto, ela hesita, e se começa a titubear, quanto mais a cutuco mais se embaraça; serve-me quando quer e não quando eu quero. O que digo da memória poderia igualmente dizer de outras coisas; fujo de todo comando, obrigação ou constrangimento; o que faço, fácil e naturalmente, não o sei fazer se mo impõem. No físico, meus membros, que possuem alguma liberdade de movimento e gozam de certa independência de ação, recusam-me por vezes obediência, quando em dadas circunstâncias a necessidade exige seus serviços. Essa exigência imprevista é um ato de tirania que lhes repugna; paralisado pelo temor ou o despeito, tornam-se incapazes de ação. De uma feita achei-me algures onde era mal visto, e considerado descortês não beber com quem convida. Embora tivesse toda liberdade, quis submeter-me aos costumes da região por causa das senhoras presentes. Triste prazer! A perspectiva de ser forçado a fazer o que não gostava nem estava em meus hábitos, fez que minha garganta se contraísse, a ponto de eu não conseguir engolir uma só gota; e nem sequer pude beber na refeição. Já me embebedara e desalterara de antemão com os líquidos cuja absorção me preocupava. Tais situações se observam principalmente em quem tem uma imaginação viva e poderosa; é entretanto natural e não há quem não a tenha conhecido até certo ponto. Ofereceram mercê a um archeiro condenado à morte e particularmente hábil, se desse uma prova evidente de seu talento. Recusou tentá-lo, temeroso de que a tensão de espírito lhe tirasse a segurança e que em vez de lhe salvar a vida tal experiência o desmoralizasse. Indo e vindo pela calçada, a passeio, um homem distraído dará quase sempre o mesmo número de passos de igual comprimento; se se puser a contá-los não o fará com a mesma precisão. Minha biblioteca, que é boa como biblioteca de campo, ocupa uma das extremidades da casa. Se tenho necessidade de fazer alguma pesquisa ou escrever alguma coisa que me ocorra, preciso comunicá-lo a outrem pois receio que me fuja a memória ao atravessar o pátio. Se, falando, deixo-me desviar um pouco do assunto, perco o fio do pensamento; por isso, quando discorro, mostro-me embaraçado, seco, conciso. Sou obrigado a chamar meus servidores pelo cargo ou a região de origem, porque sinto enorme dificuldade em recordar os nomes próprios; consigo quando muito lembrar que o nome tem três sílabas, que é áspero, que começa ou termina por tal ou qual letra. Se devesse viver muito tempo creio mesmo que acabaria esquecendo o meu próprio nome, coisa que já ocorreu a algumas pessoas. Messala Corvino ficou dois anos sem memória, o que também se verificou, ao que dizem, com Jorge, de Trebizonda. Pensando em mim, fico a imaginar como terão vivido, e se não me seria a existência demasiado insuportável se eu viesse a perder essa faculdade. Indago se, em a perdendo totalmente, não ficariam paralisadas todas as funções de minha alma: "sou como um recipiente rachado, vazo por todos os lados". Ocorreu-me mais de uma vez esquecer a palavra de passe que eu mesmo dera três horas antes ao guarda, ou que alguém me comunicara, e também não recordar, em que pese a opinião de Cícero, onde escondera minha bolsa; a preocupação de guardar alguma coisa ajuda-me por vezes a perdê-la. A memória encerra, seguramente, não apenas a filosofia mas ainda todas as artes e tudo o que é imagem da vida. É o receptáculo, o estojo da ciência. A minha é tão defeituosa que não há como me espantar com saber tão pouco. Conheço em geral o nome das artes e com que se relacionam; eis tudo. Folheio os livros, não estudo; o que fica não sei mais de onde vem, pois consiste unicamente no que minha razão assimilou, nos argumentos e ideias de que se compenetrou. Quanto ao autor, ao trecho, às palavras exatas, esqueço-as de imediato. E esse esquecimento é tão total, que não esqueço menos minhas próprias obras; a todo instante surpreendo-me nesse caso, sem que o tenha percebido. Quem desejasse saber a autoria dos versos que cito nesta obra, colocar-me-ia em grande dificuldade. Entretanto, não bati senão a portas conhecidas e célebres, não me contentando com o valor intrínseco do pensamento, mas cioso de que proviesse de quem o tivesse rico e honroso e cuja autoridade se juntasse à razão. Não é de espantar portanto que o mesmo se verifique com o meu livro, que minha memória falhe neste ponto como nos outros: no que dou como no que recebo. Além do defeito de memória, outros contribuem para a minha ignorância. Tenho o espírito lerdo e obtuso; a menor dificuldade extingue-lhe a perspicácia a ponto de não saber resolver a mais simples charada; turva-o a mais insignificante sutileza. Só entendo as regras gerais dos jogos de que participa o espírito, como as damas, o xadrez ou as cartas. Tenho a compreensão lenta e embrulhada, mas o que chega a apreender ela o apreende bem e profundamente enquanto o recorda. Tenho a vista penetrante e sã. Mas, quando trabalho, cansa facilmente e se turva, o que faz que não possa ler durante muito tempo e precise de alguém que leia por mim. Daí essas perdas de tempo acerca de cuja importância Plínio, o Moço, poderá informar. Não existe alma, por mais pobre e grosseira que seja, em quem não se desenvolva alguma faculdade especial; nenhuma há que não se revele de algum modo. E ocorre que almas cegas e entorpecidas sob todos os demais aspectos se mostrem vivas, claras, perfeitas em determinados pontos. Que os mestres o expliquem. As belas almas, são as que tudo abarcam, que a tudo se abrem; podem não ser instruídas, mas são suscetíveis de se instruir. O que digo constitui uma crítica à minha, a qual, por fraqueza ou indiferença (indiferença pelo que se encontra a nossos pés, nas nossas mãos e toca de perto às coisas da vida, o que é entretanto contrário a meus princípios), chega a um grau de inépcia e de ignorância de coisas tão sabidas, que é vergonha desconhecê-las. Darei alguns exemplos. Nasci e fui criado no campo; tenho negócios e bens por administrar desde que os que deles usufruíram antes de mim me cederam seu lugar. Ora, não sei calcular de jeito nenhum, não conheço o valor da maioria das moedas, não sei distinguir, a menos de diferença muito evidente, um grão de outro, nem na planta nem no celeiro; mal sei diferenciar um repolho de uma alface; ignoro o nome dos utensílios domésticos mais vulgares e as mais elementares regras agrícolas ao alcance de uma criança: conheço ainda menos as artes mecânicas, o comércio, as mercadorias, as diversas espécies de frutos, vinhos, carnes; não sei tratar de um cão ou de um cavalo, nem treinar um falcão para a caça; e visto que devo confessar toda a minha vergonhosa carência, não faz dois meses verificaram que eu ignorava para que servia o fermento na fabricação do pão, nem como se preparava o vinho. Alguém em Atenas calculou outrora a aptidão de um indivíduo para a matemática, vendo-o preparar engenhosamente uma carga de lenha. Na verdade, no que me diz respeito o contrário se deduziria, pois morreria de fome ainda que me dessem todo o necessário para Cozinhar. Que me confesse um pouco mais e verão quantas outras coisas me faltam. Pouco importa. O que importa é que eu me mostre tal qual sou; não me desculpo portanto por ousar escrever acerca de coisas tão vulgares, tão desinteressantes: a banalidade de meu assunto a isso me obriga. Critiquem se quiserem a ideia de fazê-lo, mas não o método seguido. É certo ainda que não precisam advertir-me da insignificância do que digo; sei por mim mesmo que não vale grande coisa e quanto é absurda minha ambição. E já basta que meu juízo não se apoquente com estes ensaios. "Sede críticos tão sutis quanto puderdes; tende faro e um faro que Atlas não desejara; confundi com vossas zombarias o próprio Latino, ainda assim não conseguireis dizer dessas bagatelas o que eu mesmo disse. Por que mastigar o vácuo? E preciso carne para morder e saciar-se. Aqui perdereis vosso tempo; expandi alhures vosso veneno sobre os que se admiram a si mesmos, pois, quanto a mim, já sei que tudo isso não é nada." Não serei obrigado a não dizer tolices, desde que as reconheça e não me engane; errar com conhecimento de causa é o que me ocorre comumente, e raramente o faço sem perceber. E não me censurem a inépcia, porquanto bem sei que meu espírito é viciado. Vi de uma feita apresentarem a Francisco I, em Bar-le-Duc, um retrato que o Rei René fizera de si mesmo. Por que não seria permitido a alguém retratar-se com a pena do mesmo modo que o Rei René fez com o lápis? Não quero tampouco esquecer de tornar público esse estigma incômodo da irresolução, defeito nocivo para quem se ocupa com os negócios do mundo. Não sei tomar partido nas questões duvidosas: nem sim, nem não, nada mais me diz o coração. Discuto muito bem uma opinião, mas não sou capaz de julgar. Nas coisas humanas, para qualquer lado que nos inclinemos há aparências de verdade, o que levava Crisipo a afirmar que só queria aprender com Zenão e Cleantes, seus mestres, os princípios de suas doutrinas; quanto às provas e aos argumentos, ele próprio se encarregava de fornecer. Eu também, volte-me para este ou aquele lado, sempre descubro motivos válidos para concordar; por isso, atenho-me à dúvida reservando-me a liberdade de escolher quando premido pelas circunstâncias; em verdade, em chegando o momento, as mais das vezes entrego-me ao acaso. A mais leve impressão, a mais insignificante particularidade decidem por mim. Quando o espírito mergulha na dúvida, o menor impulso faz pender o prato da balança. A incerteza de meu julgamento mantém por vezes os pratos da balança em tal equilíbrio que, de bom grado, entregaria a decisão aos dados; e observo, como testemunho comprobatório da fraqueza humana, os exemplos da história sagrada: "a sorte designou Matias". A razão humana é uma espada de dois gumes, perigosa de se manejar. Na própria mão de Sócrates apresenta mil e uma soluções para o mesmo caso! Por isso sigo os outros e deixo-me arrastar pela massa; não tenho bastante confiança em minhas forças para comandar e dirigir; e apraz-me encontrar aberto o atalho pelo qual caminho. Se devo correr o risco de uma escolha incerta, prefiro seguir alguém mais seguro de sua opinião, à qual me filio mais do que à minha, a meu ver sempre assentada em base escorregadia. Entretanto, não sou homem a que iludam facilmente, tanto mais quanto distingo muito bem o lado fraco das opiniões contrárias: "dar constantemente seu assentimento pode acarretar muitos erros e perigos". Isso é principalmente verdadeiro nos negócios políticos, que apresentam um campo aberto às discussões e incertezas: "a balança cujos pratos se acham carregados de pesos iguais, não se abaixa nem levanta de nenhum lado". Os princípios de Maquiavel são, por exemplo, bastante sérios a esse respeito, e no entanto têm sido facilmente refutados, e os que os refutam apresentam razões igualmente refutáveis. Qualquer argumento encontra sempre duas, três ou quatro réplicas, sem contar que dão azo a inextricáveis debates, prolongados ainda pela chicana a fim de que não se encerre a discussão: "vence-nos o inimigo, vencemo-lo por nosso turno". As razões de ambas as partes assentam unicamente na experiência, e os acontecimentos humanos produzem-se sob tantas formas que, em cada caso, infinitos são os exemplos. Diz um sábio personagem de nossa época que quando os almanaques anunciam o calor, é de se esperar igualmente o frio; que fará tempo úmido quando o predisserem seco e que se pode sempre prognosticar o contrário do que declaram; e que se ele próprio tivesse de apostar em uma ou outra das predições opostas, pouco lhe importaria escolher, a menos que se tratasse de coisas absurdas como o prognóstico de excessivo calor no dia de Natal ou de frio rigoroso no dia de São João. Assim penso das discussões políticas: qualquer que seja a tese, teremos a mesma probabilidade de acertar que os nossos adversários, conquanto não nos choquemos de encontro a princípios elementares e evidentes. Entretanto, nos negócios públicos, não há direção, por má que seja, que, se continuamente seguida durante algum tempo, não se deva preferir a mudanças perturbadoras. Nossos costumes são por demais corruptos e tendem a piorar; entre nossas leis e nossos usos, muitos há bárbaros e monstruosos; entretanto, em razão da dificuldade em melhorar o que existe e do perigo de destruição atribuível a qualquer mudança, se pudesse cravar uma cunha que sustasse o movimento de nossa roda do ponto em que se acha eu o faria de bom grado: "não há ação, por vergonhosa e infame que seja que não encontre pior". A nossa maior desgraça está na instabilidade. As nossas leis, como as nossas roupas, não têm forma definitiva. É fácil acusar um governo de imperfeição, coisa comum a tudo o que é mortal; é fácil impelir o povo ao desprezo pelo que apreciava antes; quem quer que o tenha tentado alcançou-o. Mas substituir por algo melhor o que se destruiu, muitos o experimentaram sem resultado. Em minha conduta, dou pouca importância à minha própria opinião; sigo aquilo que assegura a ordem pública. Feliz o povo que faz o que lhe ordenam melhor do que quem ordena, e se entrega serenamente à Providência. Quem discute e critica nunca obedece sem segunda intenção, e totalmente. Em suma, voltando a mim, só me estimo quanto ao que nenhum homem acreditou jamais que lhe faltasse; meu mérito reside em uma coisa vulgar e comum a todos: o bom senso. Acredito no meu bom senso. E quem não acredita no seu? Pensar que carece de bom senso, é doença que não existe em quem a alega. Por mais forte e tenaz que seja, basta um olhar de quem se imagina doente para que se dissipe, como a neblina opaca se desfaz ao sol; a esse respeito, condenar-se significa absolver-se. Nunca houve carregador ou mulherzinha que não pensasse ter a sua parte. Convencemo-nos assaz facilmente da superioridade alheia em matéria de coragem, força, experiência, saúde, beleza, mas não de bom senso. E o que dizem inspirado pelo simples raciocínio, parece-nos que disséramos também por pouco que tivéssemos pensado nisso. Assim também de bom grado aceitamos como superiores às nossas as obras alheias, do ponto de vista do saber, do estilo etc.; mas no que concerne às produções do bom senso, pensa cada qual estar a seu alcance produzir iguais, e só reconhece que as outras são melhores quando é muito grande a distância entre elas e as toma incomparáveis. Quem sadiamente apreciasse a elevação do julgamento alheio, conseguiria elevar o seu próprio à mesma altura. Por isso não devemos esperar dessas realizações senão parcos elogios e nenhuma consideração; são pouco apreciados. Para quem as escrevemos então? Os sábios que têm por profissão julgar os livros só dão valor ao que concorda com sua doutrina; só admitem as obras de espírito em que encontram arte e ciência; se alguém se engana entre os dois Cipiões, por certo já não pode dizer nada que preste. Quem, ao ver desses cavalheiros, ignora Aristóteles, ignora-se a si próprio. Por outro lado, as almas comuns, que constituem a massa, não percebem a graça de uma obra que trata com leveza um assunto elevado. Ora, essas duas espécies de gente dominam o mundo. Há uma terceira, mais preparada para nos compreender, a qual se compõe de espíritos ponderados e lúcidos, mas é tão rara que não tem nome, nem situação; e é perder tempo, por assim dizer, esforçar-se por lhe agradar. Diz-se comumente que a partilha mais justa que fez a natureza, de seus dons, foi a do bom senso, pois não há quem não esteja satisfeito com sua parte. Só veria além quem pudesse ver mais do que lhe permite a vista. Penso que minhas opiniões são boas e justas; quem não pensa assim? Uma das melhores provas que tenho das minhas está na reduzida estima que dedico a mim mesmo; se de fato não fossem justas, não resistiriam à afeição que tenho por mim, afeição singular de alguém que a devota toda a si próprio e não a expande em tomo de sua pessoa. Esse sentimento que outros distribuem a numerosos amigos e conhecidos, tendo em vista a glória e a grandeza, dedico-o a mim mesmo para tranquilidade de meu espírito. O que me escapa, por acaso, e atinge outrem, independe de minha vontade, não me é ditado pela razão: "viver bem e com saúde, eis toda a minha filosofia". Minha opinião acha-se sempre disposta a condenar minhas insuficiências. É verdade que se trata de assunto em cuja análise me aplico mais do que em outro. Em geral, os homens voltam-se para fora; eu, volto-me para dentro de mim mesmo, demoro-me na investigação e nela me comprazo. Todos olham para a frente, ao passo que eu olho para mim, observando-me, analisando-me. Os outros, se pensam seriamente, tocam para diante: "Ninguém tenta descer em si mesmo"; eu paro, e fico a enredar-me no pensamento. Essa aptidão para reconhecer em mim o que quer que seja de verdadeiro, de real, e essa predisposição para me tornar escravo de minhas crenças, devo-as a mim mesmo, pois as ideias gerais que possuo nasceram comigo, se é que posso exprimir-me desta maneira. Expu-las simplesmente e despidas de artifícios, a princípio, sinceras e ousadas, mas sob uma forma algo indecisa; fortaleci-as, em seguida, e as formulei apoiando-me na autoridade de outros e nos exemplos tirados dos antigos com os quais estou de acordo. Confirmaram-me na decisão de mantê-las e tornaram-me mais caro e completo o gozo e a posse delas. A estima que outros procuram conquistar mediante um espírito vivo e sutil, aspiro alcançá-la através de uma mente bem regulada; em vez de uma ação brilhante e notável, mas isolada, prefiro a ordem, a ponderação, a serenidade de minhas opiniões e meus costumes: "Se há alguma coisa honrosa é sem dúvida uma conduta uniforme e coerente em todos os atos da vida, o que não se há de encontrar em um homem que, abdicando seu caráter, procure imitar os outros". Eis portanto como, e em que medida, quanto à ideia demasiado elevada de nós mesmos, posso dizer estar isento do vício da presunção. Quanto à segunda maneira por que esta se manifesta, a de fazer pouco caso dos outros, já não poderia afirmar o mesmo com igual segurança. Entretanto, ainda que me seja penoso, estou disposto a tudo confessar. Talvez a frequentação assídua das ideias que prevaleciam outrora, e que vieram dessas ricas almas do passado, me desgoste dos outros e de mim mesmo; talvez seja também certo que vivamos em uma época de mediocridade; o fato é que não conheço entre nós nada muito digno de admiração. Na verdade, não conheço muitos homens bastante intimamente para os julgar, e quanto aos que, em virtude de minha posição, frequento mais comumente, são em geral gente pouco preocupada com o cultivo da alma e que se propõe, como fim precípuo, a honra e, como meio de conquistá-la, a valentia. O que vejo de belo nos outros, louvo-o de bom grado e o aprecio. Vou mesmo por vezes além do que penso. Permito-me esse exagero e nada mais, pois sou incapaz de inventar inteiramente alguma coisa inexistente. Apraz-me apreciar o que em meus amigos é louvável e atribuo-lhes com prazer mais valor do que possuem, mas não lhes atribuo as qualidades que não têm nem lhes defendo as imperfeições. Mesmo em relação a meus inimigos assim ajo; meus sentimentos são diferentes, porém, meu juízo não se altera com isso; não faço intervir o dissentimento em questões em que não lhe cabe interferir. Tenho tanto apreço à liberdade de opinião que a ela não renuncio nem mesmo sob o domínio de uma paixão. Mentindo, injuriar-me-ia mais do que injuriaria os outros. Esse louvável e generoso costume, reinante outrora na Pérsia, de sempre falar honesta e equitativamente dos inimigos mortos, e na medida de suas virtudes, é digno de nota. Conheço muitos homens com belas qualidades de diversas espécies: um tem espírito, outro coração, outro habilidade, ou consciência, ou o dom da palavra; outros são grandes sábios. Mas homens grandes em tudo, com todas essas faculdades reunidas, ou uma delas tão grande que nos imponha a comparação com os homens da antiguidade, não tive a sorte de encontrar um só. Dos que conheci a fundo, o maior, quanto a seus dons naturais, foi Étienne de Ia Boétie. Era uma natureza realmente completa, superior em todos os pontos de vista, uma alma de velha marca, que chegaria a alcançar grandes resultados se a sorte o houvesse permitido; pois a uma natureza já por si mui rica, ele muito acrescentara pelo estudo e pela ciência. Não sei como acontece, e no entanto acontece, que se encontre tanta vaidade e tanta fraqueza de julgamento entre as pessoas de profissões exigentes de certa instrução e que se dedicam ao estudo das letras, ou que ocupam cargos dependentes do conhecimento dos livros, quanto entre os demais indivíduos. Talvez seja porque lhes pedimos mais, porque delas esperamos mais, e não lhes desculpamos os erros que desculpamos nas outras. Ou talvez porque a boa opinião que têm de seu saber torna-as mais ousadas e as induz a falar sem se observarem suficientemente, e faz que se traiam a si mesmas e se percam. Assim, a incapacidade de um artista revela-se mais nitidamente quando trabalha com um material de preço do que com outro de nenhum valor. O defeito em uma estátua de ouro choca mais do que em uma de gesso. Efeito análogo provocam em nós esses letrados quando põem em relevo, desajeitadamente, coisas boas em si, revelando excelente memória em detrimento do bom senso, apresentando de cambulhada à nossa admiração Cícero, Galeno, Ulpiano, São Jerônimo, e com suas citações intempestivas ressaltando o seu ridículo. Volto a comentar a inépcia da educação que nos dão. Visa ela fazer de nós homens de ciência, e consegue-o. Não aprendemos a amar e praticar a virtude e a prudência; ensinaram-nos a passar de lado, juntamente com a etimologia. Virtude é um substantivo que sabemos declinar, mas cujo sentido ignoramos. Também ignoramos o que seja a prudência, mas conhecemos-lhe de cor a definição. Quando se trata de nossos vizinhos, não nos contentamos com saber-lhes a raça, o parentesco, as relações, procuramos ainda conversar com eles e tê-los como amigos; ao passo que, com a virtude, aprendemos muito bem as definições, divisões e subdivisões, mas assim como aprendemos os títulos e nomes de uma árvore genealógica, sem estabelecer entre ela e nós relações de familiaridade e intimidade. Para nosso aprendizado, dão-nos livros: não os que expõem as opiniões mais sadias e verdadeiras e sim os que são escritos no grego mais puro e no melhor latim, e que, mediante as mais belas expressões, enchem o nosso espírito com as ideias mais pueris da antiguidade. Uma boa educação modifica o julgamento e os costumes. Foi o que aconteceu com Pólemon, um jovem grego de vida desregrada. Tendo ouvido por acaso uma aula de Xenócrates, não somente se impressionou com a eloquência e o saber do mestre, mas tirou dela um fruto tangível e sólido: a mudança imediata operada na existência que antes levava. Quem jamais viu resultado semelhante no ensino que recebemos? "Fareis o que fez outrora Pólemon convertido? Deixareis a libré da devassidão, os adornos, as almofadas, o luxo, como dizem que fez esse jovem devasso que, assistindo um dia, por acaso, à preleção do austero Xenócrates, arrancou da fronte e deitou fora a coroa de flores que ostentava à maneira dos beberrões?” A mais invejável condição do homem parece-me estar na simplicidade e na regularidade. Os costumes, as aspirações dos camponeses afiguram-se-me mais conformes aos princípios da filosofia que os dos filósofos: "o vulgo é mais sábio, porque só o é na medida em que o precisa ser". Os homens que coloco na primeira fila, a julgar pelas aparências exteriores (pois de outro modo fora necessário examiná-los mais de perto) são, como homens de guerra, o Duque de Guise, que morreu em Orléans, e o falecido Marechal Strozzi; os Chanceleres Olivier e l'Hospital, como notáveis pela grande inteligência e virtude superior à comum. A poesia latina parece ter sido muito cultivada em nossa época. Abundam os bons autores: Daurat, de Bêze, Buchanan, l'Hospital, Mont-Doré, Turnebus. A poesia francesa foi, a meu ver, elevada ao apogeu; nos gêneros em que excelern Ronsard e Du Bellay, ela não se afasta muito da perfeição que atingiu na antiguidade. Turnebus sabia mais e melhor do que nenhum homem deste século, e talvez mais longe no passado. A vida do último Duque de Alba, já falecido, e a do Condestável de Montmorency foram nobres como se veem raramente; mas a bela e gloriosa morte deste último, sob os olhos de Paris e de seu rei, à frente de um exército virtuoso, em um golpe de mão que dirigia em pessoa apesar de sua idade e do grau de parentesco dos adversários, merece lugar de realce entre os acontecimentos notáveis de nossa época. Assim também a bondade, a gentileza, a consciência esclarecida do Senhor de Ia Noue, que nunca se desmentiram nestes tempos de abusos tão gritantes cometidos pelos partidos em armas (verdadeira escola de traição, de inumanidade e banditismo), entre os quais não deixou jamais de se mostrar grande homem de guerra e dos mais experientes. Deleitei-me com publicar, em várias circunstâncias, as esperanças que depositei em Maria de Goumay Le Jars, que é para mim uma filha e a quem muito amo, mais do que paternalmente, e que, em meu retiro e solidão, me agrada considerar uma das melhores partes de mim mesmo. E só ela me interessa hoje no mundo. Se nos é dado julgar pelo que pressagia a adolescência, essa alma será um dia capaz das mais belas coisas, entre outras a de atingir, na amizade, uma perfeição sem dúvida ainda não alcançada por pessoa de seu sexo. A sinceridade e a firmeza de seu caráter já se elevaram bem alto; sua afeição por mim, que ultrapassa tudo o que eu poderia ambicionar, é de tal ordem, que não tenho em suma nada a desejar, senão vê-la menos apreensiva ante a possibilidade de minha morte, pois me conheceu quando eu já ia pelos cinquenta e cinco. A apreciação que essa mulher, jovem e solitária na sua província, fez de meus primeiros ensaios, o entusiasmo notável com que se tomou de amizade por mim, o desejo que alimentava há muito de travar relações comigo, unicamente em razão da estima que eu lhe inspirava e bem antes de me conhecer, são particularmente dignas de apreço. As virtudes, outras que não a valentia, não estão em voga nos tempos de hoje; mas a valentia generalizou-se a tal ponto, em consequência de nossas guerras civis, que há almas entre nós cuja resolução atinge a perfeição. São em tão grande número que seria impossível selecioná-las. Eis tudo o que até agora conheci, de uma grandeza superior à que se vê habitualmente. CAPÍTULO XVIII DO DESMENTIDO Dirão que tomar-se a si mesmo como assunto de uma obra é desculpável, mas somente quando quem o faz é um indivíduo excepcional e célebre, cuja reputação pode inspirar a alguém o desejo de conhecê-lo. É certo, e eu o reconheço, que para ver um homem que não se distingue do comum um artesão não erguerá sequer os olhos, quando para assistir à chegada de um grande personagem abandonará sua oficina ou sua loja. Não assenta bem a ninguém dar-se a conhecer, senão àqueles que têm com que provocar imitadores, e cuja vida e opiniões se apresentem como modelares. César e Xenofonte, pela grandeza de suas ações, tinham material suficiente para edificar sobre alicerces sólidos os relatos que nos legaram. Pela mesma razão, somos levados a lamentar que não tenham sido conservados os diários dos altos feitos de Alexandre e os comentários de Augusto, Catão, Sila, Bruto e outros. Amam-se e estudam-se tais figuras, mesmo quando são em cobre ou pedra. Essa crítica é muito justa, mas não me impressiona demasiado. "Leio só para os amigos e somente a pedido, não em qualquer lugar e para qualquer pessoa. Que outros leiam seus escritos em pleno fórum e até nos banhos." Não ergo aqui uma estátua para a praça de uma cidade, nem para uma igreja: "meu intuito não é encher o livro de devaneios brilhantes; a sós com meu leitor, converso sem pretensão". Pois minha obra destina-se a ser colocada em um canto de biblioteca e divertir algum vizinho, parente ou amigo que sinta prazer em encontrar e em passar um momento comigo. Outros falaram de si porque acharam o assunto digno e fecundo; eu, ao contrário, considero-o tão estéril e pobre que não o devem tachar de exibicionismo. Julgo os atos alheios; os meus não valem o trabalho, em razão de sua insignificância; não vejo em mim um bem bastante para que o diga sem corar. Com que satisfação ouviria alguém descrever-me, falar de minhas atitudes, de minhas conversas habituais, dos incidentes da vida de meus antepassados; com que atenção o escutaria! Seria em verdade sinal de mau caráter não se interessar pelos retratos autênticos de nossos amigos e dos que nos antecederam; não prestar atenção à forma de suas vestimentas e de suas armas. Eu conservo a escrivaninha e o sinete dos meus, seus livros de horas, certa espada de um tipo especial e não me desfiz das compridas varas que meu pai tinha sempre à mão, a guisa de chibata: a roupa de um pai e seu anel são tanto mais caros aos filhos quanto mais os queriam estes. Se entretanto meus descendentes tiverem outras ideias, estarei vingado de antemão, pois não poderão interessar-se menos por mim, então, do que eu por eles agora. Só tenho contato com o público porque me sirvo da tipografia", mais rápida e cômoda do que a escrita comum; em compensação, talvez o papel que lhe forneço impeça um dia que alguma porção de manteiga se deteriore no mercado: "dessa maneira os atuns e as azeitonas não carecerão de Invólucros". "Fornecerei às sardinhas uma vestimenta em que estarão à vontade." E mesmo que ninguém venha a ler-me, terei perdido o meu tempo empregando os meus lazeres em tão úteis e agradáveis pensamentos? Fazendo o molde de meu próprio rosto, mais de uma vez precisei enfeitar-me e ajustar-me de modo que o modelo se afirmou e tomou forma sozinho. Pintando-me para outrem, pintei a minha alma com cores mais nítidas do que a apresentava primitivamente. Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz; e autor e livro constituem um todo; é estudo de mim mesmo e parte integrante de minha vida; não sou diferente do que apresenta nem ele o é de mim; não objetiva, como outras obras, um fim outro que não a personalidade do autor. Terei perdido meu tempo analisando-me com tamanho cuidado e continuidade? Os que por simples capricho, no decorrer de uma conversação, olham um instante para si mesmos não se examinam nem tão exatamente nem tão a fundo como quem fez de si o objeto de seu estudo e assumiu para consigo mesmo o compromisso de consignar, com sinceridade e sem circunlóquios, tudo o que sente. Os mais deliciosos prazeres não os saboreamos nós em nós mesmos, evitando deixar vestígios e revelar-nos aos olhos de outrem? Mais de uma vez este trabalho constituiu uma distração contra pensamentos aborrecidos, entre os quais se devem classificar também os frívolos. A natureza gratificou-nos generosamente com a faculdade de nos isolarmos para refletir; convida-nos não raro a fazê-lo para nos ensinar que temos obrigações para com a sociedade e principalmente para com nós mesmos. A fim de forçar nossa imaginação a pôr ordem no próprio devaneio e conduzi-la na direção de dados objetos, impedindo-a de se perder em extravagâncias, nada melhor do que desenvolver as ideias ocasionais. É o que faz que dê atenção às minhas, pois impus a mim mesmo consigná-las em meus escritos. Quantas vezes, aborrecido por não ter podido criticar abertamente tal ou qual ação, por civilidade ou prudência, eu o fiz nestes ensaios com a esperança de contribuir assim para a edificação de alguém! Aliás esses golpes poéticos, "pan no olho, pan no focinho, pan nas costas do sagui", produzem mais efeito ainda no papel do que na própria carne. Ademais, presto mais atenção aos livros desde que procuro neles o que possa mariscar para emprestar algum brilho e relevo ao meu. Não estudei, absolutamente, com o intuito de escrever uma obra, mas trabalhei um pouco enquanto a fazia, se é que se pode dizer "trabalhar" apenas folheando ora um ora outro livro do começo ao fim ou vice-versa, e não com o desejo de ter uma opinião mas com a intenção de reforçar a sua própria. Mas em quem acreditaremos, nestes tempos inglórios, quando se fala de si mesmo, se ninguém, ou quase ninguém merece crédito quando fala de outrem, caso em que menor é o interesse em mentir? O primeiro sintoma de corrupção dos costumes está no desamor à verdade. A sinceridade é, como dizia Píndaro, o ponto de partida da grande virtude, é a condição primeira que Platão impõe ao governador de sua República. Entre nós, hoje em dia, a verdade não é o que é, mas o que consegue persuadir os outros. Assim também chamamos moeda não somente à de bom quilate, mas a qualquer uma que esteja em circulação. É um vício que há muito censuraram a nosso país; Salviano Massiliense, que vivia no tempo do Imperador Valentiniano, dizia que "para os franceses mentir e perjurar não são vícios, mas tão somente maneiras de falar". Poder-se-ia dizer, sem exagero, que agora é virtude. Crescemos com a dissimulação, adaptamo-nos a ela como faríamos a um exercício honroso, porque ela se tomou uma das qualidades mais apreciadas do século. Muitas vezes refleti acerca da origem possível desse hábito, observado religiosamente, de nos sentirmos mais gravemente ofendidos com o fato de nos censurarem esse vício comum a todos nós, do que nos criticarem qualquer outro defeito. Por que será injúria tão grave dizer que mentimos? Cheguei à conclusão de que, se negamos naturalmente com mais paixão os defeitos para os quais temos tendência, deve ser porque em nos mostrando mais sensíveis à acusação é como se atenuássemos a falha, ou, pelo menos, a condenássemos aparentemente. Mas não seria também porque esse defeito parece denunciar em nós a covardia e a pusilanimidade? Haverá maior covardia do que desmentir a própria palavra? Do que mostrar-se alguém diferente do que sabe ser? Mentir é um defeito feio, cuja baixeza alguém na antiguidade ressaltava como um ato de desprezo a Deus e uma prova do temor que se tem dos homens. É impossível demonstrar-lhe a indignidade e a vileza de maneira mais precisa. Pois haverá coisa mais execrável do que ser covarde com os homens e fingir de corajoso perante Deus? Nossas relações recíprocas estabelecem-se pela palavra; faltar à palavra é pois trair a sociedade, porquanto é o meio de comunicar nossos pensamentos e nossas vontades e o único intérprete de nossa alma. Se esse intermediário nos falta, desfaz-se a associação, não mais nos reconhecemos uns aos outros; se nos ilude, rompem-se nossas relações, destroem-se os laços que nos prendem. Certos povos das Índias Ocidentais, cujos nomes não é necessário indicar porque já não existem (porquanto nessa conquista realizada de maneira tão extraordinária, tão espantosa, a devastação foi de tal ordem que até os nomes das localidades desapareceram totalmente), ofereciam a seus deuses sangue humano tirado exclusivamente da língua e das orelhas, como expiação para o pecado da mentira, falada ou ouvida. E aquele virtuoso personagem grego, que já citamos, dizia que as crianças se divertem com brinquedos e os homens com palavras. Deixo para outra oportunidade referir-me às circunstâncias diversas em que costumamos desmentir as leis que a respeito nos impõe a honra, bem como as modificações que sofreu. Até lá já saberei, possivelmente, em que época se introduziu o hábito de pesar e medir, como o fazemos hoje, as palavras que nos dizem, pois é certo que esse costume não existia outrora entre os gregos e romanos. E sempre me pareceu estranho desmentirem-se eles, e se injuriarem, sem que isso os levasse ao desforço. O que o dever deles exigia, então, devia ser diferente. Atiram a César em pleno rosto epítetos como ladrão e bêbedo; uns e outros se injuriam desabridamente; os chefes dos exércitos invectivam-se e aos insultos respondem com insultos sem que se verifiquem quaisquer consequências. CAPÍTULO XIX DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA É frequente vermos as boas intenções, quando mal orientadas, provocarem os piores resultados. Nesse conflito que leva a França à guerra civil, o melhor partido, o mais justo, é sem dúvida o que tem como objetivo a manutenção da religião e do governo que existiam antes da perturbação da ordem. No entanto, entre os homens de bem que o seguem (não falo dos que veem nisso unicamente a oportunidade de realizar suas vinganças pessoais, ou um pretexto para satisfazer sua avareza, ou ainda para conciliar a boa vontade dos príncipes, e sim dos que são movidos pelo amor à religião e o desejo respeitável de manter em sua pátria a paz e o estado de coisas existentes), entre esses homens, digo, alguns há cuja paixão impele a ultrapassar os limites da razão e a tomar resoluções injustas, violentas e mesmo temerárias. É certo que nos primeiros tempos, quando nossa religião principiou a ser admitida pelas leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição de livros pagãos e a excessos que acarretaram mais prejuízo do que os incêndios perpetrados pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácito um exemplo típico do que afirmo, pois embora o imperador, seu parente, houvesse, mediante decretos especiais, espalhado sua obra pelas bibliotecas do mundo inteiro, nem um só exemplar completo escapou à sanha dos que, por causa de cinco ou seis trechos contrários a nossas crenças, o destruíram. Naquela época exaltaram-se também excessivamente os imperadores favoráveis ao cristianismo e condenaram-se de caso pensado todos os atos dos que lhes eram hostis, como se pode ver no que concerne ao Imperador Juliano, o Apóstata. Este príncipe foi, em verdade, um grande homem, excepcional, profundamente cioso dos princípios de sua filosofia pelos quais orientava suas atitudes. E por certo não há virtude de que não tenha dado exemplo. Quanto à castidade, nunca deixou de observá-la de maneira irrefutável, e conta-se dele um caso semelhante aos atribuídos a Alexandre e a Cipião: quando lhe trouxeram numerosas belas escravas, não quis saber de nenhuma, e no entanto estava então na flor da idade, pois quando foi morto pelos partos tinha apenas trinta e um anos. Quanto à justiça, cuidava de ouvir pessoalmente as partes e, embora por curiosidade indagasse da religião que professavam, nunca a inimizade que dedicava à nossa fez pender a balança contra os cristãos. Ele próprio redigiu boas leis e reduziu consideravelmente os impostos e taxas de seus predecessores. Dois historiadores foram testemunhas oculares de seus atos. Um deles, Amiano Marcelino, critica severamente em diversos trechos de sua obra o edito daquele príncipe que proibia a prática do ensino aos retóricos e gramáticos cristãos. E Marcelino acrescenta que tal determinação deveria ser estigmatizada. É provável, portanto, que se alguma medida grave tivesse sido tomada contra nós, não teria esquecido de mencioná-la esse historiador tão afeiçoado a nosso partido. Na realidade, ele foi duro mas não cruel; e são os nossos que contam dele o fato seguinte: passeando certa vez pelos arrabaldes de Calcedônia, Maris, bispo da cidade, ousou chama-lo de "malvado traidor de Cristo". Juliano contentou-se com responder: "Vai-te, infeliz, chorar a perda de teus olhos". Ao que o bispo atalhou: "Rendo graças a Jesus Cristo por me ter tirado a vista, o que me permite não ver teu rosto impudente". O imperador nessa ocasião deu prova de uma paciência bem filosófica, ao que dizem os que relatam o caso. O fato é que isso não se acomoda às crueldades que alegam ter ele cometido contra nós. Eutrópio, o segundo historiador, afirma que ele foi inimigo do cristianismo, mas não sanguinário. Para voltar a seu sentimento de justiça, nada se lhe pode censurar além de seu rigor, no início de seu reinado, contra os que haviam adotado o partido de Constâncio, seu predecessor. Quanto à sobriedade, alimentava-se como um soldado, e em plena paz vivia como quem se prepara para a austeridade da guerra. Era a tal ponto previdente, que dividia a noite em três ou quatro partes: dormia um período e empregava os outros em fiscalizar o exército e estudar, pois entre as qualidades que o distinguiam dos outros sobressaía em todos os gêneros literários. Dizem de Alexandre, o Grande, que, receoso de ser dominado pelo sono e impedido assim de meditar, mandava colocar ao lado do leito uma bacia com água e com uma das mãos, que deixava estendida para fora, segurava uma pequena bola de cobre, de modo que se o sono o vencesse, ao se descerrarem os dedos, caísse ela na água e o ruído o despertasse. Juliano concentrava-se tanto no que queria e tinha o espírito tão lúcido, por causa de sua abstinência, que não precisava recorrer a tal expediente. No que concerne às qualidades militares, foi admirável em tudo o que é da alçada de um grande chefe; aliás passou quase toda a vida guerreando, em particular contra nós, na Gália, e contra os alemães e os francos na Francônia. E não há memória de homem que tenha corrido maiores riscos e se esforçado mais, pessoalmente. Sua morte assemelha-se até certo ponto à de Epaminondas. Como este, foi ferido por um dardo que tentou arrancar das carnes e o houvera feito se não cortasse a mão na afiada aresta. Nesse estado, contudo, não cessou de pedir que o levassem de volta à batalha, a fim de animar os soldados, os quais, de resto, embora sem sua presença, se bateram obstinadamente pela vitória, tendo a noite separado os dois exércitos. Devia à prática da filosofia seu singular desprezo pela vida e pelas coisas humanas, e acreditava firmemente na imortalidade da alma. Foi por certo um desviado em matéria de religião; apelidaram-no Apóstata por haver abandonado o cristianismo. Acho mais provável que nunca tenha sido um verdadeiro crente. Mas precisava dissimular seu pensamento para obedecer às leis, o que fez até subir ao trono. Era tão supersticioso que dele zombavam até seus próprios partidários, observando que, vitorioso dos partos, houvera multiplicado os sacrifícios a ponto de acabar com todos os bois da terra. Tinha absoluta confiança na ciência dos adivinhos e acreditava em toda espécie de prognósticos. Entre outras coisas disse, ao morrer, ser grato aos deuses por o não haverem abatido subitamente, de surpresa, pois o tinham avisado com antecedência da hora e do lugar; e também por não lhe terem infligido uma morte mole ou covarde, como sói reservarem aos ociosos e requintados, ou uma morte lenta e dolorosa. Rendia-lhes graças por o terem julgado digno de morrer honrosa mente no desenrolar de uma vitória e no fastígio da glória. Por duas vezes tivera uma visão análoga à de Marco Bruto. Uma primeira vez na Gália, pela qual fora advertido de um perigo que o ameaçava; a segunda vez na Pérsia, pouco antes de sua morte. Quanto às palavras que lhe atribuem ao sentir-se ferido, "venceste, nazareno", os relatos de meus dois historiadores, que não esqueceram as mais insignificantes minúcias desse fim, não as omitiriam sem dúvida, como não omitiriam os milagres porventura ocorridos, por pouco que houvessem acreditado nessas histórias. Mas voltemos ao assunto. Segundo Amiano Marcelino, o Imperador Juliano pensava desde muito, em seu íntimo, restaurar o paganismo. Mas seu exército era inteiramente formado por cristãos, e ele só ousou revelar seu projeto quando se achou bastante forte para tornar pública sua vontade. Mandou então reabrir os templos dos deuses e tentou por todos os meios restaurar a idolatria. Para consegui-lo, chamou ao palácio os prelados da Igreja Cristã, divididos como o povo em suas opiniões, e convidou-os a aplacarem suas dissensões de modo que todos pudessem, sem obstáculo nem receio, praticar a religião como a entendessem. Esforçou-se grandemente por convencê-los, na esperança de que tal liberdade aumentasse o mundo de facções e cabalas, impedindo o povo de se unir contra ele, imperador, com a força que teria auferido de um entendimento unânime. Verificara, pelas crueldades cometidas por alguns cristãos, que "não há animal mais feroz no mundo e mais temível para o homem do que o próprio homem". Essa tática do Imperador Juliano é digna de nota, porquanto a fim de atiçar as agitações provocadas pela discórdia, pôs em jogo esse mesmo instrumento da liberdade de consciência de que se valem nossos reis para apaziguá-las. O que nos leva a dizer que, se, de um lado, dar inteira liberdade de opinião aos partidos redunda em semear e desenvolver dissensões, auxiliar a ampliá-las destruindo quaisquer barreiras e restrições das leis que as coíbem, por outro lado, largar as rédeas e permitir a todos os partidos que manifestem suas opiniões é também enfraquecê-los pela facilidade e latitude que se lhes outorgam; é embotar o dardo que os estimula e que a raridade, a novidade e a dificuldade afiam. Para honra de nossos reis, prefiro acreditar que não tendo conseguido o que desejariam, fingiram desejar o que podiam. CAPÍTULO XX NADA APRECIAMOS INTEIRAMENTE PURO A fraqueza de nossa condição faz que não possamos apreciar as coisas em sua simplicidade e pureza naturais; tudo o que usufruímos é alterado: assim os metais - e mesmo o ouro - que cumpre misturar com outros de menor valia para que sejam por nós utilizados. A virtude despida de quaisquer artifícios, que Aríston e Pirro, e com eles os estoicos, apontam como fim da vida, não pode tampouco existir sem mistura, como não o pode a volúpia, tal qual a concebem a escola cirenaica e a de Aristipo. Dos prazeres e bens que gozamos não há um só ao qual não se amalgame algum mal ou inconveniente; nenhum se isenta disso: "da fonte dos prazeres, jorra uma espécie de amargura que atormenta, mesmo em leito de flores". A extrema volúpia que nos é dado experimentar tem algo do gemido e da queixa. Dir-se-ia que morre de angústia. Mesmo quando a representamos em suas sensações mais deleitosas, acompanhamo-la de epítetos lembrando impressões doentias e dolorosas: languidez, moleza, fraqueza, desfalecimento, morbidez que comprovam seu parentesco, e estrutura semelhante. Um gozo profundo assume antes um ar de severidade que de alegria; o pleno e extremado contentamento é calmo mais do que jovial: "a felicidade que não se modera, destrói-se por si"; a satisfação esgota-nos. É o que exprime um antigo versículo grego, cujo sentido é: "vendem-nos os deuses todos os bens que nos dão", isto é, não nos dão nenhum puro e perfeito e nós os adquirimos com algum mal. O trabalho e o prazer, que são de natureza mui diversa, ligam-se, entretanto, por qualquer correlação natural. Sócrates diz que um deus, tendo tentado confundir as dores e os prazeres em um todo, não o conseguiu e resolveu então uni-I os pelas extremidades. Metrodoro afirmava que havia na tristeza uma parcela de prazer; não sei se em seu pensamento isso tinha uma significação específica, mas imagino que quem vive na melancolia o faz por determinação, presta-se a tanto e nisso se compraz, sem falar da participação possível da ambição. Em nossas próprias crises de sonho e solidão, há algo doce e delicado que nos sorri e lisonjeia; alguns temperamentos fartam-se com isso: "há volúpia nas lagrimas". Certo Átalo, em Sêneca, diz que a recordação dos amigos perdidos provoca uma espécie de sensação agradável à moda do amargor de um vinho velho demais: jovem escravo, tu que serves o vinho velho de Falemo, dá-me um mais amargo ou como o gosto das maçãs ligeiramente ácidas. O mesmo contraste aparece na natureza; os pintores admitem que os movimentos e pregas do rosto de quem chora se assemelham aos de quem ri. E, com efeito, contempla i um quadro antes que o pintor tenha acabado de dizer se quer que seu personagem chore ou ria: não sabereis ao certo o que vai exprimir: o riso confina com a lágrima: "não há mal sem compensação". Quando imagino o homem em pleno gozo de tudo o que pode desejar de agradável (admitamos que sinta de maneira contínua prazer semelhante ao que lhe proporciona o ato da fecundação no momento em que o prazer atinge o apogeu), vejo-o desfalecer sob o peso da satisfação que o oprime; parece-me incapaz de suportar sem solução de continuidade essa volúpia pura que se apodera de todo o seu ser. E, em verdade, quando a sente, foge dela. Tem naturalmente pressa em se safar, como se houvesse dado um passo em falso e temesse um desmoronamento. Se procedo sinceramente a um exame de consciência, acho que todo impulso de bondade em mim, mesmo o melhor, é viciado por sentimentos que o diminuem; e creio que Platão, apesar da rigidez de sua virtude (e aprecio tanto quanto qualquer outro a virtude elevada a tão alto grau), se se analisava a fundo, como sem dúvida devia fazê-lo sentia que a natureza humana reagia nele em sentido contrário: reação por certo atenuada e que ele era o único a perceber. Em tudo e em toda parte o homem não passa de um amálgama de peças desengonçadas. As próprias leis da justiça não poderiam existir sem alguma injustiça, e, na expressão de Platão, quem pretende fazer que desapareçam das leis todos os inconvenientes e imperfeições empreende a tarefa de cortar a cabeça da hidra: "as punições exemplares comportam sempre algo iníquo, que atinge os particulares mas aproveita à sociedade", diz Tácito. É igualmente certo que na sua aplicação à vida e aos negócios públicos, um excesso de pureza e perspicácia pode ser prejudicial; lucidez em demasia e penetração conduzem a exagerada sutileza e curiosidade; cumpre diminuir a atividade do espírito e torna-lo menos afoito para que se adapte melhor à prática; fazê-lo mais pesado e lento para coloca-lo ao nível da vida terrena e tenebrosa. É por isso que os espíritos menos requintados são mais eficientes na direção dos negócios; os mais elevados, mais finos, afeitos às ideias filosóficas não são capazes de bem gerir. Essa vivacidade demasiado aguda do espírito, essa volubilidade que para tudo atenta e com tudo se preocupa perturbam as negociações e os entendimentos. Os negócios humanos exigem tratamento mais grosseiro e superficial; boa parte deve ser deixada ao arbítrio da sorte. Não há necessidade de examinar as questões a fundo e sutilmente; perdemo-nos em querer considerar todos os aspectos e formas que comportam: "vendo coisas tão opostas, ficavam estupidificados". Foi o que, segundo os autores da antiguidade, aconteceu a Simônides. Tendo-lhe o Rei Híeron apresentado uma pergunta para cuja resposta lhe dera vários dias de prazo, vieram-lhe ao espírito tantas considerações diferentes, todas tão penetrantes e sutis, que, indeciso acerca da solução mais verdadeira, desistiu de encontrar a boa. Quem procura e pondera todas as circunstâncias de uma questão, não a leva a cabo; um espírito de mediana capacidade basta para resolvê-la, e tudo pode realizar muito bem, tanto as coisas grandes como as pequenas. Atentai para os indivíduos que dirigem a contento seus negócios: são os mesmos à altura de nos dizer como o fazem. Ao passo que os outros, que tratam da questão com brilho, nada realizam de útil. Conheço um senhor mui eloquente, que expõe à perfeição tudo o que concerne à economia doméstica; em suas mãos dissipou-se um patrimônio de cem mil libras de renda. Sei de outro que perora, dá conselhos admiráveis e melhor do que um perito na matéria; ninguém no mundo tem mais espírito e erudição, mas, quanto aos resultados, acham seus servidores que não são tão brilhantes, e isso sem que os atribuam à falta de sorte. CAPÍTULO XXI DA INDOLÊNCIA O Imperador Vespasiano, durante a enfermidade de que veio a morrer, não deixava de se ocupar dos negócios do império; e, no seu próprio leito, tratava as questões mais importantes. Tendo-lhe o médico censurado essa atividade por nociva à sua saúde, disse ele: "um imperador precisa morrer em pé". Eis, a meu ver, um belo pensamento, e digno de um príncipe. Em idênticas circunstâncias, o Imperador Adriano teve as mesmas palavras, as quais se deveriam lembrar aos reis para compreender que essa importante responsabilidade de dirigir e comandar os homens não é uma situação em que possam permanecer ociosos. E que nada pode desanimar mais - e justamente - o súdito no seu afã de bem servir o soberano, do que saber que, enquanto corre riscos e se atarefa, seu senhor se entrega à indolência e cuida de seu prazer sem se interessar pelo bem-estar de seu povo. Se alguém quisesse demonstrar ser preferível que o príncipe outorgue a outrem, na guerra, o comando de seus exércitos, encontraria na história muitos exemplos de príncipes cuja presença no campo de batalha fora antes prejudicial do que útil; mas nenhum soberano de virtude e coragem teria permitido que lhe aconselhassem tão vergonhosa abstenção. A pretexto de conservar-lhe a cabeça, como uma estátua de santo, para o bem de seus estados, degradam-no e lhe sonegam precisamente o que é de seu dever e que consiste principalmente na condução da guerra, dando-lhe de tal modo um diploma de incapacidade. Conheço um que preferiria ser vencido a dormir enquanto vencem por ele, pois nem mesmo suporta que algo importante se verifique em sua ausência. Selim I tinha muita razão, parece-me, quando dizia que "as vitórias ganhas sem a presença do príncipe não são completas". Teria ainda acrescentado de bom grado que esse príncipe deveria corar de vergonha de só participar de tais vitórias com o nome, e só cooperar para seu êxito com instruções e ordens. E nem mesmo com isso, pois em semelhantes ocasiões conselhos e determinações de que se possam honrar só lhes cabe dar no momento da ação. Não há piloto que se exercite em terra firme. Os príncipes de raça otomana, que mais devem à sorte das armas, eram partidários ferrenhos desse princípio. Bajazet II e seu filho abandonaram-no, dedicando-se ao estudo das ciências e a outras ocupações sedentárias; e seu império ressentiu-se de tal atitude. Seu sucessor atual, Amurat III, que lhes segue o exemplo, começa também a sofrer as consequências dessa orientação. Não disse Eduardo III, da Inglaterra, acerca de nosso Carlos V: "nunca houve rei que menos guerreasse e no entanto me desse mais trabalho". E era justo que estranhasse, porquanto os sucessos decorriam mais do acaso do que da premeditação. Procurem outros que não eu para apoiá-los, os que incluem entre os conquistadores belicosos e magnânimos esses reis de Castela e Portugal que, a mil e duzentas léguas de suas capitais - onde vivem na indolência - se tornaram, graças a seus capitães, senhores das Índias Ocidentais e Orientais, as quais não teriam por certo ousado investir pessoalmente. O Imperador Juliano dizia mais: "um filósofo e um homem de grande coração não deveriam precisar respirar", isto é, não deveriam dar às necessidades físicas senão o mínimo imprescindível, pois a alma e o corpo tinham que voltar-se exclusivamente para as coisas grandes, belas e virtuosas. Envergonhava-se de ser visto em público cuspindo ou suando (sentimento que também experimentava a juventude da Lacedemônia, e, segundo Xenofonte, a da Pérsia), pois considerava que o exercício, o trabalho continuado e a sobriedade deviam conseguir absorver tais secreções. A explicação de Sêneca para o fato de a juventude da antiga Roma conservar-se sempre em pé, merece ser apresentada aqui: "nada ensinavam aos filhos que devessem aprender sentados". É justa ambição aspirar a uma morte útil e digna de um homem de caráter; mas isso não depende tanto de nossa resolução quanto da sorte. Milhares de pessoas propõem-se vencer ou morrer combatendo e não conseguem nem uma coisa nem outra; ferimentos e cativeiro entravam-lhes a intenção e impõem-lhes a vida; há doenças que paralisam nossa vontade e nos tornam inconscientes; e os fados não secundaram a vaidade que ditava às legiões romanas o juramento de vencer ou morrer: "voltarei vencedor do combate, ó Marco Fábio; se faltar à minha resolução, que se desencadeie contra mim a cólera de Júpiter, Marte e outros deuses". Contam os portugueses que por ocasião da conquista das Índias tiveram em certos lugares que lutar contra soldados que se haviam comprometido a não entrar em nenhum acordo e a sair vitoriosos da refrega ou morrer. E como marca distintiva de sua resolução traziam a cabeça e a cara raspadas. Parece que, embora se obstinem seriamente, e se arrisquem, os golpes poupam os que se expõem abertamente; daí o malogro de seus desígnios. Houve quem, conquanto tudo fizesse para ser morto pelo inimigo, se viu constrangido a matar-se no entusiasmo da luta a fim de realizar honrosamente o intuito de vencer ou morrer. Entre outros exemplos do que afirmo, temos o de Filisto, comandante da frota de Dionísio, o Jovem, na guerra contra Siracusa. A batalha travada entre forças iguais foi arduamente disputada. Iniciou-se favoravelmente para ele, graças a seu valor, mas tendo os de Siracusa cercado sua galera e não a conseguindo ele libertar, apesar de belos feitos guerreiros em que arriscou pessoalmente a fundo, matou-se, certo de não poder escapar, sacrificando com suas próprias mãos uma vida que inútil e corajosamente oferecera aos inimigos. Muley Moluch, Rei de Fez, que acabava de vencer D. Sebastião, em uma batalha que se tornou famosa pela morte de três monarcas e teve como consequência a passagem da coroa de Portugal aos reis de Castela, estava gravemente enfermo quando os portugueses invadiram a mão armada o seu império. A partir desse momento sua doença foi piorando e o encaminharia para a morte que sentia avizinhar-se. Nenhum homem entretanto revelou maior bravura em tais circunstâncias. Fraco demais para suportar a fadiga de uma entrada solene em seu campo, o que segundo os costumes desse povo exige grandes cerimônias e acarreta considerável pompa, delegou ao irmão a incumbência. Mas foi a única atribuição de chefe que abdicou; todas as outras, necessárias e úteis, por penosas que fossem, ele as desempenhou com exatidão. Permanecia deitado, mas sua coragem e sua energia continuaram de pé, até o último suspiro. Podia esgotar o inimigo que avançara imprudentemente até o interior do país, e custou-lhe muito, na falta de mais um pouco de vida e de alguém a quem entregar o comando e o governo, decidir-se a buscar uma vitória incerta e sangrenta quando tinha à mão os meios de alcançá-la sem grandes perdas e com segurança. Contudo, tirou maravilhoso partido de sua enfermidade prolongada para desgastar o adversário, atraí-lo para longe da frota e dos fortes das costas africanas, e isso até o último dia de sua vida, empregado, deliberadamente, na batalha decisiva. Dispondo seus exércitos em círculo, investiu por todos os lados contra os portugueses; estes viram-se, assim cercados, em grandes dificuldades durante o combate, que foi rude e encarniçado, dado o valor do jovem rei, e impossibilitados de fugir após a derrota. Encontrando toda saída fechada, forçados a um recuo que os jogava contra os próprios companheiros, "amontoados pela carnificina e a fuga", deram ao vencedor uma vitória total e extremamente sangrenta. Agonizante, Muley Moluch fazia-se transportar por toda parte onde sua presença podia ser útil; circulando entre as fileiras, encorajava seus capitães e soldados. Tendo em dado momento suas tropas cedido terreno em certo ponto, ninguém o pôde impedir de montar a cavalo e lançar-se de espada em punho na refrega, enquanto o tentavam sustar, uns pelas rédeas, outros pelas vestes e pelos estribos. Esse esforço acabou esgotando o pouco de vida que lhe restava; tornaram a deitá-lo e ele só voltou a si um instante, num sobressalto, para recomendar que não espalhassem a notícia de sua morte, a fim de que não desesperassem os seus, o que era sem dúvida a ordem mais importante que lhe cabia dar. E expirou levando o dedo aos lábios, sinal habitual de silêncio. Quem, mais do que ele, terá morrido em pé? A atitude mais corajosa diante da morte, e a mais natural, está em a esperar, não somente sem espanto como também sem preocupação; está em continuar a viver, até que ela se apodere de nós, sem nada mudarmos em nossa maneira de viver, como fez Catão, o qual se distraía em estudar e dormir, embora já houvesse decidido pôr fim à vida, e tivesse a ideia presente em seu espírito e em seu coração, e os meios de executá-la ao alcance da mão. CAPÍTULO XXII DOS CORREIOS Não fui dos menos resistentes em correr a posta, exercício adequado aos indivíduos de minha estatura, pequenos e atarracados. Mas desisti, porque, com o tempo, fatiga demasiado. Estive lendo há pouco que o Rei Ciro, a fim de receber mais rapidamente notícias das diversas regiões de seu império, aliás muito extenso, mandou medir a distância que um cavalo pode percorrer sem parar e determinou que se organizassem, a igual distância uns dos outros e de acordo com o percurso observado, postos de muda com cavalos prontos para serem usados pelos mensageiros. Dizem que a velocidade assim conseguida alcançou a dos grous. César relata que L. Vibulo Rufo, desejoso de entregar rapidamente certa mensagem a Pompeu, galopou dia e noite mudando de cavalo em caminho para chegar mais depressa. O próprio César, informa Suetônio, fazia cem milhas por dia em um carro de aluguel, e era intrépido viajor, pois quando algum rio lhe cortava a estrada, atravessava-o a nado sem se desviar sequer da direção visada para procurar uma ponte ou um vau. Tibério, a fim de visitar seu irmão Druso, que estava enfermo na Alemanha, percorreu duzentas léguas em vinte e quatro horas; viajava com três carros. Durante a guerra dos romanos contra o Rei Antíoco, Semprônio Graco, escreve Tito Lívio, "foi em três dias de Anfissa a Pela revesando de cavalo e marchando com incrível rapidez". Tendo em vista a região, parece que deve ter utilizado, em sua viagem, postos de mudas permanentes e não improvisados. Para comunicar-se com os seus, Cecina imaginou um meio mais rápido: levava consigo andorinhas e, quando queria enviar notícias, soltava-as depois de tê-las pintado com as cores convencionadas de acordo com o que desejava transmitir. Em Roma, os chefes de família que iam ao teatro levavam pombos aos quais amarravam cartas e que soltavam quando precisavam enviar algum recado aos de casa; e os pombos eram adestrados a trazerem a resposta. D. Bruto, sitiado em Módena, empregou esse processo, e outros o fizeram em outras circunstâncias. No Peru, o correio era feito por homens que o carregavam aos ombros; mostravam tal agilidade que a mudança dos transportadores se fazia sem que precisassem parar nem reduzir a marcha. Ouvi dizer que os valáquios, empregados no correio a serviço do Sultão, são extremamente velozes, tanto mais quanto têm o direito de mandar apear o primeiro cavaleiro que encontrem, dando-lhe seu cavalo exausto em troca do cavalo fresco. Para resguardar-se do cansaço, cingem a cintura fortemente com uma larga faixa de tecido, como o fazem outros também. Experimentei-o eu próprio, mas não senti nenhum alívio. CAPÍTULO XXIII DOS MEIOS E DOS FINS Existe na organização da natureza uma maravilhosa correlação e uma similitude que não resultam do acaso nem podem provir da vontade de muitos. As doenças, as condições diversas de nosso corpo, veem-se também nos Estados e governos. Como os indivíduos, os reinos e repúblicas nascem, crescem e definham ao ser atingidos pela idade. Estamos sujeitos a superabundâncias de humores inúteis e nocivos; temem-nos os médicos, mesmo quando esses humores fazem parte dos que se consideram benéficos, pois afirmam que, nada sendo estável em nós, cumpre sustar e enfraquecer artificialmente essa saúde em demasia que nos empresta excesso de vivacidade e vigor, porquanto a natureza, não funcionando normalmente ao atingir determinado grau que não lhe é dado superar, pode recuar de modo suscetível de causar graves desordens. É por isso que prescrevem purgantes e sangrias aos atletas. Quanto aos humores nocivos, é em seu excesso que se acham as causas das doenças. Semelhantes superfluidades deparam-se nos Estados enfermos e nesses casos se lhes administram também purgantes de diversos tipos. Assim é que se expulsam famílias inteiras para aliviar o país, famílias que se deslocam então e vão instalar-se alhures. Nossos antigos francos, vindos do fundo da Alemanha, apoderaram-se da Gália expulsando os outros habitantes; assim também ocorreu com o imenso caudal de povos que desceram da Itália sob a condução de Breno e outros; assim igualmente, os godos e os vândalos, e os povos que ocupam atualmente a Grécia abandonaram seu país natal para se estabelecer mais à vontade alhures. E talvez não existam no mundo mais do que dois ou três recantos que não hajam experimentado os efeitos dessas migrações. Desse modo criavam os romanos suas colônias. Quando a população de suas cidades aumentava demasiado, aliviavam-na excluindo os elementos menos necessários, os quais eram transportados para as terras conquistadas a fim de colonizá-las e cultivá-las. Por vezes, também sustentaram guerras com certos inimigos, não apenas para manter o povo vigilante, de medo que a ociosidade, mãe da corrupção, acarretasse situações piores ainda ("sofremos os males inerentes a um longo período de paz; mais terrível do que as armas, dominou-nos o luxo"), mas ainda para sangrar a República, acalmar as aspirações exageradamente fogosas da juventude, podando e arejando a ramagem da árvore que se desenvolvera com excessivo vigor. Foi para isso que lutaram outrora contra os cartagineses. No tratado de Bretigny, Eduardo III, da Inglaterra, não quis incluir o Ducado de Bretanha na paz assinada com o nosso rei, a fim de ter para onde enviar a massa de ingleses que antes utilizara nas guerras continentais e impedir que voltassem à pátria. Foi também razão da mesma ordem que decidiu nosso Rei Filipe a mandar seu filho João em expedição além-mar; levava assim, com ele, para fora do reino, toda essa juventude apaixonada que engajara. Algumas pessoas de nosso tempo raciocinam de igual modo; desejariam que nossos sentimentos exacerbados encontrassem um derivativo em alguma guerra contra qualquer dos nossos vizinhos, receosos de que os humores nocivos que ora nos perturbam se propaguem e que, sem a solução de os expandir alhures, venham a provocar a ruína completa de nosso país. Devemos convir em que uma guerra exterior é menos nefasta do que uma guerra civil, mas não creio que Deus seja favorável a tão iníqua empresa como essa de procurar briga com vizinhos e insulta-los por comodismo: "ó poderosa Nêmesis, faze que não deseje nada a ponto de o tentar obter em detrimento de seu legítimo dono". Entretanto a fraqueza de nossa condição impele-nos não raro a empregar meios condenáveis para alcançar um resultado conveniente. Licurgo, o mais virtuoso e perfeito dos legisladores, a fim de incitar à temperança o seu povo, imaginou o meio mui contrário à justiça de obrigar os ilotas, seus escravos, a se embebedarem para que, vendo-os inconscientes de seus atos e sentimentos sob o efeito do vinho, os espartanos aborrecessem esse vício. Mais errados andavam ainda os que autorizavam fossem todos os criminosos condenados à morte, dissecados em vida pelos médicos a fim de que estes pudessem aprender no ser vivo o funcionamento de nossos órgãos internos e assim alcançar maior segurança na prática de sua arte, pois, a transgredir as leis da humanidade, mais desculpável se me afigura fazê-lo em benefício da alma que do corpo, como procediam os romanos, os quais, querendo inspirar ao povo valentia e o desprezo pela morte, ofereciam-lhe os furiosos espetáculos de combate de gladiadores massacrando-se na sua presença: pois qual seria então o objetivo desses combates impiedosos de gladiadores, desses massacres de jovens, dessa volúpia sangrenta? E esse costume durou até a época de Teodósio: "atentai, príncipe, para essa glória que vos é reservada, a única com que possais enriquecer a herança paterna. Que o sangue humano não seja mais derramado nos circos para o prazer do povo! Que a arena se contente com o sangue dos animais e que nossos olhos não mais se maculem à vista dos jogos homicidas". Devia constituir, mesmo, formidável exemplo, e de grande influência na educação do povo, o espetáculo diário de duzentos e até mil homens armados a lutarem uns contra os outros, esquartejando-se em verdade com tal coragem e resolução que nunca os viram deixar escapar uma queixa, virar as costas ou fazer um movimento qualquer suscetível de sugerir algum temor ante o golpe do adversário; ofereciam o pescoço à espada e ao punhal. A muitos aconteceu indagarem do povo, já cobertos de ferimentos e quase agonizantes, se estava satisfeito com a maneira por que haviam cumprido seu dever. Não era necessário apenas que combatessem e que o combate terminasse fatalmente com a morte, era preciso ainda que o fizessem corajosamente; e os vaiava o povo, e os amaldiçoava, quando via que hesitavam em receber o golpe fatal. As próprias jovens os incentivavam: "a modesta virgem ergue-se a cada golpe; todas as vezes que o vencedor degola o adversário, mostra-se encantada e extasiada; e se o vencido pede mercê baixa o polegar e o condena". Os primeiros romanos empregavam os criminosos nesses jogos sangrentos, que visavam à educação do povo; mais tarde valeram-se de escravos contra os quais nada se alegava e até homens livres que se vendiam para participar do massacre; viram-se mesmo senadores, cavaleiros romanos e mulheres na arena: "vendem agora o seu sangue, por uma soma determinada, e vão morrer na arena; em plena paz cada qual escolhe um inimigo e vai combatê-lo diante do povo.ê Participando da emoção desses novos jogos, um sexo inábil ao duro manejo do ferro, desce ousadamente à arena sob os aplausos da multidão e combate como os gladiadores". Isso se me afiguraria estranho e incrível se não estivéssemos habituados a ver diariamente em nossas guerras tantos estrangeiros empenharem o sangue e a vida a serviço de querelas de nenhum interesse para eles. CAPÍTULO XXIV DA GRANDEZA ROMANA Quero dizer apenas uma palavra a propósito deste assunto inesgotável, a fim de mostrar o simplismo dos que colocam em pé de igualdade a grandeza romana e as míseras grandezas de nossa época. No livro sete das Epístolas Familiares, de Cícero (este epíteto "familiares" podem os gramáticos suprimi-lo se quiserem, pois em verdade não se justifica, e substituí-lo pela expressão "a seus familiares", apoiando-se em Suetônio, o qual em sua vida de César afirma existir um volume de cartas com tal título); nessas epístolas, pois, encontra-se uma dirigida a César na Gália e na qual Cícero reproduz este trecho da que ele próprio recebera e que respondia: "quanto a Marco Flávio, que me recomendaste, farei dele o rei da Gália. Se queres que favoreça algum outro amigo teu, manda-o a mim". Não era absurdo nessa época que um simples cidadão, como era César então, dispusesse de reinos; já havia ele despojado o Rei Dejótaro do seu e o entregara a um tal Mitridates, fidalgo de Pérgamo. Os que lhe escreveram a biografia mencionam outros reinos vendidos por ele, e Suetônio diz que de uma só vez arrancou três milhões e seiscentos mil escudos ao Rei Ptolomeu, o qual esteve a ponto de vender sua coroa: tanto pela Galícia, tanto pela Líbia. Marco Antônio observava que a grandeza do povo romano se manifestava menos pelo que tomava do que pelo que dava. Na realidade, um século antes de Antônio, apossara-se de um reino, entre outros, mediante um ato de autoridade como não conheço igual na história, suscetível de dar mais alta ideia do seu poderio. Antíoco era senhor do Egito inteiro e procedia à conquista de Chipre e de tudo o que pertencera a esse império. Ia de vitória em vitória quando L. Pompílio se apresentou em nome do Senado e começou por lhe recusar a mão antes que lesse as cartas que trazia. Tendo-as lido, disse-lhe o rei que ia deliberar; mas Pompílio pôs-se a traçar um círculo em torno dele com um bastão, observando: "antes de saíres deste círculo, dá-me a resposta que devo levar ao Senado". Antíoco, amedrontado com a autoridade de semelhante ordem, refletiu um instante e respondeu: "farei o que manda o Senado". Pompílio saudou-o então como amigo do povo romano. O rei, embora vitorioso, renunciava, ante três linhas do Senado, à conquista de um país grande como o Egito: Justifica-se portanto que comunicasse pouco depois por seus embaixadores ter acolhido a injunção com o respeito que devotava aos deuses imortais. Todos os reinos que Augusto adquiriu por direito de conquista, devolveu-os aos vencidos ou os doou a estrangeiros. A esse respeito, Tácito, referindo-se ao rei da Inglaterra, Cogiduno, faz-nos compreender de maneira maravilhosa esse infinito poderio dos romanos. Tinham por hábito deixar os soberanos vencidos na posse de seus reinos, sob a proteção de Roma, "de modo a terem os próprios reis como instrumento de servidão". E é provável que Solimão, ao abandonar generosamente a posse da Hungria e de outros estados, tenha sido movido por essa mesma razão e não a que alegava habitualmente que estava cansado de tantos reinos e desse poder que devia a seu próprio valor e ao de seus antepassados. CAPÍTULO XXV DA INCONVENIÊNCIA DE FINGIR DE DOENTE Há um bom epigrama de Marcial entre os de toda espécie, bons e maus, que nos apresenta. Conta a história de Célio, o qual para evitar de cortejar certos altos personagens de Roma, assistindo ao seu despertar e os acompanhando, fingiu estar atacado de gota. E a fim de tomar mais verossímil a desculpa, mandava friccionar as pernas e as mantinha bem cobertas, imitando a atitude e o andar do reumático. A sorte acabou dando-lhe a satisfação de ficar realmente doente: "vede como é útil fingir de enfermo! Célio não mais precisa alegar que sofre de gota". Li em Ápio, creio, história semelhante de um indivíduo que, para fugir aos editos dos triúnviros e não ser reconhecido, andava disfarçado de caolho. Quando obteve um pouco mais de liberdade e quis arrancar o emplastro que usara, verificou ter realmente perdido a vista. É possível que esse órgão se haja atrofiado, após tanto tempo sem função, passando a inteira força de visão para o outro olho. Sentimos, efetivamente, que, se fechamos um olho, o outro como que aumenta e incha. É possível portanto que no gotoso de Marcial a falta de exercício, as ataduras e os medicamentos tenham desenvolvido alguma tendência para a gota. Lendo em Froissart que alguns jovens fidalgos ingleses haviam feito a promessa de vendar o olho esquerdo até que realizassem um feito heroico em França, pus-me muitas vezes a pensar quanto me fora agradável saber que lhes tivesse ocorrido desventura igual às que relatei, e que se houvessem achado realmente caolhos diante de suas bem-amadas, razão inicial da promessa. Justifica-se que as mães admoestem os filhos quando fingem de enfermos, cegos, mancos, vesgos etc. Além do fato de o corpo em formação poder adquirir um mau hábito, há a observar que os fados parecem comprazer-se em levar a sério tais brincadeiras. E sei de várias pessoas que adoeceram em se esforçando por parecer doentes. Sempre tive por hábito, a pé ou a cavalo, usar bengala (ou bastão); era uma questão de elegância e apoiava-me nessa bengala, dando-me ares de grã-fino. Disseram-me que desse modo o azar poderia fazer um dia que o requinte se tomasse necessidade. Seria em verdade o primeiro da família a sofrer de gota! Mas alonguemos esse capítulo com uma referência à cegueira. Conta Plínio de alguém que sonhou que era cego e acordou cego sem jamais ter estado doente. O poder da imaginação, como já o observei antes, pode influir nisso, e Plínio parece dessa opinião. A meu ver, porém, foram os movimentos internos do corpo causadores da cegueira - e os médicos os explicarão se quiserem - que provocaram o sonho. Acrescentemos, a propósito, a história que nos conta Sêneca em uma de suas cartas. "Sabes", diz a Lucílio, "que Hasparté, a louca de minha mulher, me coube por herança; houvera preferido que tal não ocorresse, pois não aprecio monstros, tanto mais quanto para rir de um louco não preciso ir muito longe, posso rir de mim mesmo. Mas essa louca perdeu repentinamente a vista. O que te conto agora é espantoso, mas verdadeiro: ignora que ficou cega e atormenta a pessoa encarregada de tratá-la a fim de que a leve para fora, porque, diz, minha casa é demasiado escura. O que nela se presta ao riso, é, acredita, o que ocorre com todos nós; ninguém percebe que é avarento ou invejoso. Só que os cegos pedem um guia, ao passo que nós afundamos sozinhos no erro. Não sou ambicioso - dizemos - mas em Roma não se poderia viver de outro modo; não me apraz o luxo, mas a cidade exige grande despesa; não é culpa minha se me zango, se não levo uma vida regrada; é culpa da mocidade. Não procuremos nossos males fora de nós; estão em nós, arraigados em nossas entranhas; mas exatamente porque não nos sentimos doentes, com maiores dificuldades nos curamos. Se não nos dispusermos desde cedo a cuidar de nossas doenças, quando acabaremos de pensar as nossas chagas, de tratar de nossos males? E, no entanto, temos à mão esse tão suave remédio da filosofia; dos outros medicamentos só sentimos os efeitos benéficos depois da cura; aquele é agradável e eficiente a um tempo." Eis o que diz Sêneca. Isso arrastou-me longe do assunto, mas ganhamos na troca. CAPÍTULO XXVI DOS POLEGARES Conta Tácito que entre certos reis bárbaros os mais sagrados compromissos se assumem juntando as mãos direitas e entrelaçando os polegares. Quando, pela pressão, o sangue alcança a extremidade dos dedos, espetam-nos e chupam-nos reciprocamente. Dizem os médicos que os polegares são os dedos essenciais da mãos e que a palavra de que derivam significa em latim "forte, poderoso". Em grego o sentido do vocábulo por que são designados é o de "outra mão". E parece que por vezes os latinos o empregaram no sentido de mão inteira: "para erguer-se não precisa de doces palavras nem ser incitada pelo polegar". Em Roma, os polegares voltados para cima eram sinal de aprovação: teus partidários te aplaudem levantando os polegares. Ao contrário, o polegar voltado para baixo era sinal de desfavor: quando o povo baixa o polegar é preciso, para lhe agradar, que o gladiador seja morto. Os romanos excluíam do exército quem ferisse o polegar, considerando que não teria força bastante para empunhar armas. Augusto confiscou os bens de um cavaleiro romano que decepara o polegar de seus filhos na primeira infância, a fim de isenta-los do serviço militar. Antes dele, o Senado, por ocasião das guerras sociais, condenara Caio Vatieno à prisão perpétua e à confiscação dos bens, por haver voluntariamente cortado o polegar da mão esquerda com o objetivo de se esquivar à guerra. Alguém, cujo nome esqueço, tendo ganho uma vitória naval; mandou decepar o polegar de todos os prisioneiros para tirar-lhes a possibilidade de lutarem e manejarem o remo. Os atenienses fizeram o mesmo com os habitantes de Egina para despoja-los da superioridade nas artes marítimas. Na Lacedemônia os professores puniam os alunos mordendo-lhes o polegar. CAPÍTULO XXVII A COVARDIA É MÃE DA CRUELDADE Ouvi dizer muitas vezes que a covardia é mãe da crueldade e observei por experiência como uma falsa e perversa coragem, impregnada de maus sentimentos e de inumanidade, se une a certa fraqueza de alma bem feminina. Vi gente cruel ter a lágrima fácil a propósito de coisas insignificantes. Alexandre, tirano de Feres, não podia assistir, no teatro, à representação de tragédias, de medo que seus súditos o vissem enternecer-se com as desgraças de Hécuba ou Andrômaca, ele que impiedosamente mandava todos os dias torturar tanta gente com requintes de crueldade. Não será por pusilanimidade que esses indivíduos passam assim de um extremo a outro? A valentia, que se exerce somente contra o que lhe resiste, só se compraz em imolar um touro quando este se defende susta o golpe se vê o inimigo à sua mercê; mas a pusilanimidade, não tendo figurado neste primeiro ato e querendo participar da festa, entra em cena no segundo, o do massacre e do sangue. As carnificinas que se seguem às vitórias são obra em geral das massas inconscientes e dos que se ocupam das bagagens; e o que faz que presenciemos tantas e incríveis crueldades nas guerras de que participa o povo é o fato de a canalha, acostumada ao assassínio, se tornar cruel pelo hábito de chafurdar no sangue e esquartejar cadáveres a seus pés, não tendo outra concepção de valentia: "o lobo, o urso, os animais menos nobres encarniçam-se contra os agonizantes"; assim os cães poltrões rasgam com os dentes, em casa, as peles dos animais selvagens que não ousariam atacar em pleno campo. Por que em nossa época as disputas sempre acarretam a morte? Por que começamos pelo fim, quando nossos pais dosavam suas vinganças? Já de início só falamos em matar. Que significa isso senão medo? Ninguém ignora que há mais bravura em vencer o inimigo do que em o exterminar; mais em forçar a ceder do que em o matar. Ademais, nossa vingança é assim bem mais completa, pois seu objetivo é sobretudo provocar o ressentimento do inimigo; por isso mesmo não atacamos um bicho ou uma pedra que nos ferem, incapazes que são de compreender um revide. Ora, matar um homem é pô-lo a salvo de nossas ofensas. Daí a observação de Bias a um indivíduo mau: "sei que mais cedo ou mais tarde pagarás, mas receio não o ver"; e tinha pena dos habitantes de Orcôrneno por se verificar tarde demais a punição do traidor Licisco, pois já não havia então nenhum sobrevivente interessado em assistir ao castigo. Lamentável é a vingança quando privada dos meios de fazer sofrer a vítima e alegrar o vingador. "Há de arrepender-se", dizemos, mas uma bala de pistola na cabeça fará que se arrependa? Ao contrário, como que nos desafia, caindo; nem mesmo nos censura o gesto, o que está longe do arrependimento. Prestamos-lhe em suma o melhor serviço, o de uma morte rápida e indolor. Temos de nos esconder, fugir à justiça, enquanto ele descansa. Mata-lo impede apenas que nos ofenda de novo no futuro, mas não nos vinga da ofensa recebida; há nisso mais temor que bravura, mais previdência que vontade de castigar. É evidente que assim renunciamos ao fim real da vingança e prejudicamos nossa reputação; demonstramos tão somente o receio de que, vivo, renove o insulto. Não é contra ele que agimos, é em nosso benefício. No reino de Narsinga, essa maneira de agir não nos seria de nenhuma utilidade. Nesse país os homens de guerra e os artesãos resolvem suas divergências a golpes de espada. O rei não recusa a ninguém o direito de se bater; assiste mesmo aos duelos quando ocorrem entre pessoas de certa condição social, oferecendo uma corrente de ouro ao vencedor. Mas quem quer que ambicione a corrente pode medir-se com o dono, de modo que este, por ter vencido de uma feita, vê aumentar o número de seus contendores. Se imaginássemos ser sempre superiores ao inimigo em coragem e poder maltratá-lo à vontade, lamentaríamos imenso que nos escapasse como o faz morrendo. Queremos vencer, mas antes com a certeza do êxito do que de um modo honroso; buscamos o resultado e não a glória. Asínio Pólio cometeu erro semelhante, pouco desculpável em um homem de honra. Escrevera uma diatribe contra Planco e aguardava a morte deste para a publicar. Em vez de correr o risco do ressentimento que ia provocar, era como se desafiasse um cego com gestos indecorosos ou um surdo com palavras ofensivas, ou ainda como se violentasse uma pessoa desfalecida. Daí lhe dizerem que "cabia aos gnomos lutar contra os mortos". Quem aguarda a morte de um autor para criticar-lhe a obra demonstra que é fraco e vil. Comunicaram a Aristóteles que alguém falara mal dele: "Que faça mais ainda", respondeu, "que me açoite conquanto eu não esteja presente". Nossos pais contentavam-se com responder à injúria com um desmentido, e a um desmentido com pancadas, e assim por diante; eram bastante valentes para não temer o adversário vivo; nós, trememos de pavor enquanto o vemos em pé. Nossa conduta atual leva-nos a buscar a morte de quem ofendemos da mesma forma que buscamos a de quem nos ofende. Igualmente, por covardia, introduzimos o hábito de nos fazer acompanhar de dois, três e até quatro companheiros. Outrora tais encontros eram duelos, hoje são verdadeiras batalhas. Quem primeiro inventou esse método, receava ficar entregue a si mesmo: "todos desconfiavam de si" e, em verdade, diante do perigo a companhia reconforta e encoraja. Outrora, só se recorria a terceiros como testemunhas de que não haveria atos de deslealdade, mas pouco a pouco tornou-se comum participarem do duelo as testemunhas, pois quem é convidado não pode decentemente permanecer simples espectador, de medo que o tachem de covarde ou insensível. Além do que há de iníquo e desonesto em pedir auxílio para defender a própria honra, e apoiar-se na força e na desteridade de outrem, acho desvantajoso para um homem de bem, e seguro de si, ligar sua sorte à de outros. Já corre cada qual riscos suficientes por si mesmo, sem que os precise correr por outros; e já tem bastante trabalho para assegurar sua própria coragem na defesa de sua vida sem arriscar coisa de tão grande valor em benefício de terceiros. Pois, efetivamente, a menos de se haver convencionado regra diversa, no caso de se eliminar um segundo, achamo-nos com dois adversários pela frente. É evidente que se trata de um abuso, como o será atacar com espada perfeita a quem só tenha um pedaço da sua, ou alguém intato jogar-se contra um ferido; mas se tais vantagens são obtidas em combate, lícitas se fazem. A disparidade e a desigualdade somente antes do duelo são objeto de ponderação; quanto ao resto, há que confiar na sorte; se somos três contra três, ou se dois companheiros morrem e os três adversários se unem contra o último, não há como protestar, do mesmo modo que na guerra não cabe protesto contra quem auxilia o companheiro atacando o adversário com o qual se digladia. Quando grupos se enfrentam como ocorreu quando o Duque de Orléans desafiou o rei da Inglaterra propondo-lhe que lutassem cem contra cem; ou como fizeram os argianos em número de trezentos contra trezentos lacedemônios; ou ainda os três Horácios contra os três Curiácios, considera-se o conjunto do grupo como um só homem, e onde quer que ajam coletivamente, imprevisíveis são as probabilidades, imputando-se ao acaso, em grande parte, o resultado. Tenho exemplos domésticos de semelhantes casos. Meu irmão, Sr. de Matecoulon, foi convidado em Roma a servir de segundo a um fidalgo que não conhecia e fora desafiado por outro. E aconteceu-lhe ter que se defrontar com alguém que era seu vizinho e que ele conhecia melhor. Quisera que se condenassem tais leis de honra que tão amiúde vão de encontro à razão! Depois de liquidar seu adversário, teve meu irmão que correr em auxílio do companheiro, o que não podia deixar de fazer, pois como ficaria impassível enquanto o combate continuava indeciso? De que houvera servido sua colaboração? A cortesia que cumpre demonstrar ao adversário em má situação, não há como levar em conta quando se é o segundo de outra pessoa, pois fora injusto então abandoná-la. E meu irmão só se livrou da prisão na Itália graças a uma imediata e calorosa intervenção de nosso monarca. Estranho povo, o nosso! Não nos contentamos com a reputação que se espalha pelo mundo, de nossos vícios e loucuras, vamos ainda comprová-la no estrangeiro. Coloquem-se três franceses no Deserto da Líbia, não passará um mês sem que se ponham a brigar. Dir-se-ia que essas viagens longínquas fazem parte de um plano concebido para dar aos estrangeiros o espetáculo de nossas tragédias e um pretexto para que zombem de nós. Vamos aprender a esgrima na Itália e a pomos em prática com perigo de vida antes de saber lidar com uma espada, quando deveríamos primeiramente conhecer a teoria: "Míseras primícias de uma coragem juvenil, funesto aprendizado de uma guerra iminente". Bem sei que se trata de uma arte muito útil em seu objetivo. Tito Lívio conta-nos que na Espanha, em um duelo entre dois príncipes, o mais velho, com sua habilidade e técnica, venceu facilmente o mais jovem, muito mais vigoroso. É uma arte que, como observei, amplia a valentia de alguns, mas não se poderá taxá-la de coragem, porquanto decorre da destreza e não é uma qualidade em si. A honra no combate consiste em apelar para o caráter e não para a habilidade. Por isso um de meus amigos, muito forte na esgrima, escolhia, quando tinha que defender a honra, as armas que não lhe dessem vantagem, pois não queria que atribuíssem sua vitória à sua superioridade mais do que ao seu valor real. Na minha infância a nobreza considerava degradante a reputação de perito em tal arte. Esta só se exercia, aliás, às escondidas como ofício de duvidosa lealdade, mal adequado à coragem verdadeira e natural: "Não querem esquivar, nem bloquear, nem recusar; a destreza não conta; não há fintas, golpes retos ou oblíquos; sua cólera não tolera a arte. Escutai o choque terrível das espadas, ferro contra ferro; não recuam um só passo, seu pés permanecem imóveis e suas mãos não param nunca: golpes de ponta certos, e de lâmina em cheio". Os exercícios de arcabuzes e de arco, os torneios, as justas e as batalhas simuladas constituíam o passatempo de nossos pais; o da esgrima é tanto menos nobre quanto visa apenas a um objetivo individual e ensina a matarmo-nos em desobediência às leis e à justiça. Por isso, de todos os pontos de vista é desastroso. Mais digno e melhor seria praticar os exercícios suscetíveis de assegurar a execução da lei e salvaguardar a nossa independência e a nossa glória. O Cônsul Públio Rútilo foi o primeiro a ensinar o soldado a manejar suas armas com habilidade e ciência; juntou assim a arte à coragem, não em vista de dissensões pessoais mas com o fim de defender o povo romano. Era pois uma esgrima popular e civil. Além do exemplo de César, recomendando aos seus que ferissem principalmente no rosto os soldados de Pompeu, numerosos outros chefes introduziram, segundo as necessidades do momento, modificações nas formas das armas e no modo de empregá-las na defesa e no ataque. Filopêmen proibiu a luta, exercício em que era excelente, porque o necessário treinamento era incompatível com os princípios da disciplina militar, pelos quais, a seu ver, deviam ser formados os homens de honra e nos quais cumpria que empregassem o seu tempo. Parece-me também que essa destreza que se procura dar ao corpo, na nova escola, essas fintas, paradas e respostas, em lugar de úteis, são prejudiciais na guerra. Verifiquei mesmo que não se achava conveniente que um jovem desafiado para um duelo de espada e punhal se apresentasse em costume de guerra, como inconveniente seria que se propusesse bater-se de capa e espada. É de se notar que Lachez, em Platão, referindo-se ao ensino da esgrima tal qual o praticamos, diz nunca ter visto essa escola produzir um grande homem de guerra, e que o eram menos ainda os mestres, o que nossa experiência confirma. Aliás, não há nenhuma relação entre talentos de ordem tão diversa. Na educação que Platão prevê para os jovens de sua República, proíbe os exercícios de pugilismo, introduzidos por Âmico e Epeu, bem como os de luta, que recomendavam Anteu e Cércion, pois achava que não tornavam a juventude apta para o combate. Eis-me, porém, longe de meu assunto. O Imperador Maurício, advertido por sonhos e prognósticos que um certo Focas, soldado desconhecido, deveria assassiná-lo, indagou de seu genro Filipe quem era esse indivíduo. Tendo-lhe respondido Filipe, entre outras coisas, que se tratava de um pusilânime e um covarde, deduziu o imperador que devia ter inclinação para o crime e a crueldade. O que torna os tiranos tão sanguinários é a preocupação com a própria segurança. A covardia que trazem no coração não lhes sugere outras medidas de salvaguarda senão exterminar os que os podem ofender, mulheres inclusive, incapazes de um arranhão: "tudo abate porque tudo teme". As primeiras crueldades cometem-se espontaneamente; delas nasce o temor de uma justa vingança, o que provoca toda uma teoria de novas crueldades: Filipe, rei da Macedônia, que tantas dificuldades teve com Roma, sentindo-se inquieto com as numerosas mortes que ordenara e não podendo dominar o medo que lhe inspiravam todas as farrulias por ele ofendidas em diversas épocas, resolveu apoderar-se dos filhos de todos os que mandara matar a fim de assegurar sua própria tranquilidade, desfazendo-se deles uns após outros. Os bons assuntos agitam-se em qualquer lugar. Eu, que mais me preocupo com o alcance e o interesse de meus comentários do que com a ordem e a lógica da apresentação, não hesito em incluir aqui uma bela história, pois, quando valem realmente a pena, arrasto-as até pelos cabelos. Entre as vítimas de Filipe, figurava tal Heródico, príncipe da Tessália; posteriormente mandara ele executar os dois genros de Heródico, os quais deixaram viúvas Teoxena e Arco, cada qual com uma criança. Teoxena, embora muito solicitada, não quis tornar a casar-se. Arco desposou Pório, muito considerado entre os ênios e do qual teve numerosos filhos, todos pequenos ainda quando veio a falecer. Teoxena, instigada pelo amor maternal que dedicava aos sobrinhos, casou com Pório, a fim de melhor cuidar das crianças. Foi quando se publicou o edito do rei determinando que lhe fossem entregues os filhos dos que condenara. Teoxena, mãe corajosa, desconfiando da crueldade de Filipe, e temerosa das violências de seus apaniguados, ousou declarar que mataria os jovens com suas próprias mãos se forçada a perdê-los. Pório, apavorado com semelhantes palavras, prometeu-lhe rapta-los e leva-los para Atenas onde os deixaria com pessoas de sua confiança. Aproveitando a oportunidade da festa anual que se celebrava em honra de Enéias, assim procedeu. Assistiu durante o dia às cerimônias, tomou parte no banquete público, e, à noite, embarcou em um navio que já se achava pronto para zarpar. Mas os ventos eram desfavoráveis. E, achando-se ainda no dia seguinte à vista das costas, deram-lhe caça os guardas do porto. Estavam sendo quase alcançados e Pório estimulava os marinheiros a se apressarem quando Teoxena, excitada pelo seu amor e seu desejo de vingança, preparou armas e veneno, entregando-os aos jovens e dizendo: Vamos, meus filhos, a morte é agora o único meio de defender vossa liberdade; os deuses nos julgarão em sua santa justiça; nestas espadas e nestas taças cheias está a vossa liberdade; tende coragem. Tu, filho, que és o mais velho, toma esta lâmina para morreres de morte nobre. Acossados de um lado por tão intrépida conselheira e do outro pelos inimigos, precipitaram-se eles sobre as armas a seu alcance e semimortos foram jogados ao mar. Teoxena, orgulhosa por ter gloriosamente assegurado a liberdade dos filhos, abraçou então o marido e disse: "Sigamos o mesmo caminho, amigo, escolhamos a mesma sepultura". E estreitamente unidos mergulharam nas águas, voltando o barco ao porto sem os seus senhores. Os tiranos esforçavam-se por prolongar a morte que infligiam com o duplo objetivo de matar o adversário e fazer-lhe sentir os efeitos de sua cólera. Queriam que os inimigos não perecessem rapidamente e lhes permitissem saborear a vingança. Era-lhes difícil consegui-lo, pois as torturas excessivas não duram muito. Se duravam, não lhes pareciam suficientemente dolorosas. Daí os engenhosos suplícios da antiguidade, alguns dos quais ainda conservamos. Tudo o que ultrapassa a morte pura e simples se me afigura cruel. Nossa justiça não pode esperar que se amedronte ante a morte pelo fogo ou a tortura, e deixe de cometer crimes, quem os comete apesar da ameaça da forca e da decapitação. Ademais, suspeito que estejamos instigando ao desespero aqueles a quem infligimos tais suplícios, pois em que estado da alma pode achar-se um homem que permanece vinte e quatro horas sobre uma roda, membros partidos, ou pregado a uma cruz como outrora? Conta José que, durante as guerras dos romanos na Judéia, deparou em certo lugar com três judeus crucificados; eram seus amigos e conseguiu que os agraciassem ao fim de três dias. Dois morreram. Calcôndilo, que deixou memórias dignas de fé acerca dos acontecimentos de seu tempo, conta que o Imperador Maomé aplicava não raro esse horrível suplício de cortar os homens em dois com um só golpe de cimitarra dado no meio do corpo, acima das ancas, o que fazia que morressem, por assim dizer, de duas mortes concomitantes. Viam-se os dois pedaços ainda com vida agitarem-se durante muito tempo sob a ação da dor. Não creio entretanto que esse suplício devesse provocar grandes sofrimentos. Nem sempre os mais horríveis são os mais dolorosos e acho muito mais atroz o que, segundo outros historiadores, tiveram de suportar alguns senhores que o mesmo Maomé mandou esfolar vivos, ordenando, com requintes de crueldade, que a operação fosse conduzida de modo a prolongar-se por quinze dias. Creso mandou prender um fidalgo, favorito de seu irmão Pantaleão, e conduzir a uma oficina de pisoeiro onde foi raspado e escarduçado até morrer. Jorge SecheI, chefe desses camponeses da Polônia que a pretexto de realizar uma cruzada tantos estragos praticaram, foi vencido em um combate pelo voivoda de Transilvânia. Durante três dias permaneceu nu, amarrado a um cavalete e exposto aos torneios que inventavam os espectadores. Enquanto isso, vários outros prisioneiros eram submetidos a rigoroso jejum. Depois do que, e estando ele ainda vivo, deram de beber seu sangue a seu irmão querido, para o qual não cessava Sechel de implorar graça, assumindo toda a responsabilidade dos sucessos. Em seguida, ofereceram sua carne a vinte de seus chefes prediletos, os quais lha arrancaram a dentadas. Finalmente, em morrendo, cozeram-lhe as entranhas e os restos e distribuíram aos seus companheiros. CAPÍTULO XXVIII CADA COISA A SEU TEMPO Os que comparam Catão, o Censor, a Catão, o Jovem, comparam duas grandes naturezas e em parte semelhantes. O primeiro revelou a sua em feitos de armas e atividades de interesse público. Mas a virtude do outro foi mais pura e seria uma blasfêmia considerar qualquer outra igual. Quem ousaria, com efeito, isentar o censor do pecado de inveja e ambição quando atacou a honra de Cipião, o qual pela bondade e demais virtudes lhe era muito superior, bem como aos outros de seu tempo? O que dizem do censor, que na extrema velhice resolveu aprender o grego com entusiasmo, a fim de satisfazer um desejo antigo, não o considero digno de elogios. A isso chamamos voltar à infância, pois cada coisa tem seu tempo, as boas e as más. Pode mesmo ocorrer que uma prece seja dita em momento inoportuno como aconteceu com Flamínio, o qual, na hora da batalha, se afastou para orar a Deus: "o próprio sábio estabeleceu limites à sua virtude". Vendo Eudemônidas que o velho Xenócrates corria à sua aula, disse: "como poderá esse homem saber se aprende ou não?" Filopêmen, ouvindo elogiarem o Rei Ptolomeu por se exercitar diariamente no manejo das armas, observou: "não há como louvar um rei dessa idade por se entregar a exercícios que não saberá pôr em prática oportunamente". O homem jovem, dizem os sábios, deve preparar-se, o velho gozar o fruto do preparo. E nossa maior fraqueza está em que nossos desejos se renovam sem cessar e sem cessar recomeçamos a vida. Nossos estudos e desejos deveriam por vezes aperceber-se da velhice; já temos o pé no túmulo e nossos apetites e aspirações mal acabam de nascer: "às vésperas de morrer mandas talhar o mármore, construir casas, quando deverias pensar no cemitério". O mais remoto dos meus projetos não exige mais de um ano para a sua execução. Penso somente em meu fim, e desfaço-me de toda nova esperança, bem como evito novos empreendimentos. Dou um adeus definitivo aos lugares que deixo e diariamente alieno algo do que possuo: "há muito não perco nem ganho... não me restam provisões mais do que as necessárias para o caminho que tenho a seguir”. Vivi; cumpri a tarefa que o destino me determinou. Enfim, a velhice dá-me o alívio de entorpecer em mim desejos e preocupações que enchem a vida, referentes aos negócios, às riquezas e glórias, ao saber, à saúde e a mim mesmo. Há quem aprende a falar no momento em que deveria aprender a calar para sempre. Pode-se prolongar indefinidamente o período de estudos, mas não o da escolaridade. Nada mais ridículo do que um velho soletrando: "para condições diferentes, coisas diversas; cada idade tem suas necessidades próprias". Se queremos estudar, estudemos algo adequado à nossa condição, a fim de responder como aquele a quem perguntavam por que estudava se já estava decrépito: "para partir melhor e com mais sossego". Assim fez Catão, o Jovem, às vésperas de morrer, entregando-se à leitura de Platão acerca da imortalidade da alma. Não porque não tivesse previsto o necessário para a viagem. Resolução, segurança, conhecimento, possuía-os mais do que Platão pusera em seus livros; seu saber e sua coragem eram a esse respeito superiores ao que propugna a filosofia. Não escolheu essa obra, portanto, em vista da morte; como alguém cuja resolução, por importante que seja, não interrompe sequer o sono; e não modificava seus estudos como não mudava sua maneira habitual de viver. A noite em que lhe negaram o cargo de pretor, passou-a a jogar; a de sua morte empregou-a na leitura; perder o cargo e perder a vida tinham para ele a mesma importância. CAPÍTULO XXIX DA VIRTUDE Mostra-me a experiência que vai grande diferença entre as súbitas determinações da alma e sua conduta habitual. Bem vejo que nada nos é vedado, nem mesmo ultrapassar a própria divindade, disse alguém; há maior mérito, por exemplo, em ser impassível por força de vontade do que por tendência natural. Conseguimos mesmo, embora ocasionalmente, juntar à fraqueza humana a resolução e a segurança divinas. Na vida desses heróis do passado, observam-se às vezes ações prodigiosas, que parecem exceder de muito as nossas forças; mas trata-se em verdade de feitos passageiros, e não podemos conceber que suas almas se tivessem impregnado de ideias tão elevadas a ponto de se lhes tornarem inerentes. Acontece-nos, a nós mesmos, miseráveis abortos humanos, ter por vezes a alma despertada por palavras e exemplos e transportada bem acima de seu clima normal. É, porém, uma espécie de paixão que a impele e agita, e a projeta fora de si. Passado o tufão, vemo-la que, sem sequer o perceber, se acalma e relaxa, senão até o fim, ao menos até voltar ao estado anterior. E bastará então um incidente qualquer, um copo quebrado, por exemplo, para que nos comovamos como um homem comum. Salvo a ordem, a moderação e a constância, tudo está ao alcance do homem, mesmo o menos capaz. Por isso dizem os sábios que para julgar honestamente um homem é essencial examiná-lo em seus atos cotidianos. Pirro, que erigiu a ignorância em ciência, tentou, como todos os filósofos realmente dignos desse nome, adaptar sua vida à sua doutrina. Considerando seu julgamento, em razão de sua fraqueza, incapaz de tomar partido, queria que se mantivesse sempre em suspenso, Hesitando e encarando todas as coisas com indiferença. Por isso, dizem, tudo fazia de igual modo e com a mesma fisionomia. Se principiava a contar algo ia até o fim ainda que o interlocutor se despedisse; se andava, não mudava de direção, qualquer que fosse, e era precisa a intervenção de seus amigos para que não rolasse por precipícios ou se chocasse contra obstáculos. Temer ou evitar alguma coisa era, com efeito, contrário a seus princípios, os quais não reconheciam em nossos sentidos capacidade de escolha e de decisão. Ocorreu-lhe diversas vezes suportar incisões e cauterizações sem sequer piscar. Ora, uma coisa é fazer que a alma aceite tais ideias e outra pô-las em prática, o que não é contudo impossível. Mas praticá-las com tal constância que venham a integrar-se em nossa natureza, de que tanto se afastam, não é de crer se verifique. Eis por que, sendo visto a disputar com a irmã, diante da objeção de que assim saía fora de sua linha de conduta, exclamou: "Será preciso que essa mulherzinha seja também chamada a dar seu testemunho acerca de minha doutrina?" De outra feita, sendo visto a defender-se contra um cão, observou: "é muito difícil despojarmo-nos por completo da natureza humana; é pelos atos que primeiramente nos defendemos contra o que nos ameaça; a razão e a fatalidade só em seguida intervêm". Há cerca de sete ou oito anos, um aldeão, que ainda vive, cansado das cenas de ciúme que lhe fazia a mulher, foi acolhido ao voltar do trabalho pela saraivada habitual de recriminações. Louco de raiva, com a foice que trazia à mão, decepou as partes do corpo que tanto agitavam sua mulher e jogou-lhas à cara. Conta-se também que um fidalgo amoroso e bem-apessoado, tendo com sua perseverança seduzido uma linda menina, se viu na hora da posse inteiramente inibido. No seu desespero, de volta a casa, cortou o pênis e enviou a sangrenta vítima à sua bela, como reparação pela ofensa que lhe fizera. Sentira-se desonrado pois seu membro mal erguera a cabeça senil. Que diríamos de feito tão altivo se praticado refletidamente e por motivo de ordem religiosa como fazem os sacerdotes de Cibele? Há tempos, em Bergerac, a seis léguas de minha residência, subindo o Dordogne, uma mulher que fora batida pelo marido na véspera resolveu fugir à sua brutalidade sacrificando a vida. Ao levantar-se encontrando como de costume suas vizinhas, disse-lhes algumas palavras de recomendação e tomando a mão da irmã menor dirigiu-se à ponte. Aí disse-lhe adeus, como a brincar, e sem demonstrar o menor nervosismo precipitou-se no rio, desaparecendo. O que o fato revela de especial está em que amadurecera o projeto durante uma noite inteira. Muito mais fazem as mulheres indianas. É costume, nas Índias, terem os homens várias mulheres e a preferida matar-se por ocasião da morte do marido; todavia, esforçam-se todas por alcançar tal privilégio; e os cuidados e carinhos que têm para com o marido visam principalmente a conquistar-lhe a preferência a fim de acompanhá-lo na morte: "logo que a tocha mortífera põe fogo no último leito do defunto, as esposas, desgrenhadas, disputam entre si a honra de morrer com ele, pois sobreviver é humilhante para elas. A vencedora lança-se às chamas e com os lábios ardentes beija, agonizante, os restos do esposo”. Conta-nos alguém ter visto, ainda em nossos dias, praticarem esse costume no Oriente. E não somente as mulheres acompanham o homem na morte, mas também as escravas que o tiveram por amante. Assim procedem: morto o marido, pode a viúva (mas raramente o faz) pedir dois ou três meses de prazo para pôr em ordem seus negócios. No dia marcado, chega a cavalo e vestida como para um casamento, rosto alegre e trazendo à mão esquerda um espelho e à direita uma flecha, para, como diz, "dormir com seu marido". Acompanhada de seus parentes, amigos, e verdadeira e jovial multidão, passeia um pouco e se encaminha em seguida para o lugar reservado a esse gênero de espetáculos. E uma praça bastante ampla: no centro um fosso cheio de lenha e ao lado um estrado de quatro ou cinco degraus. Servem-lhe ali magnífica refeição; depois da qual põe-se ela a dançar e a cantar. E, quando julga chegado o momento, manda acenderem a fogueira. Isto feito, desce e, pegando pela mão o parente mais próximo do marido, vai com ele até o rio vizinho, onde se despoja de suas vestimentas que distribui, bem como as joias, a seus amigos. Nua, lava-se então dos pecados. Ao sair da água envolve-se em uma peça de tecido amarelo de quatorze braças de comprimento, e, tomando novamente a mão do parente, retoma ao estrado de onde fala à multidão para lhe recomendar os filhos, se os tem. Em geral, entre a fogueira e o estrado estendem uma cortina, a fim de esconder aos olhos da vítima o fogo abrasador. Muitas recusam-na para provar sua coragem. Depois que ela diz o que tem a dizer, uma mulher apresenta-lhe um vaso de óleo com o qual ela unta a cabeça e o corpo; ao terminar joga ao fogo as sobras e precipita-se ao mesmo tempo na fogueira, vivamente atiçada, então, pelo povo, para que não se prolonguem os sofrimentos da esposa. E a alegria de antes transforma-se em tristeza e luto. Se se trata de pessoas menos importantes, o corpo do morto é levado para o lugar onde deve ser enterrado; aí o colocam sentado, e a mulher, de joelhos à sua frente, abraça-o fortemente, assim se mantendo enquanto erguem um muro em volta de ambos. Quando esse muro alcança os ombros da mulher, um de seus parentes pega-a por trás pelos cabelos, e torce-lhe o pescoço. E logo que exala o último suspiro acabam de edificar o muro e fechar o túmulo. Nesse mesmo país, os filósofos da seita dos gimnossofistas procediam de igual modo, embora não fossem obrigados nem decorresse sua resolução de alguma exaltação ocasional. Faziam-no porque essa era sua regra de conduta. Quando atingiam certa idade e se viam ameaçados de alguma doença, mandavam erguer uma fogueira acima da qual colocavam um leito suntuosamente adornado. Em seguida, após alegres festejos com os amigos e conhecidos, deitavam-se no leito com tamanha resolução que não mexiam sequer os pés ou as mãos. Assim morreu um deles, Calanus, diante do exército de Alexandre. Esses filósofos consideravam que não poderia ser santo ou bem-aventurado quem assim não morresse, entregando a Deus a alma purificada pelo fogo, depois do aniquilamento do que tinha de mortal e terreno. O que há de prodigioso nesse ato é que durante toda a vida constituía o objeto de uma constante meditação. Entre as questões que nos dividem figura a da fatalidade, segundo a qual para subordinar as coisas futuras e nossa própria vontade a certa necessidade inelutável, ressuscita-se este velho argumento: "Se Deus tudo previu, como o previu sem dúvida, o que acontece tem de acontecer". Ao que respondem os nossos doutores: "Constatar que uma coisa acontece, como o fazemos e Deus o faz igualmente (pois, presente em toda parte, antes vê do que prevê), não significa obrigar essa coisa a acontecer; se vemos é porque as coisas são; mas não são porque as vemos; o acontecimento faz que o constatemos, e não é a constatação que provoca o acontecimento: o que vemos ocorrer em verdade ocorre, mas poderia ocorrer de outro modo. "E Deus, que tem a presciência das causas que produzem os acontecimentos, tem igualmente a das causas ditas fortuitas, bem como a presciência das que dependem de nossa vontade em virtude do livre-arbítrio que nos outorgou; sabe que faltamos ao nosso dever porque queremos faltar." Vi muitas pessoas encorajarem seus partidários recorrendo ao dogma seguinte: "se nossa hora deve chegar, nem os arcabuzes do inimigo, nem nossa temeridade, nem nossa covardia, poderão adiantá-la ou retardá-la". Fácil de dizer, mas indagai quem o segue. Se uma fé viva e forte provoca ações impregnadas de idênticas qualidades, essa nossa fé que não cessamos de proclamar neste século, deve ser incrivelmente fraca, a julgar pelos resultados, a menos que ela os despreze a ponto de evitá-los. A esse respeito, lemos em Joinville, testemunha digna de crédito, que os beduínos, que se misturavam aos sarracenos quando o Rei São Luís andou pela Terra Santa, acreditavam tão firmemente que os dias de cada um são determinados e contados, para todo o sempre sem que seja possível escapar ao destino, que iam para a guerra completamente nus, simplesmente com uma cimitarra e um pedaço de pano branco à cintura. Sua maior injúria, quando se zangam, é "maldito sejas, como maldito é quem se arma de medo de morrer". Eis uma prova de fé bem maior do que as nossas. A que outrora deram dois monges de Florença é da mesma ordem: como tinham opiniões contrárias a respeito de dado ponto da ciência, combinaram entregar a solução à Providência e entrar ambos numa fogueira acesa na praça pública. Já tudo se achava preparado e iam passar à prova quando se verificou um incidente que a interrompeu. Um jovem senhor turco se assinalara por um feito de armas perpetrado diante dos exércitos de Amurat e Hunyadi e que os levara a se engalfinharem. Tendo-lhe perguntado Amurat a que devia, tão jovem e inexperiente, o vigor e a coragem que demonstrara, respondeu que sua valentia ele a aprendera com um professor excepcional: uma lebre. "De uma feita, caçando, vi uma lebre em seu covil. Embora tivesse comigo dois excelentes cães, como se apresentasse de um ângulo muito favorável, preferi, para não perdê-la, atirar com meu arco. Arremessei então uma primeira flecha, e logo outra, e assim fiz das quarenta que tinha em minha aljava, não somente sem a atingir mas sem sequer a despertar. Lancei os cães. Não conseguiram tampouco pegá-la. Compreendi então que estava sob a proteção do destino, que nem as flechas, nem as espadas acertam quando a fatalidade não quer e que não podemos nem avançar nem retardar sua decisão. Esta história deve também servir para nos mostrar a que ponto somos sensíveis às mais diversas impressões. Certo personagem considerável, tanto pela idade como pelo nome, as honrarias e as opiniões, vangloriava-se de ter sido levado a modificar a sua fé em virtude de um fato, na minha opinião relacionado apenas indiretamente com o assunto e tão extravagante quanto o do nosso jovem turco. Fato, aliás, suscetível, a meu ver, de levar a conclusão contrária. Ele, entretanto, qualificava-o de milagre, e eu também, mas em outro sentido. Acham os historiadores turcos que a persuasão em que estão os seus de uma duração predeterminada da vida auxilia-os de maneira sensível na atitude diante do perigo. Conheço um grande príncipe que tira partido dessa crença, ou por ter realmente fé ou por invocá-la apenas para explicar modestamente sua temeridade. Oxalá os fados não se cansem de protegê-lo. Não creio que haja exemplo mais comprobatório de resolução firme do que o desses dois homens que atentaram contra a vida do Príncipe de Orange. E mais admirável ainda quanto ao segundo, o que teve êxito, que revelou tamanha decisão, embora a coisa tivesse dado mal resultado com o primeiro, o qual, entretanto, tomara todas as precauções possíveis. Tratava-se efetivamente de agir com as mesmas armas, após um precedente desastroso. Contra um homem prevenido, de grande força física, protegido por amigos dedicados, e que se encontrava em sua casa entre os seus guardas, em uma cidade de sua confiança. Por certo, para perpetrar o assassínio foi necessário mão firme, além de uma coragem inspirada em violenta paixão. O punhal é mais seguro do que a pistola, mas exige braço mais vigoroso e vivacidade, e comporta maiores riscos. Estou convencido de que esse segundo assassino não ignorava que corria a uma morte certa, pois somente um espírito fraco poderia alimentar quaisquer esperanças, e a maneira por que se houve bem mostra que não carecia de inteligência e coragem. As razões de tal segurança são complexas, nossa imaginação fazendo dela, e de nós, o que bem entende. O atentado cometido perto de Orléans não se assemelha ao precedente. O êxito é imputável ao acaso mais do que à resolução. O golpe não fora mortal se não o quisesse o destino. Atirar de longe, a cavalo, contra alguém igualmente montado e movimentando-se com a montaria, mais demonstra a preocupação de fugir do que a de acertar no alvo. O que aconteceu em seguida comprovou-o. O assassino ficou tão perturbado com a ideia de ter atentado contra tão alto personagem, que perdeu a cabeça. Para fugir, bastava-lhe atravessar o rio e juntar-se a seus amigos. Já fiz mais de uma vez coisa análoga para fugir a perigos menores e julgo que o risco não é grande, por mais largo que seja o caudal, desde que o cavalo possa entrar facilmente na água e que do outro lado exista um ponto onde abordar. Quando comunicaram ao assassino do Príncipe de Orange o terrível castigo que o aguardava, disse apenas: "esperava-o e hei de mostrar-vos que saberei suporta-lo". Os assassinos, tribo da Fenícia, gozam entre os maometanos a reputação de ser devotos e castos. Consideram que o caminho mais curto para o paraíso consiste em matar alguém de outra religião. Atacam não raro sozinhos, ou a dois, e vestidos sumariamente, inimigos poderosos. Sabem que perderão a vida e não tomam precaução de espécie alguma. Assim foi assassinado (daí o nome da tribo) em sua cidade, durante as Guerras Santas, Raymond, conde de Trípoli. E também Conrado de Montferrat. Os assassinos mostravam-se orgulhosos de ter realizado tão bela obra. CAPÍTULO XXX A PROPÓSITO DE UMA CRIANÇA MONSTRUOSA Restrinjo-me ao simples enunciado de um fato, deixando aos médicos o comentário: vi ontem um menino que dois homens e uma mulher, os quais diziam ser seu pai, seu tio e sua tia, pretendiam exibir para ganhar alguns soldos. Esse menino, que tinha exatamente quatorze meses, apresentava aspecto normal. Sustentava-se sobre os pés, andava e balbuciava como qualquer criança da mesma idade; seus gritos, entretanto, pareciam revelar algo particular e, até então, nada pudera tomar em matéria de alimento, a não ser o leite da ama. O que lhe punham na boca (fizeram-no diante de mim), mastigava um pouco e rejeitava recusando-se a engolir. Entre a teta e o umbigo ligava-se a outra criança, sem cabeça, com o orifício intestinal tapado mas inteiro quanto ao resto. Esse aborto tinha um braço mais curto do que o outro, o qual se havia quebrado ao nascer. Os corpos pareciam defrontar-se e era como se uma criança pequena houvesse querido grudar-se a outra maior. A junção mesma não ultrapassava quatro dedos de largura mais ou menos e erguendo o corpo menor via-se o umbigo do maior, bem como a linha de sutura. Quanto ao aborto, não se lhe via o umbigo, mas sim o resto do ventre, e as partes livres, braços, nádegas e pernas, que pendiam balouçantes junto ao corpo do maior, alcançando a metade das pernas. Acrescentava a ama que esses dois seres urinavam cada qual por seu lado; que os membros de ambos se alimentavam igualmente bem e eram muito vivos, embora os do aborto se mostrassem mais frágeis. Esse duplo corpo e esses múltiplos membros ligados a uma só cabeça, poderiam muito bem constituir um bom prognóstico para o nosso rei, pressagiando a coexistência de vários partidos sob as suas leis. Mas é melhor deixá-lo de lado, pois os acontecimentos podem desmenti-lo. E mais seguro prognosticar os fatos consumados "mediante interpretações que os enquadrem nas conjeturas", como diz Cícero e também Epimênides, de quem afirmavam que adivinhava "para trás". Acabo de ver um pastor do Medoc, de trinta anos mais ou menos, que não mostra vestígios das partes genitais. Apresenta no lugar delas três orifícios pelos quais urina constantemente. Tem barba, sente desejo e procura as carícias das mulheres. Os que denominamos monstros não o são perante Deus, pois só Deus distingue e aprecia, na imensidade de Suas obras, as formas infinitas que imaginou. É provável que tal ou qual que nos espanta se prenda a outra do mesmo gênero, desconhecida do homem e que no entanto d'Ele provenha. Tudo o que emana de Sua infinita sabedoria é belo e decorre de leis gerais; mas, as relações dessas coisas entre si e sua ordenação escapam-nos. "O homem não se admira com o que vê amiúde, ainda que lhe ignore a origem; mas se ocorre o que nunca viu, considera-o um prodígio." Dizemos daquilo que se afasta do que vemos habitualmente que é contrário à natureza; tudo, entretanto, obedece às suas leis. A razão universal e natural deve pois expulsar de nós a surpresa que a novidade provoca. CAPÍTULO XXXI DA CÓLERA Plutarco é sempre admirável; principalmente quando aprecia as ações humanas. Assim as excelentes coisas que diz no paralelo que estabelece entre Licurgo e Numa, acerca da simplicidade de espírito Com que abandonamos os filhos à orientação exclusiva dos pais. Em sua maioria, nossas instituições admitem, como diz Aristóteles, que cada qual, à maneira dos ciclopes, governe mulher e filhos ao sabor de sua imaginação mais ou menos louca. Somente as constituições da Lacedemônia e de Creta oferecem leis para a educação da criança. Quem não percebe que em uma nação tudo depende da educação moral e física? E no entanto ela continua sem nenhum critério, à mercê dos parentes, por loucos que sejam, e maus. Quantas vezes, na rua, tive ímpetos de vingar, a meu modo, os meninos que via esfolados, esbofeteados, machucados por um pai em furor. Atentai para esses brutos, faces esfogueadas, olhos cintilantes de raiva (e segundo Heródoto as doenças que nos desfiguram são as mais perigosas), vociferando contra seres que mal largaram a chupeta: "incendeia-os a cólera e os empurra como rochedo abrupto que, perdendo seu ponto de apoio, rola montanha abaixo". Das palavras passam aos gestos, e eis os pobres pequenos feridos, estropiados, sem que a justiça se incomode, como se não se tratasse de criaturas da nossa comunidade: "agradece-te a pátria, por lhe teres dado um novo cidadão, desde que o tornes idôneo e útil, ou lavrando a terra, ou nas artes da paz ou nos serviços da guerra". Não há paixão que mais perturbe a equidade dos juízos do que a cólera. Ninguém hesitaria em condenar à morte um juiz que sob o império desse sentimento punisse um criminoso; por que então nossos pais e nossos professores terão o direito, quando irritados, de açoitar uma criança ou lhe infligir qualquer castigo? Já não é corrigir, é vingar-se. O castigo deve ser uma espécie de remédio para a criança; admitiríamos que um médico se enfurecesse e agredisse o doente? Nós mesmos, a bem dizer, não deveríamos jamais levantar a mão contra nossos servidores sob o impulso da cólera. Adiemos a prestação de contas até que nosso pulso serene; a coisa há de parecer-nos diferentes quando nos acalmarmos. De outro modo a paixão é que comanda; ela é que fala e não nós, e sob a sua influência as faltas se ampliam, como ocorre com as formas vistas através da neblina. Quem tem fome, quer carne; mas quem castiga não deve ter fome ou sede, tanto mais quanto o castigo é mais eficiente se aplicado com medida. Condenada por um homem enfurecido, a vítima imagina ter sido injustamente punida. Alega em sua defesa a exacerbação do amo, seu rosto esfogueado, seus palavrões, a inquietação em que se encontrava. Seu rosto incha de ódio, suas veias pretejam, seus olhos deitam raios mais ardentes que os dos olhos de Córgone. Relata Suetônio que Lúcio Saturnino,! condenado por César, apelou para o povo e obteve ganho e causa em virtude, principalmente, da animosidade e da dureza com que César o julgara. Dizer e fazer são coisas diferentes e é preciso considerar separadamente sermão e predicante. E não deixaram de tirar partido dos vícios do clero os que tentaram nestes tempos atentar contra a verdade da Igreja. Mas esta se apoia em outros testemunhos. Semelhante orientação é errônea e tudo perturba; um homem de bons costumes pode ter opiniões discutíveis e um mau indivíduo pregar a verdade, o que até um incréu pode fazer. É sem dúvida mais bela a harmonia entre fazer e dizer, e não pretendo negar que nesse caso mais autoridade tenham os atos, e mais eficiência. Eudâmidas, ouvindo um filósofo discorrer acerca da guerra, dizia: "belas palavras, mas quem as profere não deve ser crido, seus ouvidos não estão familiarizados com o som das trombetas". Cleômenes, ouvindo um retórico falar da valentia, pôs-se a rir ruidosamente, e como o outro se formalizasse, observou: "rir-me-ia também se falasse uma andorinha, ao passo que uma águia eu escutaria com atenção". Parece-me que os escritos dos antigos nos mostram à saciedade que quem pensa o que diz impressiona mais o leitor ou o ouvinte do que quem não está convencido de suas palavras. Vede Cícero referir-se ao amor à liberdade, e vede Bruto: os escritos deste último provam que era homem capaz de pagá-la com a vida. Que Cícero, pai da eloquência, fale do desprezo pela morte e que Sêneca trate do mesmo assunto; aquele é mole e sentimos que se pronuncia acerca de uma coisa de que não está convencido, e não nos fortalece; já o outro anima e inflama. Nunca leio um autor que trate da virtude e dos atos que inspira sem procurar saber como se conduziu ele próprio. Vendo os éforos, em Esparta, certo indivíduo de costumes desregrados propor ao povo uma coisa útil, mandaram-no calar e pediram a um homem de bem que se apropriasse da ideia e a apresentasse. As obras de Plutarco mostram bem o que ele foi, e creio conhecê-lo a fundo. Entretanto, gostaria que tivéssemos alguns documentos sobre sua vida e se me afastei do assunto foi para mencionar um trecho de Áulio Célio, o qual nos dá uma ideia dos hábitos de Plutarco e me reconduz ao meu tema. Um dos escravos de Plutarco, homem mau e viciado, mas que ouvindo suas aulas, retivera, embora superficialmente, algumas noções de filosofia, fora despojado de suas roupas para ser açoitado por causa de alguma falta cometida. A princípio, enquanto o açoitavam, resmungou que "não tinham razão, que nada fizera"; em seguida, pôs-se a gritar e a injuriar seu amo censurando-lhe por "não agir como um filósofo que se jactava de ser, que muitas vezes o ouvira dizer quão nociva era a cólera, que escrevera mesmo um livro sobre o assunto, e que, mandando açoitá-lo, a ele escravo, sob o impulso da irritação, desmentia completamente tais lições". Ao que Plutarco, muito calmo, respondeu friamente: "Como podes julgar se neste momento me acho enfurecido? Minha fisionomia, minhas palavras, minha cor dão-te alguma prova? Não penso ter o olhar esgazeado, nem o rosto perturbado. Tampouco vocifero. Estarei vermelho? Vem-me a espuma aos lábios? Escapam-me palavras de que possa arrepender-me? Tremo porventura? Pois são esses os verdadeiros sinais da cólera". E voltando-se para o que manejava o açoite: "Continua tua tarefa enquanto discuto com esse indivíduo". Arquitas de Tarento, voltando de uma guerra em que exercera as funções de capitão-general, encontrou sua casa descuidada e suas terras incultas. Mandando chamar o feitor, disse-lhe: "Eu te esfolaria com prazer se não estivesse zangado". Platão assim agiu também: fortemente irritado com um de seus escravos, encarregou Espeusipo de castiga-lo, desculpando-se de não o fazer pessoalmente, porque estava com raiva. E o lacedemônio Carilo assim apostrofou um hilota que se mostrava insolente: "Por Deus que te mataria, se não estivesse com ódio!" A cólera é paixão que em si mesma se compraz e a si mesma aplaude. Quantas vezes, tendo agido sob o impulso de um erro nós nos irritamos contra a verdade e a inocência comprovadas? A propósito, eis um exemplo admirável tirado da antiguidade: Pisão, que sempre se mostrara mui virtuoso, enraivecido contra um soldado que partira em companhia de outro em busca de provisões e voltara sozinho sem nada poder dizer do companheiro, convenceu-se de que este fora assassinado e incontinenti condenou à morte o que voltara. Estava este ao pé da forca quando chegou o outro, que se perdera. Todo o exército o recebe com aclamações e depois de se abraçarem são ambos levados à presença de Pisão, na certeza de que se alegraria com o acontecimento. Foi entretanto o contrário que ocorreu. Despeitado e ainda encolerizado, inspira-lhe a paixão um raciocínio sutil. E em lugar de um inocente, vê no caso três culpados que condena à mesma pena de morte: um porque já fora condenado, outro porque se perdera e se tornara culpado da primeira condenação e o carrasco por ter desobedecido às suas ordens. Quem já se houve com mulheres obstinadas sabe da raiva que as invade se opomos à sua irritação o silêncio e a indiferença. Célio, o orador, era por temperamento extremamente colérico; alguém de gênio sereno e conciliante que com ele ceava vinha aprovando tudo o que ouvia a fim de não dar pretexto a discussões. Célio, impaciente por não poder abandonar-se a seu espírito de contradição, exclamou: "Por amor de Deus, dize qualquer coisa que eu possa discutir". Assim são as mulheres. Irritam-se apenas para ter uma oportunidade de irritar os outros, imitando nisso as leis do amor. Falando Fócion em público, interrompeu-o alguém com violentas injúrias; Fócion calou-se deixando que o interlocutor expandisse sua cólera. Em seguida voltou ao seu discurso sem aludir sequer ao incidente. Um tal desdém é a réplica mais causticante que se possa dar em semelhante circunstância. Digo amiúde do homem mais colérico da França (a cólera é sempre um defeito, mais desculpável entretanto em um militar, pois em certos casos não a pode evitar) que não conheço quem tenha mais mérito em se dominar. Ela o agita com tanta fúria e violência que ele precisa cruel esforço para se moderar. Assim, quando ruidosamente o fogo aquece o vaso de cobre: a água ferve, enfurece-se contra os flancos que a mantêm presa, transborda espumante, não mais contém sua força e seu vapor sombrio escapa e se ergue no ar. Quanto a mim, não sei de paixão que mais me custe dissimular e não me agradaria pagar tão alto preço pela sabedoria. E no caso não me interessa tanto o que se faz quanto o que se deixa de fazer. Alguém se jactava junto a mim da doçura e compostura em verdade notáveis de seus hábitos. Respondi-lhe que mostrar-se sempre igual para com todos em quaisquer circunstâncias, era meritório, principalmente em quem, como ele, tinha altas funções e muito se expunha à crítica alheia; mas o que importa particularmente é preocupar-se com o que ocorre dentro de nós. E não me parecia que cuidasse de seus interesses esgotando-se interiormente, como eu temia que ele o fizesse, para conservar sempre uma serenidade exterior. Nós nos impregnamos de nossa própria cólera, dissimulando-a. Fazemos mais ou menos o que Diógenes dizia a Demóstenes, o qual, receoso de ser visto na taverna, escondia-se dentro dela: "Quanto mais recuas, mais penetras". Aconselharia antes a dar por vezes injustamente um bofetão no criado de preferência a torturar-se para parecer sereno. Prefiro dar liberdade às minhas paixões a abafa-las em meu detrimento. Em lhes permitindo que se expandam perdem elas sua força e é melhor que atuem exteriormente do que contra nós: "as doenças visíveis da alma são as mais benignas; as mais perigosas são as que se escondem sob a aparência da saúde". Aos que tenham motivos para irritar-se aconselho que se controlem e não esbanjem sua cólera, pois isto lhe atenua os efeitos. As gritarias constantes convertem-se em hábito; não mais se lhes dá atenção. As cenas que fazemos com um criado ladrão, não as sente ele quando são a repetição das que lhe fizemos cem vezes por não ter lavado direito um copo ou guardado uma cadeira. Aconselho-os também a verificarem se sua repreensão se dirige realmente ao culpado, pois as mais das vezes já gritam antes dele se apresentar e continuam, horas a fio, depois de se ir: "o insensato que não se domina enfurece-se contra si mesmo". Se gritam contra a própria sombra, desabam raios onde não se encontra quem deva recebê-los nem ninguém que possa aproveitar a lição; e os estrondos apenas ensurdecem os inocentes. Há também que censurar os que esbravejam no vácuo. Cumpre reservar tais gestos para as ocasiões oportunas: "Muge furioso o touro contra seu rival; colérico pisoteia o solo, volta-se contra o vento e dá chifradas nas arvores". Quando me irrito sou violento, mas a cólera dura pouco e grito o menos possível. Entrego-me por certo à violência, porém não fico fora de mim a ponto de proferir palavras injuriosas, e é com perfeito conhecimento de causa que assesto minhas invectivas, procurando acertar no ponto em que mais firam. Meus criados sofrem menos aliás nos casos graves do que nos insignificantes. Estes me surpreendem e quer a infelicidade que se caímos em um precipício pouco importam as causas, vamos rolando até o fundo, e sempre mais depressa. Nos casos graves, quando todos esperam uma cólera proporcional e justa, apraz-me desiludi-los, pois sabendo até onde pode levar uma desmedida irritação, ponho-me de atalaia e me domino; mas se sou tomado de surpresa, a cólera apodera-se de mim e arrasta-me mais longe do que fora normal. Com as pessoas que têm o direito de discutir comigo, entro em acordo: "Quando virdes que começo a irritar-me, deixai-me prosseguir, certo ou errado, até o fim; eu farei o mesmo". "A tempestade nasce com efeito unicamente das cóleras que se entrechocam; não têm uma origem comum, decorrem por vezes uma da outra; deixemo-las seguirem seu curso e teremos a paz. Essa determinação, boa sem dúvida, é de difícil aplicação. Às vezes acontece-me em questões de ordem doméstica fingir que estou zangado. Na medida em que a idade me torna mais sensível às contrariedades, esforço-me por não ceder a esse sentimento, e zangar-me tanto menos quanto maior disposição tenha para o fazer. E isso, embora, em minha juventude, tenha sido dos que menos sabiam moderar-se. Uma palavra ainda, antes de terminar este capítulo. Aristóteles diz que a cólera é por vezes utilizada como arma pela virtude e a valentia, o que me parece certo. Entretanto, os que divergem de opinião neste ponto objetam, com espírito, que se trataria então de uma arma muito especial, pois manejamos as outras armas e por essa somos manejados; não a guia a nossa mão, ela é que nos conduz. CAPÍTULO XXXII DEFESA DE SÊNECA E PLUTARCO Minha intimidade com esses filósofos, a ajuda que me proporcionaram em minha velhice e também este meu livro escrito quase unicamente com o que deles tirei, constituem como que a obrigação, para mim, de lhes defender o nome. Vejamos primeiramente Sêneca. Entre os inúmeros opúsculos que a religião reformada distribui em defesa de sua causa, alguns dos quais lamentamos, pelo estilo, não tenham visado melhor fim, deparei com um cujo autor, para melhor demonstrar certa analogia entre Carlos IX e Nero, e entre o falecido Cardeal de Lorena e Sêneca, compara os destinos que guindaram estes últimos a conselheiros de seus príncipes, bem como suas condutas e seus erros. A meu ver, há nisso honra excessiva para o cardeal, pois embora seja dos que mais estimam seu espírito, seu devotamento ao rei e à religião, e embora quisesse a sorte fazê-lo nascer em um século tão necessitado de um dignitário da Igreja de tão alta nobreza e tão capaz de desempenhar o seu papel, vejo-me forçado a observar, a bem da verdade, que não considero sua capacidade comparável à de Sêneca, nem sua virtude tão grande e resoluta quanto a deste. O opúsculo a que aludo apresenta uma exposição assaz injuriosa do que foi Sêneca; tira suas diatribes de Díon, historiador cujo testemunho me inspira pouca confiança. Antes de mais nada, Díon é versátil nos seus julgamentos, pois ora considera Sêneca homem mui sábio e inimigo dos vícios de Nero, ora o pinta como alguém de natural avarento, propenso à usura, à ambição, à covardia, ao prazer, dizendo-se filósofo e desmentindo suas palavras com seus atos. Em segundo lugar, os escritos de Sêneca revelam tão viva virtude, neles ele se defende tão bem contra as acusações de que foi objeto, em particular as referentes a sua riqueza e a seus gastos, que não posso acreditar em nenhum testemunho contrário. Ademais, é mais normal acreditar-se, a esse respeito, nos historiadores romanos do que nos gregos e nos estrangeiros. Ora, Tácito e os outros falam muito honrosamente de sua vida e de sua morte e o representam como um personagem de grande virtude, que desempenhou seu papel de maneira perfeita. Ao julgamento de Díon, censurarei apenas uma coisa, mas característica: esse historiador tem tão falha percepção dos negócios romanos, que ousa tomar o partido de César contra Pompeu, e o de Antônio contra Cícero. Passemos a Plutarco. Jean Bodin, um dos bons autores de nossa época, mais avisado e informado do que a turba de escrevinhadores do século, merece, a meu ver, ser ponderado e discutido. Acho-o um tanto ou quanto temerário no trecho de sua obra intitulada "Método para facilitar o estudo da história" e no qual acusa Plutarco não somente de ignorância (o que não o discutirei porque não me sinto competente nesse ponto), mas ainda de haver registrado fatos incríveis e do domínio da fábula. Se houvesse dito "fatos erroneamente relatados", não houvera muito que opor à acusação, pois o que não vimos há que tirar de outrem, em confiança. Por outro lado, reconheço que Plutarco nos dá por vezes versões diferentes do mesmo fato, como no caso do julgamento de Aníbal acerca dos três maiores capitães, o qual não é idêntico, na vida de Flamínio, ao que se lê na de Pirro. Mas afirmar que aceitou como verdadeiros fatos incríveis e impossíveis, é acusar de erro de julgamento o mais judicioso historiador do mundo. Eis um exemplo citado por Bodin: "assim o caso de um menino da Lacedemônia, o qual para que não percebam seu roubo, deixa que a raposa escondida por baixo de sua roupa lhe roa o ventre". Acho antes de tudo que o exemplo é mal escolhido, porquanto é mais difícil estabelecer limites às faculdades da alma do que às forças físicas, que podemos avaliar melhor fixando-lhes um grau superlativo instransponível; por isso se me coubesse escolher, procuraria exemplo de outra ordem, de fato menos crível, como o que diz respeito a Pirro, "o qual, embora ferido, assentou tão formidável golpe de espada em um de seus inimigos, inteiramente armado, que lhe partiu o corpo em duas partes". No exemplo dado por Bodin nada encontro de milagroso e não admito a desculpa invocada para defender Plutarco, o qual teria acrescentado: "ao que dizem", para que não acreditássemos de maneira absoluta, como se fora do que se nos impõe pela antiguidade e o respeito às tradições religiosas, não desejasse que déssemos fé às coisas incríveis em si. Estas palavras "ao que dizem", não se encontram no texto com esse fim; pois, logo em seguida, e ainda a propósito da coragem das crianças na Lacedemônia, cita-nos fatos mais incríveis ainda, como por exemplo o que, antes dele, Cícero já relatara dizendo que o testemunhara "in loco". Nessa época, escreve Plutarco, havia crianças que, nas provas a que se sujeitavam diante do altar de Diana, suportavam o açoite até jorrar o sangue de seus corpos, não somente sem gritar mas ainda sem gemer; e houve mesmo algumas que o suportaram até a morte. Plutarco conta-nos também, após cem outros que o verificaram, este fato análogo ocorrido em Esparta: tendo uma brasa caído dentro da manga de um menino que aspergia incenso, deixou ele que ela lhe queimasse o braço, a ponto de se sentir o cheiro da carne chamuscada. Era costume desse povo zelar acima de tudo pela sua reputação e nada lhe parecia mais vergonhoso do que ser surpreendido roubando, o que explica a tenacidade e resolução do menino que se deixou roer pela raposa. Estou tão convencido da grandeza de alma de tais homens, que o fato contado por Plutarco, longe de se me afigurar incrível, como quer Bodin, nada me parece oferecer de raro ou estranho. A história de Esparta está cheia de exemplos mais rudes ainda e que não se verificam nas das demais nações. Caberia então julgá-la fabulosa de princípio a fim. Amiano Marcelino conta, a propósito de roubo, que em seu tempo não haviam ainda descoberto tortura capaz de obrigar os egípcios a confessarem esse delito que lhes era habitual. Um camponês espanhol, torturado para que denunciasse os cúmplices do assassínio do Pretor Lúcio Pisão, berrava durante o suplício advertindo seus amigos "que não se preocupassem e assistissem tranquilamente ao espetáculo, pois não haveria dor capaz de lhe arrancar quaisquer indiscrições". No primeiro dia nada mais conseguiram dele. No dia seguinte, ao ser transportado novamente para o suplício, desvencilhou-se dos guardas e precipitou-se com a cabeça contra um muro, matando-se. Epícaris esgotara a crueldade dos carrascos de Nero; suportara, durante o dia inteiro, toda espécie de torturas, sem nada revelar da conjura de que participara. Levada novamente ao suplício no dia seguinte, membros partidos, amarrou um cordão do vestido a um braço da cadeira de modo a formar um laço; e passando a cabeça por ele largou o corpo, enforcando-se. Assim morrendo corajosamente, depois de ter suportado com paciência invencível os tormentos da véspera, como que desafiava e escarnecia o tirano e animava os que se dispusessem a imitá-la nas conspirações. Se indagássemos de nossos soldados o que viram como testemunhas e atores em nossas guerras civis, inúmeros feitos de coragem, resistência e tenacidade nos seriam contados, fatos ocorridos com essa multidão amolecida entretanto, mais efeminada do que a classe mais baixa do Egito, e que seriam comparáveis aos que nos oferece a história de Esparta. Sei de camponeses que deixaram que lhes queimassem a planta dos pés, lhes esmagassem as pontas dos dedos sob o cão da pistola, ou lhes amarrassem a fronte com uma corda até lhes saltarem os olhos da cara, sem sequer falar de seu resgate. Vi um deixado por morto em um fosso; estava inteiramente nu, o pescoço inchado e ferido pela corda com a qual o haviam amarrado ao rabo de um cavalo; o corpo sangrava com cem golpes de punhal, dados não para o matar e sim para o amedrontar. Tudo suportara até desfalecer, resolvido, como me disse, antes a sofrer mil mortes do que a falar. Era, no entanto, um dos mais ricos agricultores da região. E quantos não temos visto que se deixaram torturar e assar por opiniões alheias, que nem sequer Conheciam bem! Vi centenas de mulheres (dizem que as da Gasconha são particularmente cabeçudas) capazes de suportar o ferro em brasa sem desmentir ou renegar uma ideia qualquer desposada em momento de raiva. Exasperam-se, antes, sob os golpes; e quem inventou a história daquela cujo marido a ameaçava e lhe batia por não parar de chamar-lhe "piolhento" e que, jogada à água, ainda fazia com os dedos o gesto de esmagar um piolho, imaginou em verdade um conto muito característico dessa obstinação de que a mulher nos dá diariamente provas; e a obstinação é irmã da tenacidade e da resolução. Como disse anteriormente, cumpre não julgar o que é e o que não é segundo a nossa concepção de verossimilhança. E grande erro (e não o digo por causa de Bodin) em que caem muitos e muitos homens, não querer acreditar que outros possam saber ou desejar o que não se sabe nem se ambiciona. Dir-se-ia que cada qual é um modelo, por excelência, da natureza humana, de acordo com o qual os demais devem conduzir-se; e que tudo o que não se adapta a esse modelo é falso ou errado. Se apresentam a alguém algo que outro fez ou imaginou, para o julgar, toma-se a si próprio como referência; o que nele se verifica é que deve servir de regra. Que perigosa e insuportável tolice! Quanto a mim, considero certos homens, principalmente da antiguidade, bem superiores; e embora me reconheça incapaz de seguir-lhes as pegadas, ainda que de longe, não os perco de vista. Percebo as molas que os erguem acima do vulgo, conquanto não as encontre em mim. Assim me conduzo igualmente em relação aos espíritos inferiores que não me espantam e cujas ideias não me recuso de caso pensado a considerar. Compreendo muito bem como os primeiros se houveram para emergir, e admiro-lhes a grandeza; acho belos seus impulsos e os aplaudo; se minhas forças não me permitem imitá-los, minha inteligência, ao menos, os aprecia. O outro exemplo que nos dá Bodin em apoio de sua asserção de que Plutarco avança fatos incríveis, do domínio da fábula, é o de Agesilau ter sido condenado a. uma multa pelos éforos por ter conquistado o coração e a boa vontade de seus concidadãos, os quais já não juravam senão por ele. Não vejo o erro que se lhe possa criticar neste ponto. Antes de mais nada, Plutarco devia conhecer melhor os fatos do que nós; ademais era inédito na Grécia exilarem-se homens tão somente por serem demasiado queridos de seus contemporâneos. Comprovam-no o ostracismo e o petalismo. Esse mesmo "Método para facilitar o estudo da história" comporta outra acusação chocante contra Plutarco. Este historiador que, em seus paralelos, tão bem comparou os romanos aos romanos e os gregos entre si, não o teria feito com igual imparcialidade ao paragonar gregos com romanos. "Por exemplo", diz Bodin, "nos paralelos entre Demóstenes e Cícero, Catão e Aristides, Sila e Lisandro, Marcelo e Pelópidas, Pompeu e Agesilau, favorecia os gregos com comparações inadequadas." Isso é atacar Plutarco no que tem de melhor e de mais admirável. Pois nessas comparações (que constituem a parte mais apreciável de sua obra e à qual, a meu ver, mais particularmente se dedicou) a fidelidade e a sinceridade dos juízos igualam sua profundidade e valor: é um filósofo que nos ensina a virtude. Vejamos se é possível absolvê-lo quanto à falsidade e à prevaricação. Penso que o que provocou apreciação tão desfavorável está na grande e brilhante auréola que orna os nomes romanos de nossa familiaridade. Não me parece que Demóstenes possa ombrear na glória com um cônsul ou pretor da grande República, mas quem observa com imparcialidade o que são realmente tais homens, o que quis fazer Plutarco, que compara seus costumes, seus caracteres, suas capacidades, mais do que o seu destino, pensará, contra Bodin, que Cícero e Catão, o Velho, estão longe de igualar àqueles que lhes são comparados. Nosso crítico fora mais feliz se desse como exemplo o paralelo entre Catão, o Jovem, e Fócion. Teria divisado uma desigualdade mais acentuada a favor dos romanos. Quanto a Marcelo, Sila, Pompeu, os êxitos que obtiveram na guerra são sem dúvida mais importantes que os dos gregos que Plutarco lhes opõe. Mas as mais belas e virtuosas ações, na guerra como alhures, nem sempre são as mais famosas. Deparo amiúde com capitães cujos nomes se eclipsaram ante o esplendor de outros que não os valiam. Assim Labieno, Ventídio, Telesino etc. A esse respeito, se devesse reclamar a favor dos gregos poderia dizer que Camilo está longe de ser comparável a Temístoc1es, os Gracos a Ágis e Cleômenes, Numa a Licurgo. Mas é loucura tentar julgar em conjunto tantos casos específicos e suscetíveis de se encararem separadamente. Quando Plutarco compara esses personagens ilustres, não quer demonstrar que são iguais. E ninguém melhor do que ele é capaz de ressaltar, com precisão e imparcialidade, as diferenças. Se compara as vitórias e proezas realizadas no campo de batalha, o poder dos exércitos de Pompeu, e seus triunfos com os de Agesilau, acrescenta: "não creio que o próprio Xenofonte ousasse compará-los, embora nada se saiba acerca do que lhe apeteceu escrever de Agesilau". Quando estabelece um paralelo entre Lisandro e Sila, diz: "não existe ponto de comparação, nem quanto ao número de vitórias, nem aos riscos que correram nos combates travados, pois Lisandro só ganhou duas batalhas etc." Plutarco em nada diminuiu os romanos ao compará-los com os gregos; não os depreciou, apesar da disparidade existente, porque não os julgou em bloco, nem revelou qualquer preferência. Compara, uns após outros, certos episódios, certas particularidades de suas vidas respectivas e os julga em separado. Por isso, para argui-lo de parcialidade fora preciso analisar o julgamento em cada caso particular ou provar que errou em paragonar tal grego com tal romano, porque muitos outros, com maior número de pontos comuns, mereceriam de preferência a comparação. CAPÍTULO XXXIII HISTÓRIA DE ESPURINA Não pensa a filosofia ter mal empregado seus meios de ação, quando consegue tornar a razão senhora da alma e dar-lhe autoridade suficiente para que contenha os apetites. Os que não acham entre estes nenhum mais violento que o do sexo, observam que o amor invade a alma e o corpo, possui o homem por inteiro, abala-lhe a saúde a ponto, por vezes, de exigir a intervenção de um médico para obter satisfação. Mas pode-se dizer que, com a participação do corpo, o enfraquece porquanto se sujeita à saciedade e é suscetível de se acalmar com o remédio material. Alguns, desejosos de libertar sua alma desses contínuos alarmas, recorrem à amputação dos órgãos que se excitam e se impressionam. Outros, atenuam-lhes o ardor e a força com aplicações frequentes de coisas frias como, por exemplo, uma mistura de gelo com vinagre. Não tinham outro objetivo os cilícios de nossos antepassados; eram confeccionados com pelo de cavalo, sob forma de camisas ou cintas. Contava-me um príncipe, não faz muito, que em sua mocidade, certo dia de festa na Corte de Francisco I, e estando todos vestidos a rigor, concebera a ideia fantasista de vestir o cilício de seu pai, que ainda conservava. Mas não foi capaz de usá-lo até o fim da noite e ficou doente durante muito tempo. Acreditava não houvesse ardor, por grande que fosse, que um tal instrumento não domasse. Não penso entretanto que tenha sido então vítima de um apetite muito agudo, pois a experiência mostra que a emoção persiste não raro, por miseráveis e grosseiras que sejam as roupas; e o cilício nem sempre transforma em pobres diabos os que o usam. Xenócrates empregou processo mais enérgico. Seus discípulos, a fim de provar sua continência, introduziram em seu leito a bela e famosa cortesã Laís. Esta aí se deitou inteiramente nua, na sua beleza atraente. Sentindo o filósofo que seu corpo, até então insensível às tentações, começava a rebelar-se a despeito dos princípios e regras que adotara, mandou queimar os órgãos solicitados! Quando as paixões se assenhoreiam exclusivamente da alma, como a ambição, a avareza e outras, criam bem maiores dificuldades ainda para a razão, a qual nenhuma ajuda pode esperar senão de si mesma. Por outro lado, jamais se acalmam, ou se saciam, antes se avivam e se ampliam, com as satisfações alcançadas. O exemplo de Júlio César bastaria para nos mostrar quanto diferem tais apetites, pois nunca homem algum foi mais dado aos prazeres do amor. Prova-o o cuidado minucioso que tinha com sua pessoa, a ponto de apelar para os meios mais lascivos em voga na época: depilava o corpo e usava perfumes especiais extremamente raros. Segundo Suetônio, possuía um belo físico, de tez alva, grande estatura e boas proporções; tinha o rosto cheio, os olhos escuros e vivos. Em muitos pontos, as estátuas dele encontradiças em Roma afastam-se desse retrato. Além de suas mulheres legítimas, que trocou quatro vezes, e sem contar as relações amorosas que teve, na mocidade, com Nicomedes, rei da Bitínia, possuiu virgem a Cleópatra, rainha do Egito, da qual teve o pequeno Cesário. E amou igualmente Êunoe, rainha da Mauritânia; Postúmia, mulher de Sérvio Sulpício; Lólia, esposa de Gabínio; Tertula, mulher de Crasso e até Mútia, esposa do grande Pompeu, o que levou o marido a repudiá-Ia, segundo os historiadores. Plutarco declara ignorar o fato, mas os Cúrios, pai e filho, censuraram a Pompeu, mais tarde, ao casar-se com a filha de César, o fato de se tornar genro de um homem que lhe seduzira a esposa e que ele próprio qualificava de Egisto. Além das que enumerei, César teve ainda como amante a Servília, irmã de Catão e mãe de Marco Bruto, e todos acreditavam que a grande afeição que por este demonstrava viesse de ter Bruto nascido em uma época em que fora possível a César pensar que se tratasse de seu filho. Tenho, portanto, razão em julga-lo com tendência para esse gênero de desregramento. No entanto, quando a ambição, que nele era grande, se opunha ao amor, não hesitava em afastar este. A propósito, vem-me à memória o caso de Maomé, que tornou Constantinopla e pôs fim à dominação grega. Não conheço ninguém em quem tais paixões se equilibrassem melhor. Era tão grande no amor como na guerra; mas sempre que, em sua vida, se verificou um choque entre o amor e a guerra, o entusiasmo pela guerra levou a melhor. E assim ocorreu até que, avançado em anos e incapaz de suportar as fadigas dos campos de batalha, a paixão pela mulher voltou a domina-lo e teve-o sob seu império enquanto o permitiu a natureza. O que se conta do Rei Ladislau, de Nápoles, é exemplo do contrário. Era bom capitão, corajoso e ambicioso, mas sua ambição tinha principalmente por objeto a satisfação de seus apetites voluptuosos e a posse de alguma beleza rara. Sua morte foi igual à sua vida. Mediante manobra bem conduzida, cercara tão bem a cidade de Florença que os habitantes tiveram de negociar. Ele propôs retirar-se e abandonar assim o fruto da vitória, sob a condição de lhe entregarem uma jovem que se distinguia pela sua maravilhosa beleza. Tiveram que concordar e, a fim de preservar a cidade da destruição, aceitar a injúria tão somente prejudicial a interesses particulares. Essa mulher era filha de um médico famoso na época; o qual, ante tão penosa necessidade, tomou enérgica resolução. Enquanto adornavam a filha, cobrindo-a de rendas e joias para torná-la mais agradável ainda a tão estranho amante, o pai, juntando-se aos outros, fazia-lhe presente de um lenço maravilhoso, exalando delicioso perfume, para que o usasse para enxugar as partes genitais nos seus primeiros contatos, o que não esquecem de fazer as mulheres. O lenço era envenenado e o médico apelara para toda a sua ciência. Em contato com a carne excitada e quente, entraria pelos poros dilatados. Com efeito, penetrou-os o veneno tão rapidamente que o sangue dos amantes gelou de imediato, expirando ambos abraçados. Volto a César. Seus prazeres não lhe roubaram jamais um minuto à ambição. Esta dominou nele sobre todas as demais paixões e exerceu sobre sua alma tão completa autoridade que o levou onde quis. Em verdade, quando penso na superioridade desse homem e nos seus maravilhosos dotes, sinto-me despeitado. Seus conhecimentos eram de tal ordem que não há, por assim dizer, ciência acerca da qual não tenha escrito; como orador, no entender de muitos, superava Cícero, e creio que ele também assim pensava, pois seus discursos conhecidos pelo título de "anticatãos", foram escritos para contrabalançar o efeito produzido pela magnificência do estilo de Cícero na sua apologia de Catão. Nem houve espírito mais vigilante do que o seu, mais dado ao trabalho e realçado ainda por qualidades incontestáveis e raramente encontráveis em tão alto grau de naturalidade. Era notavelmente sóbrio e tão pouco difícil em matéria de alimentação, que, certa vez, como diz Opio, comeu um molho feito com óleo para remédio em vez de azeite comum, a fim de não confundir o anfitrião; de outra feita mandou açoitar seu padeiro porque lhe servira um pão diferente do que servira aos outros. Catão dizia a seu respeito que era o primeiro homem sóbrio a arruinar seu país. Esse mesmo Catão tratou-o um dia de "bêbedo", mas em circunstâncias especiais. Estavam ambos no Senado; falava-se na conspiração de Catilina à qual pensavam se filiasse César, quando, de fora, lhe entregaram um bilhete. Catão, imaginando que se tratasse de algum aviso dos conjurados, desafiou-o a que lho entregasse, o que fez César para evitar maiores suspeitas. Aconteceu que era um bilhete de amor de Servília, irmã de Catão. Este o leu e devolveu, dizendo: "ei-lo, bêbedo!" A meu ver essa apóstrofe implicava em sinal de desprezo e não em abuso ao vício de beber. Verificou-se o que nos ocorre muitas vezes quando, invectivando os que nos irritam, nos valemos das primeiras injúrias que nos vêm à boca embora não se apliquem às pessoas em apreço. E isso, no caso, se explica tanto melhor quanto o vício da bebida vai de par, não raro, com aquele em que era surpreendido, pois Vênus e Baco andam juntos de bom grado. Comigo dá-se o contrário, e Vênus mostra-se bem mais esperta quando a sobriedade a acompanha. Os exemplos de sua clemência para com os que o ofenderam são numerosos; refiro-me aos atos verificados fora do período das guerras civis, pois então sua generosidade, como ele próprio dá a entender em seus escritos, visava conquistar os inimigos e induzi-los a não temerem vitórias de César. Se destes atos não podemos dizer que bastariam para provar a doçura de um temperamento, nem por isso comprovam menos a maravilhosa confiança que tinha em si e a sua grande coragem. Ocorreu-lhe muitas vezes devolver aos inimigos, após a vitória, exércitos inteiros, sem sequer exigir que jurassem não se voltar contra ele. Fez várias vezes prisioneiros certos capitães de Pompeu e sempre os libertou. Como Pompeu considerasse inimigos todos os que não o acompanhavam, César declarou amigos os que se mantivessem neutros e não pegassem em armas contra ele. Aos próprios capitães que o abandonavam para aderir ao adversário, enviava as armas de presente, com seus cavalos e bagagem. Deixava às cidades capturadas a liberdade de escolher o partido que quisessem, confiando apenas, para contê-las, na lembrança de sua doçura e clemência. No dia da batalha de Farsália ordenou que não erguessem a mão contra os cidadãos romanos. Eis, na minha opinião, procedimento bem perigoso e não é de espantar que em nossas guerras civis os que como ele se voltam contra a antiga ordem de coisas, não o imitem. São maneiras excepcionais que só a sorte de César e seu extraordinário gênio poderiam adotar. Quando penso na grandeza incomparável dessa alma, desculpo a vitória por lhe ter sido sempre fiel mesmo em benefício de tão iníqua e injusta causa. Temos vários exemplos de sua clemência, que se verificaram no tempo em que teve o poder e constituem excelente testemunho de Sua natureza, pois, senhor então de todas as coisas, não precisava mais fingir. Caio Mênio escrevera contra ele panfletos ferozes aos quais ele respondera com veemência. Isso não o impediu de ajuda-lo a obter o consulado. Caio Calvo, que lhe assestara vários epigramas injuriosos, tendo solicitado de um amigo que o reconciliasse com César, este condescendeu em lhe escrever em primeiro lugar. E nosso bom Catulo, que tanto o insultara sob o pseudônimo de Mamurra! César convidou-o para jantar no mesmo dia em que se desculpou. Avisado de que certas pessoas falavam mal dele, limitou-se a declarar em público que o sabia. Se não odiava seus inimigos, temia-os ainda menos. Descobertos alguns conciliábulos e conjuras, contentou-se com os tornar públicos, não perseguindo os culpados. Vejamos um exemplo das atenções que tinha para com os amigos. A Caio Ópio, que com ele viajava e se sentira indisposto, cedeu o único abrigo existente e dormiu ao ar livre. Quanto à sua justiça, pode-se julgá-la pelo fato seguinte: embora nenhuma queixa tivesse sido apresentada, mandou executar um escravo que muito apreciava, por ter dormido com a mulher de um cidadão romano. Nenhum homem se conduziu com maior moderação na vitória e maior resolução na desgraça. Pois todas essas belas qualidades foram prejudicadas pela desmedida ambição que em verdade dirigiu sua vida. De um homem liberal fez um ladrão do dinheiro público a fim de poder desmandar-se em prodigalidades. Ela levou-o a pronunciar estas horríveis palavras, tão contrárias a todo princípio moral: os homens piores do mundo, os mais viciados, se o houvessem ajudado a alcançar as honras supremas ele os teria ajudado e sustentado como aos melhores entre os homens de bem. Ela o embriagou de tão grande vaidade que ele ousou jactar-se diante de seus concidadãos de "haver reduzido essa grande República romana a um simples nome, sem forma nem corpo"; e chegou a dizer que a partir de então "as respostas que desse seriam leis". Teve a audácia de receber sentado o Senado; permitiu que o adorassem e lhe rendessem culto divino. Em suma, esse único vício perverteu a natureza mais rica que se viu, e fez que sua memória se tornasse odiosa à gente honesta, porquanto procurou a glória na escravização do país e na subversão do governo mais florescente e poderoso que o mundo jamais verá. Pode-se, ao contrário do que se depara em César, encontrar mais de um exemplo de grandes personagens esquecidos da condução de seus negócios em consequência de seu apego ao prazer amoroso, como foi o caso de Marco Antônio. Mas quando a ambição e o amor se chocam com igual violência, não tenho dúvida em apontar o vencedor na ambição. Voltando ao nosso assunto, direi que já é muito refrear os nossos apetites, apoiando-nos na razão, ou pela violência obrigar os nossos órgãos à serenidade. Mas nos açoitarmos em benefício de outrem; abafar a doce emoção que nos causa ser agradáveis aos outros e por todos solicitados; odiar nossa beleza porque nos dão tal satisfação, é coisa de que só encontrei um exemplo: o de Espurina, jovem toscano "que semelhava um diamante engastado no ouro e enfeitando um colar ou coroa, ou um marfim enquadrado de buxo ou terebinto para que melhor ressalte sua brancura". Era de tão rara beleza que os olhos mais castos não o podiam contemplar sem se ofuscar. Não contente com não condescender em extinguir a febre que provocava, enfureceu-se contra si mesmo e contra os ricos presentes recebidos da natureza, como se tivesse o direito de lhes censurar as faltas alheias, e mediante incisões e golpes por ele próprio dados destruiu com cicatrizes a harmonia do rosto. Admiro esses atos mas não os aprovo. Tais excessos não se acomodam a meus princípios. A intenção foi boa e proveio de alma honesta, mas a meu ver o gesto foi impensado, pois a feiura assim alcançada podia provocar outros sentimentos pecaminosos, como o despeito e o ódio, a inveja de tão rara virtude ou a calúnia que apontasse a causa da ocorrência em desabusada ambição. Haverá alguma coisa que não sirva de pretexto ao vício? Fora mais judicioso se, com tais dons outorgados por Deus, se tornasse um modelo de virtude, um exemplo para a posteridade. Os que fogem aos deveres sociais, a essas obrigações de toda sorte, não raro espinhosas, que pesam sobre o homem de certa posição, evitam, a meu ver, muitos aborrecimentos, por grandes que sejam os inconvenientes que tal atitude pode acarretar. É, em suma, morrer para escapar de viver como se deve. Podem ter outros méritos, mas o de enfrentar as dificuldades não lhes cabe. Nem o de suportar com firmeza os embates do mundo, respondendo satisfatoriamente e lealmente ao que deles exigem sua condição e o cargo que ocupam. É talvez mais fácil abster-se de maneira absoluta de quaisquer contatos com o sexo feminino do que se conduzir sempre de modo perfeito com sua mulher. E é mais raro perder-se alguém em estado de pobreza do que no seio de uma abundância que cumpre dispensar com sabedoria. O uso comandado pela razão é mais penoso do que a abstinência. A moderação é mais árdua do que o sofrimento. Há mil maneiras de viver à moda de Cipião, o Jovem; e uma só a exemplo de Diógenes. Mas se esta supera em inocência a vida comum, sobre-excedem-na em utilidade e energia as que atingem a perfeição e a realização. CAPÍTULO XXXIV OBSERVAÇÕES ACERCA DOS MEIOS QUE JÚLIO CÉSAR PUNHA EM PRÁTICA NA GUERRA Dizem, de vários grandes guerreiros, que tiveram preferência acentuada por certos autores. Alexandre, o Grande, apreciava Homero; Cipião, o Africano, gostava em particular de Xenofonte; Marco Bruto, de Políbio; Carlos V, de Commines; em nossa época Machiavelli é apreciado alhures; mas o falecido Marechal Strozzi, que tinha predileção por César, fizera sem dúvida a melhor escolha. Os comentários de César deveriam realmente constituir o breviário de todos os homens de guerra, pois ele próprio é o modelo soberano da arte militar. E Deus sabe com que graça e beleza adornou ainda essa matéria já tão rica em si. Seu estilo é tão puro e delicado, tão perfeito que, a meu ver, nenhum há que se lhe compare. Quero registrar aqui alguns feitos verificados durante as guerras por ele empreendidas e que me vêm à memória. Seu exército estava algo receoso com os boatos que corriam acerca da superioridade numérica das forças do Rei Juba. Em vez de combater a ideia, esforçando-se por diminuir os meios do inimigo aos olhos de seus soldados, reuniu-os e agiu de modo inteiramente diverso, dizendo-lhes que não se preocupassem mais com a importância das forças adversárias, porquanto já se informara com precisão a respeito. Enumerou-as então, exagerando-as consideravelmente. Seguiu nesse ponto o conselho de Ciro, em Xenofonte, pois o erro, se o inimigo se revela mais fraco do que se espera, não acarreta consequências sérias, ao passo que o contrário é grave. Acostumara seus homens a obedecer, sem procurarem controlar ou discutir as ordens do chefe, as quais só lhes eram comunicadas no momento da execução; e se porventura percebiam algo comprazia-se em desiludi-los, modificando na hora os seus projetos. Muitas vezes com tal fim, depois de determinar a etapa, prosseguia na marcha, principalmente quando o tempo era chuvoso. Tendo-lhes os suíços, no início da guerra na Gália, solicitado permissão para atravessar um território sob jurisdição romana, e estando ele decidido a opor-se pela força a essa pretensão, recebeu muito bem os mensageiros e adiou a resposta por alguns dias, a fim de reunir suas tropas. Esses pobres homens ignoravam a que ponto ele sabia aproveitar o tempo, pois costumava repetir que o talento essencial de um chefe consistia em tirar partido com eficiência das oportunidades. A que desenvolveu em seus feitos é realmente incrível, inimaginável. Não demonstrava grande escrúpulo em iludir o inimigo sob a proteção de um tratado e não exigia de seus soldados outra virtude que não a da valentia, nem punha outros vícios, que não os da rebeldia ou indisciplina. Amiúde, após a vitória, dava-lhes toda liberdade, dispensando-os por algum tempo do serviço militar. Acrescente-se que, embora perfumados e requintados, não deixavam de se lançar impetuosamente à luta. Em verdade, gostava de vê-los com armas de alto preço e lhes fornecia equipamento bordado de ouro e prata, a fim de que, para os conservar e defender, se mostrassem mais enérgicos. Tratava-os de "companheiros", como nós, o que foi abolido por Augusto, o qual considerava que César o fizera em vista das exigências do momento, para agradar os que em suma o acompanhavam voluntariamente. (Na travessia do Reno, César era general; aqui ele é meu companheiro. O crime nivela os cúmplices.) Mas esse tratamento não convinha mais à dignidade de um imperador ou de um general. E voltou a chama-los "soldados". A tal cortesia, juntava César grande severidade quando precisava punir. Tendo-se revoltado a nona Legião perto de Placência, determinou César a sua dissolução e a degradou como ignominiosa, embora Pompeu ainda se encontrasse em armas, só a reconstituindo após reiteradas súplicas. Serenava os ânimos com sua autoridade e temeridade mais do que com espírito de conciliação. Quando se refere à travessia do Reno, para entrar na Gennânia, diz que achando indigno do povo romano obrigar o exército a utilizar barcaças, mandou construir uma ponte a fim de que o atravessasse a pé. Foi então que construiu essa ponte admirável a cujo respeito nos fornece tantos pormenores; pois em tudo o que fez, agrada-lhe sobremaneira informar-nos acerca da força criadora de sua imaginação em obras desse gênero. Verifiquei também que dava grande importância às exortações que dirigia aos soldados no momento do combate, porquanto todas as vezes que explica ter sido surpreendido ou precisado apressar-se, afirma que não pôde sequer arengar suas tropas. Antes da grande batalha que travou com os habitantes de Toumai, escreve: "César, depois de ter dado as últimas ordens, correu a um ponto qualquer a fim de exortar seus homens. Encontrando a décima Legião, pôde apenas dizer-lhe que se lembrasse de sua habitual valentia, que não se atemorizasse e resistisse resolutamente aos esforços do inimigo; mas já este chegara ao alcance dos dardos, e César deu o sinal do ataque e correu para outro lado, continuando a animar os soldados. Encontrou-os em plena refrega". Assim é que fala disso nesse trecho de sua obra. E é evidente que seu talento de orador lhe prestou bons serviços em diferentes circunstâncias. Mesmo em sua época essa eloquência militar era tão apreciada que muitos registraram seus discursos, os quais assim se reuniram em volumes e lhe sobreviveram. Sua linguagem possuía uma elegância particular, tal originalidade que as pessoas de sua intimidade, como Augusto, ao ouvir repetir o que recolhiam, reconheciam sem dificuldade as frases e mesmo as palavras que não eram dele. Da primeira vez que saiu de Roma no desempenho de uma função pública alcançou o Ródano em oito dias; viajava com um ou dois secretários em seu carro, os quais escreviam sem cessar o que lhes ditava. Um servidor seguia atrás, com as armas. Mesmo atravessando simplesmente o país, mal se poderia fazê-lo Com a rapidez com que o fez quando, abandonando a Gália e seguindo a retirada de Pompeu para Bríndisi, em dezoito dias dominou a Itália. Voltando então de Bríndisi a Roma, seguiu até os confins da Espanha onde o aguardavam dificuldades na guerra contra Afrânio e Petreio. Sitiou então Marselha que resistiu bastante e correu à Macedônia, batendo o exército romano em Farsália. Em perseguição a Pompeu alcança o Egito, que submete. Passa à Síria, combate Fámaces, volta à África e desmantela os exércitos de Cipião e Juba. Retomando à Itália, dirige-se novamente à Espanha onde vence os filhos de Pompeu: "mais rápido do que o relâmpago, mais resoluto do que o tigre ao qual arrancam os filhotes". "Como um enorme rochedo que, solapado pelas chamas e arrastado pelos ventos, se precipita do alto da montanha até ao vale, saltando no declive íngreme com estrondo e levando de arrastão árvores, rebanhos e pastores." Falando do cerco de Avarico, diz que tinha por hábito acompanhar dia e noite o trabalho dos operários. Em todas as empresas de alguma importância, procedia ele próprio a reconhecimentos prévios; e nunca deixou que seu exército passasse por caminhos que não houvesse antes observado pessoalmente. E, a acreditarmos em Suetônio, quando da invasão da Britânia foi o primeiro a medir a profundidade da água no local de desembarque. Afirmava sempre que preferia uma vitória negociada a uma vitória pela força. Na guerra contra Afrânio e Petreio, ofereceu-lhe a sorte uma oportunidade que se lhe afigurou favorável; afastou-a na esperança de que, pacientando um pouco e correndo menor risco, conseguiria melhor resultado. Nessa mesma guerra fez uma coisa espantosa: obrigou o exército inteiro a atravessar um rio a nado sem necessidade: para voar ao combate, o soldado toma o caminho que não ousara seguir na fuga. Molhado, cobre-se com as próprias armas e aquece, correndo, os membros entorpecidos pelo frio. Acho César um pouco mais prudente e circunspecto do que Alexandre. Este parece andar sempre à procura do perigo, corre-lhe ao encontro como uma impetuosa torrente que tudo leva de roldão: "Assim o Áufido que banha o reino de Dauno na Apúlia no tempo das chuvas, semelhante a um touro fogoso, rola suas águas torrenciais, ameaçando as searas com o flagelo das devastações". É verdade que Alexandre já estava em plena atividade na flor da idade, enquanto César, já maduro, apenas começava. Além disso, Alexandre era de temperamento mais sanguíneo, colérico e ardoroso, e que o vinho sobre-excitava, vício de que sempre se absteve César. Entretanto, sempre que se fez necessário, César mais do que ninguém soube expor-se. Em mais de uma circunstância em que se empregou pessoalmente a fundo, pode-se vislumbrar nele a ideia de morrer para fugir à vergonha da derrota. Na grande batalha travada perto de Toumai, vendo sua vanguarda fraquejar, precipitou-se violentamente contra o inimigo sem sequer empunhar o escudo; e isso lhe aconteceu várias vezes. Vindo a saber que parte de suas tropas se achava cercada, atravessou disfarçado as linhas inimigas a fim de reconfortar os seus com sua presença. Tendo desembarcado em Dirráquio com reduzidas forças e vendo que o resto do exército, sob o comando de Antônio, se atrasava, resolveu ir busca-lo, sob terrível tempestade, para passar despercebido, pois o inimigo dominava as águas e os portos da margem oposta; e reatravessou o braço de mar que acabara de cruzar. Entre as expedições por ele realizadas, muitas há que, pelos riscos corridos, ultrapassam qualquer aplicação judiciosa da arte militar. Assim empreendeu a conquista do Egito com efetivos muito pequenos e com estes mais tarde foi atacar as forças de Cipião e Juba, dez vezes superiores em número. Tais homens têm uma confiança como que sobrenatural em sua sorte, e eis por que, referindo-se a esses empreendimentos ousados, dizia que convinha executá-los sem indagar se deviam ou não ser tentados. Depois da batalha de Farsália, como houvesse embarcado antes seu exército, atravessou o Helesponto sem escolta. Cruzando em alto mar com L. Cássio à frente de dez barcos de guerra, não somente teve a coragem de aguardá-lo, mas ainda foi ao seu encontro intimando-o a render-se, e o conseguindo. Quando empreendeu o cerco de Alésia, defendida por quarenta mil homens, toda a Gália ergueu-se contra ele com um exército de nove mil cavaleiros e duzentos e quarenta mil infantes. Era temeridade e sinal de uma confiança vizinha da loucura não desistir então do cerco e ousar enfrentar as mais formidáveis investidas. No entanto, enfrentou-as e depois de vencer os de fora, obteve a capitulação dos assediados. O mesmo ocorreu com Luculo em Tigranocerta, na sua guerra contra Tigranes, mas em condições diferentes, dada a moleza do inimigo. A propósito do cerco de Alésia, há que observar dois fatos notáveis. Em primeiro lugar o de terem os gauleses, após discussão da tática a seguir, desmembrado de seu exército boa parte das tropas, Com medo de possível confusão. Parece na verdade estranho que pudessem temer a superioridade numérica, mas é razoável que se procure fazer com que os efetivos de um exército não sobre-excedam certos limites, em razão da dificuldade em o abastecer e impor rigorosa disciplina. Em todo caso é fácil verificar que esses exércitos de efetivos monstruosos nunca dão bons resultados. No dizer de Ciro, não é o número de homens e sim o número de combatentes em boas condições de combater que assegura a vantagem na batalha. O resto somente perturba. Foi esse o motivo principal que levou Bajazé a iniciar a luta contra Tamerlão, embora a tanto se opusessem seus capitães; esperava que a confusão se introduzisse na imensa multidão que constituía o exército inimigo. Scanderberg, perito na matéria, costumava dizer que dez a doze mil soldados de confiança deviam bastar a um general capaz para resolver honrosamente qualquer situação. O segundo ponto está em que, contrariamente ao que sucede em geral na guerra e manda a razão, Vercingetórige, comandante-chefe das Gálias em revolta, tomou a decisão de se enterrar em Alésia. Quem domina um país não deve nunca imobilizar-se assim, a menos de se achar forçado a isso por se tratar de seu último reduto. Deve conservar sua liberdade de movimentos, a fim de ter a possibilidade de atender às solicitações de sua administração. Com a idade, César tornou-se menos resoluto e mais prudente, como nos diz Ópio, que vivia na sua intimidade, pois pensava que não devia comprometer tão grande renome com uma possível derrota. É o que exprimem os italianos quando desejam censurar a um jovem essa ousadia peculiar à idade: ao temerário chamam então "bisognoso di onore", sequioso de glória. Quem não a tem ainda, procura alcançá-la a qualquer preço, enquanto mais avisado se mostra quem já a conquistou. Essa mudança observável em César podia provir de uma visão equilibrada, bem como de certa fartura, porquanto também de honrarias se saciam os homens. César não pensava como os escrupulosos romanos antigos, os quais não queriam dever suas vitórias senão à própria coragem. Contudo, mostrava-se mais consciencioso do que nós em nosso tempo e não considerava que para chegar à vitória fosse licito lançar mão de todos os meios. Na guerra contra Ariovisto estava em negociações quando se verificou um atrito entre os dois exércitos, provocado pelos cavaleiros gauleses. Disso resultou uma situação muito vantajosa para César; não quis ele entretanto aproveitá-la para que não se lhe censurasse a má-fé. Em combate vestia um costume de cores berrantes que o tornaam reconhecível de longe. Quando o inimigo se avizinhava, mostrava-se muito mais severo e exigente de disciplina com seus soldados. Outrora, quando desejavam acentuar a incapacidade de alguém, diziam os gregos que "não sabia nem ler nem nadar". César achava também que saber nadar era muito útil na guerra. Quando queria ir depressa atravessava em geral a nado os rios que encontrava em seu caminho, e, como Alexandre, gostava de viajar a pé. No Egito, obrigado de uma feita a precipitar-se dentro de uma canoa para escapar do inimigo, tanta gente fez o mesmo que houve perigo de naufrágio e ele preferiu jogar-se ao mar e nadar até a frota que se encontrava a duzentos passos, o que fez segurando suas tábuas de escrever na mão esquerda e nos dentes a sua cota, a fim de que o inimigo não se apoderasse dela como troféu. E isso em já não sendo jovem. Em nenhum chefe militar tiveram os soldados tão grande confiança. No início de suas guerras civis, seus centuriões propuseram-lhe contribuir cada um com um soldado a mais e seu infantes servi-lo gratuitamente; os mais abastados auxiliavam os mais necessitados. Com o falecido Marechal de Châtillon tive a oportunidade de observar coisa semelhante: os franceses de seu exército arcavam com o soldo dos estrangeiros arregimentados. Não se encontrariam exemplos iguais entre os que continuam a obedecer à ordem estabelecida, porque a paixão pode mais que a razão. No entanto aconteceu em Roma, durante a guerra contra Aníbal, que os guerreiros fizeram o sacrifício de seu soldo e no campo de Marcelo tachavam de mercenários os que se recusavam a fazê-lo. Tendo César fracassado em Dirráquio, seus soldados apresentaram-se espontaneamente para serem punidos, considerando-se culpados. E, no entanto, uma só coorte, ela própria dizimada, sustentara durante mais de quatro horas os ataques de quatro legiões de Pompeu. Nas trincheiras que defendia, encontraram-se cento e trinta mil flechas. Um soldado, que defendia uma das extremidades, aí se manteve sem arredar pé, com um olho vazado, o ombro e uma coxa feridos e o escudo marcado, ou amassado em duzentos e trinta lugares. Muitos de seus soldados aprisionados preferiram a morte a passar para o partido contrário. Grânio Petrônio fora feito prisioneiro na África por Cipião, o qual, depois de mandar executar todos os demais, ofereceu-lhe mercê. Assim agia porque Petrônio era homem de elevada condição social e pretor. Mas este não aceitou e respondeu que os soldados de César tinham por hábito dar e não receber mercê. E com tais palavras suicidou-se. E o número desses exemplos de fidelidade é infinito. A conduta dos defensores de Salona, cidade que apoiava César contra Pompeu, é digna de menção. Marco Otávio dirigia o cerco; os sitiados estavam reduzidos à mais extrema penúria. Para suprir a falta de combatentes em sua maioria mortos ou feridos, deu-se liberdade aos escravos. Para manobrar as máquinas de guerra cortaram os cabelos de todas as mulheres e com eles fizeram cordas. A tudo isso, juntava-se a carência de víveres. E, contudo, estavam resolvidos a não se render. Sua resistência já prolongara excessivamente o assédio e Otávio mostrava-se negligente. Sua vigilância afrouxara quando os sitiados, enviando as mulheres para os baluartes a fim de que não parecessem abandonados, tentaram uma surtida e com tanta bravura a executaram que forçaram a primeira linha dos sitiantes, e a segunda e a todas enfim; obrigando-os a abandonarem as trincheiras, perseguem-nos então impelindo-os a reembarcarem. O próprio Otávio teve de fugir até Dirráquio onde se encontrava Pompeu. Não me vem à memória nenhum outro exemplo de sitiados que levassem de roldão os sitiantes e se tornassem senhores do campo de batalha, nem de outra surtida que acarretasse uma vitória tão nítida, tão completa quanto se resultasse de batalha campal. CAPÍTULO XXXV TRÊS BOAS MULHERES As mulheres verdadeiramente boas não existem às dúzias, como todos sabem. Em particular, quando as encaramos do ponto de vista dos deveres matrimoniais, pois é o casamento um contrato tão espinhoso que dificilmente uma mulher mostra força de vontade suficiente para observa-lo. Um bom casamento reconhece-se pela doçura, pela lealdade e vantagens que se verificam na união. Em nosso tempo as mulheres guardam comumente para depois de morto as gentilezas e afeição que devem ao marido: timbram então em ostentar seus grandes sentimentos, manifestação sem dúvida tardia e inaproveitável. E com isso como que provam não os amar senão porque morreram. A uma vida cheia de tormentos, sucede uma morte toda de amor e gentilezas. Assim como os pais disfarçam sua afeição pelos filhos, elas escondem a sua pelo marido atendendo às exigências das regras do decoro. Esse mistério não me agrada. Que se descabelem e lamentem, bastar-me-á indagar da camareira: "como viviam na intimidade?" Tenho sempre presente à memória esta sarcástica observação de Tácito: "os que menos sentem são os que mais choram". Seus resmungos são odiosos aos vivos e inúteis aos mortos. De bom grado aceitaríamos que se rissem depois, conquanto houvessem sorrido durante a nossa vida. E não é de ressuscitarmos de despeito, ver aquelas que nos cuspiram no rosto, em vida, virem beijar-nos os pés, junto ao caixão? Se há alguma decência em chorar o marido, cabe às que lhe souberam sorrir. Mas que se riam agora as que gemeram antes, que se mostrem como são realmente. Por isso não nos iludamos com os olhos úmidos e a voz chorosa; atentemos para o rosto cheio sob o véu, a tez, o jeito; aí se encontra a sinceridade. Poucas há em tais circunstâncias, cuja saúde não melhore gradativamente e tal indício não mente. A atitude circunstancial visa antes o futuro que o passado; tem por fim antes comprar que pagar. Em minha infância, uma senhora honesta e bela, viúva de um príncipe, e que ainda vive, usava não sei que adorno que não se vê nas viúvas. A quem lho censurava, respondia: "é porque não viso novas conquistas e não pretendo casar-me de novo". Para não sair de meus hábitos escolhi aqui três exemplos de mulheres que choraram também seus maridos mortos, mas cujas atitudes pouco vulgares implicam em uma revelação de sua vida. Plínio, o Jovem, tinha um vizinho, nas suas propriedades, gravemente ulcerado nas partes que a decência manda esconder. Vendo-o definhar, pediu-lhe a mulher que a deixasse examina-lo, pois lhe diria, mais francamente do que outrem, que esperanças podia ainda alimentar. Ele consentiu. Depois de observa-lo atentamente, ela considerou que a cura era impossível e aconselhou-o a que se matasse, porquanto iria agonizar lentamente, dolorosamente, durante muito tempo ainda. Achando-o algo hesitante em aceitar solução tão radical, disse-lhe: não penses, meu amigo, que as dores de que padeces não me doem tanto quanto a ti, e que, para escapar a elas, não queira tomar o mesmo remédio que te recomendo. Acompanhar-te-ei na cura como na doença. Nada temas, portanto, e pensa no prazer que experimentaremos nesta passagem da vida para a morte, com a qual nos libertaremos de nossos tormentos; será uma viagem feliz que faremos juntos. Isso dito e tendo animado o marido, decidiu que se precipitariam ao mar do alto de uma janela de sua residência, e para demonstrar-lhe até o fim a leal e ardente afeição que lhe dedicava, quis que ele morresse em seus braços, mas de medo que lhe faltassem forças para tanto e se relaxasse o abraço supremo na queda, mandou que a amarrassem a ele pela cintura, abandonando assim a vida em proveito da serenidade espiritual do marido. Essa mulher era de origem humilde e entre as pessoas dessa condição social, tais gestos de requintada beleza não são tão raros: "é para a gente pobre que a justiça, fugindo de nossas regiões, dirige seus passos". Os dois outros casos são de mulheres nobres e ricas, entre as quais não abundam exemplos de virtude. Árria, mulher do Cônsul Cecina Peto, era mãe de outra Árria, esposa de Tráseas Peto, cuja virtude alcançou grande fama no tempo de Nero, e por esse genro tornou-se avó de Fânia. Estas explicações são necessárias porquanto a similitude de nomes e condições sociais tem provocado confusões. Tendo sido aprisionado Cecina Peto, após a derrota de Escriboniano, cujo partido abraçara contra o Imperador Cláudio, Árria, sua mulher, pediu aos que o conduziam que a deixassem embarcar com ele, pois seria menos incômoda e custaria menos do que a criadagem que deveriam contratar para o serviço do marido. E comprometeu-se a tratar sozinha do quarto dele, da comida e do resto. Recusaram. Arria alugou então um barco de pescador e assim o acompanhou desde a Esclavônia. Estavam em Roma, quando um dia, na presença do imperador, Júnia, viúva de Escriboniano, invocando o comum infortúnio, interpelou-a familiarmente. Árria atalhou com violência: "queres que te fale, que te ouça, tu em cujos braços Escriboniano foi morto e que vives ainda!" Tais palavras, e outros indícios, levaram a pensar que, não podendo suportar a desgraça do marido, ela projetasse atentar contra a própria vida. Tráseas, seu genro, suplicou-lhe então que renunciasse à sua intenção, dizendo-lhe: se eu estivesse no caso de Cecina, gostarias que minha mulher fizesse o mesmo? - Se gostaria? Por certo gostaria, se ela tivesse vivido contigo na mesma harmonia em que vivi com meu marido. Essas respostas faziam que dobrassem a vigilância e a seguissem de perto. Um dia, em que ela acabava de dizer aos que a vigiavam: "Podeis tornar minha morte mais dolorosa, mas, impedi-Ia, não", jogou-se com todas as forças de sua cadeira e foi dar com a cabeça na parede, caindo desfalecida e gravemente ferida: "Bem vos dizia" afirmou ao voltar a si, "que se me impedirdes de recorrer a um meio fácil, outro mais difícil encontrarei para morrer". E eis como acabou essa mulher tão admiravelmente corajosa: Peto, seu marido, não tendo ele próprio a coragem necessária para decidir-se pela morte a que a crueldade do imperador o impelia, Árria, a fim de catequizá-lo e levá-lo à resolução imperiosa, tomou do punhal que ele trazia à cinta e, exibindo-o, exclamou à maneira de exortação final: Faze assim, Peto, e no mesmo instante afundou a arma no seio. Em seguida, arrancou-a da ferida e exalou o último suspiro pronunciando estas generosas palavras que se tornaram imortais: "Paeto, non dolet" (Peto, não dói). Quando a casta Árria apresentou ao marido a lâmina que arrancara do seio, disse: "Acredita-me, Peto, este golpe não me doeu, o que me dói é o que te vais dar por tua vez". As palavras que ela realmente pronunciou são bem mais expressivas e sublimes do que a paráfrase do poeta. Não a preocupavam em verdade a sua morte e a do marido, que desejava, e a arquitetara, o que a inquietava era o temor que ele pudesse ter. Peto matou-se com o mesmo punhal, mas a meu ver é vergonhoso que tivesse tido necessidade de tal exemplo. Pompéia Paulina, jovem e mui nobre dama romana, casara com Sêneca então já em idade avançada. Nero, o "belo" discípulo desse filósofo, enviara-lhe ordem de se matar, o que assim se fazia: quando o imperador condenava um personagem importante, ordenava-lhe por intermédio de um oficial que escolhesse o gênero de morte e se matasse dentro de um prazo determinado, de acordo com o grau de ressentimento, dando-lhe tempo para tratar de seus negócios ou ao contrário impedindo-o de fazê-lo. Se a vítima não concordava em obedecer, o oficial autorizava os carrascos que o acompanhavam a abrirem-lhe as veias dos pulsos e das pernas ou o forçava a engolir algum veneno. Mas os homens de honra não se expunham a tais medidas e recorriam a seus próprios cirurgiões. Sêneca acolheu o mensageiro calmamente. Pediu papel para escrever seu testamento, o que lhe foi recusado. Voltando-se então para seus amigos, disse-lhes: "visto que não vos posso nada deixar em sinal de gratidão pelo que vos devo, entrego-vos pelo menos o que tenho de mais belo, a imagem de minha vida que vos suplico guardardes em vossa memória, a fim de conquistardes a honra de ser verdadeiros e sinceros amigos". Ao mesmo tempo procurava aplacar-lhes o sofrimento com palavras de reconforto: "onde estão", indagava, "os belos preceitos filosóficos acumulados durante tantos anos para assegurar-nos contra os acidentes da sorte? Ignoráveis porventura a crueldade de Nero? Que podíamos esperar mais de quem matou a mãe e o irmão, senão que matasse igualmente seu preceptor?" Depois destas palavras que se endereçavam a todos, voltou-se para a esposa e abraçou-a estreitamente. Como ela se sentisse desfalecer, pediu-lhe ele que suportasse com mais resignação a desgraça, afirmando-lhe que chegara a hora de provar com atos e não com dissertações a verdade de seus estudos, os quais determinavam que se acolhesse a morte não somente sem revolta mas ainda com alegria: "não a desonres pois com tuas lágrimas, amiga, para que não imaginem que amas mais a ti mesma do que a minha reputação. Acalma tua dor, consola-te com o que sabes de mim e de meus atos; continua a praticar até o fim as honestas tarefas a que te dedicaste. Ao que Paulina, voltando a si, respondeu: "não, Sêneca, não vos recuso minha companhia nesta situação; não quero ver-vos pensar que os virtuosos exemplos de vossa vida não me tenham ensinado a bem morrer. E como poderia demonstrá-lo melhor, senão morrendo convosco? Crede-me, portanto, direi adeus à vida ao mesmo tempo que vós". Sêneca, atentando para a bela e generosa vontade de sua mulher, vontade que o libertava da apreensão de deixá-la entregue aos seus inimigos, replicou: "Aconselhava-te o que melhor convinha à tua felicidade; preferes a honra de morrer; em verdade não te posso negá-la. Demonstramos um e outro idêntica resolução, mas a tua é mais bela e gloriosa". Cortaram-lhes então, a ambos, as veias dos pulsos. Mas Sêneca, por causa da idade e das privações que se impunha, tinha a circulação mais lenta; determinou por isso que lhe cortassem também as veias da coxa. E para que seus sofrimentos não perturbassem sua mulher, bem como a fim de poupar a si mesmo o espetáculo do desfalecimento dela, disse-lhe amorosamente adeus e pediu que o transportassem para outro aposento. Entretanto, como as incisões não bastassem para matá-lo, ordenou a seu médico, Estácio Âneo, que lhe preparasse um veneno, e o tomou sem resultado, porquanto em virtude da extrema fraqueza em que se achava e do frio que já lhe paralisava os membros, não lhe sofreu os efeitos. Colocaram-no, em consequência, em uma banheira de água bem quente. Sentindo então aproximar-se o fim, quis aproveitar seus últimos momentos emitindo os mais belos comentários acerca de seu estado, e seus secretários os registraram enquanto lhe puderam ouvir a voz. Tais palavras foram rememoradas muito tempo ainda após sua morte, e é lamentável que não tenham chegado até nós. Ao perceber que ia enfim falecer, tomou um pouco de água ensanguentada e, soltando-a sobre os cabelos, disse: "dedico esta ablução a Júpiter". Nero, a par de tudo o que ocorria, minuto por minuto, e receoso de que a morte de Paulina, que era uma senhora romana de alta linhagem e contra quem, de resto, não alimentava nenhuma inimizade, se tornasse motivo de revolta contra ele, mandou apressadamente que a socorressem. Foi o que fizeram, sem que ela o percebesse, pois já se achava semimorta. Paulina continuou portanto a viver, contrariamente à sua resolução, e sua vida decorreu honradamente como fora de se prever, dada tão grande virtude. Mas seu rosto permaneceu lívido, atestando quão perto estivera da morte. Eis minhas três histórias, todas verdadeiras, e tão trágicas e interessantes quanto as que inventamos para distrair o público. E espanta-me que os que se dedicam a isso, não as colham na realidade em vez de as inventar. Pois assim teriam menos trabalho e tirariam delas maior proveito. Quem com elas quisesse escrever uma obra, teria apenas que as ligar umas às outras, como com a solda se unem dois fragmentos de metais diferentes. Poderia assim juntar ocorrências de toda sorte, dispondo-as de acordo com as exigências da obra, mais ou menos como fez Ovídio com suas "Metamorfoses". No caso de Sêneca e Paulina, é de se notar que se ela se propôs, por amor ao marido, abandonar voluntariamente a vida, também por amor a ela, ele outrora renunciara a morrer. Em minha opinião, não há equivalência entre tais propósitos, mas dadas as ideias estoicas de Sêneca creio que, prolongando a vida por causa dela, ele imaginava ter feito tanto quanto se por ela morresse. Em uma de suas cartas a Lucílio, conta-lhe Sêneca da febre que teve em Roma. Tomando seu carro dirigiu-se imediatamente para sua casa de campo, apesar da oposição da mulher. Mas ele atalhou que a febre tinha uma causa local e seguiu. Eis o que diz: deixou-me ir, demorando-se em recomendações acerca de minha saúde; ora, sabendo que ela só vive para mim, tratando-me é dela que trato. Devo à velhice ter adquirido, em certas coisas, maior firmeza e resolução; mas isso de nada me serve quando penso que, velho, cumpre poupar-me por causa de uma jovem mulher. Não conseguindo torná-la mais corajosa no amor que me dedica, sou forçado a encarar de outra maneira o que dedico a mim mesmo. É preciso fazer algumas concessões às afeições honestas, ainda que as circunstâncias nos incitem a agir de modo inverso. E preciso então que nos apeguemos à vida, apesar do sofrimento que sentimos com tal resolução; cumpre-nos segurar com os dentes a alma pronta para fugir, pois, para a gente de bem, viver é uma obrigação que lhes é imposta. Não é um prazer mas um dever. Quem não estima bastante sua mulher ou seu amigo para continuar a viver, quem se obstina em morrer, é demasiado fraco de caráter e carece de energia. É necessário que a alma o aceite, quando os nossos o desejam. É preciso por vezes atender aos amigos, e, ainda que nos convenha morrer, devemos, por eles, sustar a decisão. É prova de generosidade e coragem aceitar a existência em benefício de outrem, como o demonstraram ilustres personagens. Damos provas de bondade muito particular ao concordar com a velhice (cuja maior vantagem está na precariedade de sua duração, a qual nos autoriza a dispor da vida com mais coragem e desdém) quando sentimos que a carga que assim aceitamos é doce, agradável e útil aos com quem nos afeiçoamos. Haverá melhor recompensa para esse sacrifício do que nos sabermos queridos de nossa mulher, a ponto de por ela nos tornarmos mais queridos de nós mesmos? Assim é que Paulina me impôs a carga de seus temores e dos meus. Não me foi mais permitido considerar apenas quanto a morte correspondia a meus desejos; tive de encarar também a aflição que lhe causaria e aceitei a obrigação de viver. Consentir em viver é por vezes um ato de magnanimidade. Eis o que escreve, excelente em si e na sua aplicação. CAPÍTULO XXXVI DOS HOMENS PREEMINENTES Se me pedissem para fazer uma seleção entre os homens que admiro, possivelmente daria preferência a três, colocando-os acima dos demais. Um é Homero, mas não porque Aristóteles ou Varro tenham sido menos sábios, nem porque Virgílio não lhes seja comparável em sua arte. Quanto a este ponto, julguem-nos os que conhecem a ambos. Conhecendo somente um, parece-me que não possam as próprias musas ultrapassar o poeta latino: "canta com sua douta lira versos semelhantes aos que o próprio Apolo modula na sua". Todavia, embora assim julgando, não devo esquecer que Virgílio muito deve a Homero, que o teve por guia e mestre e que de um trecho da Ilíada tirou e desenvolveu sua divina Eneida. Mas não calculo assim, levo em conta as particularidades diversas que fazem de Homero um poeta admirável e como que acima dos humanos. E em verdade estranho que, tendo criado e imposto ao mundo tantas divindades, não tenha sido ele próprio guindado ao nível dos deuses. Era cego e indigente, e viveu em uma época em que as ciências não estavam ainda codificadas nem suas observações comprovadas. Conheceu-as entretanto tão bem, que quem depois se abalançou a organizar a administração de um país, a fazer guerras, a escrever sobre religião, filosofia, artes a ele se referiu como a uma autoridade segura, valendo-se de seus livros como de uma biblioteca imponente: "diz-nos melhor do que Crisipo e Crantor em que consiste o homem, o que cumpre fazer ou evitar". Ele é, como diz Ovídio, "a fonte inesgotável em que os poetas vão embriagar-se com as águas sagradas de Permesse". Ou ainda: "entre os companheiros das musas, Homero é rei". E outro: "abundante manancial dos versos da posteridade, rio imenso dividido em mil riachos, herança de um só que a todos beneficia”. E contrário à natureza das coisas, ter ele produzido a melhor das obras criadas pelo espírito humano, pois em geral tudo é imperfeito em sua origem e só se fortalece e amplia na medida em que se desenvolve. Com ele entretanto a poesia e as ciências surgem já perfeitas. Por isso mesmo podemos considera-lo o primeiro e o último poeta, porque, segundo o belo testemunho da antiguidade, não imitou ninguém nem ninguém o pôde imitar. Suas expressões, no dizer de Aristóteles, são as mais admiráveis na pintura do movimento e da ação, e suas palavras todas significativas. Alexandre, o Grande, tendo deparado com um cofre riquíssimo nos despojos de Dario, ordenou que o guardassem para Homero, afirmando ser este seu conselheiro, e o mais fiel, quanto à arte militar. Por essa mesma razão, por ser muito bom mestre em questões ligadas à arte militar, é o poeta dos lacedemônios, dizia Cleômenes, filho de Anaxandridas. Plutarco, igualmente, elogia-o de modo particular e bem pessoal: "o único autor no mundo que não tenha nunca aborrecido seus leitores, aos quais se mostra sempre sob um aspecto novo". Alcibíades, amante das excentricidades, tendo pedido um exemplar de Homero a alguém que se jactava de ser profissional das letras, aplicou-lhe uma bofetada porque o não possuía, pois julgava o fato tão condenável quanto o de um sacerdote não ter seu breviário. Xenófanes queixava-se de uma feita a Híeron, tirano de Siracusa, de ser tão pobre que não podia sustentar dois escravos: "Como", respondeu Híeron, "Homero que era muito mais pobre sustenta dez mil, apesar de morto". E que grande homenagem rendia Platão a Panécio chamando-o de "Homero dos filósofos"! Que outra glória pode comparar-se à sua? Nada se encontra mais comumente do que seu nome e suas obras nos discursos dos homens. Nada se conhece mais do que Tróia, Helena e suas guerras que talvez não hajam existido sequer. Nossos filhos ainda usam nomes que ele inventou há três mil anos. Quem ignora Heitor e Aquiles? E não são apenas algumas raças que fazem remontar sua origem aos personagens que criou: a maioria das nações reivindica igual honra. Maomé II, imperador dos turcos, escrevia a Pio II: "estranho que os italianos se aliem contra mim, não descendemos nós ambos dos troianos? E não temos o mesmo interesse em vingar a morte de Heitor? No entanto sustentais os gregos contra os de meu sangue". Não vos parece cheia de nobreza essa obra da imaginação que cria um palco no teatro do universo, em que desempenham há séculos os mesmos papéis todos os povos e monarcas? Sete cidades disputam a honra de o ter visto nascer: Esmirna, Rodes, Cólofon, Salamina, Quio, Argos e Atenas. O segundo desses homens superiores é Alexandre, o Grande. Considerem-se com efeito a idade em que iniciou suas conquistas; os reduzidos meios de que dispunha para levar a cabo tão gloriosa empresa; a autoridade que impôs, ainda adolescente, aos capitães que o seguiam, e eram os maiores da época; os êxitos extraordinários que a sorte lhe proporcionou e entre os quais alguns houve por assim dizer temerários: "abatia tudo o que se opunha à sua ambição e comprazia-se em abrir caminho através das ruínas". Que coisa grandiosa ter percorrido, com trinta e três anos, todo o mundo conhecido em seu tempo, e alcançado em uma metade de vida normal o máximo a que aspira um homem! E pode-se imaginar o que aconteceria se sua existência se houvesse prolongado, seu valor e sua boa sorte crescendo na mesma proporção! Já é muito ter feito de seus soldados os fundadores de tantas casas reais, e deixado, ao morrer, o mundo a quatro de seus capitães, os quais durante tanto tempo ainda conservaram seus tronos. Quantas virtudes tinha, de primeira ordem! Justiça, temperança, generosidade, fidelidade à palavra dada, amor aos seus, humanidade com os vencidos. Seus costumes parecem, em verdade, não ter sido manchados por nenhum vício, e alguns de seus atos foram extraordinários, raramente vistos. Mas é impossível conduzir massas tão grandes sem jamais se afastar das regras da justiça, e as pessoas que, como ele, têm a incumbência de distribuí-Ia, precisam ser julgadas de um modo geral, segundo a ideia mestra que preside seus atos. Contudo, a destruição de Tebas, os assassínios de Menandro e do médico de Heféstion, e o massacre de tantos prisioneiros persas, e daqueles indianos que se comprometera a poupar, e dos cosseanos que foram exterminados com os próprios filhos de peito, constituem atos impulsivos indesculpáveis. Quanto à morte de Clito, a reparação ultrapassou o erro, o que revela, com outros gestos, o fundo natural de bondade de seu caráter. E foi com tanto espírito quanta verdade que dele se disse "provirem suas qualidades da natureza e seus vícios de seus êxitos". Apreciava demasiadamente a lisonja e era um tanto exageradamente sensível à crítica. O que fez na Índia, abandonando armas e arreios para assinalar sua passagem, pode atribuir-se à idade e aos seus êxitos espantosos. Considerem-se também suas qualidades militares tão numerosas: a diligência, a previdência, a magnanimidade, a resolução, o respeito à disciplina, a paciência, a sagacidade, a sorte que fariam dele o maior guerreiro, ainda que Aníbal com sua autoridade não o houvesse proclamado; considerem-se sua beleza excepcional, suas qualidades físicas, seu porte imponente, que impunham respeito, embora seu rosto fosse jovem e corado: "semelhante ao astro brilhante da manhã, astro que Vênus prefere a todos os demais do firmamento, quando saindo do oceano se ergue majestoso e dissipa as brumas da noite"; e ainda seu saber e sua capacidade que tudo abarcavam; a duração e a grandeza de sua glória pura, sem mancha, que a inveja não atingiu; considere-se que muito tempo depois de sua morte ainda se pensava supersticiosamente que suas medalhas davam sorte; que mais reis e príncipes escreveram seus feitos que historiadores os de outro qualquer; que os maometanos, que desprezam todas as lendas, aceitam e respeitam a sua; tudo isso, em conjunto, mostra que tenho razão em preferi-lo ao próprio César, único que pudera fazer-me hesitar na escolha, pois não há negar que a personalidade deste teve maior participação nos seus feitos, ao passo que Alexandre os deve mais aos fados. Iguais em tudo, talvez ganhe César sob certos aspectos. Foram dois incêndios, duas torrentes que devastaram o mundo em lugares diversos. "Como fogos acesos em diferentes pontos de um bosque cheio de gravetos e folhas secas crepitantes; ou como torrentes impetuosas rolando com estrondo e espuma do alto da montanha, em direção ao mar, após tudo haver devastado pelo caminho." Mas, ainda que a ambição de César tenha sido mais moderada, causou tanta infelicidade a seu país e ao mundo que, bem pesados ambos, não posso deixar de manifestar-me a favor de Alexandre. O terceiro e, a meu ver, o melhor de todos, é Epaminondas. Não goza, nem de longe, a fama de muitos outros, mas isso não me parece essencial. E em matéria de coragem e resolução, não essas que a ambição excita, mas as que a sabedoria e a razão inspiram, tinha-as tanto quanto possível. E deu provas dessas virtudes, como Alexandre ou César. Embora seus feitos guerreiros não tenham sido nem tão numerosos nem tão importantes, deixam de se evidenciar, dadas as circunstâncias, igualmente sérias, testemunhando as dificuldades que lhe coube vencer, grande ousadia e talento militar. Os gregos honraram-no com o título de "maior dos gregos" e ser o maior na Grécia correspondia a ser o maior no mundo. Quanto à sua inteligência, temos ideia dela por este julgamento de um contemporâneo: "Nunca ninguém soube tanto e falou tão pouco", pois pertencia à seita de Pitágoras. Sempre que falou ninguém disse melhor; era excelente orador e tinha o dom de persuadir. No que concerne aos costumes e à consciência, ultrapassou de muito todos os que participaram da gestão dos negócios públicos, pois nesse ponto essencial, que dá a medida real de nosso valor, ele contrabalança os demais, e não fica abaixo nem mesmo de Sócrates. Nele a pureza era a qualidade precípua, soberana, constante, incorruptível, diante da qual a de Alexandre se afigura inferior, indecisa, variável e frouxa. Julgou a antiguidade que, analisando um a um os grandes capitães, encontraria em cada um deles a qualidade específica que o tornara ilustre. Em Epaminondas virtude e capacidade se igualam; em nenhuma circunstância de sua existência deixa algo a desejar; tanto na vida pública como na vida privada, na paz como na guerra; e não conheço nenhum destino humano que eu mais honre e aprecie, qualquer que seja o aspecto por que o encare. Considero, é certo, demasiado escrupulosa sua obstinação em permanecer pobre, e seus melhores amigos também o consideravam. Esse sentimento, tão elevado e digno de admiração, é o único ponto que, pelo exagero, se presta à crítica. E não gostaria de imitá-lo nisso. Cipião Emiliano, se tivesse tido um fim tão glorioso quanto o dele, e conhecimento tão aprofundado das ciências, seria o único digno de comparação com Epaminondas. Quanto lamento que o paralelo estabelecido por Plutarco entre essas vidas, exatamente as mais nobres entre as que escreveu, do maior dos gregos e do maior dos romanos, se tenha perdido. Que magnífico tema, e que esplêndido artífice! Se buscarmos, porém, um homem que não seja um santo, mas tão só alguém de costumes honestos e grandeza moderada, o de vida mais bela a meu ver, e mais rica em aspectos notáveis, é Alcibíades. Para comprovar a excelência de Epaminondas, indicarei aqui mais algumas de suas maneiras de ver. A maior satisfação de sua vida consistiu, segundo diz ele próprio, no prazer que tiveram seus progenitores quando de sua vitória em Leuctras. Orgulha-se mais do contentamento dos pais que do seu próprio que fora muito justificável, em feito tão glorioso! "Não julgava lícito, ainda que com o objetivo de libertar seu país, mandar matar alguém sem previamente julgá-lo." Eis por que mostrou tão pouco interesse em se juntar a seu amigo Pelópidas na conjuração urdida para a libertação de Tebas. Considerava também que, numa batalha, se devia evitar de encontrar algum amigo entre os adversários, para não ser forçado a poupar-lhe a vida. Sua humanidade para com os próprios inimigos tornou-o suspeito aos beócios, quando, tendo, por milagre, obrigado os lacedemônios a franquearem os desfiladeiros próximos de Corinto, se contentou com passar, sem os perseguir até a exterminação. Por isso foi destituído do cargo de capitão-general, revogação que o honra grandemente dada a razão invocada, e em verdade os que a haviam decretado viram-se constrangidos a reconduzi-lo ao cargo, reconhecendo que dele dependiam sua salvação e sua glória, pois a vitória acompanhava-lhe os passos. E assim como nascera com ele, com ele se extinguiu a prosperidade de sua pátria. CAPÍTULO XXXVII DA SEMELHANÇA DOS FILHOS COM OS PAIS Só ponho a mão no feixe de peças diversas deste livro, quando não tenho nada mais a fazer; e nunca fora de casa. Daí, ter-se ele completado através de repetidas soluções de continuidade, pois as circunstâncias me têm obrigado a ausências consecutivas, não raro de meses. Aliás, nunca substituo novas ideias pelas primeiras: pode ocorrer-me que mude uma palavra, a fim de variar minha expressão, mas não que modifique os próprios pensamentos. Quero mostrar a evolução destes, quero que os acompanhem desde a origem, e lamento não ter começado antes de maneira a poder segui-los em seus desenvolvimentos sucessivos. Um lacaio a quem costumava ditá-los, pensou pregar-me uma boa peça roubando-me alguns fragmentos que escolheu a dedo. Consolo-me com saber que nisso não ganhará mais do que eu perdi. Desde que iniciei este livro, fiz-me mais velho de sete ou oito anos, o que não se verificou sem novas aquisições. Assim é que me deram os anos algumas cólicas nefríticas, que a companhia da idade nunca deixa de produzir frutos dessa ordem. Entre os diversos presentes que os anos têm por hábito oferecer-nos, gostaria que me houvessem reservado outro mais de minha conveniência: não podiam dar-me nenhum que eu detestasse mais, e isso desde a infância; era precisamente o que eu mais temia. Muitas vezes, pensei com meus botões que já ia demasiado longe no caminho da vida; que em tão longa jornada não me podia deixar de ocorrer algum desagradável encontro. Senti-o e protestava contra, dizendo para mim mesmo que chegara a hora de partir; que é preciso interromper a existência, cortando-a no vivo e na parte ainda sã, como fazem os cirurgiões; que quem não devolve, em tempo certo, a vida que lhe é emprestada pela natureza, paga a dívida com juros de usura. Entretanto, ainda andava tão longe de estar preparado para a partida, que começo a adaptar-me a tão desagradável situação, apesar de já vir esta durando há cerca de dezoito meses. Ajeitei-me a essas dores que se tornaram companheiras inseparáveis e nelas deparo com motivos de consolação e esperanças; os homens andam tão sordidamente afeiçoados à sua miserável vida que tudo aceitam conquanto a conservem. Escutai o que diz Mecenas: "que não possa mais servir-me das mãos, nem dos pés, que seja um aleijado e tenha perdido os dentes, pouco importa! Tudo irá bem, conquanto viva". Tamerlão, a fim de disfarçar com tola humanidade a crueldade com que matava a quantos leprosos encontrava, dizia que era para liberta-los de uma vida demasiado dolorosa. Como se houvesse leproso que o não preferisse ser três vezes mais do que morrer! Muito doente, Antístenes, o cínico, exclamava: "quem me livrará de meus males?" Diógenes, que o viera visitar, apresentou-lhe uma faca, observando: "isto, e de imediato se quiseres". "Não peço que me arranquem a vida", respondeu o filósofo, "mas tão somente os males." Os sofrimentos que só afetam a alma atuam menos sobre mim do que sobre a maioria dos homens, em parte porque certas coisas que o mundo considera horríveis, e procura evitar com o sacrifício da própria vida, me são inteiramente indiferentes; e em parte porque, por temperamento, sou insensível aos acidentes que não acarretam dor, o que Se me afigura um privilégio. Quanto aos sofrimentos físicos, a que não podemos obviar, sou, ao contrário, extremamente sensível. Mas, outrora, encarando-os com esse olhar amedrontado, e que o longo período de saúde que Deus me proporcionou tornara mais tímido ainda, concebi-os tão temíveis e intoleráveis que em verdade foi então maior o receio do que o mal ocorrido depois; o que me confirma na ideia de que as faculdades da alma, como as empregamos, antes provocam em nós perturbações do que nos prestam serviços. Sou atualmente presa da pior das doenças, a mais repentina, a mais dolorosa, a mais mortal, diante da qual os médicos se confessam impotentes. Já sofri três ataques, longos e penosos; e no entanto, ou muito me engano ou ainda sobram nesse estado razões para suportá-la, conquanto não se terna a morte e não se preste atenção às ameaças, conclusões e advertências dos médicos. A dor em si não tem tal acuidade que provoque desespero e furor em um homem calmo. Essas cólicas comportam ao menos a vantagem de me familiarizar enfim com a ideia da morte, pois quanto mais me atormentam e importunam menos me sinto preso à vida. Hão de desfazer o nó que ainda me amarra, e Deus queira que em se fazendo mais violentas ainda não venham a rejeitar-me no extremo oposto, igualmente condenável, de aspirar à morte! "Não ternas nem desejes o último dia." Há que recear ambas as paixões, mas o remédio é mais acessível para uma do que para outra. Aliás, sempre considerei puro exibicionismo o preceito que ordena tão rigorosa e positivamente que se mostre alguém desdenhoso e calmo ante o sofrimento físico. Por que a filosofia, que só leva em conta o que é real e suas consequências, se compraz nessas exterioridades? Que deixe isso aos tolos e aos retóricos que tão grande importância emprestam aos nossos gestos. Que nos acorde o direito à covardia verbal- desde que não provenha do caráter - e a classifique entre os suspiros, e palpitações, soluços e lágrimas que a natureza não nos permite evitar. E desde que não atinjam o ânimo, e não fraqueje a nossa mente, pouco importam as caretas e os trejeitos. É para nós mesmos e não para os outros que nos educa a filosofia; para que sejamos e não para que pareçamos ser. Que restrinja sua ação ao nosso julgamento; que aos esforços das cólicas oponha a nossa alma fortalecida e lúcida, disposta a combater o sofrimento e a resistir-lhe; pode essa alma comover-se ante a perspectiva da luta, mas não deve abater-se, nem ceder. É preciso que continue capaz de prosseguir na faina habitual. Em circunstâncias tão difíceis, fora cruel exigir de nós atitudes antinaturais e se a alma se mantém em bom estado de saúde pouco importa a nossa fisionomia. Se o corpo encontra alívio em se lamentar, que se lamente; se lhe apraz agitar-se que o faça à vontade; se imagina (como dizem alguns médicos do reconforto que às mulheres no momento de parir lhes trazem os berros) tirar algum bem dos gritos e vociferações, que grite e vocifere. Aceitemos tais manifestações, embora sem as procurar. Não somente Epicuro perdoa ao sábio que grite em seus tormentos, como o aconselha: "Assim fazem os lutadores; golpeando o adversário, agitando o cesto, soltam rugidos; pois sob o efeito da voz todo o corpo se retesa e o golpe é assestado com maior vigor." Já nos dá o mal bastante trabalho sem que nos embaracemos com regras supérfluas. O que digo, dirige-se aos que em geral protestam com violência contra essa doença, pois eu, até hoje, consegui manter certa discrição, contentando-me com gemer. E não porque me esforce por conservar uma aparência de coragem (dou pouca importância a tais méritos e não hesito em fazer concessões à dor); mas talvez minhas dores não sejam tão insuportáveis ou talvez tenha eu maior capacidade de resistência. Queixo-me e me aborreço com as pontadas, mas há "quem grite, gema, e berre lamentavelmente”. Eu não chego a tal desespero. Analiso-me durante esses ataques e sempre verifiquei que continuo capaz de falar, pensar, responder como de costume, não, contudo, de maneira fluente, pois a dor perturba por vezes a atenção. Quando os que me assistem procuram poupar-me, calando, eu mesmo me ponho a discorrer sobre assuntos em nada relacionados com a doença. Em suma, tudo posso fazer, conquanto não seja coisa prolongada. Como gostaria de ter a sorte daquele indivíduo, a que se refere Cícero, que sonhava dormir com uma cortesã e se achou assim livre do cálculo que lhe obstruía o canal da uretra. Outros são os efeitos de meus males! Nos intervalos das dores excessivas que provocam os cálculos, volto de imediato ao estado normal, tanto mais quanto não me atingem a alma, o que devo certamente ao cuidado com que raciocino e me sugestiono a propósito da enfermidade: "agora nenhuma dor, nenhum perigo poderiam surpreender-me; tudo previ, estou preparado para o que der e vier"," E, no entanto, a prova é rude para um aprendiz; a transição foi rápida e dura, pois passei repentinamente de uma existência serena e feliz a um estado dos mais dolorosos que se possam imaginar. Além de ser essa doença perigosa em si, teve ela comigo um início mais difícil e agudo do que em geral e os ataques repetem-se tão amiudadamente que minha saúde se me afigura definitivamente abalada. Todavia consegui até agora manter-me em tal estado de espírito que, se não se alterar, ainda terei uma existência bem melhor que a de mil outros que não têm febre nem outra doença senão a que eles próprios imaginam. Há uma espécie de humildade que decorre da presunção. Consiste em reconhecermos nossa ignorância em certas coisas e confessarmos que há nas obras da natureza qualidades e condições cujas causas escapam ao nosso entendimento. Com essa honesta e conscienciosa declaração, esperamos que nos acreditem quando falamos do que afirmamos entender. Mas para que estabelecer diferenças entre os milagres e as coisas incompreensíveis que não nos dizem respeito? Parece-me que entre as que temos habitualmente diante dos olhos, algumas há estranhamente inexplicáveis, mais ainda do que os milagres. Prodigioso é com efeito o que o sêmen prolífico engendra e traz a marca não somente da constituição física de nossos pais, mas ainda de seus pensamentos e tendências. Onde se aloja, nesse germe, esse número infinito de formas embrionárias? Como se ordenam tais formas para que, através de um processo que não obedece a nenhuma regra, um neto se assemelhe ao avô, um sobrinho ao tio? Na família de Lépido, em Roma, três indivíduos nasceram com mancha idêntica no mesmo olho, e isso não se transmitiu de pai a filho, mas com intervalos de gerações. Em Tebas houve uma linhagem que se caracterizou pela marca em forma de lança que todos traziam na nádega desde o nascimento, a ponto de não se considerarem legítimos os descendentes que não a revelavam. Aristóteles afirma que em certa tribo em que as mulheres eram comuns a todos, os pais reconheciam os filhos pela semelhança com eles. É de crer que deva a meu pai essa predisposição para os cálculos, pois ele morreu de um cálculo muito grande na bexiga e só soube de sua doença aos sessenta e sete anos. Até então nada sentira que o alertasse, nem nos rins, nem do lado, nem alhures; vivera em perfeito estado de saúde e sua enfermidade durou sete anos, durante os quais passou muito mal. Eu nasci vinte e cinco anos antes que a doença se declarasse, em uma época em que sua saúde era excelente; fui o terceiro filho. Onde, durante esse tempo, se alojou a enfermidade? E como, em estando meu pai tão longe ainda de seus padecimentos, essa frágil emanação dele, que me deu origem, pôde ser por ele impregnada a ponto de transmitir-me sua deficiência quarenta e cinco anos mais tarde? E como se explica que, entre tantos irmãos e irmãs da mesma mãe, somente eu tenha sido atingido pela doença? Quem me explicar a causa pode estar certo de que aceitarei também as explicações que porventura me venha a dar acerca de outros milagres, conquanto não se valha de alguma teoria mais fantástica ainda do que o próprio fato, o que se verifica não raro. Desculpem-me os médicos a minha liberdade de linguagem, mas esse mesmo germe, produto da fatalidade, comunicou-me igualmente o ódio às suas doutrinas. A minha antipatia pela sua arte é hereditária. Meu pai viveu setenta e quatro anos; meu avô sessenta e nove; meu bisavô quase oitenta, todos sem que nunca tomassem qualquer medicamento, e tudo que não fosse de uso comum consideravam droga. A medicina tem origem em observações e experiências; do mesmo modo formei minha maneira de ver. Essa longevidade não revela também uma experiência e das mais belas? Não creio que todos os médicos reunidos pudessem observar em seus registros três casos semelhantes, de homens nascidos, educados e falecidos no mesmo lar e que lhes devessem sua longa vida. Terão por certo de confessar que, se não tenho razão, tenho, pelo menos, o acaso a meu favor; ora o acaso é um mestre bem mais admirável que a razão. Que não tirem vantagem de meu estado presente e não me ameacem; aterrado como ando, não seria leal. Na realidade, esses exemplos familiares, embora pouco numerosos e restritos, dão-me alguma vantagem; mas as coisas humanas não duram tanto, pois dezoito anos faltam, apenas, para que minha experiência alcance dois séculos, tendo nascido meu bisavô no ano de 1402. Não seria portanto de espantar que desta feita tomasse outro rumo. Que não me censurem os males que nesta hora me ferem; já vivi quarenta e sete anos com excelente saúde, parece-me suficiente. E se minha vida findasse agora, ainda seria das mais longas. Meus antepassados, por tendência inata e não raciocinada, apreciavam mediocremente a medicina; a simples vista de drogas era odiosa a meu pai. O Sr. de Gaviac, meu tio paterno e homem de igreja, sempre foi doentio; nem por isso viveu menos de sessenta e sete anos. Tendo sido atacado de violenta e ininterrupta febre, resolveram os médicos declarar-lhe que se não confiasse nos cuidados deles, estaria infalivelmente perdido (chamam cuidados ao que em geral impede a cura). O bom homem, amedrontado com tão ameaçadoras palavras, respondeu-lhes: "pois então sou um homem morto", mas Deus não tardou em desmentir o sombrio prognóstico. Eram quatro irmãos; somente o mais moço, Sr. de Bussaguet, recorreu aos médicos e creio que o fez por causa de suas relações com gente de outras profissões porquanto ele próprio era conselheiro no Parlamento. Triste ideia a sua, pois embora parecesse o mais robusto dos quatro, morreu muito antes; só um, Sr. de Saint-Michel, o precedeu no túmulo. É possível que me venha deles esta tendência contra a medicina. Mas se não houvesse senão isso, teria tentado dominá-la, pois toda ideia preconcebida é destituída de razão e portanto má. É doença que cumpre combater. Talvez minha opinião provenha de uma predisposição, mas que a razão posteriormente confirmou e fortaleceu, pois não acho justo condenar-se a medicina pelo que tem de desagradável e entendo que a saúde deve ser conservada mesmo à custa das mais penosas práticas. Porque, se de acordo com Epicuro, as grandes volúpias que redundam em maiores dores devem ser evitadas, as dores que acarretam volúpias excessivas não devem tampouco ser ambicionadas. É por certo a saúde coisa mui preciosa, a única merecedora de todas as nossas atenções e cuidados e de que a ela se sacrifiquem não somente todos os bens mas a própria vida, porquanto na sua ausência a existência se nos torna pesada e porque sem ela o prazer, a sabedoria, a ciência, e até a virtude se turvam e se esvaem. Aos argumentos mais sólidos que nos pudesse apresentar a filosofia, a fim de nos provar o contrário, bastaria opor a impossibilidade em que se teria encontrado Platão, durante um ataque de epilepsia ou apoplexia, de arrancar qualquer auxílio das ricas faculdades de sua alma. Nenhum caminho que conduzisse à saúde se me afiguraria rude ou difícil, mas tenho motivos, pelo menos aparentes, para desconfiar profundamente das asserções dos médicos. Não afirmo que a medicina não possua alguns dados sérios; nem que entre todos os produtos da natureza nenhum exista capaz de ajudar a conservarmos a saúde. Sei que certas plantas provocam a transpiração, e outras a eliminam; sei por experiência que a raiz-forte produz gases, e que as folhas do sene são purgativas. Muitas outras coisas me são familiares através de observações, como por exemplo que a carne do carneiro é nutritiva e o vinho reconfortante. Já dizia Sólon que a comida é um remédio como qualquer outro, o remédio contra a doença da fome. Não sou hostil ao aproveitamento dos produtos naturais e não duvido da eficiência dos recursos da natureza, nem da possibilidade de os utilizarmos. Bem vejo como os pássaros e os peixes têm razão de confiarem nela, desconfio das invenções de nosso espírito, de nossa ciência, de nossa arte que não sabemos conter dentro de prudentes limites e pelas quais nós abandonamos a natureza e suas leis. Assim como enfeitamos com o nome de justiça um amontoado de leis, não raro aplicadas de maneira inepta e iníqua (e quem as critica não pensa em condenar a nobre virtude mas tão somente o abuso de colarem um respeitável rótulo em tão lamentável sistema) assim, também, dão o nome de medicina, que honro e respeito, bem como admiro o que se propõe, a coisas que não honro nem estimo. Antes de tudo, ensinou-me a experiência a temer os médicos, pois não há quem adoeça mais depressa e mais lentamente se cure do que os que se entregam nas mãos dos médicos. Até a saúde se altera com as dietas que eles inventam. Não se contentam os médicos com tratar das doenças, vigiam igualmente a saúde, a fim de que em nenhum momento lhes escape a vítima. Pois não vislumbram em uma saúde florescente o indício de enfermidades futuras? Estive várias vezes doente, e minhas doenças foram iguais às de todos, não me fizeram sofrer mais nem se prolongaram anormalmente, embora não consultasse os médicos, auferindo com isso a vantagem de não as envenenar com o amargor de mil receitas. Quando me sinto bem, ajo a meu bel-prazer, sem me impor qualquer regra e levando em conta apenas os meus hábitos e a minha satisfação. Em viagem qualquer lugar convém a meu repouso, pois não preciso de regime especial quando adoeço, não me preocupando com a presença de médico ou boticário, o que atormenta a muitos mais do que a própria enfermidade. Aliás, serão os médicos, eles mesmos, com sua saúde e média de vida, exemplos comprobatórios da eficácia de sua ciência? Não há povo que não tenha permanecido durante séculos sem médicos. E esses séculos, os primeiros, foram sempre os mais felizes. Ainda hoje a décima parte dos habitantes do mundo não conhece a medicina. Numerosas nações, onde vivem melhor do que aqui e mais tempo, nunca viram médicos. E entre nós o povo miúdo passa muito bem sem eles. Os romanos ficaram seiscentos anos sem médicos e, depois de experimenta-los, expulsaram-nos por instigação de Catão, o Censor, o qual demonstrava como vivera oitenta e cinco anos, bem como sua mulher, não sem apelar para a medicina, mas sem recorrer aos médicos, pois essa denominação de medicina pode aplicar-se a tudo o que contribui para a conservação da saúde. E tratava da família, ao que diz Plutarco, obrigando-a a comer muitas lebres. Já os árcades, no dizer de Plínio, curavam todas as doenças com leite de vaca, e os líbios, segundo Heródoto, gozam em geral excelente saúde graças ao hábito de cauterizar as veias do pescoço e das fontes de seus filhos quando chegam aos quatro anos, impedindo-os assim, para o resto da vida, de contraírem defluxos. Na região em que nasci, os camponeses usam somente vinho bem forte misturado com açafrão e outras especiarias. E, em verdade, para que servem todas essas receitas confusas senão para esvaziar o ventre, o que podem fazer mil plantas encontradiças em nossas terras? Ademais não acredito muito na utilidade de tal prática, pois é possível que a natureza exija que fiquem os excrementos durante algum tempo na barriga, assim como a permanência da borra é necessária à conservação do vinho. Vemos por vezes homens perfeitamente sãos que, sob o efeito de algum acidente, vomitam e evacuam quantidade de excrementos, sem que a isso fossem solicitados antes do choque e sem utilidade aparente, antes com inconvenientes e posterior agravação de seu estado de saúde. Aprendi outrora com Platão que a pior das três espécies de perturbações que podemos provocar em nós é a ocasionada pelos purgantes, aos quais, a menos de ser louco, ninguém deve recorrer senão em último extremo. Perturbamos e excitamos o mal com o que lhe opomos. Fora necessário que nosso gênero de vida, sozinho, o amolecesse, atenuasse, e o extinguisse enfim. A luta violenta que a droga trava com o mal, é-nos sempre prejudicial, porquanto ocorre em nós e a droga não favorece a nossa saúde, e só a aceitamos quando enfermos. Deixemos que a natureza aja: assim como assegura a conservação das pulgas e das fuinhas, assegura a dos homens, quando estes pacientemente concordam em ser por ela governados. Por mais que gritemos "depressa!" não conseguiremos tornar mais rápida a sua marcha. Ficaremos roucos e nada mais. Nosso temor, nosso desespero longe de a incitar a auxiliar-nos afastam-na de nós. Tanto quanto o curso da saúde, cumpre-lhe assegurar o da doença e não há de favorecer um mais do que o outro, pois se assim procedesse não haveria ordem, e sim desordem. Sigamo-la, por Deus! Ela dirige os que a seguem e arrasta os que a não acompanham, com toda a sua medicina. Pedir uma receita de purgante para o cérebro, será mais útil do que para o estômago! Perguntaram a um lacedemônio como vivera tanto tempo com saúde: "porque não conheço drogas", respondeu. O Imperador Adriano, ao morrer, repetia sem cessar que o excesso de médicos o matara. Um mau lutador fizera-se médico: "coragem", disse-lhe Diógenes, "tens razão; vais agora poder derrubar todos os que te derrubaram outrora". Como observa Nícocles, "têm eles a sorte de o sol iluminar-lhes os êxitos e a terra esconder-lhes os erros". Ademais são peritos na arte de tirar partido dos acontecimentos, quaisquer que sejam. Se, por acaso, a natureza (ou qualquer outra causa) atua favoravelmente, atribuem a cura à sua ciência; cabe-lhes o mérito de todas as melhoras observadas, e vangloriam-se, em suma, junto aos que os solicitam, daquilo que nos curou, a mim e a mil outros, sem sua ajuda. Quanto aos acidentes que lhes ocorrem, ou os negam completamente, ou os imputam ao doente, invocando as razões mais fúteis e ridículas: um descobriu o braço; outro ouviu o ruído de um carro: "o barulho dos carros apinhados nas ruas estreitas": entreabriu a janela; deitou-se de lado; ideias tristes passaram-lhe pela mente. Uma palavra, um sonho, um mau-olhado são desculpas suficientes. Ou, quando lhes convém melhor, utilizam a agravação em prol de seus interesses, procedendo da maneira seguinte, que não falha: quando a doença piora em consequência do remédio, afirmam que, sem este, fora bem mais grave; se o medicamento provoca ligeira febre em quem se achava resfriado, dizem que sem ele a febre seria mais violenta. Pouco lhes importa o êxito, pois o prejuízo acarreta-lhes também lucros. Têm razão em exigir de suas vítimas uma confiança otimista, pois é preciso mesmo que a tenham estas, e total, para que aceitem tudo o que os médicos imaginam, por absurdo que seja. Platão dizia, com sabedoria, que os médicos podem mentir descaradamente; por isso que nossa salvação depende da frivolidade e da falsidade da segurança que nos dão. Esopo, autor de talento excepcional, e cuja graça poucos são capazes de entender, diverte-se e nos diverte em descrever a autoridade com que dominam os pobres de espírito enfraquecidos pela doença e o medo. Conta-nos de um paciente que responde às perguntas de seu médico acerca do efeito dos remédios recomendados: "Transpirei muito". "Excelente." Mais tarde, não tendo visto a vítima durante algum tempo indaga como passara desde o primeiro dia: "Senti muito frio, e violentos tremores". "Muito bom." Uma terceira vez, inquirindo ainda do estado do mesmo doente, ouve a seguinte resposta: "Sinto-me inchar, como se estivesse com hidropisia". "Perfeito." E quando o criado do enfermo chega, após essa última visita, para saber da saúde do amo, este lhe diz: "Vou bem, meu amigo, tão bem em verdade, que acho que estou morrendo". Houve no Egito uma lei muito justa que isentava o médico de qualquer responsabilidade durante os três primeiros dias de tratamento. Nesse lapso de tempo assumia o paciente todos os riscos, mas depois dos três dias o médico tornava-se responsável pela vida do enfermo e o tratamento corria por sua conta. Se Esculápio, o mestre de todos eles, foi fulminado por ter reanimado Hipólito, por que seus continua dores, que matam tanta gente, deveriam gozar de imunidades? "Júpiter, indignado com o fato de um mortal ter sido retirado da noite infernal e trazido novamente à luz do dia, fulminou o filho de Apolo, inventor dessa arte audaciosa, e o precipitou no Estige." Certo médico jactava-se perante Nícocles da autoridade considerável que sua arte havia alcançado: "Sem dúvida", observou Nícocles, "podes matar impunemente". Se eu fosse médico apelaria mais para o mistério e a providência. Na verdade começaram bem, mas não prosseguiram nesse caminho. Foi um bom ponto de partida buscar a origem dessa ciência nos deuses e demônios, valendo-se de uma língua e de uma escrita esotéricas, muito embora a filosofia considere errado dar conselhos ininteligíveis a quem deles precisa tirar proveito: "como se, para recomendar a um doente comer caracol, lhe ordenasse o médico que pegasse uma criatura da terra, que ande pela grama e carregue sua casa às costas". E é inteligente de sua parte exigir do paciente, como fazem as artes baseadas no sobrenatural e na fantasia, uma fé suficiente para auxiliar a ação do médico, e o efeito do remédio. O que os leva a declarar que mais vale o profissional em quem confiamos, embora ignorante, do que o mais brilhante desconhecido. A própria escolha de suas drogas tem algo misterioso e sagrado: pé esquerdo de tartaruga, urina de lagarto, excremento de elefante, fígado de fuinha, sangue de asa direita de pombo branco! E para os que como nós, sofrem de cólicas nefríticas (não abusam bastante de nossas misérias?) excremento pulverizado de ratos e outras prescrições absurdas, mais do domínio da feitiçaria do que da ciência. E deixo de lado outras singularidades: número ímpar de pílulas, dias certos para tomá-las, horas determinadas para colher as plantas que entram nas receitas, e finalmente a atitude rebarbativa e refletida que assumem e de que zomba Plínio. Com tão belo início, não deveriam ter esquecido de acrescentar que suas reuniões e consultas seriam secretas e de caráter religioso. Nenhum profano seria admitido nessas assembleias, como o não era no culto de Esculápio. Porquanto, se qualquer pessoa puder ser testemunha de suas indecisões, da fraqueza de seus argumentos em defesa do que imaginam adivinhar e discutem acrimoniosamente, cheios de ódio e de inveja, precisará ser cega para que neles confie. Quem jamais viu um médico confirmar simplesmente a receita de um confrade, sem nada acrescentar ou cortar? Revelam assim a inanidade de sua arte e mostram que mais os preocupam a própria fama e os lucros do que os doentes. E sábio foi certo médico da antiguidade que lhes recomendava não se metessem uns com os doentes dos outros, pois, em nada conseguindo de útil, o erro de um só não prejudica o bom nome da corporação, ao passo que a glória do êxito a todos aproveita. Aliás, quando se reúnem vários médicos em torno de um mesmo caso, desmoralizam a profissão com dimensões e brigas, tanto mais quanto em geral os resultados não são brilhantes. Deveriam evitar de tornar público esse desentendimento que as pessoas cultas sabem ter sempre existido entre os mestres de sua ciência, mas que o povo ignora. Vejamos alguns exemplos dessas divergências no passado remoto. Hierófilo atribui aos humores a origem de nossas doenças; Erasístrato, ao sangue das artérias; Asclepíades, à superabundância ou à escassez das energias físicas; Díocles, a um desequilíbrio na proporção dos elementos que compõem nosso corpo, bem como à qualidade do ar que respiramos; Estráton, a um excesso, a uma dificuldade de assimilação e a uma corrupção dos alimentos; Hipócrates, aos espíritos. Um de seus amigos, que os médicos conhecem melhor do que eu, diz a propósito que "a ciência mais importante para nós, aquela à qual incumbe a conservação de nossa saúde, é infelizmente a mais incerta, a mais confusa, a mais agitada pelas contínuas mudanças de doutrina". Não há grande mal em errarmos na medida da distância do sol, bem como em qualquer cálculo astronômico, mas no caso da medicina é nosso ser que está em jogo e não me parece prudente nos abandonarmos ao sabor dos ventos. Antes da guerra do Peloponeso não se falava dessa ciência: Hipócrates deu-lhe crédito. Todas as regras que estabeleceu, foram posteriormente modificadas por Crisipo. Erasístrato, neto de Aristóteles, destruiu tudo o que Crisipo construíra. Depois deles vieram os empíricos que aplicaram a essa arte métodos inteiramente diversos. Mais tarde Hierófilo defendeu outra orientação contra a qual se ergueu Asclepíades, o qual impôs por seu turno seu modo de ver. As opiniões de Temisson e em seguida as de Musa firmaram-se então, após as quais surgiram as de Vectio Valens, célebre pelas suas relações com Messalina. No tempo de Nero, Téssalo dominou: aboliu e condenou tudo o que precedera. Sua doutrina foi derrubada por Crinas, de Marselha, o qual voltou a subordinar a medicina às tábuas astronômicas e à influência dos astros; as horas das refeições, à posição de Mercúrio e às fases da lua. Sua autoridade logo foi suplantada pela de Carino, também de Marselha, o qual combateu não somente os métodos da medicina antiga, mas também o uso de banhos quentes que, com os séculos, se tornara um hábito. Mandava ele se mergulhassem as pessoas na água fria mesmo no inverno. Até a época de Plínio, nenhum romano se dedicara à medicina. Era exercida pelos estrangeiros e os gregos, como entre nós, franceses, pelos que massacram o latim, pois, como diz um grande médico, não acreditamos na medicina que compreendemos nem no remédio que vamos buscar na natureza. Se existem médicos nas regiões de onde nos vêm a salsaparrilha e o guáiaco, devem recomendar o repolho e a salsa, em virtude da preferência que sempre damos ao que é estranho, raro e caro, não ousando ninguém desprezar o que se vai colher tão longe à custa de mil perigos. Entre essas transformações da medicina antiga e a da nossa época, houve outras em número infinito, as mais das vezes radicais e Universais, como as introduzidas por Paracelso, Fioravante e Argentário, OS quais não somente modificam por completo o receituário, mas ainda as próprias regras da arte e até as condições de seu exercício, qualificando como ignorantes e charlatães todos os seus antecessores. Imaginai, depois disso tudo, onde vai parar o doente! Se, ao menos, quando se enganam, não nos prejudicassem, teríamos uma vaga possibilidade de cura sem correr grave risco. Diz-nos Esopo de um indivíduo que comprara um escravo mouro que, imaginando provir a cor de sua pele dos maus-tratos infligidos pelo antigo dono, obrigou-o a seguir um tratamento de banhos e tisanas, o que não lhe modificou a cor, mas lhe alterou profundamente a saúde, antes excelente. Quantos médicos não vemos, atribuindo-se uns aos outros a culpa pela morte de suas vítimas? Recordo-me de uma doença muito perigosa, não raro mortal, que se observou há tempos nas cidades de minha região, atingindo principalmente as classes pobres. Passada a epidemia depois de ter feito número considerável de vítimas, publicou certo médico uma obra em que criticava o uso da sangria no combate ao mal e confessava ter sido esse tratamento a causa principal dos casos fatais. Há mais, porém. Os que escrevem, entre os médicos, afirmam não haver remédio sem efeitos nocivos; ora, se mesmo os que são eficientes nos prejudicam de um modo ou de outro, que diremos dos que absorvemos fora de propósito? Ademais, creio que, para os que não suportam o gosto dos remédios, constitui perigoso esforço ter de toma-los à força, pois isso exaure o doente que tanto precisa de repouso. Por outro lado, considerando as causas tão fúteis que os médicos apontam para as nossas enfermidades, é de se deduzir que o mais insignificante erro na dosagem, ou na aplicação do remédio, pode ocasionar graves danos. E se o erro de um médico é perigoso, eis-nos em bem má situação, pois é muito difícil que não o repita amiúde. Precisa ele de demasiado número de exames e de informações circunstanciadas para opinar judiciosamente; cabe-lhe conhecer o temperamento do doente, sua temperatura, seus humores, suas predisposições, suas ocupações e até o que pensa e sonha; cumpre-lhe saber das condições ambientes, da natureza do lugar, do ar, do clima, da posição dos astros e suas influências; é necessário que não ignore as causas da doença e seu caráter, seus efeitos, os dias críticos; precisa conhecer o peso da droga que ministra, sua ação, o país de onde vem, seu aspecto, a data em que foi preparada, a fim de calcular a quantidade a ser receitada. Tudo calculado e entrosado harmonicamente. Por pouco que se engane, que entre tantos elementos diferentes um só venha a falhar, eis-nos perdidos. Ora, só Deus sabe das dificuldades que há em conhecer tantas particularidades! Como, por exemplo, determinar o caráter preciso da doença, se ela se apresenta sob tão variadas formas? Quantos debates e dúvidas provoca a análise da urina? Sem tais dificuldades não andariam a discutir permanentemente acerca do diagnóstico e não teriam desculpas para o erro que cometem não raro de confundir alhos com bugalhos. Cada vez que os consultei, por ínfima que fosse a dificuldade, nunca encontrei três da mesma opinião. Naturalmente minhas observações baseiam-se principalmente na minha experiência pessoal. Ultimamente, em Paris, um fidalgo submeteu-se a uma operação por determinação dos médicos; não encontraram em sua bexiga mais cálculos do que em minha mão. Aqui também, certo bispo de minhas relações fora insistentemente aconselhado a submeter-se a idêntica operação. Eu mesmo, convencido pelos médicos dessa necessidade, interviera para decidi-lo. Tendo morrido, ao ser autopsiado verificaram que só sofria dos rins. Os médicos no caso dessa doença são menos desculpáveis ainda, porquanto ela é, por assim dizer, palpável. A meu ver a ciência cirúrgica oferece maior segurança, porque com ela se vê e sente o que se faz. Depende menos de conjeturas e intuições. Os médicos não podem usar espéculo para examinar o cérebro, os pulmões, o fígado, tampouco lhes podemos dar crédito quando lhes cabe atentar para sensações contrárias observáveis simultaneamente em vários órgãos, intimamente ligados como quando sentimos calor no fígado e frio no estômago. Procuram então convencer-nos de que um remédio alcança a bexiga e outro os rins, sem que atuem, em caminho, sobre outros órgãos; e insistem em que durante tão longo percurso conservam sua eficiência até chegar ao ponto certo em que devem entrar em ação suas qualidades ocultas. Tal remédio seca o cérebro, tal outro umedece o estômago, mas não é de espantar que, misturados, se separem por si sós e vá cada qual desempenhar seu papel? Pois eu receio - e muito - que se percam e se enganem. E não poderá acontecer que se alterem em contato um com o outro? Finalmente a execução da receita cabe ainda a uma terceira pessoa, em quem precisamos confiar e à qual deixamos entregue o cuidado de nossa vida! Para nossas roupas temos quem só confeccione gibões, e quem só faça calças; somos tanto mais bem servidos assim quando cada qual se ocupa apenas de sua tarefa e seu talento se exerce dentro de limites estreitos. Não seria tão perito o alfaiate que tudo fizesse sozinho. Quanto à alimentação, é vantagem dos ricos terem vários servidores. Um prepara a sopa, outro as carnes; um só cozinheiro não consegue dar, à comida toda, igual sabor. "Por isso mesmo não admitiam os egípcios que o médico fosse universal": devia especializar-se em algum ramo de sua arte. Cada doença, cada parte do corpo tinha seu especialista e assim era, provavelmente, mais bem tratada e segundo suas necessidades. Não veem os médicos de hoje que quem a tudo atende não atende a nada e que ocupar-se de todas as solicitações desse pequeno mundo do corpo humano, ultrapassa suas possibilidades. Temerosos de que sustando a disenteria provocassem a febre, mataram eles um amigo meu que valia mais do que todos eles juntos. À realidade da doença só podem opor o peso de suas conjeturas, a fim de não curar o cérebro em detrimento do estômago, com suas drogas discordantes e desordenadas estragam o estômago, e perturbam o cérebro. No que concerne à razão de ser de seus juízos, é essa arte mais fraca e contraditória do que as outras. Ora dizem que as substâncias excitantes convêm a quem tem cólicas, porque abrem e dilatam os condutos internos, carreiam a matéria viscosa que engendra os cálculos e precipitam o que principia a acumular-se e a endurecer nos rins; ora afirmam que essas mesmas substâncias são perigosas, porque, abrindo e dilatando os condutos, encaminham para os rins essa matéria que se transforma em cálculos, obstruindo aqueles órgãos já propensos a se obstruírem. E acrescentam que, se porventura um cálculo maior do que o canal que lhe cabe atravessar neste se introduz, levado pelas ditas substâncias, pode ocorrer a morte dolorosíssima do paciente. Seus conselhos acerca do regime que devemos seguir não me parecem muito mais lógicos e coerentes. Ora dizem que é preciso urinar frequentemente porque a experiência demonstra que se deixamos a urina estagnar na bexiga ela se decanta e os excrementos que nela se encontram formam uma espécie de borra propícia à constituição dos cálculos; ora afirmam que não devemos urinar repetidamente, pois, em virtude de seu peso, os excrementos só serão expelidos se o jato for muito forte, porquanto uma torrente impetuosa limpa o leito das águas muito melhor do que um regato lerdo e sereno. Também dizem por vezes que é conveniente ter contatos amiudados com as mulheres porque isso abre os condutos e faz circular a areia; e por vezes que é prejudicial porque esquenta os rins e os enfraquece. Ora insistem na ação benfazeja dos banhos quentes, porque amolecem e tornam mais flexíveis os órgãos em que se alojam os cálculos; ora os consideram nocivos porque o calor ajuda a cozer e petrificar as matérias que formam os cálculos. Aos que fazem estações de águas dizem que precisam comer pouco à noite a fim de que a água a ser ingerida pela manhã atue melhor em virtude de estar o estômago vazio; mas também afirmam o contrário. Ou então observam que é necessário comer pouco ao meio-dia, a fim de não perturbar a ação da água tomada pela manhã e não sobrecarregar o estômago após a tarefa cumprida; ou que o principal esforço digestivo deve ser deixado para a noite, porque de dia o corpo e o espírito estão permanentemente agitados. Eis como raciocinam os médicos, com lorotas, a expensas nossas. Não há opinião sua que não possa ser imediatamente contraditada com argumento de igual peso, senão maior. Não se censure portanto quem, diante de tantas contradições, se deixa conduzir pelos seus instintos, e pela sorte que preside aos nossos destinos. Tive a oportunidade, em minhas viagens, de visitar quase todas as estações de águas do mundo cristão e há alguns anos as venho frequentando porque julgo que os banhos são salutares e que muitas afecções provêm do fato de termos perdido o hábito de lavar diariamente o corpo, como se fazia em quase todas as nações do passado e ainda se continua a fazer em algumas. Não posso compreender que haja alguma vantagem em conservar os poros obstruídos pela sujeira. Quanto a beber essas águas, fizeram os fados que isso não me contrariasse o paladar; por outro lado é coisa natural e tão simples que, se não é útil, tampouco será perigosa, o que se deduz aliás do número considerável de pessoas de toda espécie de temperamento que as tomam. E se não pude ainda constatar, nem por mim nem pelo que sei dos outros, nenhum desses efeitos milagrosos que se proclamam e nos quais muitos acreditam (pois nos enganamos facilmente com o que desejamos), não vi tampouco ninguém cujo estado houvesse piorado com o uso de tais águas. Posso afirmar, sem exagero, que despertam o apetite, facilitam a digestão e provocam certo bem-estar, a menos que as busquemos já em muito mau estado, o que não aconselho. Se não podem reconstituir um físico arruinado, podem pelo menos auxiliar quem o tenha ligeiramente combalido e evitar males maiores. Quem as procura sem se sentir com ânimo suficiente para usufruir o prazer da sociedade que aí encontre, dos passeios e excursões a que convide a beleza do lugar, perde indubitavelmente o melhor e o mais eficiente dos seus efeitos. Por isso tenho sempre escolhido as localidades mais agradáveis pelos seus sítios, e ao mesmo tempo as mais cômodas do ponto de vista da hospedagem e da sociedade. Em França, a estação de Bagnêre; nos confins da Alemanha, a de Baden; na Toscana, a de Lucca, e em particular as águas "della Villa" de que me vali várias vezes. Cada lugar tem suas ideias acerca do modo de aproveitar as águas. Quanto aos efeitos, são, ao que me parece, os mesmos em toda parte. Na Alemanha não se bebem as águas; usam-nas em banhos e passam quase todo o tempo patinhando na água; na Itália bebem-nas nove dias e banham-se durante trinta, pelo menos. Em certas estações, Obrigam-nos a passear para melhor as digerir; em outras, forçam-nos a permanecer deitados e aquecem-nos o estômago e os pés para manter um calor contínuo durante a digestão. Os alemães em geral aplicam-nos ventosas dentro da água. Os italianos usam duchas durante um mês, uma hora pela manhã e outra ao cair da noite, na cabeça, no estômago ou outra qualquer parte do corpo, segundo as necessidades. Variam assim os costumes de acordo com a região, e a bem dizer não há a menor semelhança entre o que se faz em dado país, e o que se observa em outro. Eis como essa parte da medicina, a única que aceitei em particular, embora menos artificial que as demais, participa contudo da confusão e da incerteza que se deparam nessa arte. Os poetas tratam com mais ênfase e graça todos os assuntos, este como os demais, segundo se vê destes epigramas: "Ontem, Álcon tocou a estátua de Júpiter e, embora seja ela de mármore, pôde o deus constatar o poder do médico: retiram-no hoje do templo e vão enterra-lo, conquanto seja deus, e de pedra". Andrágoras banhou-se ontem conosco e em seguida ceou alegremente; hoje encontraram-no morto. Queres saber, Faustino, a causa de tão inesperada ocorrência? Viu em sonho o médico Hermocrata. A propósito, aqui vão mais histórias. O Barão de Caupêne en Chalosse e eu temos iguais direitos à renda de uma propriedade chamada Lahontan, muito extensa e situada no sopé da montanha. Os habitantes como, ao que dizem, os do vale de Angrogne, levavam uma existência à parte, com costumes, usos e vestimentas particulares; eram governados e administrados segundo instituições e tradições observadas desde sempre, de pai a filho. Essa pequena região vivera sempre em tão felizes condições que nenhum juiz da vizinhança se apercebera de sua existência, nenhum advogado aí trabalhara, ninguém jamais fora chamado a dirimir contendas, nunca se vira alguém do lugar entregar-se à mendicância; evitavam os contatos com a gente de fora para que não se alterasse a pureza das instituições. Isso durou, como eles próprios dizem, até que um deles, atormentado pela ambição, lembrou-se de fazer do filho um personagem. Tendo este aprendido a escrever numa cidade vizinha, veio a tornar-se tabelião da aldeia. Logo começou o moço a desprezar os antigos costumes e a encher a cabeça dos companheiros com as grandezas das regiões vizinhas. Ao primeiro que teve uma cabra descornada aconselhou que desse queixa aos juízes reais a fim de obter uma indenização; e assim fez com outros até tudo desmantelar. Logo após esse germe de corrupção, dizem, outro surgiu de consequências bem mais graves. Resolveu certo médico casar com uma jovem do lugar e para aí mudar sua residência. Esse médico começou por lhes ensinar os nomes das febres, dos resfriados e dos abscessos; suprimiu depois o alho que lhes servia de remédio para todos os males, por graves que fossem, e induziu-os a tomarem, para qualquer tosse ou defluxo, elixires exóticos, especulando não somente com a saúde como com a morte. Juram eles que foi a partir de então que principiaram a perceber que o sereno dá dor de cabeça, que se pode ficar doente em bebendo quando faz calor, que os ventos do outono são mais pestilentos que os da primavera, e que, esmagados sob o peso de doenças, até aquele momento ignoradas, verificaram uma diminuição geral de seu vigor físico bem como da duração de sua vida. Eis a segunda história. Antes de ter sido atacado de gravela, ouvindo algumas pessoas de comprovado bom senso se referirem ao sangue de bode como a um remédio maravilhoso caído dos céus e suscetível de prolongar a vida humana, eu, que sempre pensei que poderia ser vítima de todos os males, tive a ideia, ainda cheio de saúde, de preparar o bálsamo milagroso. Determinei pois que criassem um bode de acordo com as informações que obtivera. O regime deve iniciar-se nos meses mais quentes do ano e constituir-se de ervas purgativas e vinho branco em lugar de água. Por acaso estava eu em casa, no dia em que o deviam matar. Vieram dizer-me que o cozinheiro percebera nas tripas do animal, pelo tato, a presença de duas ou três bolas em meio aos alimentos digeridos. Por curiosidade mandei trazerem as entranhas e fiz que as abrissem. Eram três corpos volumosos, leves como esponjas, aparentemente ocos, mas duros por fora e de cores mortiças. Um, parecia bem redondo e era do tamanho de uma bola pequena; os dois outros, menores, não se mostravam perfeitamente redondos ainda. Tendo pedido informações junto às pessoas habituadas a tais tarefas, soube que se tratava de um caso raro; eram, provavelmente, cálculos da mesma família que os nossos. A acreditar-se na coisa, bem vã será a esperança dos doentes que imaginam curar-se com o sangue de um animal atacado de igual enfermidade, pois não se sabe se é contagiosa, e dizer que não se transmite pelo sangue não se me afigura certo. Em todo caso é de se admitir que nada se engendre em um corpo sem a cooperação de todas as suas partes, solidárias entre si; em verdade algumas mais ativas do que outras, mas todas participantes. E é provável que as do bode, todas elas, tivessem alguma predisposição para a gravela. Acrescento que não desejava fazer a experiência por temor de chegar ao que mais tarde cheguei, mas a executava assim como as mulheres que fazem provisão de remédios e mezinhas para socorrer os outros e os aplicam a mil doenças diferentes, sem que entretanto os usem elas próprias, muito embora deem por vezes bons resultados. Como quer que seja respeito os médicos, não porque o determine o Eclesiastes (pois a esse preceito oponho outro em que o Rei Asa é censurado por ter recorrido a um médico), mas como indivíduos, pois muitos há honrados e dignos de nosso apreço. Não os ataco e sim a sua arte; não os recrimino por tirarem proveito de nossa tolice, porque todos agem de igual maneira e não faltam profissões mais ou menos honrosas que só subsistem e prosperam abusando do público. Chamo-os quando estou doente; peço-lhes que se ocupem de mim e pago os como qualquer pessoa. Permito-lhes que me recomendem resguardo, quando assim o desejo; autorizo-os a mandarem fazer minha sopa com alho-porro ou alface e prescrever-me vinho branco ou clarete, coisas pelas quais não tenho preferência nem repugnância acentuadas. Nenhuma outra concessão, porém, pois tudo o que empregam sabe a amargor. Por que ordenava Licurgo que os espartanos tomassem vinho quando doentes, senão por não o suportarem habitualmente? Pela mesma razão certo fidalgo de minha vizinhança o adota contra a febre, porquanto o detesta em seu estado normal. E quantos médicos não se veem , compartilhando minhas ideias, vivendo como bem entendem, de maneira absolutamente contrária à que pregam aos outros? Que significa isso, senão abusar de nossa simplicidade? Pois, afinal, sua vida e sua saúde não lhes são menos preciosas do que as nossas e por certo acomodariam seus atos às suas doutrinas se não reconhecessem eles próprios que são nocivas. O medo da dor e da morte, o desejo exacerbado de cura é que nos cegam. É simplesmente a covardia que torna tão complacente a nossa fé. Em geral não se iludem os doentes, mas toleram e deixam estar; ouço-os queixarem-se como eu, mas acabam dizendo: "que fazer, então?" como se a impaciência resolvesse a questão melhor do que a paciência. Entre os que aceitam tão miserável sujeição, haverá um só que não esteja igualmente disposto a submeter-se a quaisquer imposturas de quem tenha a impudência de lhes garantir que hão de sarar? Os babilônios expunham os doentes na praça pública; o médico era o povo; quem passava indagava por cortesia e humanidade do estado da vítima e dava, segundo sua experiência, um conselho mais ou menos salutar. Não agimos diferentemente. Não há palpite que não levemos em conta, nem amuleto que não nos impressione; e se eu tivesse de acreditar em alguma coisa ainda preferiria isso, pois, ao menos, não nos causa prejuízo. Homero e Platão diziam dos egípcios que eram todos médicos; não se poderia dizer o mesmo de todos os povos? Não há, com efeito, ninguém que não se vanglorie de possuir alguma receita e não se aventure a experimentá-la no vizinho, desde que este se preste à experiência. Ouvi alguém, como eu atacado de gravela, anunciar em certa roda o aparecimento de uma pílula nova em cuja composição entravam dezenas e dezenas de ingredientes. A informação provocou grandes emoções e esperanças; que rochedo resistiria a tão considerável concentração de meios? Soube depois, pelos que a tomaram, que nem uma só parcela de cálculo se comoveu. Não quero terminar sem me referir ainda ao que os médicos nos apontam como garantia da eficiência de suas drogas: a experiência. Dois terços pelo menos das virtudes dos remédios provêm da quinta-essência das ervas medicinais cujas propriedades recônditas somente o uso revela; ora, a quinta-essência de uma coisa não é senão a qualidade principal que lhe é peculiar e que escapa à nossa razão, a qual não lhe pode descobrir a causa. Entre as provas de eficiência, dizem eles, algumas lhes foram reveladas por demônios! Quando o alegam, contento-me em verdade com ouvi-Ias, pois não discuto milagres. Outras, aventam-nas por analogia, ou as inferem de alguma qualidade ocasionalmente verificada. Assim, a lã de nossas roupas teria propriedades secativas e serviria para curar as bicheiras das mulas; e a raiz-forte seria purgativa. Galeno conta de um leproso que se teria curado bebendo vinho de um recipiente em que se escondera uma víbora. Tais fatos tornam plausível o efeito da droga, como plausíveis são as experiências resultantes da observação dos hábitos de certos animais. Quanto às outras experiências, a que foram levados pelo acaso ou pela sorte, não me parecem dignas de fé. Imaginemos o homem contemplando o número infinito de coisas, plantas, animais, metais que o cercam; por onde iniciará suas experiências? Suponhamos que o faça pelo chifre do veado; só um capricho poderá explicar a escolha; e não menos inexplicável será a segunda operação. Tem à sua frente tantas enfermidades, e tão variadas são as circunstâncias em que elas ocorrem, que não poderá jamais determinar o ponto em que deverá sustar as provas e concluir. Ser-lhe-ia necessário decidir previamente que entre os milhares de coisas que precisa pesquisar figura em primeiro lugar o chifre de veado; que entre as inúmeras doenças deve aplica-lo à epilepsia; entre os diferentes temperamentos, ao melancólico; entre as estações, escolher o inverno; entre os diversos povos, preferir o francês; entre pessoas de todas as idades, lembrar os velhos; entre os momentos assinalados pelo movimento dos astros, apontar a conjunção Vênus saturno como a mais propícia; e enfim, entre as partes do corpo, determinar o dedo como a mais favorável. Não tendo por guia em tudo isso, nem argumentos, nem conjeturas, nem inspiração divina, e fiando-se tão somente na sorte, fora preciso que uma coincidência realmente admirável, perfeita, interviesse em seu auxílio! Mas admitamos a cura; fora ainda imprescindível provar que o mal não estava chegando naturalmente ao fim; que não pode ser atribuído a uma outra causa, a alguma coisa diferente que a vítima tenha comido ou bebido; ou que não se deve às orações de alguma avó ou tia. E ainda que o fato se provasse, cumpriria saber quantas vezes se repetiu. E se houve essa longa série de experiências e verificações necessárias a uma conclusão. E a quem cabe tirá-la? Entre mil indivíduos entregues a tais experiências, três talvez as terão registrado, e será um desses, porventura, quem haja chegado a essa conclusão? Estaríamos mais esclarecidos, se os juízos e raciocínios de todos nos fossem conhecidos; mas admitir-se que três testemunhos de três doutores bastem para estabelecer as leis da saúde humana, não seria razoável. Para que tivessem real autoridade, fora preciso que os houvéssemos escolhido como mandatários. Á Madame de Duras Senhora, quando há tempos viestes visitar-me, vós me encontrastes ocupado em escrever as linhas precedentes. É possível que estas inépcias vos caiam um dia nas mãos: quero que, nesse caso, não ignoreis quanto me sentirei honrado com vossa atenção. Reconhecereis as mesmas ideias e a mesma maneira de exprimi-Ias que conhecestes. Mesmo que me fosse possível empregar linguagem diversa da minha linguagem habitual, e forma mais elegante, não o fizera porque não desejo que estas linhas vos recordem um indivíduo diferente. Estas observações, e consequentes considerações, vós as ouvistes e aceitastes, senhora, graças à vossa cortesia, melhor do que merecem; por isso quero, sem entretanto as modificar, consigná-las em uma obra que me sobreviva alguns anos ou dias e na qual vós as encontrareis quando desejardes, sem que vos seja necessário conservá-las na memória. São de resto bem insignificantes. Aspiro apenas a que continueis a honrar-me com vossa amizade em virtude dessas mesmas qualidades que houvestes por bem descobrir em mim e que ma outorgaram. Não tenho em absoluto a pretensão de ser mais estimado morto do que vivo. O amor que tinha Tibério à fama e o levaria a preocupar-se mais com o renome póstumo do que com se mostrar agradável aos seus contemporâneos parece-me ridículo, embora encontradiço. Se fosse desses a quem o mundo deve render homenagens, contentar-me-ia com metade delas conquanto pagas adiantadamente. Gostaria de louvores imediatos que me envolvessem em uma atmosfera antes densa que extensa ou de longa duração. E que se esvaíssem por completo ao fim de minha vida, quando seus sons suaves não me penetrassem mais os ouvidos. Seria tolice, neste momento em que minhas relações com os homens ameaçam romper-se, mostrar-me a eles sob um aspecto mais favorável do que aquele que me conheceram. Considero inexistentes os bens que não pude usufruir em vida. Quero ser como sou em quaisquer circunstâncias e não apenas no papel. Empreguei toda a minha arte e meu engenho em melhorar. Não estudei com o objetivo de aprender a escrever e sim de me conhecer. Todos os meus esforços visaram a vida e pouco me incomodei com criar uma obra literária. Ambicionei ser um homem capaz tendo em vista as vantagens essenciais no presente e não com o intuito de acumular conhecimentos para deixar a meus herdeiros. Os méritos devem manifestar-se nos costumes, nas conversações habituais, no amor, nas disputas, no jogo, na cama, à mesa, na conduta dos negócios e na direção da casa; que ponham em ordem primeiramente as suas coisas, aqueles que, vestidos de trapos, escrevem belos livros. Pergunta i a um espartano se prefere ser um bom retórico a ser bom soldado, mas não o indagueis de mim, que preferiria ser bom cozinheiro se não tivesse um a meu serviço. Não me agradaria, senhora, adquirir com meus escritos a reputação de talentoso, em permanecendo um tolo sem valor humano. Ainda preferiria ser tolo igualmente nos escritos e na vida a empregar tão mal o meu possível talento. Por isso não está em meu pensamento auferir alguma honra de meus livros. Já me darei por satisfeito se não perder demasiado na aventura, pois esse retrato morto e mudo de mim mesmo não me favorece excessivamente. Não me mostra na melhor fase de minha existência e sim já decadente, sem o vigor primeiro, sem alegria e em vias de me tornar rançoso. Chego ao fundo do vaso e acho-me prestes a tocar a borra. Ademais, senhora, não ousara imiscuir-me nos mistérios dessa Medicina que goza de bom crédito de vossa parte e de tantas outras pessoas, se não fora incitado pelos próprios médicos. Creio que entre os antigos só dois, Plínio e Celso, escreveram a respeito. Se os lerdes algum dia, vereis que falam com muito mais violência do que eu. Eu belisco apenas, eles esfolam. Plínio zomba do subterfúgio dos médicos que, já sem outro expediente a seu alcance, enviam as vítimas que atormentaram com drogas inúteis, em peregrinações à cata de milagres ou a estações de águas (não vos irriteis, senhora, não se refere às águas deste lado do Garona, que vós protegeis e pertencem aos Grammont). Têm eles outra solução: para nos afastar, e assim obviar as nossas censuras, mandam-nos alhures à procura de melhor clima. Permiti-me agora que retome o fio de meus comentários e volte ao assunto que abandonei para conversar convosco. Foi Péricles, creio, que respondeu a quem lhe perguntava como estava passando: "Julgai por isto" e mostrava seus amuletos. Queria dizer, com o gesto, que ia tão mal que chegava a apelar para tais Inutilidades. Não quero afirmar que não me ocorra jamais fazer igual concessão à crença ridícula e entregar a vida aos médicos. É possível que tenha essa fraqueza, pois não me cabe prever o futuro, mas então, se alguém me vier indagar da saúde, responderei como Péricles, exibindo a mão untada de uma qualquer pomada: "Julgai por isto". Será sem dúvida sinal de doença grave. Se a impaciência e o medo me houverem dominado a ponto de me perturbar o juízo, poderão afirmar que estarei com a alma presa de forte febre. Dei-me ao trabalho de ventilar este assunto de que tão pouco entendo, a fim de fortalecer minha repulsa natural e hereditária às drogas e à Medicina, e para que essa hostilidade assumisse uma forma mais razoável e lógica, de modo que quem me veja tão rebelde às exortações e às ameaças com que me acenam quando estou doente, não atribua minha atitude à simples obstinação, ou à vaidade. Em verdade, não seria muito inteligente procurar jactar-me de uma maneira de ser que tenho em comum com meu jardineiro e meu moço de estrebaria. Não estarei assim tão ávido de originalidade que procure trocar o bem precioso da saúde, de tão grande alcance e satisfação, com uma gloríola sem consequência. E ainda que se tratasse da glória dos quatro filhos de Aimon, seria para quem pensa como eu pagá-la caro demais com três ataques de cólicas. Não, a saúde antes de tudo! Os que apreciam a medicina de nossa época, podem ter suas razões, boas, indiscutíveis; não odeio as ideias contrárias às minhas; nem sequer me aborrecem as divergências porventura existentes entre minha maneira de ver e a dos outros, nem me tornam elas incompatível com a sociedade de homens de outro sentir e opinião, pois acho que só muito raramente concordam as ideias e os temperamentos. A variedade é, efetivamente, normal na natureza, e observa-se mais ainda nos espíritos mais suscetíveis de transformações do que nos corpos. Nunca houve no mundo duas opiniões idênticas, como não há dois pelos nem dois grãos de cereal. A qualidade mais universal e comum é a diversidade. Livro 3 CAPÍTULO I DO ÚTIL E DO HONESTO Todos estão sujeitos a dizer tolices; o mal está em as enunciar com pretensão: "Este homem vai provavelmente expor-nos, com ênfase, algumas enormidades". Este segundo ponto não me diz respeito, porque não dou maior atenção às bobagens que me escapam. Felizmente para elas, pois as negaria imediatamente se devessem prejudicar-me, ainda que mui ligeiramente. Nada compro ou vendo por preço mais alto do que vale. Escrevo como falo ao primeiro indivíduo que encontro, contentando-me com dizer a verdade. Quem não há de detestar a perfídia, se o próprio Tibério recusou recorrer a ela em um momento em que lhe podia ser utilíssima? Mandaram comunicar-lhe, da Alemanha, que, se o quisesse, o desembaraçariam de Armínio pelo veneno. Era o mais poderoso inimigo dos romanos, desbaratara as tropas comandadas por Varro e se opunha sozinho à expansão do domínio de Roma naqueles territórios. Tibério respondeu que seu povo tinha por costume vingar-se abertamente de seus inimigos, de armas na mão e não à traição e de tocaia; trocava assim o útil pelo que acreditava ser honesto. Ora, direis, Tibério foi um temerário. Bem o creio, mas fatos semelhantes não são raros nas pessoas de sua condição, e o reconhecimento da virtude na boca de quem a odeia tem sua importância, principalmente quando a verdade é que a impõe. E se quem a reconhece não a pratica ele próprio, com ela procura ao menos enfeitar-se. Como quer que encaremos este nosso mundo, vemo-lo cheio de imperfeições; nada é inútil entretanto na natureza, nem mesmo as inutilidades. Nada existe que não tenha sua aplicação. Nosso ser é um aglomerado de qualidades que são ao mesmo tempo defeitos. A ambição, o ciúme, a inveja, a superstição e o desespero estão em nós e tão naturalmente alojados que até nos próprios animais se encontram. Mesmo a crueldade, esse vício antinatural, habita em nós, pois paralelamente à compaixão experimentamos uma volúpia agridoce, e doentia, ao espetáculo do sofrimento alheio. Sentem-na as próprias crianças: "É doce, durante a tempestade, contemplar os navios que lutam contra o furor das ondas". Quem extirpasse o germe dos maus sentimentos do coração do homem destruiria nele as condições essenciais à vida. Da mesma forma, em todas as administrações existem cargos necessários que são abjetos, detestáveis. Os vícios aí têm sua função, e servem para soldar os diversos elementos da sociedade, como o veneno se utiliza na conservação de nossa saúde. Se são desculpáveis, porque o interesse comum os exige, deixemos que os pratiquem os cidadãos mais enérgicos, cuja vontade de salvar o país leva ao sacrifício da honra e da consciência, como levava outrora heróis a sacrificarem a vida. Nós, mais fracos, fiquemos com os papéis mais fáceis e menos arriscados. O interesse público exige que se traia e mate; abdiquemos em benefício de indivíduos mais obedientes e acomodatícios. Vi por vezes, entristecido, juízes provocarem a confissão de criminosos mediante promessas de perdão, empregando para convencê-los toda espécie de malandragens. Teria preferido que a justiça usasse outros meios que não esses igualmente propugnados por Platão. Tal justiça segue caminho errado e prejudica-se mais com tais ardis do que com a crítica de seus censores. Respondi há tempos, a alguém, que teria grandes escrúpulos em trair os interesses do príncipe para servir um cidadão, mas que não os teria menores em trair os de um cidadão em benefício do príncipe. Não somente detesto enganar, repugna-me também que os outros se enganem a meu respeito. Não quero, portanto, dar-lhes oportunidade ou razão para que se iludam. Por isso, nas negociações de que fui encarregado junto a certos príncipes, acerca das divisões, de matizes tão diversos, que hoje nos atormentam, tive sempre o cuidado de evitar que se enganassem a meu respeito e me tomassem pelo que não sou. As pessoas da profissão- descobrem-se o menos que podem; apresentam-se fingindo-se neutros e com ideias tão próximas quanto possível das de seus interlocutores. Eu não escondo minhas opiniões, por duras que sejam, e mostro-me como sou: um intermediário ingênuo e inexperiente, antes disposto a fracassar do que a enganar. No entanto fui até agora tão feliz nesse papel, dependente sem dúvida e em grande parte da sorte, que poucos homens intermediários terão sido tão bem acolhidos e acatados. Tenho um modo franco de tratar com as pessoas, o que faz que desde os primeiros momentos lhes conquiste a confiança. A franqueza e a verdade são ainda, apesar dos tempos, muito recomendáveis. Além disso, ninguém suspeita dos que negociam sem interesse pessoal, nem se formaliza com a liberdade de palavras de quem pode responder, como Hipérides, aos atenienses que se queixavam de sua franqueza: "Não deveis dar importância à minha liberdade de linguagem; cabe-vos verificar apenas se a uso em proveito próprio". Meu falar franco poupou-me a suspeita de dissimulação; primeiramente porque me exprimo com energia, não hesitando nunca acerca do que me cumpre dizer, por severo e duro que seja (longe de meus interlocutores não me houvera conduzido diferentemente); em segundo lugar por causa da ingenuidade e da indiferença aparentes que revelo. No que faço, vejo apenas o que me cabe fazer, e não medito de antemão sobre as consequências e resultados que me possam atingir. Meus atos visam a determinado objetivo: acerte ou não, terei feito o possível. Não tenho sentimento de ódio nem de profunda afeição pelos grandes; minha vontade não é influenciada nem pelo mau tratamento que me reservem nem pelas obrigações pessoais por ventura contraídas. Dedico a nossos reis a fidelidade que lhes devo como cidadão; não os procuro nem deles fujo por interesse pessoal. Quanto à causa que a maioria apoia e me parece justa, aplaudo-a com moderação. Ela não me apaixona. Não lhe hipoteco toda a minha razão e a minha alma. A cólera e o ódio nada têm a ver com a justiça; são paixões a que somente podem entregar-se aqueles que não sabem obedecer serenamente à razão e ao dever, porque "só quem não domina sua razão se abandona aos impulsos desordenados da alma. Todas as intenções legítimas e justas são por si mesmas aceitáveis e moderadas, sem o que se tornariam subversivas e ilegítimas. Por isso ando por toda parte de cabeça erguida, rosto e coração abertos. E, em verdade - não temo confessa-lo -, em caso de necessidade acenderei de bom grado, como a velhinha do ditado, uma vela a São Miguel e outra ao dragão. E seguirei o partido do direito até a fogueira exclusive. Que Montaigne se arruíne com a ruína do país, se necessário; mas, se não for preciso, muito agradecerei ao destino por salvá-lo: e, enquanto meu dever mo permite, vou procurando poupa-lo, Não se salvou Ático, que se ligara ao partido da justiça, e fora derrotado, graças à sua moderação, nesse cataclismo que se abateu sobre o mundo e provocou tantas ruínas? Semelhante atitude, podem-na assumir mais facilmente os que, como ele, não ocupam cargos públicos. Sou aliás de opinião que em tempestades como essas convém não alimentar ambições e não se comprometer pessoalmente. Não acho certo nem honesto, entretanto, quando as agitações subvertem o país e o dividem, permanecer-se hesitante entre os partidos, sem manifestar preferência ou simpatia nem por um nem por outro: "Não significa isso seguir um caminho intermediário, significa não seguir nenhum; significa aguardar os acontecimentos para aderir a quem se beneficie com a vitória". Isso pode ser aceitável quando se trata dos negócios alheios: Gélon, tirano de Siracusa, indeciso acerca do partido a tomar na guerra entre os bárbaros e os gregos mantinha em Delfos uma embaixada cheia de presentes, incumbida de observar de que lado penderia o prato da balança para, no momento oportuno, conciliar as boas graças do vencedor. Em relação às coisas do próprio país, fora ato de felonia agir dessa maneira. É indiscutível tomar partido, deliberadamente; entretanto, não se declarar quando não se tem cargo nem comando, parece-me então mais desculpável (embora não seja meu caso) do que nas guerras contra os estrangeiros, nas quais as nossas leis permitem que não participemos. Contudo, mesmo os que se comprometem ativamente nas lutas intestinas podem fazê-lo com moderação, de modo que a borrasca não os atinja. Não foi o que ocorreu com o Bispo de Orléans, Sr. de Morvilliers? Entre os que trabalham com ardor pelo triunfo de sua causa, conheço muitos, de gênio e costumes tão ponderados, que espero ver sobreviverem, quaisquer que sejam os resultados. Só aos reis cabe lutar com os reis, e acho ridículos esses indivíduos que se metem no que não é de sua alçada. Não é querelar-se pessoalmente com um príncipe, marchar contra ele corajosa e abertamente, se assim o exigem a honra e o dever; em tal caso, mesmo que não nos aprecie, ele nos estima; e quando o fazemos em defesa das leis e da ordem, mesmo os que a perturbam por motivos particulares desculpam quem as defende; e respeitam-no. Mas não devemos denominar "dever", como o fazemos diariamente, esse encarniçamento e essa rudez que engendram as paixões e os interesses, nem devemos considerar corajosa uma conduta prenhe de traições e crueldades. Os que o fazem, chamam zelo a seus apetites de violência; não é a causa que os guia, mas sim o interesse; atiçam a guerra pela guerra e não porque seja justa. Nada impede que inimigos leais se conduzam de maneira sensata. Tratemos todos com igual moderação, senão com idêntica afeição pois esta pode realmente variar - e não nos dediquemos a ninguém a ponto de lhe dar o direito de tudo exigir de nós. E contentemo-nos também com a boa vontade discreta de uns e de outros; procuremos navegar nessas águas turvas sem, entretanto, nelas querer pescar. Quanto a se oferecer com paixão a uns e a outros, é coisa mais impudente ainda do que inconsciente. Pois não pode quem nos acolhe, ainda que não o demonstre, confiar inteiramente em nós. Sabe muito bem que assim como traímos alguém para aderir a ele, também o trairemos oportunamente. Há de considerar-nos detestáveis, embora utilize nossa deslealdade em benefício próprio. As pessoas de duas caras são úteis pelo que trazem, mas é preciso estar de atalaia para que levem o menos possível. Nada digo a um o que não possa dizer a outro, mudando tão somente de tom; só lhes comunico as coisas indiferentes ou conhecidas, ou que são úteis a ambos. Nada me leva a mentir. Se algo me é confiado em segredo, não calo-o religiosamente, mas só aceito que me digam o mínimo necessário. Os segredos dos príncipes são incômodos para quem não quer servir-se deles. Por isso, em geral, ofereço-lhes o seguinte: que me confiem pouca coisa mas que se fiem em tudo o que lhes traga. Sempre vim a saber mais do que desejara. Uma linguagem franca incita os outros a procederem de igual modo. É como o vinho e o amor. A meu ver, Filípides respondeu com sabedoria ao Rei Lisímaco que lhe perguntara o que queria saber da situação: "o que quiseres, conquanto não sejam segredos teus". Há quem se revolte quando lhe escondem o fundo da questão que lhe cumpre tratar, ou quando não lhe revelam algum sentido especial; eu, ao contrário, gosto que me comuniquem exatamente o necessário ao desempenho da missão, pois receio que, em sabendo mais, seja forçado a controlar-me. Se devo contribuir para enganar alguém, que minha consciência, ao menos, não se perturbe. Não quero que me considerem tão absolutamente leal que me obriguem a participar de uma traição. É desculpável que não façamos pelos outros aquilo que não estamos dispostos a fazer por nós mesmos. Há príncipes que não aceitam homens assim e desprezam os servidores que estabelecem limites à obediência. A esses, digo-lhes desde logo até que ponto lhes posso servir, pois entendo não ser escravo senão da razão, e ainda assim maio consigo. Quanto a eles, erram em exigir tal submissão de um homem independente, impondo-lhe obrigações como fariam a um escravo, ou a alguém cuja fortuna à deles se ligasse de maneira absoluta. Pouparam-me as leis graves dificuldades: indicaram-me o partido que me cumpria tomar, apontaram-me o meu chefe; quaisquer outras razões, por elevadas que sejam, cedem lugar àquelas e se tornam caducas; eis por que, ainda que meus sentimentos me impelissem para o partido contrário, a ele não me filiaria imediatamente. Nossa vontade e nossos desejos só a eles mesmos obedecem, mas nossos atos devem atentar para as leis que regulam e resguardam a ordem pública. Minha maneira de agir é algo diferente da habitual e não teria possibilidade de grandes êxitos nem de durar muito; a própria inocência não poderia, em nossa época, dispensar a dissimulação, nem negociar sem mentir. Daí não serem os cargos públicos do meu agrado; e ao que a esse respeito exige de mim a minha profissão, atendo do modo menos oficial possível. Quando jovem, enfiaram-me na vida pública até as orelhas; meu destino era fazer carreira, mas desde cedo me desvencilhei dos encargos. Posteriormente evitei, mais de uma vez, meter-me novamente nisso; só de raro em raro aceitei alguma missão, sem de resto a desejar. Sempre fugi à ambição, mas, embora não o fizesse como os remadores que avançam de costas para a meta, tive a meu alcance várias oportunidades, e, se consegui evitar maiores compromissos, devo-o antes à sorte do que à resolução, pois há na vida pública caminhos que me agradariam bastante e diante de uma boa situação na sociedade talvez não desse mais ouvidos à voz da razão. Os que, contra o que afirmo, vão dizendo que essa franqueza, essa simplicidade e essa ingenuidade que apregoo não passam, no fundo, de artifício e esperteza; que se trata mais de prudência que de bondade, mais de habilidade que de tendência natural, mais de bom senso que de sorte, muito me honram. Emprestam-me mais astúcia do que me caberia reivindicar; e daria ganho de causa a quem me seguisse e vigiasse caso não verificasse que não há regra capaz de regular gestos e atitudes tão naturais, vem de manter uma independência e inflexibilidade tão constantes por caminhos tão diversos. E se não conviesse em que todo o seu engenho e cuidado não o conseguiriam tampouco. O caminho da verdade é um só, e simples; o que nosso interesse pessoal e os negócios alheios nos obrigam a seguir é tortuoso, desigual, acidentado. Vi muitas vezes quem se utilizasse artificialmente dessas qualidades, nunca porém com grande êxito. E sempre me lembrei, em tais circunstâncias, do asno de Esopo, que querendo rivalizar com o cão pôs alegremente as patas sobre os ombros do dono. Mas, ao passo que o cão era recompensado com carinhos, recebeu o asno boas bastonadas: "O que melhor vai a cada um é o que lhe é natural". Mas seria desconhecer a realidade não dar à malandragem o mérito que lhe cabe; sei que não raro presta serviços e é necessária em mais de uma ocasião. Há defeitos lícitos como há boas ações ilícitas. A justiça em si, em seu estado natural, é universal e tem regras diferentes e mais elevadas do que essa justiça especial, nacional e condicionada às necessidades dos governos: "Não temos modelo sólido e positivo do verdadeiro direito e da justiça perfeita; temos apenas uma imagem dela, uma sombra". O sábio Dandamis, ouvindo o relato das vidas de Sócrates, Pitágoras e Diógenes julgava-os grandes homens, mas demasiado escravos das leis que a verdadeira justiça não pode aceitar e apoiar, senão abdicando a rigidez de seus princípios essenciais, pois não somente as leis permitem atos condenáveis como também nos incitam a cometê-los: Há crimes autorizados pelos editos do senado e por plebiscitos. Quanto a mim, emprego a linguagem comum, distinguindo as coisas úteis das honestas, e qualificando como desonestos e indecentes certos atos naturais, não apenas úteis mas necessários. Voltemos à traição. Dois pretendentes disputavam o reino da Trácia. Proibiu-os o imperador de o reivindicarem pelas armas. Um deles então, fingindo desejar um acordo amigável, convidou seu adversário para uma festa, e o mandou prender e matar. Ordenava a justiça que os romanos punissem o malfeitor. Mas era difícil recorrer às vias legais e resolveram conseguir, pela traição, o que legitimamente não se fizera sem correr o risco de uma guerra. E o que não puderam realizar honestamente, obtiveram-no pela manhã, através de um tal Pompônio Flaco, o qual, com promessas e lisonjas, atraiu o pretendente assassino, e, em lugar de honras e favores, remeteu-o preso para Roma. Um traidor é por outro traído, o que não é comum, entretanto, porque são os traidores em geral muito desconfiados e dificilmente se surpreendem com subterfúgios que estão habituados a empregar. Comprova-o a fatal experiência que acabamos de ter. Esse papel de Pompônio Flaco, desempenhe-o quem quiser, e muitos o hão de querer. Minha palavra e a confiança que possa inspirar pertencem, como tudo o que há em mim, à minha comunidade; não admito que duvidem disso, mas assim como responderia a quem me mandasse tomar a direção do palácio da justiça: "não entendo do riscado"; assim como diria a quem determinasse que assumisse a chefia dos sapadores: "fui feito para exercer cargo mais elevado"; a quem quisesse, em vista de uma tarefa de certa importância, empregar-me em mentir e trair, ainda que sem assassinar ou envenenar, observaria imediatamente: "prefiro as galeras". Há sempre possibilidade, com efeito, para um homem de honra, de falar como os lacedemônios a Antípater (que acabara de vencê-los): "Podereis impor-nos as penas que quiserdes, tarefas que nos esmaguem e prejudiquem, mas perdereis vosso tempo exigindo de nós coisas vergonhosas e desonestas". Devemos jurar a nós mesmos o que os reis do Egito exigiam de seus juízes: que não se desviariam nunca do que lhes ordenasse a consciência, ainda que recebessem instruções do próprio soberano. A tais tarefas prende-se um estigma evidente; quem no-las impõe já nos julga de antemão. Impondo-nos o encargo, impõe-nos um castigo. E nossos próprios interesses sofrerão com isso na medida em que lucrarão os da coletividade. Quanto maior eficiência demonstrarmos em nossa ação, maior prejuízo pessoal tiraremos dela, não sendo de espantar que ainda nos arruíne quem nos haja atribuído a tarefa; e o julgarão justo, por certo. Se casos há em que se possa desculpar a traição, dirão respeito sem dúvida à que se entrega em punir um traidor. Vemos muitas vezes a perfídia punida por aqueles a quem ela beneficiara. Todos conhecem a sentença de Fabrício contra o médico de Pirro. Ocorre também que quem a ordena castigue ele próprio o executante, como que lhe denegando crédito e poder, e profligando tão passiva e covarde obediência. Jarolpec, duque da Rússia, obtivera de um fidalgo húngaro que traísse Boleslau, rei da Polônia, adormecendo-o ou dando aos russos os meios de lhe causar graves prejuízos. O traidor agiu com habilidade, conseguindo granjear a amizade do rei e tornando-se seu conselheiro e confidente. Graças à confiança assim alcançada, aproveitou-se oportunamente da ausência de seu senhor para entregar ao inimigo a rica cidade de Vasilícia, a qual foi inteiramente saqueada e incendiada, tendo tido morte violenta seus habitantes de ambos os sexos e de qualquer idade, bem como numerosos fidalgos das vizinhanças, que o húngaro reunira para o fim visado. Jarolpec, depois de se vingar e aplacar uma justa cólera (Boleslau fizera o mesmo com ele), já sem paixão e encarando o feito com serenidade, sentiu tamanho remorso e vergonha que mandou vazar os olhos, cortar a língua e as partes genitais do traidor. Antígono persuadira os argiraspides a lhe entregarem Êumenes, seu chefe. Mal acabou de executá-lo, arvorou-se em agente da justiça divina a fim de punir tão detestável velhaco: escreveu ao governador da província intimando-o a prender os que haviam cometido a traição e a extermina-los de qualquer maneira. E nenhum deles em verdade jamais reviu a Macedônia. Julgava-os, assim, tanto mais merecedores de castigo quanto melhor o haviam servido. O escravo que revelou o esconderijo de P. Sulpício, seu amo, foi libertado por Sila de acordo com a promessa feita, mas este, a fim de dar uma satisfação à opinião pública, mandou que, embora livre, o jogassem do alto da Rocha Tarpéia. Clóvis, um de nossos reis, em lugar das armas de ouro que prometera aos traidores de Canacre, mandou enforcá-los. Fizeram-no, pendurando-lhes ao pescoço uma bolsa com a recompensa do crime. Assim, embora cumprindo fielmente sua promessa, dava satisfação à opinião soberana do povo. Maomé, desejoso de se desfazer do irmão, que aspirava igualmente ao trono, empregou um de seus oficiais, o qual afogou a vítima, obrigando-a a ingurgitar enorme quantidade de água. Cometido o crime, Maomé entregou o assassino à mãe do morto (eram irmãos somente por parte de pai). Esta, em sua presença, abriu o peito do criminoso, arrancando-lhe o coração que jogou, ainda palpitante, aos cães. E reconfortante, mesmo para os que só alimentam maus sentimentos, poder ligar à ação abominável, cujo fruto colheram, um traço de bondade e justiça a fim de aliviar a consciência do peso de sua cumplicidade; tanto mais quanto, sentindo nos executantes uma censura possível, procuram abafa-la e apagar com a morte a prova de sua própria participação. Supondo ainda que se recompense o traidor, quem o faz não deixa de o julgar execrável e maldito, e mais miserável do que o julgaria o próprio traído, pois sabe perfeitamente o que vale tal indivíduo, e, se o emprega, encara-o como esses pobres homens de que se vale a justiça nas penas capitais e que são tão úteis quão desprezíveis. Além do que têm de vil, essas missões nos desonram. A filha de Sejano que, segundo a legislação romana, não podia ser executada por ser ainda virgem, foi deflorada antes pelo carrasco; atendia-se desse modo à letra da lei. A profissão que esse homem exercia exigiu dele, em semelhante circunstância, que emporcalhasse a alma. Amurat I, no intuito de agravar a pena imposta a seus súditos que tinham sustentado a rebelião de seu filho e se haviam tornado cúmplices da tentativa de parricídio, ordenou que os mais próximos parentes dos condenados auxiliassem pessoalmente a execução. Alguns, o que acho muito digno, preferiram ser considerados cúmplices de um delito cometido por outrem a se tornarem culpados da vileza de justiçar os próprios filhos. Em algumas choupanas tomadas de assalto em nossas guerras civis, tive a oportunidade de ver indivíduos que, para salvar a pele, concordavam em enforcar os companheiros; seu destino pareceu-me bem mais lamentável que o dos enforcados. Dizem que Witold, príncipe da Lituânia, decretou que todos os condenados à morte se matassem a si próprios, pois não achava justo obrigar um inocente a cometer semelhante crime. O príncipe que por uma circunstância qualquer ou acidente inopinado se vê forçado a faltar à sua palavra ou a desprezar o seu dever, deve encarar tal necessidade como uma prova imposta por Deus. Não se trata então de um defeito; sua razão vê-se constrangida a ceder diante de outra mais poderosa; mas trata-se de uma desgraça. A alguém que indagava como remediar a isso, respondi: "É impossível, se realmente o príncipe se encontra nessa situação" (que não procure pretextos para ser perjuro): precisa fazê-lo, mas se o faz sem que isso lhe custe, é sinal de que tem a consciência carcomida. Se surgisse alguém, tão escrupuloso que nenhuma necessidade lhe parecesse justificar o emprego de tão violento remédio, eu o admiraria ainda mais, pois não é possível perder um reino de maneira mais desculpável e honrosa. Não podemos tudo, por isso é preciso não raro entregar aos céus o governo de nosso barco, porque a última possibilidade de salvação está na proteção divina. Haverá necessidade que mais justifique o apelo de um príncipe? Haverá coisa mais impossível para ele do que aquilo que só pode realizar a expensas de sua honra? Esta deve ser-lhe mais cara do que a própria vida e a vida de seu povo. Portanto, se cruzar os braços e invocar a bondade divina, sem dúvida se verá atendido, em sendo sua causa justa. Mas tal exemplo é por certo perigoso porque faz exceção às regras naturais. É normal, pois, que ceda quando preciso, mas que se modere então. Nenhum interesse particular mas tão somente o interesse público deve levar-nos a violentar assim nossa consciência; assim mesmo quando perfeitamente definido. As lágrimas de Timoleão por ter morto o tirano, seu irmão, justificaram-no perante o povo; feria-lhe a consciência ter de atender ao interesse coletivo a expensas de sua honra e retidão. O próprio Senado, que assim recuperava a liberdade, não ousou pronunciar-se acerca de um gesto de tão grande importância. Os siracusanos chegaram a propósito para solicitar a proteção dos coríntios e o envio de um chefe capaz de devolver à cidade seu antigo esplendor, purgando a Sicília da opressão de vários tiranetes. O Senado mandou-lhes Timoleão e propôs-lhe o seguinte trato: se se saísse bem da empresa, a sentença ser-lhe-ia favorável, levando-se em conta apenas a libertação do país; se não tivesse êxito, julgá-lo-iam como assassino do irmão. Tão singular decisão explica-se pela gravidade do ato e o perigo de semelhante precedente. Razão tiveram os coríntios de não confiar de imediato em seu próprio julgamento, e de aguardar novos motivos para justificar a sentença final. A conduta de Timoleão mostrou bem depressa o que se devia pensar dele, pois foi muito digna sob todos os aspectos. A felicidade com que se houve parecia ter-lhe sido outorgada pelos deuses favoráveis à sua absolvição. O fim visado por Timoleão desculpa-lhe o ato na medida em que pode ser desculpado. Mas o benefício que auferiu o tesouro, e foi a razão de agir do Senado na circunstância que vou relatar, não bastaria para absolvê-lo da injustiça que cometeu em outra história menos limpa. Certas cidades haviam resgatado sua liberdade, e isso fora ratificado pelo Senado. Com a morte de Sila, porém, revogou-se a decisão, ficando elas novamente sujeitas a contribuições e taxas e não lhes sendo devolvida a soma despendida com o resgate. As guerras civis produzem com frequência exemplos como esses. Castigamos os cidadãos por terem acreditado em nós quando éramos diferentes do que agora somos; o magistrado obrigado a mudar de orientação aplica a pena a quem nada tem com isso; o professor açoita o aluno por ter sido dócil demais, e o guia maltrata o cego. Linda imagem da justiça! Há regras falsas e muito elásticas na filosofia. O exemplo seguinte, que nos propõem, como um caso em que o interesse particular prima sobre a palavra empenhada, não me parece com suficiente autoridade, dadas as circunstâncias a que se prende. Suponhamos que bandidos se apoderem de nós e nos devolvam a liberdade depois de nos obrigar a jurar que lhes pagaremos determinada importância. Deve-se sustentar que, uma vez libertado, um homem de bem se ache dispensado de cumprir sua promessa? Não. O que o temor me fez aceitar, devo continuar a aceitá-lo quando nada mais tiver a temer. E, ainda que esse temor me houvesse constrangido a dizer o que minha vontade não desejava, devo cumprir a palavra empenhada. Quando me ocorreu, ocasionalmente, ir além de meu pensamento, sempre tive o maior escrúpulo em não me desmentir. De outro modo, a pouco e pouco, acabaríamos por abolir quaisquer direitos de terceiros, baseados em promessas e juramentos; "como se a violência pudesse influir na decisão de um homem de caráter". Só no caso de havermos prometido algo injusto e mau em si, é que o interesse particular pode ser invocado como desculpa, pois os direitos da virtude precisam sobrepor-se a quaisquer outros. Coloquei Epaminondas entre os homens mais eminentes; não volto atrás, pois ergueu muito alto o que considerava seu dever pessoal. Jamais matou um vencido; nunca, ainda que fosse para libertar seu país, houvera eliminado um tirano ou seus cúmplices sem ser pelos meios legais; e julgava perverso quem não poupasse o amigo porventura militando nas fileiras inimigas. Rica era sua alma, pois nas mais violentas e rudes ações humanas permanecia bom e generoso; e isso nas condições mais delicadas previstas pela filosofia. Essa coragem tão grande, essa tenacidade e resistência à dor, à morte, à pobreza, foi por arte ou temperamento que as alcançou, agregando-lhes a doçura e a bondade? Coberto de sangue, obstinado sob os golpes, enfrenta e vence uma nação que ninguém vencera; e em plena batalha evita ferir o amigo! Senhor tão indiscutível da guerra que a forçava a inclinar-se ante sua bondade, e isso em meio aos maiores horrores, na excitação dos combates, e do estrondo das armas! É milagroso introduzir em ações dessa ordem uma imagem da justiça e somente pelo rigor de seus princípios pôde Epaminondas associá-las à doçura e à prática dos bons costumes, da tolerância e da mais pura inocência. Enquanto uns afirmam que "os tratados nada mais valem quando se pega em armas", e outros ainda que o "ruído das armas os impede de ouvir a voz das leis", Epaminondas ouve até a da simples cortesia. Aprendera a sacrificar às musas a caminho do combate, a fim de atenuar pela doçura e alegria que elas inspiram a fúria e os rigores do guerreiro. Aprendamos, pois, com tão nobre modelo, a pensar que, mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitido e que o interesse geral não deve tudo reivindicar em detrimento do interesse particular: "O direito privado não deve ser olvidado em meio às dissensões públicas". "Não há força que nos possa levar a infringir os direitos da amizade". Há coisas que um homem de bem não faz nem em defesa do rei, nem em defesa da ordem e da lei, "pois a pátria não destrói todos os deveres, e a ela própria convém ter cidadãos que honrem seus pais". Parece-me oportuno apregoa-lo em nosso tempo. Não nos agradam os princípios exclusivistas; não é necessário que encouracemos nossas almas como fazemos com nosso corpo; e que nossas penas molhem na tinta e não no sangue. Se a maior virtude consiste em desprezar a amizade e as nossas obrigações em faltar à palavra e ignorar os laços de parentesco em benefício do bem comum e em obediência à lei, há de justificar-lhe a ausência o fato de não a ter assim considerado o grande Epaminondas. Abomino a violência daquela alma em delírio que clamava: "Enquanto a espada estiver desembainhada expulsai a piedade de vossos corações; que a própria presença de vossos pais nas fileiras inimigas não vos atemorize: golpeai as cabeças veneráveis". Soneguemos aos perversos, aos sanguinários e traidores, esse pretexto para se entregarem a seus instintos; desprezemos essa justiça excessiva e atentemos para exemplos mais humanos. A esse respeito a época e o exemplo podem muito. Na guerra contra Cina, um soldado de Pompeu matou, sem querer, o irmão que combatia nas fileiras inimigas. E suicidou-se em seguida, de vergonha e desespero. Entretanto anos depois, em outra guerra civil, um soldado que matara o irmão pediu uma recompensa a seus chefes. É um erro julgar a beleza e a grandeza de uma ação pela sua utilidade e imaginar que devemos fazer e considerar honesto tudo o que é útil: "Nem todas as coisas convêm igualmente a todos". Vejamos a mais necessária e útil ao gênero humano: o casamento. Não acham os santos mais honesto evitá-lo, reprovando assim o mais respeitável dever dos homens? Pela mesma razão mandamos para o haras, como reprodutores, os animais que menos apreciamos. CAPÍTULO II DO ARREPENDIMENTO Outros autores têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E o que assim apresento é bem mal conformado. Se o tivesse de refazer, faria-o sem dúvida bem diferente. Acontece que já está feito. Os traços deste seu retrato são fiéis, embora variem e se diversifiquem. O mundo é movimento; tudo nele muda continuadamente; a terra, as montanhas do Cáucaso, as pirâmides do Egito, tudo participa do movimento geral e do seu próprio; e a imobilidade mesma não passa de um movimento menos acentuado. Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural. Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias ideias possivelmente já não seriam as mesmas. Observo e anoto os diversos acidentes que ocorrem dentro de mim e as concepções mais ou menos fugidias que minha imaginação engendra, as quais são por vezes contraditórias ou porque tenha mudado eu, ou porque o objeto da observação apareça dentro de um quadro e de uma luz diferentes. Daí acontecer-me, não raro, cair em contradição, embora, como diz Dêmades, não deixe de ser autêntico. Se minha alma pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente, como um homem seguro de si. Mas ela não para e se agita sempre à procura do caminho certo. Apresento uma vida das mais vulgares, que nada tem de especial. A vida íntima do homem do povo é de resto um assunto filosófico e moral tão interessante quanto a do indivíduo mais brilhante; deparamos em qualquer homem com o Homem. Tratam os escritores em geral de assuntos estranhos à sua personalidade; fugindo à regra - e é a primeira vez que isso se verifica - falo de mim mesmo, de Michel de Montaigne, e não do gramático, poeta ou jurisconsulto, mas do homem. Se o mundo se queixar de que só fale de mim, eu me queixarei de que ele não pense somente em si. Mas será razoável, vivendo apenas por mim, pretender iniciar o público no conhecimento de mim mesmo? Será razoável igualmente apresentar-lhe, sem esses artifícios que ele tanto aprecia, simples efeitos de uma natureza bem pouco original? Escrever um livro assim não será querer levantar um muro sem pedras ou empreender qualquer tarefa sem o imprescindível talento? É a arte que ordena as fantasias da música; as minhas, devo-as ao acaso. Tenho contudo a meu favor conhecer a fundo o meu assunto, e melhor do que ninguém, pois ninguém penetrou melhor o seu objetivo nem atentou mais seriamente para as suas decorrências. Para levar a cabo tal trabalho, não preciso senão de sinceridade; e essa qualidade é pura e total nesta obra. Digo a verdade, não tão cruamente quanto desejara, mas na medida de minhas forças e estas, nesse sentido, vão aumentando com a idade, porque observei que às pessoas mais velhas se concede maior liberdade de linguagem. Não há perigo de que o artesão e sua obra se contradigam, nem portanto que me objetem: "como pode ter sido escrito por tão pobre espírito uma obra tão erudita?" Quando a companhia de alguém é vulgar e sua obra valiosa, deduz-se que não é de sua autoria. Um sábio não é sábio em tudo, mas o homem capaz o é, inclusive na sua ignorância. Eu e meu livro estamos bem aparelhados. Em outros casos, pode-se apreciar a obra e não gostar do autor; no meu caso, não. Quem julgar uma coisa sem levar em conta a outra, há de prejudicar-se a si próprio mais do que a mim, e quem julgar com conhecimento de causa há de achar-se satisfeito, ao que espero. Já me sentirei muito feliz se obtiver a aprovação pública da gente de bom senso, a qual admitirá sem dúvida que eu fora capaz de tirar proveito da ciência, se tivesse maiores conhecimentos; e que é lamentável a fragilidade de minha memória. Expliquemos aqui o que repito constantemente: só de raro em raro me arrependo, e minha consciência contenta-se com seu próprio testemunho, não o de uma consciência de anjo ou de animal, mas o de uma consciência humana. A isso acrescentarei o que também repito sempre: que não se trata aqui de simples palavrório e sim de um ato de humildade completa e absoluta: "o que digo provém de alguém que não sabe e procura; e como conclusão atenho-me simplesmente às ideias comuns e legítimas. Não ensino, conto". Não há vício real que não nos ofenda e não dê azo a um julgamento sadio. Os inconvenientes do vício são, em verdade, tão visíveis que talvez tenham razão os que afirmam resultar ele da estupidez e da ignorância, sendo difícil imaginar que se possa conhecê-lo sem o detestar. A maldade ressorve a maior parte de seu próprio veneno e se envenena a si mesma. O vício acarreta o remorso, o qual está para a alma como a úlcera para a carne, pois faz que se coce alguém e se fira, sem assar. A razão apaga todas as tristezas, todas as dores, ao passo que alimenta as que provêm do remorso, o qual é tanto mais agudo quanto nasce dentro de nós, assim como o frio e o calor da febre nos são mais penosos do que os que nos vêm de fora. Chamo vício (segundo o grau, entretanto), não somente ao que a natureza e a razão condenam, mas ainda ao que, certo ou erroneamente, o homem assim o qualificou quando as leis e os costumes o ratificaram. Tudo o que é bom satisfaz uma natureza de escol; fazer o bem traz sempre uma satisfação interior reconfortante e inspira essa generosa altivez que acompanha a consciência limpa. Uma alma que se mostra corajosa no vício, ainda que segura de si, não alcança jamais a satisfação. Não é pequeno o contentamento que sentimos em saber que não estamos contagiados por um século tão contaminado. Reconforta dizer: "quem mergulhasse no fundo de minha alma não me acharia culpado, até o presente, de ter afligido alguém, ou o arruinado, nem tampouco de haver atentado publicamente contra as leis, ou contribuído para fazer que prevalecessem novidades, ou participado das perturbações da ordem, ou faltado à palavra dada. E, embora a licença da época o haja permitido e ensinado, não pus a mão nem nos bens nem na bolsa de nenhum francês. Vivi da minha, tanto na paz como na guerra, e nunca empreguei ninguém sem lhe pagar o trabalho". Tais testemunhos de boa consciência agradam; e essa satisfação íntima, única recompensa que nunca falha, é de grande importância. Buscar na aprovação alheia recompensa para as ações alheias, é escolher base demasiado incerta e mal definida, principalmente em uma época tão corrupta e ignorante como a nossa, em que a estima que nos dedica a massa é injuriosa e na qual não sabemos em quem confiar para julgar o mérito das coisas. Deus me preserve de ser um homem de bem como esses que eu vejo diariamente assim qualificados! "Os vícios de outrora tornaram-se os costumes de hoje."! Alguns amigos empreenderam por vezes corrigir-me e criticar-me, ou espontaneamente ou a pedido meu, porque é um serviço, esse, que só a amizade verdadeira pode prestar. Acolhendo, embora, essas críticas com cortesia e gratidão, posso garantir que encontrei tão pouca verdade em seus reparos quanto em seus louvores; e, em os ouvindo, por certo me houvera prejudicado mais do que beneficiado. Nós, que não vivemos uma existência pública, temos necessidade de um juiz interior que julgue nossos atos e nos anime ou castigue. Para julgar os meus, tenho leis e tribunal próprios, a que recorro. Acontece-me modificar meus atos de acordo com o julgamento alheio, mas só atendo na realidade a meu próprio juízo. Só nós mesmos sabemos se somos covardes e cruéis, ou leais e religiosos; não nos veem os outros, tão somente nos adivinham de acordo com conjeturas duvidosas. Não é a nossa natureza real que percebem, e sim a aparência que, mediante artifícios, conseguimos exibir. Atentemos portanto unicamente para a nossa própria opinião: Usai vosso julgamento... o que pesa é a consciência que temos do vício e da virtude. O resto nada significa. Dizem que o arrependimento acompanha de perto o erro; isso não me parece dizer respeito ao que se elege domicílio em nós. Podemos condenar e arrenegar os vícios acidentais a que nos impeliram as paixões; mas os que pelo hábito ou resolução se incrustaram em nós não estão sujeitos a arrependimento. Este não passa então de uma falha da vontade, de uma revolta ocasional de nosso espírito. Pois até da virtude passada alguém se arrependeu: Ah, por que não tive outrora a experiência de hoje! Por que meu rosto não conservou o buço da juventude! Deliciosa é a vida de quem obedece a regra, mesmo na intimidade. Todos podem fazer-se comediantes e representar o papel de um personagem honesto. Mas dentro de nós, onde somos senhores, onde tudo permanece secreto, é difícil não nos afastarmos da regra. E ser ponderado em assunto que não suporta a interferência alheia, é aproximar-se da perfeição. Nesse espírito foi que Bias esboçou o panorama de uma família modelo, em que "o chefe é por dentro, graças à sua virtude, o que é por fora por medo da lei e da opinião pública"; e merece ser referida a observação de Lúcio Druso respondendo aos operários que lhe propunham abrigar sua residência contra a curiosidade dos vizinhos mediante três mil escudos: "dar-lhes-ei seis mil se conseguirem que todos vejam o que nela ocorre". Agesilau tinha um hábito que depunha a seu favor: quando em viagem, alojava-se nos templos, a fim de que o povo se mantivesse a par de seus gestos e feitos. Há quem passe aos olhos do mundo por ter realizado milagres, sem que a mulher ou o criado o tenham percebido. Poucos homens suscitaram a admiração de seus lacaios; ninguém é profeta em sua casa, nem mesmo em seu país, dizem as lições da História. Assim ocorre com as coisas sem importância, e por insignificante que seja o que acontece comigo, o mesmo se verifica com os grandes. Na minha província de Gasconha acham estranho que me imprimam. E quanto mais longe habitam os que ouvem falar em mim, mais me apreciam. Na Guyenne devo pagar meus impressores, alhures eles é que me pagam. Por esse motivo muitos que em vida ficam ignorados esperam granjear reputação depois de mortos. Prefiro ter menos êxito póstumo, e não me interesso pelo mundo senão na medida em que tiro algum proveito. Aliás considero que estamos quites. Há quem, acompanhado pomposamente até a sua casa por um povo entusiasmado, de volta de alguma cerimônia pública, só encontre, ao despir a toga, mesquinharias e tormentos. E cai de tanto mais alto quanto mais bela a festa. E mesmo que os atos humildes da vida privada se ordenassem admiravelmente, fora preciso um juízo penetrante e particularmente lúcido para constatá-lo, pois a ordem é uma virtude sem brilho e que não atrai a atenção. Tomar de assalto uma trincheira, desempenhar uma missão, governar um povo, são ações de realce; admoestar, rir, vender, comprar, amar, odiar, conversar com os seus e consigo mesmo, docemente, razoavelmente, sem relaxar nem se contradizer, são coisas mais raras, mais difíceis e menos notáveis. Os que vivem afastados da sociedade têm deveres tão complexos e árduos quanto os outros; e os simples cidadãos, diz Aristóteles, praticam a virtude em condições mais difíceis e elevadas do que os que desempenham funções públicas. É mais pelo desejo de glória do que por convicção e consciência que buscamos as situações de relevo. O meio mais eficiente de conquistar a glória deveria ser o de realizar o que por ela realizamos tão somente por injunção da consciência. A própria coragem de Alexandre parece-me, no teatro em que se praticava, bastante inferior à que desenvolveu Sócrates no meio elevado e obscuro em que viveu. Imagino facilmente Sócrates no lugar de Alexandre, mas não vejo este no lugar daquele. Perguntai a Alexandre o que sabe fazer. Dirá: subjugar o mundo. Indagai o mesmo de Sócrates e responderá: viver a vida humana de acordo com as condições estabelecidas pela natureza. Ciência bem mais vasta, mais pesada e mais digna. O mérito da alma não consiste em se elevar mais alto e sim em se conduzir ordenadamente. Sua grandeza não se manifesta na grandeza, mas na mediocridade. Os que perscrutam o que há em nós e nos julgam pelo que observam não atentam para as luzes dos atos de nossa vida pública; veem filetes de água emergindo, gotejantes, de um fundo espesso e lamacento. Os que nos julgam pelas aparências brilhantes que percebem de fora deduzem que por dentro somos iguais; não podem estabelecer uma ligação entre as faculdades comuns, semelhantes às deles e que também existem em nós, e as que os espantam e se acham tão longe do que procuram ver. Por esse motivo atribuímos formas estranhas aos demônios. Quem, em virtude do que diz a invenção popular, não imagina Tamerlão de sobrancelhas arqueadas, narinas largas, feições apavorantes e desmedida estatura? E se eu houvesse conhecido Erasmo outrora, teria sem dúvida tomado por máximas e aforismos tudo o que dissesse a seus criados. Imaginamos mais facilmente um operário na privada ou com sua mulher, do que um venerável magistrado. Parece-nos que uma pessoa tão altamente situada não desce de seu trono para viver. As almas viciosas são por vezes instadas à prática do bem; da mesma forma, as virtuosas são ocasionalmente solicitadas pelo mal. Não as devemos julgar, portanto, senão em seu estado normal, ou pelo menos quando mais perto se encontrem desse estado. As tendências naturais desenvolvem-se e se fortalecem pela educação, mas não se modificam. Tenho visto milhares de indivíduos voltarem-se para a virtude ou o vício, apesar de uma educação que os deveria impelir para o lado oposto. Assim os animais selvagens, desacostumados da vida nas selvas e aparentemente domesticados, despojam-se de sua agressividade e se submetem ao homem; mas, se por acaso um pouco de sangue lhes toca a boca, desperta-se-lhes a cólera, queima-se-lhes a goela, e se impacientam por saciar-se. E em seu furor mal se contêm ante o domador pálido de medo. Não se arrancam as raízes das tendências originais; dissimulam-se tão somente. Assim a língua latina é para mim como a minha língua materna; compreendo-a melhor do que o francês. Mas há quarenta anos não a utilizo nem para falar nem para escrever. Entretanto, quando me vi tomado de forte emoção, o que me aconteceu duas ou três vezes na vida, uma destas vendo meu pai cair inanimado em meus braços, minhas primeiras palavras foram em latim. Valendo-se das circunstâncias, a natureza, há muito reprimida, ressurgia. E casos como esse, contam-se inúmeros. Os que tentam corrigir os costumes de nossa época, com ideias em voga, só corrigem a aparência viciada das coisas, mas não o fundo delas, o qual talvez se agrave ainda. E acho a agravação possível, porque é fácil aceitar alguém as reformas exteriores e arbitrárias, menos custosas e de vantagens mais tangíveis que as interiores, satisfazendo assim os vícios essenciais sem maiores riscos. Vejamos um pouco em volta de nós. Não há quem, em se analisando, não descubra em si uma tendência dominante em luta contra a educação e contra as demais paixões contrárias. Quanto a mim, não sinto, por assim dizer, tais emoções; antes me encontro sempre bem firme em meu equilíbrio, como os corpos pesados e maciços. Se não estou na inteira posse de mim mesmo, acho-me no ponto de me dominar. Meus desregramentos nunca são excessivos nem singulares, e a recuperação é sempre vigorosa e sincera. O que verdadeiramente nos condena, e afeta a maneira de ser de todos, é que o próprio arrependimento se acha corrompido pelas más intenções. Temos apenas confusamente o desejo de nos corrigir, iludimos a penitência e nos conduzimos então pior ainda do que no pecado. Ou porque o vício lhes seja natural, ou porque a ele se habituaram, muitos não lhe percebem mais o horror. Outros, como eu, acham-no detestável mas, pondo na balança o prazer que dele auferem, suportam-no mediante alguma transação que não deixa de ser condenável e covarde. Entretanto, o prazer que se tira de um vício pode ser de tal ordem que desculpe o pecado (como dizemos da utilidade); e isso não somente quando se trata de prazeres que usufruímos depois do pecado, como os que decorrem do furto, mas igualmente dos que gozamos no próprio momento em que ocorre a falta, como acontece quando possuímos uma mulher, levados por uma tentação que dizem ser irresistível. Estava há dias em Armagnac, na propriedade de um de meus parentes. Conheci um camponês, por apelido "o ladrão". Contou-me sua vida. Filho de pais que se entregavam à mendicidade e convencido de que, ganhando honestamente a existência, não conseguiria jamais pôr-se ao abrigo da miséria, lembrou-se de se tornar gatuno, ofício que praticou durante toda a sua mocidade com inteira segurança, em virtude de sua força física. Com efeito, costumava empregar-se nas colheitas e vindimas dos camponeses. Mas trabalhava longe e em terras tão extensas, que não podiam imaginar fosse um só homem capaz de transportar tão grandes quantidades de trigo ou de uva em uma só noite. Demais, tinha o cuidado de repartir os prejuízos entre muitos, de modo que não parecessem excessivos para cada um. Hoje, graças a seus furtos, esse homem está velho e rico para um indivíduo de sua condição social. A fim de conciliar a indulgência divina, diz que diariamente indeniza com boas ações os sucessores dos que saqueou. E que se não conseguir ressarci-los totalmente (o que não pode fazer em um dia) encarregará seus herdeiros de levarem a cabo a tarefa, pois é o único capaz de informa-los acerca do prejuízo de cada uma das vítimas. Verdadeira ou não a história, quem a contou encara o furto como desonesto e o detesta; menos entretanto do que a indigência. Arrepende-se de um modo geral de ter recorrido a esse expediente, mas, dadas as vantagens usufruídas e a reparação atual, não se arrepende no caso em apreço. Não é esse, por certo, o caso de hábitos que fazem com que o vício se encarne em nós e nos oblitere a razão. Não é tampouco o de uma borrasca que, abalando violentamente a nossa alma, a perturbe e cegue, jogando o nosso julgamento, e todo o nosso ser, nas garras do vício. Em geral dou-me por inteiro ao que faço; nenhum movimento se sonega à minha razão nem se executa, senão por consenso de todas as partes de meu ser, sem choques nem dissensões intestinas. Mérito ou culpa cabem por completo ao meu julgamento, e se erra é definitivo o erro, pois nunca mudou desde que nasci: suas forças continuam idênticas e, quanto às questões de ordem geral, as minhas opiniões atuais são as mesmas que concebi na infância. Há pecados impetuosos, súbitos; deixemo-los de lado. Mas há outros tantas vezes repetidos e acerca dos quais consultamos sem cessar a nossa consciência, pecados inerentes à nossa profissão, ao cargo que desempenhamos, que não posso imaginar se perpetuem em nós senão com o apoio da nossa vontade e conhecimento da nossa consciência. Por isso não acredito na sinceridade do arrependimento em tais casos. Não compreendo a seita de Pitágoras quando diz que "os homens renovam a alma ao se aproximarem das imagens dos deuses para lhes recolher os oráculos". A menos que isso signifique que o homem toma então de empréstimo uma alma nova e estranha, porquanto a sua oferece bem poucos sinais da purificação e limpeza, imprescindíveis a quem queira aproximar-se dos deuses. Fazemos o contrário do que propugnam os estoicos, os quais nos ordenam de corrigir as imperfeições e os vícios que reconhecemos em nós, porém sem perturbarmos a serenidade de nossa alma. Procuramos fazer crer que nos arrependemos, que o remorso nos devora, mas não damos demonstração de que nos tenhamos corrigido ou interrompido o progresso do vício. Só há cura quando nos desembaraçamos do mal: um arrependimento sincero colocado em um dos pratos da balança pesaria por certo mais do que o pecado posto no outro. A devoção é a qualidade que mais facilmente se simula, quando se acordam a ela os costumes e a vida; pois se sua essência é abstrusa e oculta, sua aparência é pomposa e enganadora. Pessoalmente posso desejar, de uma maneira geral, ser diferente do que sou; posso condenar-me e pedir a Deus que me modifique de todo em todo e desculpe minha fraqueza natural; mas a isso não chamo arrependimento, como não o chamo ao desprazer de não ser nem anjo nem Catão. Meus atos condicionam-se ao que sou; não posso fazer mais nem melhor, e o arrependimento não se aplica às coisas que estão acima de nossas forças. No caso, poderia quando muito lamentar a minha condição. Imagino que existem naturezas infinitamente mais elevadas do que a minha e mais perfeitas; isso não faz que possa aperfeiçoar a minha, como o fato de imaginar um braço mais forte não torna mais forte o meu. Se imaginar e desejar agir mais nobremente tivesse como resultado arrepender-nos do que já fizemos, teríamos de nos arrepender das ações mais inocentes, pois uma natureza melhor do que a nossa as houvera executado com maior perfeição e dignidade, e gostaríamos de ter agido da mesma forma. Quando reflito, agora que cheguei à velhice, na maneira por que me conduzi na mocidade, acho que quase sempre o fiz com sensatez e retidão; na medida do possível opus ao mal toda a resistência de que era capaz. Não me estou vangloriando, e em circunstâncias idênticas seria novamente, e sempre, como fui. Não é uma mancha que há em mim, é minha cor natural. Não admito arrependimentos superficiais, mitigados ou tão somente cerimoniosos; para que haja arrependimento, a meu ver, é preciso que nada lhe escape, que atinja as entranhas e que magoe até onde penetra o olhar de Deus. No que concerne aos meus negócios, tenho perdido os melhores por não saber conduzi-los. No entanto soube sempre ver com justeza, mas escolho a solução mais cômoda. Voltando os olhos para o passado, verifico que, desse modo, sempre procedi com acerto e penso que não me conduziria de outra maneira hoje, nem daqui a mil anos. Não, por certo, em relação ao presente, mas tendo em vista o momento em que me coube decidir, pois o valor de uma decisão não pode ser senão ocasional, dadas as modificações constantes a que estão sujeitas as coisas e as circunstâncias em que acontecem. Em minha existência cometi alguns erros importantes, não por não ter visto com clarividência, mas por falta de sorte. Há, em todo negócio que tratamos, pontos obscuros, impossíveis de se distinguirem nitidamente, em particular os que dizem respeito à natureza humana; há qualidades e defeitos que não aparecem, nem se revelam, por vezes desconhecidos do próprio portador e que só despertam quando surge a oportunidade. Se minha prudência não os penetrou, nem os previu, não posso inculpá-la: agiu dentro dos limites do que lhe cabia fazer. Se os acontecimentos me traem, se favorecem a solução afastada, tanto pior. Não há remédio. Mas não me censuro nem me responsabilizo; acuso a sorte. E isso não é tampouco arrependimento. Fócion dera aos atenienses um conselho que não foi seguido. Tendo sido favorável o resultado das negociações, embora contra a sua opinião, alguém lhe disse: "Então, Fócion, estás contente com a marcha dos acontecimentos?" "Estou contente", respondeu ele, "de ver que tudo deu certo, mas não me arrependo do conselho que dei." Quando meus amigos pedem um conselho, dou-o com inteira liberdade e precisão, sem me preocupar, em sendo a coisa duvidosa, que se verifique o contrário de minha previsão e venham a censurar-me mais tarde. Essa eventualidade não justificaria a censura e não deve induzir-me a não prestar o serviço solicitado. Não responsabilizo ninguém pelos meus erros ou azares, pois não costumo recorrer aos outros senão por cortesia ou quando tenho necessidade de ser informado acerca dos fatos, por não os conhecer suficientemente. Mas nas coisas que dependem somente do julgamento, as razões alheias podem servir para confirmar minha decisão; nunca me fazem voltar atrás. Escuto-as com interesse e atenção; só ouço, porém, em verdade as minhas. Estas pouco pesam, aliás, na resolução, mas as dos outros ainda menos. Fio-me no acaso, como os outros o fazem em relação a mim, pois se não sigo conselhos, só raramente mos pedem e não os seguem tampouco. E não sei de negócio público ou particular que minha opinião tenha modificado ou acertado. Mesmo aqueles que as circunstâncias levaram a consultar-me, antes se conduziram segundo opiniões de outras pessoas; e como aspiro acima de tudo ao sossego, mais do que a demonstrar minha clarividência, prefiro que assim seja. Deixando-me de lado, atendem a meu desejo, em suma, que é o de guardar para mim mesmo o fruto de minhas reflexões. Sinto prazer em não ser forçado a interessar-me pelos negócios alheios e em não assumir nenhuma responsabilidade. E o que passou não me inspira saudade, qualquer que seja a ocorrência e como quer tenha ocorrido. A ideia de que assim devia de fato ocorrer liberta-me de quaisquer preocupações. Eis a coisa engrenada na cadeia universal das causas de que, segundo os estoicos, dependem os acontecimentos futuros, os quais nem pela imaginação nem pela vontade podemos modificar ainda que de leve. Se assim não fosse, estaria a ordem das coisas, passadas e por se verificarem, inteiramente subvertida. Detesto esse arrependimento acidental que surge com a idade. Não sou da opinião desse autor antigo que era grato aos anos por o haverem livrado da volúpia. Eu nunca aceitarei de bom grado a impotência, por útil que me possa ser. "Nunca será a Providência tão hostil à sua obra que se deva colocar a fraqueza na categoria das coisas excelentes." Nossos apetites se atenuam na velhice; profunda saciedade apodera-se de nós logo depois de satisfeitos; mas com isso nada tem a ver a consciência. O esgotamento e a prostração inspiram-nos uma virtude que não passa de cansaço e catarro. Não devemos comover-nos demasiado com essas alterações naturais. A mocidade e o prazer não me impediram outrora de reconhecer o vício sob a máscara da volúpia; a falta de apetite, de que os anos são causa, não faz que desconheça a volúpia sob a máscara do vício. Embora já não me interesse pela coisa, julgo-a como se me interessasse. Encarando atentamente minha razão, acho que não mudou desde a idade em que somos mais propensos aos prazeres, a não ser que se tenha algo enfraquecido com a velhice. E não creio que a volúpia que ela hoje me proíbe em benefício da saúde física, os proibisse igualmente em proveito da saúde espiritual. Por isso não a valorizo exageradamente. Minhas tentações tão alquebradas andam e mortificadas, que não preciso opor-me a elas. Basta-me um sinal para afastá-las do meu caminho. Diante de minha antiga concupiscência, creio que resistiria hoje bem mais dificilmente, pois não creio que julgue melhor agora do que antes, nem mais sadiamente. Se há convalescença, há de provir apenas do enfraquecimento geral; e bem triste é o remédio que cura pela doença! Não deveríamos dever esse serviço à infelicidade e sim a um julgamento mais avisado e sadio. Nada conseguem de mim com ofensas e sevícias, senão irritar-me. Tais processos são bons para os que só agem sob ameaça do chicote. Minha razão atua com maior liberdade quando as coisas vão bem; mais se preocupa com as contrariedades do que com os prazeres. Julgo melhor com saúde e vejo então as coisas por um lado mais prático. Fiz o que pude para corrigir-me enquanto me foi dado aproveitar a vida, e me sentiria envergonhado se julgassem minha conduta não pela existência que levei e sim pelo estado em que me encontro às vésperas de deixar de ser, e viessem a estimar-se somente agora em que não há grande mérito em evitar o vício. A meu ver, a felicidade do homem consiste em bem viver; e não, como dizia Antístenes, em morrer bem. Não creio que deva grudar, agora, um rabo de filósofo a um corpo de homem já gasto, nem quero que o tempo que ainda me resta a vegetar seja um desmentido à parte mais longa e bela de minha vida. Quero apresentar-me, e que me vejam, de um modo uniforme. Se tivesse de voltar a viver, viveria como vivi; não lamento o passado e não temo o futuro e, se não me engano, meus pensamentos sempre se acordaram com meus atos. Sou muito grato ao destino por ter feito com que meu estado físico sempre tenha atendido às exigências de minha idade: vi a planta, a flor, o fruto e por felicidade vejo agora o fim, e digo "por felicidade", porque essa é a ordem natural. Suporto com paciência os males que me afligem porque chegam na hora certa, tornando-me agradável a lembrança da longa felicidade que usufruí no passado. Minha sabedoria foi sensivelmente a mesma nas diversas épocas de minha vida, embora talvez tenha sido outrora mais resoluta, graciosa, viva, alegre, natural e hoje se revele mais difícil e enfadada. Renuncio pois a essas modificações ocasionais e dolorosas que somos levados a buscar no fim da vida. Que Deus nos assista, pois é preciso que nossa consciência se corrija por si mesma, graças ao fortalecimento da razão, e não porque nossos apetites se debilitem. Não é porque nossa vista fraqueja e se turva que a volúpia se atenua realmente. Deve-se amar a temperança por si mesma e em atenção a Deus que a prescreveu; assim também devemos amar a castidade. A abstinência a que nos obrigam os incômodos da velhice, cólicas e catarros, não é castidade nem temperança. Por outro lado não cabe vangloriar-nos de desprezar a volúpia e resistir-lhe, se a ignoramos, se lhe desprezamos as graças, a força e a beleza. Conhecendo tudo isso, posso falar. Parece-me que na velhice nossas almas estão sujeitas a doenças e imperfeições mais importunas do que na mocidade; eu já o dizia quando jovem, mas objetavam-me então que não tinha barba na cara e portanto carecia de experiência; digo-o ainda hoje, com a autoridade de meus cabelos grisalhos. Nessa altura da existência chamamos sabedoria aos nossos humores doentios e ao enfado que se apodera de nós. Na realidade não renunciamos aos vícios; mudamos tão somente, e para pior. Além de um orgulho tolo e caduco, de um palavrório aborrecido, de um humor suscetível e insociável, de muita superstição, de uma ridícula necessidade de riquezas inúteis, faz a velhice que se desenvolvam em nós a inveja, a injustiça e a maldade; põe-nos ela mais rugas no cérebro do que no rosto e não se veem muitos espíritos que, ao envelhecer, não rescendam a mofo e ranço. Todas as partes do homem crescem e decrescem juntas. Considerando a sabedoria de Sócrates e certas particularidades de sua condenação, sou levado a crer que a tanto, e até certo ponto, se haja prestado espontaneamente, por temer, já com setenta anos, que se embotassem as ricas faculdades de seu espírito e se turvasse sua habitual lucidez. Quantas metamorfoses vejo a velhice operar diariamente em gente de minhas relações! É uma doença terrível que se infiltra naturalmente em nós, sem que o percebamos. É preciso ter-se preparado cuidadosamente e tomado grandes precauções para evitar a decadência com que nos castiga ou, ao menos, para atrasar-lhe a marcha. Sinto que, apesar de toda a minha resistência, ela ganha terreno, palmo a palmo. Luto na medida de minhas forças, mas sem saber até onde poderei chegar. O que quer que aconteça, entretanto, quero que saibam de que altura caí. CAPÍTULO III DA COMPANHIA DOS HOMENS, DAS MULHERES E DOS LIVROS. Não nos devemos colocar sob a dependência exclusiva de nosso humor e temperamento, pois nossa superioridade consiste em saber aplicar a inteligência de diversos modos. Prender-se a uma só ocupação é ser, mas não é viver, e os espíritos mais bem-dotados são os mais versáteis e receptivos. Comprova-o Catão, o Velho: "Tinha o espírito tão flexível e tão igualmente apto para tudo que, qualquer coisa que fizesse, dir-se-ia ter nascido para aquilo.? Se me coubesse modelar-me, não gostaria de fazê-lo no sentido de possuir a fundo uma só coisa, por brilhante que pudesse mostrar-me. A vida é movimento desigual, irregular, de múltiplas formas. É ser escravo, e não senhor de si, entregar-se às próprias tendências a ponto de não poder escapar-lhes nem contrariá-las. Reconheço-o agora, porque não consigo fugir facilmente às injunções de meu espírito, o qual de nada sabe ocupar-se sem se entregar por inteiro. Por insignificante que seja o assunto, ele o amplia e valoriza até se prender completamente ao mesmo. A ociosidade pesa-me e perturba-me a saúde. Quase todos os espíritos precisam de assuntos estranhos para exercitar; o meu antes se acalma e sossega com a matéria alheia ("É o trabalho que nos livra dos vícios da ociosidade"), pois sua tarefa principal, e mais árdua, consiste em se estudar a si mesmo. Logo aos primeiros pensamentos, agita-se, e as molas de seu vigor atuam em todos os sentidos. Mostra-se ora violento ora ponderado e gentil; aquieta-se afinal, modera-se e se fortalece. Tem em si com que manter em exercício suas faculdades; deu-lhe a natureza, como aos outros, suficiente material para suas indagações e pesquisas. Para quem sabe auscultar-se e tirar partido de suas observações, meditar é ocupação das mais importantes; prefiro formar meu espírito a mobiliá-lo. Segundo o temperamento, entreter-se consigo mesmo pode constituir ocupação de maior ou de menor alcance. Os maiores espíritos, para os quais "viver é pensar", como diz Cícero, a isso dedicaram a maior parte de seu tempo. Por esse motivo a natureza deu-nos o privilégio de podê-lo fazer amiúde e longamente. É a ocupação dos deuses, afirma Aristóteles, e dela nascem sua beatitude e a nossa. A leitura serve-me principalmente de pretexto a meditações; faz que meu julgamento trabalhe e não minha memória. Pouco me interessam as conversações, se não versam assunto sério e suscetível de levar à reflexão. Entretanto, devo confessar que por sua beleza e requinte um assunto pode reter-me bem mais do que outro grave e sério. Quanto ao resto, mal presto atenção ao que dizem e ocorre-me cochilar ou, nas conversações convencionais em que se trata de coisas frívolas e insignificantes, responder como se acordasse de um sonho e dizer tolices ridículas que uma criança não diria; ou observar um silêncio descortês além de estúpido. Tenho uma maneira de pensar que me isola dos outros, e, por outro lado, sou de uma ignorância pueril acerca do que todo mundo sabe. Esses defeitos valeram-me uma reputação de bobo, que se assenta em cinco ou seis fatos reais. Tal temperamento torna difícil a escolha de minhas relações. Preciso selecioná-las cuidadosamente, pois não sou nada feito para as questões da vida cotidiana. Vivemos e tratamos com o povo; se a conversação deste nos importuna, se desdenhamos os espíritos vulgares (e são, não raro, tão sensatos quanto os mais requintados), como toda sabedoria é inútil desde que não se acomode à ignorância dos outros, não devemos tentar resolver nem os nossos próprios problemas nem os alheios, porquanto é com essa gente vulgar que se tratam os negócios públicos e particulares. As atitudes de espírito são tanto mais belas quanto mais naturais; as melhores atividades exigem menor esforço. E como a sabedoria presta serviço àqueles cujos desejos se subordinam à possibilidade de realização! Não há ciência mais útil: "de acordo com as nossas forças", eis o estribilho de Sócrates. Palavras profundas! É preciso orientar nossos desejos para as coisas mais fáceis e mantê-los dentro de tais limites. Não será tolice minha não me ligar com as pessoas que o destino colocou perto de mim e me são indispensáveis, e buscar companhia de uma ou outra fora de meu ambiente normal? Não proviria isso do desejo irrealizável de algo perdido que não pude reencontrar? Minha tolerância, hostil a rancores e rigorismos, pôde facilmente preservar-me da inveja e inimizade alheias; nunca houve ninguém que mais pudesse, já não digo inspirar amizade, mas não dar azo a quaisquer ódios. Por outro lado, a minha reserva natural alienou-me a Simpatia de alguns que a devem ter interpretado mal. Sou capaz de angariar e conservar excelentes amizades, excepcionais mesmo, tanto mais quanto, quando me convêm, a tal ponto me esforço e dedico que raramente deixo de ser correspondido. Sou pouco atraído pelas amizades banais, pois além de não estar em meu temperamento entregar-me senão por inteiro, a sorte fez que desde a juventude me tornasse muito exigente a esse respeito, graças a uma amizade perfeita, e me afirmou na ideia de que, como diz um autor antigo, a amizade não se acomoda a numerosa companhia. Demais, repito, custa-me dedicar-me pela metade, observando essa prudência desconfiada e degradante recomendáveis nas relações de amizades frouxas e inseguras, prudência aliás necessária nestes tempos em que corre riscos graves quem fala com franqueza. Por isso estou convencido de que quem deseja como eu gozar as comodidades da vida - as essenciais, naturalmente - deve evitar, como se evita a peste, esses pequenos e espinhosos obstáculos. Admiraria um espírito constituído de vários andares e que, desmontável à vontade, se adaptasse a tudo o que o acaso lhe apresentasse; que pudesse conversar com o vizinho acerca de construções, caça, demandas e com seu carpinteiro ou jardineiro. Invejo os que sabem nivelar-se, pela conversação, aos mais humildes personagens de seu séquito. Não sou da opinião de Platão, o qual recomendava guardar-se a necessária distância com os servidores, sem jamais descer à amabilidade e menos ainda à familiaridade. Além da razão acima apontada, considero inumano e injusto prevalecer-se alguém, a esse ponto, do privilégio da fortuna. Os costumes que exigem menor desigualdade entre amos e lacaios parecem-me mais equitativos. Há pessoas que se esforçam por manter artificialmente o espírito nas regiões etéreas; eu quero o meu humildemente instalado junto ao solo. Só o culpo de uma coisa: preocupar-se com tudo: "Vós me contais o que fizeram os descendentes de Éaco, e os combates travados junto às muralhas de Ílios; mas não me dizeis quanto custa o vinho de Quio, qual o escravo que deve preparar meu banho, nem em que casa e quando poderei resguardar-me do vento frio dos Abruzos". Assim como na guerra o entusiasmo dos lacedemônios necessitava, para não se transformar em fúria, ser atenuado pelo som gracioso das flautas, quando em idênticas circunstâncias outros povos precisam de instrumentos ruidosos e de vociferações, assim, ao contrário do que geralmente se acredita, o espírito da grande maioria é mais exigente de chumbo que de asas, de calma e repouso que de ardor e agitação. Mas considero, acima de tudo, que é suma tolice fazer-se de entendido com quem nada entende, e mostrar-se rebuscado na linguagem. É preciso colocar-se a gente à altura das pessoas com as quais se fala e por vezes mesmo fingir de ignorante. No trato cotidiano deixem-se de lado a força e a sutileza; basta a lógica; e que se seja chão se necessário. Os sábios revelam não raro o defeito de exibir seus conhecimentos doutorais e andar a espalhar seus livros por toda a parte. A tal ponto encheram com estes as alcovas das damas da sociedade, que se elas não lhes apreenderam a essência adotaram-lhes a forma. Por um sim e por um não, com ou sem propósito, empregam essa nova e douta maneira de falar: "Temor, cólera, alegria, tristeza, tudo, inclusive seus segredos amorosos, exprimem nesse estilo. É doutamente que extasiam".l Citam Platão e Santo Tomás em assuntos a cujo respeito a opinião de qualquer um fora igualmente válida. Creiam-me, as bem-educadas, que andariam mais acertadamente se se contentassem com valorizar seus próprios encantos, os quais vão escondendo sob a roupagem de belezas estranhas a elas. É simplicidade de espírito abafar a própria luz, para brilhar com luz de empréstimo. Como que se enterram e se sepultam nos artifícios a que recorrem. São apenas arrebiques e perfumes. Sem dúvida não se conhecem suficientemente, pois o mundo nada comporta mais belo e ao contrário do que ocorre, a elas caberia dar brilho ao artifício. A que aspiram? A ser amadas e admiradas; não sabem mais que fazer para atingir tal objetivo e no entanto bastaria que atentassem um pouco para suas qualidades naturais. Quando as vejo preocuparem-se com a retórica, o direito, a lógica e outras drogas semelhantes, vãs e inúteis, ponho-me a pensar que quem as aconselha o faz sem dúvida para dominá-las. Como explica-lo de outro modo? Que se contentem com se exprimir pelo olhar gracioso, a alegria, a severidade, a ternura; que saibam temperar um "não" com rudez ou esperança; que se satisfaçam com entender sem intérpretes as lisonjas de seus admiradores. Tal ciência já basta para que conduzam pelo nariz os professores e seus discípulos. Se apesar de tudo não se conformarem com nos ceder quaisquer vantagens e quiserem buscar distração igualmente nos livros, escolham a poesia que é passatempo apropriado a suas necessidades, pois trata-se de uma arte sutil e espirituosa em que tudo se apresenta fantasiado, em que domina a intenção de agradar e impressionar, como no que elas próprias fazem. A História também pode fornecer-lhes temas interessantes. Quanto à Filosofia, poderão aprender com ela a maneira de julgar nosso humor e nosso temperamento, de se defender contra as nossas traições, de dominar seus próprios desejos, de preservar sua liberdade, de prolongar os prazeres da vida, de suportar humanamente a inconstância do amante, a grosseria do marido, a tristeza da idade e coisas que tais. Eis tudo o que lhes concederia em matéria de estudo. Há naturezas particularmente voltadas para si mesmas; eu sou essencialmente comunicativo e exuberante; sou um indivíduo inteiramente e visivelmente voltado para fora, nascido para a sociedade e a amizade. Prego a solidão, mas esta consiste para mim em poder estar mais à vontade na companhia de minhas afeições e meus pensamentos; não procuro restringir o espaço em que me mantenho e sim diminuir meus apetites e preocupações, afastando de mim os negócios alheios, fugindo às servidões e aos deveres sociais que aborreço mortalmente. Não é bem o comércio dos homens que me pesa; é a multiplicidade dos problemas. Para dizer a verdade, a solidão, quando causada por um isolamento efetivo, tende a dilatar-me as ideias e a fazer que se voltem um pouco mais para os fatos exteriores. Quando só, é principalmente acerca dos negócios do Estado e do mundo que medito. No Louvre e em numerosa companhia, recolho-me em mim mesmo. A multidão impele-me a fechar-me em mim mesmo e nas conversações que então mantenho com meus botões os assuntos são bem menos agradáveis e pessoais do que quando me encontro em lugares em que se observam o respeito e o silêncio. Não são nossas loucuras que me fazem rir, é o que consideram sabedoria. Não sou hostil por temperamento à agitação da corte. Aí vivi parte de minha existência e sou capaz de desempenhar meu papel na alta sociedade; conquanto isso ocorra ocasionalmente e eu me ache bem-disposto. Mas a indiferença a que aludi leva-me naturalmente à solidão. Em minha província, junto de minha farru1ia, que é numerosa, e em minha casa, muito frequentada, recebo bastante gente; mas raramente aparecem as pessoas com as quais gosto de conversar. Aí estabeleci, para mim como para os outros, uma liberdade que não se encontra alhures. Toda etiqueta foi abolida; não se vai ao encontro dos que chegam, nem se acompanham os que partem, nem se observam as demais regras protocolares tediosas e incômodas. Em casa, cada um se conduz como bem entende, se isola, ou se entretém com quem quer. Posso permanecer calado, sonhando ou meditando sem que ninguém se ofenda. Procuro a companhia dos homens honestos e avisados; e esses me afastam com repugnância dos outros. São em verdade raros, e o que busco neles é um momento de intimidade, recursos para uma troca de ideias, um meio de exercitar o espírito. Não viso nenhum outro benefício ou vantagem. Quando converso com eles, qualquer assunto me agrada e interessa por mais sério ou frívolo que seja. É sempre oportuno e sempre se impregna de bom senso, de experiência, de bondade e franqueza, de alegria e ternura. Não é somente a propósito de jurisprudência e política que nosso espírito revela sua beleza e sua força, é também em relação às coisas familiares. E avalio o valor de meus companheiros até pelo seu silêncio, seu sorriso, e os entendo melhor à mesa do que em reuniões cerimoniosas. Não afirmava Hipômaco que reconhecia os bons lutadores pela maneira de andarem na rua? Não afastemos de nós a erudição quando porventura surge no decorrer da conversação, mas sob a condição de que não assuma uma forma doutoral, imperativa e inoportuna, de que seja modesta e acessória. Não procuremos senão distrair-nos; nas horas destinadas à instrução e ao doutrinamento saibamos onde ir buscá-la. Enquanto isso, que desça a nós, se quiser ser admitida em nossa companhia, porquanto embora útil e desejável podemos muito bem dispensá-la em nossos encontros. Um indivíduo bem-educado e afeito à frequentação da sociedade sabe tornar-se agradável; a arte consiste apenas em controlar e realçar os produtos do espírito. E também de meu agrado a sociedade das mulheres belas e honestas, "pois também temos olhos conhecedores". Se o espírito não encontra nessa frequentação o mesmo prazer que aufere da amizade, a satisfação dos sentidos (que é grande) como que o compensa, embora não inteiramente a meu ver. Mas trata-se de um comércio que deve praticar com cuidado quem, como eu, tem apetites sexuais muito vivos. As experiências de minha juventude escaldaram-me, pois sofri todos os tormentos que os poetas afirmam se agregarem ao gozo desregrado. É verdade que a lição valeu: "Quem se salvou do desastre da frota grega em Cafareu, afasta-se sempre das águas traiçoeiras da Eubéía". É loucura concentrar todos os seus pensamentos em uma afeição apaixonada. Por outro lado, entregar-se a isso sem amor, como comediantes desempenhar sem escrúpulo o papel que todos desempenham nessa idade, é por certo velar pela própria segurança, mas de um modo covarde, como se, de medo do perigo, abandonássemos a honra ou renunciássemos a um prazer. E os que assim agem, nada podem esperar suscetível de satisfazer uma bela alma. É preciso, para que o prazer seja real, desejar com perfeito conhecimento de causa. Acrescentarei a propósito que nunca nossas palavras deixaram de persuadir as mulheres, pois não há nenhuma, por feia que seja, que não se julgue com algum mérito, ou por causa da idade, ou dos cabelos ou de seus ademanes. Na realidade feias totalmente não existem, nem tampouco totalmente formosas. As jovens brâmanes, quando carecem de outros encantos, são convoca das por pregão a exibirem publicamente suas partes genitais a fim de que se verifique se, ao menos por isso, merecem um marido. Mas a atitude dos homens de nossa época faz, como o demonstram os fatos, que as mulheres se unam para nos escapar ou, imitando-nos, representem igualmente e se prestem à comédia das relações íntimas sem paixão nem ternura. "Incapazes de dedicação, insensíveis à dedicação dos outros", imaginam, segundo os princípios de Lísias, em Platão, que podem entregar-se com tanto maior vantagem quanto menor o amor. Ocorre então, como no teatro, ter o público maior prazer do que os atores. Ao que me concerne, não conheço Vênus sem Cupido, como não concebo a maternidade sem a progenitura. São coisas que decorrem uma da outra. Ademais a trapaça volta-se contra o trapaceiro; e se não lhe custa muito, tampouco lhe rende bastante. Os que fizeram uma deusa de Vênus, levaram principalmente em apreço a sua beleza imaterial e espiritual; ora, o prazer que buscam os trapaceiros é unicamente sexual. Não é o que o homem deveria ambicionar, nem mesmo o do animal. Não o querem os bichos tão material e grosseiro, pois sua imaginação se excita não raro antes de seus órgãos. Qualquer que seja o sexo, vemo-los procederem a uma escolha, terem preferências, e sua união resulta por vezes de longa amizade e frequentação. E mesmo os que a velhice torna incapazes, ainda vibram amorosamente. Vemo-los cheios de desejos antes do ato, e vemo-los comprazer-se na lembrança do mesmo muito depois. Alguns, envaidecidos, entoam cantos de triunfo e caem em seguida extenuados e satisfeitos. Quem só deseja livrar-se de uma necessidade natural, não se preocupa com a colaboração nem se dá tanto trabalho. Não é prato, esse, para quem morre de fome. Como não desejo parecer melhor do que sou, direi aqui algumas palavras dos erros da minha juventude. Nunca me afeiçoei às mulheres que se pagam, não somente porque as desprezava como também por medo dos riscos que corre a saúde (o que não me impediu de ser duas vezes atingido, embora sem maiores consequências). Quis valorizar esse prazer pelo desejo, a dificuldade e também a satisfação da vaidade. Amava à maneira de Tibério, o qual buscava em suas amantes a modéstia e a nobreza tanto quanto os atrativos femininos. Ou à maneira de Flora, a qual só se dava a ditadores, cônsules, censores e punha seu amor-próprio em só ter amantes de alto coturno. É certo que as pérolas e os bordados emprestam sabor à coisa, bem como os títulos e o trem de vida. Por outro lado, preocupava-me muito com o espírito, conquanto o físico não deixasse por demais a desejar, mas, para ser franco, se algo devesse faltar teria preferido que fosse o espírito. Este tem seu lugar alhures. No amor, em que a vista e o tato predominam, ainda se consegue alguma coisa sem o espírito e nada sem os encantos físicos. A beleza, eis a verdadeira arma das mulheres, sua grande vantagem; é-lhes em verdade tão peculiar, que a do homem, embora a desejemos algo diferente, só se realça quando, pueril e imberbe, se confunde com a delas. Dizem que os jovens, que por sua beleza entram a serviço do sultão, são despedidos quando atingem a idade de vinte e dois anos. A inteligência, o bom senso, a amizade são qualidades mais comuns aos homens; por isso eles governam o mundo. Ambos esses comércios, o dos homens pelas conversações livres e familiares, e o das mulheres pelo amor, são aleatórios, e dependem de outrem. Um tem o inconveniente de só ocorrer raramente, o outro de se tornar impossível com a idade. Por isso, não bastariam às exigências da vida. O comércio dos livros é mais seguro. Não se equipara aos outros, mas tem a vantagem de estar sempre ao nosso alcance. Desde sempre me assistiu e em todas as circunstâncias; consola-me na velhice e na solidão, torna suave uma ociosidade que poderia ser aborrecida e livra-me das pessoas cuja presença me contraria; amortece enfim os latejos da dor quando não é demasiado aguda e é mais forte do que qualquer paliativo. Para afastar uma ideia importuna, nada como recorrer aos livros; apossam-se de mim e fazem-me esquecê-la. Nunca se ressentem com o fato de só os procurarmos na falta de prazeres mais reais, mais vivos e naturais que outorga a companhia dos homens e das mulheres; e sempre mostram a mesma fisionomia. Não há mérito em andar a pé quando se traz o cavalo pela rédea, dizem. E nosso Jacques, rei de Nápoles, e de Sicília, belo, jovem, gozando saúde, que, em viagem, se fazia transportar numa padiola, com roupa e boné de pano ordinário, mas seguido em grande pompa por liteiras, cavalos de montaria, fidalgos e oficiais, exibia uma austeridade fácil de suportar e bem pouco meritória. Não há como nos apiedarmos do doente que tem a cura a seu alcance. É na aplicação dessa máxima, muito justa, que está o fruto que colho nos livros. Não os uso muito mais do que os que não os têm; gozo deles, como o avarento goza seu tesouro, simplesmente com saber que posso usa-los quando queira. Esse direito de posse basta a meu espírito. Nunca viajo sem livros, na paz como na guerra. Entretanto, passam dias e meses sem que os abra. Fá-lo-ei daqui a pouco, digo, ou amanhã, ou quando me aprouver; e o tempo passa sem que me pese. Não posso dizer quanto me descansa o pensamento tê-los à mão; nem quanto me têm sido úteis na vida. Constituem a melhor provisão que pude obter para essa viagem que é a vida e tenho realmente pena das pessoas inteligentes que não os possuem. E por saber que esse passatempo não me pode faltar, aceito com prazer qualquer outro. Em casa, passo muito tempo na biblioteca, de onde, de um golpe de vista, observo tudo o que ocorre em minha propriedade. Da entrada descortino o jardim, o galinheiro, o pátio e a maior parte dos cômodos. Ora folheio um livro ora outro, sem ordem, ao acaso. Ora sonho, ora tomo notas ou dito, passeando, os devaneios que aqui se registram. Essa biblioteca situa-se no terceiro andar de uma torre. No primeiro está a capela e no segundo há um quarto com suas dependências, quarto onde durmo não raro quando quero ficar só. Em cima, vasto guarda-roupa. Outrora era esse local inteiramente inútil; agora aí passo boa parte das horas e dos dias, mas nunca as noites. Há, ao lado da biblioteca, um bom gabinete com lareira, e se não temesse tanto os aborrecimentos e a despesa, poderia com facilidade construir junto à torre uma galeria de cem pés de comprimento por doze de largura, pois já existem os alicerces que se ergueram aliás com outro objetivo. Qualquer retiro exige um espaço para passear; meus pensamentos cochilam quando sento; meu espírito não anda sozinho, parece-me que o movimento é que o excita e força a trabalhar. E todos os que estudam! sem recorrer aos livros, sentem a mesma coisa. O cômodo, a não ser na parte que se encontram a mesa e a cadeira, tem uma forma circular, o que me permite ver todos os livros dispostos em cinco filas de prateleiras. Comporta três janelas pelas quais posso gozar uma vista bela e extensa. O espaço livre tem dezesseis passos de diâmetro. No inverno aí passo menos tempo, porque minha casa, como se deduz pelo nome, se situa numa colina, e de todos os cômodos é esse o mais exposto ao vento, sendo também afastado dos outros e de difícil acesso, o que de resto me agrada, não somente pelo exercício a que me obriga mas também porque me põe a salvo de visitas importunas. É meu covil; procuro fazer desse recanto um domínio pessoal, e subtraí-lo à comunidade conjugal e filial. Alhures minha autoridade, embora indiscutível, é mais nominal do que real e mais vaga do que direta. Bem triste se me afigura, em verdade, a situação de quem não tem onde se isolar em sua própria casa, onde se esconder para meditar. A ambição exige de seus escravos grandes sacrifícios ao exibi-los sem cessar como uma estátua em praça pública: "Uma grande situação é uma grande servidão". Não podem isolar-se nem mesmo em sua privada. Nada me parece mais penoso do que essa regra, observada em certas comunidades religiosas, de andarem sempre reunidos, testemunhando em conjunto os atos de cada um. Acho mais suportável estar sempre só do que não o poder estar nunca. Se alguém me disser que é aviltar as musas apelar para elas unicamente para se distrair, ignora o muito que valem como passatempo e prazer; chego a ponto de quase afirmar que outros tão deliciosos não podem existir. Vivo ao sabor do momento e acrescentarei respeitosamente que só para mim. Não tenho outras ambições. Quando moço, estudei para brilhar, mais tarde para alcançar a sabedoria e, agora, faço-o para distrair-me, sem pensar em tirar proveito. Por vaidade gastei muito com livros, não somente para prover minhas necessidades, mas ainda para ver aumentar o número de volumes e ampliar-se a minha biblioteca. Há muito que isso não me acontece mais. São os livros, de muitos pontos de vista, extremamente agradáveis para quem os sabe escolher. Mas não há prazer sem contrapartida e o que eles proporcionam não é tampouco puro. Têm seus inconvenientes e alguns sérios. O espírito exercita-se com eles, mas o corpo, que não devemos esquecer, fica inativo, o que acarreta tristeza e abatimento. E não há coisa mais prejudicial e a ser mais evitada no declínio da vida. Mencionei minhas três ocupações prediletas, independentemente das que a sociedade e a vida cívica me impõem. CAPÍTULO IV DA DIVERSÃO Fui outrora chamado a consolar uma senhora que andava realmente aflita, pois em geral as pessoas desse sexo não se afligem naturalmente; nelas tudo é artifício e representação. Uma mulher tem lágrimas em reserva, que correm quando preciso. Tentar sustar-lhes as lágrimas é tempo perdido; aí é que sua tristeza se expande mais fortemente. Exaspera-se o mal ao ser combatido. Vemos comumente, quando dizem alguma coisa mesmo sem grande importância, que se formalizam e se irritam se as contraditamos. Por isso se o fazemos quando as devemos consolar, não estamos agindo como bons médicos, aos quais cabe conversar com seus pacientes de maneira agradável e leve. Nenhum doutor feio e carrancudo jamais conseguiu resultado apreciável. De início devemos portanto compreender-lhes as queixas e aprová-las até certo ponto. Com isso ganhamos crédito para ir adiante e então, mediante palavras mais resolutas e adequadas à circunstância, sugerir a cura. No caso em apreço, desejoso de brilhar perante a assistência que não tirava os olhos de mim, ataquei o mal de frente. Não demorei em verificar que errara e não conseguiria persuadi-la. Meus argumentos são em geral incisivos demais e não suficientemente insinuantes; ou ajo bruscamente ou sem energia. Por isso, após algumas tentativas, não procurei mais curá-la com razões impressionantes e lógicas, já porque não mais as encontrava, já porque pensei em outra solução. Não busquei tampouco empregar os meios que a filosofia põe a nosso alcance, como: "o que se deplora não é um mal", na opinião de Cleantes, ou "a queixa não é justa nem injusta", como diz Crisipo. Também não segui o conselho de Epicuro, que consiste em desviar o pensamento das coisas tristes para outras que o distraiam, o que entretanto não é contraindicado. Deixando de lado os diversos processos que Cícero recomenda, desviei aos poucos a conversação para assuntos afins e (na medida em que sua confiança em mim se ampliava) para outros sem relação com sua desgraça; e assim a afastei, sem que o percebesse, de seus pensamentos melancólicos e a conduzi a uma certa atmosfera de serenidade. Em outras palavras, criei uma diversão. Os que, depois de mim, se esforçaram por consolar essa senhora não lograram maior êxito porque o mal não fora cortado pela raiz. Ocasionalmente ventilei em meu livro algumas diversões de tipo mais geral. As militares, por exemplo, de que se valeu Péricles na guerra do Peloponeso, e que outros empregaram para afastar de sua pátria as forças inimigas. O Sr. de Himbercourt salvou-se, e aos seus, com engenhoso artifício na cidade de Liêge, onde o Duque de Borgonha que a sitiava o fizera entrar para estabelecer as condições da rendição. Reunido durante a noite, para pôr em execução as medidas assentadas, começou o povo a sublevar-se contra as negociações, resolvendo massacrar os negociadores. Ao saber do sucedido, Himbercourt enviou ao encontro da multidão dois habitantes da cidade com condições menos rigorosas, forjadas por ele na hora. Os dois mensageiros sustaram o ímpeto dos atacantes, conduzindo-os ao conselho da cidade para novas deliberações. Estas foram rápidas e um segundo tumulto se verificou tão violento quanto o primeiro. Himbercourt despachou outros quatro mensageiros com propostas mais satisfatórias e substanciais, graças às quais foi o povo novamente levado a deliberar. Mediante sucessivas proposições amorteceu o ardor dos revoltados, diluindo-lhes a fúria em vãs deliberações e chegando assim ao fim da noite, o que visava acima de tudo. Relatemos outro feito da mesma ordem. Atalanta, jovem de excelsa beleza, era muito solicitada por numerosos pretendentes. Para livrar-se dos importunos, estipulou que aceitaria por esposo quem a vencesse nas corridas, devendo perder a vida quem não o conseguisse. Houve quem julgasse valer a pena correr tal risco, dada a recompensa, e pagasse com a vida a ousadia. Hipômenes, que devia realizar a prova por último, dirigiu-se à deusa do amor e pediu-lhe proteção. Ouvindo-lhe a súplica, ela lhe entregou três maçãs de ouro, ensinando-o a usá-las. Iniciada a corrida, Hipômenes, ao perceber que a bem-amada ia alcança-lo, deixou cair uma das maçãs como por acaso. Atalanta, interessada pela beleza do fruto, volta-se para pegá-lo. "Surpreendida, encantada com a beleza da maçã, a virgem diminuiu a marcha a fim de pegar o fruto de ouro que rola a seus pés." Hipômenes repete o gesto com as outras maçãs no momento oportuno e com essa diversão ganha a corrida. Quando os médicos não podem extinguir o catarro desviam-no para órgãos sobre os quais sua ação é menos perigosa. É igualmente essa receita a mais indicada nas doenças da alma. "É útil por vezes desviar o espírito para outros prazeres, cuidados e tarefas. Convém que mude de lugar frequentemente, como fazemos com os doentes, pois de outro modo não recupera a saúde.? Raramente triunfamos do mal que atacamos de frente; não os diminuímos nem extinguimos, mas é possível desviá-los e transformá-los. Sócrates oferece-nos, acerca da maneira de encarar os acidentes da vida, uma lição bem mais elevada, mas de tão difícil aplicação que só os espíritos eminentes podem aproveitá-la. É o único a esperar a morte sem que se lhe altere o espírito; familiariza-se com a ideia e com ela brinca. Não busca consolo fora dela; a morte parece-lhe um acidente natural, ante o qual permanece indiferente. Os discípulos de Hegésias, estimulados pelos argumentos que o mestre lhes apresenta, deixam-se morrer de fome; e tornam-se tão numerosos, que o Rei Ptolomeu proíbe que se ministrem tais ensinamentos capazes de levar ao suicídio. Essa gente não considerava a morte em si; não a julgava; nela não detinha o pensamento; sonhava com uma metamorfose de seu ser e ansiava por apressá-la. Esses infelizes que vemos no patíbulo demonstrando exaltada devoção, ouvidos atentos aos conselhos e exortações, olhos e mãos erguidos para o céu, a proferirem, em voz alta e com profunda emoção, suas orações, fazem coisa por certo louvável do ponto de vista da religião, mas não dão provas de firmeza de ânimo. Fogem à luta, evitam olhar a morte de frente, como as crianças que precisamos distrair quando as queremos lancetar. Alguns vi que, ao deparar com os preparativos da execução, se mostravam apavorados e voltavam violentamente o pensamento para outra coisa. A quem precisa atravessar um precipício não se aconselha a que feche os olhos ou os desvie do abismo. Por ordem de Nero, Súbrio Flávio devia ser decapitado por Níger, igualmente oficial do exército romano. Levado ao local da execução, onde Níger mandara abrir a fossa para sepultar a vítima, viu Flávio que fora malfeita e, voltando-se para os soldados, observou que o trabalho realizado não revelava disciplina. Em seguida, dirigindo-se a Níger que o exortava a manter bem firme a cabeça disse: possas tu golpear com idêntica firmeza. E tinha razão, pois Níger, cujo braço tremia, teve de fazê-lo mais de uma vez. Esse Flávio parece haver encarado a morte sem emoção e no entanto com o pensamento resolutamente fixado nela. Quem morre em combate, de armas nas mãos, não pensa na morte, não a pressente. A luta empolga-o. Certa pessoa de minhas relações e de uma coragem incontestável, batendo-se em duelo escorregou e foi crivado de punhaladas. Os assistentes, acreditando-o perdido, gritavam-lhe que recomendasse a alma a Deus. Mas, como me disse mais tarde, embora as vozes lhe chegassem aos ouvidos, não as ouvia, pois só pensava em se safar daquela situação e vingar-se. E o duelo terminou com a morte do outro. Quem levou a L. Silano o decreto que o condenava à morte prestou-lhe bom serviço, pois, ouvindo Silano responder que já esperava a notícia mas não imaginava que devesse ser executado por bandidos, precipitou-se contra o condenado para forçá-lo a retratar-se. Silano, embora desarmado, defendeu-se com socos e pontapés e foi morto durante a disputa. Graças à cólera que se apoderara dele, escapou à opressão dolorosa que lhe houvera causado a espera de uma morte lenta. Pensamos sempre em outra coisa. Sustenta-nos a esperança de uma vida melhor, ou o futuro feliz dos filhos, a glória que poderá agregar-se a nosso nome, ou a ideia de nos libertarmos dos males terrenos, ou ainda a da vingança que aguarda os autores de nossa morte. Se há deuses justos, espero que encontres um suplício à tua altura, e que ao morrer invoques o nome de Dido; eu o saberei, o eco há de chegar à residência dos manes. Coroado de flores, Xenofonte sacrificava aos deuses quando lhe vieram anunciar a morte de seu filho Grilo na batalha de Mantinéia. Às primeiras palavras, arrancou a coroa e jogou-a ao chão, mas quando soube com que valentia se portara o guerreiro, ergueu-a novamente e tornou a botá-la à cabeça. O próprio Epicuro consola-se do fim próximo, pensando na utilidade das suas obras que espera lhe sobrevivam eternamente. "Todas as penas são suportáveis, desde que brilhem e nos ilustrem." Idênticas fadigas, idênticos ferimentos não têm o mesmo peso para o general e o soldado, afirma Xenofonte. E Epaminondas resigna-se melhor à morte quando sabe que obteve a vitória. É o que o consola, o que suaviza sua grande dor. Inúmeras outras circunstâncias nos distraem e nos desviam da atenção que daríamos à coisa em si. Por isso as razões da filosofia não penetram, senão superficialmente, o assunto. O grande Zenão, chefe dessa escola estoica que domina as demais pela elevação de sua doutrina, dizia da morte: "nenhum mal é honroso; a morte é honrosa; logo não é um mal". Contra a embriaguez assim se exprimia: "ninguém confia seu segredo ao bêbado; todos o confiam ao sábio. Este não será pois um bêbedo". Não fogem ao assunto tais palavras? Compraz-me ver esses espíritos de elite não poderem desvencilhar-se de nossos erros; por perfeitos que sejam, não são senão homens, e destes têm as fraquezas. A vingança é uma doce paixão, natural ao homem, e poderosa. Bem o percebo, embora não tenha experiência. Ultimamente, para afastar dela um jovem príncipe, não invoquei o preceito cristão de estender a face a quem nos ofende; nem lhe mostrei as consequências trágicas que a poesia atribuiu à vingança; pus-me simplesmente a louvar-lhe a beleza dos sentimentos contrários: a honra, a popularidade, a afeição que granjearia revelando-se bom e clemente. Desviei-o do seu intuito despertando-lhe a ambição. Assim se deve proceder. Se, no amor, a afeição pode levar-nos além do justo e certo, cumpre combater tal disposição de espírito mediante alguma diversão. Experimentei-o não raro com êxito. É preciso atenuar-lhe a violência diversificando os desejos, e se algum vem a dominar os demais, para que não nos absorva e tiranize, cumpre amortecê-lo não lhe dando toda a nossa atenção e multiplicando as distrações: "Quando estiverdes atormentado por exagerado desejo, deveis satisfazê-lo com o primeiro objeto que se apresente". Mas que se atente em tempo útil, pois se se apossar de nós teremos perdido a possibilidade de recuperar a liberdade, "se aos primeiros ferimentos não juntarmos outros, se as novas afeições não apagarem as antigas". Em virtude de meu temperamento impressionável, sofri outrora um golpe violento; fora por ele esmagado, se houvesse confiado tão somente em minhas forças. Uma diversão enérgica era indispensável: apaixonei-me por cálculo e ao mesmo tempo para dedicar-me a um estudo desse sentimento. A idade ajudava-me de resto e o amor aliviou o mal que a amizade causara. Assim ocorre com tudo. Quando uma ideia penosa me invade, mudo o curso de meu pensamento em vez de tentar suplantá-la. Substituo-lhe uma ideia contrária se possível ou, pelo menos, diferente. Essa mudança alivia-me sempre e acaba por dissipar a ideia incômoda. Se não posso combatê-la, fujo dela e negaceio; mudo de lugar, de ocupação, de companhia, acumulo divertimentos, procuro temas de meditação até que me perca e me abandone. A natureza age do mesmo modo e tira proveito de nossa versatilidade. Assim atua o tempo, que se nos oferece como remédio soberano às nossas paixões. Alimentando sempre mais nossa imaginação com toda espécie de negócios e interesses, desagrega e altera a impressão primeira, por forte que seja. O sábio que perde um amigo não pensa menos nele vinte e cinco anos depois, porquanto, segundo Epicuro, a impressão permanece sempre a mesma e não considerava ele que viesse a atenuar-se por ter sido prevista ou submetida à ação do tempo. Mas tantos outros pensamentos se agregam aos primeiros que estes se embotam afinal. Para desviar a opinião pública, Alcebíades mandou cortar a cauda e as orelhas de seu cão e o soltou nas ruas da cidade, pois assim a multidão, encontrando nesse fato um motivo para comentários, não se ocuparia de seus outros feitos e gestos. Conheci mulheres que, a fim de despistar a opinião pública e desorientar as más línguas, escondiam suas verdadeiras afeições simulando outras. E soube de uma que, nesse jogo, se viu enredada acabando por romper os laços antigos e entregar-se de verdade ao amor que simulava. Com esse exemplo compreendi quão tolos são os que consentem em tais trapaças, pois é preciso que o beneficiado publicamente seja muito pouco hábil para não trocar de lugar com o outro. É o que vulgarmente se chama preparar a cama para o sono alheio. Pouca coisa basta para distrair-nos, porque pouca coisa nos retém. Não encaramos os sucessos em si, o que nos impressiona são as circunstâncias em que se verificam pormenores por vezes superficiais; por frívola que seja, a forma domina o fundo, "como esses leves invólucros de que se despojam as cigarras no verão". O que lembra a Plutarco a morte da filha são as peraltices dela em criança. A recordação de um adeus, de um gesto gracioso, de uma recomendação aflige-nos. A toga de César exibida nas ruas de Roma perturba a cidade toda bem mais do que a sua morte. O próprio som das palavras mais vulgares nos comove: "meu pobre mestre", "meu grande amigo", "meu querido pai", "minha boa filha"! Quando ouço essas banalidades e as examino de perto, vejo que não passam de palavras, e são ruídos sem sentido real que me ferem a sensibilidade. Lembram-me as exclamações dos predicadores; as quais mais impressionam o auditório pelo tom do que pelo conteúdo. Ou o lamento dos animais que matam para comermos. Em tudo isso não penetramos a essência profunda e verdadeira do assunto. "A dor excita-se sozinha, e se exacerba", diz Lucrécio. Eis os fundamentos de nossas tristezas. A obstinação com que os cálculos se detêm não raro em minha uretra provocou muitas vezes retenções prolongadas de urina. Durante três ou quatro dias corri assim risco de morte, a ponto que fora absurdo pensar em evitá-la, como fora loucura não desejá-la, tão cruéis são as dores que então sentimos. Esse bom imperador que mandava amarrar a extremidade do pênis dos criminosos para que morressem por não poder urinar, na realidade era doutor em torturas. Nesse estado pude analisar quantas causas fúteis minha imaginação descobria para justificar o desejo de não morrer. Coisas insignificantes sugeriam dificuldades a meu espírito, e frívolos eram os pensamentos que me ocorriam em tão grave momento. Um cão, um cavalo, um livro, um copo, tudo em verdade se tornava motivo de preocupação. Outros pensarão em sua bolsa, na ciência, nos cargos ambicionados, o que não se me afigura mais tolo. Vejo com indiferença a morte, quando a encaro como fenômeno universal e meta fatal da vida. Enfrento-a assim, como um todo; mas diante de seus pormenores não me mostro tão resoluto. As lágrimas de um lacaio, um, aperto de mão, um reconforto banal me enternecem e enfraquecem. E o mesmo sentimento que nos perturba à leitura das histórias fabulosas em que as lamentações de Dido e Ariana, descritas por Virgílio e Catulo, apaixonam mesmo os que nelas não acreditam. Não sentir emoções é a característica das almas frias e secas. Dizem que foi o caso de Pólemon, mas também afirmam que um cão lhe arrancou metade da barriga da perna sem que ele sequer empalidecesse. Nenhuma sabedoria pôde jamais conceber por que é tão viva e completa a tristeza que a imaginação provoca em nós, quando nem de longe o consegue a realidade, embora com a participação dos olhos e ouvidos que não são impressionados por acidentes imaginários. É sem dúvida por essa razão que as artes apelam para nossa fraqueza e nossa tolice naturais. O orador, dizem nas escolas de retórica, deve, nessa farsa do discurso, comover pela voz e a emoção simulada. Deixar-se-á iludir pela paixão descrita e acabará sentindo real tristeza e acabrunhamento que comunicará aos juízes da comédia, os quais se interessam ainda menos pelo assunto. Assim também ocorre com estas pessoas que alugamos para que assistam às cerimônias funerárias e lhes emprestam maior relevo: vendem suas lágrimas a quem as quer comprar, mas, embora regulando sua emoção de acordo com a importância paga, compenetram-se de seu papel e se entregam a manifestações de verdadeira tristeza. Tendo ido com alguns amigos acompanhar até Soissons o corpo do Sr. de Gaumont, que morrera no cerco de La Fere,1 observei que por toda parte as pessoas que encontrávamos choravam e se lamentavam à simples vista do cortejo fúnebre, sem que sequer conhecessem o nome do defunto. E conta Quintiliano ter frequentado comediantes tão compenetra dos de seu papel que ainda choravam de volta à sua casa. E que lhe aconteceu também ter-se comovido tanto com os sentimentos que procurara inculcar aos outros, que os experimentara realmente, a ponto de se surpreender em lágrimas e com o rosto pálido de alguém acabrunhado pela dor. Em uma aldeia de nossas montanhas, as mulheres têm o costume de, ao mesmo tempo, louvar as qualidades do marido desaparecido, chorando-lhe a morte, e proclamar seus defeitos, como se quisessem tirar alguma compensação pessoal e estabelecer uma diversão para a sua desgraça. Nesse ponto, agem mais honestamente do que nós que, quando sabemos da morte de um simples conhecido, atribuímos-lhe desde logo todas as qualidades e nos esforçamos por cumulá-lo de elogios imerecidos, pintando-o, depois de morto, bem diferente do que fora em vida. Como se a dor fosse uma fonte de informações inéditas e como se as lágrimas, lavando a nossa inteligência, a esclarecessem acerca do defunto. Quanto a mim, renuncio desde já aos testemunhos favoráveis que queiram dar de minha pessoa, não porque me considere indigno deles, mas porque estarei morto. Se perguntássemos a alguém: "que interesse tendes em participar deste cerco?", responderia: "dar um exemplo de obediência ao nosso príncipe. Não ambiciono proveito algum; quanto à glória, bem sei quão pequena é a parte que pode auferir um simples particular como eu. Não tenho ódio nem paixão". Vede-o porém no dia seguinte em seu posto, no momento do assalto: transformou-se, agita-se, ruge de cólera. Esse furor que antes não manifestava, esse ódio que tem no coração, são o reflexo brilhante do aço, devem-se ao fogo, ao ruído dos canhões e dos tambores. Causas bem fúteis, direis. Mas como? Então acreditais que seja imprescindível uma causa? Pois ela não é necessária para que se agite a nossa alma. Um simples devaneio, sem razão de ser, a governa e perturba. Que eu me ponha a construir castelos de cartas, minha imaginação logo arquiteta vantagens e prazeres que alegram e entusiasmam a alma. Mas quantas vezes também esses mesmos sonhos fazem que a cólera e a tristeza nos invadam e nos alterem o corpo e o espírito! Nossas fantasias imprimem em nossos rostos risos e rictos, provocam gestos, trejeitos e gritos ou lamentos. Parece até que, em nossa solidão, temos visões de disputas e demônios, e de perseguições interiores. Interroguemo-nos acerca das causas de semelhantes abusões; haverá na natureza algo, fora do homem, sobre o que atue o que não existe? Cambises, tendo sonhado que seu irmão se tornara rei da Pérsia, mandou mata-lo, No entanto amava esse irmão e sempre confiara nele. Aristodemo, rei dos messenianos, suicidou-se por pensar que o uivo de seu cão era um mau presságio. O Rei Midas fez o mesmo, em consequência de um sonho desagradável que o contrariara e perturbara. Abandonar a vida por causa de um sonho é dar-lhe o valor que tem realmente. Vede entretanto como nossa alma se jacta de triunfar das misérias do corpo, de sua fraqueza. Pode falar, em verdade: Ó desgraçada argila modelada por Prometeu! Pouca prudência mostrou na confecção de sua obra: só viu o corpo em sua arte, não se preocupou com o espírito. E, no entanto, pelo espírito é que deveria ter começado. CAPÍTULO V A PROPÓSITO DE VIRGÍLIO Nossas reflexões úteis tornam-se mais embaraçantes e difíceis na medida em que se fazem mais sérias e profundas. O vício, a morte, a doença, são assuntos graves sobre os quais não podemos meditar muito tempo sem cansar. Devemos instruir a alma acerca dos meios de resistir ao mal e das regras de bem viver e seguir o caminho da fé, despertando-a e exercitando-a amiúde nesse estudo. Mas, ante uma alma comum, isso se há de executar com brandura e moderação, porquanto uma tensão contínua a enlouqueceria. Em minha juventude tinha necessidade de muito raciocínio e de advertências para seguir o caminho do dever, pois a saúde e o bem-estar não se prestam muito, ao que dizem, aos argumentos sérios e sensatos. Hoje a situação é diferente; as misérias da velhice advertem-me o bastante, tornam-me avisado e sereno. Da alegria excessiva passei à austeridade, o que é bem aborrecido; eis por que me entrego hoje, de quando em quando, a um certo desregramento, deixando o espírito divertir-se com fantasias de outra idade e que o repousam entretanto. Já estou por demais tranquilo, pesado, maduro; os anos oferecem-me diariamente lições de calma e temperança. Meu corpo evita quaisquer licenças e as receia mesmo; e é ele que induz meu espírito à prudência e o governa autoritariamente. Não passo uma hora que seja, acordado ou dormindo, sem que me entretenha acerca da morte, da paciência e da penitência. Hoje, defendo-me contra a temperança como outrora me defendia contra a volúpia, pois ela me domina a tal ponto que me sinto apoucado. Ora, quero permanecer senhor de mim mesmo em quaisquer circunstâncias; a sabedoria também tem seus excessos e tanto quanto a loucura precisa ser moderada. Por isso, receoso de que, com seus excessos, venha a prudência a ressequir-me, a esgotar-me e a perturbar o meu equilíbrio, nos momentos em que o sofrimento não me persegue, "de medo que minha alma se prenda demasiado às suas dores", desvio os olhos do céu borrascoso e nublado que, graças a Deus, encaro sem pavor mas não sem esforço. E eis-me comprazendo-me na lembrança das loucuras da mocidade, "o espírito, saudoso do que perdeu, volta-se inteiramente para o passado". Que a criança olhe para a frente e o ancião para trás. Não será esse o significado da dupla face de Jano? Nesses momentos, os anos poderão arrastar-me se quiserem, mas de costas para o futuro. Enquanto meus olhos reconhecerem a bela estação que não mais existe para mim, eu a contemplarei de quando em quando. Ainda que fuja de meu sangue e de minhas veias, não quero que se apague a imagem em minha memória: "Gozar o passado é viver duas vezes a própria vida". Platão recomenda aos velhos que assistam aos exercícios, às danças e aos folguedos da juventude e que recordem as graças e as vantagens dos verdes anos, a fim de que gozem através dos outros a flexibilidade e a beleza física perdidas. E sugere que se premie o jovem que melhor tenha distraído o maior número de anciãos, tornando-lhes mais agradáveis algumas horas. Outrora eu anotava como excepcionais os dias pesados e sombrios, hoje tais dias são comuns e os belos e serenos fizeram-se raros. Já considero um favor dos céus os momentos em que não sinto nenhuma dor. Posso fazer-me cócegas, não consigo mais arrancar um riso deste pobre corpo. Só me alegro em pensamento ou sonho, mitigando com tais trapaças as tristezas da velhice. Gostaria porém de outro remédio! Mas é em vão que a arte luta contra a natureza. É, no fundo, bem simplista o que fazemos todos: prolongamos os incômodos humanos, antecipamo-nos a eles, privando-nos dos prazeres que ainda nos restam. Prefiro ser velho durante menos tempo a sê-lo antecipadamente; por isso aproveito os menores prazeres que encontro. Conheço de oitiva certas volúpias grandes, fortes e gloriosas, mas não as quero assim faustosas, porém doces, imediatas, fáceis. As outras dependem da opinião alheia e esta não me preocupa suficientemente para que as deseje: "Afastar-se da natureza para seguir o povo, é escolher um guia pouco seguro." Minha filosofia atém-se aos atos e ao presente; não se subordina à fantasia. Bem quisera ainda jogar pião! Aos aplausos da multidão prefiro os da minha consciência. A volúpia não é ambiciosa; considera-se bastante rica em si e não aspira à glória; prefere ficar na sombra. Deveriam açoitar o jovem que tirasse seu prazer da degustação dos vinhos e das viandas; foi o que eu menos soube apreciar na mocidade. Só agora o aprendo. É uma vergonha, mas que fazer? Envergonham-me ainda mais os motivos que a tanto me impelem. Cabe-nos sonhar e discorrer; que a juventude pense na glória e nas realizações. Ela parte à conquista do mundo; nós estamos de volta: "A ela as armas, os cavalos, os dardos, a maça, a bola, a natação, a corrida; a nós, velhos, os dados e outros jogos". As próprias leis relegam-nos ao lar. Para compensar as tristes condições em que me precipitaram os anos, não posso senão recorrer aos jogos e folguedos, como faz a infância à qual vamos regredindo; a sabedoria e a loucura muito teriam que se esforçar para que, revezando-se, pudessem sustentar-me e auxiliar-me no calamitoso estado a que leva a velhice: "Mistura à sabedoria um grão de loucura". Evito as mais leves picadas; as que outrora não me houveram arranhado, hoje me traspassam. Sofrer torna-se-me um hábito. "Para um corpo débil, o menor sofrimento é insuportável." O espírito doente por nada se Interessa. Sempre fui muito sensível à dor; hoje eu o sou muito mais ainda e mais acessível a ela. O menor choque parte o que já se acha rachado. Minha razão condena em verdade tais recriminações e procura fortalecer-me contra os golpes da natureza, mas ela não pode impedir-me de senti-los. Iria de bom grado buscar no fim do mundo um bom ano de verdadeira tranquilidade e alegria, eu que só tenho como objetivo viver de bom humor. Sou muitas vezes de uma serenidade tristonha e estúpida, que me adormece e me dá dor de cabeça; não me basta. Se há por aí, em França ou alhures, alguém que aprecie a boa companhia, em viagem ou no lar, que se adapte a meu humor e a quem eu me ajeite, que me comunique logo: levar-lhe-ei os "Ensaios" em carne e osso. Por isso que o espírito tem o privilégio de fugir à velhice, aconselho-o quanto posso a fazê-lo; que mesmo nessa idade floresça e frutifique, como o agárico em árvore morta. Mas receio ter de me haver com um traidor; está tão intimamente ligado ao corpo, que se desvencilha continuamente de mim para segui-lo e participar de sua decadência. Chamo-o de lado então, e o adulo. Em vão. Por mais que me esforce por afastá-lo dessa ligação demasiado íntima, apresentando-lhe Sêneca e Catulo, as mulheres e as damas da corte, quando seu companheiro tem uma cólica ele a sente também; sua própria atividade específica como que se retesa. Nenhuma vida vem dele se o corpo não vive igualmente. Erraram os nossos mestres quando atribuíram as causas dos impulsos por vezes extraordinários de nosso espírito a uma inspiração divina, ao amor, a uma exaltação guerreira, à poesia, ao vinho, deixando de lado a saúde, essa saúde ardorosa, cheia de vigor, despreocupada que o verdor dos anos e o sossego me outorgavam outrora. Esse fogo de artifício faz não somente brilhar naturalmente o espírito, como também lhe inspira entusiasmos e extravagâncias. Não há pois como estranhar que o estado contrário o enfraqueça, o imobilize e turve: o espírito perde seu vigor em um corpo definhante. E quer ele ainda que eu lhe seja grato por demonstrar maior resistência que o da maioria dos homens! Portanto, enquanto temos uma trégua, afastemos os males e os sofrimentos de nossas relações: "Que a velhice sorria enquanto pode". "É útil atenuar pela jovialidade os negros prazeres da vida." Apraz-me uma sabedoria jovial e sociável e aborrece-me uma austeridade excessiva. Toda fisionomia rebarbativa parece-me suspeita, "bem como a tristeza arrogante de um rosto carrancudo pois entre a multidão de pessoas severas esconde-se mais de um devasso”. Penso que Platão tem razão de dizer que os humores influem grandemente na beleza ou perversidade da alma. Sócrates tinha uma fisionomia que não variava nunca, serena e sorridente; não era como a do velho Crasso, o qual se mostrava sempre descontente e ninguém jamais o viu sorrir. A virtude é naturalmente jovial. Estou certo de que entre os que se escandalizam com a licença de meus escritos muito poucos poderiam vangloriar-se de não se escandalizar com seus próprios pensamentos. Escrevo em verdade ao gosto deles, mas ofendo-lhes os olhos. É de bom-tom criticar os escritos de Platão e aludir apenas de leve às relações que teria tido com Fédon, Díon, Estela e Arqueanassa. "Não vos envergonheis de dizer em voz alta o que não vos envergonhais de aprovar baixinho." Detesto os espíritos mal-humorados e melancólicos que esquecem os prazeres da vida e só pensam nas desgraças, como as moscas que não podem sustentar-se sobre a superfície lisa e polida, mas se agarram a tudo o que é áspero e rugoso e assim descansam; ou como as sanguessugas que só chupam o sangue viciado. Aliás, impus-me a obrigação de ousar dizer tudo o que ouso fazer, e lamento até que todo pensamento não seja passível de exteriorização. O pior dos meus atos, a pior das situações em que me encontre não me parecem tão feios que não possam ser confessados, pois mais feio e covarde é não ousar dizê-lo. Todos se mostram discretos na confissão, mas na verdade deveriam tê-lo sido na ação: a ousadia no erro é em parte compensada pela ousadia na confissão. Quem se obrigasse a tudo dizer, obrigar-se-ia a nada fazer que não pudesse ser dito. Deus queira que essa minha licença excessiva decida os outros a se expandirem um pouco mais, levando menos em conta essas virtudes timoratas nascidas de nossas imperfeições, e que o sacrifício de minha modéstia os induza a um justo equilíbrio. E preciso discernir seu vício e bem analisa-lo para o contar; os que o escondem dos outros, escondem-no a si mesmos as mais das vezes; não o consideram suficientemente dissimulado quando o veem. Disfarçam-no mesmo perante a própria consciência. "Por que ninguém confessa seus vícios? Porque continuamos escravos deles. É preciso estar acordado para contar um sonho". "Os males do corpo evidenciam-se melhor em se tornando graves: constatamos que aquilo que julgávamos ser catarro ou luxação é na realidade gota. Os males da alma, ao contrário, tornam-se menos visíveis com a agravação; o mais doente é quem menos os sente. Eis por que é preciso não raro examiná-los de perto, arrancando-os sem dó do fundo do coração. Assim como a simples divulgação constitui um prêmio para as boas ações, confessar as más já se revela uma compensação. E não há horror que justifique a recusa em confessar um erro. Sofro quando preciso dissimular, por isso evito" tornar-me confidente dos segredos alheios, pois não teria a coragem de negar que os conheço; sou capaz de calar, mas negar o que sei só o faria mediante exagerado esforço e constrangimento. Só guardamos bem um segredo quando nosso temperamento nos ajuda; nunca por obrigação. Quando estamos a serviço do príncipe não basta porém ser discreto; é necessário mentir. Se me coubesse responder a quem perguntou a Tales de Mileto se devia jurar que não cometera um adultério que em verdade cometera, diria que não se tornasse perjuro porque a mentira é ainda pior do que o adultério. Tales, ao contrário, aconselhou-o a negar, pois assim evitava um mal maior, solução que, na realidade, não consistia em escolher entre dois males mas em acrescentar um mal a outro. Digamos, a propósito, que um homem de bem sente-se reconfortado quando, para pagar um erro, tem a oportunidade de enfrentar uma situação arriscada; mas se se vê obrigado a escolher entre dois atos indignos, passa sem dúvida por uma terrível prova. Foi o que aconteceu com Orígenes. Ante a alternativa de sacrificar aos ídolos ou ser entregue aos apetites carnais de um horrível etíope, resignou-se à primeira das condições, assim pecando gravemente ao que dizem. Convenhamos, entretanto, em que certas mulheres de nosso tempo, coerentes com suas ideias falsas acerca da religião, prefeririam por certo sobrecarregar a consciência com dez homens a ouvir uma missa; e não teriam experimentado a mesma repugnância. Será sem dúvida indiscreto tornar públicos os próprios erros, mas não há perigo que se tomem como exemplos, pois, como dizia Aríston, os ventos que os homens mais receiam são os que os descobrem. Devemos jogar fora esse pobre farrapo que disfarça os nossos costumes; mandam ao bordel a consciência e assumem atitudes impolutas. E até os traidores e assassinos assim se conduzem, defendendo as aparências e com isso se contentando. Mas não cabe à injustiça queixar-se da incivilidade, nem à malícia da indiscrição. É pena que os perversos não sejam igualmente imbecis e que a decência lhes tempere os vícios. Semelhantes revestimentos só se deveriam aplicar a paredes internas bem construídas, merecedoras de conservação. Apoiando, a esse respeito, os huguenotes que nos censuram o caráter sigiloso de nossa confissão, confesso-me publicamente com toda convicção e sinceridade. Santo Agostinho, Orígenes e Hipócrates tornaram públicos os seus erros de opinião; eu divulgo também os de meus costumes. Tenho o maior desejo de me mostrar como sou, ainda que isso me custe, ou melhor, não desejo nada, porém sentiria grande desprazer em ser considerado diferente do que sou pelos que vierem a saber da minha existência. Que pode ganhar em se mostrar diferente da realidade quem aspira às honras e à glória? Louvai um corcunda pelo seu belo porte; há de acreditar-se injuriado; se sois um covarde e proclamam vossa coragem, será de vós que falam? Tomam-vos por outro, e acreditar no louvor é fazer como aquele que se orgulhava das saudações que recebia porque o tomavam, a ele pobre comparsa, pelo chefe do bando. Ao passar o Rei Arquelau por uma rua, alguém lhe jogou um balde de água à cabeça. Incitavam-no a punir o desastrado, mas ele respondeu: "Não foi em mim que ele o jogou, foi na pessoa que acreditou que eu fosse". Sócrates, a alguém que lhe dizia que falavam mal dele, observou: "absolutamente, não há em mim nada do que afirmam". Quanto a mim, não seria em absoluto grato a quem me louvasse por ser um bom piloto ou extremamente modesto e casto; como não ficaria ressentido com quem me achasse traidor, ladrão ou bêbedo. Quem não se conhece pode empanturrar-se com elogios imerecidos; eu não, porque me vejo, me analiso e sei muito bem o que sou; agrada-me que me louvem menos, mas com conhecimento de causa; poderiam julgar-me um sábio em condições de sabedoria que considero idiotas. Lamento que as senhoras da sociedade encarem meus "Ensaios" como obra de salão e espero que este capítulo venham a ler no toucador, às escondidas. Confesso aliás que aprecio sua companhia a sós; em público ela carece de sabor e deixa de ser um privilégio. Em nossos adeuses exageramos em geral o amor às coisas que abandonamos, às vésperas de partir; são estes os meus últimos abraços. Voltemos ao nosso tema. Que fez aos homens o ato sexual, natural, necessário e justo, para que não ousemos referir-nos a ele sem corar, a ponto de o excluir das conversações mais sérias e honestas? Dizemos francamente matar, roubar, trair e essa outra palavra mal ousamos pronunciá-la. Será porque nela pensamos demasiado? É de se observar, em verdade, que as palavras que menos pronunciamos são as que melhor conhecemos; essa, quaisquer que sejam a idade e os costumes, ninguém a ignora, como não ignora o pão. Imprimiu-se em nós sem que fosse preciso ouvi-Ia ou vê-la escrita; e o sexo que mais pratica a ação é o que mais discreto se mostra. O que há de notável é que cercamos o ato de silêncio e deste não o tiramos nem mesmo para acusá-lo e condená-lo; e só o criticamos com perífrases e metáforas. Mas que insigne benefício se confere a esse criminoso, em estimando os juízes que não há como aludir sequer ao crime! Graças à severidade da pena, continua livre. Não ocorre com ele o que se verifica com os livros proibidos, os quais, justamente por isso, tanto se leem? No que me concerne, subscrevo as palavras de Aristóteles: "ato impudico, que embeleza a juventude e provoca os anátemas da velhice". Na escola antiga que prefiro à moderna porque tem maiores virtudes e menores vícios, recitavam-se estes versos de Plutarco: "Quem evita Vênus e dela foge sem cessar peca tanto como os que a seguem demasiado." E diz Lucrécio: - ó deusa, só tu governas a natureza; sem ti ninguém vê a luz do dia, e não há alegria nem prazer". Não sei quem possa ter intrigado Palas e as Musas com Vênus e afastando-as do Amor, pois não sei de divindades que melhor devam entender-se. Quem sonegasse às Musas a inspiração amorosa, roubar-lhes-ia seu mais belo tema, e o mais nobre; quem fizesse com que o Amor perdesse a colaboração da poesia, tê-lo-ia enfraquecido, privando-o de sua melhor arma. Seria tachar de ingratidão e ignorância esse deus essencialmente sociável e benevolente e essas deusas protetoras da humanidade e da justiça. Como não faz tanto tempo assim que renunciei a figurar entre seus adoradores, conservo a lembrança precisa de seu poder e de seu valor: "Sinto ainda as queimaduras de uma antiga chama". A febre deixa, ao se extinguir, vestígios de agitação e calor: "Considerar-me-ei feliz se nos anos de inverno esse resto de calor não me abandonar.? E, por mais esgotado e lerdo que me encontre, ainda experimento uns poucos efeitos dos entusiasmos idos: "Assim, o mar Egeu, batido pelos ventos, não se acalma repentinamente após a tempestade; agita-se ainda durante muito tempo.ê Mas na medida em que posso assegurá-lo, o poder e o valor desse deus apresentam-se mais vivos e animados na poesia do que na realidade: "O verso do poeta tem dedos acariciadores"," porque a poesia encerra, efetivamente, algo mais amoroso do que o próprio amor. Vênus nua, viva e palpitante não é tão bela como no-la pinta Virgílio: "Fala, e como ele hesita, a deusa envolve-o docemente em seus belos braços mais brancos do que a neve, e aquece-o num amplexo. Com esse contato, Vulcano sente renascer seu ardor habitual; um calor, que conhece muito bem, invade-o até a medula dos ossos. Assim brilha o relâmpago nas nuvens fendidas pelo raio e serpenteia qual fita de fogo... Vulcano atende enfim às solicitações amorosas de sua esposa e, nela encarnado, abandona-se às delícias de um sono reparador. E de se notar nessa citação o fato de Virgílio descrever-nos como esposa uma Vênus demasiado apaixonada. Nesse contrato de casamento, que atende aos ditames da sabedoria, os apetites são menos violentos e os prazeres mais moderados. O amor aborrece toda união contratada sem sua intervenção exclusiva e só participa discretamente dos embates que decorrem de outros interesses, como é o caso nos do casamento, porquanto este se prende natural e justamente a considerações de família, de situação e dinheiro. Ninguém se casa só por seu prazer e vontade; casamo-nos também, senão mais, por causa da família e da posteridade, pois as condições em que se realiza o casamento (e seus resultados) interessam à raça bem mais do que a nós mesmos. Eis por que penso deva ser negociado, antes por intermediários do que pelos futuros cônjuges. Não vos parece isso contrário às inclinações amorosas? Daí constituir um como que incesto entregar-se alguém às violências e extravagâncias da paixão (como já expliquei anteriormente) no decurso das relações veneráveis e sagradas entre marido e mulher, e que visam à procriação. É preciso, diz Aristóteles, aproximar-se de sua esposa com decência e calma, a fim de que carícias por demais lascivas não despertem nela um prazer excessivo capaz de desviá-la do caminho certo. O que ele propugna em nome da consciência, recomendam-no os médicos em benefício da saúde: "Um prazer demasiado fogoso, demasiado voluptuoso, demasiado renovado, altera o sêmen e prejudica a concepção"; dizem ainda que relações dessa ordem, para que sejam fecundas, devem espaçar-se consideravelmente: "a fim de que a mulher, apreendendo avidamente a oferta de Vênus, a encerre profundamente em sua matriz". Não conheço matrimônios menos afortunados do que os que se baseiam na beleza e no desejo. Para tal união há necessidade de alicerces mais sólidos, mais resistentes, e muita circunspecção. Entusiasmo e afã de nada valem. Os que, a fim de honrar o matrimônio, lhe agregam o amor, fazem como os que consideram ser a nobreza indispensável à virtude. Tais coisas têm algum parentesco, mas também muita dessemelhança. Não há como confundi-las, o que só pode prejudicar a ambas. A nobreza é uma bela qualidade, mas é qualidade por outrem outorgada e pode caber a um homem sem caráter ou viciado; por isso é bem menos apreciada do que a virtude. E ainda que fosse virtude, seria uma virtude artificial e tão somente exterior, decorrente do momento e do destino, variável na forma segundo os países, viva e mortal; sem nascedouro, como o Nilo; genealógica e comum; consecutiva e semelhante; com obrigações e deveres bem frágeis. A ciência, a força, a bondade, a beleza, a riqueza, e todas as outras qualidades comunicam-se e podem ser úteis, enquanto a nobreza só beneficia a quem a possui. Pediram a um de nossos reis que escolhesse entre dois candidatos a certo cargo, um dos quais era fidalgo. Ordenou ele que se nomeasse o mais capaz, sem se levar em conta a nobreza. Assim mostrava com precisão o lugar que esta deve ocupar. Um jovem desconhecido, filho de um homem de valor que acabava de falecer, pediu a Antígono que lhe desse o cargo do pai. O rei porém respondeu: "Nestes cargos, meu amigo, pondero unicamente os feitos de meus soldados; não a sua nobreza". Em compensação, em Esparta, por ignorantes que fossem, os filhos sucediam aos pais nos ofícios de trombeteiros, menestréis e cozinheiros. No reino de Calcutá os nobres constituem uma espécie acima das outras. Não podem casar nem exercer qualquer profissão que não a das armas. Os homens podem ter concubinas à vontade e as mulheres os amantes que bem entendam, sem que jamais se manifeste algum ciúme; mas é crime capital e imperdoável fazê-lo fora de sua própria casta. Consideram-se maculados pelo simples contato com alguém que não seja de igual condição e chegam a matar quem deles se aproxime demasiado, o que faz com que os indivíduos das classes malditas sejam obrigados a gritar sua presença nas esquinas, como os gondoleiros em Veneza; e os nobres os intimam então a se afastarem. Assim evitam estes a morte e os da casta privilegiada a mácula indelével. Nada pode fazer, nesse país, com que o plebeu se torne nobre: nem os serviços prestados, nem o tempo, nem a virtude ou a riqueza. Além desse costume, outros há igualmente discriminatórios, como o que proíbe o casamento entre pessoas de profissões diferentes; assim uma filha de sapateiro não pode desposar um carpinteiro. Os pais preparam seus filhos para exercerem a própria profissão com exclusão de qualquer outra, o que mantém as diferenças sociais e impede quaisquer mudanças. Um bom casamento, se é que existe, recusa-se ao amor; deve antes visar a uma boa amizade. Deve ser uma agradável associação de duas vidas, cheia de constância, confiança, serviços recíprocos e obrigações comuns. Nenhuma mulher que tenha provado a qualidade de esposa, "unida pelo matrimônio ao homem eleito", como diz Catulo, desejaria ser a amante de seu marido; a afeição que usufrui como esposa é bem mais honrosa e segura. Se um homem se alvoroça alhures e se entusiasma, perguntem-lhe a quem desejaria que ocorresse alguma desventura vergonhosa, à sua mulher ou à sua amante? Que infortúnio o preocuparia mais? Quem desejaria ver mais feliz? Responderá sem dúvida que se ocuparia antes da esposa. Em razão mesmo da raridade dos bons casamentos, pode-se avaliar quão preciosa é uma união acertada. Não há coisa mais importante em nossa sociedade. É uma instituição que não podemos dispensar e no entanto vivemos a aviltá-la. E assim acontece o que se verifica com os pássaros na gaiola; os que estão fora querem entrar e os que se acham presos aspiram à liberdade. Sócrates, a quem indagava se valia mais a pena casar ou não, respondia: "o que quer que façais, haveis de arrepender-vos". É uma associação a cujo respeito devemos citar Cecílio e Plauto: "O homem é para o homem um deus ou um lobo". É preciso que numerosas qualidades se conjuguem para criá-la. Em nossos tempos, a gente simples dá-se bem com o casamento porque os prazeres, a curiosidade e a ociosidade não a dominam; ao contrário, os temperamentos desregrados como o meu, rebeldes a quaisquer ligações e obrigações, não se adaptam muito bem ao matrimônio: É-me bem mais suave viver sem essas cadeias. Por inclinação natural, teria preferido fugir a desposar a sabedoria em pessoa, mas os usos e costumes nos amarram e condicionam. Meus atos, em sua maioria, decorreram sempre dos exemplos que tive à minha frente muito mais que de minhas preferências. Ao do casamento, em particular, não me dobrei voluntariamente; fui impelido a ele por circunstâncias estranhas ao ato em si, pois, versátil como é o homem, não há coisa por incômoda que seja, ou feia, ou desagradável e de se evitar, que não possa aceitar em dados casos. Fui levado ao casamento bem menos preparado então, e contrariado, do que o seria hoje após o haver conhecido de perto. E por mais livre e desregrado que me considerem, observei severamente as leis do matrimônio bem melhor do que prometera e esperava fazê-lo, Não cabe mostrar-nos recalcitrantes quando concordamos em nos amarrar. Devemos procurar não nos comprometer imprudentemente, mas se aceitamos a obrigação cumpre-nos observar as leis comuns, ou, pelo menos, esforçar-nos por observá-las. Os que se prestam à realização desse ato com ódio e desprezo, agem de modo injusto e poderão experimentar graves desditas. E as mulheres que seguem o ditado "serve teu marido como um senhor e desconfia dele como de um traidor", o que equivale a dizer "observa uma atitude de respeito hostil", correm igualmente o risco de se haver em grandes dificuldades. Não tenho suficiente energia para tomar por caminho tão espinhoso, nem cheguei ainda a essa perfeição de habilidade e sutileza de espírito que consegue confundir razão com injustiça e ridicularizar a ordem e a lei que não servem os apetites. Não é por detestar a superstição que me precipitarei de olhos fechados na irreligião. Mesmo que nem sempre se cumpra o dever, cabe respeita-lo e amá-lo, e é uma traição contrair matrimônio sem atender às obrigações conjugais. Vamos adiante. Virgílio descreve-nos uma união matrimonial em que reina harmonia sem que entretanto se observe muita lealdade. Terá querido dizer que não é impossível ceder às solicitações do amor, embora cumprindo as obrigações decorrentes do casamento? Que assim se pode faltar ao dever sem fugir inteiramente a ele? Há criados que roubam seus amos sem que estes os detestem por isso. A beleza, a oportunidade, o destino (pois o destino influi muito) fazem que a esposa possa afeiçoar-se a um estranho, sem, entretanto, se entregar tão completamente que não subsista algum laço para amarrá-la ao marido: "Há uma fatalidade pesando sobre esses órgãos que nossas roupas escondem, pois, se os astros não te protegerem, de nada te servirão as mais belas aparências de virilidade". Eis duas coisas distintas, que agem de modo diverso e não se devem confundir: uma mulher pode entregar-se a um indivíduo que não aceitaria de modo algum como marido, e não digo por causa da situação dele na sociedade, mas por ele mesmo. Poucos desposaram suas amantes sem que se arrependessem, o que se observa até entre os deuses, pois dizem que Júpiter não foi feliz com sua esposa, a qual conhecera carnalmente antes do matrimônio. É o que se chama "aliviar-se num vasilhame e enfia-lo em seguida na cabeça". Tenho visto, e em meios muito honrados, casamentos porem fim a amores escandalosos, pois amor e casamento prendem-se a considerações bem diferentes. Somos impelidos ao mesmo tempo a duas coisas diversas e antagônicas. Isócrates dizia que Atenas era uma cidade sedutora à maneira dessas mulheres que se frequentam pelo amor; todos gostam de passear com elas e distrair-se durante alguns momentos, mas ninguém pensa em desposá-las, isto é, em guardá-las e com elas viver a existência toda. E há maridos que odeiam suas mulheres tão somente porque eles mesmos as enganam. Mas não deveríamos querê-las menos por causa de nossos erros; o remorso e a compaixão deveriam, ao contrário, no-las tornar mais queridas. Os objetivos visados são diversos, explicava Isócrates, embora não incompatíveis. O casamento tem a seu favor a utilidade, a legitimidade, a honorabilidade, a duração; oferece-nos um prazer moderado mas generalizado. O amor visa unicamente ao prazer e é por certo mais excitante, mais vivo, penetrante; é um prazer que a dificuldade atiça e que exige um pouco de pimenta. Sem flechas nem ardores deixa de ser amor. A liberalidade das mulheres é, no casamento, por demais profusa, o que embota a afeição e o desejo. Para obviar a esse inconveniente, Licurgo e Platão criavam, com suas leis, numerosos obstáculos ao matrimônio. Têm razão as mulheres quando se recusam a acatar as regras de conduta estabelecidos pela sociedade, tanto mais quanto foram feitas pelos homens que as não ouviram a respeito. Pela própria força das coisas, ocorrem constantemente, entre elas e nós, pequenas e maliciosas dissensões e, mesmo nos momentos em que por comum acordo nos unimos mais intimamente, há conflitos e discussões. Na opinião de Isócrates não levamos suficientemente em consideração o fato conhecido de ser a mulher infinitamente mais sensível aos efeitos do amor. Esse sacerdote, que se transformou em mulher e voltou a ser homem, e assim "conheceu os prazeres dos dois sexos", afirma-o igualmente. Ternos também a esse respeito as declarações, feitas em séculos diferentes, por um imperador e uma imperatriz dos romanos, mestres na matéria. Ele deflorou em uma só noite dez escravas virgens, mas ela se entregou vinte e cinco vezes no mesmo lapso de tempo, mudando de parceiro de acordo com a necessidade e a fantasia: Até que esgotada, mas não saciada, teve de parar, ardendo ainda de volúpia. Houve na Catalunha um processo célebre em que a mulher se queixava da frequência com que seu marido a solicitava. Não me parece que a queixa se baseasse no incômodo experimentado (fora um milagre e só acredito em milagres em matéria de religião), e sim no desejo de contestar a autoridade do esposo sobre a esposa, fugindo (ainda que ocasionalmente) ao ato fundamental do casamento, pois a malícia e o espírito de contradição das mulheres são capazes de calcar aos pés, até no matrimônio, as doçuras e os prazeres que devemos a Vênus. À queixa respondeu o marido, dotado em verdade de um temperamento excepcionalmente brutal, que mesmo nos dias de jejum não podia deixar de possuí-Ia dez vezes. O processo terminou com singular sentença da rainha de Aragão, pronunciada após madura deliberação do conselho e tendo em vista estabelecer uma regra e assentar as ideias acerca da moderação a ser observada nas relações entre esposos legítimos. Determinava a rainha, como limite mínimo necessário a tais embates, que não ultrapassassem seis por dia. Dita sentença, concluía a rainha, restringia e sacrificava as solicitações de seu sexo "a fim de estabelecer uma regra de fácil aplicação e por conseguinte permanente e imutável". Ao que exclamam os doutos: a: que ponto atingem o apetite e a concupiscência femininos se sua moderação e virtude se devem pagar por tal preço! Diversas seriam as necessidades dos homens, porquanto Sólon, chefe da escola favorável à regulamentação de todos os atos da vida, considera que o marido deve ter relações com sua mulher somente três vezes por mês, a fim de se achar sempre à altura de seu dever. E, no entanto, embora conhecendo esses dados e outros, e sabendo que as exigências femininas são maiores do que as nossas, inventamos obrigá-las (a elas unicamente) à continência, sob a ameaça de castigos severos e até da pena de morte. Não há paixão mais imperiosa do que essa a que queremos que elas resistam, e não apenas na medida em que cumpre resistir a outros pecados, mas como se se tratasse do mais abominável e execrável dos vícios, de um crime mais grave que o ateísmo ou o parricídio. Enquanto isso, nós, homens, podemos fazê-lo à vontade sem que o considerem uma falta e sem incorrer em censura. Os que, entre nós, tentaram dominar-se, confessam as dificuldades que lhes coube vencer, ou antes a impossibilidade com que depararam, muito embora adotassem regime especial para domar e acalmar as revoltas da carne. E queremos que elas sejam castas e ao mesmo tempo saudáveis, bem-dispostas, vigorosas! Isto é, quentes e frias igualmente! O matrimônio que, a nosso ver, as deve impedir de se inflamarem, traz-lhes, no estado atual de nossos costumes, bem pequeno alívio. Se o marido ainda está na idade dos entusiasmos, vangloria-se de gastá-los alhures: "Cuidado, Basso, ou irei aos tribunais; esse órgão já não é mais teu, visto que mo vendeste e o paguei bem caro". E não foi sem razão que a mulher do filósofo Pólemon o processou por andar espalhando em terreno estéril o sêmen que devera reservar para terras adequadas à fecundação. Quanto às mulheres que desposam homens gastos, acham-se, embora casadas, em situação mais triste do que as virgens e as viúvas. Consideramo-las suficientemente aquinhoadas desde que tenham um homem a seu lado. Assim se disse de Clódia Laeta que fora deflorada por Calígula, quando na realidade ele não a possuíra. Esquecemos que a presença do macho, bem mais do que sua ausência, desperta a necessidade que elas têm de carícias e companhia. E foi sem dúvida para tornar mais meritória sua castidade que Boleslau, rei da Polônia, e Kinje, sua mulher, fizeram a promessa, no dia de seu casamento, de, embora dormindo juntos, não ter relações sexuais. E a cumpriram. Desde a infância nós as educamos para o amor. Graça, adornos, linguagem, tudo o que lhes ensinamos tem como objetivo o amor. Não lhes sugerem outra coisa suas governantas, ainda que no intuito, por vezes, de afastá-las de tal preocupação. Minha única filha está na idade em que a lei permite que se casem aquelas cujos sentidos se mostram mais exigentes. Seu desenvolvimento, que tem sido lento, entretanto, e seu temperamento linfático, contra o qual não reage a mãe, fazem que somente agora principie a desembaraçar-se da ingenuidade infantil. Lia perto de mim, há dias, um livro em que se encontrava a palavra fouteau, que designa por vezes uma árvore assaz conhecida. A governanta obrigou-a a pular o trecho escabroso em virtude do duplo sentido do vocábulo. Deixei-a fazer para não lhe perturbar a maneira de educar, desautorando-a com minha intervenção, mas devemos convir em que o método não parece recomendável e que cumpre mudar a orientação dada atualmente à educação das mulheres. Talvez me engane, mas creio que a própria convivência com meus lacaios não houvera induzido mais a imaginação de minha filha a descobrir o uso e o sentido secreto da palavra incriminada: "A virgem núbil compraz-se em aprender danças lascivas até a exaustão física; ela sonha desde a infância com amores impudicos." Quando as mulheres abrandam um pouco sua atitude cerimoniosa e concordam em falar com toda a liberdade, percebemos que não passamos de crianças ignorantes a seu lado. Escutai-as referirem-se a nossas assiduidades e ao que lhes sussurramos aos ouvidos; vereis que nada lhes ensinamos que já não saibam. Será por que, como pensa Platão, em sua vida anterior foram homens e devassos? Achei-me de uma feita em certo lugar de onde poderia ouvi-Ias sem ser visto. Gostaria de reproduzir o diálogo! Nossa Senhora, pensei, como perdemos nosso tempo estudando as frases de Amadis ou as histórias de Boccaccio e de Aretino! Não há palavras, ato ou malícia que não conheçam, e melhor! Têm isso no sangue! "Vênus, ela própria as inspira.? Bastam-lhes esses bons professores que são a natureza, a juventude, a saúde. Não precisam aprender porque elas próprias engendram em si tudo o que concerne ao amor. "Nem a pomba, nem qualquer pássaro lascivo, solicita mais amorosamente o seu macho do que a mulher que se entrega à sua paixão." Se o ardor natural de seus desejos não fosse freado pelo receio e as ideias de honra que lhes são inculca das, seríamos todos ridículos. Todo o movimento do mundo tem essa conjunção dos sexos como objetivo; ela se encontra em toda parte; é o centro para o qual tudo converge. Ainda subsistem as ordenações da velha e sábia Roma acerca do amor; Sócrates pontifica sobre a educação das cortesãs: "Não raro esses livros que se veem sobre as almofadas de seda de nossas beldades são obras dos estoicos"! Zenão em suas leis chega a mencionar os frêmitos do defloramento. E qual o assunto do livro do filósofo Estráton, intitulado "A Obra da Carne", e dos de Teofrasto, que se denominavam "O Amoroso" e "O Amor", e o de Aristipo: "Delícias do Passado"? Que significam as longas e vivas descrições que faz Platão das práticas amorosas de sua época? E a obra de Demétrio de Falero, intitulada "Dos Amantes"; e "Clínias ou o Amante à Força", de Heráclides; e "As Núpcias ou a Arte de Ter Filhos", de Antístenes; e "Do Senhor e do Amante", do mesmo autor; e "Os Folguedos Amorosos", de Aríston; e "O Amor" e "A Arte de Amar" de Cleantes; e os diálogos de Esfero; a fábula impudica de Júpiter e Juno, de Crisipo, e as lascivas cartas que o mesmo escreveu? E deixo de lado as obras dos filósofos epicuristas, que eram favoráveis à volúpia e a propugnavam. Cinquenta divindades presidiam outrora ao ato do amor, e houve um povo entre o qual, a fim de entorpecer a concupiscência dos fiéis, ofereciam-se-lhes raparigas e rapazes para o gozo prévio: porque a incontinência é necessária à observação da continência e o incêndio se apaga com o fogo. Em quase todo o mundo foi essa parte de nosso corpo venerada; em certos países chegavam a cortar-lhe um pedaço para oferecê-lo à divindade ou lhe devotavam o sêmen. Em outras regiões, os jovens perfuravam o pênis e introduziam entre a pele e a carne bastonetes de madeira, os maiores e mais grossos que podiam suportar e que se queimavam em holocausto aos deuses; e os que estremeciam com a dor cruel eram considerados pouco vigorosos e insuficientemente castos. Alhures a designação do chefe e o respeito que lhe dedicavam ligavam-se às dimensões de seu órgão genital, cuja efígie se exibia com grande pompa nas cerimônias em honra de certas divindades. No Egito, nas bacanais, as senhoras traziam ao pescoço uma imagem em madeira do sexo masculino, ricamente incrustada, de acordo, quanto ao tamanho e ao peso, com a resistência de cada uma; ademais, exibia-o orgulhosamente a própria estátua do deus. Mas, recentemente, deram as mulheres a forma de um membro viril a seus véus, a fim de proclamar o prazer que dele auferiam e, quando viúvas, rejeitavam o véu para trás, sob o penteado, eliminando a imagem sugerida. Em Roma, as mais virtuosas matronas faziam questão de oferecer flores a Priapo e, por ocasião das cerimônias nupciais, obrigavam a noiva, quando virgem, a sentar-se nas partes menos honestas da estátua. Não sei se em nossa época ainda se verificam práticas dessa ordem. Mas que significação podia ter esse ridículo apetrecho protuberante dos calções de nossos pais, que os guardas suíços ainda usam? Com que fim exibimos assim, exagerando-os, os nossos órgãos genitais? Sou levado a crer que a moda tenha sido inventada em tempos melhores do que os nossos, em épocas de boa-fé e honestidade em que cada qual aparecia em público como era realmente, o que ocorre ainda hoje entre os povos de costumes simples. Assim se julga a virilidade do homem, como pelo braço ou o pé se conhecem outras qualidades. Houve, em minha juventude, um sujeito bem-intencionado que mandou castrar as belas e antigas estátuas para que não nos ferissem a vista, considerando, com o não menos pudico Ênio, que "exibir a nudez em público é causa de devassidão". Deveria ter-se lembrado de que, para ter eficiência, tal medida precisava ser seguida da castração dos cavalos, asnos e outros animais, pois só assim se baniria tudo o que porventura pudesse evocar a masculinidade. Sobre a terra os homens, os animais domésticos e selvagens; nas águas os peixes; no ar os pássaros multicores; tudo atende ao apelo do amor. Os deuses, diz Platão, prouveram-nos de um órgão que não conhece a obediência e que nos tiraniza; que, como um animal furioso, quer tudo submeter à violência de seus apetites. Têm as mulheres igualmente o seu, o qual à maneira de um bicho glutão, delira se lhe recusam o alimento que reclama e não se conforma em esperar por ele. Comunica então, ao corpo em que se encerra, a cólera de que se vê tomado e perturba-lhe as funções todas, até que, tendo obtido o fruto desejado, se sinta profusamente regado e satisfeito. Esse mesmo legislador que ordenou tal ato de vandalismo devia ter pensado que abrir os olhos das mulheres para a realidade da vida seria medida bem mais decente e eficaz do que lhes deixar o espírito entregue a si mesmo e mais ou menos ansioso por adivinhá-la. O desejo e a esperança fazem que a essa realidade elas substituam imagens inteiramente extravagantes. E conheço alguém que se perdeu exibindo a sua realidade em lugar impróprio. Que prejuízo moral causam esses desenhos obscenos que as crianças traçam nos muros e nas portas dos edifícios públicos! Induzem a mulher a um cruel desprezo por nós quando constatam a desproporção da imagem com o objeto. E talvez tenha Platão atentado para isso quando, a exemplo do que se praticava em outras repúblicas de instituições modelares, determinou que nos ginásios homens e mulheres de todas as idades se apresentassem nus. As indianas, que veem continuamente os homens desvestidos, têm pelo menos a vantagem de não se iludirem pelos olhos. Nesse grande reino de Pegu, não têm elas próprias para se cobrir senão um pedaço de pano aberto na frente e tão estreito que por mais esforços que façam a cada passo se descobrem por inteiro. Embora se diga, desse costume, que tem por objetivo atrair os homens e distinguir os sexos em um país onde todos usufruem a liberdade de satisfazer seus instintos, pode muito bem ocorrer que o resultado seja contrário do que se espera, pois a fome total é mais difícil de suportar do que em parte saciada, ainda que somente pelo olhar. Por isso dizia Lívia que para uma mulher honrada um homem nu não passava de uma imagem. As lacedemônias, mais puras como mulheres feitas do que as nossas virgens, contemplavam diariamente a nudez dos jovens ginastas. Elas próprias não cuidavam de esconder as coxas ao andar, convencidas, como diz Platão, de que sua virtude as protegia suficientemente sem que fossem necessárias saias de roda. Em compensação, os que, segundo Santo Agostinho, atribuíam um poder prodigioso à tentação provocada pela nudez, indagavam, dubilativos, se no juízo final as mulheres conservariam seu sexo ou se se tornariam homens a fim de não nos induzir ao pecado quando gozássemos a eterna beatitude. Em resumo, provocam-nas e excitam-nas por todos os meios; sem cessar as incitam às fantasias e depois culpam-lhes o sexo. Digamos a verdade: não há entre nós quem não receie mais a vergonha provinda das faltas de sua mulher do que a decorrente dos seus próprios erros; não há quem não se preocupe mais com a consciência de sua esposa (maravilhosa caridade!) do que com a sua própria, não há quem não prefira ser ladrão e sacrílego a ter uma mulher impura, nem quem não ache melhor que ela seja assassina e herética a ser incontinente. Iníqua avaliação do vício! Somos, elas e nós, capazes de mil corrupções mais prejudiciais e contrárias às leis naturais do que a luxúria, mas avaliamos a gravidade do vício segundo o nosso interesse. Daí a relatividade de nosso julgamento. O rigor de nossas leis fez da falta da mulher um crime muito mais grave do que é na realidade, e de consequências fora de proporção com a coisa em si. E andariam elas mais acertadamente ganhando a vida como advogadas ou conquistando glórias na guerra, do que se preocupando com tão difícil defesa em meio ao ócio e a solicitações de toda a espécie. Pois não há negociante, ou procurador, ou soldado, que abandone suas ocupações profissionais para correr a tal defesa; e não alcançam o mesmo grau de sacrifício o trabalho e as privações do mais miserável sapateiro ou lixeiro. "Todos os tesouros de Aquemenes, todas as riquezas da Arábia e da Frígia não pagariam um só fio de cabelo de Licínia, nesses doces momentos em que, virando o rosto, ela entrega a boca a teus beijos, ou, caprichosamente, recusa o que lhe desejas roubar e que espontaneamente te oferece em seguida." Não sei se os feitos de César e Alexandre ultrapassam em dificuldades aquilo que uma mulher jovem e bela, educada a nosso modo, em uma sociedade em que brilhe, e tendo sob os olhos tantos exemplos contrários, em meio a mil proposições e solicitações, precisa fazer para se manter casta. Nada me parece tão espinhoso nem exige, a meu ver, maior cuidado do que isso que não faz. Acho mais cômodo carregar uma armadura durante a vida toda do que uma virgindade. E é porque o voto de castidade é o mais penoso de todos que é também o mais nobre: "A força do diabo está nos rins", diz São Jerônimo. Sem dúvida atribuímos às mulheres o mais árduo dos deveres, o mais exigente de esforços e resolução. Eis por certo um estímulo assaz poderoso para que se obstinem em se manter honestas e calquem aos pés a nossa pretensa superioridade. Por pouco que se preocupem com não infringir sua norma de conduta, não somente hão de granjear maior estima como também mais decidido amor. Um cavalheiro não desiste de sua corte por lhe negarem o que deseja, se a recusa assenta na temperança e não na antipatia; lamenta-se e ameaça talvez, mas não ama menos. E mente se afirma o contrário. Nada nos seduz mais do que uma mulher que se mantém honesta sem deixar de ser carinhosa e amável. É covardia e estupidez insistir junto a uma mulher que demonstra hostilidade e desprezo, mas é de uma alma nobre e generosa não romper relações com quem opõe ao desejo uma virtude resoluta e mesclada de gratidão. Uma mulher pode, até certo ponto, e sem desobedecer às regras da honestidade, mostrar que se compraz com as atenções de seu admirador e não o desdenha. E a lei que determina que nos detestem porque as adoramos é cruel e absurda. Por que não ouviriam nossos cumprimentos se não transgridem o que a compostura lhes dita? Haverá nelas algum sentido que desperte ao som de nossas palavras? Uma rainha de nosso tempo dizia com muito espírito que "recusar-se a ouvir galanteios é prova de fraqueza, denunciadora de certa propensão para o pecado", e que "uma senhora que não se expôs à tentação não pode vangloriar-se de sua castidade". A honra não se encerra dentro de tão estreitos limites; pode estender-se e gozar alguma liberdade sem se tornar passível de culpa; para além de seu domínio há uma zona neutra em que somos livres, em que o que ocorre não comporta consequências graves. Quem logra encurralar a virtude em seu último reduto para vencê-la, néscio será se não se considerar um privilegiado, pois a importância do êxito mede-se pela dificuldade encontrada. Quereis saber a impressão que causais em uma mulher com vossos galanteios e assiduidades? Julgai-o pelo seu caráter. Há quem muito mais dê, em não dando tanto quanto outras; um favor vale o preço em que o avalia quem o outorga; o resto são circunstâncias fortuitas que nada lhe acrescentam e como que não existem. O pouco que concede esta pode custar-lhe muito mais do que o que a outra dá. E se alguma coisa se valoriza pela raridade, temos nessa um exemplo típico. Não atenteis por isso para quanto obtiverdes e sim para o número dos que o puderam ou poderão obter. O valor de uma moeda depende do lugar em que é cunhada e da sua marca. Ainda que o despeito e a indiscrição induzam alguns à calúnia, sempre a verdade e a virtude acabam triunfando. Sei de mulheres cuja reputação por muito tempo foi posta em dúvida e que recuperaram o respeito de todos tão somente pela sua constância, sem esforços nem sacrifícios. Os maliciosos acabam por se arrepender e se desmentir. Há também mulheres de quem se duvidava em solteiras e hoje, depois de casadas, se encontram entre as mais estimadas. Alguém dizia a Platão: Todos falam mal de você. Deixai-os falar, respondia, pois viverei de maneira a forçá-los a mudar de opinião. Além do temor a Deus e de uma glória tão raramente conquistada, a corrupção do século deve incitá-las a não sucumbir. Se estivesse em seu lugar, a tudo me prestaria de preferência a confiar em gente tão perigosa. Outrora, o prazer de contar suas aventuras (prazer quase tão grande quanto o real) só se outorgava a quem tinha um grande e fiel amigo. Hoje, nas festas como à mesa, passam o tempo a vangloriar-se e a revelar segredos de alcova. Isso parece-me abjeto e vil e só pessoas ingratas e levianas podem assim permitir que chafurdem nos seus sentimentos mais íntimos e delicados. Nossa exasperação iníqua contra as fraquezas femininas provém dessa terrível doença que tanto aflige a alma: o ciúme. Que é que impede de tirar luz da luz? Diminui ela com isso? O ciúme e sua irmã a inveja parecem-me as mais estúpidas enfermidades morais. Desta última, que dizem ser uma paixão tenaz e poderosa, não posso falar porque não a conheço, graças a Deus. Quanto ao ciúme, conheço-o pelo menos de vista. Os próprios animais estão sujeitos a essa doença. Uma das cabras de Crátis, tendo se apaixonado por ele, o bode, durante a noite, esmagou a cabeça do pastor a chifradas. A exemplo de certos povos bárbaros, exageramos essa febre. Os mais ponderados e sábios sentiram-na, como é natural, mas sem delírios: "O sangue de um adúltero ferido por um marido jamais tingiu as águas do Estige. Luculo, César, Pompeu, Antônio, Catão e outros de incontestável bravura foram maridos enganados e o souberam, sem que por isso provocassem tumultos. Somente Lépido, naqueles tempos, se revelou bastante tolo para se atormentar a ponto de morrer: "Infeliz! Se o azar fizer com que te surpreendam, serás arrastado pelos pés e empalado com nabos e cenouras. Quando vulcano deparou com sua mulher em companhia de outro, contentou-se com os expor ambos ao sarcasmo dos demais deuses, o que levou um deles, dos menos austeros, a observar que de bom grado consentiria em ser assim castigado. Nem por isso deixa Vulcano de acariciar sua companheira, mas queixa-se de que ela desconfie então de seu afeto: Por que, ó deusa, não confias em mim. E quando ela pede alguma coisa para Enéias, um dos bastardos: "é uma mãe que pede armas para seu filho", ele a concede generosamente, exprimindo-se assim: "Armas para um herói". O ato é entretanto tão magnânimo que só pode admitir-se da parte de um deus: "e não há como estabelecer um termo de comparação entre um homem e um deus". Quanto à confusão dos filhos - coisa que preocupa os mais sérios legisladores - não afeta ela as mulheres e no entanto nelas é que o ciúme é mais forte. "Muitas e muitas vezes ao ciúme de Juno não faltaram motivos, dadas as infidelidades de seu marido."? E quando esse sentimento se apodera dessas almas frágeis e incapazes de resistência, é de ver-se com que crueldade as atormenta e tiraniza. Introduz-se nelas sob a forma de amizade mas, aí instalado, as mesmas causas, que antes invocavam a benevolência, tornam-se alvo de ódio mortal. E o ciúme, entre as doenças do espírito, a que mais facilmente se alimenta e a que com maior dificuldade se cura: saúde, virtude, mérito, reputação, tudo é pretexto para que se exprimam o despeito e a cólera: "Não há ódios mais implacáveis que os do amor". Essa febre deturpa e corrompe tudo o que há de bom e belo nas mulheres. Tudo o que faz uma mulher ciumenta, por honesta e diligente que seja, comporta algo azedo e desagradável; é presa de uma agitação colérica que indispõe os outros contra ela e produz efeito contrário ao esperado. Veja-se o caso de um tal Otávio, em Roma. Dormira com Pôncia Postúmia. Apaixonado desde então, instava com ela sem cessar para que se casasse com ele. Não conseguindo convencê-la, seu extremado amor levou-o a agir como um inimigo cruel: matou-a. Os sintomas dessa doença inerente ao amor são do mesmo tipo: cóleras intestinas, surda agitação, conjuras incessantes: "ninguém sabe até onde pode ir o ódio de uma mulher", diz Virgílio, é um ódio tanto mais exasperado quanto precisa sempre invocar o benefício da vítima. A castidade é um dever muito complexo. Será, por exemplo, a vontade que desejamos dominar? Mas a vontade é nas mulheres coisa demasiado elástica, versátil e viva. Um sonho basta por vezes e eis a vontade anulada. Não está em suas forças, defenderem-se sozinhas contra a concupiscência e o desejo, nem mesmo com o auxílio da castidade, a qual por ser também feminina está sujeita a idênticas solicitações. Se somente a vontade importa, aonde iremos parar? Imaginai um homem sem olhos nem língua, incapaz portanto de ver e falar, mas dotado do privilégio de se achar na hora certa no leito de uma mulher disposta a acolhê-lo: que tremendo êxito teria! As mulheres citas vazavam os olhos de seus escravos e prisioneiros de guerra para melhor se servirem deles sem serem reconhecidas. A grande vantagem está na oportunidade. A quem me perguntasse o que mais contribui para o êxito no amor, responderia: em primeiro lugar a oportunidade, em segundo a oportunidade e sempre a oportunidade. Desta tudo depende. Ocorreu-me, mais de uma vez, perder uma boa oportunidade; mas também me aconteceu carecer de ousadia. Deus perdoe quem zombe de mim. Neste século é preciso mais temeridade do que tenho, essa temeridade que os jovens atribuem ao entusiasmo da idade, mas que, se a olharmos de perto, não passa, na realidade, de desprezo pela virtude das mulheres que assediam. Não ofendê-las é para mim verdadeira superstição, e leva-me a respeitar o que amo. Demais, independentemente do fato de que em tais circunstâncias a falta de respeito amesquinha a preferência concedida, gosto de mostrar-me, neste caso, um tanto pueril e tímido. Além disso padeço um pouco dessa tola vergonha a que alude Plutarco e que amiúde me prejudicou na vida. E um defeito que não se ajusta em geral a meu temperamento, mas não somos feitos de sentimentos e ideias em permanente contradição? Tanto me aborrece receber uma recusa como dá-Ia; e de tal modo desagrada-me desagradar aos outros, que, se o dever me obriga a tentar convencer alguém de alguma coisa, faço-o contra a vontade, constrangido. Nos negócios desse gênero em que me ache diretamente interessado, embora Homero diga que no indigente a vergonha é uma virtude ridícula, encarrego outra pessoa de fazê-lo, assim como evito qualquer missão dessa espécie, mesmo porque minha timidez é de tal ordem, a esse respeito, que me aconteceu por vezes querer recusar e no entanto aceitar. Voltemos ao assunto. É loucura procurar frear na mulher um desejo tão natural e exigente. E quando as ouço dizer que sua imaginação continua virgem e que nada sentem ou querem, rio-me delas, pois exageram então, por demais. Se se trata de uma velha decrépita e desdentada ou de uma jovem tuberculosa, pode-se ainda acreditar que digam a verdade, embora não seja provável, mas, na boca das que respiram e vivem realmente, tal linguagem não me parece certa. Quem prova demais, torna-se suspeito; as justificações excessivas são acusatórias. Assim é que um fidalgo meu vizinho, que de impotência, "insensível às mais lascivas carícias, nunca dera o menor sinal de virilidade"; três ou quatro dias após a cerimônia matrimonial, andou a espelhar por toda parte que por vinte vezes se entregara ao amor. Dessa afirmação absurda se valeram posteriormente para desmascará-lo e anular o casamento. A continência e a virtude só existem na medida em que se resiste à tentação. Por isso a única coisa que as mulheres deveriam dizer em tais casos é que não querem ceder; os próprios santos assim se exprimem. Refiro-me às mulheres que, conscientes do que afirmam, se vangloriam de sua frieza e insensibilidade e querem que as levemos a sério; e não estou pensando naquelas que, assim falando, desmentem suas palavras, com gestos e olhares, usando uma linguagem muito sua que exige interpretação inteligente e naturalmente significa o contrário. Agradam-me imenso a ingenuidade e a pureza, mas é preciso que tais qualidades conservem a autenticidade original, sem o que se tornam ineptas ou impudicas. Esses disfarces que tais mulheres adotam, só aos tolos iludem. Mentir é-lhes ponto de honra e uma maneira de conduzir-nos à verdade por uma porta falsa. Se não podemos frear-lhes a imaginação, que poderemos querer então? Combater os efeitos? Mas muitos escapam ao conhecimento alheio e nem por isso as corrompem menos: "Faz-se muito o que se faz sem testemunhar? e o que mais se teme nem sempre é o que se deve temer. Esses seus pecados que ignoramos são os piores: "Aborreço menos a mulher viciada quando não dissimula o vício". Pode-se perceber o pudor sem impudicícia e até sem o saber: e conta Santo Agostinho que "uma parteira verificando com a mão se certa moça era virgem, ou por maldade ou por acidente, deflorou-a". Não falta quem tenha perdido a virgindade ao procurar entendê-la, nem quem dela se haja desfeito brincando. Não podemos circunscrever com exatidão o que lhes proibimos, nem formular nossas exigências senão de maneira vaga e geral. Por vezes, mesmo, é ridícula nossa concepção de sua castidade. Entre os exemplos mais singulares que disso posso dar, citarei o de Fátua, mulher de Fauno, a qual a partir do dia de suas núpcias nunca mais mostrou o rosto a homem algum, e o da mulher de Héron, que não se impressionava com o cheiro nauseabundo que exalava o nariz do marido, certa de que o fenômeno era inerente ao sexo masculino. Para que nos sentíssemos satisfeitos fora necessário que elas se tornassem insensíveis e invisíveis. Convenhamos portanto em que o pecado está na intenção. Houve, mesmo, maridos que foram enganados sem que os ofendessem suas mulheres mas antes revelassem, em o fazendo, sua grande virtude. Assim uma delas, mais atenta à honra que à vida, se prostituiu com o inimigo a fim de salvar o esposo, por este fazendo o que não houvera feito por ela própria. Não há como citar exemplos aqui, pois são feitos demasiado elevados para que se enquadrem no assunto. Reservemo-los para mais nobre tema. Mas descendo a exemplos mais vulgares, vemos diariamente em torno de nós mulheres que se entregam unicamente no intuito de ser úteis a seus maridos, por vezes até por ordem e intermédio dos próprios esposos. Na antiguidade Fáulio, de Argos, ofereceu sua mulher ao Rei Filipe, por simples ambição. E, por cortesia, um certo Galba, que oferecera um banquete a Mecenas e percebera que o convidado fazia a corte à sua mulher, fingiu-se de exausto e acabrunhado pelo sono para auxilia-I o em suas intenções amorosas. O que, de resto, revelou sem maiores dificuldades, portanto, tendo um dos servidores aproveitado a ocasião para tentar roubar um vaso da mesa, exclamou: "pois não vês, ó malandro, que estou dormindo somente para Mecenas?" Há mulheres de vida airada mais resolutas do que outras de aparência honesta. Há quem se queixe de ter feito voto de castidade antes de saber o que isso significava, como há quem lamente ter-se dedicado à libertinagem em idênticas condições, já por injunções de pais devassos, já para safar-se da miséria, que a necessidade é rude conselheira. Nas Índias Orientais, onde a castidade é particularmente apreciada, admite-se que uma mulher casada se entregue a quem lhe ofereça um elefante, o que, dado o valor do presente, constitui uma honra. O filósofo Fédon, que era de boa famt1ia, resolveu prostituir-se para viver, depois da invasão de sua pátria, e assim fez enquanto durou sua beleza. Sólon foi o primeiro, na Grécia, a conceder legalmente às mulheres a liberdade de prover às necessidades da existência pela prostituição, costume esse que, segundo Heródoto, já fora introduzido, antes, nas instituições de vários outros povos. E, finalmente, que benefício auferimos de tão tormentosa preocupação? Suponhamos que o ciúme se justifique: conduzirá a algum resultado o nosso tormento? Haverá quem imagine possuir um meio eficaz de governar sua mulher? "Prendam-na e coloquem guardas à porta da prisão; quem os vigiará? Ela é astuta e por eles é que começa." Que meios teremos para a controlar, nestes tempos de gente tão sabida? A curiosidade é sempre um defeito, mas, no caso, parece-me perniciosa; é loucura pretender informar-se acerca de um mal que nenhum remédio cura, antes agrava, e cujas consequências se ampliam com a publicidade que o ciúme lhe dá. E não adianta vingar-se, porque a vingança não apaga a falta e recai afinal nos filhos. Torturaremo-nos e morreremos de desgosto antes de elucidar uma coisa tão difícil de provar. Triste tem sido o resultado dos que buscam inteirar-se da verdade! E se quem nos adverte do mal não nos oferece ao mesmo tempo o remédio, está nos injuriando e merece mais uma punhalada do que se nos desmentisse em público. Demais, quem tenta vingar-se não é menos ridicularizado do que quem ignora o fato. A mancha da infidelidade é indelével; e, mais do que a falta, proclama-a o castigo. E não me parece muito inteligente arrancar da sombra as nossas desgraças a fim de alardeá-las tragicamente, tanto mais quanto são infortúnios tão somente na medida em que os conhecemos. Boa mulher e bom casamento não se dizem dos que o são realmente e sim daqueles a cujo respeito calamos. É preciso que nos esforcemos por evitar que saibam de nossos males, por isso os romanos, ao voltar de suas viagens, enviavam à frente um mensageiro a fim de não surpreender suas mulheres. É também por isso que em certos povos os sacerdotes abrem caminho ao marido, o qual assim não precisa indagar se casou de fato com uma virgem ou com uma jovem já maculada. Mas, dirão, e os comentários? Conheço cem bons sujeitos que são enganados e de quem ninguém fala, cujos casos não provocam escândalo. Tem-se pena de um homem de bem a quem tal acontece, mas nem por isso é menos respeitado. Trata-se de fazermos com que, graças a nossas virtudes, a desgraça passe despercebida e que as pessoas honestas nos olhem com simpatia e desprezem os que agem mal. E, finalmente, quem está isento de semelhante desventura? Nem mesmo o general que comandou tantas legiões e que, em tudo, é superior a um pobre diabo como tu. Dizem-no de tanta gente honrada que bem podes imaginar que não serás poupado. As próprias mulheres se mostrarão indiferentes, e, por outro lado, de que mais zombam hoje senão de um casal que se entende bem e vive sossegado? Todos nós já chamamos alguém de cornudo; não nos devemos pois espantar com o revide. Compensações e represálias estão na ordem natural das coisas. E a frequência do acidente por certo tempera-lhe o amargor. Acresce ainda que essa desgraça é incomunicável. "O destino recusa-se a ouvir nossas lamentações." Com efeito, em que amigo poderemos confiar sem que ria de nós ou sem que se valha da informação em benefício próprio? Os sábios guardam segredo, tanto a respeito dos infortúnios matrimoniais como de seus prazeres. E, nesse caso, consideram indecente comunicar a outrem o que sabemos e sentimos, o que não deixa de aborrecer quem, como eu, é de natural expansivo. Seria tempo perdido argumentar de igual modo com as mulheres, a fim de evitar que se mostrem ciumentas, pois são tão desconfiadas, frívolas e curiosas que não podemos esperar curá-las pela razão. Não raro elas se corrigem, mas voltam à saúde em condições muito mais desastrosas do que as da própria doença, e ocorre então o que se verifica nas feitiçarias: o mal passa a outro. Quando a febre as abandona, apossa-se em geral dos maridos. Todavia não sei de algo que nos atormente mais do que o seu ciúme; é o mais perigoso estado de espírito em que podem encontrar-se, como a cabeça é nelas a parte do corpo que menos vale. Pítaco dizia que todos têm a sua enfermidade; a sua era a cabeça da mulher e, sem ela, considerar-se-ia inteiramente feliz. Se tão pesado inconveniente perturbou a vida de um homem como ele, de tanto valor e sabedoria, que será de nós, pobres mortais! Andou bem o Senado de Marselha ao deferir o requerimento em que certo indivíduo pedia permissão para matar-se, a fim de obviar a uma existência que a esposa tornava infernal, pois o mal é daqueles que só findam com o doente. Ambas as soluções possíveis, fuga e resignação, são igualmente difíceis. E bom psicólogo foi quem disse que, para um casamento feliz, é necessário unir um homem surdo a uma mulher cega. Cuidemos igualmente de não lhes impor obrigações tão extensas e rigorosas que acabem por provocar resultados contrários aos almejados, tornando-se um estímulo para os que as perseguem e um pretexto para que pequem mais facilmente. Quanto à primeira hipótese, aumentando o valor da mulher aumentamos também o desejo de quem a pensa conquistar. A própria Vênus, para valorizar sua mercadoria, terá inspirado o rigor das leis, sabendo que o mais vulgar dos amores se faz desejável através da ideia de sua dificuldade. Em última instância, como dizia o hóspede de Flamínio, tudo é carne de porco e só os molhos a diversificam. Cupido é um deus rebelde, sente prazer em lutar contra a devoção e a justiça; alegra-se com opor seu poderio aos outros e quer que tudo se dobre ao seu capricho: "Sem cessar busca uma oportunidade para novos excessos". Quanto ao segundo ponto, seríamos nós tão enganados se o receássemos menos? Isso está no temperamento da mulher; mas a proibição a incita ainda mais a fazê-lo: "Quereis? Elas não querem. Não mais o desejais? Elas desejam? Repugna-lhes o que é permitido. Comprova-o o caso de Messalina, mulher de Cláudio. A princípio engana o marido às escondidas, como é normal, mas, percebendo-lhe a estupidez, fá-lo em seguida abertamente e distribui seus favores de modo a que o saiba e sofra. Não se incomodando o estúpido imperador, e tornando-se insípidos os prazeres tão facilmente alcançados, os quais como que se legitimavam assim, vai além. Mulher de um imperador são e vivo, em Roma, palco do mundo, em pleno dia, durante uma cerimônia pública, casa com seu amante Sílio, num dia em que Cláudio se encontra ausente. Dir-se-ia que procurava tornar-se novamente casta diante da indiferença do marido, ou que tomava outro capaz de excitá-la com seus ciúmes. Mas aí surge seu primeiro e último percalço: Cláudio reage alvoroçado, e as cóleras subitamente despertadas são as mais violentas; inflamando-se de repente, apela para as mais cruéis vinganças. A carga acumulada estoura: "soltam-se as rédeas da ira". O imperador manda executá-la, bem como muitos dos seus comparsas, inclusive alguns que o haviam sido a contragosto, porquanto ela os forçara a possuírem-na mediante suplícios e açoites. O que Virgílio diz das relações matrimoniais de Vênus com Vulcano, Lucrécio o dissera mais lindamente da união ilícita da deusa com Marte: "Não raro o deus da guerra, o temível Marte, embriagado de amor, perde seu orgulho e se aniquila em teus braços... Avidamente inclinado sobre teu seio, seus olhos contemplam enamorados o teu divino corpo. É então o momento, ó deusa, de o abraçares e te queixares docemente". Pensando em certas palavras desses poetas, como "rejicit, pascit, pudet, inhians, molli, fovet, medullas, labefacts, pendet, percurrit" e nessa nobre "circunfusa", mãe da gentil "infusa, sinto certo desprezo por essas locuções e alusões tão pouco expressivas que se usam agora. Os antigos não queriam um estilo mais ou menos sutil e incisivo e sim uma linguagem rica, plena, naturalmente vigorosa. Tudo o que dizem é epigrama, e não vem este apenas na cauda, mas também na cabeça, no estômago e nos pés: nada é artificial ou forçado, tudo se desenvolve dentro de uma unidade, todo o discurso é másculo e sem floreios inúteis. Não é uma eloquência efeminada em que nada choca; é nervosa, sólida, antes satisfaz e entusiasma do que agrada e encanta os espíritos mais fortes. Quando vejo essa maneira ousada, tão viva e profunda de se exprimir, não considero o que escrevem "bem escrito", mas sim "bem pensado". A força da imaginação realça e valoriza as palavras, "no coração brota a eloquência"." Hoje chamamos critério ao palavrório e conceitos às belas frases. O que pintavam os antigos não decorria da habilidade e sim da impressão sincera que sentiam. Galo fala com simplicidade porque assim o concebe; Horácio não se contenta com uma expressão superficial porque vê mais clara e profundamente. Por isso seu espírito esquadrinha o armazém das palavras para descobrir as que melhor lhe vistam o pensamento; é-lhe necessário mais do que aquilo que aí se encontra comumente, como sua concepção ultrapassa igualmente as concepções vulgares. Plutarco diz que aprendeu a língua latina pelas coisas que lhe eram descritas; aqui também: o sentido ilumina e realça as palavras, fazendo-as não de vento mas de carne e ossos; significam mais do que dizem, e até os imbecis percebem um pouco do que se trata. Na Itália eu dizia o que queria nas conversações triviais, mas quando visaram mais alto não ousava confiar em uma língua que não dominava, pois nesses casos quero poder contribuir com alguma coisa pessoal. Os homens cultos enriquecem a língua pelo modo por que a empregam, e não propriamente inovando-a, mas revigorando-a e a tornando mais útil, variada, elástica. Não introduzem palavras novas, mas dão maior riqueza às existentes, emprestam-lhes outros sentidos e objetivos, e outorgam-lhes movimentos singulares, tudo com prudência e engenho. Que o dom é raro, bem o vemos pelos escritores franceses contemporâneos; são bastante audaciosos e altivos para não seguir caminhos batidos, mas faltam-lhes imaginação e modéstia. Só revelam afetação, amor à singularidade e aos adornos artificiais e absurdos que, em vez de dignificar o tema, o aviltam. Ávidos de novidade, pouco se lhes dá a eficácia; e, no afã de empregar uma palavra rara, abandonam a vulgar, frequentemente mais precisa e expressiva. Nossa língua parece-me bastante rica, mas algo grosseira. Talvez o jargão de nossas guerras e caçadas devesse ser aproveitado nela, pois seria filão de bom rendimento, sem dúvida. A exemplo das plantas, as formas da língua corrigem-se e se fortalecem com a transplantação. A nossa é assaz abundante mas pouco flexível e vigorosa. Não exprime em geral com felicidade as ideias fortes. Se as queremos exprimir, sentimos que o instrumento falha e vacila e temos que apelar para o latim ou o grego. Em algumas das palavras que citei, recebemos menos bem a força expressiva porque o emprego demasiado frequente que delas se fez como que as vulgarizou e embotou. Como em nossa língua atual, há nesse trecho expressões excelentes e metáforas cuja beleza e colorido se embaçaram e atenuaram em virtude de sua antiguidade e do uso repetido, mas isso não as torna insossas aos paladares requintados nem diminui a glória desses autores antigos, que foram provavelmente os primeiros a dar a essas palavras um brilho específico. A ciência trata as coisas do mundo de um modo demasiado artificial, antinatural e pretensioso. Meu pajem ama e conhece a linguagem do amor, mas dai-lhe a ler Leão Hebreu e Ficin! Falam dele, de seus pensamentos e suas ações e no entanto ele não os entende. Eu tampouco consigo reconhecer em Aristóteles a maioria das impressões que sinto habitualmente; vestiram-nas com outras roupas de uso na escola. Sem dúvida terão sua razão para assim agir; entretanto, se eu fosse do ofício, esforçar-me-ia por tornar natural a arte, como eles se esforçam por artificializar a natureza. Quanto a Bembo e Equícola, não os comentarei. Quando escrevo, não recorro nem aos livros nem à lembrança que deles tenha, de medo que influam na minha maneira de escrever, sem contar que os bons autores me desesperam e desanimam. Sou como aquele pintor, que, tendo representado uns galos de um modo pouco feliz, proibia a seus ajudantes de trazerem galos de verdade ao atelier, a fim de evitar qualquer comparação. Eu teria antes necessidade, para brilhar um pouco, de fazer como Antigênidas, esse músico que, quando devia tocar, se arranjava para que antes ou depois fossem ouvidos alguns maus cantores. É-me mais difícil esquecer Plutarco. Esse autor é tão universal e completo que em todas as ocasiões, por extraordinário que seja o assunto, ele se intromete no trabalho alheio, oferecendo generoso auxílio, sugerindo as mais variadas e belas soluções. Por isso mesmo lamento vê-lo tão exposto ao saque dos que o conhecem. Eu mesmo, cada vez que o encontro, não posso deixar de surrupiar-lhe alguma coisa. Resolvi igualmente escrever esta obra em minha província selvagem, onde ninguém me pode ajudar ou corrigir, onde só frequento pessoas que não entendem sequer o latim de seu padre-nosso e menos ainda o francês. Escrito alhures, fora talvez melhor mas não tão meu, e seu objetivo principal, bem como seu mérito, está em ser a minha imagem exata. Corrijo por vezes alguns erros acidentais (estes não faltam, porque escrevo ao correr da pena), mas seria desleal tocar nas imperfeições inerentes à minha pessoa. Quando me dizem (ou eu mesmo me digo): "Estás abusando das imagens - eis um gascoismo - essa locução é escabrosa (não elimino nenhuma das que em França se ouvem nas ruas, pois os que pretendem opor a gramática ao costume são ridículos) - esse trecho revela ignorância - esse outro é paradoxal - isso é por demais jocoso - estás a brincar constantemente e podem acreditar que falas a sério", respondo: é verdade, mas só corrijo os enganos, jamais os defeitos de minha personalidade. Pois não é assim mesmo que falo habitualmente? Não me mostro tal qual sou? Está certo então. Cheguei ao que queria, pois todos me reconhecem em meu livro e a este em mim. Como os macacos, tenho forte tendência para a imitação. Quando eu fazia versos (só os fiz em latim), revelavam de modo evidente o último poeta lido. Assim estes ensaios. Os primeiros capítulos sabem a uma região diferente. Em Paris eu não me exprimo exatamente como em Montaigne. Se olho atentamente para alguém, algo dessa pessoa se imprime em mim; aposso-me do que analiso: uma atitude inconveniente, uma careta desagradável, uma forma ridícula de linguagem, defeitos principalmente; e quanto mais esses sestros me impressionam, mais tempo os conservo. É preciso um esforço para que os abandone. Se blasfemo é por imitação e não por temperamento, e esse arremedo se me afigura tão infeliz quanto aquele dos enormes e vigorosos símios que Alexandre encontrou nas Índias e não houvera dominado sem a mania imitativa que os caracteriza. Como isso os levava a fazer o que viam, deram os caçadores de calçar-se diante dos monos com muitos cordões bem apertados, enrolar o corpo com laços de nós corredios, untar os olhos com cola. Desse modo os pobre animais, imitando-os, amarravam-se e eram garroteados. Quanto à capacidade de reproduzir engenhosamente os gestos e o sotaque alheios, não a tenho em absoluto. Quando blasfemo por distração e sem imitar ninguém, não vou além de "Por Deus!", o que não é muito grave. Dizem que Sócrates exclamava: "pela vida de um cão!" e que Zenão dizia: "Capperi!" como os italianos de agora, e Pitágoras: "pela água e pelo ar!" Sou tão receptivo às impressões superficiais, que se durante três dias andei a dizer "Alteza" e "Majestade" uma semana mais tarde ainda me surpreendo a empregar esses termos em lugar de "Monsenhor" e "Excelência". E o que digo por troça um dia, eu o repito a sério a seguir. Por isso, quando escrevo, procuro evitar os assuntos mais batidos, de medo de os tratar a expensas de outrem. Qualquer tema me serve, uma simples mosca pode ser o pretexto. E Deus queira que o que estou ventilando agora não provenha de fonte estranha. Pouco importa o começo, vou encadeando as ideias umas nas outras. Desagrada-me contudo que as mais profundas reflexões, as mais ousadas e as que mais aprecio, surjam ao acaso do devaneio, quando menos as espero e quando não as posso registrar. É em geral quando estou a cavalo, à mesa ou na cama que me ocorrem, principalmente a cavalo. Quando falo, quero que silenciem em torno de mim e prestem atenção ao que digo; se me interrompem, calo-me. Em viagem o próprio caminho provoca interrupções na conversação; por outro lado, as mais das vezes viajo em companhia de pessoas com as quais não posso ter uma conversa séria. Conseguintemente, falo com meus botões. Em semelhantes circunstâncias acontece-me como quando sonho, procuro fazer com que a memória retenha os pensamentos, mas no dia seguinte já não sei sequer se eram tristes, alegres ou estranhos. Em vão me esforço por conserva-los na lembrança; quanto mais busco mais esqueço. E das ideias que me vêm à mente, apenas guardo uma vaga recordação, exatamente o suficiente para que me canse e atormente. Deixando os livros de lado e encarando as coisas com simplicidade, unicamente do ponto de vista material, acho que o amor não passa de uma vontade de possuir o fruto de nossos desejos, e que Vênus não é senão o prazer de aliviar certos órgãos, satisfação que outras partes do corpo também exigem. Sede e prazer que só se tornam vícios quando carecemos de moderação. Para Sócrates, o amor é a necessidade de procriar por intermédio da beleza. Considerando atentamente os movimentos ridículos, a agitação febril e as divagações a que se entregam, nesse ato de loucura, pessoas de todas as categorias, inclusive as mais sábias, como Zenão e Crátipo, analisando as emoções que suscita, de furor e crueldade, no próprio instante das mais doces sensações, e a prostração grave e severa que sucede a tais demonstrações; vendo que as delícias e secreções se localizam no mesmo órgão e que o êxtase supremo nos arranca lamentos como a dor, creio que Platão está com a razão quando afirma que o homem foi criado pelos deuses para servir-lhes de brinquedo. Cruel folguedo! E penso que foi por zombaria que a natureza nos outorgou essa faculdade, a mais desregrada e a mais comum; quis com isso colocar no mesmo nível os loucos e os sábios, homens e animais. Quando me represento o mais contemplativo dos homens, e o mais prudente, nesse estado, considero que me vanglorio sem razão de ser prudente e contemplativo. Os pés do pavão abatem-lhe o orgulho. "Que é que impede de dizer a verdade brincando?" Quem não admite que se possa exprimir um pensamento sério jovialmente, faz como aquele que hesita em adorar a imagem de um santo se não estiver vestido dos pés à cabeça. Na realidade comemos e bebemos como os animais, o que não entrava as funções de nosso espírito e por isso, em relação a tais atos, nós lhes somos superiores; mas no ato sexual qualquer pensamento diverso deixa de existir e sua tirania faz que toda a teologia e toda a filosofia de Platão não passem de tolices. Em todas as demais circunstâncias podemos conservar certa decência e salvaguardar o pudor; nesse ato não nos é dado sequer imaginar uma conduta que não seja viciosa e ridícula. Tentai encontrar um modo sábio e discreto de proceder: não o achareis. Alexandre dizia que pelo sexo e o sono é que constatava que pertencia ao gênero humano. O sono abafa e interrompe as faculdades do espírito; esse ato as absorve e dissipa. É sem dúvida um sinal de nossa vaidade e deformidade, como também um comprovante do pecado original. Por um lado a natureza nos impele à união sexual, ligando ao desejo a nossa mais nobre, útil e agradável função; por outro, induz-nos a desrespeitá-la, a tachá-la de desonesta, a nos envergonhar dela e a propugnar a abstinência. Seremos tão estúpidos assim para qualificar de brutal o ato ao qual devemos a vida? Os povos e religiões coincidem em certas coisas: oferendas, sacrifícios, luminárias, incensos, jejuns e condenação do ato sexual. Neste ponto todos estão de acordo, sem falar do costume muito espalhado da circuncisão, que é como que um castigo. E talvez tenhamos mesmo razão em condenar o ato que engendra coisa tão estúpida quanto o homem, e em tachar de indecentes as partes que dele participam. Os essênios, de que fala Plínio, viveram vários séculos sem conhecer uma ama ou uma fralda, e os estrangeiros iam aumentar-lhes o número, atraídos pela regra estabelecida pelos autóctones, a qual determinava que não tivessem relações sexuais com as mulheres ainda que disso resultasse seu extermínio ou o fim do gênero humano. E dizem que Zenão só possuiu uma mulher na vida unicamente, e fê-lo assim mesmo por cortesia, para não pensarem que odiasse o belo sexo. Todos evitam ver nascer o homem e correm para vê-lo morrer. Para destruí-lo, procuram um campo espaçoso, em plena luz; para construí-lo, ocultam-se ao abrigo das sombras. É como que um dever esconder-se para fazê-lo e envergonhar-se de tê-lo feito; é uma glória, a que se agregam várias virtudes, desfazê-lo. Uma coisa ofende a moral; a outra constitui um mérito. Não diz Aríston que, segundo um ditado de sua terra, matar alguém é beneficiá-lo? Os atenienses, a fim de purificar a ilha de Delos e conciliar a benevolência de Apolo, proibiram os partos e as inumações, assim aparelhando um ato a outro: "Consideramos que existimos em consequência de um erro cometido". Certos povos cobrem a parte inferior do rosto para comer. Conheço uma senhora, e das mais distintas, que compartilha essas ideias: considera que a mastigação diminui consideravelmente a graça e a beleza da mulher e quando janta em público come o menos possível. Conheço igualmente um homem que não suporta o espetáculo de alguém comendo, nem sofre que o vejam comer, e evita mais a presença de outrem quando se enche do que quando se esvazia. No império turco há muitos homens que, a fim de conseguir maiores méritos, não se mostram quando comem, o que só fazem uma vez por semana; golpeiam o próprio rosto, ferem os membros e não falam com ninguém. São fanáticos que pensam honrar a natureza alterando-a; jactam-se de se desprezar e imaginam tornar-se melhores em se fazendo piores! Que animal monstruoso é o homem! Inspira horror a si mesmo, pesam-lhe os prazeres e busca sem cessar o mal! Muitos procuram sua existência "desertando em voluntário exílio o seu doce lar. Ocultam-na aos olhos alheios e evitam a saúde e a alegria como prejudiciais. Seitas, e até povos inteiros, amaldiçoam a vida e bendizem a morte, alguns há que abominam o sol e adoram as trevas. Só nos mostramos engenhosos em nos atormentar. A isso aplicamos as forças todas de nosso espírito, o qual é um perigoso instrumento de desregramento: "Infelizes os que consideram a alegria um crime". Pobre homem, já bem grandes são as dificuldades que te cumpre vencer, porque te dás tanto trabalho em inventar outras? Não é necessário que forjes tristezas e aborrecimentos imaginários! Achas que estás tão bem assim, que possas desperdiçar a metade? Pensas realmente que já tenhas cumprido todos os deveres que te impôs a natureza e que seja preciso criar outros? Não temes infringir as leis naturais, que são universais e justas, e te vanglorias de observar as tuas próprias, fantasistas, ditadas por preconceitos e te esforçando tanto mais por obedecer-lhes quanto mais estranhas e controvertidas? O que diz respeito à tua própria paróquia, tudo te preocupa e apaixona; mas esqueces o que se refere ao mundo. Guia-te um pouco pelo que digo; assim é a vida. Os versos desses dois poetas, que tratam com distinção e discrição da lascívia, parecem-me esclarecê-la e realçá-la. As senhoras não cobrem os seios com gazes? Não ocultam os padres certos objetos sagrados aos olhares curiosos? Não dão os pintores relevo a seus quadros com as sombras que aplicam? E não se diz que o sol e o vento são mais fortes por reflexão do que diretamente? Sábia resposta deu um egípcio a alguém que lhe perguntou o que ele transportava escondido sob o manto: "se o escondo é para que não saibas". Mas há coisas que só se ocultam para que melhor se admirem. Pois quando Ovídio escreve: Toda nua, apertei-a contra o seio, sinto-me castrado. E Marcial, por mais que exiba as seduções de Vênus, não a consegue apresentar na plenitude de seus encantos. Quem tudo diz, empanturra-nos e nos repugna. Quem, ao contrário, se empenha em ser discreto, sugere-nos mais do que comporta a realidade. Há algo traiçoeiro em tal modéstia. É o que fazem Virgílio e Lucrécio, indicando apenas um belo caminho para a nossa imaginação. A ação e a descrição valorizam-se com a maneira de falar. Agrada-me o amor dos espanhóis e italianos, mais respeitoso e tímido, mais requintado e discreto. Não sei mais quem dizia, na antiguidade, que desejara ter um pescoço de grou, bem comprido, para mais demoradamente apreciar o que engolia. Tal desejo se justificaria melhor quanto ao prazer amoroso, demasiado rápido e repentino mesmo para os que, como eu, gostam de satisfações imediatas. Para ampliar as sensações, cumpre prolongar os preâmbulos. Entre espanhóis e italianos qualquer sinal da mulher é uma recompensa para o pretendente: um olhar, um abano de cabeça, uma palavra, um gesto. Não viveria feliz quem pudesse jantar com o perfume de um assado? O amor é uma paixão em que a uma pequenina dose de seriedade se misturam muita vaidade e fantasia; cumpre atentar para isso. Ensinemos às nossas mulheres a se valorizarem, a nos divertirem e mesmo se divertirem à nossa custa; com essa impetuosidade que nos caracteriza, queremos, nós franceses, tudo conquistar de assalto. Com menos sofreguidão, conquistando-as pouco a pouco, todos, inclusive a miserável velhice, encontraríamos o que colher segundo as nossas forças e os nossos méritos. Quem só aprecia o gozo, quem só quer tirar a sorte grande, quem só ama a caça pelo que caça, não é de minha escola; quanto maior número de degraus mais alto se eleva quem os galga, e mais honrado é. Deveríamos comprazer-nos em ser guiados quando pleiteamos os favores da mulher, como quando penetramos nesses palácios suntuosos cujo acesso é dificultado por inúmeras galerias e complicados corredores. Isso só nos traria vantagens, pois faríamos paradas em caminho e nosso amor duraria mais. Ao passo que, quando o desejo e a esperança se extinguem, nada mais pode interessar-nos. A mulher tudo tem a temer de nós quando nos tornamos seus senhores; desde que se entregue à nossa fé e constância, virtudes raras e difíceis, entrega-se ao acaso. A partir do momento em que se faz nossa, não mais lhe pertencemos. "Uma vez satisfeito o capricho, não mais ligamos para as nossas promessas e juras." Um jovem grego, Trassonides, era tão ciumento que, embora dono do coração da amante, recusou possuí-la a fim de não se saciar, de não ver apagada pelo gozo a chama com que se deleitava. Um preço elevado requinta a qualidade das coisas: vede como em nossa terra a forma muito particular de nossas saudações se deprecia em virtude da facilidade com que as distribuímos. O beijo, cuja força, segundo Sócrates, é grande e perigosa para os corações, perde seu valor. É um costume desagradável e ofensivo para as senhoras apresentar os lábios a qualquer pessoa, só porque arrasta consigo três ou quatro lacaios, embora "tenha um focinho de cão do qual escorre uma baba lívida pelas barbas. Preferiria antes beijar-lhe o traseiro!"! Nem nós mesmos ganhamos com isso, pois de acordo com a realidade do mundo, não há mais do que três mulheres belas em cada cinquenta feias que temos de beijar. E para o estômago sensível de um indivíduo de minha idade, um mau beijo não se compensa com um bom. Na Itália a deferência e a gentileza não se excluem, nem mesmo nas relações com as mulheres de vida airada, que se pagam. E assim se explicam tais atenções: há graus diversos no prazer e os cuidados visam fazer com que essas mulheres se entreguem mais completamente, pois, quando se vendem, vendem apenas o corpo; sua vontade fica de fora. E esta que se procura conquistar, e com razão, mas isso só se consegue mediante gentileza. A ideia de possuir um corpo sem afeição horroriza-me. Parece-me um ato absurdo de superexcitação, como o daquele rapaz que se masturbava por amor à estátua de Vênus esculpida por Praxíteles. Ou o daquele egípcio louco conspurcando o cadáver de uma morta que lhe cumpria embalsamar, o que deu origem a uma lei determinando que os corpos das mulheres jovens e belas ou de boa família só fossem entregues ao artesão três dias depois do falecimento. Periandro fez coisa mais espantosa ainda: continuou a coabitar com sua esposa Melissa, mesmo depois de morta, e a gozar-lhe o corpo. E não obedeceu a Lua a uma ideia realmente lunática quando manteve Endimião adormecido durante três dias, a fim de possuí-lo e dele arrancar um prazer que ele só podia dar em sonho? Pois digo, da mesma forma, que amamos um corpo sem alma quando o amamos sem que nos deseje e o queira. Nem todos os prazeres são iguais; há-os também doentios e frágeis. Mil motivos, fora da vontade, podem levar uma mulher a entregar-se; a coisa não é, em si, uma prova de afeição. Como em tudo, nisso pode haver uma segunda intenção. E por vezes ela se contenta com deixar fazer: tão impassível como se preparasse o vinho e o incenso do culto (...), dir-se-ia que está ausente ou é de mármore. Conheço algumas que preferem emprestar sua pessoa do que sua carruagem; e é, não raro, tudo o que são capazes de emprestar. Cabe ainda verificar por que lhes agrada a nossa companhia, se alguma razão especial as inspira, ou se nos querem como quereriam um vigoroso lacaio. E há também que considerar o preço que devemos pagar pelo favor, se se dá a nós unicamente e se assinala esse dia com uma pedra branca ou se condimenta o nosso pão com tempero de sua imaginação: "A nós é que aperta nos braços, mas por outro é que suspira". Já não se viu alguém valer-se desse ato para a execução de terrível vingança, envenenando uma mulher honesta a fim de que de sua posse decorresse a morte do inimigo? Pois isso aconteceu. Os que conhecem a Itália não estranharão que a esse respeito eu me atenha a seus exemplos. Nesse país as mulheres belas são mais comuns, e há menos feias do que no nosso, mas creio que não lhe ficamos atrás no que concerne às belezas excepcionais. O mesmo ocorre com as pessoas de espírito: abundam na Itália e menor é aí o número de tolos; mas em matéria de almas de elite nada lhe ficamos a dever. Se quisesse estender o paralelo a outras coisas, diria que quanto à valentia a situação se inverte. Em relação à deles, essa virtude é como que natural em nós e se encontra em todas as classes da sociedade, mas neles é ela por vezes tão elevada que sobre-excede em abnegação e vigor o que temos de mais perfeito. O casamento nesse país está subordinado a tão severos costumes e a mulher é tão escrava, que a menor relação com um estranho se assemelha aos atos mais graves; daí resulta que elas não se detenham nunca em caminho. A escolha é inevitável, desde que tudo acarreta idênticas consequências. O primeiro passo basta para levar ao fim. "A luxúria é um animal feroz que encadeado se irrita e se mostra mais furioso ainda ao libertar-se." É preciso afrouxar-lhe um pouco as rédeas: "Vi outrora um cavalo rebelde ao freio, e, tomando-o nos dentes, lançar-se como um raio." Com um pouco de liberdade, torna-se menos exasperado o desejo de companhia. Assim, correm os italianos, com sua severidade, um risco igual ao que corremos com nossa licença. E um costume feliz em nossa terra, esse de as grandes casas receberem nossos filhos para os educar como pajens numa verdadeira escola de nobreza; recusar a oferta de um fidalgo nesse sentido, chega a ser um ato descortês. Observei igualmente (cada casa tem seu uso) que as senhoras que pretenderam impor certa austeridade às damas de seu séquito, não auferiram bons resultados do esforço; é necessário, nisso, muita moderação, e confiar na discrição de cada uma, pois nenhuma regra disciplinar pode amarrá-las inteiramente. É evidente que deve inspirar maior confiança quem passa incólume pela prova da liberdade do que quem anda direito porque sai de uma escola em que é prisioneira e severamente vigiada. Nossos pais educavam as filhas no temor da vergonha (não tinham menos desejo nem menos coragem, coisas que são invariáveis nelas); nós lhes ensinamos a ter segurança. É um erro. Nossos métodos conviriam às sármatas que só podiam dormir com um homem depois de matar outro com as próprias mãos. Eu, que não mais as ambiciono e que só lhes posso dar atenções, limito-me a aconselhá-las, quando o solicitam. Prego-lhes pois a abstinência, como aos homens; e se o século é por demais inimigo da castidade, que, ao menos, ajam com discrição e modéstia. Porque, como dizia Aristipo a um dos jovens que se envergonhava de tê-lo visto entrar numa casa de prostituição: "o mal não está em entrar, e sim em não sair". Que quem não se esforça por salvar a consciência, salve ao menos a reputação; se o fundo pouco vale, preserve-se a aparência. Acho louvável que na distribuição de seus favores observem certa gradação e não se apressem. Platão quer que em qualquer gênero de amor a facilidade e a rapidez sejam proibidas aos interessados. Ceder impudente e precipitadamente em tudo a um tempo, é sinal de uma gulodice de sua parte que devem assinalar com cuidado; ao contrário, cedendo com consciência e medida, perturbam nossos desejos e escondem os seus. Que fujam sempre, mesmo as que desejam ser alcançadas; como as citas, assegurarão melhor a vitória com a fuga. De acordo com o que impõe a natureza, não lhes cabe propriamente querer e desejar; seu papel é aceitar, obedecer, submeter-se. Por isso é que a natureza lhes deu a possibilidade de entrar em relações conosco a qualquer momento, e a nós só nos outorgou a faculdade de fazê-lo raramente. Estão sempre prontas para isso, a fim de o estarem quando chega a hora. "Nasceram para ser passivas", diz Sêneca, e enquanto nossos apetites se manifestam de maneira saliente, os delas permanecem ocultos. Seus órgãos não permitem que seus desejos se revelem, mas sim que acatem. Às amazonas cumpre atribuir fatos como esse que ocorreu com a rainha de Hircânia. Deixando nas montanhas o resto de um exército considerável, veio ela com mais trezentas guerreiras, bem montadas e armadas, ao encontro do conquistador. E, dirigindo-se a ele, disse-lhe diante de todos os presentes que o eco de sua vitória e de seu valor fizera com que ela viesse, a fim de pôr à sua disposição, na consecução de seus projetos, os recursos e poderes próprios; disse-lhe ainda que o achava tão belo, jovem e vigoroso, que, ela mesma bela e vigorosa, desejava que dormissem juntos. Assim se uniriam o homem e a mulher mais admiráveis do mundo e deles nasceria algum rebento igualmente admirável. Alexandre agradeceu-lhe e, a fim de ter tempo para aceder aos desejos expressos, sustou a marcha de suas forças durante treze dias, os quais passou a festejar alegremente com a corajosa princesa. Julgamos em geral muito mal as suas ações, como elas também julgam as nossas. Reconheço-o, confessando a verdade, seja-me ou não favorável. Uma feia inconstância leva-as a mudarem tão amiudadamente e a nunca fixarem sua afeição em coisa alguma; assim a Deusa a quem atribuem tantos amantes. É verdade que se o amor não é violento, não é amor e que a violência e a constância não andam juntas. Que os que estranham tal inconstância e procuram a causa dessa doença a que elas são sujeitas, tachando-as de desnaturadas, atentem para si próprios e vejam quantos sofrem da mesma enfermidade sem que, no entanto, a coisa os horrorize ou os leve a falar em milagre. Muito mais espantoso fora se elas tivessem constância, pois essa paixão do amor não é apenas física. E se não há limites para a avareza e a ambição, tampouco os há para a luxúria. Esta sobrevive à satisfação e não se pode determinar que tenha um mesmo objeto sempre e um fim previsível. Prossegue sem cessar em sua marcha, estendendo seu domínio. Será possivelmente a inconstância mais perdoável nelas do que em nós; como nós, elas podem invocar a tendência para a novidade e a mudança, mas podem alegar, a mais (o que não podemos fazer), que compram nabos em sacos, isto é, sem terem sido suficientemente instruídas. Joana, rainha de Nápoles, mandou estrangular Andreosso, seu primeiro marido, com um cordel de ouro e prata por ela mesma tecido, porque não o achara provido de vigor bastante para os deveres conjugais, o que a desiludira, dada a estatura, a beleza, a juventude que ele aparentava e a haviam seduzido. Ademais, exigindo o papel ativo maiores esforços do que o passivo, a mulher está sempre em estado de desempenhar o seu, ao passo que pode ocorrer-nos o contrário. Por isso mesmo, estabelece Platão em suas leis que antes do casamento, e a fim de decidir de sua oportunidade, examinem os juízes os rapazes e as raparigas, aqueles da cabeça aos pés e estas até a cintura somente. Pode acontecer que, após a experiência, não nos ache a mulher dignos de sua escolha, que após haver empregado em vão toda a sua habilidade, ela abandone o leito conjugal. Não basta a vontade para formar um direito; a fraqueza e a incapacidade são causas legítimas de anulação de casamento. "Cumpre então buscar alhures um esposo mais apto a desfazer a cintura virginal. Por que não? Por que não arranjaria outro com uma compreensão mais eficiente do amor, visto que o escolhido "não pode levar a cabo tão doce tarefa"? Não vos parece impudente apresentar-se alguém com suas imperfeições e fraquezas a quem deseja agradar, dar boa impressão de si e ser apreciado? Pelo pouco de que sou hoje capaz não importunaria alguém de quem gostasse e que não quisesse ofender: Já não tenho forças. Não há que temer de quem completou onze lustros. Não basta a natureza ter tornado essa idade tão miserável, queremos ainda que se revele ridícula! Por isso odeio verificar que, por causa de uns pobres restos de vigor ainda capazes de nos entusiasmar de quando em quando, nós nos agitamos como se estivéssemos à altura de atender brilhante e plenamente aos mais legítimos desejos. Trata-se em verdade de um fogo de palha e espanta-me ver como nos excita e aquece quando, no fundo, nos achamos tão totalmente apagados e gelados. A gente só deve encontrar-se em tal estado na flor da idade. Desconfiai, portanto, pois vereis que, em vez de secundar vosso generoso entusiasmo, o qual não se extingue e sempre se imagina capaz de tudo alcançar, vos largará no caminho. Que o tente em vosso lugar algum jovem ignorante, ainda na idade das correções e da timidez: "como um marfim da Índia tingido de vermelho, ou como lírios que em meio às rosas lhes refletem as cores vivas". Quem pode, sem morrer de vergonha, pensar no desprezo com que o contemplarão no dia seguinte os belos olhos testemunhas de sua covardia e impertinência, que lhe censurarão com seu silêncio mesmo, nunca sentiu a satisfação de vê-los pisados e apagados pela fadiga de uma noite ativamente vivida. Nunca atribuí à mulher e à sua indiferença o fato de se ter algum dia aborrecido com minhas carícias; a princípio pensei que devesse acusar a natureza, pois deve ter-me tratado com parcialidade e de maneira pouco amável: "Foi comigo avarenta". "E por certo tinham razão as mulheres de desprezar tão magras aparências." Lamentável imperfeição, pois cada uma de minhas peças é igualmente minha e nenhuma mais do que essa me torna mais essencialmente homem. Devo ao público um retrato realista de mim. Estes ensaios são edificantes porque a verdade, a realidade e a liberdade neles reinam. Recuso-me a trocar um dever real por essas regras mesquinhas, hipócritas, fictícias e de uso restrito. Atenho-me às leis gerais e constantes que a natureza nos dita e de que são filhas, mas filhas bastardas, a civilidade e as convenções sociais. Que importam os vícios que parecemos ter, ao lado dos que realmente temos? Quando houvermos acabado com estes, atacaremos os outros se acharmos necessário. Pois corremos perigo em imaginar novos deveres a fim de desculpar-nos por não termos cumprido os verdadeiros, estabelecendo a confusão. Assim acontece, como em certos países, serem os crimes erros e os erros crimes; e em outras nações, em que as regras da boa educação são poucas e sem consequência, o bom-senso faz que se observem mais estritamente as leis naturais. A multidão inumerável dos deveres exige tal atenção, que chegamos a negligenciá-los e olvidá-los. Um excesso de aplicação às coisas de nonada desvia-nos das importantes. Fácil é o caminho desses homens que veem as coisas superficialmente! Todas essas convenções não passam de para-ventos atrás dos quais nos confiamos e regulamos nossas relações sociais; mas não nos permitem libertar-nos, antes aumentam nossos deveres para com o grande juiz que, afastando trapos e ouropéis, nos examina em nossa nudez total, pois não lhe escapam nem mesmo as nossas vergonhas e os nossos vícios mais secretos. Se ao menos nossa pretensa decência pudesse obviar tal descoberta! Por isso, quem despojasse o homem de tão escrupulosa superstição verbal não causaria grande prejuízo ao mundo. Nossa vida é em parte loucura e em parte prudência. Quem só se refere ao que se considera decente e respeitável, deixa metade de lado. Não o digo para desculpar-me; se devesse desculpar-me de alguma coisa, seria de minhas desculpas e não dos meus erros; são explicações que dou aos de opinião contrária à minha e que constituem a maioria. E como desejo contentar todo mundo, o que é na realidade impossível, direi que "não há homem capaz de se conformar com tão grande variedade de costumes, juízos e desejos". Acrescentarei que não devem censurar-me por apelar para autores respeitados há séculos, nem devem negar-me o direito a certas liberdades que se admitem mesmo em eclesiásticos e dos mais notáveis de nossos tempos. Eis a prova, em dois deles: "Que eu morra se não é verdade que sejas fonte de volúpia". "Um amigo a contenta e é sempre bem recebido." Apraz-me a decência e não é de caso pensado que, escrevendo, emprego expressões escandalosas; escolhe-as a natureza. Não aprovo essa maneira de fazer, como nada aprovo contra os usos estabelecidos; desculpo-a porém e considero que dadas circunstâncias, tanto gerais como particulares, lhe atenuam a gravidade. Continuemos. Qual a causa dessa usurpação de autoridade soberana sobre as mulheres que correm o risco de conceder "seus favores furtivos nas sombras da noite"? Por que nos acreditamos desde logo no direito de nos imiscuir em sua vida como um marido? Na realidade, trata-se de um acordo estabelecido entre a mulher e o homem e que não lhes tolhe a liberdade; e as convenções voluntárias não admitem imposições. Embora minha tese contrarie a tendência habitual, em meu tempo observei (dentro das limitações naturais) a orientação que defendo e agi com alguma justiça e conscienciosamente nas questões dessa ordem. Só disse de minha afeição às mulheres, na medida em que realmente a senti, e com inteira franqueza mostrei o nascimento, o apogeu e a decadência da inclinação, bem como meus entusiasmos e desinteresses, pois nem sempre estamos bem-dispostos. A tal ponto evitei desmandar-me em promessas, que sem dúvida cumpri muito mais do que prometi e mesmo do que devia. Fui-lhes fiel mesmo em suas infidelidades confessadas e aliás numerosas. Nunca rompi com elas enquanto lhes dediquei alguma ternura, por insignificante que fosse. E jamais me separei delas com rancor ou desprezo, embora pudesse ter razões para tanto, pois sempre considerei que tais intimidades, ainda que alcançadas à custa de combinações vergonhosas, merecem alguma gratidão de nossa parte. Aconteceu-me por vezes encolerizar-me e impacientar-me com suas malícias, seus subterfúgios, e também nas discussões que se verificavam, porque por temperamento sou levado a manifestar-me com violência e a perder a calma. Quando porventura tentaram influir no meu julgamento, não hesitei em dirigir-lhes admoestações paternais e mordazes, não poupando seu ponto fraco. Se lhes dei motivo de queixa foi talvez por as ter amado de uma maneira incomum, possivelmente tola porque demasiado conscienciosa para o nosso tempo. Cumpri minha palavra em coisas em que talvez o dispensassem; algumas se renderam, quando sua reputação ainda estava intata, em condições que sem maiores dificuldades teriam admitido que o vencedor olvidasse. Mais de uma vez, em prol de sua honra, ocorreu-me renunciar ao prazer no momento em que fora maior. E, sempre que o julguei certo, armei-as até contra mim mesmo de modo que, seguindo-me, se acharam assim mais protegidas do que se houvessem obedecido a suas inspirações próprias. Quanto possível assumi sozinho os riscos de nossos encontros, e arranjei as coisas indica das para afastar quaisquer suspeitas. O que menos se teme é o que menos se vigia, e é mais indicado portanto tentar o que, pela sua dificuldade, ninguém espera seja tentado. Ninguém mais do que eu evitou a concepção. Tal correção parece ridícula em nossa época e é pouco observada, bem o sei. Não me arrependo entretanto de ter agido assim, embora só perdesse com isso. Hoje, o quadro votivo suspenso aos muros do templo de Netuno, a todos revela que sacrifiquei a esse deus minhas roupas ainda molhadas no naufrágio. Em outras palavras, após inúmeros contratempos libertei-me dessa paixão perigosa e posso falar abertamente. A qualquer outra pessoa que assim se exprimisse talvez eu respondesse: estás sonhando, amigo; o amor em teus bons tempos não obedecia a tamanha lealdade e boa-fé; "se queres submetê-lo a regras, tens sem dúvida a pretensão de unir a loucura à razão". Nem por isso; se devesse recomeçar, deixaria de conduzir-me como me conduzi, seguindo a mesma marcha, embora o resultado não tenha sido muito recompensador. A ineficiência e a tolice são louváveis quando se pratica uma ação pouco recomendável. Nisso, muito me afasto da opinião comum. Demais, nessas questões não me entregava completamente. Buscava o prazer, mas não me esquecia; conservava intato, no interesse da companheira momentânea como no meu próprio, o pouco de razão e discernimento que a natureza me outorgou. Comovia-me, mas não me perdia em sonhos. Minha consciência podia adaptar-se à devassidão e ao desregramento, nunca à ingratidão, à traição, à maldade, à crueldade. Não pagava qualquer preço pelo prazer que o vício vende, contentava-me simplesmente com suportar as consequências necessárias, pois, como diz Sêneca, "todos os vícios acarretam consequências". Detesto igualmente uma ociosidade entorpecente, sonolenta e uma atividade árdua e penosa; agita-me esta, embrutece-me aquela. Tanto me desagradam os ferimentos como as machucaduras, e tanto os golpes que penetram como os que não ferem. Assim consegui, nessas questões, um justo equilíbrio entre os extremos. O amor é uma agitação viva e alegre; não me perturbava nem afligia; animava-me tão somente e eu sabia poupar minhas forças. Cumpre fazê-lo, pois é nocivo aos loucos. Um jovem perguntava ao filósofo Panécio se o sábio deve amar. Respondeu-lhe Panécio: "Deixemos o sábio de lado, não somos sábios, nem eu nem tu, e não nos comprometamos em coisa que tão violentamente comove a ponto de nos tornar escravos de outrem e desprezíveis a nossos próprios olhos". Tinha razão e não devemos em verdade comprometer a alma em questão de tão graves consequências, a menos de estar à altura de desmentir a afirmação de Agesilau: "o amor e a sabedoria não andam juntos". É por certo o amor uma ocupação frívola, chocante, vergonhosa, ilegítima; mas, conduzida como o recomendo, passa a ser útil à saúde, capaz de desentorpecer o espírito e o corpo. E, se fosse médico, o aconselharia, como terapêutica, a um homem de meu temperamento e condição, a fim de despertar-lhe as forças e o manter em forma, retardando os efeitos dos anos. Enquanto não nos aproximamos demasiado da velhice, enquanto nosso pulso bate ainda, "enquanto surgem apenas os primeiros cabelos brancos e os primeiros sinais da idade, enquanto a Parca ainda tem com que tecer, enquanto nos resta a possibilidade de mover os membros e um bastão não nos é ainda indispensável", temos necessidade de ser solicitados por essa sensação que nos agita e estimula. Vede como o amor rejuvenesceu, revigorou e alegrou o sábio Anacreonte! E dizia Sócrates, em idade mais avançada do que a minha, de uma pessoa pela qual concebia esse sentimento: "Com os ombros apoiados um no outro, como se olhássemos juntos um livro, senti repentinamente uma picada, como de um inseto, e essa impressão de formigamento persistiu durante cinco dias comunicando-se ao meu coração". Assim um contato fortuito bastava para aquecer e perturbar uma alma já amortecida pela idade e que mais se aproximava da perfeição! E por que não? Sócrates era homem e não desejava ser nem parecer outra coisa. A filosofia não se opõe aos prazeres naturais, conquanto não se abuse deles. Recomenda a moderação e não a fuga. E seus esforços visam desviar-nos dos que não são naturais ou que, embora vindos da natureza, se deturparam. Diz que o espírito não deve intervir com o fim de aumentar nossas necessidades físicas, adverte-nos com razão da inconveniência de excitar nossa fome com excessos, aconselha-nos a não nos empanturrarmos em lugar de nos alimentarmos, bem como a evitarmos tudo o que desperte nossos apetites. No que concerne ao amor, convida-nos a somente satisfazermos as solicitações da carne, sem que a alma se perturbe, porque a coisa não lhe diz respeito e lhe cumpre apenas assistir o corpo. Creio portanto estar certo quando observo que esses preceitos (que considero entretanto algo excessivos) visam a um corpo em estado de desempenhar seu papel. Quanto a um corpo debilitado, parece-me inútil tentar aquecê-lo e anima-lo mediante processos artificiais, ou recorrendo à imaginação a fim de lhe devolver o apetite e a alegria que já não possui. Podemos dizer que enquanto permanecemos nesta prisão terrestre nada nos afeta exclusivamente a alma ou o corpo; que com tal distinção desmembramos o homem em vida; e que é tão normal sentirmos o prazer quanto o sofrimento. Assim, por exemplo, graças ao espírito de penitência que os dominava, a dor causada pelos pecados era sentida pelos santos com uma intensidade que os levava à perfeição; e em virtude da íntima união existente entre a alma e o corpo, o sofrimento atingia também este, embora não estivesse diretamente ligado à causa mesma do tormento. Mas os santos não se contentavam com o fato de o corpo acompanhar a alma nas suas desgraças, infligiam-lhe ainda torturas atrozes, a fim de que ambos os mergulhassem em um estado de sofrimento que julgavam tanto mais salutar quanto mais agudo. Não haverá injustiça, no caso dos prazeres sensuais, em fazer com que a alma se alheie ou deles participe como que por obrigação? A meu ver cabe-lhe, ao contrário, buscar e fomentar esses prazeres, e orientá-los; como também lhe compete, quando se trata de prazeres que lhe são peculiares, comunica-los ao corpo e esforçar-se por que lhe sejam agradáveis e úteis. Pois se é razoável dizer que o corpo não deve procurar sua satisfação em detrimento da alma, tampouco seria justificável que esta se deleitasse com prejuízo daquele. Nenhuma outra paixão poderia excitar-me agora. Outros buscam seu prazer na avareza, na ambição, nas demandas e disputas. A mim, só o amor me interessaria. Devolver-me-ia o cuidado com minha pessoa, a vigilância, a jovialidade; faria com que os tristes sestros da velhice não me desfigurassem; e sem dúvida me induziria a estudos úteis e louváveis que me tornariam mais querido; libertaria meu espírito do desespero e da falta de confiança em seus meios; afastar-me-ia de mil pensamentos aborrecidos, de mil melancólicos desgostos que a ociosidade e a falta de saúde provocam; e, pelo menos em sonho, aqueceria este sangue que a natureza começa a abandonar, sustentaria esta cabeça que se inclina, distenderia estes nervos e outorgaria um pouco de vigor e alegria de viver a este pobre homem que caminha a grandes passos para a ruína. Compreendo porém muito bem que o amor não se recupera; por fraqueza e experiência nosso gosto se faz mais exigente e requintado; e tanto mais queremos selecionar quanto menos possibilidades temos de ser aceitos. Reconhecendo nossos próprios defeitos, tornamo-nos mais desconfiados e tímidos. Nada pode assegurar-nos que sejamos amados, dadas as condições em que nos achamos e as da juventude entusiasta e viva, "que exibe um membro incansável e mais rígido do que a árvore plantada na colina". Envergonho-me, mesmo, de sua companhia, pois nada tenho a mostrar-lhe senão a minha miséria. Para que a alegre mocidade contemple com gargalhadas a tocha a derreter-se. Os jovens têm a força e a razão, cumpre-nos ceder-lhes o lugar que não mais podemos ocupar; esses brotos de beleza não devem ser manuseados por mãos calejadas e cansadas, e o emprego de meios materiais não pode mais bastar-lhes, como bem o disse certo filósofo antigo de quem zombavam por não ter conseguido conciliar as boas graças da jovem que cortejava assiduamente: "Meus amigos, queijo tão fresco não se prende ao anzol". O comércio amoroso exige equilíbrio e correspondência. Podemos pagar os outros prazeres com recompensas de diversos tipos, mas este só com a mesma moeda. Na realidade o prazer que damos é-nos mais doce, intenso e generoso do que o que recebemos. Tudo dever, e comprazer-se em manter relações com seu credor, é característico de uma alma vil. E não há beleza, graça, intimidade que um homem de bem possa ambicionar em tais condições. Se as mulheres só nos podem oferecer seus encantos por piedade, prefiro ainda não os ter, a viver de esmolas. Gostaria de solicitar seus favores nos termos que vi empregados na Itália pelos que angariam donativos: "Fazei-me algum bem por vós mesmos". Ou como Ciro exortando seus soldados: "Siga-me quem se ame a si próprio". Aconselhar-me-ão a voltar-me para as mulheres que estejam em condições iguais às minhas. Lindo resultado! Não quero arrancar o pelo de um leão morto. Xenofonte acusava Mênon de procurar o amor de mulheres que haviam ultrapassado a idade de amar. Pois eu acho mais voluptuoso simplesmente contemplar um casal de jovens amorosos do que participar de uma união lamentável e monótona. Deixo esta solução ao Imperador Galba, ao qual só apeteciam as mulheres velhas e enrijecidas; ou àquele infeliz poeta que exclamava, referindo-se a si mesmo: Oxalá em meu exílio possa ver e beijar novamente teus cabelos brancos e abraçar teu magro corpo. No primeiro plano da feiura coloco as belezas artificiais. Êmones, jovem adolescente de Quio, imaginou que, em se adornando, conquistaria a beleza que a natureza lhe recusara. Encontrando o filósofo Arcesilau, perguntou-lhe se um sábio podia enamorar-se. "Sim", respondeu o interrogado, "desde que não se trate de uma beleza falsificada como a tua." A feiura de uma velhice não dissimulada é menos desagradável do que se escondida sob arrebiques e pomadas. Em suma, diria de bom grado que o amor só me parece natural na idade mais próxima da infância. Mas que não se tome a coisa ao pé da letra. E o mesmo digo da beleza: "quando um jovem de cabelos ao vento pode, entre um grupo de raparigas, iludir, acerca de seu próprio sexo, os olhos mais perspicazes." Homero acha que ela só dura até surgirem os primeiros fios de barba e Platão sustenta que não vai tão longe. Por isso o sofista Bíon chamava o buço dos jovens de "Aristogitones" e "Harmodianos”. Já na idade madura está a beleza deslocada, e não há como referir-se à velhice. O amor voa longe dos carvalhos desfolhados. Margarida de Navarra, como mulher, procura avantajar-se às pessoas de seu sexo e no entanto afirma que a partir dos trinta uma mulher deixa de ser bela para ser boa. Quanto menos esse deus reinar sobre nossa vida melhor será! A beleza tem um semblante infantil e na sua escola, ao contrário do que acontece geralmente, estudos e exercícios conduzem à ignorância, isto é, os discípulos é que são mestres: O amor não conhece regras. Não há dúvida que a beleza sobretudo seduz quando a ela se juntam a inocência e a timidez; defeitos e erros dão-lhe graça e sal; e conquanto seja ardorosa e sedenta pouco importa se mostre imprudente, mesmo porque nunca parece mais radiosa do que quando se exibe loucamente. Dar-lhe uma orientação sensata é violentar-lhe a divina liberdade. Por um lado, vejo amiúde as mulheres fazerem do amor um problema espiritual desprezando a satisfação dos sentidos. Mas quantas vezes, por outro lado, tenho visto a beleza do corpo levá-las a desculpar a fraqueza do espírito! O que nunca vi ainda foi um espírito, por brilhante que fosse, induzi-Ias a acolher com simpatia um corpo decadente. Haverá alguma delas capaz de (como queria Sócrates) trocar o corpo pelo espírito e comprar com os seus encantos uma cultura filosófica e moral? Seria no entanto o maior preço que poderiam alcançar. Determina Platão em suas leis que quem tenha realizado alguma façanha de grande utilidade na guerra, adquira o direito de, durante toda a campanha, e qualquer que seja a sua idade e feiura, exigir como recompensa os beijos e os favores de quem quiser. O que esse filósofo considera justo prêmio ao valor militar deveria aplicar-se a outros valores igualmente. Não haverá nenhum que àquele se substitua no gozo desse amor casto? E digo casto porque "se nos ocorre travar a batalha, não passa de um fogo de palha em que a chama não tem força, nem o furor dá fruto". Em verdade os vícios que se sufocam no pensamento não são os piores. Para acabar com este comentário prolixo que deu azo a um fluxo de palavras pouco comedidas e por vezes inconvenientes: assim cai do seio virgem a maçã, presente furtivo do bem-amado. Esquecendo que o escondera sob o vestido, ergue-se ao ver aproximar-se a mãe e o fruto rola a seus pés. Eis que de rosa se tinge o seu rosto revelando a falta cometida? para acabar, portanto, com este comentário, direi que machos e fêmeas saem de um mesmo molde e que, salvo pela educação e os costumes, em bem pouca coisa diferem. Platão dá-lhes em sua República os mesmos direitos e deveres, na guerra como na paz. E o filósofo Antístenes não estabelecia distinção entre a virtude dos homens e a das mulheres. É bem mais difícil acusar um sexo do que desculpar o outro. Atente-se para o ditado: o roto ri-se do esfarrapado. CAPÍTULO VI DOS COCHES É fácil verificar que os grandes autores, ao tratar das causas de tais ou quais fatos, não se referem apenas às que acreditam serem verdadeiras, mas também às que não imaginam justas, conquanto comportem alguma beleza e invenção. Dir-se-ia que pensam expressar-se de maneira útil e certa desde que se expressem com talento. Não podendo estar seguros da causa principal, enumeram umas tantas outras, na esperança de que se encontre por acaso entre elas: "Não basta indicar uma causa; é preciso apontar muitas, embora só uma seja a boa". Quereis saber de onde vem o hábito de abençoar os que espirram? Produzimos três espécies de ventos: o que sai por baixo é demasiado sujo; o que sai da boca recende a comilança; o terceiro é o espirro, e como vem da cabeça e não se presta a nenhuma crítica nós o acolhemos bem. Não zombeis da sutileza, pois é, dizem, da autoria de Aristóteles. Parece-me ter lido em Plutarco (que é entre os autores de minha predileção o que melhor une a arte à natureza e a razão à ciência) que a causa da revolta do estômago, comum em quem viaja por mar, está no medo; e explica como o medo pode provocar tais efeitos. Eu que sou muito sujeito a esse tipo de enjoo bem sei que tal causa não diz respeito ao meu caso, e o sei por experiência mais do que pelo raciocínio. E sem ir buscar provas contrárias à opinião de Plutarco nos animais, e em particular nos porcos, que a apreensão do perigo não perturba e no entanto enjoam, direi o caso de um meu amigo que, sujeito igualmente a esse mal, perdeu a vontade de vomitar sempre que se viu tomado de pavor durante alguma tempestade, o que lhe ocorreu duas ou três vezes. E poderia também citar Sêneca: "estava doente demais para pensar no perigo". Nunca tive, sobre as águas ou alhures, um temor que me perturbasse a ponto de perder a cabeça, e no entanto corri muitos riscos em que o medo se justificaria, se é que se justifica quando só a morte há que se prever. O medo tanto pode nascer da falta de inteligência como da falta de coragem; todos os perigos que enfrentei, enfrentei-os de olhos abertos; de resto acho que, mesmo para ter medo, é preciso alguma coragem. E o medo serviu-me às vezes para ordenar a fuga, e assim safar-me de uma situação difícil, já não digo sem temor, porém sem pavor. Senti-me então comovido, mas não atordoado e desesperado. Os grandes espíritos vão mais longe e dão-nos exemplos não somente de retiradas serenas e coroadas de êxito, mas ainda executadas altivamente. Eis a propósito o que nos conta Alcebíades, a respeito de Sócrates, de quem na circunstância em questão era companheiro de armas: "Encontrei-os, Lachez e ele, após a derrota de nosso exército na retaguarda das tropas. Observei-o à vontade e sem nada temer por mim porque possuía um cavalo e ele ia a pé. Aliás assim andara durante todo o combate. Verifiquei desde logo quanto era prudente e resoluto em comparação com Lachez, bem como a atitude que mantinha, em nada diferente de sua maneira habitual. Conservara sua firmeza e lucidez; observava, e via tudo o que ocorria ao redor dele, olhando ora para uns ora para outros, amigos e inimigos. E com o mesmo olhar a uns animava e a outros demonstrava estar disposto a vender caro a vida. E isso o salvou, pois não se ataca quem revela tal disposição, ao passo que se corre atrás de quem é empurrado pelo medo". Tal é o testemunho desse grande capitão e ele nos prova o que constatamos diariamente, a saber que nada nos expõe mais ao perigo do que o exagerado desejo de evitá-lo, "Quanto menos medo se tem, tanto menos perigo se corre." E erra o povo quando diz "fulano teme a morte" para significar que nela pensa ou a prevê. A previdência tanto diz respeito ao bem possível como ao mal; ponderar o perigo é, até certo ponto, o contrário de temê-lo. Não me sinto bastante forte para resistir a essa violenta sacudidela do medo, ou a qualquer outra paixão veemente; se algum dia a sentisse estaria perdido e nunca mais me recuperaria. Se alguém fizesse com que minha alma perdesse pé, não tornaria ela a firmar-se, por mais cuidadosa e profundamente que se analisasse. Não conseguiria cicatrizar a ferida. Por felicidade, até agora nenhuma enfermidade a atingiu gravemente; a cada assalto opus até hoje boa e decidida resistência, mas a primeira que a abalar, deixar-me-á sem recursos para continuar a luta. Não sou capaz de renovar um esforço e se por algum lado o dique se rompe, eis-me desamparado e afogado irremissivelmente. Diz Epicuro que o sábio não pode nunca chegar a um estado de alma contrário a seus princípios. Inclino-me a aplicar a máxima em sentido inverso e penso que quem uma vez foi louco jamais tornará a ser sábio. Deus dá o frio segundo a roupa e a mim as paixões de acordo com as minhas possibilidades de resistência. A natureza descobriu-me de um lado e cobriu-me de outro; tirando-me a força, deu-me a insensibilidade; e o medo, além de embotado, é em mim dominado pela razão. Não suporto muito tempo os coches, as liteiras e os barcos, e na juventude os suportava ainda menos. Detesto qualquer outro meio de locomoção que não o cavalo, na cidade como no campo. A liteira incomoda-me ainda mais do que o coche e pelo mesmo motivo prefiro os movimentos de um mar agitado, embora perigoso, aos das águas calmas. O leve balanceio que provocam os remos perturba-me o estômago e o cérebro. Assim igualmente um assento que vacile. Quando o vento ou a correnteza nos impele com um movimento regular, ou quando nos rebocam, a ausência de choques faz que não sinta nenhum incômodo; o que não suporto são os movimentos bruscos e lentos; não sei como explicar com exatidão. Aconselharam-me os médicos, para remediar o inconveniente, a apertar fortemente o baixo ventre com uma toalha. Não o experimentei ainda porque tenho por hábito reagir contra os meus defeitos e procurar submetê-los à minha vontade. Se minha memória fosse mais eficiente, não consideraria uma perda de tempo enumerar a variedade infinita dos meios de emprego de coches e carros na guerra. Variaram segundo as nações e os tempos; foram de grande utilidade e eficiência e é espantoso que não tenhamos bastantes documentos a respeito. Direi apenas que em tempos não muito remotos os húngaros os empregaram com êxito contra os turcos. Havia em cada veículo um soldado armado de escudo e um mosqueteiro com vários arcabuzes prontos para serem usados, tudo coberto por um toldo espesso semelhante aos que usamos nos nossos barcos. Mais de três mil assim se apresentaram no campo de batalha. E logo depois da carga de artilharia, atiravam no inimigo com os arcabuzes, o que já lhes dava alguma vantagem, e em seguida lançavam-se ao assalto. Empregavam-nos também contra a cavalaria e deles se valiam em caso de surpresa como abrigo ou para fortificar o acampamento. Conheci um fidalgo que não gozava muita saúde e que não encontrando cavalo que pudesse cavalgar, por ser demasiado gordo, percorria a região fronteiriça em um veículo análogo ao que descrevi. E dava-se bem com a solução. Mas deixemos de lado os carros empregados na guerra. Os reis de nossa antiga raça viajavam de carro de boi. Marco Antônio foi o primeiro, em companhia de uma jovem musicista, a fazer-se conduzir por leões atrelados à sua carruagem. Posteriormente assim fez Heliogábalo, proclamando-se Cibele, mãe dos deuses. Em dada ocasião mandou atrelar a seu carro dois tigres para semelhar-se a Baco, e de outra feita utilizou-se de dois veados, como igualmente, certa vez, empregou quatro cães, tendo mesmo, completamente nu, ordenado a quatro raparigas também nuas que puxassem seu pomposo coche. O Imperador Firmo preferia avestruzes enormes, tão grandes que seu carro mais parecia voar do que rodar. Essas invenções extravagantes levam-me a crer que os monarcas dão mostra de pusilanimidade e de que não compreendem realmente o que são, quando, mediante despesas absurdas, procuram valorizar-se. Isso poderia desculpar-se em país estrangeiro; mas em sua terra, onde tudo podem, sua dignidade já lhes deveria bastar. Por idênticas razões, considero que um fidalgo não deve vestir-se de um modo especial quando em sua residência; a própria casa, o trem de vida, a cozinha atestam sua condição social. Acho por isso justo o conselho que dá Isócrates a seu rei: "Ter um interior com móveis esplêndidos, porquanto passam aos herdeiros, evitando quaisquer munificências efêmeras". Quando jovem, gostava de adornos; não tinha outro meio de realçar-me e a coisa não me assentava mal. As belas vestimentas não vão bem entretanto a todo mundo. As contas de alguns de nossos reis revelam a exagerada poupança que faziam em tudo o que lhes dizia pessoalmente respeito, e eram grandes e poderosos monarcas. Demóstenes profligava as leis que determinaram o pagamento com os dinheiros públicos das festas e jogos em seu país; queria que a grandeza de sua pátria se manifestasse nas frotas e exércitos preparados para a guerra. E é com razão que acusam Teofrasto por defender ideia contrária em seu livro sobre a riqueza. Aristóteles observa que tais festividades só são apreciadas pelo populacho, e se esquecem ao terminarem, e diz não haver homem sensato que as possa levar a sério. Tais liberalidades seriam, a meu ver, bem mais dignas da majestade real se empregadas na construção de portos, fortificações, edifícios suntuosos, igrejas, hospitais, colégios e boas estradas. Por assim ter agido deixou o Papa Gregório XIII uma lembrança que se perpetuará, e nossa Rainha Catarina daria testemunho de sua magnificência se os meios de que dispõe correspondessem a seus desejos. Muito me entristece que a construção da "Ponte Nova" tenha sido interrompida em nossa grande capital e que o destino não me permita vê-la concluída. Demais, aos espectadores, ditas solenidades parece que se realizam a expensas suas e que lhes exibem suas próprias riquezas. Os povos gostam que seus reis façam o que queremos que façam nossos criados: tudo nos deem com abundância e em nada toquem. Por isso o Imperador Galba, satisfeito com um músico que o distraíra enquanto ceava, mandou buscar sua bolsa e deu ao artista um punhado de escudos, dizendo: "Não é dinheiro do povo; é meu". Entretanto, como quer que seja, tem o povo razão, pois em geral dedica-se ao prazer de seus olhos o que deveria destinar a satisfazer-lhe o ventre. A liberalidade não se justifica nos reis. Os particulares têm mais direito a ela, pois, a rigor, um rei nada possui de verdadeiramente seu e deve-se por inteiro aos outros. A administração não foi criada para o bem do administrador e sim para o do administrado. Não se cria um superior em vista de sua própria vantagem, mas em benefício do inferior; o médico é feito para o doente e qualquer magistratura ou arte tem um objetivo situado fora de si, já o dizia Cícero. Portanto, os preceptores dos príncipes, que se esforçam por lhes inculcar desde a infância a ideia de uma generosidade necessária e lhes ensinam a nada recusarem e a tudo darem (educação muito em voga há tempo), olham mais para seus próprios interesses do que para os de seus senhores. Ou compreendem mal seus deveres. É muito fácil induzir à liberalidade os que a podem praticar a expensas alheias. Mas, como lhes somos reconhecidos segundo os meios de que dispõe quem as faz e não segundo o valor do presente, tais prodigalidades não são sequer devidamente apreciadas. Não é pois a liberalidade uma grande virtude para um rei; é, aliás, a única, como dizia o tirano Dionísio, que se alia muito bem à tirania. A esses, príncipes, eu ensinaria de preferência este provérbio de um lavrador da antiguidade: "Semeie-se com a mão e não com o saco de semente aberto". Cabe distribuir a semente com cuidado e não espalhá-la ao acaso. Cumpre-lhes pagar os serviços de tanta gente, que é preciso que o façam com lealdade e prudência. E preferiria um príncipe avarento a sabê-lo de uma liberalidade insensata e indiscreta. A virtude predominante em um rei deve ser antes a justiça, e de todas as partes desta a que melhor lhe assenta é saber distribuir suas dádivas. As demais justiças exercem-nas os reis através de intermediários. Uma largueza imoderada é um meio ineficiente de angariar simpatias, porquanto aliena maior número de pessoas do que as que atrai. "Quanto mais se exerce, menos se pode exercê-la: e haverá algo mais tolo, quando se deseja fazer alguma coisa, do que se tornar incapaz de continuar a fazê-la?" Praticada sem levar em conta o mérito, a liberalidade envergonha quem a recebe. Alguns tiranos foram sacrificados ao ódio do povo por aqueles mesmos que injustamente haviam cumulado de favores. Tais beneficiados, na ânsia de assegurar a posse de seus bens, timbram em acompanhar a opinião pública ostentando ódio e desprezo a seus benfeitores. Os súditos de um príncipe que esbanja suas dádivas tornam-se eles próprios excessivamente exigentes; não se conduzem pela razão e sim pelo exemplo que se lhes apresenta. Em verdade deveríamos envergonhar-nos de nossa impudência. Pagar-nos pelo que fazemos já é demasiado, pois devemos ao nosso príncipe obrigações naturais. Não lhe cabe portanto cobrir nossas despesas, basta que nos ajude a cobri-las. O demais é liberalidade e não podemos exigi-lo, mesmo porque a palavra liberalidade implica a ideia de liberdade, isto é, de dádiva voluntária. Por outro lado, não costumamos contar o recebido mas tão somente o que receberemos no futuro e por isso quanto mais um príncipe se empobrece, dando, tanto menos amigos tem. Como saciar apetites que se ampliam na medida em que se satisfazem? Quem anseia por adquirir não pensa no adquirido. A cobiça caracteriza-se pela ingratidão. O exemplo de Ciro pode ser útil aos reis de nosso tempo para que distingam quando empregam bem ou maios seus favores. Mostrar-lhes-á como, distribuindo-os da maneira por que o fazia, esse soberano teve a mão mais feliz do que eles, os quais, após esgotar seus recursos, veem-se forçados a contrair empréstimos junto a súditos que não conhecem bem e a pedir, antes aos que maltrataram do que aos que beneficiaram, uma colaboração que de colaboração só tem o nome. Creso censurava a Ciro sua prodigalidade e calculava quanto teria o tesouro se ele fosse mais parcimonioso. Ciro teve a ideia de justificar sua liberalidade e, enviando mensageiros a todos os que havia tratado de maneira particularmente generosa, pediu, a cada um, um auxílio em dinheiro, a fim de sair de uma situação difícil. Quando chegaram as respostas, verificou-se que, tendo julgado insuficiente devolver as somas recebidas, seus amigos haviam acrescentado mais algum dinheiro de suas fortunas pessoais e o total ultrapassava assim, de muito, a economia que no dizer de Creso o soberano houvera realizado. E disse Ciro: "Não aprecio menos do que os outros a riqueza, mas creio saber melhor administrá-la; bem vês quão pouco me custou angariar tão fiéis amigos, bem melhores tesoureiros do que teriam sido os que porventura pagasse, pois não lhes compraria a amizade nem a gratidão. E bem percebes também que assim guardo melhor os meus bens do que se os conservasse em meus cofres, despertando a inveja e o ódio dos outros príncipes". Os imperadores justificavam os jogos e as festas públicas dizendo que sua autoridade (ao menos aparentemente) dependia da vontade do povo romano, o qual se acostumara, há muito, a tais divertimentos e excessos. A princípio coubera aos particulares sustentar e manter com seu dinheiro essas festividades; mas o caráter destas modificou-se quando os que se tornaram senhores se encarregaram de proporcioná-las: "O dom feito a um estranho de um dinheiro tomado a outrem, não deve ser considerado uma liberalidade", Filipe escrevia nestes termos a seu filho para censurar-lhe o empenho que demonstrava em conquistar a dedicação dos macedônios mediante presentes: "Desejas, então, que teus súditos te olhem como seu tesoureiro e não como seu rei? Se queres seu afeto, chama-os a ti com tuas virtudes, e não com teu dinheiro". Não obstante, eram notáveis as coisas que se viam nos circos. De uma feita, no reinado de Probo, plantaram-se ali inúmeras árvores frondosas representando uma floresta espessa e nela se lançaram um milhão de avestruzes, cervos, javalis, para que o povo se divertisse em caçá-los. No dia seguinte mataram-se cem leões, cem leopardos e trezentos ursos; no terceiro dia trezentos pares de gladiadores combateram até a morte. E belo era o espetáculo dos grandes anfiteatros revestidos de mármore, com estátuas e decorações suntuosas: "Vede as gemas que ornam o teatro e seu pórtico dourado”. De alto a baixo alinhavam-se de sessenta a oitenta degraus, de mármore igualmente e guarnecidos de assentos para cerca de cem mil pessoas comodamente instaladas: "Vós outros cujos bens as leis não taxam, abandonai, se tendes vergonha, os assentos destinados aos cavaleiros". Abriam-se na arena covis de onde saíam feras, ou se inundava o picadeiro com águas profundas em que pululavam monstros marinhos e barcos de guerra num simulacro de batalha naval. Secava-se novamente o circo e recomeçavam as justas dos gladiadores; finalmente cobria-se o solo de vermelhão e estoraque e servia-se um festim aos espectadores. "Vimos muitas vezes uma parte da arena abaixar-se, e do abismo entreaberto surgirem feras e toda uma floresta de árvores douradas e cor de açafrão. Vimos não somente os monstros da floresta, mas também focas e ursos em luta e horríveis bandos de autênticos cavalos marinhos." Por vezes erguia-se uma alta colina coberta de árvores verdejantes e carregadas de frutos e da qual jorrava um arroio, como da boca de uma fonte; em outras ocasiões avançava pela arena um enorme navio que se abria repentinamente e despejava de quatrocentos a quinhentos animais, desaparecendo em seguida. E de outras feitas brotavam altíssimos jatos de água do solo, aromatizando e refrescando a multidão. Para proteger os espectadores contra as intempéries usavam-se toldos bordados de púrpura ou de sedas de várias cores, que se estendiam ou retiravam à vontade. "Embora o sol ardente dardeje seus raios sobre o circo, retiram-se os toldos quando Hermógenes se apresenta. E as redes que visavam resguardar o público contra os saltos das feras eram igualmente tecidas com fio de ouro: "As próprias malhas brilham por serem de ouro". Só a imaginação pode desculpar tais despesas e extravagâncias. Até nessas vaidades descortinamos o fértil engenho daqueles séculos tão superiores ao nosso. Nisso como em outras coisas não progredimos. Antes giramos sobre nós mesmos, ora vamos para frente, ora voltamos atrás. Parece-me que nossos conhecimentos são, de todos os pontos de vista, restritos; não vemos muito longe nem no passado nem no futuro. Pouco abarca a nossa vista. Que sabemos, afinal? "Houve muitos heróis antes de Agamenon, mas dormem sepultados na ignota noite; e ninguém os chora." "Antes da guerra de Tróia, inúmeros poetas haviam celebrado outros sucessos." Atente-se também para o que Sólon diz ter ouvido dos sacerdotes egípcios acerca da história de seu país, e dos países estrangeiros, e dos métodos de escrevê-la. "Se pudéssemos ter sob os olhos a extensão infinita das terras e dos tempos em que o espírito mergulha e que percorre sem encontrar limites, aí descobriríamos um sem-número de formas." Ainda que tudo o que sabemos do passado fosse certo, seria menos do que nada em relação ao ignorado. Quão pequeno e imperfeito é o conhecimento que mesmo os mais curiosos têm de nosso tempo! Não somente das ocorrências particulares que o destino torna por vezes edificantes, mas também da situação política e administrativa das grandes nações. Consideramos milagres as invenções da artilharia e da imprensa, quando outros já se serviam delas há mil anos na China, do outro lado do mundo. Se o que sabemos deste igualasse o que ignoramos, é provável que estaríamos em presença de uma infinita variedade de corpos e formas em contínua transformação. Nada na natureza é único; e somente o é em face de nossos conhecimentos restritos, os quais constituem a base defeituosa que estabelecemos e nos levam a uma ideia muito falsa das coisas. Assim, julgando-o pela nossa própria debilidade e decrepitude, erroneamente deduzimos que o mundo caminha para a decadência. "Não possuem os homens o mesmo vigor antigo, nem a terra a mesma fertilidade."! Não menos absurdamente esse poeta julgava, pela força e capacidade inventiva dos espíritos de seu tempo, que o mundo era recente e jovem: Em verdade entendo que o mundo é novo ainda. Nasceu há pouco. Eis por que certas artes se desenvolvem e nossa arte naval progride grandemente. Nosso mundo acaba de descobrir outro não menor, nem menos povoado e organizado do que o nosso (e quem nos diz que seja o último?) e, no entanto, tão jovem, que ignora o á-bê-cê e que há cinquenta anos não conhecia nem pesos, nem medidas, nem a arte de vestir, nem o trigo e a vinha; nu ainda, vivia do leite de sua ama. Se raciocinamos certo e se o poeta o fazia igualmente, devemos pensar que o novo mundo só começará a iluminar-se quando o nosso penetrar nas trevas. Será uma espécie de hemiplegia: um membro paralisado e outro vigoroso e vivo. Receio, porém, que venhamos a apressar a decadência desse novo mundo com nosso contato e que ele deva pagar caro nossas artes e ideias. Era um mundo na infância e o submetemos ao açoite e a uma dura escravidão, mercê de nossa superioridade em armas. Não o conquistamos pela justiça e a bondade; nem o vencemos pela nossa magnanimidade. Na maioria das negociações que conosco estabeleceram, provaram os indígenas do Novo Mundo que não nos eram inferiores em clarividência e perspicácia. Nem tampouco quanto à capacidade, como o comprova a grandiosidade de Cuzco e México onde, entre outras coisas surpreendentes, se encontrou uma reprodução exata, de tamanho natural e em ouro, de todas as árvores e frutos de um pomar. E igualmente se acharam no palácio exemplares de todos os animais existentes em suas terras e seus mares. Notáveis eram também, e não inferiores às nossas, as suas obras de pedra, penas e algodão. Quanto à devoção, à lealdade, à bondade, à generosidade e à franqueza, muito nos valeu não lhes sermos comparáveis, pois tais qualidades os perderam e destruíram. A energia, a coragem, a firmeza, a tenacidade e a resolução com que suportam os males, a fome e a morte fornecem-nos exemplos dignos de se igualarem aos da antiguidade. É de se admirar o entusiasmo indomável com que homens, mulheres e crianças correram mil riscos e enfrentaram mil perigos na defesa de seus deuses e de sua liberdade, suportando toda espécie de privações e tormentos, inclusive a morte, para não se submeterem aos conquistadores. Alguns, ao serem capturados, preferiram morrer de fome a dever a vida ao vil vencedor. E acredito que quem os atacasse de frente com as mesmas armas e experiência não os venceria facilmente. Sua derrota explica-se em grande parte pela malícia de que usaram os adversários, pelo espanto em que caíram ao ver chegarem homens barbudos, de língua e religião diferentes e vindos de uma parte do mundo cuja existência os indígenas não podiam sequer imaginar. E chegavam montados em grandes monstros desconhecidos de quem nunca vira um cavalo nem outro bicho capaz de carregar um homem; e usavam coletes de pele lisa e dura, e armas cortantes e resplendentes, milagrosas e temíveis para quem trocava um espelho por punhados de ouro. Acrescentem-se os estrondos e raios de nossos arcabuzes e canhões, capazes de amedrontar o próprio César se os visse! Eles, que não tinham senão tecidos e algodão, e arcos, pedras e bastões, e escudos de madeira, por armas, e boa fé e curiosidade ingênua a opor ao invasor, e ter-se-á compreendido a razão das derrotas. É de se lamentar que não tenham sido vencidos por César ou Alexandre! Tão grandes transformações e mutações se houveram efetuado com doçura. Progressivamente fora desbravado o que neles havia de inculto; suas qualidades naturais teriam sido consolidadas e os conquistadores, introduzindo entre os vencidos seus conhecimentos acerca do cultivo das terras e das artes, lhes dariam também as virtudes gregas e romanas. Que progresso teria alcançado sua civilização se com isso se houvesse estabelecido entre esses indígenas e nós um clima de fraternidade e de simpatia! Ao contrário, só tiveram diante deles exemplos de desregramentos e abusos. Aproveitamo-nos de sua ignorância e inexperiência e lhes ensinamos a prática da traição, da luxúria, da avareza; e os impelimos aos atos de crueldade e de inumanidade. Ter-se-á jamais perpetrado tanto crime em benefício do comércio? Quantas cidades arrasadas, quantos povos exterminados! Milhões de indivíduos trucidados, em tão bela e rica parte do mundo, e tudo por causa de um negócio de pérolas e pimenta! Miseráveis vitórias! Nunca a ambição incitou a tal ponto os homens a tão horríveis e revoltantes ações! Seguindo as costas em busca de minas, alguns espanhóis desembarcaram em uma região fértil, atraente e muito povoada. Dirigiram-se como de hábito aos habitantes: eram gente pacata, vinham de longe, enviados pelo rei de Castela, o maior sobre a terra, ao qual o papa, representante de Deus, outorgara o domínio das Índias. Se consentissem em tornar-se tributários de seu príncipe, seriam tratados com cordura. Pediram depois víveres para se alimentar e ouro para a preparação de alguns medicamentos. Além disso propugnavam a crença em um Deus único e recomendavam-lhes que adotassem nossa religião, acrescentando ao discurso algumas ameaças. Assim responderam os indígenas: que seu rei, visto que por ele pediam, devia ser indigente e necessitado; quanto àquele que dera o território ao monarca, por certo amava as dissensões, pois cedia a um terceiro terras que não lhe pertenciam e o fazia correr o risco de lutar contra os verdadeiros donos; que não recusariam víveres; que possuíam pouco ouro e não o apreciavam (porquanto tinham por objetivo tão somente viver felizes) e podiam os espanhóis levar o que encontrassem, salvo o que se destinasse ao culto; que lhes agradavam as palavras acerca da existência de um Deus único, mas não queriam mudar de religião porque há muito se haviam afeiçoado à sua; que só aceitavam conselhos de seus amigos e conhecidos; quanto às ameaças parecia-lhes insensato dirigi-Ias a um povo cujo poderio e caráter os recém-chegados ignoravam; que os estrangeiros se apressassem pois em partir porquanto eles, os autóctones, não estavam acostumados a acolher com benevolência os does tos de gente armada e forasteira contra a qual agiriam como sempre haviam agido. E mostravam expostas ao redor da cidade as cabeças de indivíduos condenados e executados. Eis como balbuciavam esses povos infantis... Mas os espanhóis não se interessavam por se fixar e guerrear senão onde encontravam as mercadorias que ambicionavam. Por isso não ocuparam tampouco o país dos canibais a que já me referi. O rei do Peru, um dos dois monarcas mais poderosos desse Novo Mundo - e talvez do nosso -, foi dos últimos a serem destronados. Feito prisioneiro, exigiram os espanhóis uma importância absurda pelo seu resgate. Pagaram-na. Na prisão o rei mostrava-se franco, liberal, resoluto, inteligente. Depois de ter-lhe arrancado um milhão e trezentos e vinte e cinco mil escudos de ouro, além de não menor quantia em prata e diferentes mercadorias (os cavalos tinham ferraduras de ouro), tiveram a ideia de se apropriar dos demais tesouros do reino, ainda que devessem recorrer aos meios mais desleais e desonestos. Para tanto acusaram-no, com falsas provas, de andar tramando uma sublevação; e mediante julgamento preparado por aqueles mesmos que haviam inventado a revolta, condenaram-no ao estrangulamento, depois de convertê-lo à força para não queimá-lo vivo. Tudo suportou o rei com dignidade e coragem, sem fraquejar nem nas suas palavras nem na sua atitude. E a fim de acalmar o povo pasmado ante tão estranhos fatos, organizaram-lhe pomposos funerais. O outro rei, o rei do México, durante muito tempo defendeu sua cidade cercada pelos espanhóis. E nesse cerco mostraram os sitiados, mais uma vez, até onde podem ir a resolução e a coragem de um príncipe e de um povo. O destino fez que o rei caísse vivo nas mãos do inimigo após um acordo de capitulação em que se determinava que fosse tratado como soberano. Não encontrando todo o ouro que imaginavam, os vencedores, depois de tudo revolver, puseram-se a torturar os prisioneiros a fim de obter mais precisas informações. Mas, exasperados com a resolução das vítimas, resolveram os algozes supliciar o próprio rei na presença de um de seus fidalgos mais eminentes. Este, enfiado em um braseiro, acabou por deitar um olhar desesperado ao monarca como para dizer-lhe que não podia mais resistir à dor. O rei, que se achava em situação idêntica, respondeu-lhe com voz firme e rude: "Estarei porventura em uma banheira? E mais à vontade do que tu?" Ouvindo tais palavras, o fidalgo rendeu seu último suspiro. Quanto ao rei, libertaram-no semiassado. E não por comiseração, mas porque sua tenacidade ressaltava ainda mais a odiosa crueldade dos algozes. A piedade, aliás, nunca encontrou guarida nas almas bárbaras desses homens que para obter uma informação duvidosa acerca de algum vaso de ouro não hesitavam em mandar grelhar um homem e mesmo um rei. Tendo este posteriormente tentado evadir-se, enforcaram-no. E seu fim foi também o de um príncipe magnânimo. Em outra ocasião, os espanhóis mandaram queimar vivos em uma só fogueira quatrocentos e sessenta prisioneiros de guerra, dos quais sessenta eram fidalgos dentre os principais da região. Todos esses pormenores por eles próprios nos foram comunicados, pois não somente confessam tais barbaridades como delas se vangloriam. Como testemunho de sua justiça ou para prova de seu espírito religioso? Como quer que seja, nossa santa causa os reprova, exigente que é de meios bem diversos. Se esses bárbaros tinham a intenção de propagar a nossa fé, deviam pensar que não é de territórios que ela precisa apossar-se e sim de almas. Ter-se-iam satisfeito com as mortes inevitáveis que a guerra acarreta, sem se comprazer em carnificinas que só poupavam os que lhes iriam servir de escravos na exploração das minas. E tanto fizeram que vários chefes, de todos odiados, foram punidos de morte no próprio local das conquistas, por ordem dos reis de Castela, justamente horrorizados com tais abominações. Deus fez, mui sabiamente, com que o produto desses saques soçobrasse na travessia do oceano ou se esgotasse nas guerras intestinas desses bandidos, os quais em sua maioria não se beneficiaram com o fruto da vitória. Os resultados da conquista, apesar do príncipe prudente e grande administrador que governava a Espanha, não corresponderam às esperanças que haviam concebido seus predecessores ante as riquezas descobertas no Novo Mundo. A causa da decepção está em que o uso da moeda era inteiramente desconhecido naquelas terras; conseguintemente encontrou-se reunida, aplicada em objetos e móveis e concentrada em templos e palácios, tão somente, toda a riqueza que os reis haviam obtido esgotando suas minas. Ao passo que nosso ouro nós o utilizamos no comércio; trabalhamo-lo e damos-lhe mil formas sob as quais circula e se expande. Imagine-se o que ocorreria se nossos reis tivessem acumulado e imobilizado todo o ouro que se explorou durante vários séculos! Os mexicanos eram algo mais civilizados e artistas do que os outros povos do Novo Mundo. Acreditavam, como já o acreditamos também, que o mundo está por acabar; e a desolação a que levaram seu país pareceu-lhes um sinal precursor. Pensavam que a existência do mundo comportasse cinco fases, cada uma delas correspondente à vida de um sol. Quatro já teriam terminado e estaríamos vivendo a quinta fase. O primeiro desses sóis teria sido destruído, juntamente com as criaturas do mundo, em consequência de um dilúvio. O segundo, pela queda do céu, o qual houvera esmagado todos os viventes. Isso teria ocorrido durante a idade dos gigantes, cujos ossos mostravam aos espanhóis e segundo os quais os homens de então deviam medir mais de vinte palmos. A terceira fase extinguiu-se pelo fogo que tudo consumiu. A quarta em virtude de um ciclone tão violento que nivelara as próprias montanhas. Não morreram os homens, mas foram transformados em macacos (incrível é a credulidade humana!). Ao desaparecer o quarto sol, teria o mundo permanecido durante vinte e cinco anos nas trevas. No décimo quinto ano criaram-se um homem e uma mulher, os quais reconstituíram a raça humana; dez anos depois surgiu o novo sol e esses povos contam o tempo a partir desse sucesso. Três dias após a criação do novo sol, os deuses antigos morreram e em seguida, da noite para o dia, nasceram os que atualmente existem. O autor dessas informações ignora o que os mexicanos pensam acerca da maneira por que se extinguiria o nosso sol, mas estaríamos às vésperas de uma conjunção de astros semelhante à que provocou, há cerca de oitocentos anos, o fim da quarta fase, anterior à nossa. A pompa e a magnificência que reinavam nesses países e que me induziram a ventilar o assunto, eram de tal ordem que nem em Roma, nem na Grécia, nem no Egito se viram iguais. Em nenhuma destas regiões se encontraram empreendimentos tão úteis e importantes, e de tão difícil execução, como essa estrada peruana, obra dos seus reis, que vai de Quito a Cuzco numa extensão de trezentas léguas. É reta, plana, larga de vinte e cinco passos, calçada, fechada por belas e altas muralhas ao longo das quais, e por dentro, correm perenemente riachos; bordejam-na renques de árvores denominadas moly. Onde havia montanhas, cortaram-na os peruanos na própria pedra e onde se abriam precipícios, fizeram-na passar por aterros de pedras e terra. De quando em quando erguiam-se palácios providos de roupas, víveres e armas para os viajantes e as tropas em marcha. Para bem avaliar a importância de tais obras, cumpre levar em conta que as dificuldades eram particularmente grandes; empregavam-se blocos de pedra de pelo menos dez pés de largura; como não havia meios de transporte era necessário puxá-los a braço e, para coloca-los em seu lugar, na falta de andaimes que não sabiam armar, nem podiam, construíam rampas de terra que eram em seguida retiradas. Para voltar a nossos coches, direi que os desconheciam no Novo Mundo. Em lugar de carros, havia homens que carregavam os viajantes aos ombros. No dia em que o aprisionaram, o rei do Peru fazia-se assim transportar, sobre um assento de ouro, durante o combate. Queriam-no vivo os espanhóis, mas à proporção que matavam os carregadores, outros surgiam para substituir os mortos e o soberano só foi detido afinal quando um cavaleiro o derrubou por terra. CAPÍTULO VII DOIS INCONVENIENTES DAS GRANDEZAS Visto que não podemos alcançar as grandezas, depreciamo-las por vingança; se é que descobrir defeitos em alguma coisa a deprecia, pois não há coisa que não os tenha, por mais bela e desejável que seja. Em geral as grandezas apresentam essa vantagem incontestável de se abaixarem quanto se queira, sendo permitido a quem as goza escolher a condição que lhe agrada, pois não se cai senão raramente das maiores alturas e as grandezas que se podem desprezar sem rolar por terra são mais numerosas do que as outras. Acho que damos às grandezas mais importância do que merecem, e também que valorizamos demasiado a resolução dos que as desprezam ou a elas renunciam espontaneamente. Não são elas, com efeito, tão vantajosas a ponto de constituir a renúncia um ato admirável. Considero bem mais difícil o esforço necessário para resistir ao sofrimento que os males nos causam; e parece-me mediocremente corajoso contentar-se alguém com uma fortuna modesta e fugir às honrarias e dignidades. Eis a meu ver uma virtude que eu conseguiria alcançar sem grande esforço; logo, muito menos inacessível será ela a quem se encontre em situação de realçar sua renúncia, a qual pode prender-se a uma ambição maior, tanto mais quanto esta emprega normalmente, para atingir seus objetivos, os meios menos usuais. Esforço-me por ser paciente e moderar meus desejos. Em verdade, posso ambicionar e desejar como qualquer pessoa e não me mostro mais discreto do que quem quer que seja; entretanto, nunca me ocorreu desejar um reino, nem um império, nem posições eminentes e de comando; não é o que viso: amo demais a mim mesmo. Quando sonho com ampliar minha importância, meus objetivos não se elevam muito alto; modestos e timoratos, dado o meu temperamento, dizem respeito tão somente ao fortalecimento da decisão da prudência, da saúde, da beleza, e possivelmente da riqueza; mas não penso em aumentar meu crédito e minha autoridade para poder mais; a simples ideia do poder abafa-me a imaginação. Ao contrário de muita gente, preferiria ser o segundo ou o terceiro em Périgueux a ser o primeiro em Paris. E, para não mentir, terceiro em Paris a ocupar o primeiro posto. Se me desagrada lutar contra um porteiro, como qualquer desconhecido, detesto igualmente ver abrirem-se alas de admiradores à minha passagem. Estou acostumado a uma condição discreta, tanto por destino como por inclinação, e mostrei, em minha conduta na vida, que antes me esforcei por fugir às grandezas do que por elevar-me acima do lugar que Deus me deu na sociedade. Em tudo, manter-se dentro da ordem estabelecida pela natureza é coisa fácil e sensata. Minha alma é tão tímida, que não meço o êxito pela altura a que nos ergue e sim pela facilidade com que o obtemos. Mas se não tenho altos objetivos, em compensação sou franco e digo sem pejo de minha humildade. L. Tório Balbo foi um homem de bem; belo e sadio, entendido em prazeres, gozou a vida, viveu tranquilo, isento de superstições e bem preparado para o sofrimento e a morte. Acabou seus dias em um campo de batalha defendendo seu país. Comparemos sua existência à de M. Régulo. Este teve uma vida grande e virtuosa e um fim admirável. Uma existência foi anônima, sem brilho; a outra exemplar e gloriosa. Se devesse referir-me a ela, e soubesse expressar-me de um modo elevado, diria o que disse Cícero. Mas se me coubesse escolher entre uma e outra, diria que a primeira está a meu alcance e a outra me ultrapassa fortemente. Viveria a primeira, mas quanto à segunda só a poderia venerar. Voltemos às grandezas deste mundo. Não aprecio em verdade o poder, nem para exercê-lo nem para suporta-lo. Otanez, um dos sete príncipes da Pérsia que podiam aspirar ao trono, adotou uma resolução que em seu lugar eu também seguiria. Cedeu a seus companheiros o direito de competir, com a condição de poder viver no território persa sem obrigações de qualquer espécie, a não ser de obedecer às antigas leis. Não desejava portanto mandar nem ser mandado. O ofício mais difícil deste mundo é sem dúvida o de rei. Desculpo-lhes os erros de bom grado, pois considero extremamente pesado o fardo que lhes cumpre carregar. É difícil conservar a medida no exercício de tão grande poder, embora constitua excepcional incentivo à virtude o fato de saber que todas as ações, boas ou más, ficam registradas na história e atingem tanta gente. Por outro lado, tudo o que façam visa o povo, juiz que se ilude sem maiores percalços e se contenta com pouco. Não há muitas coisas que possamos julgar com sinceridade, porque não há muitas que não nos interessem particularmente de um modo ou de outro. A superioridade e a inferioridade, o senhor e o súdito, acham-se em oposição e se invejam naturalmente; mas eu não acredito nem em uma nem em outra; apenas creio na razão inflexível e impassível. Folheava, não faz muito, dois livros de autores escoceses, ambos sobre o mesmo assunto mas de pontos de vista opostos. O que toma o partido do povo faz do rei um indivíduo desprezível; o que defende o monarca coloca-o pouco abaixo de Deus. Um dos inconvenientes das grandezas, que uma circunstância fortuita me revelou recentemente, é o seguinte: não há nada mais agradável aos homens do que a luta para ressaltar o valor e os méritos do corpo e do espírito. Ora, dessas coisas a soberana grandeza não participa em absoluto. Parece-me que à força de respeita-los acabamos por tratar aos príncipes desdenhosamente. Em minha infância uma coisa me ofendia infinitamente: o fato de alguns rapazes não lutarem de verdade contra mim nas competições, por não me considerarem à sua altura. Se alguém percebe que o príncipe revela algum apego, por pequeno que seja, à vitória, não deixa de prestar-se ao jogo, preferindo trair a glória a ofender o rei. Em consequência, dedicará à luta tão somente a resistência necessária para que a vitória não lhe seja desonrosa. Que papel desempenham os príncipes nas justas em que todos se dispõem a perder? São como os paladinos dos tempos heroicos, que se apresentavam ao combate com armas encantadas. Brisson, em competição com Alexandre, deixou que o príncipe ganhasse. Este o admoestou; devia tê-lo açoitado. É o que levava Carnéades a dizer que "os filhos dos príncipes nada aprendem que não seja falso, a não ser andar a cavalo". Em todos os demais exercícios cedem os competidores e deixam-nos vencer, mas o cavalo, que ignora a lisonja, derruba o filho do rei como o faria com o filho do lixeiro. Homero viu-se forçado a consentir em que Vênus, tão delicada e suave, fosse ferida em Tróia, a fim de outorgar-lhe coragem e ousadia, qualidades que não se agregam a quem não corre perigo. Se se admite que os deuses sejam sujeitos a cóleras, paixões, temores, ciúmes, sofrimentos, é para poder atribuir-lhes as virtudes opostas. Quem não corre risco, nem enfrenta dificuldades, não pode pretender honrarias nem se beneficiar com o prazer das vitórias. É triste ter um poder diante do qual tudo se incline; uma tal vantagem repele as demais. Essa cômoda e covarde facilidade de fazer com que tudo se abaixe diante de si, exclui quaisquer satisfações; escorrega-se, não se anda; dorme-se, não se vive. Imaginai um homem onipotente: ei-lo angustiado; precisa pedir-nos a esmola de uma resistência; sua felicidade é incompleta e ele sofre com isso. As boas qualidades dos reis são como mortas e inúteis, pois as virtudes só se percebem por comparação e as deles nunca se comparam. Ignoram os louvores de bom quilate porque os aflige uma contínua e invariável aprovação. Ainda que se meça com o mais ínfimo de seus súditos não poderão auferir o prazer da vantagem obtida, pois sempre haverá uma resposta irretorquível: "trata-se de meu rei". E assim dizendo como que dá a entender, quem o diz, que se prestou a uma farsa. Pelo fato de serem reis, sua grandeza esmaga e absorve as demais qualidades reais e essenciais que porventura possuam. Por isso só podem distinguir-se em seu próprio ofício. E um rei é a tal ponto rei que nada mais pode ser. A realeza forma em torno dele uma atmosfera luminosa que o envolve, o esconde e faz que escape à nossa vista ofuscada pelo seu brilho. O Senado romano concedera a Tibério o prêmio de eloquência; ele recusou-o, achando que mesmo que o merecesse não teria valor o julgamento de uma assembleia tão pouco independente. Como se outorga aos príncipes tudo o que os pode honrar, chega-se a justificar-lhes os vícios e a agravá-los, não somente os aprovando como os incitando. Na corte de Alexandre todos inclinavam a cabeça, como ele; e os aduladores de Dionísio tudo derrubavam diante de si para se mostrarem tão míopes como o tirano. Ter hérnia foi não raro um título de recomendação; e vi igualmente quem simulasse a surdez. Plutarco fala de cortesãos que repudiavam suas mulheres porque seu senhor odiava o sexo fraco. Demais, a libertinagem, a dissolução de costumes, a deslealdade, a blasfêmia, a crueldade, a heresia, a superstição, a negligência e coisas ainda piores, estiveram muitas vezes em voga em consequência de maus exemplos, bem mais perigosos do que o dos cortesãos de Mitridates, os quais, em virtude da pretensão de seu senhor de ser um bom médico, faziam-se por ele cortar e cauterizar. Os outros, é a alma, parte mais delicada e nobre de seu ser, que entregam ao cautério. Para acabar por onde comecei, lembrarei o caso ocorrido com o Imperador Adriano. Discutindo com o filósofo Favorino acerca do sentido de certa palavra, cedeu este bem depressa, e aos amigos que lhe censuravam a atitude respondeu: "Por Deus, pois então não será mais sábio do que eu quem comanda trinta legiões!" Augusto escreveu versos contra Asínio Polo, o qual observou: "Calar-me-ei: não é prudente escrever contra quem pode proscrever." E tinham ambos razão, pois Dionísio, por não conseguir igualar Filóxeno na poesia nem Platão na filosofia, condenou um aos trabalhos forçados e vendeu o outro como escravo na ilha de Egina. CAPÍTULO VIII DA ARTE DE CONVERSAR É costume de nossos tribunais condenar alguns para exemplo dos outros. Condena-los unicamente porque erraram seria inepto, como diz Platão. O que está feito não se desfaz; mas é para que não tornem a errar ou a fim de que os outros atentem para o castigo. Não se corrige quem se enforca; corrigem-se os demais com ele. Eu faço a mesma coisa. É certo que os meus erros são naturais e incorrigíveis, mas assim como os homens de bem oferecem ao povo o exemplo do que este deve fazer, eu os convido a não me imitarem: "Não vedes como o filho de Albo vive mal e como Barro se tornou miserável? Bom exemplo: que vos ensine a não dissipar vosso patrimônio". Publicando e criticando minhas imperfeições, ensinarei alguém a temê-las. As qualidades que mais aprecio em mim, mais se honram em me criticar do que em me elogiar. Eis por que volto amiúde a isso, e tantas vezes me demoro no assunto. Mas não é possível tudo contar de si próprio sem que algum prejuízo advenha: acreditam no mal que dizemos e duvidam do bem. Não sei se haverá alguém como eu que mais se eduque contrariando OS modelos do que os imitando, e deles fugindo mais do que os seguindo. A essa espécie de disciplina referia-se Catão, quando disse que os sensatos aprendem mais com os loucos do que estes com aqueles. E Pausânias conta que um velho tocador de lira tinha por hábito mandar seus discípulos ouvirem um mau músico que morava em frente, a fim de que aprendessem a odiar as desafinações e os compassos errados. O horror à crueldade incita-me mais à clemência do que o faria um modelo de generosidade. Um bom picador não corrige melhor minha maneira de montar a cavalo do que um procurador ou um veneziano. E um vício de linguagem, mais do que um falar correto, emenda o meu modo de exprimir. Todos os dias a tola conduta dos outros me adverte e aconselha. O que magoa impressiona e desperta mais do que o que agrada. O tempo em que vivemos só nos corrige às avessas, mais por desacordo do que por acordo e mais por divergência do que por semelhança. Aprendendo mal com os bons exemplos, valho-me dos maus, cuja lição é acessível. Esforcei-me por me tornar tão agradável quanto os outros eram irritantes, tão firme quanto eram moles, tão brando quanto eram duros, tão bom quanto eram maus. Mas a tarefa é irrealizável. O mais proveitoso e natural exercício de nosso espírito é, a meu ver, a conversação. É-me a sua prática mais agradável do que qualquer outra. Eis por que, se me coubesse escolher, antes consentiria, penso, em perder a vista do que o ouvido ou a fala. Os atenienses e os romanos tinham esse exercício em grande conta em suas academias. Em nosso tempo os italianos ainda tiram bom proveito dos restos que conservaram, como se vê da comparação de nosso talento com o deles. A frequentação dos livros é uma atividade calma e fraca, que não entusiasma, enquanto a conversação ensina e exercita ao mesmo tempo. Se converso com um espírito forte, e rude discutidor, ele aperta-me, fere-me à direita e à esquerda e suas ideias sugerem as minhas. O ciúme, o amor-próprio a atenção excitam-me e elevam-me acima de mim mesmo. O acordo é, na conversação, qualidade bem aborrecida. Mas assim como o nosso espírito se fortalece na convivência com os espíritos rigorosos e sensatos, também se empobrece e degenera pelo comércio com os vulgares e doentios. Não há doença que tão facilmente se espalhe. Sei por experiência quanto custa. Gosto de discutir e conversar, mas é com pouca gente e para meu proveito. Pois servir de espetáculo aos grandes e fazer exibição de espírito, são coisas que não considero recomendáveis em um homem de bem. A tolice é péssima qualidade, mas não a poder suportar e moer-se por sua causa, como me acontece, é também uma doença que nada fica a dever à tolice. É o que quero criticar em mim, agora. Entro em conversa e discussão com grande liberdade e facilidade, tanto mais quanto as opiniões encontram em mim terreno pouco propício a seu desenvolvimento em profundidade. Nenhuma afirmação me espanta, nenhuma crença me fere, por contrária que seja às minhas. Não há fantasia, por frívola e extravagante, que não me pareça compatível com as produções do espírito humano. Nós, que privamos a nossa inteligência do direito de julgar, encaramos sem antipatia as ideias alheias e damos-lhes ouvidos embora não as acatemos. E, em estando completamente vazio um dos pratos da balança, que oscile o outro mesmo com histórias de mulheres desfrutáveis. Acho desculpável preferirem-se os números ímpares; a quinta à sexta-feira; e ser o décimo segundo ou décimo quarto à mesa a ser o décimo terceiro; se, quando em viagem, vejo de bom grado uma lebre a correr ao longo do caminho do que a atravessa-lo: calçar primeiro o pé esquerdo a calçar o direito. Todas essas bobagens em que acreditam merecem ao menos que se escutem. Para mim pesam mais do que nada, mas ainda assim pesam alguma coisa. Em matéria de peso, as opiniões do vulgo, embora sem fundamento, importam mais do que o nada e quem as desdenha totalmente, em querendo evitar a superstição, peca por obstinação. A contradição das opiniões não me ofende nem me exalta, apenas me fornece oportunidades de me exercitar. Não gostamos de ser corrigidos, e qualquer observação nesse sentido deve fazer-se em tom de conversa. Não procuramos saber se é justa e sim como a repelir; em lugar de acolhê-la, arreganhamos os dentes. A mim seria desagradável que meus amigos me criticassem com rudeza: "és um tolo, estás a sonhar"; entretanto, gosto que sejam sinceros e que suas palavras exprimam exatamente seu pensamento. Cumpre fortificar os ouvidos contra o som lisonjeiro das palavras cerimoniosas. Aprecio uma convivência e familiaridade fortes e viris, uma amizade feita de aspereza e energia, que se desenvolva como o amor, com mordidas e arranhões. Não será bastante vigorosa e generosa, se não for algo brutal, se se mostrar demasiado educa da, artificial, contrafeita: "Não há conversação sem contradição.? A mim, quando me contradizem, despertam-me a atenção, não a cólera; aperto meu interlocutor e tiro partido de seus argumentos. A busca da verdade não deve ser o alvo de ambos os contraditores? Que responder, se a cólera toma conta do espírito e o turva logo de início? Seria útil que se fizessem apostas nas discussões, apostas que seriam ganhas por quem tivesse razão. Constituiriam testemunhos preciosos das nossas vitórias ou derrotas e nos obrigariam a cuidar de não ouvir nosso criado advertir-nos de quando em vez: "no ano passado, custou-vos cem escudos o terdes sido ignorante e teimoso vinte vezes". Acolho e festejo a verdade, venha de quem vier; rendo-me com alegria, entrego-lhe as armas, vencido de antemão ao avistá-la de longe. E se não o fazem com demasiada agressividade, aceito quaisquer críticas a meus escritos; corrigi-os mais de uma vez, antes por cortesia do que por acha-los errados; gosto de encorajar as pessoas a me criticarem livremente e procuro recompensá-las, embora a expensas minhas. Todavia, é sem dúvida difícil levar os homens de minha época a pensarem de igual modo; não se animam a corrigir os outros porque não têm a coragem de suportar que os corrijam; e sua linguagem, quando em presença uns dos outros, carece de franqueza. Tenho tanto prazer em ser julgado e apreciado, que me é indiferente a maneira por que o fazem. Minhas ideias são amiúde tão contraditórias que se condenam sozinhas e pouco me importa que outro as condene também, tanto mais quanto dou à crítica uma importância relativa. Mas aborrece-me quem assume uma atitude superior (como alguém que conheço) e se ofende se não o seguimos. Vendo-se Sócrates acolher sorridente as observações que lhe faziam, pode-se dizer que era por causa de seu valor e porque vencia sempre. Aceitava portanto os reparos como pretexto para conquistar novas glórias. Na realidade, nada nos torna a sensibilidade mais delicada do que o valor que atribuímos ao adversário e o desprezo em que ele nos tem; por isso, nem que seja por prudência, deve o mais fraco aceitar de bom grado as críticas que o corrijam e fortaleçam. No que me diz respeito, procuro mais a convivência dos que se mostram severos do que a dos temerosos. É prazer insípido e prejudicial tratar com gente que nos admira sempre e sempre nos segue. Antístenes recomendava a seus filhos que não fossem reconhecidos a quem os louvasse. Muito mais me orgulho com a vitória obtida sobre mim mesmo quando, no ardor da discussão, me curvo sob o peso das razões do meu adversário, do que com a sua derrota se se revela fraco. Em suma, recebo e acuso todos os golpes leais, por mais fracos que sejam, mas suporto com dificuldade aqueles cuja forma deixa a desejar. Importa-me pouco o assunto em debate, as opiniões emitidas são-me indiferentes, bem como a vitória. Discutirei um dia inteiro, se a discussão se processar com ordem. Interessam-me menos a sutileza e o vigor do que a ordem nas ideias, essa ordem que subsiste entre os pastores e caixeiros, mas não entre nós. São por vezes indelicados e o mesmo fazemos, mas suas impaciências não os afastam do assunto; a discussão prossegue e, se falam sem aguardar sua vez, ao menos entendem-se. Qualquer resposta me satisfaz se vem a propósito, mas quando a discussão se perturba e se torna desordenada, abandono o assunto, prendo-me à forma, indiscretamente, e ponho-me a discutir com uma malícia e uma agressividade que, ao depois, me envergonham. É impossível discutir de boa fé com um tolo. E não é apenas, então, meu julgamento que se corrompe, é também minha consciência. As discussões deveriam ser regulamentadas como outros crimes verbais. Quantos vícios suscitam e acumulam em nós, governadas pela cólera! Começamos por hostilizar os argumentos e acabamos inimigos dos homens! Só aprendemos a discutir para contraditar, e acontece, em meio às contradições recíprocas, perder-se e aniquilar-se a verdade. Por isso Platão, em sua República, proíbe tal exercício aos espíritos ineptos e malformados. Por que buscar a verdade em companhia de quem não tem capacidade para tentá-lo? Não se prejudica o assunto discutido, quando o deixamos um momento de lado, a fim de acertar o método de tratá-lo; não me refiro aos métodos escolásticos e artificiais e sim aos meios naturais, peculiares às inteligências sadias. Que se verifica de outro modo? Cada qual puxa para seu lado; perde-se de vista o essencial na confusão do acessório. Ao fim de uma hora de disputa já não se sabe o que se procura. Um se distancia, outro se desvia; um se apega a uma palavra, outro a uma analogia. Outro, ainda, no auge do entusiasmo, não entende o que se lhe objeta; cada qual pensa em si somente, e não em nós. Há quem, sentindo-se fraco, tudo confunda de entrada, tudo baralhe, tudo recuse; ou finja concordar, afetando, por ignorância e despeito, um orgulhoso desdém ou uma estúpida humildade. Outro, conquanto fira, não se importa se se descobre. Outro, pesa as palavras e as toma por argumentos. Outro faz valer a voz e os pulmões; ou conclui contra si mesmo. E há quem nos ensurdeça com introduções e digressões inúteis. E há também quem se arme de injúrias e levante objeções sem fundamento para se libertar da companhia e da conversação de um espírito que o perturba. Outro enfim não raciocina de modo nenhum, mas envolve-nos em uma dialética de cláusulas e fórmulas. Ora, quem não há de desconfiar da ciência, "das letras que nada curam", e duvidar que delas se tire algum resultado sério, dado o uso que fazemos delas? A quem deu, a lógica, inteligência e juízo? Que é feito de suas promessas? "Não ensina nem a viver melhor nem a bem pensar. Haverá mais confusão no palavrório das regateiras do que nos discursos dos profissionais? Preferiria que um filho meu aprendesse a falar antes nas tabernas do que nas escolas de eloquência. Escolhei um professor de eloquência; conversa i com ele. Por que motivo não se contenta com fazer-nos sentir a sua superioridade nessa arte, com deslumbrar as mulheres, e os ignorantes como nós, mediante a admirável precisão de suas razões e a beleza de seus discursos? Por que não se satisfaz com dominar-nos e persuadir-nos a seu talante? Por que razão esse homem tão avantajado em saber e talento mistura a suas possibilidades naturais, injúrias, insultos e furores? Que se desfaça da toga e do latim, e não nos encha os ouvidos com Aristóteles nu e cru, e o tomareis por um de nós, ou menos ainda. As combinações e requintes de linguagem com que nos aborrecem semelham-se a passes de pelotiqueiros; sua sutileza vence nossos sentidos mas não nos abala a convicção; fora de tais peloticas nada fazem que não seja vulgar e vil. E não é porque são sábios que são menos tolos. Amo e honro o saber, bem como os que o possuem: empregado com critério é a mais nobre e poderosa aquisição do homem. Mas naqueles (e são em número infinito) que nele assentam sua capacidade e seu valor, naqueles cuja inteligência se encontra inteira na memória (abrigados à sombra alheia, como diz Sêneca), que nada podem sem seus livros, eu os detesto mais ainda que a imbecilidade. Em minha terra, nesta época, a sabedoria endireita as bolsas mas só raramente melhora os espíritos; se estes são obtusos, sufoca-os com sua massa, informe e indigesta; se são agudos torna-os tão sutis que os esgota. E coisa sem qualidade própria; utilíssimo acessório às inteligências bem formadas, mas pernicioso às outras, ou antes, preciosíssimo, porém de custo elevado. Em certas mãos é um cetro e noutras o chocalho do bobo do rei. Mas passemos adiante. Haverá mais bela vitória do que mostrar ao adversário que não nos pode vencer? Quando o assunto vence, vence a verdade; quando ganham a ordem e o método, ganhamos nós. Acho que, em Platão e Xenofonte, Sócrates discute mais para os participantes do que pela discussão mesma, e mais para instruir Eutidemo e Protágoras acerca de suas próprias tolices do que de sua arte. Qualquer assunto serve de pretexto, porque seu objetivo está menos em elucidar do que ser útil, isto é, esclarecer os espíritos que sonda e exercita. A caça é de nossa alçada, não é desculpável que a conduzamos mal; quanto a errar o golpe, é outra coisa. Não está, como dizia Demócrito, enterrada no fundo de um abismo; antes se eleva ao infinito até se tornar conhecida unicamente de Deus. O mundo não passa de uma escola de investigação. Não ganha quem corre mais, mas quem corre melhor. E tanto pode dizer tolices quem diz a verdade como quem mente, pois aqui não se trata do assunto e sim da forma. Quanto a mim, olho igualmente para o conteúdo como para o continente, tanto para o advogado como para a causa, seguindo nisso o conselho de Alcibíades. Todos os dias divirto-me com ler autores, sem cuidar do que sabem, analisando-lhes a maneira e não o tema. Ocorre-me também procurar entrar em relações com dado espírito famoso, não para que me ensine, mas para o conhecer. Todos podem dizer verdades, mas dizê-las com ordem, sensatez e pertinência poucos o fazem. Por isso não me ofendo com o erro que vem da ignorância e sim com a inépcia. Rompi várias negociações, úteis para mim, só por causa da estupidez das contestações daqueles com quem eu negociava. Não me irrito sequer uma vez por ano com as faltas de meus subordinados, mas no que concerne à burrice e à teimosia de suas desculpas, e à imbecilidade delas, diariamente me aborreço com eles. Não entendem o que lhes dizem, nem atinam com o porquê; e de igual modo respondem: é de desesperar. Somente outra cabeça pode impressionar a minha e acomodo-me melhor com as insuficiências dos meus do que com sua audácia, impertinência e estupidez. Que façam menos, mas alguma coisa que saibam fazer. Vive-se na esperança de excitar-lhes a vontade, mas nada há que arrancar de um pedaço de pau. Talvez, entretanto, julgue eu as coisas diferentes do que são. Eis por que censuro minha impaciência e confesso que é uma falha, tanto em quem tem razão como em quem não a tem, porque é sempre rispidez tirânica não suportar maneiras diferentes da nossa, e não há maior tolice, nem mais absurda, do que impressionar-nos e irritar-nos com as tolices alheias. Em geral isso nos aborrece a nós mesmos, e o filósofo antigo nunca houvera perdido a oportunidade de chorar se se olhasse para si mesmo. Míson, um dos sete sábios, cujo espírito tinha algo de Tímon e de Demócrito, interrogado por que se ria sozinho, respondeu: "Exatamente porque estou a rir sozinho". Quantas tolices ouço dizer e responder diariamente! E quantas, em maior número ainda, devem os outros ouvir de mim! Se mordo os lábios para delas não rir, que farão os outros? Afinal cumpre-nos viver com os vivos e deixar correr o marfim, sem nos preocuparmos ou, ao menos, sem nos encolerizarmos. Pois não deparamos com gente disforme ou aleijada sem que nos irritemos? A irritação provém antes do juiz que do crime. Tenhamos sempre em mente estas palavras de Platão: "O que considero errado, não o considerarei por estar eu próprio em condições anormais? Não serei eu o culpado? Não poderá minha observação voltar-se contra mim?" Sábio e divino preceito que fustiga o erro mais comum e universal dos homens! Não somente as censuras que fazemos uns aos outros como também as razões e argumentos e os temas de nossas controvérsias podem voltar-se contra nós e ferirnos. A esse propósito legou-nos a antiguidade exemplos edificantes. Falou muito bem e agudamente quem disse que "cada qual aprecia o odor de seu esterco". Nossos olhos não veem para trás. Cem vezes por dia zombamos de nós mesmos ao zombarmos de nosso vizinho; os defeitos que detestamos em outrem são ainda mais visíveis em nós e no entanto os admiramos com maravilhosa impudência sem perceber a contradição. Ainda ontem pude ver um homem inteligente e fidalgo zombar com graça e justiça de outro que anda a aborrecer meio mundo com suas genealogias e parentescos quase todos falsos (são os que têm qualidades mais duvidosas que se abalançam com maior entusiasmo a tais pesquisas); mas ele próprio, se houvesse reparado em si, não se acharia menos cacete em valorizar fora de propósito a linhagem da mulher. Que infeliz vaidade leva esse marido a fornecer armas à sua própria esposa! Se nos pudesse entender, caberia dizer-lhe: "Coragem! se a não achas bastante louca, excitas-lhe ainda a loucura". Não quero sugerir com isso que somente os puros têm o direito de criticar, pois então não haveria críticos; não nego tampouco esse direito a quem exibe falha idêntica à censurada; mas acho que, quando criticamos alguém, não nos devemos poupar. É dever de caridade tentar arrancar dos outros um defeito, ainda que não o possa arrancar de si próprio quem o faz. Não me parece certo dizer a quem me adverte de um defeito que também o encontro nele. E por quê? Porque uma advertência justificável é sempre útil. Se tivéssemos bom olfato, sentiríamos mais desagradavelmente os nossos maus odores exatamente porque são nossos. Sócrates era de opinião que se alguém cometesse algum crime, juntamente com seu filho e um estranho, deveria começar por se apresentar ao carrasco e provocar sua própria punição; só depois faria o mesmo com o filho e por último com o estranho. Esse preceito pode parecer algo severo, mas quem se acha culpado deve ser o primeiro a entregar-se ao castigo da própria consciência. Os sentidos são nossos próprios juízes e os primeiros a julgar-nos; como só percebem as coisas pelos acidentes exteriores, não é de estranhar que, em todos os atos da sociedade, haja sempre, em toda parte, quantidade de cerimônias em que as aparências desempenham papel importante e constituem a parte mais eficiente dos regulamentos. Temos sempre que tratar com homens, e nestes o que é tangível se sobrepõe ao que não o é. Os que quiseram introduzir nestes últimos anos um culto exclusivamente contemplativo e imaterial, não se devem admirar de haver quem pense que não seria mantido, se já não se houvesse tornado, entre nós, instrumento de divisão e discórdia; graças a isso é que vai durando. O mesmo se verifica na conversação: a gravidade, o traje, a condição social de quem fala dão muitas vezes crédito a palavras vãs e ineptas; pois é de presumir que um senhor tão cortejado e temido tenha dentro de si alguma qualidade invulgar, e que um homem que ocupa cargos tão importantes e se mostra tão insolente e altivo, seja mais talentos o do que o outro que o saúda de longe e ninguém emprega. E não somente as palavras, mas também os gestos e as caretas dessas pessoas são notadas e interpretadas de modo lisonjeiro. Se se dignam conversar com outros, e não recebem toda aprovação e deferência, esmagam-nos com a autoridade de sua experiência. Ouviram, viram, fizeram e enchem-nos de exemplos. Gostaria de dizer-lhes que o fruto da experiência de um cirurgião não consiste apenas em historiar suas operações, nem em lembrar que curou quatro pestíferos e três gotosos, mas em saber tirar da prática maior perspicácia e em demonstrar que se fez mais hábil em sua arte. Deve ser como um concerto, em que não se ouve o alaúde, ou a espineta, ou a flauta, mas uma harmonia total, soma de todos os instrumentos. Se as viagens e os cargos os melhoraram, que o comprove seu espírito. Não basta enumerar experiências; é preciso ainda classificá-las e ponderar-lhes o valor; cumpre examiná-las de perto, analisá-las, a fim de extrair as conclusões e as razões que comportam. Nunca houve tantos historiadores. É sempre útil e agradável ouvi-los porque nos franqueiam o armazém de sua memória, cheio de informações belas e dignas de elogios. Trata-se por certo de um grande auxílio na vida, mas não é, no momento, o que buscamos. O que queremos saber é se esses compiladores e narradores são eles próprios louváveis. Detesto toda espécie de tirania, tanto de palavras como de fatos. Reteso-me contra as circunstâncias vãs que iludem nosso julgamento pelos sentidos; e observando atentamente esses homens que cumulam grandezas, verifiquei tratar-se na maioria dos casos de gente como outra qualquer e "o bom senso se encontra raramente em pessoas de tão alto coturno". Não raro, porque empreendem coisas mais ousadas e se expõem mais, julgamo-las e vemo-las menores do que são, pois não suportam então o fardo que tentam carregar. É preciso que o carregador tenha mais vigor do que pesa a carga, pois assim nos sugere que pode carregar mais e que não está dando tudo. E o que sucumbe ao peso revela a fraqueza de seus ombros. Daí verem-se tantos tolos entre os sábios, gente que teria dado bons criados, agricultores, artífices. Para tanto não careceriam de habilidade natural. A ciência é pesada demais para eles e os esmaga. Seu engenho e vigor não bastam para que possam mostrar e distribuir, empregar e manejar tão rico e poderoso material. Só as naturezas fortes são capazes de tal esforço, e elas são raras. Os fracos, diz Sócrates, em a exercendo, corrompem a dignidade da filosofia. Torna-se ela inútil e viciada quando entregue aos incapazes, os quais a estragam e prejudicam. "Como um macaco que um menino vestiu de vestes de seda para fingir de homem, mas deixou o traseiro descoberto, para alegria dos convivas." Assim, os que nos regem e governam, os que têm o mundo nas mãos, não devem possuir apenas uma inteligência vulgar e poder o que podemos; se não estiverem muito acima de nós, ficarão muito abaixo. Prometem mais, logo devem mais. Portanto, o silêncio serve-lhes não só para assumirem uma atitude cerimoniosa e grave, mas também para se precaverem e auferirem proveitos da situação. Megabizo fora visitar Apeles e permanecera muito tempo sem dizer nada. Tendo-se decidido a discorrer, em seguida, acerca das obras do pintor, recebeu esta rude reprimenda: "Enquanto te conservaste calado, eras soberbo com teus colares e tua magnificência; agora que te puseste a falar, até os meus aprendizes se riem de ti". Seus adornos, sua condição social não lhe autorizavam uma ignorância igual à do vulgo e a falar ineptamente de pintura. Devera ter-se mantido silencioso para conservar a presunção de capacidade que seu exterior sugeria. A quantos espíritos medíocres um ar taciturno e distante tem servido de marca de prudência e capacidade! As dignidades e os cargos dão-se necessariamente mais por acaso do que pelo mérito; mas não temos razão de censurar os reis. É ainda espantoso que acertem com tão reduzidas possibilidades de informação. "A maior qualidade dos príncipes é conhecer os que empregam", pois, não lhes tendo dado a natureza uma vista suficiente para alcançar tanta gente, e discernir os melhores, e ver dentro de cada um seu valor próprio, são forçados a escolher por intuição, às apalpadelas, pelo sangue, pelas riquezas, pelo saber, pela voz do povo, indícios, todos, bem fracos. Quem encontrasse o meio de julgar os homens com razão e justiça, asseguraria uma perfeita organização dos serviços públicos. Mas ouve-se dizer "mas ele deu conta do recado". É uma razão, mas não basta, pois há uma máxima que diz: "não se deve julgar o valor das ideias pelos resultados". Os cartagineses puniam seus capitães quando julgavam más as medidas tomadas, ainda que o resultado final as corrigisse. O povo romano recusou muitas vezes as honras do triunfo a generais que haviam alcançado grandes e úteis vitórias, por considerar que seu procedimento não correspondia à sua sorte. Vê-se não raro neste mundo o acaso com prazer-se em diminuir nossa presunção, como que para mostrar quanto pode. Não podendo tornar avisados os incapazes, torna-os felizes, em oposição ao que determinaria a virtude. Amiúde favorece as empresas que tramou sozinho. Por isso vemos diariamente os mais simples dentre nós levar a cabo grandes cometimentos públicos ou particulares. O persa Siranez respondeu a alguém que se espantava com a má situação de seus negócios, embora tão sensatos fossem seus planos, que só podia responsabilizar-se por estes; quanto ao resultado, dependia do destino. Essa gente inábil e feliz a que aludi, poderia dar a resposta inversa. Na verdade, as coisas do mundo fazem-se, em sua maioria, por si mesmas, "o destino abre-lhes o caminho". O resultado justifica muitas vezes uma conduta inepta; nossa intervenção é quase um hábito rotineiro e as mais das vezes provoca da pelos usos e costumes e não pela razão. Espantado com as consequências de uma empresa capital em nossa época procurei saber dos que a levaram a cabo suas razões e meios; verifiquei que eram vulgares. Ocorre que os mais vulgares são os mais eficientes e seguros na prática, conquanto não sejam os mais sedutores. Que fazer, se os que têm menos valor são os mais convenientes? E se os mais baixos e mais gastos melhor se adaptam aos empreendimentos? Para que o Conselho dos Reis conserve sua autoridade é preciso que os profanos não assistam às sessões. Quem quiser que se mantenha intata a sua reputação, deve acata-lo sem lhe discutir as determinações. Quando me consulto, esboço apenas o tema de minhas reflexões e o encaro superficialmente nos seus primeiros aspectos; o principal da tarefa, tenho por hábito confiá-lo ao céu: "Deixa aos deuses o resto". A boa e a má sorte são, a meu ver, dois poderes soberanos. É insensato pensar que a sabedoria humana possa desempenhar o papel do destino. Vã é a empresa de quem presume abraçar causas e consequências e conduzir os fatos pela mão. Principalmente nas coisas militares. Nunca se viu na guerra tanta circunspeção e prudência como entre nós; será porque temem perder-se em caminho e se reservam para a catástrofe final? Vou mais longe, e sustento que a nossa própria sabedoria e as nossas deliberações são, as mais das vezes, guiadas pelo acaso. Minha vontade e meu raciocínio pendem ora para um lado ora para outro e muitos desses movimentos se produzem sem minha intervenção. Minha razão é sujeita a impulsos e agitações diárias e fortuitas. Nada varia tanto quanto as disposições da alma; uma paixão perturba-a, mas mudem os ventos e outra a arrastará. Observe-se quem são os mais poderosos nas cidades e quem vence nos negócios. São em geral os menos hábeis. Tem ocorrido que mulheres, crianças e loucos governem grandes nações tão bem como os mais capazes. Entre os príncipes que triunfaram afirma Tucídides serem mais comuns os grosseiros do que os sutis. Atribuímos entretanto à sua sabedoria os êxitos que deveram ao acaso: "Se vos elevardes pela sorte hão de louvar-vos o talento." Isso demonstra que os acontecimentos são frágeis testemunhos de nosso valor e capacidade. Dizia, acima, que basta considerar um homem de elevada situação social; ainda que o julgássemos sem valor três dias antes, insensivelmente passamos a imaginar que devia ter capacidade e persuadimo-nos, ante sua condição presente e sua importância, de que seus méritos também se ampliaram. Apreciamo-lo não mais segundo o seu valor, mas de acordo com as suas prerrogativas. Que a sorte mude porém, que ele caia e volte a misturar-se à multidão, logo indagaremos com espanto por que motivo se guindara tão alto. Diremos: "Será o mesmo?" "Era pois tudo o que sabia?" "Estávamos em verdade em boas mãos!" É o que tenho visto seguidamente. E até no teatro a grandeza nos impressiona e ilude. O que admiro eu próprio nos reis são os admiradores; diante deles tudo deve inclinar-se, salvo a inteligência, pois não foi à razão que ensinei a curvar-se, foi aos joelhos. Tendo alguém perguntado a Melanto o que pensava de uma tragédia de Dionísio, respondeu: Não a vi, a ênfase ofusca-a. Os que julgam os discursos dos grandes em geral deveriam dizer também: não os ouvi, ofuscavam-nos a gravidade e a majestade de suas palavras. Antístenes aconselhou de uma feita aos atenienses que empregassem seus burros nos trabalhos da terra, como faziam com os cavalos. Responderam-lhe que o animal não nascera para tais serviços, ao que ele replicou: não faz mal, basta decretá-lo; pois por mais ignorantes e incapazes que sejam, não se tornam logo muito dignos do encargo os homens a quem entregais a direção da guerra? Daí o costume, comum a tantos povos, de canonizar os reis que elegem; não se contentam com honrá-los, adoram-nos. No México já não ousam olhá-los de frente mal terminam as cerimônias da sagração. Como se o tivessem divinizado pela realeza, entre os juramentos que lhes fazem prestar de manterem a religião, as leis, as liberdades, de serem valentes, justos e urbanos, obrigam-nos a prometerem que o sol continuará a brilhar, que haverá chuvas em tempo oportuno, que os rios seguirão seu curso regular e a terra produzirá as coisas necessárias ao povo. É principalmente quando a vejo acompanhada de grandezas e de popularidade que desconfio da competência, indo assim de encontro a uma tendência assaz espalhada. É preciso atentar para a vantagem de falar quando se quer, de escolher o assunto, de interromper ou desviar a discussão com autoridade, de se defender das objeções alheias, com um simples movimento de cabeça, um sorriso, um silêncio, diante de uma assistência que treme de respeito. Um homem de condição social excepcional, dando sua opinião acerca de uma questão de nonada que se discutia à mesa, assim começou: só um mentiroso ou ignorante poderia negar que etc. Eis um argumento filosófico apresentado de punhal na mão. Por princípio considero também que nas discussões e conversas não devemos aceitar sem reflexão os ditos que nos parecem felizes. A maior parte dos homens é rica de competência alheia. Pode ocorrer que uma pessoa cite uma bela frase, uma resposta ou sentença sem lhes perceber o alcance exato. Não assimilamos tudo o que tomamos de empréstimo. Não devemos ceder desde logo a um argumento, por mais belo que se nos afigure. Cumpre refutá-lo francamente se estamos à altura de fazê-lo, ou bater em retirada sob qualquer pretexto para melhor ponderá-lo, examinando-o no sentido empregado pelo autor. Pois poderia, de outra maneira, acontecer que nos lançássemos diante do ferro, aumentando a violência do golpe. Apertado pelo adversário, e no tumulto da luta, empreguei não raro réplicas que foram muito mais eficientes do que esperara e que, na realidade, eu dera tão somente para não me confessar sem resposta. Quando discuto com um adversário vigoroso, acontece-me também antecipa-lo nas conclusões, poupando-lhe o trabalho de se explicar e procurando adiantar-me às ideias ainda imperfeitas que pretende exprimir, pois a ordem e a justeza de seu raciocínio advertem-me e ameaçam-me de longe. Com outros, procedo de modo contrário, aguardo que se expliquem integralmente. Quando se atêm a generalidades e acertam, cabe verificar se não acertaram por acaso. Insisto para que precisem sua opinião, que digam como e por quê. As apreciações gerais, tão comuns, nada significam. Os que as emitem dão a impressão dessas pessoas que saúdam um povo inteiro em bloco, sem discriminar. Os que têm conhecimentos reais, saúdam pelos nomes, individualmente. Mas a empresa é arriscada. E tenho visto amiúde espíritos mal preparados para a empreitada fazerem-se de perspicazes, anotando na leitura de uma obra o trecho mais belo mas o escolhendo tão mal que, em lugar de realçar o talento do autor, revelam sua própria ignorância. Temos certeza de não errar quando exclamamos "como é belo" após a leitura de um trecho de Virgílio, e os espertos assim fazem. Mas empreender segui-lo passo a passo e, através de juízos lúcidos e pertinentes, mostrar como um escritor se realiza, analisar as palavras e as frases, e os achados, não é coisa da alçada de qualquer um. Deve-se não somente analisar as palavras, mas ainda as opiniões e os fundamentos delas... Ouço seguidamente tolos dizerem coisas acertadas. Resta saber se entendem o que dizem e de onde o tiraram. Muitas vezes nós é que os ajudamos a empregar uma frase ou um argumento que não são de sua autoria; têm-nos em reserva e os apresentam ao acaso; nós é que lhes damos importância e valor. Nós é que lhes estendemos a mão. Para quê? Não nos ficam gratos por isso e não se tornam menos ineptos. Não os ajudemos, portanto, deixemo-los soltos; manejam essas frases como gente que tem medo de se escaldar; não ousam tocá-las, nem mudá-las de lugar, nem aprofundá-las. Uma sacudidela bastaria para que as deixem cair, para que as abandonem, embora fortes e belas. São boas armas porém mal encabadas. Quantas vezes fiz a experiência! Mas se nos pusermos a esclarecê-las e confirmá-las, tirarão vantagem da interpretação: "era o que queria dizer", afirmarão. "Era a minha ideia, se não a exprimi assim foi porque me faltou a palavra". Insistimos. É preciso alguma malícia para corrigir esses vaidosos imbecis. A máxima de Hegésias (que é preciso não odiar nem censurar, mas ensinar) tem sua razão de ser, porém no caso parece-me injusto e desumano socorrer e emendar quem o não sabe aproveitar. Que se enleiem e se embaracem quanto possível para que afinal se conheçam! A tolice e a insensatez não se curam com conselhos. Dessa cura pode-se dizer o que Ciro respondeu a quem o aconselhava a exortar seu exército antes da batalha: "os homens não se tornam valentes e guerreiros só por ouvirem uma boa arenga, como ninguém se torna imediatamente músico só por ouvir uma bela canção". É preciso uma longa e prévia aprendizagem. Cumpre-nos ter esse cuidado com os nossos; cabe-nos ensiná-los e corrigi-los: mas ir pregar ao primeiro sujeito que passa, esclarecer qualquer ignorante que se encontre é prática que reprovo. Raramente o faço, mesmo nas minhas conversações, e prefiro sustá-las a ter de corrigir como um mestre-escola. Não sei falar nem escrever para principiantes; e nas conversações de ordem geral de que participo, ou a que assisto, por falso e absurdo que seja o que ouço, nunca procuro contrariar ninguém; nem por palavras nem por sinais. Nada me irrita mais, porém, na estupidez, do que a satisfação com que se exibe, maior do que poderia ter, com certa razão, a inteligência. É pena que a prudência nos proíba a satisfação e a confiança em nós e nos deixe sempre descontentes e intimidados, enquanto a teimosia e a audácia enchem os que as têm de alegria e segurança. São sempre os menos capazes que olham os outros de cima e voltam da luta cheios de orgulho e disposição. Não raro a fatuidade da linguagem e a jovialidade que demonstram já lhes dão ganho de causa perante uma assistência em geral fraca e incapaz de julgar a verdadeira superioridade. A obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da estupidez. Haverá algo mais afirmativo, resoluto, desdenhoso, contemplativo, grave e sério do que um burro? Podemos também tratar, neste capítulo, acerca da conversa e da discussão, dos propósitos trocados na intimidade, entre amigos que zombam e gracejam uns dos outros. É um exercício em que se compraz minha vivacidade natural, e se não é tão sério como aquele de que acabo de falar, não é menos fino nem menos proveitoso. Era o que pensava Licurgo. No que me diz respeito, ponho nele mais liberdade do que sal e mais espírito de oportunidade do que imaginação; e suporto muito bem o revide, ainda que áspero e excessivo, sem me irritar. Se quando me atacam não encontro com que responder de imediato, não me apego a respostas aborrecidas e frouxas, teimosamente; deixo passar, curvo-me de bom grado e aguardo ocasião propícia para a desforra. Não há negociante que sempre ganhe. Entretanto, em sua maioria, as pessoas mudam de cor e de voz em lhe faltando força; e em lugar de se vingarem denunciam assim sua fraqueza e sua irritação. Com os gracejos tocamos por vezes cordas secretas de nossas imperfeições que, serenamente, não tocaríamos sem nos ofender; desse modo avisamo-nos uns aos outros de nossos defeitos. Há outros jogos em França que aborreço mortalmente; violentos, grosseiros, levam fatalmente às vias de fato. Tenho a pele sensível e já vi enterrarem dois príncipes de sangue real. É feio bater-se brincando. E quando desejo julgar alguém pergunto-lhe até que ponto está satisfeito consigo, em que medida o que pensa e diz o satisfaz. Procuro evitar que responda com desculpas esfarrapadas: fiz, por brincadeira, "a obra foi tirada da forja antes de terminada", não levei uma hora a fazê-la, não a tornei a ver. A tais desculpas respondo: pois deixemos isso de lado e dai-me uma obra que vos represente bem e pela qual quereis ser julgado. E acrescento: Que achais melhor nesta obra? Isso ou aquilo? A graça, a matéria, a fantasia, o raciocínio, o saber? Porque vejo que habitualmente tanto se erra na apreciação do trabalho próprio como na do alheio. Não somente pela afeição que interfere mas também por falta de competência. A obra, por sua própria virtude e por efeito do acaso, pode ultrapassar o autor. Quanto a mim nada me custa tanto a avaliar quanto o meu próprio trabalho; considero os "Ensaios" ora bons ora ruins, com inconstância e indecisão. Há livros úteis pelo assunto mas que não valorizam os autores, e bons livros à semelhança de certas tarefas que envergonham o artífice. Posso escrever sobre as regras de bem comer e de bem vestir, e escrever de má vontade; posso publicar os editos de nosso tempo e as missivas dos príncipes que desempenharam missões, ou fazer um resumo de um bom livro (embora todo resumo de um livro seja absurdo) que venha a perder-se, e outras tantas coisas análogas. Tais obras poderão ser de grande utilidade para os pósteros, mas a honra que poderei auferir dependerá unicamente da sorte. Boa parte de livros famosos é desse gênero. Anos atrás, lendo Filipe de Comines, bom autor por certo, notei essa frase singular: "que é preciso não prestar ao senhor tantos serviços que se lhe torne impossível encontrar uma recompensa adequada". A ideia é louvável, mas não é dele. Encontrei-a não faz muito em Tácito: "os favores são agradáveis enquanto os podemos pagar; além desse limite tornam-se odiosos". Sêneca diz também: "Quem acha vergonhoso não pagar, não deseja ter credores". E em Cícero encontra-se igualmente: "Não pode ser nosso amigo quem não se julgue quite conosco". O assunto tratado pode, segundo sua natureza, revelar um homem de saber e memória, mas para julgar o que lhe pertence de fato, para apreciar a força e a beleza de seu espírito, é necessário verificar o que é seu e o que não é; e, nisto que não é seu, o que se lhe deve pela escolha, ordenação e linguagem. Pode também ter pilhado o assunto e piorado a forma, como acontece muitas vezes. Nós, que não estamos familiarizados com os livros, vemo-nos embaraçados quando deparamos com alguma bela imagem em um poeta recente, um forte argumento em um pregador; não ousamos louvá-los antes de indagar de algum sábio se o trecho é deles ou não. E até lá fico de pé atrás. Acabo de percorrer de um fôlego a história de Tácito (o que só raramente me acontece, pois há vinte anos não dedico à leitura mais de uma hora seguida). Fi-lo a conselho de um fidalgo que a França muito aprecia, tanto pelo seu valor pessoal como pelos méritos que tem em comum com seus vários irmãos. Não sei de autor que junte aos fatos da história tantas considerações acerca dos costumes e temperamentos dos indivíduos. Acredito, ao contrário do que lhe parece, que, tendo de tratar da vida dos imperadores de seu tempo, tão diversas e excepcionais em tudo, e relatar seus gestos e crueldades, tinha assunto mais interessante e instrutivo do que se devesse falar de batalhas e revoluções; por isso, quando passa rapidamente por cima de tão belas mortes, acho que não tira delas todos os ensinamentos que comportam. Dir-se-ia que receia fatigar-nos e entediar-nos com o seu número. Essa forma da história é, de muito, a mais útil, pois os movimentos públicos dependem principalmente do acaso e os particulares de nós mesmos. Tácito julga os fatos ocorridos, mais do que os relata; há nele mais preceitos do que narrativas. Não é o seu um livro de simples leitura, e sim de estudo e meditação; tão cheio de sentenças que as encontramos a torto e a direito. É uma mina de reflexões morais e políticas úteis aos que governam o mundo. Assenta-as sempre em razões sólidas e vigorosas, incisivas e sutis, no estilo afetado daquela época em que tanto se apreciava a afetação que, se não a tinham as coisas, tinham-na obrigatoriamente as palavras. Sua maneira de escrever assemelha-se à de Sêneca, mas parece mais densa, enquanto a de Sêneca é mais viva. É bem adequada a uma situação perturbada como a nossa de hoje. E dir-se-ia que é a nós que pinta e critica. Os que duvidam de sua sinceridade demonstram que as causas de não o apreciarem são outras na realidade. Suas opiniões são sensatas e ele pertence ao melhor dos partidos que dividiam Roma. Lamento entretanto que tenha julgado Pompeu mais severamente do que os homens de bem que o conheceram, e que o coloque ao lado de Mário e Sila, considerando-o porém mais dissimulado. Indiscutivelmente as pretensões de Pompeu ao governo não foram isentas de ambição nem de desejo de vingança, e seus próprios amigos receavam que a vitória o levasse a ultrapassar certos limites e a praticar as crueldades e a tirania que o historiador lhe imputa. Mas como não se deve igualar a suspeita à evidência, não creio muito no que diz. Poder-se-ia considerar as narrativas de Tácito verdadeiras e sinceras, em virtude mesmo de não se adaptarem sempre com precisão a seus juízos, nos quais atende a ideias preconcebidas, qualquer que seja o rumo tomado pelos fatos que conta. Aprova as crenças de seu tempo e obedece assim ao que lhe ordenavam as leis; não há portanto como censura-lo por ignorar a verdadeira religião. Isso é uma infelicidade, no seu caso; não um defeito. Procurei penetrar seus juízos, mas em alguns pontos não os entendi inteiramente. Assim no que diz respeito à carta que Tibério, velho e doente, enviou ao Senado: "Escrever-vos-ei, senhores? Como vos escreverei? Ou não vos escreverei? Mas na hora atual os deuses e as deusas resolveram por certo a minha desgraça, pois sinto-a dia a dia mais aproximar-se". Não compreendo por que Tácito vê nessas palavras a prova de que a consciência de Tibério se enchia de remorsos. Lendo esse trecho não tive essa impressão. Parece-me também pouco corajoso que, tendo de dizer que exerceu em Roma certa magistratura honrosa, se desculpe a fim de que não se imagine que o diz por vaidade. É humildade demais para uma alma de tal envergadura; não ousar falar com franqueza de si, revela falta de coragem. Um espírito franco e elevado, que julga sadia e seguramente, usa seus próprios exemplos como coisa alheia e apresenta seu testemunho como apresentaria o de outra pessoa. É preciso desprezar as regras vulgares da boa educação, quando se está a serviço da verdade e da liberdade. Não somente ouso falar de mim mas ainda falar só de mim; e quando falo de outra coisa, engano-me, fujo ao assunto. Não me estimo a ponto de não poder distinguir-me e considerar-me como a um vizinho ou árvore. Tanto é erro não ver até onde vai o próprio valor como dizer mais do que aquilo que se vê. Devemos amar a Deus mais do que a nós mesmos; conhecemo-lo menos; e no entanto falamos dEle quando queremos. Se seus escritos podem levar-nos a perceber alguma coisa de sua natureza, Tácito foi um homem reto e corajoso, sem superstições e dono de uma alma generosa de filósofo. Poderemos achá-lo temerário em suas afirmações, como quando conta que um soldado carregando um feixe de lenha teve as mãos geladas e coladas à carga, não podendo desprendê-las desta por se terem separado dos braços. O que nos diz de Vespasiano, o qual graças à proteção do deus Serápio curou em Alexandria uma cega untando-lhe os olhos com saliva, é também exagerado. Mas ele faz então o que fazem todos os historiadores que registram não apenas os acontecimentos importantes, mas igualmente os boatos e as fábulas populares. É seu papel contar e não criticar. Esta parte cabe aos teólogos e aos filósofos, que são diretores espirituais. Contudo, como disse Quinto Cúrcio, seu confrade ilustre: "conto mais coisas do que as que creio; por um lado não ouso afirmar aquilo de que duvido e por outro não quero suprimir o que me narram". E outro disse: "Não vale a pena afirmar ou refutar, temos que confiar na tradição". Embora escrevendo em um tempo em que principiava a diminuir a crença nos milagres, diz que não deseja deixar de registrar nos seus anais as coisas de que tem notícia por intermédio de gente de bem e de respeito. E está certo. A história deve escrever-se de acordo com os fatos de que temos conhecimento e não em atenção à nossa opinião própria. Eu que sou rei no assunto de que trato, que não devo contas a ninguém, não acredito inteiramente em mim. Atrevo-me por vezes a expressões que considero temerárias e desconfio de certas sutilezas que me escapam. Vejo quem se jacte de coisas semelhantes. Não me cabe julgar sozinho. Apresento-me de pé e deitado, de frente e de trás, de direita e de esquerda, tal qual sou realmente. Os espíritos iguais em força não o são sempre em capacidade de apreciação e gosto. Eis o que, a respeito desse historiador, me vem à memória de um modo geral e assaz incerto. Nessas condições, quaisquer juízos são por certo vagos e incompletos. CAPÍTULO IX DA VAIDADE Não haverá talvez maior vaidade do que escrever sobre esta e tão inutilmente. O que Deus tão divinamente exprimiu, deveria ser cuidadosa e constantemente meditado pelas pessoas inteligentes. Quem não vê que, enquanto houver papel e tinta, seguirei sem parar o caminho que adotei? Não posso manter um diário de minhas ações porque não as valorizou a sorte; reconstituo por isso a minha vida com minhas ideias. Por que não? Pois não conheci um fidalgo que só tornava conhecido o que em sua vida se relacionava com o ventre? Viam-se expostos em sua casa inúmeros urinóis com os resíduos de sete ou oito dias; eram o objeto de seus estudos e o assunto de sua conversação; qualquer outro tema o aborrecia. O que exponho aqui é um pouco mais decente: as lucubrações mal digeridas de um espírito envelhecido e ora prolixo, ora reservado. E não sei quando se aquietará essa agitação das minhas ideias a propósito de todas as matérias, porquanto Diógenes, que se ocupou unicamente de gramática, encheu seis mil volumes com as suas. E se o simples balbucio dos preâmbulos da linguagem deu para infligir ao mundo a horrível carga de tanto livro, que não acontecerá com o meu palavrório? Quanta palavra para tratar da palavra! Censuraram a Galba a ociosidade em que vivia. Respondeu ele que "é necessário prestar contas dos atos, não do repouso". No que se enganava. A justiça também se ocupa dos que não trabalham e deles desconfia. Deveria haver leis que punissem os escritores ineptos e inúteis, como existem para os vagabundos e malandros. Assim se arrancariam das mãos do povo minhas obras e muitas outras. Não se trata de uma brincadeira. A mania de escrever parece ser sintoma de um século perturbado. Nunca escrevemos mais do que depois que a era das agitações se iniciou. E os romanos nunca o fizeram tanto como na época de sua decadência. Além do fato de não serem os progressos do espírito o que torna prudente do ponto de vista político, essa ocupação ociosa, do trabalho da pena, nasce do desinteresse que demonstramos pelos deveres de nossos cargos. A corrupção do século deve-se à cooperação de cada um de nós em particular; uns contribuem com a traição, outros com a iniquidade, a irreligião, a tirania, a avareza, a crueldade, segundo as suas forças; os mais fracos dão a estupidez, a vaidade, a ociosidade; sou destes. Parece-me que, quando o mal nos cerca de todos os lados, é chegada a hora da frivolidade. Em um momento em que a maldade se exerce impunemente, ser apenas inútil merece louvores. Consolo-me com pensar que se a justiça se interessasse pelo assunto, seria eu dos últimos a sofrer. Enquanto se ocupasse dos que mais incomodam, teria tempo bastante para me corrigir, pois não fora razoável que se buscassem os miúdos enquanto pululam os grandes. O médico Filotino, vendo pelo aspecto e o hálito que o indivíduo que lhe apresentava o dedo machucado tinha uma úlcera nos pulmões, disse-lhe: "meu amigo, não estás na hora de fazer as unhas". Vi há alguns anos um personagem, cuja memória me é cara, que, em meio a nossas desgraças, em uma época em que não havia leis, nem justiça, nem magistrado cumprindo seu dever (e isso não mudou em verdade), se pôs a publicar um livro acerca de insignificantes reformas no vestuário, na cozinha e nos processos. Com tais divertimentos tenta-se mostrar a um povo maltratado que não se esqueceu dele por completo. Fazem o mesmo os que nos momentos críticos proíbem danças, jogos e certas formas de linguagem a uma multidão entregue a todos os excessos. Não é quando se tem uma forte febre que se vai pensar em lavar-se. Somente os espartanos se penteavam e se enfeitavam para uma empresa em que arriscassem a vida. Quanto a mim, tenho o péssimo costume de só me arranjar por inteiro, e se o sapato foi mal calçado deixo também de través a capa e a camisa. Quando me encontro em situação difícil, obstino-me em continuar; abandono-me por desespero, não me detenho mais na queda e deixo tudo ao deus-dará, não mais me considerando digno de meus próprios cuidados. Em mim tudo tem que ser inteiramente certo ou inteiramente errado. Consola-me, entretanto, verificar que esse desolador estado mental se observe em uma idade não menos lamentável; é menos doloroso ter meus males agravados agora do que se me houvessem dominado em tempos idos. As palavras que me escapam nos momentos de infelicidade são palavras de despeito; minha coragem irrita-se, não cede. Ao contrário dos outros, sou mais devoto na felicidade do que na desgraça. Sigo o preceito de Xenofonte, mas não pelas mesmas razões, e antes ergo os olhos aos céus a fim de agradecer do que para solicitar; zelo mais pela minha saúde quando me sinto bem do que me esforço por recuperá-la se vai mal. A prosperidade sugere-me a disciplina e o dever, da mesma forma que as contrariedades e castigos corrigem outros, pois em geral as pessoas tornam-se honradas na adversidade, como se a sorte fosse incompatível com a consciência. A fortuna propícia incita-me à moderação e à modéstia. A súplica conquista-me, a ameaça irrita-me; o favor amolece-me, o temor entesa-me. É da natureza humana agradar-se mais do alheio do que do próprio; gostamos do movimento e das mudanças: "e o dia só nos apraz porque cada hora apresenta aspectos diferentes". Assim sou eu. Outros vão ao extremo oposto, agradam-se de si mesmos, apreciam acima de tudo o que possuem, não admitem que haja formas mais belas do que as que veem. Se não são mais avisados do que nós, são mais felizes ao menos. Não lhes invejo a sabedoria e sim a felicidade. Essa ânsia permanente de novidades muito contribui para alimentar em mim o amor às viagens, a que me incitam também outras circunstâncias e, em particular, o prazer com que me afasto da direção de minha casa. Não deixa de ser agradável mandar, ainda que em uma simples granja, e ser obedecido, mas é um prazer monótono, insípido e que comporta algumas preocupações penosas: ora a indigência e a opressão que pesam sobre os subalternos, ora as discussões e demandas com os vizinhos: "os vinhedos que o granizo devasta, as árvores e os campos que sofrem com a estiagem; a canícula e o frio rigoroso que desfazem nossos sonhos”. Não dura sequer seis meses o bom tempo capaz de contentar inteiramente o administrador, mesmo porque em beneficiando a vinha pode prejudicar os prados: "Ora um sol violento tosta o grão; ora as chuvas inesperadas e as duras geadas destroem a colheita; ora o turbilhão do vento as dispersa". Cada um sabe onde lhe aperta o sapato, por novo e benfeito que seja, e o estranho ignora quanto nos custa manter a harmonia aparente da família, e que talvez a paguemos demasiado caro. Assumi tarde a administração de minha casa; meus predecessores dispensaram-me do encargo durante muito tempo, e quando chegou a minha vez já trazia arraigados outros hábitos mais gratos a meu temperamento. Entretanto, pelo que vi, trata-se de uma atividade mais absorvente do que difícil; quem tem capacidade para outra coisa, tem também para essa. Se tivesse ambicionado enriquecer-me, esse caminho não me seduziria por ser longo demais; preferiria colocar-me a serviço dos reis, negócio sem dúvida bem mais lucrativo. Mas como pretendo apenas não dissipar meu patrimônio, embora nada lhe acrescendo (o que está de acordo aliás com esta vida que vou vivendo) e sem nada fazer de particularmente importante, não me tem sido difícil, graças a Deus, cuidar dos meus interesses sem maiores percalços. Na pior das hipóteses, pode-se sempre prevenir a pobreza reduzindo-se os gastos; por isso, desde já restrinjo os meus, antes que a tanto ela me obrigue. Aliás, consegui pouco a pouco contentar-me, sem sacrifício, com menos do que possuo: "Não se deve avaliar a fortuna pela renda, mas pelas necessidades". As minhas não absorvem os meus haveres a ponto de não me permitir atender ainda a alguma desgraça ocasional. Por ignorante e desdenhoso que seja dos negócios domésticos, minha presença contribui para mantê-los em ordem. Embora de má vontade, esforço-me por olhá-los, mesmo porque quando me ausento não poupo de um lado a vela que se queima de outro. As viagens só me aborrecem por causa das despesas, sempre grandes demais para as minhas posses, tanto mais quanto não estou acostumado a viajar apenas com a criadagem indispensável; quero fazê-lo de um modo honroso. Por isso, devo espaçá-las e encurtá-las, nelas empregando unicamente as sobras e as reservas segundo as possibilidades do momento. Não desejo que o prazer do passeio prejudique o do repouso; acho ao contrário que precisam completar-se sendo úteis um ao outro reciprocamente. Ajudou-me a sorte desse ponto de vista, porque, preocupado antes de tudo com levar uma vida sossegada, não me obrigou a pensar em aumentar minhas riquezas a fim de prover as necessidades de numerosos herdeiros. Tenho apenas uma filha; se não lhe bastar o que me foi amplamente suficiente, tanto pior para ela. Sua imprudência não terá merecido outra coisa. Segundo o exemplo de Fócion, o que quer que deixemos aos nossos filhos é bastante, desde que se pareçam conosco. E não estou de acordo com Crates, que depositou todo o seu dinheiro nas mãos de um banqueiro, determinando que se seus filhos fossem imbecis lhes distribuísse a importância e se fossem inteligentes entregasse a outros imbecis. Como se os estúpidos, em sendo menos capazes de viver sem dinheiro, devessem gastá-lo melhor! Em todo caso, os danos que possam advir de minha ausência não me parecem exigir de mim que me prive, enquanto o possa, das oportunidades de esquecer essa melancólica assistência. Há sempre algo que não anda direito. Aborrece-me o que ocorre aqui ou ali; vemos tudo de muito perto e a perspicácia prejudica-nos sempre. Evito zangar-me e finjo não ver as coisas erradas; mas não posso fazer com que não depare de quando em vez algo desagradável. E as malandragens que mais se ocultam são as que melhor conheço há muito; e algumas há que convém esforçar-se por esconder, para que não tenham consequências mais graves. Coisas de nona da, dirão; mas por miúdas que sejam não deixam de enfastiar. E, assim como os caracteres pequenos cansam a vista, os aborrecimentos insignificantes são os que mais irritam. A multidão de pequenas contrariedades enerva mais do que um grande mal. Quanto mais miúdos os espinhos domésticos menos desconfiamos deles e mais nos ferem inesperadamente. Não sou filósofo, por isso sinto os males na medida em que me atingem; e pesam segundo sua forma e substância, e por vezes mais do que fora razoável. Vejo-os melhor do que o vulgo, embora tenha mais paciência; e ainda que não me magoem me fatigam. A vida é coisa delicada e facilmente se turva. Qualquer motivo de aborrecimento, por tolo que seja, leva-me a um mau humor que se amplia e se exaspera aos poucos. "Não resisto à primeira impressão." E água mole em pedra dura tanto bate até que fura, pois, como dizia Lucrécio, a água fura o rochedo. Essas pequenas amolações cotidianas corroem-me, ulceram-me; repetidas assim, não são nunca insignificantes, e tornam-se sem remédio quando provêm de pessoas da família, com quem não há como romper relações. Encarando meus negócios de longe e em conjunto, acho (talvez por não os ter bem em mente) que prosperaram mais do que fora de esperar. Parece-me que o rendimento é maior. Mas quando volto à direção dos mesmos, inúmeros pormenores me atormentam: então minha alma se reparte entre mil inquietações. É-me fácil abandoná-los por completo; o difícil é voltar a eles. E triste estarmos em um lugar onde tudo o que vemos preocupa e depende de n6s. Creio que me sentiria bem mais alegre em uma casa estranha, pois estaria mais livre e à vontade. Nisso estou com Diógenes, que respondia a quem lhe indagava que vinho preferia: "o que não é meu". Meu pai gostava de construir em Montaigne, onde nascera, e em tudo o que diz respeito às questões domésticas atenho-me a seu exemplo e procuro fazer com que do mesmo modo ajam os que me sucederem. O que puder realizar em atenção à sua vontade sempre o farei e se mandei terminar um pedaço de muro ou retificar algo mal executado, foi pensando em sua intenção mais do que em minha comodidade. E censuro-me a indolência que me impediu de levar a cabo a reforma que ele iniciara, tanto mais quanto me arrisco a ser o último varão da família e o último a tocar na mansão. Mas não tenho queda para as construções, que afirmam ser coisa agradável, nem para a caça, a jardinagem ou as ocupações inerentes a uma vida de campo. Nada disso me diverte muito. Como não me interessam as opiniões que se possam tornar fontes de dificuldades para mim; não as quero robustas e esclarecidas e sim fáceis e cômodas. Serão suficientemente sãs e justas, se se mostrarem úteis e derem prazer. Os que me ouvem dizer de minha incapacidade em assuntos domésticos consideram que o afirmo por desdém. E pensam que se negligencio de conhecer os instrumentos necessários aos trabalhos do campo, as estações adequadas, a ordem a ser observada, a maneira de fazer o vinho ou de enxertar as árvores, os nomes das plantas e dos frutos, o modo de preparar as carnes que comemos e o preço dos tecidos com que nos vestimos, é porque me dedico a ciências mais importantes. Irritam-me profundamente com suas reflexões. Se assim fosse, seria tolice minha; não haveria de que vangloriar-me. Na realidade eu preferiria ser bom escudeiro a ser bom lógico: "Por que não te ocupas com coisas úteis, com fazer cestos de palha ou de junco?" Enchemos a cabeça com ideias gerais, com as causas dos sucessos universais, os quais dispensam perfeitamente o nosso interesse, e esquecemos o que diz respeito ao homem e a nós mesmos. Vivo em minha casa a maior parte do tempo e gostaria de nela comprazer-me mais do que alhures. Após tantas viagens por terras e mares, após tantos combates, possa eu enfim aí encontrar o repouso na velhice! Não sei se o conseguirei. Gostaria de ter herdado de meu pai, em lugar de outras coisas, o amor apaixonado que devotava à administração de seus bens. Era feliz em geri-la, adaptando-se ao que possuía. As pessoas que se dedicam aos grandes problemas políticos poderiam acenar-me com a mesquinhez de minha atividade; isso pouco me importaria se jamais viesse a seguir meu pai em seus gostos. Acho que servir ao público e ser útil ao maior número é o que há de mais honroso, nunca apreciamos melhor os frutos do gênio e da virtude como quando os repartimos com o próximo mas, pessoalmente, renunciei a essa ambição por covardia e consciência; tais encargos parecem-me tão pesados que tenho a convicção de não poder desempenhá-los. Platão, que era um mestre em tudo o que respeita ao governo dos Estados, absteve-se entretanto de aceitar quaisquer funções. Contento-me em gozar a vida sem demasiado ardor, porém; em levar uma existência simplesmente suportável que não seja uma carga nem para mim nem para os outros. Ninguém mais do que eu se entregaria mais totalmente e de bom grado à administração de terceiros se o pudesse. Um de meus desejos é encontrar um genro que me auxilie a retirar-me dos negócios. Deixar-lhe-ia a direção de meus bens e a possibilidade de fazer o que faço e de tirar de sua atividade todos os benefícios, conquanto se mostrasse reconhecido e amigo. Mas vivemos em um mundo em que a lealdade não existe, nem mesmo nos próprios filhos. Quem se encarrega de minhas despesas em viagem, age sem controle algum de minha parte. Aliás, poderia roubar-me da mesma forma se eu contasse. E assim, a menos que seja um malandro, tal confiança obriga-o a andar direito. "Muitos induzem ao ludíbrio com seu receio de ser ludibriado; a suspeita justifica o pecado." A garantia que tenho de meus subordinados consiste unicamente em desconhecê-los. Não presumo os vícios, e confio de preferência nos mais jovens por considerar que estão menos pervertidos pelos maus exemplos. É-me menos desagradável saber ao fim de dois meses que esbanjei quatrocentos escudos, do que ter diariamente aos ouvidos a relação das despesas. Nem por isso tenho sido mais roubado do que outros. Ignoro-o em verdade, pois nunca sei, exatamente, e de caso pensado, quanto tenho; e até certo ponto agrada-me essa incerteza. É preciso reservar uma pequena margem para a deslealdade ou a impudência dos servidores. Se possuímos com que manter despreocupadamente a nossa posição social, abandonemos aos subalternos o excedente do que a liberalidade do destino nos outorgou: é a parte do respigador. Em suma, não me preocupa a honestidade de meus servidores, nem me atinge o que possam fazer-me. Vil e tola atividade, essa que consiste em lidar permanentemente com dinheiro, contando-o e pesando-o! Por esse caminho é que se chega à avareza. Durante os dezoito anos em que venho administrando os meus bens, nunca me dei ao trabalho de examinar documentos e títulos de propriedade que deveria conhecer a fundo. Não por desprezo filosófico pelas coisas deste mundo, as quais avalio com objetividade, mas tão somente por preguiça e negligência pueris e incuráveis. Tudo posso sacrificar para não ser obrigado a ler esse papelório que me tornaria escravo de meus negócios e até dos negócios alheios, como ocorre com quem se impressiona com o dinheiro. Nada me aborrece tanto como as preocupações e as fadigas; ambiciono apenas sossego e lazeres. De bom grado, creio, viveria a expensas de outrem, conquanto isso não implicasse em obrigações e servidão. Dado o meu temperamento e a minha condição, e considerando o que devo suportar de meus criados e familiares, não sei se não há nisso maior abjeção e desagrado do que em figurar entre os servidores de um fidalgo de maiores posses e que lhes dê certa independência. A escravidão consiste na sujeição de uma alma covarde e fraca, destituída de livre-arbítrio. Crates foi além; colocou-se sob a salvaguarda da pobreza a fim de se libertar dos cuidados do lar. Não o faria eu, porque detesto a pobreza tanto quanto o sofrimento; mas com prazer trocaria minha vida por outra menos nobre e ativa. Em viagem, deixo de lado toda preocupação, e a queda de uma torre me comoveria menos do que a de uma telha, se presente. De longe, meu espírito desprende-se de tudo, mas de perto sofro com o que ocorre, como de resto qualquer vinhateiro. Uma rédea mal ajustada ao meu cavalo, um estribo que me incomode a perna, preocupam-me um dia inteiro. Sustento o ânimo ante quaisquer ocorrências, mas não posso fazer o mesmo com os olhos: "como dominamos pouco os sentidos, ó deuses!" Em casa sou responsável por tudo o que vai mal. Poucos senhores (de condições iguais às minhas) podem (e são felizes se o podem) descansar em alguém sem que tenham de suportar ainda boa parte dos encargos. Isso influi na maneira pela qual recebo meus hóspedes e sem dúvida alguns terão ficado mais tempo em minha companhia por causa da cozinha do que do tratamento. Assim perco muito do prazer que pudera auferir das visitas dos meus amigos. A mais tola atitude que pode assumir um fidalgo em sua casa, está em mostrar-se incomodado com o serviço, falando ao ouvido de um criado ou ameaçando outro com o olhar. É preciso que tudo corra bem e siga seu curso normal sem que se perceba. Acho desagradável entreter os hóspedes acerca do que por eles fazemos, seja para nos desculparmos seja para nos exibirmos. Gosto da ordem e da limpeza e as prefiro à abundância: "Quero que pratos e copos reflitam minha imagem". Atento para o que é necessário e não aprecio a ostentação. Se estamos em casa alheia e um lacaio se pega com outro ou derruba um prato, rimos apenas. Dormimos enquanto nosso hospedeiro combina com seu mordomo o que há de oferecer no dia seguinte. O que digo refere-se a mim apenas, pois reconheço que deve constituir doce tarefa, para as naturezas inclinadas a isso, zelar pela tranquilidade da casa, e pela sua prosperidade e ordem. Esse estado de coisas que me perturba, atribuo-o aos embaraços que eu próprio crio, e não tenho a menor intenção de contradizer Platão, o qual julgava ser a ocupação mais feliz "tratar de seus próprios negócios sem causar prejuízo a ninguém". Em viagem penso apenas em mim e no emprego de meu dinheiro, o que depende de uma simples ordem. Para juntá-la, ao contrário, cumpre recorrer a numerosas fontes e não entendo disso. Entendo mais de gastar e de como gastar, pois a tanto se destina o dinheiro; mas não sei equilibrar meus gastos e os reparto desigualmente, de um modo exagerado em um sentido ou noutro. Se contribuem para uma satisfação pessoal, despendo sem contar; mas se não me contentam particularmente ou não me prestigiam, restrinjo-os ao máximo. Seja por artifício, ou por impulso natural, o fato de viver a compararmo-nos com os outros causa-nos mais prejuízos do que benefícios. Privamo-nos do que nos é útil para fazer como os demais. E menos nos importam as condições em que vivemos, e suas consequências, do que o que exibimos em público. Os próprios bens do espírito, e a sabedoria, parecem-nos sem sabor se os gozamos longe da vista e da aprovação das pessoas que nos são estranhas. Há indivíduos cujo ouro corre em torrentes subterrâneas e invisíveis, enquanto outros o exibem em placas ou folhas. Desse modo para uns os soldos valem escudos e para outros o contrário. O mundo julga pelo que vê. Cuidar demasiado da riqueza sabe a avareza; distribuí-Ia com liberalidade ordenada e voluntária exige uma atenção penosa. Quem procura gastar com precisão gasta demasiado estritamente e como que constrangido. Guardar e gastar são coisas indiferentes em si mesmas; tornam-se boas ou más de acordo com as nossas ações. Outra razão que me induz a viajar é o desacordo em que me encontro em relação aos costumes de nosso momento presente. Facilmente me consolaria dessa corrupção tendo em conta o interesse geral: "Suportaria estes tempos piores do que a idade do ferro, em que faltam nomes para os crimes e que a natureza não pode designar por nenhum novo metal"; mas no que me diz respeito sofro demasiado, pois, em consequência dos desregramentos inerentes a nossas guerras civis, toda a vida decorre em um ambiente perturbado: em que justo e injusto se confundem. Lavram a terra armados, diariamente cometem atos de banditismo e vivem de saques. Pelo nosso exemplo verifico que a sociedade humana se perpetua de qualquer forma, aconteça o que acontecer. De qualquer jeito que se coloquem os homens, juntam-se e se ordenam, como esses objetos heterogêneos que pomos no bolso e que acabam por se ajeitar sozinhos, por vezes melhor do que o faríamos. O Rei Filipe reuniu os indivíduos mais perversos e incorrigíveis que pôde encontrar e os instalou em uma cidade que mandou construir especialmente para eles e que lhes tomou o nome. A meu ver essa sociedade heteróclita ter-se-a constituído desde logo em estado político baseado nos próprios vícios dos habitantes, os quais nela terão implantado por certo uma ordem e uma justiça. Vejo em nossos dias não fatos isolados, mas costumes aceitos, tão ferozes, desumanos e desleais - o que em minha opinião é o pior - que não os posso conceber sem horror. Mas admiro-os quase tanto quanto os detesto, ao verificar que a execução de tão incríveis crueldades testemunha igualmente vigor e resolução, erro e maldade. A necessidade reúne e acomoda os homens e essa ligação fortuita transforma-se em seguida em leis; e algumas dessas leis, entre as quais se deparam as mais selvagens imagináveis, deram resultados mais felizes e duradouros do que as que Platão e Aristóteles teriam sido capazes de fazer. Pois todas as medidas imaginadas artificialmente revelam-se ridículas e ineptas na prática. Essas grandes e prolixas discussões acerca da melhor forma de governo somente são úteis como exercícios espirituais, semelhantes nisso a certas questões artísticas que só interessam como temas de controvérsia, porquanto fora desse clima não existem. Alguns desses projetos de governo poderiam talvez aplicar-se a um mundo novo, mas estamos em um mundo já velho em que reinam certos costumes; não o criamos, nós outros, como fizeram Pirro ou Cadmo. Quaisquer que sejam as possibilidades que tenhamos de corrigi-lo e reorganiza-lo, não podemos, sem o quebrar, dobrá-lo até perder o vinco antigo. Perguntaram a Sólon se as leis que dera aos atenienses eram as melhores possíveis. "Sem dúvida", respondeu, "em relação às que tinham antes." Varro desculpa-se no mesmo sentido, dizendo que, se tivesse de escrever sobre uma nova religião, exporia o que pensava, mas, estando a religião já constituída e aceita, precisava ater-se ao uso mais do que à natureza. A melhor forma de governo de um país é aquela que vem sendo adotada tradicionalmente e não a ideal, pois sua eficiência depende somente dos costumes. Nós nos queixamos das condições presentes; mas creio errado querer, em uma democracia, que o poder se concentre em poucas mãos, ou, numa monarquia, que outro governo substitua o existente: "Ama o Estado como é; se é monarquia, ama a majestade; Se é de poucos ou da comunidade, ama-o: Deus fez que nele nascesses." Assim falava esse bom Sr. de Pibrac que acabamos de perder, e era um homem de bom senso e de sábios costumes. Essa perda e a que ocorreu na mesma época, do Senhor de Foux, foram rudes golpes para a Coroa. Não sei se há em França quem seja capaz de tomar o lugar desses gascões no conselho do rei. Eram grandes almas, cada qual a seu modo. E por certo raras neste século. Refratárias e hostis à corrupção, como terão conseguido vencer? Nada me parece mais grave para um país do que uma mudança radical. Esta é que permite o aparecimento da tirania e da injustiça. Quando uma peça qualquer se estraga, cabe consertá-la, pois assim podemos evitar que a alteração e a corrupção inerentes a todas as coisas não nos afastem demasiado de nossos princípios e instituições; mas querer refundir tão grande massa e trocar os alicerces de tamanho edifício é fazer como os que, para melhorar, apagam tudo, para corrigir um defeito tudo desmantelam, para curar matam o doente: "Não é bem mudar que pretendem; é destruir". O mundo não pode restabelecer-se sozinho e suporta tão dificilmente o que o atormenta que tenta desfazer-se de qualquer maneira do incômodo. Mil exemplos demonstram que só nos curamos a expensas próprias. Desviar-se do mal presente não é curar-se, porquanto não melhoram as condições; e o objetivo do cirurgião não consiste em extirpar a carne enferma, e sim em salvar o doente; procura mesmo conseguir que as partes atingidas se refaçam e voltem ao seu estado normal. Quem só se esforça por se desembaraçar do que o atormenta, não vai longe, pois o bem não sucede forçosamente ao mal; pode ocorrer outro mal, e mesmo o pior mal. Foi o que aconteceu aos assassinos de César. Comprometeram de tal modo a ordem pública que se arrependeram ao fim. Desde então semelhantes desventuras ocorreram com outros; e nós franceses podemos falar com conhecimento de causa; todas as grandes mudanças abalam o Estado e provocam a desordem. Quem consultasse os interessados antes de tentar a cura ficaria logo hesitante. Pacúvio Calávio corrigiu o vício desse procedimento de uma maneira insigne. Haviam-se amotinado os seus concidadã os contra os magistrados e ele, que era homem de muita autoridade em Cápua, conseguiu de uma feita reter o Senado no palácio e convocando o povo na praça fronteira disse que chegara o dia de vingar-se livremente dos tiranos que durante tanto tempo o havia oprimido, pois os tinha à sua mercê, sós e desarmados. Era de opinião que se sorteassem, julgassem e executassem separadamente, designando-se ao mesmo tempo um homem de bem para ocupar o cargo do condenado, a fim de que o mesmo não permanecesse vago. Mal se ouviu o nome do primeiro senador, prorrompeu a assistência em tremenda vaia. "Bem vejo", disse Pacúvio, "que é preciso destituí-lo: tratemos de escolher o substituto." Fez-se silêncio; embaraçada, a multidão não sabia quem eleger. Finalmente alguém, mais ousado, apresenta um candidato. Uma assuada maior ainda do que a precedente o rejeita. Censuram-lhe cem imperfeições. A discórdia aumenta com o segundo senador; e mais ainda com o terceiro. E com o mesmo afã com que destitui os senadores, protesta a multidão contra as respectivas substituições. Cansado, afinal, de discussões tão inúteis, vai-se retirando o povo aos poucos, convencido de que um mal que dura há tanto tempo é sem dúvida mais suportável do que um novo mal que ainda não se experimentou. Entretanto, por mais que nos tenhamos agitado (que não temos feito): "nossas cicatrizes, nossos crimes, nossas guerras fratricidas cobrem-nos de vergonha! Filhos deste século, de que não teremos sido culpados? Que atrocidades não teremos cometido? Haverá alguma coisa santa que nossa juventude tenha respeitado? Algo que não haja profanado?" Não irei dizer com tom firme e resoluto que "a deusa Salus seria incapaz de salvar essa família, mesmo que o quisesse”. Não chegamos ao fim de tudo. A conservação dos Estados é coisa que provavelmente ultrapassa nossa inteligência. Um governo é, como diz Platão, uma força difícil de se dissolver; resiste muitas vezes a doenças mortais que o roem interiormente; mantém-se, apesar das leis injustas, a despeito da tirania, da prevaricação, da ignorância dos magistrados, da licença e da sedição dos povos. Em tudo o que nos acontece, tomamos como ponto de comparação o que está acima de nós e olhamos para os que se acham em melhor situação; compare-se com os de baixo e não haverá miserável que não depare com mil razões de se consolar. É um erro olhar de preferência os favorecidos, o que levava Sólon a afirmar que, se juntássemos todas as desgraças que afligem a humanidade, não haveria ninguém que se conformasse com abandonar os próprios infortúnios para entrar na partilha dos males acumulados. Nosso governo está enfermo; é incontestável; outros, porém, bem mais doentes não morreram; "somos uma bola nas mãos dos deuses". Os astros escolheram Roma como exemplo. Passou por todas as transformações possíveis, conheceu a ordem e a desordem, a felicidade e a desgraça. Quem tem o direito de desesperar da própria situação quando atenta para o que ela sofreu? Se a extensão de seus domínios constitui uma garantia de prosperidade (o que não acredito, pois penso como Isócrates que recomendava a Nícocles não invejar os príncipes que possuíam Estados mais vastos, e sim os que sabiam mantê-los em boas condições), Roma nunca esteve tão bem como quando andou mais doente. A pior de suas formas de governo foi a mais feliz; mal se percebem vestígios de uma constituição sob os primeiros imperadores; reina então a mais completa confusão de poderes. Não obstante, Roma suportou essa situação e a monarquia sobreviveu, apesar de englobar grande número de povos diferentes, injustamente conquistados e administrados de um modo deplorável: "Não quis o destino confiar a nenhuma nação o cuidado de se rebelar contra os donos do mundo". O que balança em geral não cai. A contextura de tão grande edifício não depende de um só prego; sua antiguidade mesma faz que se sustente, como esses prédios velhos cujos alicerces a idade solapou e no entanto se conservam de pé em virtude de seu próprio peso: "Somente frágeis raízes ainda a prendem ao solo, mas a própria massa mantém o equilíbrio”. Não é de boa tática verificar apenas o estado dos fossos de uma praça forte para saber de sua solidez; cumpre estudar também os meios de ação da tropa sitiante e o lado pelo qual deverá tentar o assalto. Poucos navios afundam com o próprio peso, sem que tenham sofrido algum acidente. Se olharmos ao redor de nós, podemos observar que todos os grandes países, cristãos ou não, correm o risco de transformações e desastres: "Todos têm suas enfermidades e ameaça-os uma mesma tempestade". Fácil é aos astrólogos advertir-nos de agitações e perturbações prováveis; não é necessário consultar os astros para profetizá-las. Se o mal é universal, podemos encontrar nessa generalização razões de sobra para nos consolarmos e até a esperança de durarmos, pois nada cai quando tudo cai. Uma doença que a todos atinge torna-se um estado normal de saúde para os indivíduos. Onde tudo é igual não pode haver dissolução. Eu não desespero; antes descubro possibilidades de salvação: Talvez um deus benevolente nos faça voltar ao nosso estado antigo. Quem nos dirá que Deus não queira que ocorra conosco o que se verifica nos corpos que, após uma longa enfermidade, conquistam uma saúde melhor do que a que tinham antes? O que mais me inquieta é ver que, entre os sintomas de nosso mal, há uns que nos vêm dos céus e outros que só devem atribuir-se à nossa própria imprudência. Parece-me terem os astros decretado que já duramos demais. E aflige-me ainda imaginar que o mal mais próximo não está na alteração da massa inteira e aparentemente sólida e sim na sua possível divisão. Transcrevendo aqui estes devaneios, receio que minha memória me haja traído e eu esteja a repetir o que já disse. Desagrada-me encontrar-me de novo no caminho percorrido. Verdade é que não exponho aqui nenhuma novidade, mas coisas comuns, as quais, exatamente porque são comuns, podem repetir-se mil vezes. As repetições são sempre tediosas ainda que venham de Homero, e desastrosas para o que é somente superficial e ocasional. Detesto insistir mesmo no que possa ser útil, como faz Sêneca, e não me agrada o método dos estoicos que repetem a todo instante seus princípios e suas hipóteses e empregam argumentos e raciocínios de todos conhecidos. Minha memória piora dia a dia, "como se com sede ardente bebesse avidamente as águas soníferas do Letes. Até agora, graças a Deus, ela não me fez cometer nenhum erro, mas doravante deverei, ao contrário do que fazem outros, evitar de estabelecer um programa que me cerceie demasiado, pois não quero depender de um instrumento tão frágil. Acusado de haver traído Alexandre, foi Lincestes levado à presença da tropa para que diante dela se defendesse e justificasse. Tinha preparado um discurso, mas esqueceu-o, e, como principiasse a balbuciar, acreditaram os soldados que a perturbação proviesse do fato de ser culpado, e mataram-no a golpes de lança. Tendo tido na prisão o tempo necessário para se preparar, atribuíam à sua má consciência o silêncio embaraçado. No entanto, se, quando apenas buscamos um êxito oratório, podem o lugar, a assistência e a espera perturbar-nos, que dizer de circunstâncias em que nossa vida dependa de nossas palavras? No que me diz respeito, o simples fato de ser obrigado a dizer determinada coisa faz que dela me esqueça. Se confio em minha memória, exerço sobre ela um tal esforço que acabo por esmagá-la. Quanto mais me apoio nela tanto mais perco a segurança; vi-me por vezes bastante embaraçado a:om isso, principalmente quando procurava simular profunda desenvoltura nas frases e nos gestos e dar a impressão de que improvisava; em tais casos é menos penoso dizer banalidades do que mostrar que nos preparamos para falar e não o podemos, coisa pouco hábil da parte de pessoas de minha profissão, e difícil de se corrigir. A preparação desperta esperanças que não devem falhar. E erra quem veste casaco, se não pode com isso desempenhar melhor o seu papel do que em mangas de camisa: Quem deseja provocar admiração deve cuidar de não despertar esperanças exageradas. Dizem que acontecia ao orador Cúrio esquecer uma parte de seus discursos, quando os dividia em trechos de acordo com os pontos que queria elucidar ou defender. Sempre procurei evitar esse inconveniente e fujo a promessas e prescrições, não só por desconfiar de minha memória mas também porque tais atitudes sabem a artifício. A simplicidade assenta bem ao soldado. Impus a mim mesmo a decisão de nunca usar da palavra erra cerimônias, pois considero que é estúpido ler um discurso; e não vai bem a um homem de ação. Quanto a improvisar, seria arriscar-me a não dar conta do recado porque minha imaginação lerda e pesada não sabe acudir às exigências dos apartes e dos incidentes que porventura se verifiquem. Deixa-me, ó leitor, que prossiga em meus "Ensaios" e acolhe com simpatia este terceiro volume. Amplio meu retrato, não o corrijo. E antes de tudo porque quem vende sua obra ao público não tem mais direito a ela; que diga melhor, se puder, em outro trabalho, mas não desvalorize o que vendeu. Dos que assim agem nada se deveria comprar antes de sua morte. E preciso refletir para produzir; e não há como se apressar. Meu livro é sempre o mesmo, só que acrescento alguma coisa a mais em cada nova edição, a fim de que o comprador não saia lesado. Esse acréscimo não modifica a primeira edição, apenas valoriza as seguintes, o que é em verdade uma sutileza algo pretensiosa de minha parte; podem ocorrer entretanto pequenas inversões cronológicas, pois minhas histórias se introduzem na obra segundo a oportunidade e não de acordo com a época. Outro motivo induz-me a não corrigir: o medo de perder com a troca. Meu julgamento nem sempre progride; acontece-lhe também recuar. E não desconfio menos das fantasias que me vêm ao espírito em segundo ou terceiro lugar do que das primeiras. Amiúde corrigimo-nos tão erroneamente quanto aos outros. Envelheci vários anos desde a edição inicial, que data de 1580, mas duvido que me tenha tornado mais sábio. O meu eu de agora e o meu eu de outrora são na realidade dois. Qual o melhor? Não sei. Seria bom envelhecer se não parássemos de melhorar; mas só avançamos à moda dos bêbados, titubeando e sem direção definida, ou então como esses juncos que se agitam ao sabor dos ventos. Antíoco tomara vigorosamente o partido da Academia em seus escritos, mas na velhice optou pelo partido contrário. Qualquer partido que eu tivesse tomado não teria seguido Antíoco? Estabelecer a certeza depois de estabelecer a dúvida, não será estabelecer a dúvida e não a certeza, e demonstrar que, se nossa vida se prolongasse assim, não seria melhor, mas diferente? O aplauso do público deu-me certa ousadia; mas receio entedia-lo. Preferiria descontenta-lo a cansa-lo, como fez um sábio que conheço. O louvor é sempre agradável, venha de quem vier, mas para que seja justo cumpre saber-lhe a origem. As próprias imperfeições podem sugeri-lo. E a predileção do vulgo não me parece feliz; e me engano muito se, em sua maioria, não são as obras piores as que o gosto popular consagra. Por isso sou grato às pessoas amáveis que se dignam apreciar meus débeis esforços e reconheço o serviço que me prestam, já que em obras como a minha, em que o assunto não interessa por si, as imperfeições da forma ressaltam mais ainda. Não te irrites tampouco comigo, leitor, por causa das falhas que aqui se infiltraram em consequência da fantasia ou da desatenção de outros que não eu; vários indivíduos participaram do trabalho. Não me preocupei com a ortografia (apenas recomendei que seguissem a antiga) nem com a pontuação, não sendo um especialista nesses ramos. Quando o erro tira sentido da frase, não me aborreço, não mo podem atribuir. Mas se sentido é apenas alterado, o que ocorre não raro, e o erro me obriga a dizer o que não disse, sinto que me prejudica grandemente. Se entretanto a frase estiver em inteira contradição com o que é permitido esperar-se de mim, creio que um homem de bem não me imputaria o deslize. Quem conhece minha preguiça e as peculiaridades de meu temperamento compreenderá sem dificuldade que preferiria ditar outros tantos ensaios a ocupar-me com a correção pueril dos atuais. Dizia há pouco que, enterrado na mais profunda mina desse novo metal da corrupção de nosso século, não somente não mantenho relações de intimidade com pessoas de outras opiniões e outros costumes - e pessoas unidas entre si pelo vínculo mais poderoso de todos - como também corro certos riscos no meio dessa massa de indivíduos que tudo se permitem e se acham em situação difícil perante a justiça. Quando pondero as condições particulares em que me encontro, não vejo ninguém em meu partido a quem a defesa das leis custe tanto, já pelos benefícios que não realizo, já pelos prejuízos que sofro. E muitos que exibem valentia e zelo fazem afinal bem menos do que eu. Em minha casa, que é facilmente acessível - porquanto não quis nunca transformá-la em fortaleza - todos são bem acolhidos; isso tornou-a bem vista e preservou-me de qualquer violência. Considero fato digno de menção continuar ela virgem de sangue e de saque em meio a essa borrasca de agitações e mudanças que há tanto tempo dura. Na verdade fora possível a um homem de meu temperamento escapar a quaisquer vexames vivendo em um clima sereno em que todos tivessem idênticas opiniões; mas as incursões e invasões, as vicissitudes de uma guerra como a que se trava ao redor de mim exacerbaram os indivíduos e expõem-me a perigos e dificuldades impossíveis de se evitarem. Tenho-me livrado de tudo, mas lamento que isso se deva ao acaso - e também à minha prudência - mas não à justiça. Lamento não estar protegido por leis e ser obrigado a buscar outra salvaguarda. Vivo assim em boa parte graças à benevolência alheia, o que me pesa extraordinariamente. Gostaria de não dever minha segurança nem à bondade nem à complacência dos grandes, os quais toleram minha devoção à legalidade, e à liberdade, nem tampouco à cordura de costumes de meus antepassados e de mim mesmo. Que aconteceria se eu fosse diferente? Minha conduta, minha franqueza, minhas relações de parentesco criam obrigações, obrigam meus vizinhos a certa atitude, e é cruel que possam desobrigar-se simplesmente dizendo: "a liberdade de continuar a celebrar o culto divino na capela de sua casa, uma vez que desolamos e arruinamos as igrejas da região, é uma concessão de nossa parte; deixemos-lhe ainda o uso de seus bens e de sua vida em troca de zelar ele próprio pela conservação de nossas mulheres e nossas vacas". Há muito tempo com efeito vem a minha família merecendo esses mesmos louvores que em Atenas se tributavam a Licurgo por ser o depositário do dinheiro de seus concidadãos. Ora, acho que a vida é um dom de Deus e não deveria ser considerada recompensa ou graça especial. Quantos não preferiram perdê-la a devê-la a outrem? Detesto toda espécie de obrigações, em particular as que possam resultar de um ponto de honra. E qualquer dom que implique em reconhecimento de minha parte parece-me demasiado oneroso. Quero valer-me de serviços pagos. Em troca destes, dou dinheiro e em troca dos outros dou-me a mim mesmo. Os laços da gratidão são mais estreitos e poderosos que os das obrigações civis; pesa-me menos o compromisso assumido perante o tabelião do que o que eu mesmo crio; e não será razoável que minha consciência se sinta mais obrigada para com quem tão somente confiou nela sem exigir garantias? Se há garantias nada devo; elas é que devem. Hesitaria menos em pular os muros de uma prisão para evadir-me do que em faltar com a palavra. Cumpro escrupulosamente, e como que supersticiosamente, minhas promessas; por isso mesmo faço-as o menos possível e tão somente vagas e condicionais. Mesmo as de pouca importância se beneficiam da regra que me impus; são-me um tormento e alivia-me cumpri-Ias. Assim também, quando tenho em mente um projeto, basta-me enunciá-lo para que me julgue desde logo obrigado a realizá-lo; parece-me que dizer é prometer, daí mostrar-me tão discreto acerca do que pretendo fazer. Condeno-me a mim mesmo mais severamente do que um juiz, porquanto este se atém à obrigação comum e a que me impõe a consciência é muito mais estrita e severa. Cumpro molemente os deveres a que me constrangem. "O ato mais justo só é justo quando voluntário", e se a liberdade não o realça, carece de graça e de honra. Não faço de bom grado as coisas que a lei determina. Ao que a necessidade obriga, a vontade não me impele, "porque nas coisas ordenadas o mérito se atribui antes a quem manda do que a quem executa". E sei de quem siga esta máxima até o absurdo de considerar que dá quando devolve, e empresta quando paga. Não vou a esse ponto, mas não estou longe dele. Desejo tanto evitar obrigações, que julgo por vezes um benefício as ingratidões, ofensas ou indignidades daqueles que ocasionalmente me prestaram serviços; pois desse modo posso considerar-me quite. Continuo tributando-lhes o que mandam os deveres sociais, mas acho mais suave fazer o que determina o dever do que o que me imporia a amizade; assim, alivio-me em parte da solicitude que decorrera de minha vontade, a qual é em mim (que fujo a toda opressão) exageradamente opressiva: É prudente refrear o primeiro impulso da benevolência. Essa atenuação do primeiro impulso consola-me das imperfeições dos que frequento. Deploro que valham menos, mas, em compensação, ganho com me apegar menos a eles. Compreendo quem ame menos o filho por ser tinhoso ou corcunda; e não somente por ser malvado como também infeliz e mal conformado (com isso Deus já lhe deu menor valor natural), sob a condição de se moderar e não ser injusto. Para mim, o parentesco não atenua os defeitos, antes os agrava. Em suma, no que respeita à ciência da beneficência e gratidão, que é ciência útil e de muito uso, não sei de ninguém mais livre do que eu. Só devo o inerente às obrigações comuns e naturais e não há quem seja mais independente: "Desconheço os presentes dos grandes". Já me dão muito os príncipes, quando nada me tiram, e fazem-me um bem suficiente quando não me prejudicam. É tudo o que lhes peço. Como agradeço a Deus por somente dever à Sua bondade, tudo o que possuo! E suplico de Sua misericórdia que me permita nunca dever a ninguém um grande favor. Bendita seja a minha independência, e que possa manter-se até o fim da vida! Esforço-me por não precisar de ninguém: "Todas as minhas esperanças estão em mim". Isso está ao alcance de todos, mas especialmente daqueles que Deus pôs ao abrigo das necessidades urgentes e naturais. É digno de piedade e bem arriscado depender-se de outrem. Não o podemos evitar sempre, pois não estamos seguros de nada, nem mesmo de nossas possibilidades. Fora de mim nada possuo, em verdade, e assim mesmo é, tal propriedade, imperfeita e de empréstimo. Procuro cultivar minha coragem, o que constitui a melhor das garantias, e arranjar um meio de existência que me baste se algum dia tudo vier a faltar. Hípias Eleus não se contentou com se prover de saber para, no caso de falhar o resto, comprazer-se entre as Musas; nem de filosofia para ensinar seu espírito a prescindir virilmente dos prazeres supérfluos quando estes lhe fossem suprimidos: aprendeu também a cozinhar e a coser e a fazer sapatos e calças, a fim de se bastar a si próprio. Auferimos maior gozo dos bens alheios quando a necessidade não nos obriga a desejá-los e quando dispomos de meios para deles prescindirmos. Conheço-me bem, e é-me difícil imaginar uma liberalidade de alguém para comigo, por generosa que seja, uma hospitalidade, embora franca e desinteressada, que não me pareçam tirânicas e desgraçadas se por necessidade as tenha que aceitar. As pessoas ambiciosas e de prerrogativas dão; as submissas recebem. Por isso Bajazet recusou com injúrias os presentes que lhe enviara Tamerlão, o que deu origem a um conflito entre ambos. E os presentes que Solimão mandou ao imperador de Calicut provocaram de tal modo a sua cólera que este não somente os devolveu grosseiramente, dizendo que seus antecessores não tinham por hábito receber dádivas, como também ordenou que se prendessem os emissários. Diz Aristóteles que quando Tétis queria lisonjear Júpiter e os espartanos agradar aos atenienses, não o faziam lembrando os benefícios prestados e sim os recebidos. Quem com toda naturalidade recorre ao próximo, não o faria se conhecesse, como eu, a doçura de uma inteira independência, e se pesasse as dívidas como as deve pesar um homem avisado. Pois ainda que se paguem nunca se extinguem. Cruel escravidão para quem aspira à liberdade total! Meus conhecidos, os que estão acima de mim na escala social, bem como os que se acham abaixo, sabem que nunca viram ninguém solicitar menos do que eu e menos dever a quem quer que seja. Não é de estranhar que assim me revele, pois muitas particularidades de meu temperamento para isso contribuem: certo orgulho natural, a irritação que me causa uma recusa, a insignificância de minhas ambições e projetos, minha inabilidade em negócios e também o espírito de independência e o amor ao ócio. Tudo isso me leva a um ódio mortal às obrigações de qualquer espécie; nada quero dever a outrem e nada quero que me devam. Esforço-me de todos os modos por não recorrer a ninguém. E meus amigos importunam-me assaz quando me pedem para interceder em seu favor junto a terceiros. Isso posto, e conquanto não exijam de mim gestões suscetíveis de me aborrecer (proscrevo de meu espírito tudo o que possa preocupá-lo), sou de fácil acesso e disposto sempre a ajudar os outros. Contudo antes evito receber do que dar; o que, no dizer de Aristóteles, é bem mais fácil. A sorte não me permitiu fazer grande bem em redor de mim, mas o pouco que fiz não me proporcionou muita gratidão. Se o destino me tivesse feito nascer em condições de ocupar altos cargos, desejaria tornar-me estimado mais do que temido e admirado. Teria antes me esforçado por agradar do que por tirar proveito. Ciro afirma, sabiamente, pela boca de um grande chefe e filósofo, que considera sua bondade e o bem que fez mais importantes e valiosos do que sua coragem e suas conquistas. Cipião, igualmente, sempre que deseja impressionar favoravelmente, coloca sua amenidade e humanidade acima de sua ousadia e de suas vitórias. E nunca deixa de dizer, o que muito o enobrece, que deu tanto a amigos como a inimigos a oportunidade de apreciá-lo. Em suma, quero dizer que se alguma coisa nos cabe dever, que decorra de razões mais justas do que essas a que me referi, resultantes desta miserável guerra. E que me torne devedor de coisa menos pesada do que a vida. Mil vezes vi-me recolhido em minha residência a imaginar que, naquela noite mesmo, seria vítima de alguma traição e trucidado; e pedia ao destino que isso acontecesse sem delongas inúteis e sem que eu me sentisse amedrontado. Quantas vezes não repeti, após minha oração: "Serão estas terras tão cuidadosamente cultivadas a presa de algum bárbaro?" Mas que remédio? Nestas terras nasci e nela nasceram quase todos os meus antepassados, amaram-na e deram-lhe seu nome. Nós nos calejamos porém com o hábito, e para essa nossa miserável natureza isso é um bem, porque nos adormece a sensibilidade e nos evita certos sofrimentos. As guerras civis têm isso de grave que nos obrigam todos a ficar de atalaia em casa. Que desgraça ser forçado a proteger a vida com portas e muros e nem sequer se sentir em segurança em seu lar. A região em que habito é sempre a primeira a sofrer com nossas dissensões, e a última a sossegar; e a paz aí nunca foi completa. Mesmo na paz não cessamos de temer a guerra. "Todas as vezes que o destino perturbou a paz, por aqui passou; por que não me deram os fados um lar errante nos climas caniculares ou no Oeste gelado?" Por vezes encontro o meio de encarar mais resolutamente as coisas contra minha indolência e minha indecisão habituais. Ocorre-me imaginar, não sem algum prazer, que me acho sob a ameaça de perigos mortais e resigno-me; precipito-me então na morte, nela mergulho, sem sequer a perceber, como se me jogasse em um abismo silencioso e escuro que me engolisse repentinamente. E invade-me um pesado sono sob o efeito do qual torno-me inerte, insensível. Nessas mortes rápidas e violentas as consequências que imagino mais me consolam do que me afligem. Dizem que a vida não é melhor por ser longa mas que a melhor morte é a mais curta. E, por certo, menos me atormenta a morte do que a sua duração. Como quer que seja, encolho-me em mim mesmo ante a tempestade que se desencadeou e aguardo que algum golpe de vento mais forte me arraste sem que eu o sinta. Observam alguns jardineiros que as rosas e as violetas nascem com mais perfume se plantadas ao lado da cebola e do alho porque estes atraem e absorvem os maus odores da terra. Muito daria eu para que as naturezas depravadas de minha vizinhança concentrassem nelas todo o veneno de minha atmosfera e clima, tornando-me melhor e mais puro. Mas não é o que sucede, e cabe-nos afirmar o contrário: que a bondade é tanto mais bela e atraente quanto mais rara, e que nesse meio que lhe é contrário ela surge com maior intensidade, incitada pela oposição que encontra e a glória que aufere. Os ladrões não me odeiam particularmente, nem eu a eles, porque teria que odiar exagerado número de pessoas. As mais diferentes vestimentas encobrem consciências idênticas; a crueldade, a deslealdade, o roubo são piores ainda quando protegidos pelas leis; detesto menos a injustiça declarada do que aquela que recorre à traição, e menos a que se engendra nas desordens da guerra do que a que se verifica na paz e reveste formas legais. A febre atual atacou nosso corpo, sem entretanto agravar o estado em que se encontrava; a brasa dormia e agora surge a chama, eis tudo. O ruído é maior, não o mal. Aos que me perguntam por que viajo tanto, respondo que sei ao que fujo mas não sei o que eu vou encontrar; e quando me dizem que no estrangeiro a situação é pior e os costumes não valem mais do que os nossos, respondo antes de mais nada que é difícil, "a tal ponto multiplicou-se o crime entre nós". Em segundo lugar sempre se tira algum proveito da mudança quando trocamos uma situação má por outra incerta. E depois não sentimos do mesmo modo as desgraças alheias. Não quero esquecer-me de que, por mais irritado que ande contra a França, não deixo de olhar Paris com bons olhos. Esta cidade conquistou-me o coração desde criança e quanto mais belas cidades conheço tanto mais ela cresce na minha afeição. Amo-a pelo que é e como é, e mais em sua vida habitual do que nas épocas de festas; amo-a com ternura e até em suas imperfeições e seus vícios; e só me sinto francês por causa dessa grande cidade, grande pelo seu povo e pela sua localização, e grande ainda, e principalmente, pela variedade e diversidade dos prazeres e vantagens que nos oferece. É a glória de França e um dos mais nobres ornamentos do mundo. Que Deus afaste dela as nossas dissensões! Ainda resistirá a todas as violências, mais ai dela se optar pela discórdia! Só receio, portanto, em relação a Paris, o mal que ela mesma pode provocar e temo-o por ela como por qualquer outra parte de nosso país. Enquanto houver Paris, terei um lugar de repouso e retiro para a velhice, e um lugar que não me dará azo a saudades de nenhum outro. Não porque o disse Sócrates, mas porque em verdade o penso, todos os homens são meus compatriotas; e sou mesmo levado a exagerar este sentimento. Abraço um polonês como abraçaria um francês, fazendo passar os laços que unem os indivíduos de uma nação após os que vinculam uns aos outros os habitantes do mundo. A doçura do clima natal não me enreda; as relações novas parecem-me valer as de minha vizinhança; e os bons amigos que adquirimos espontaneamente são em geral melhores do que os que devemos ao parentesco ou ao clima. Pôs-nos a natureza neste mundo, livres de quaisquer compromissos e nós nos prendemos dentro de estreitos limites, como os reis da Pérsia, que juravam não beber senão água do rio Coaspes, renunciando totalmente ao direito de usar qualquer outro manancial; desse modo, como que secava para eles o resto do mundo. No fim da vida, considerava Sócrates que uma condenação ao exílio era pior do que uma sentença de morte; não sou de sua opinião e não creio que viesse jamais a sentir-me assim apegado a meu país. Essas vidas dignas de criaturas celestes apresentam aspectos que admiro mais do que aprecio; algumas são mesmo tão elevadas e extraordinárias que minha admiração não as pode alcançar. Esse sentimento de Sócrates parece-me demasiado terno em quem considerava que sua pátria era universo. É verdade que não apreciava as viagens e nunca pusera pé fora da Ática. Que pensar igualmente de não ter aceito que seus amigos o resgatassem e haver recusado, para não desobedecer às leis de uma época tão corrupta, a participar de uma conjura que o teria libertado? Esses aspectos de sua vida entram na categoria daqueles que admiro mais do que aprecio. Quanto aos que minha admiração não alcança, alguns há que não consigo sequer conceber. Além dessas razões, viajar afigura-se-me um exercício proveitoso, pois o espírito vive então continuamente solicitado a observar coisas novas e desconhecidas; e, como digo amiúde, não sei de melhor escola do que essa que lhe mostra a grande diversidade de existência, ideias e usos entre os homens, bem como a contínua variedade de formas da natureza. O corpo, em viagem, não permanece ocioso nem se fatiga; uma atividade moderada mantém-no bem-disposto. Apesar de minhas dores, sou capaz de fazer de oito a dez horas a cavalo sem cansar, "além das forças e da saúde de um velho". Não receio o tempo, salvo os calores tórridos, pois não uso esses guarda-sóis que apreciam na Itália, desde os romanos, achando que cansam mais o braço do que protegem a cabeça. Gostaria de conhecer o processo que, segundo Xenofonte, teriam adotado os persas na antiguidade para conseguir ar fresco e sombra à vontade. Gosto da chuva e da lama como um pato. Sou insensível às mudanças climáticas e atmosféricas, e é-me indiferente que faça ou não bom tempo. Sofro unicamente com as mudanças internas que se produzem em mim, e estas são menos frequentes em viagem. Custo a movimentar-me e hesito tanto ante uma excursão ou visita às cercanias como ante uma grande viagem; mas uma vez a caminho vou até onde quiserem. Tenho por hábito viajar à espanhola, isto é, com longas jornadas ininterruptas. Durante a canícula, viajo à noite, do entardecer ao amanhecer. O costume de comer apressadamente em caminho é incômodo, sobretudo nos dias curtos. Meus cavalos dão-se muito bem com meu sistema e nunca falharam. Deixo que bebam por toda parte, conquanto reste ainda suficiente distância a percorrer para que tenham tempo de digerir a água. Minha preguiça em levantar acampamento permite que meus servidores comam à vontade; quanto a mim, nunca é tarde demais para a refeição. O apetite vem-me com a comida e só tenho fome quando me sento à mesa. Algumas pessoas me censuram porque me comprazo em viajar apesar de casado e velho. Não têm razão; é melhor deixar a casa quando já organizada e suscetível de prescindir de nossa presença. Mais imprudente é afastar-se sem que uma vigilante e cuidadosa administração atenda aos misteres do lar. A ciência e a ocupação mais honrosas de uma mãe de família são as da casa. Conheço algumas mulheres avarentas porém más administradoras; ora, a qualidade de dona de casa é sem dúvida a principal, pois dela depende o progresso ou a ruína do lar. Diga-se o que se quiser, a economia doméstica é a virtude que, por experiência, coloco acima de todas as outras em uma mulher casada. Viajando, dou à minha esposa a oportunidade de exercê-la, entregando-lhe a administração de meus bens durante a minha ausência. Olho com melancolia o marido que volta para casa ao meio-dia, aborrecido, preocupado com o andamento dos negócios e encontra a mulher no toucador, a cuidar do penteado e do vestido; isso é bom para as rainhas, e talvez nem mesmo para elas. É ridículo e injusto que nosso suor e nosso trabalho sirvam para alimentar a ociosidade de nossas mulheres. Não creio que alguém tenha menos complicações do que eu em seus negócios; nenhuma dívida pesa sobre meus bens; mas se cabe ao marido dar o fundo, deve a mulher contribuir com a forma. Dizem que a ausência pode influir nos deveres impostos pela afeição conjugal: não creio. Ao contrário, tais deveres se ressentem com relações contínuas; um excesso de assiduidade cansa. As mulheres com as quais não privamos parecem-nos sempre desejáveis e não há quem não saiba por experiência que o prazer de ver-se continuamente não iguala o de se encontrar após uma separação. Essas interrupções avivam o amor que dedico aos meus e torna mais aprazível o tempo que passo em casa; sucedendo o lar à viagem e reciprocamente, com muito mais agrado vou de um a outro prazer. A amizade tem os braços suficientemente longos para que nos possamos abraçar através do espaço, principalmente quando se trata da amizade conjugal que tem a seu favor deveres e recordações. Já diziam os estoicos que as relações dos sábios entre si são de tal ordem que um deles jantando em França alimenta o outro no Egito, e se um mexe o dedo em qualquer lugar do mundo todos os outros o percebem imediatamente. O gozo e a posse dependem muito da imaginação, a qual abraça com mais ardor e persistência o que procura do que aquilo que tem à mão. Atentemos para nossos divertimentos cotidianos e veremos que nunca nos encontramos mais afastados de nossos amigos do que quando os temos presentes. Distraímo-nos então, e nosso pensamento se ausenta a todo instante. Fora de casa, em Roma, tenho meus negócios no espírito e interesso-me pelo que ocorre; vejo erguerem-se e derrubarem-se muros, crescerem árvores, e diminuir a minha renda, quase como se estivesse presente: "Tenho constantemente sob os olhos a casa e até o mais insignificante pormenor na disposição dos objetos". Se só nos agradássemos das coisas que temos à mão, que seria dos escudos que guardamos em nossos cofres e de nossos filhos quando andassem a caçar? Queremo-los mais perto de nós? Muito bem. Será muito longe no jardim? E a meio dia de marcha? E a dez léguas? É perto? E onze léguas, ou doze, ou treze? Acho que a mulher deveria dizer a seu marido: a tal distância termina o perto, a tal outra começa o longe, e fixar um ponto entre os dois extremos. Dizei um número para evitar quaisquer discussões, sem o que abusarei da latitude que me deixardes; e como se arrancasse pelo por pelo a crina de um cavalo, tiraria uma légua e mais outra até que nenhuma vos sobrasse e vos sentísseis vencido pela força de meu raciocínio. Que apele para a filosofia. Pois se não pode ver as extremidades do ponto de junção entre o perto e o longe, o pouco e o muito, o leve e o pesado, o curto e o comprido, julgará sem dúvida o meio com insegurança: A natureza não nos permite conhecer os limites das coisas. Porventura não continuam as mulheres a ser esposas e amigas dos defuntos? Abraçamos pelo pensamento não somente os ausentes mas também os que não mais existem e os que ainda não são. Ao casar não contraímos a obrigação de permanecer indissoluvelmente soldados um a outro como certos insetos, ou os enfeitiçados de Karancia. Não deve a mulher ter a vista presa à dianteira do marido a ponto de não lhe enxergar a parte traseira ocasionalmente. Não caberia aqui esta magnífica descrição do temperamento feminino: "Se voltas tarde para casa, tua mulher imagina que amas outra ou por outra és amado; ou que bebes e te divertes; que somente tu tens o que é bom e deixas-lhe o ruim". Em verdade, a contradição e a oposição são naturais na mulher e muito lhe agrada desagradar-nos. Na verdadeira amizade, e bem a conheço, damos ao amigo mais do que tiramos. Não somente prefiro fazer-lhe bem a receber dele favores mas ainda prefiro que o faça a si mesmo a fazê-lo a mim. Tanto mais alegria me proporciona quanto mais se outorga a si próprio; e se a ausência lhe apraz ou lhe é útil, torna-se ela desde logo muito mais aprazível e útil a mim do que sua presença, desde que tenhamos a possibilidade de nos comunicar. Disso tirei outrora vantagem e prazer, quando nos separávamos, enchíamos melhor a vida e a enriquecíamos; ele vivia, apreciava, via por mim e eu por ele, tão completamente como se estivéssemos no mesmo lugar. E quando estávamos de fato juntos, uma metade de nós (visto que éramos um só) permanecia ociosa; separados, exercitavam nossas vontades cada uma por seu lado, em conjunto produziam mais. Esse desejo insaciável de presença física revela certa fraqueza na capacidade de gozo dos espíritos. Quanto à velhice, considero que aos jovens é que cumpre conformar-se com as opiniões e as leis em vigor; e privar-se por causa dos outros. Eles têm com que satisfazer a todos e a si próprios. Nós, velhos, já muito trabalho nos dá satisfazer-nos a nós mesmos. E tanto mais precisamos buscar as alegrias que ainda podemos descobrir, quanto menor se vai fazendo o número de satisfações naturais ao nosso alcance. É injusto desculpar a mocidade por se entregar aos prazeres e proibir a velhice de se esforçar por encontrá-los. Na juventude eu era alegre e tão somente precisava pensar em moderar minhas paixões; sou agora triste e tenho de recorrer às distrações. As leis de Platão proíbem as viagens antes dos quarenta ou cinquenta anos, a fim de que sejam mais instrutivas e úteis. Concordo mais com o segundo artigo que as desaconselha após os sessenta. "Mas na vossa idade, dirão, não voltareis nunca de tão longa viagem!" Que importa! Não a empreendo para voltar ou terminá-la, e sim para movimentar-me enquanto o movimento me agrada. Passeio por passear. Os que correm atrás do dinheiro ou de uma lebre não correm na realidade; correm os que brincam de pegador ou disputam corridas. Posso parar onde queira, não tendo programa organizado de antemão; cada jornada é um fim em si mesmo, e assim também a vida. Isso não me impediu de visitar muitas localidades longínquas onde de bom grado vivera. Por que não? Crisipo, Cleantes, Diógenes, Zenão, Antípater e tantos sábios da seita mais severa, abandonaram seu país de origem sem motivo, apenas para respirar um ar diferente alhures. O que mais me aborrece em minhas viagens está em não poder eleger domicílio onde me ache bem e ter sempre que pensar na volta a fim de conformar-me com o que determinam os costumes. Se receasse morrer longe do lugar em que nasci, e dos meus, não sairia de França; não sairia sequer de minha paróquia, pois sinto a morte ratear-me de contínuo, pelos rins e a garganta. Mas tanto se me dá morrer aqui ou acolá. Se entretanto pudesse escolher, gostaria antes de morrer a cavalo do que na cama e de preferência fora de casa e longe dos parentes. Sentimos mais tristeza do que consolo em nos despedirmos dos amigos; e de bom grado deixaria de cumprir esse dever de cortesia, porquanto entre os serviços que a amizade exige de nós, esse é o mais desagradável, pois com satisfação esqueceria esse grande e eterno adeus. Se algumas vantagens oferece a assistência dos amigos em tal circunstância, inúmeros são os inconvenientes. Vi quem assim morresse em lamentáveis condições, sufocado pela solicitude dos presentes. Considera-se contrário ao dever e até sinal de falta de afeição e atenção deixar alguém morrer em paz; um atormenta a vista, outro os ouvidos ou a boca; não há sentido ou membro que não martirizem. Aperta-se o coração do moribundo com as lamentações sinceras e se irrita com as hipócritas. Quem sempre foi sensível e delicado mais ainda se torna nesse momento; precisaria, nessa circunstância, que ninguém pode evitar, uma mão hábil capaz de pensa-lo onde lhe doa, ou de deixá-lo sossegado. Temos parteira para vir ao mundo, por que não haveríamos de precisar de quem nos auxilie a dele sair? Uma tal pessoa, que além disso seria nossa amiga, valeria seu peso em ouro. Ainda não consegui alcançar essa força de ânimo que despreza tudo o que possa ocorrer, que tira seu poder de si mesma e que comove. Não. Procuro escapar à dificuldade tão somente, e não por medo mas por cálculo. Acho que esse momento não é indicado para uma demonstração de coragem, mesmo porque um minuto depois cessariam quaisquer direitos à reputação que se colhesse. Contento-me com uma morte serena, solitária, de acordo com a vida retirada e burguesa que vivi. Isso tudo em oposição ao que determinava a superstição romana, a qual julgava infeliz quem morresse sem falar e sem ter um parente para lhe cerrar as pálpebras. Muito me custa consolar-me a mim mesmo para que ainda queira consolar a outrem, nem me falta em que pensar ou com que me preocupar. Esse ato da peça não comporta muitos papéis; tem uma só personagem. Vivamos e riamos com os nossos e morramos entre desconhecidos; mediante pagamento, sempre acharemos alguém que nos vire a cabeça, nos friccione os pés, que atenda a tudo com indiferença, deixando-nos toda a liberdade para nos queixarmos e agirmos segundo nossos desejos. Afasto sem cessar, de mim, essa ideia pueril e inumana que nos leva a desejar que nossos males suscitem compaixão e tristeza em nossos amigos. Exageramos o que sentimos para provocar lágrimas. E a firmeza que louvamos nos outros quando enfrentam a desgraça, nós a censuramos desde que a infelicidade seja nossa. Não basta que sintam nossos infortúnios, é preciso que se aflijam. Estendamos a alegria e restrinjamos a tristeza. Quem, sem razão, força os outros à compaixão, arrisca-se a não encontrar ninguém que se condoa na hora em que necessitar; quem em vivo se faz de moribundo, procurando inspirar continuamente piedade, acaba por não enternecer ninguém. Sei de muitos que se irritam se os acham bem-dispostos; e evitam sorrir para não parecer convalescentes; e que não se esforçam por curar-se com receio de não mais inspirar piedade. E não se trata de mulheres. Em geral vejo minhas enfermidades exatamente como são, evitando prognósticos sombrios; e minhas exclamações não vão além das que a dor possa provocar. Não as comento. Junto a um doente sensato, é conveniente mostrar-se calmo, senão exuberante; por estar enfermo não é que tem de ser hostil à saúde; reconforta-o vê-la nos que o assistem, pois o fato de estar definhando não o impede de se ocupar das coisas vivas e tomar parte na conversação de todos. É quando estou bem que me comprazo em estudar as doenças; quando me atingem sinto-lhes suficientemente os efeitos sem que minha imaginação precise expandir-se. Preparamos com grande antecedência as viagens que empreendemos, mas quando chega a hora de montar a cavalo dedicamo-la à assistência e em seu benefício. Tiro deste estudo de meus costumes um inesperado proveito: serve-me até certo ponto de regra de conduta. Obriga-me por vezes a não desmentir o que sempre fui. Esta declaração pública força-me a manter-me obediente à direção tomada e a não desacreditar a descrição de minhas condições, por certo menos desfiguradas e contraditórias do que seriam através de falsos e maldosos juízos. A uniformidade e a simplicidade de meu caráter permitiram-me interceptá-lo facilmente; mas a forma nova, não habitual, de apresentá-lo, dá margem à maledicência. Creio que confessando minhas imperfeições forneci os meios de me criticar a quem o quiser fazer com lealdade. O material é vasto e não parece necessário recorrer a fantasias. Mas se alguém considerar que o fato de me haver adiantado à acusação embota os dentes da crítica, poderá naturalmente ser impelido a ampliar os ataques, pois a ofensa outorga-se direitos que a justiça não dá; e com as raízes que mostrei, de alguns vícios, poderá fazer grandes árvores. Que se valha então não somente dos defeitos que tenho realmente mas também dos que se encontram em germe em mim e que, pelo seu número e natureza, me tornam acessível aos golpes. Que me ataque por aí. Imitaria de bom grado, nesse caso, o filósofo Bíon. Antígono, querendo magoá-lo, referira-se à sua origem. Ele retorquiu: "Sou filho de um carniceiro, escravo estigmatizado, e de uma barregã que meu pai desposara porque o seu nível social não lhe permitia aspirar a outra mulher; ambos haviam cometido delitos e tinham sido condenados. Um orador, achando-me belo e amável, comprou-me, ainda criança; ao morrer, deixou-me seus bens; vendi-os e vim para Atenas onde me dediquei à filosofia. Que os historiadores não percam tempo em buscar informações a meu respeito, direi eu mesmo tudo o que sou". Uma confissão franca e espontânea embota a crítica e desarma a injúria. Bem pesadas as coisas, considero que, não raro, os louvores também desvalorizam quando ultrapassam a medida; e parece-me igualmente que desde a infância, em matéria de cargos e honrarias, deram-me mais do que merecia. Gostaria de viver em um país onde tais questões fossem reguladas ou desprezadas. Entre homens, julgam-se descorteses as discussões de prerrogativas protocolares que comportem mais de três réplicas; para fugir a tão importunas constelações não hesito em ceder o lugar ou passar à frente, ainda que sem justificação, e se alguém reivindica a precedência nunca deixo de concordar. Além desse proveito que tiro de meu estudo, sempre esperei que se meu modo de ser agradar e convier a algum homem de bem, talvez se decida ele a ligar-se de amizade a mim, antes de eu morrer. Dou-lhe uma vantagem grande, porque a familiaridade e o conhecimento que só teria com anos de frequentação pode alcança-los com segurança e exatidão em três dias de leitura. O curioso é que não diria em particular o que consigno por escrito publicamente e que, para penetrar meus pensamentos mais íntimos, devam os amigos mais fiéis recorrer a um livro: "que lhes abre os recantos recônditos de minha alma". Mas, se eu soubesse de alguém que me conviesse, iria buscá-lo ainda que bem longe, pois a doçura de uma companhia grata e adequada nunca se pagará caro demais, a meu ver. Ah! Um amigo! Quanto não daria para ter um, e como é verdadeiro o ditado antigo que afirma ser a amizade mais necessária e agradável do que a água e o fogo! Voltando a meu assunto, direi que não vejo grande inconveniente em morrer sozinho e longe de casa, pois nos isolamos para praticar atos naturais, menos desgraciosos e horríveis do que esse. Os que durante anos levam uma vida miserável também deveriam desejar não importunar os seus com sua desgraça. Era o que pensavam os indianos de certa província, os quais consideravam justo matar os que se encontravam nesse estado; e em outra região abandonavam-nos para que se arranjassem como pudessem. A quem não se tornam eles finalmente aborrecidos e insuportáveis? Mesmo aos que os devem aguentar. Quando estou doente não exijo nada de especial. O que a natureza não me quiser dar, não irei pedi-lo aos remédios. Antes que a febre e a doença comecem a destruir-me, em plena posse de mim mesmo, reconcilio-me com Deus mercê dos últimos sacramentos cristãos. Sinto-me assim mais livre e mais leve e tenho a impressão de que isso me ajuda a resistir à enfermidade. Quanto aos tabeliães e a seus conselhos, preciso ainda menos deles que dos médicos. Os negócios que não tenha posto em ordem antes de adoecer, não irei acerta-los depois. O que desejo fazer em caso de morte está sempre feito; e o que não o esteja, ou não o estará porque a dúvida terá impedido uma decisão (o que é por vezes a melhor das decisões) ou porque não o desejo realmente fazer. Escrevo meu livro para poucas pessoas e pouco tempo; se se tratasse de uma obra destinada a durar, houvera empregado uma linguagem mais elevada. Dadas as variações que sofreu nossa língua até hoje, quem há de afirmar que será a mesma dentro de cinquenta anos? Modifica-se ela diariamente em nossas mãos e no decurso de minha existência mudou pela metade, ao menos. Julgamo-la perfeita atualmente, mas cada século diz a mesma coisa; não confio em que assim se mantenha; continuará sem dúvida a transformar-se. Cabe aos bons escritores, aos que escrevem coisas úteis, fixá-la até certo ponto; quanto à duração da mudança, dependerá de nosso estado político. Não hesito entretanto em introduzir aqui alguns temas que são mais da alçada de certas pessoas de nossa época, que se especializaram em determinadas ciências; compreendê-los-ão por isso melhor do que a generalidade de meus leitores. Não quero que se diga de mim o que ouço dizer de muitos defuntos: "pensava assim, vivia assado, desejava isto ou aquilo; se tivesse falado no fim da vida, houvera dito tal ou qual coisa; posso afirma-lo porque o conheci melhor do que ninguém". Ora, na medida do possível, aqui revelo minhas ideias e afeições e as revelaria mais livremente de viva voz a quem as desejasse conhecer. Não obstante, ver-se-á que nestas memórias tudo disse e indiquei; e o que não pude expressar aponto-o com o dedo: "mas esses traços, por leves que sejam, bastam a um espírito penetrante para que adivinhe o resto? Nada deixo por adivinhar, porém, do que desejem saber. Quero que falem de mim com conhecimento de causa e com justiça; e voltaria do outro mundo se pudesse para desmentir quem me retratasse diferente do que sou, embora para elogiar. Verifiquei aliás que dos próprios vivos falam erroneamente. E se não me tivesse esforçado por fazer com que não desfigurassem um amigo perdido, tê-lo-iam mostrado de mil maneiras contraditórias. Para acabar de confessar as fraquezas de meu espírito, direi que não me detenho, em viagem, em nenhum lugar, sem que me pergunte se poderia aí morrer tranquilamente. Procuro alojar-me de maneira a sentir-me como em casa, onde não haja ruídos e não seja triste, enfumaçado, sufocante. Com essas frívolas condições faço por bajular a morte, isto é, por não ter que pensar senão nela quando chegar, porquanto já será suficiente para ocupar-me o espírito. Quero que participe do bem-estar de minha vida; desempenhe nesta um papel importante e espero que, dados meus sentimentos, não desminta o meu passado. A morte assume formas diferentes segundo as nossas ideias. Entre essas que se devem a causas naturais, a que decorre do enfraquecimento e da perda das nossas faculdades parece-me fácil e suave. Entre as mortes violentas, recearia antes cair em um precipício do que ser esmagado por um edifício que ruísse; e temeria mais uma estocada do que um tiro. Preferiria beber cicuta, como Sócrates, a apunhalar-me como fez Catão; e embora dê no mesmo, minha imaginação estabelece uma diferença enorme entre jogar-se em uma fogueira e mergulhar num canal de águas calmas. Tolamente atentamos mais para os meios do que para os resultados. A morte é, em verdade, coisa de um instante, mas daria muitos dias de vida para que esse instante fosse o melhor possível. Como cada um tem suas ideias acerca dos diferentes gêneros de morte, e da escolha que faria, vejamos se descobrimos algum isento de tristeza. Não poderíamos como os comorientes Antônio e Cleópatra tornar a morte voluptuosa? Deixo de lado essas mortes exemplares que a religião e a filosofia nos mostram; mas mesmo entre os homens menos ilustres houve alguns, como Petrônio ou Tigelino em Roma, que, instados a matar-se, tornaram a morte quase insensível graças aos requintes empregados e introduzindo-a sub-repticiamente nos seus divertimentos habituais, em meio às cortesãs e aos alegres companheiros. Assim, atentos a seus jogos, seus ditos chistosos, suas discussões acerca da música ou da poesia erótica, deixaram-se surpreender por ela sem pensar em testamentos nem se preocupar com atitudes. Não poderíamos imitar tal resolução, embora de maneira mais honesta? Se loucos e sábios sabem como morrer bem, tratemos de descobrir um gênero de morte que convenha aos que não são nem loucos nem sábios. Estou imaginando alguns que me parecem bons e desejáveis, visto que temos que acabar morrendo de qualquer jeito. Os tiranos romanos achavam que, dando ao criminoso o direito de escolher o gênero de morte, lhe davam a vida. Por outro lado, Teofrasto, filósofo tão delicado, modesto e sábio, não se viu impelido pela razão a dizer este verso que Cícero traduziu: "a vida depende da sorte, não da sabedoria". O destino ajudou-me nesse ponto, fazendo com que não constitua para os meus nem uma necessidade nem um estorvo. Tal situação, eu a houvera aceito em qualquer época de minha vida, mas agora que me cumpre arranjar as malas para a grande viagem, é-me um motivo de particular satisfação não vir a tornar-me para eles, em morrendo, uma causa de prazer ou de aborrecimento. Em virtude de uma compensação engenhosa, os que podem esperar algum proveito da minha morte, acham-se pela mesma razão sujeitos a perdas materiais; não raro a morte parece-nos mais triste em consequência dos prejuízos que acarreta aos outros, cujo interesse nos preocupa por vezes mais do que o nosso próprio. Nos meus alojamentos ocasionais não procuro luxo nem exagerado espaço, coisas que antes me desagradam; quero-os com essa simplicidade mais comumente encontradiça nos lugares menos artificiais e mais próximos da natureza. "Prefiro uma mesa limpa a uma mesa suntuosa, e o espírito ao luxo." Aliás, somente aos que viajam por necessidade, e são surpreendidos em pleno inverno nos Grisões, por exemplo, ocorrem tais inconvenientes; eu, que viajo por prazer, não corro esses riscos: se a estrada é incômoda à direita, tomo à esquerda; se não estou com vontade de montar a cavalo, paro. Nessas condições nada vejo que não me agrade ou não seja tão cômodo como minha casa. Sempre achei a superfluidade indesejável e sinto-me embaraçado ante o requinte e a abundância. Se deixo para trás alguma coisa por ver, volto; qualquer caminho é meu caminho, porque não tenho itinerário predeterminado. Se onde vou não encontro o que me disseram aí estar, porquanto as opiniões alheias não se acordam em geral com as minhas, não me queixo, pois ao menos constato assim a inexatidão do que me afirmaram. Adapto-me a tudo, e meus gostos são os de um homem igual aos outros. A diversidade de costumes entre um país e outro só me impressiona pelo prazer da variedade. Cada uso tem sua razão de ser. É-me indiferente que os pratos sejam de estanho, de madeira ou de barro; que a carne seja assada ou cozida; que haja manteiga ou azeite e este seja de nozes ou de olivas. A tal ponto que, ao envelhecer, desejaria perder essa faculdade e tornar-me mais requintado e exigente, a fim de frear o insaciável apetite que me perturba o estômago. Quando me encontro em França e me perguntam por cortesia se desejo ser servido à francesa, recuso-o, sentando-me sempre às mesas ocupadas por estrangeiros. Envergonho-me com ver meus compatriotas hostilizarem e criticarem os costumes contrários aos seus; parece-lhes estar fora de seu elemento, mal saem de sua aldeia. Onde quer que se achem atêm-se a seus usos e abominam os dos outros. Se deparam por acaso com algum dos seus na Hungria, logo se congratulam pelo acaso; reúnem-se, frequentam-se, e se esforçam por condenar os costumes bárbaros que têm sob os olhos. Como não seriam bárbaros se não são franceses? E os mais inteligentes é que falam! Em sua maioria os franceses viajam tão somente para voltar; permanecem reservados, taciturnos, inacessíveis, desejosos de escapar ao contágio de um ar que lhes é desconhecido. Lembra-me isso alguns dos nossos jovens cortesãos que só se ocupam da gente da mesma laia e nos olham com desdém, como se fôssemos de um outro mundo. Impedi-os de falar das coisas da corte e não saberão mais que dizer; são a nossos olhos tão ignorantes e tolos como nós aos deles. Com razão se observa que o homem de boa companhia é o que se adapta a tudo. Quando viajo não quero saber de nossos costumes; não é para encontrar gascões que vou à Sicília; não faltam em França. São antes gregos ou persas que procuro frequentar e entender. Vou mais longe: não creio ter observado, em minhas peregrinações, costumes que não valham os nossos. É verdade que não me tendo afastado demasiado do meu campanário pouco arrisco em afirmá-lo. A maior parte das pessoas que encontramos em viagem dá-nos mais aborrecimento do que satisfação; por isso trato de não ligar-me a elas, principalmente agora que vou envelhecendo e me apego menos à etiqueta. O velho sofre por causa dos outros e estes por causa dele, o que é ainda mais grave. É raro e reconfortante ter por companheiro de jornada um homem de bem que se agrade de nossa presença e tenha uma mentalidade e hábitos semelhantes aos nossos; senti muito a falta de uma tal companhia em todas as minhas viagens; mas é necessário escolhê-la antes de partir. Nenhum prazer tem sabor para mim, se não posso entreter-me a respeito com alguém; e o mais insignificante pensamento gosto de tê-lo a quem dizer. "Não quisera saber da sabedoria se ma oferecessem com a condição de não a comunicar a ninguém." E eis o que diz Cícero: "Suponha-se um sábio em uma solidão absoluta em que goze, entretanto, de tudo o que precisa e com tempo para estudar o que for digno de ser conhecido: preferirá renunciar a vida a tal solidão." Seduz-me a opinião de Arquitas: "o próprio céu me daria enfado, se aí tivesse de passear sem companheiro, em meio aos divinos corpos celestes". Todavia, mais vale ficar só do que em companhia de uma pessoa aborrecida e tola. Onde quer que fosse, Aristipo gostava de viver como um estrangeiro. "Se o destino me permitisse viver como desejo", viveria a cavalo, "pelas regiões queimadas de sol e por aquelas onde se formam a neve e as chuvas". Mas, dirão, não podeis dispor de passatempos mais fáceis? Que vos falta? Não tendes um belo panorama em vossa propriedade e um bom clima? Não é ela confortável e ampla, mais do que necessário? Aí recebestes mais de uma vez o rei e a rainha com seu séquito. Não ocupa vossa família uma invejável posição social? O lugar desperta em vós alguma recordação que vos ulcere e seja insuportável, que, enterrada no coração, vos roa e consuma?. Onde acreditais que podereis viver sem tormentos de qualquer espécie? "Os favores da fortuna nunca são sem mistura." Convinde, pois, em que vós mesmo sois o vosso entrave; ora, em toda parte vos encontrareis convosco e em toda parte tereis as mesmas razões de queixa, pois a satisfação só existe neste mundo para os seres desprovidos de inteligência ou os que atingiram a perfeição. Quem não se acha feliz em casa, onde se achará? Quantos milhares de pessoas não ambicionam apenas uma situação igual à vossa? Procurai corrigir-vos, isso está ao vosso alcance, ao passo que aos decretos do destino apenas podereis opor a vossa paciência. "Somente a razão nos conduz à serenidade verdadeira." Vejo muito bem os fundamentos dessa observação mas fora mais simples dizer em duas palavras: sê sábio. Semelhante resolução ultrapassa a sabedoria; é mesmo a sua consequência. Com semelhante raciocínio imita-se o médico que berra a seu doente agonizante que se alegre; seu conselho não seria muito mais tolo se lhe dissesse: passe bem. Não sou dos que se elevam acima do comum; e embora seja preceito salutar e fácil de entender o "contentar-se com o que se tem", outros mais sábios do que eu não o aplicam tampouco. O ditado popular é profundo, mas abarca um terreno demasiado grande. Tudo deve ter medida, mas tudo é suscetível de mudança. Bem sei que esse prazer de viajar revela inquietação e irresolução. São os meus principais defeitos, confesso. Não conheço coisa que eu deseje capaz de fixar-me. Mudar, variar, é o que me contenta, se é que alguma coisa pode contentar-me. Nas viagens o que me alegra é parar onde queira e partir quando queira. Gosto de viver como um simples particular; e assim o escolhi, mas não por ser hostil à vida pública, a qual talvez assente a meu temperamento. Essa independência faz que sirva de melhor boa vontade meu rei por fazê-lo sem constrangimento; minha razão e meu julgamento induzem-me a tanto, e não me dedico a um por não me quererem outros. Assim em tudo. Detesto ser obrigado a alguma coisa; qualquer comodidade de que tivesse de depender, ser-me-ia odiosa: "Quero com um remo agitar a água e com outro tocar a areia da praia". Uma só corda não me retém. Dirão que há nisso uma certa vaidade. Onde e em quem não haverá? Toda essa sabedoria, todos esses preceitos que serão senão vaidade? Deus sabe que os pensamentos dos sábios são apenas vaidades. Essas requintadas sutilezas são boas para os sermões; são discursos para enviar-nos bem arreados ao outro mundo. A vida é movimento constante e efetivo do corpo, movimento essencialmente desregrado e imperfeito que procuro orientar segundo minhas aspirações: "Cada um com seu destino". "Devemos agir de maneira a não ir de encontro à natureza universal, sem entretanto deixar de seguir nossas próprias tendências.? Para que servem as grandes ideias da filosofia que nenhum ser humano pode pôr em prática? Para que estabelecer regras que excedam nossa capacidade? Vejo nos proporem amiúde modos de vida que nem os proponentes nem os que os escutam têm a esperança, e sequer a vontade, de seguir. Do mesmo papel em que acaba de escrever uma condenação por adultério, arranca o juiz um pedaço a fim de enviar um recado amoroso à mulher de seu colega. E essa mulher com a qual acabais de colher o fruto proibido, momentos depois, e em vossa presença, vai manifestar-se mais violentamente do que Pórcia contra o mesmo pecado cometido por uma de suas conhecidas. E há quem condene outros à morte, por crimes que ele próprio não considera sequer uma falta. Vi outrora um senhor de boa sociedade dar ao público por um lado um punhado de versos notáveis pela beleza e o despudor e por outro propagar uma defesa violenta da Reforma. Assim são os homens; deixam que os príncipes e as leis sigam um caminho e eles próprios seguem outro, e não somente por desregramento de costumes, mas também porque não raro pensam e julgam diferentemente. Escutai uma oração filosófica: a imaginação, a eloquência, o talento nela se revelam; e, no momento, comovem-nos; mas nada há ali que impressione nossa consciência; não é a esta que se dirige. Como dizia Aríston, uma estufa ou uma lição são inúteis se não nos dão proveito. Podemos atentar para a casca, mas só depois de tirar o miolo; assim também, somente depois de beber o vinho é que se olha para o cristal do copo. Em toda a filosofia antiga vemos o mesmo autor redigir regras de temperança e páginas sobre o amor e a devassidão. Xenofonte nos joelhos de Clínias escrevia contra a virtude que propugnava Aristipo. E isso não ocorre por se verificarem milagrosas conversões e recaídas. Sólon, por exemplo, ora se apresenta como indivíduo, ora como legislador, falando ora para si mesmo, ora para as massas. No primeiro caso atém-se às regras naturais e diz com liberdade o que pensa, ao passo que o doente grave precisa ser tratado pelos mais hábeis médicos. Antístenes autoriza o sábio a amar e a fazer o que julgue oportuno sem se submeter às leis, porquanto seu julgamento lhes é superior e melhor do que elas conhece a virtude. Seu discípulo Diógenes afirma que devemos opor a razão ao desmando, a confiança à sorte, a natureza às leis. Os estômagos delicados necessitam de receitas; os estômagos sólidos só se preocupam com seu apetite. Assim, nossos médicos comem melão e bebem bons vinhos, enquanto recomendam a seus clientes xaropes e caldos; e dizia a cortesã Laís: não sei de que livros, de que sabedoria ou filosofia falam esses indivíduos, mas vejo-os atropelarem-se à minha porta como os demais. Como nossa licença nos solicita quase sempre mais do que o razoável, não raro apertaram-se mais do que fora indicado as leis e os preceitos de nossa vida. Nunca se pensa delinquir além do limite permitido. Seria desejável que entre a ordem e a obediência houvesse mais justa proporção; parece estúpido propor-nos um objetivo que não temos a possibilidade de atingir. Não há homem de bem, dedicado aos estudos das leis, que não se encontre dez vezes na vida no caso de ser condenado à forca. E entre eles alguns seriam punidos mui injustamente. Que te importa, alo, como este ou aquele dispõe de sua pessoa? Por outro lado, muitos que nunca infringiram as leis, não se poderiam considerar virtuosos e a filosofia com razão os açoitaria. Estamos longe de ser gente de bem segundo a doutrina divina. Nem o poderíamos ser com as regras que nós mesmos criamos. A sabedoria humana não cumpriu jamais os deveres que ela própria se propôs: se o houvesse conseguido, estabeleceria desde logo outros mais rigorosos ainda, pois nossa natureza é hostil a tudo o que é realizável. O homem obriga-se a si mesmo a continuamente errar e passa a vida a criar deveres feitos para outros seres que não ele. Por que determinar o que não se espera que alguém cumpra? Teremos culpa de não fazer o impossível? As leis que nos condenam ao que não podemos, condenam-nos pelo que não podemos. Em todo caso essa liberdade discutível de se apresentar com duas caras, uma nas palavras e outra nos fatos, será talvez permitida a quem fale de certos assuntos, não a quem trate de si mesmo como o faço. A vida comum deve relacionar-se com as outras vidas. A virtude de Catão era demasiado elevada para seu século; seu espírito de justiça, em um homem que se propunha governar os outros e ser chamado a opinar nos negócios públicos, podia passar por inútil e absurdo, senão por injusto. Meus costumes, embora não difiram mais do que um dedo dos costumes comuns, tornam-me, entretanto, na minha idade, algo selvagem, pouco sociável. Não sei se tenho razão em andar desgostoso com a sociedade que frequento, mas não me queixaria se lhe aborrecesse, por isso que a desdenho. A virtude que as coisas deste mundo exigem é uma virtude flexível, capaz de se adaptar à fraqueza humana; não é pura nem simples; não é reta, constante, imaculada. As crônicas de nosso tempo censuraram a um de nossos reis ter-se deixado guiar demasiado escrupulosamente pelo seu confessor; e isso porque os negócios de Estado devem obedecer preceitos menos prudentes: "Abandona a corte, se queres ser justo". Tentei outrora aplicar à gestão dos negócios públicos as regras e os princípios a que obedeço na vida particular, regras e princípios rudes, pouco requintados, mas impolutos, que nasceram comigo ou adquiri com minha educação e que sigo com segurança, senão com prazer. E verifiquei que essa virtude inexperiente e escolástica é insuficiente e perigosa nas coisas públicas. Quando nos misturamos à multidão, cabe-nos abrir o caminho aos empurrões, avançar e recuar e por vezes tomar por atalhos; e viver, não como desejaríamos, mas como querem os outros; não segundo o que nos propomos e sim de acordo com o que nos impõem; segundo o tempo, os homens e as coisas. Platão diz que só por milagre quem se mete em política sai com a consciência limpa; diz ainda que quando coloca um filósofo à testa do governo não pensa. em governo corrupto como o de Atenas, e menos ainda como o nosso, no qual a própria sabedoria perderia a razão. Uma boa planta transplantada para um terreno muito diferente do que lhe convém, transforma-se de acordo com o meio; não o modifica à sua conveniência. Sinto que se devesse refazer minha educação em vista de ocupações dessa natureza, teria que proceder a inúmeras mudanças e adaptações. Se pudesse assim transformar-me (e por que não o poderia com o tempo?), não o desejara. A primeira experiência desgostou-me; sinto por vezes criarem-se em mim certas ambições, mas reajo a essas tentações: Persevera, Catulo, resiste até o fim. Não me solicitam muito aliás, e eu me ofereço ainda menos. A liberdade e a ociosidade, que são minhas qualidades dominantes, opõem-se diametralmente ao que exigem tais funções. Não sabemos distinguir as faculdades de cada indivíduo; elas se subdividem e se delimitam de tal maneira que se faz difícil apreciá-las. Julgar que alguém está apto a gerir os negócios públicos pelas qualidades reveladas em sua vida particular, é julgar erroneamente. Há quem se governe bem a si e mal aos outros; há quem escreva ensaios e não seja homem de ação; outro sabe comandar um cerco e não uma batalha; outro fala com desenvoltura diante de poucas pessoas e mal em público; o fato de poder uma coisa não significa que se possa a outra; talvez implique mesmo em incompatibilidade. Observo que os grandes espíritos são tão inaptos às pequenas coisas como os espíritos inferiores às grandes. Não parece inverossímil que Sócrates tenha sido alvo da zombaria dos atenienses por não saber contar os sufrágios de sua tribo e apresentar um relatório ao conselho? A veneração que dedico a esse personagem faz que sua sorte proporcione magnífico exemplo às minhas próprias falhas. Nossa capacidade mede-se pelos pormenores; a minha estende-se a poucas coisas e é em tudo muito restrita. Quando lhe deram o comando supremo, Saturnino objetou: "Companheiros, perdeis um bom capitão promovendo-o a general". Quem, em tempos tão ruins, se jacta de pôr a serviço público uma virtude cândida e sincera, ou não a conhece (pois, com as opiniões, corrompem-se os costumes) ou, se a conhece, vangloria-se tolamente e faz, o que quer que diga, mil coisas de que sua consciência o acusa. De bom grado acreditaria em Sêneca se me falasse de coração aberto acerca de sua experiência. Em nossa época o sinal mais honroso de bondade está em reconhecer os próprios erros e os alheios, concorrer para reprimir a tendência para o mal, esperar e desejar melhor. Nessas dissensões que nos perturbam e fizeram da França a presa dos partidos, cada qual (mesmo os melhores) defende sua causa com dissimulação e mentira. Quem lhe quisesse escrever a história fiando-se nas aparências, seria muito temerário e não diria a verdade. Mesmo o partido mais certo não é senão parte de um organismo corroído; mas o membro menos doente desse organismo não deixa de passar por são, porque somente por comparação é que podemos julgar. A inocência na vida pública mede-se segundo os lugares e as estações. Teria gostado que Xenofonte houvesse dado a Agesilau o elogio que o fato seguinte merecia: tendo um príncipe vizinho, contra o qual estivera em guerra, pedido licença para atravessar seu território, Agesilau acedeu e deu-lhe passagem pelo Peloponeso; e não somente não o traiu, como também o recebeu cortesmente, considerando-se amarrado pela promessa. Esta, com as ideias de hoje, nada significaria; mas alhures e em outras eras a franqueza e a magnanimidade eram honradas. Os nossos malandros de agora pouco se importariam com isso, mesmo porque em nada se assemelham as virtudes dos espartanos às dos franceses. Não é que careçamos de homens virtuosos, mas são como os concebemos. Quem tenha sentimentos superiores aos de seu século, precisa desnivelá-los ou não se meter conosco, pois que ganharia com isso? Se porventura encontro um homem íntegro, comparo esse monstro a uma criança de duas cabeças, ou a algum peixe que o lavrador atônito deparasse sob a charrua, ou ainda a uma mula fecundável. Pode-se ter saudade de outros tempos, mas não se pode fugir ao presente; pode-se desejar ter outros magistrados, mas não desobedecer aos que estão em função. E talvez haja maior mérito em obedecer aos maus. Enquanto souber da existência de algum representante das leis que a monarquia nos deu, não o abandonarei; mas se porventura uma cisão se verificasse sob a ação dos partidos contrários que as entravam, e a escolha entre os dois fosse difícil e duvidosa, creio que me decidiria por fugir à tempestade, no que, possivelmente, fora ajudado pela natureza ou os azares da guerra. Entre César e Pompeu teria tomado francamente partido; mas entre os três ladrões que se lhes seguiram seria preciso esconder-se ou seguir a corrente, o que acho lícito quando a razão já não nos pode guiar. Ou vais perder-te? Isso já se acha algo fora do meu assunto; perco-me, mas antes por licença do que por inadvertência. Minhas ideias ligam-se umas às outras, mas às vezes de longe; não se perdem de vista, embora seja por vezes necessário que virem a cabeça para percebê-la. Tenho diante de mim um diálogo de Platão construído em duas partes absolutamente diferentes; a primeira é consagrada ao amor, ao passo que a outra somente trata de retórica. Há autores que não receiam passar assim de um assunto a outro sem relação com o precedente e fazem-no com muita graça, ao sabor da fantasia. Os títulos de meus capítulos nem sempre estão de acordo com a matéria; não raro a relação se manifesta apenas através de algumas palavras, como na "Andriana", no "Eunuco" ou em Sila, Cícero, Torquato. Gosto de andar dando cabriolas, à maneira dos poetas, que é ligeira, alada, demoníaca, como diz Platão. Plutarco em certas obras esquece o tema, o qual só por momentos se encontra e sob matéria estranha. Vede como procede em seu "Demônio de Sócrates". Como são belas suas escapadas, como suas variações são elegantes, e tanto mais quanto mais se afiguram ter saído da pena por acaso. O leitor distraído é que perde de vista meu tema; eu não. Sempre, em algum lugar, umas poucas palavras hão de mostrar que o tenho em mente. Passo de um assunto a outro sem regra nem transição; meu estilo e meu espírito vagabundeiam juntos. Um pouco de loucura previne um excesso de tolice, segundo afirmam nossos mestres por palavras e exemplos. Muitos poetas arrastam-se e descambam para o prosaísmo, mas a melhor prosa antiga esplende com vigor e arrebatamento poético e tem algo da paixão que a anima. A essa prosa cabe sem dúvida a preeminência na expressão do pensamento; diz Platão que o poeta, sentado no tripé das Musas, deixa que derrame o que lhe vem à ideia, como a água jorra da fonte, sem meditar nem ponderar; e jorra de tudo, coisas contraditórias, de todas as cores, sem sequência. O próprio Platão amiúde entrega-se à inspiração poética. A teologia antiga, dizem os sábios, é toda poesia e, na opinião dos filósofos, esta foi a princípio a linguagem dos deuses. Penso que o assunto se realça por si. Ele bem mostra, sozinho, onde começa, onde muda, onde termina, sem que haja necessidade de se introduzirem ligações, tão somente úteis aos ouvidos fracos ou indolentes; não quero comentar a mim mesmo. Quem não prefere não ser lido a sê-lo por quem cochile ou tenha pressa? "Nada existe, mesmo útil, que seja útil a quem passa correndo." Se bastasse pegar um livro para aprendê-lo, olhá-lo para penetrá-lo profundamente, percorrê-lo para dominá-lo, não poderia alegar essa ignorância que proclamo. Não podendo reter a atenção do leitor pelo interesse do que digo, contento-me com interessá-lo em minha mixórdia. Bem, dirão, mas lamentá-lo-á depois. Sem dúvida, porém já se terá distraído. Demais há espíritos que desdenham o que compreendem; hão de apreciar-me tanto mais e ante a minha obscuridade concluirão pela profundidade de meu pensamento, o que detesto e evitaria se pudesse. Aristóteles vangloria-se, algures, de se esforçar por essa obscuridade; é um erro. A princípio desdobrava os capítulos, mas pareceu-me que desse modo interrompia a atenção antes mesmo de despertá-la, por isso comecei a fazer capítulos mais amplos, o que requer do leitor certa intenção de ler realmente e de destinar algum tempo à leitura. Não querer dar menos de uma hora a semelhante ocupação, é o mesmo que não querer dar nada; e não se entregar por inteiro ao que se quer fazer, é não fazer. Demais, é-me pessoalmente cômodo dizer as coisas pela metade, algo confusamente; e tenho aversão pela razão desmancha-prazeres. Acho-a cara demais e incômoda, quando se imiscui nos projetos extravagantes e fantasias que concebemos. Ao contrário, esforço-me por valorizar a vaidade e a estupidez se porventura me agradam, e sigo minha inclinação natural sem a fiscalizar de muito perto. Vi alhures ruínas de monumentos, estátuas, céus e terras; o homem é sempre o mesmo. Tudo isso é verdade; entretanto, não posso ver as ruínas da antiga Roma, tão grande, tão poderosa, sem que a admire e venere. O culto dos mortos é-nos recomendado. Desde a infância venho vivendo na intimidade da História romana, e conheci tudo o que lhe diz respeito muito antes de iniciar-me nos meus próprios negócios. Conheci o Capitólio antes do Louvre, e soube o que é o Tibre antes de ver o Sena. Preocupei-me com o destino de Luculo, Metelo e Cipião antes de atentar para o dos nossos contemporâneos. Sem dúvida aqueles já então mortos, mas meu pai o está também e tão longe de mim após dezoito anos quanto os outros depois de mil e seiscentos. No entanto, não deixo de lhe cultivar a memória; sua amizade e companhia continuam presentes em meu espírito, pois é de meu temperamento cumprir mais delicadamente os deveres que tenho para com os mortos; considero que necessitam mais de nós, visto não poderem ajudar-se a si mesmos. Mais bela se revela assim a gratidão, porquanto um benefício retroativo é menos louvado. Arcesilau visitando Ctesíbio doente, e encontrando-o sem recursos, colocou sub-repticiamente o dinheiro de que o enfermo precisava à cabeceira do leito, juntando o recibo da devolução, sem que o beneficiário o percebesse. Os que mereceram minha amizade e gratidão não as perderam porque deixaram de existir. Melhor e mais escrupulosamente os pago sabendo-os ausentes e ignorantes de meus gestos, e mais afetuosamente falo de meus amigos quando não têm a possibilidade de saber o que digo deles. Cem discussões tive em defesa de Pompeu e de Bruto e a minha simpatia por eles permanece viva. Poderão alegar que isso é fantasia, mas só pela fantasia nos apegamos às coisas do presente. Considerando-me inútil neste século, volto-me para outros tempos e sinto-me tão envolvido neles que essa velha Roma livre, justa, florescente (não me refiro a seu nascimento nem à sua decadência) me apaixona. Por isso é sempre com emoção que revejo a localização de suas ruas e casas nessas ruínas que se enterram no solo até os antípodas. Efetivo da natureza ou produto da imaginação, a vista dos lugares que sabemos terem sido habitados ou frequentados por personagens cuja memória se conservou comove-nos mais do que o relato de seus feitos ou a leitura de suas obras. Tantos lugares despertam recordações! Nesta cidade tudo detém o pensamento; por onde quer que andemos, pisamos algo memorável. Compraz-me imaginar-lhes a fisionomia, as atitudes, as roupas; repito esses grandes nomes e os faço soarem a meus ouvidos: "Honro esses homens ilustres e só lhes pronuncio os nomes respeitosamente. Nos que são grandes, ainda que em parte, admiro até as coisas vulgares. Como gostaria de vê-los conversarem, passearem, comerem. Seria injusto desprezar as relíquias que nos lembram tantos homens de bem que vi viverem e morrerem e que pelo seu exemplo nos dariam excelentes lições se as soubéssemos seguir. Demais, essa mesma Roma merece ser apreciada tal qual é em nossos dias, aliada há tanto tempo à nossa coroa. É a única cidade universal e a todos pertence. O soberano que a governa é por todos obedecido; é a metrópole da cristandade; o espanhol como o francês aí se acham como em sua pátria; para ser príncipe nesse Estado basta ser cristão. Não há lugar neste mundo a que o céu tenha outorgado tão abundantes favores e com igual continuidade. Sua própria decadência é gloriosa e seu prestígio não se apaga. Mais preciosa ainda em virtude de suas soberbas ruínas até no túmulo conserva a aparência e o caráter da capital de um império: Aqui é que se diria, em verdade, que a natureza se deleitou com sua obra. Quem se censurar por se sentir acessível a tal satisfação, deve pensar que é esta menos vã do que prazenteira. E jamais poderei criticar o que quer que seja que agrade um homem de bom senso. Sou grato ao destino por não se ter até agora manifestado contra mim além do que eu poderia suportar. Talvez tenha ele tendência a deixar em paz quem não o importuna. "Quanto mais coisas recusamos, tanto mais nos concedem os deuses. Embora pobre, junto-me aos que nada pedem. Quem muito quer de muito carece." Se assim continuar deixarei esta terra feliz e satisfeito e "nada mais peço aos deuses", como diz Horácio. Mas cuidado com o choque, se ocorrer! Contam-se aos milhares os que naufragam no porto. Consolo-me facilmente ante a previsão do que acontecerá aqui quando houver morrido; o presente já me ocupa demasiado, "entrego o resto à sorte". Em verdade, não tenho isso que tanto incita o homem a pensar no futuro: herdeiros de seu nome e honra. É possível que seja desejável tê-los, mas a situação crítica que a atravessamos induz-me a não os querer. Já me apego demais à vida, sozinho; basta que eu mesmo deva ao destino o que não posso evitar de lhe dever, não é necessário que ainda lhe deva mais, e nunca achei que fosse uma desgraça não ter filhos, nem me parece que isso torne a vida menos completa e feliz. A esterilidade também comporta algumas vantagens. As crianças figuram entre as coisas que não se devem desejar, principalmente quando, como agora, há pouca probabilidade de virem a ser boas: "nada de bom pode nascer; a semente não presta". É entretanto com justa tristeza que as perdemos. Quem me entregou a direção de minha casa prognosticou-lhe a ruína, dado meu temperamento tão pouco doméstico. Enganou-se; conservei-a como a recebi; talvez em melhor situação, porquanto sem dívidas, embora não dê lucro. Se a fortuna não me causou graves prejuízos tampouco me trouxe muitos benefícios; o que em minha casa veio dela, aí se achava antes de eu tomar posse, e há mais de cem anos; nenhum bem de alguma importância lhe devo. Apenas pequenos favores, e sem que os solicitasse, pois Deus sabe que sou positivo e só aprecio o que é real e de grande rendimento. Acho que a avareza não é muito menos desculpável do que a ambição, e penso que se deve evitar a dor tanto quanto a vergonha; e desejar a saúde tanto quanto o saber, e a riqueza não menos do que a nobreza. Entre os favores outorgados pelo destino, um mais do que os outros me alegrou: uma bula conferindo-me a burguesia romana que recebi com grande pompa em minha última viagem. Variando o estilo dessas bulas de acordo com as qualidades do destinatário, gostaria de ter visto antes o que aqui transcrevo para quem tenha igual curiosidade. Em consequência do rela tório apresentado ao Senado por Orazio Massimi, Marzo Cecio, Alessandro Muti, conservadores da cidade de Roma, acerca do direito de cidadania romana a ser concedido ao ilustríssimo Miguel de Montaigne, cavaleiro da Ordem de São Miguel e camarista ordinário do Rei Muito Cristão, decretam o Senado e o Povo Romano: -Considerando que em obediência a costume antigo sempre foram por nós adotados com alegria e diligência os que, distinguidos pela virtude e a nobreza, serviram e honraram nossa República ou o poderão fazer algum dia, nós, respeitando o exemplo e a autoridade de nossos antepassados, acreditamos dever imitar e conservar esse hábito louvável. Por esses motivos, o ilustríssimo Miguel de Montaigne, cavaleiro da Ordem de São Miguel e camarista ordinário do Rei Muito Cristão, mui zeloso do nome romano, sendo, em razão de sua condição, do nome de sua família e de suas qualidades pessoais, muito digno do título de cidadão romano, como o julgaram o Senado e o povo romano, agrada ao Senado e ao povo romano que o ilustríssimo Miguel de Montaigne, ornado de todos os méritos e mui caro a este nobre povo, seja inscrito como cidadão romano, bem como os seus pósteros, gozando todas as honras e vantagens reservadas aos nascidos cidadãos ou patrícios de Roma ou aos que tal se tornaram pelos seus títulos. E como isso pensam o Senado e povo romano que não concedem propriamente um direito mas pagam uma dívida; e que é menos um benefício que outorgam do que um favor que recebem de quem, aceitando esse direito de cidadania, honra e ilustra a cidade. Os conservadores mandaram registrar este "senatus consultum" pelos secretários do Senado e do povo romano, a fim de que seja conservado nos arquivos do Capitólio, e mandaram redigir este ato que vai selado com o timbre da cidade. Ano da fundação de Roma 2331, e do nascimento de Jesus Cristo 1581, aos treze dias de março. Seguem-se as assinaturas. Não sendo cidadão de nenhuma cidade, agrada-me sê-lo da mais nobre. Se os outros se analisassem tão atentamente como o faço, achar-se-iam igualmente vaidosos e frívolos. Não posso livrar-me desses defeitos sem me destruir. Todos valemos tão pouco uns como outros, mas os que o não percebem parece-me que saem ganhando, embora não esteja muito certo disso. Esse hábito comum de olhar para o que está em nós atende sem dúvida a uma necessidade, pois em nós mesmos só deparamos com miséria e vaidade. Por isso, para que não soframos, fez acertadamente a natureza que a vista se volte para fora. Seguimos a correnteza; retroceder, ir contra a maré, é por demais penoso. Contemplai os movimentos do céu; olhai para as atitudes do próximo; atentai para a demanda deste ou a doença daquele, ou o testamento deste outro; voltai a vista para cima, para baixo ou para os lados, para a frente ou para trás. A ordem do deus de Delfos era paradoxal, pois dizia que olhássemos para nós mesmos, que volvêssemos o espírito e a vontade para as nossas próprias coisas, que em lugar de nos espalharmos nos concentrássemos, porquanto o exterior nos atraiçoa, diminui e dissolve. Acaso não vês, homem - dizia esse deus - que o mundo se contempla a si mesmo? Quer olhes para dentro ou para fora de ti, sempre tua vaidade estará em jogo, mas ela será tanto menor quanto mais restrito o teu campo de visão. Salvo tu, homem, todas as coisas se estudam a si mesmas antes de mais nada e estabelecem os limites de suas tarefas e de seus desejos; pois não há nenhuma mais necessitada do que tu que tentas abarcar o universo. És um observador falho de saber, um magistrado sem jurisdição, o bobo da comédia. CAPÍTULO X DO DOMÍNIO DA PRÓPRIA VONTADE Em relação à maioria dos homens poucas coisas me afetam, ou melhor, me prendem. É normal que nos afetem, mas é preciso que não nos dominem. Esforço-me por aumentar pelo estudo e o raciocínio esse privilégio de insensibilidade assaz pronunciado em mim. Conseguintemente, poucas coisas se me impõem e me apaixonam. Sou perspicaz, mas a raros objetos presto atenção; comovo-me facilmente, mas minha compreensão e aplicação são difíceis e concentradas. Não costumo assumir compromissos. Na medida do possível trato unicamente de mim, e mesmo assim sou levado a reprimir a afeição que dedico à minha pessoa, a fim de não atentar para aquilo que, embora me pertença, está à mercê de outros e mais sujeito ao acaso do que à minha vontade. Assim, até a saúde, que tanto estimo, não a desejo querer demasiado com receio de achar insuportáveis as enfermidades. Devemos resguardar-nos igualmente do ódio à dor e do amor ao bem-estar; é o que recomenda Platão. E aos afetos que me distraem de mim mesmo e me induzem a apegar-me aos outros, oponho-me com todas as minhas forças. Acho que devemos emprestar-nos aos outros e dar-nos a nós mesmos. Se minha vontade se hipotecasse com facilidade, resistiria pouco, porque sou naturalmente muito impressionável, "inimigo dos negócios e feito para o ócio e a tranquilidade". Discussões encarniçadas que dessem finalmente vantagem ao adversário, desenlaces que tornassem ridícula a minha insistência, far-me-iam sofrer cruelmente. Se fizesse como os outros, não teria forças para suportar as emoções que experimentam os que aceitam tal existência, e desde o início estaria destruído por uma agitação intestina. Se por vezes me convenceram de me encarregar de negócios alheios, nunca prometi apaixonar-me. Prometi encarregar-me deles, não incorporá-los a mim. Examino-os, não os choco. Tenho bastante que fazer para atender ao que me diz pessoalmente respeito, sem que me meta em coisas estranhas. Os que sabem quanto devem a si mesmos não ignoram que o cometimento não deixa grandes lazeres: "já tens muito com que te ocupares em casa; não te afastes". Os homens alugam-se; suas faculdades não lhes são úteis senão a quem eles se escravizam. São os locatários que vivem neles e não eles próprios. Essa disposição de espírito habitual não me seduz. Cumpre zelar pela liberdade de nossa alma e não a comprometer senão em circunstâncias excepcionais, as quais são poucas. As pessoas que se deixam empolgar são presas das pequenas coisas como das grandes; do que lhes respeita como do que não lhes diz respeito. Imiscuem-se em tudo, e não vivem onde não se podem agitar; "buscam trabalho para ter trabalho". E não porque o queiram fazer, mas porque não o podem fazer, como não pode parar a pedra que rola, antes de tocar o solo. Para certos indivíduos, ocupar-se de coisas é dar prova de capacidade e dignidade; seu espírito busca o repouso no movimento, como as crianças no berço. São tão úteis aos amigos quão importunos a si mesmos. Ninguém distribui seu dinheiro aos outros, no entanto distribui-lhes seu tempo e sua vida, coisas de que somos pródigos mas que deveríamos poupar até a avareza. Sou por temperamento inteiramente diferente. Atenho-me a mim mesmo e em geral sem nada ambicionar exageradamente; assim me conduzo em relação ao trabalho. Outros, em tudo o que desejam e fazem, põem toda a sua vontade e seu entusiasmo. Tantos maus passos se dão, que mesmo nos mais seguros é conveniente pisar com cuidado; a própria volúpia é dolorosa quando demasiado profunda: "Marchas sobre um fogo que arde sob traidora cinza". Os cidadãos de Bordéus elegeram-me prefeito da cidade, achando-me eu longe da França e mais longe ainda de pensar que isso pudesse ocorrer. Recusei, mas demonstraram-me que não devia recusar e a tanto se juntou uma ordem do rei. O cargo é tanto mais honroso por não ser retribuído, não proporcionando quaisquer benefícios. Dura dois anos mas pode prorrogar-se mediante reeleição, o que ocorre raramente. Aconteceu comigo o que somente se verificara duas vezes antes, com o Sr. de Laussac e com o Sr. de Biron, marechal de França, a quem sucedi, transmitindo em seguida o cargo ao Sr. de Matignon, também marechal de França, "um e outro hábeis administradores e bravos guerreiros". Orgulho-me da companhia. A sorte interveio amplamente na ocorrência, pois meu caso foi semelhante ao de Alexandre que, tendo a princípio recebido com desdém os embaixadores de Corinto, vindos para lhe oferecer a cidadania de sua cidade, agradeceu-lhes em seguida a honra, ao saber que Baco e Hércules figuravam entre os que haviam obtido o título. Logo ao chegar, apresentei-me como sou, e conscienciosamente revelei-me sem memória, nem vigilância, nem experiência, nem energia. Mas também sem ódios, nem ambição, nem violência. Assim sabiam o que podiam esperar de mim. Como devesse minha eleição ao fato de terem conhecido meu pai e quererem honrar-lhe a memória, acrescentei lealmente que me aborreceria muitíssimo se alguma coisa pudesse preocupar-me da mesma forma que o preocupara o governo da cidade. Lembrava-me de tê-lo visto, quando eu era ainda criança, cruelmente agitado com tais questões, esquecendo a calma de que gozava em seu lar, onde o haviam retido até então as fadigas da idade e a sua saúde; e não poupando sequer a vida que se arriscava a perder nas inúmeras viagens a que os interesses da coletividade o obrigavam. Ele era assim; uma grande bondade dominava-o, nunca houve alguém mais caridoso e dedicado ao povo. Porém, isso que louvo nos outros não me apraz seguir. E tenho minhas razões para tanto. Meu pai ouvira dizer que é necessário sacrificar-se pelos outros; que o interesse particular não deve ser levado em conta quando está em jogo o interesse geral. Em sua maioria, as regras e os preceitos deste mundo abundam nesse sentido, tendendo a expulsar-nos de nós mesmos em benefício da sociedade. Assim nos desviam do que nos interessa diretamente, com receio de que nos apeguemos exageradamente a isso, e nada se poupou nesse sentido, pois é comum aos sábios legislar segundo a utilidade das leis e não de acordo com a realidade das coisas. A verdade apresenta, não raro, obstáculos e incompatibilidades e há que enganar para não nos enganarmos; cumpre-nos fechar os olhos e impor silêncio a nosso julgamento, a fim de corrigir e superar o que essa verdade cria: "São os ignorantes que julgam e é preciso muitas vezes enganá-los para que não se enganem". Quando nos ordenam que amemos mais do que a nós mesmos cinquenta categorias de coisas, fazem como os archeiros que, para atingir o alvo, visam muito acima. Também para endireitar um pau curvado é necessário dobrá-lo no sentido contrário. Creio que no culto de Palas, como em todos os cultos, havia mistérios aparentes destinados à divulgação e outros secretos reservados aos iniciados. E provável que entre estes figurasse o grau exato de afeição que cada qual deve ter para consigo mesmo; não essa afeição de mau quilate que nos leva a apreciar excessivamente a glória, a riqueza, o saber, nem a afeição imoderada e indiscreta que nos arruína e apodrece como a hera arruína e apodrece os muros a que se prende; mas uma afeição sadia e equilibrada, tão útil quão agradável. Quem conhece esses deveres e os exerce é realmente inspirado pelas Musas e alcança o ápice da sabedoria e da felicidade humanas. Sabendo exatamente o que deve a si mesmo, vê como utilizar os outros em seu proveito, o que também exige dele o cumprimento de certos deveres em benefício da sociedade a que pertence, pois quem nada faz por outrem nada faz tampouco por si. "O amigo de si mesmo é também o amigo dos outros". Nosso dever primeiro consiste em guiarmos a nós mesmos; para isso estamos no mundo. Quem se esquecesse de viver honesta e santamente e imaginasse cumprir seu dever exortando os outros a fazê-lo, seria um tolo; e igualmente o seria se negligenciasse a própria vida para que os outros pudessem vivê-la. Quando se aceita um cargo, deve-se-lhe dar toda a atenção, não poupando esforço e sacrifícios: "Disposto a morrer por meus amigos e minha pátria: mas isso não deve ir além do ocasional. O espírito precisa continuar sereno, não inativo mas agindo sensatamente, sem paixão. Agir com simplicidade custa-lhe de resto tão pouco que mesmo dormindo age, mas cumpre movimenta-lo com cuidado, pois o corpo recebe as cargas que lhe impõem mas é o espírito que as distribui e, distribuindo-as mal, ultrapassa por vezes a medida recomendável. Uma mesma coisa faz-se com esforços físicos e determinações diferentes. Muita gente se arrisca diariamente em guerras de que não tiram benefício algum e se expõem em batalhas cuja perda não lhes perturba o sono. Enquanto outros em suas casas, longe do perigo que não ousariam enfrentar, apaixonam-se mais pelo resultado da guerra do que o soldado que lhe dá a vida e o sangue. Desempenhei cargos públicos sem me afastar de mim mesmo e entreguei-me a outrem sem me perder de vista. A violência dos desejos estorva mais do que favorece o esforço em vista de um dado objetivo; tornamo-nos impacientes, ressentidos e desconfiados ante os possíveis obstáculos. Nunca dirigimos com eficiência uma coisa que nos domina e obceca: "A paixão é um mau guia". Quem só aplica nos negócios públicos a inteligência e a habilidade, age com melhores resultados, porque pode dissimular, ceder, diferir à vontade, segundo as circunstâncias. Se malogra não fica atormentado e é capaz de recomeçar; é sempre senhor de si. Ao contrário, quem se embriaga de violência e obstinação fatalmente incorre em faltas graves e comete imprudências; a impetuosidade do desejo torna-o temerário; e se a sorte não o ajuda amplamente, pouco consegue. A filosofia quer que eliminemos a cólera nos castigos que impomos aos que nos ofendem; não para que a vingança seja menor, mas, ao contrário, para que pese mais e marque mais profundamente, porquanto o arrebatamento a perturba. A cólera cansa o braço de quem pune; esgota-lhe as forças e a precipitação como que o entrava. Quem se apressa se atrasa. Assim a avareza tem seu maior inimigo em si mesma; quanto mais violenta tanto mais estéril, e é mais fácil acumular riquezas sob a máscara da liberalidade. Um fidalgo meu amigo, homem muito honesto, quase enlouqueceu por tomar demasiado a peito os interesses de seu príncipe. Este analisou-se diante de mim com estas palavras: "percebo a gravidade dos acidentes como qualquer pessoa, mas quando são irremediáveis submeto-me às consequências; quanto aos outros, depois das medidas necessárias para enfrentá-los, aguardo tranquilamente o resultado". Vi-o em ação e em verdade conserva inteira serenidade nas situações mais difíceis; considero-o mais capaz na adversidade do que quando a sorte o auxilia; suas derrotas são mais gloriosas do que suas vitórias. Observe-se que mesmo nas ocupações mais frívolas, como no jogo de xadrez ou da bola, o desejo imoderado de ganhar perturba o espírito e o corpo, ofusca a inteligência e paralisa os movimentos. Quem encara com sensatez a vitória e a derrota, permanece senhor de si. Quem menos se irrita ou se apaixona é quem melhor dirige o jogo, e com maiores probabilidades de êxito. Dando à alma coisas em excesso, não a deixamos apreendê-las e conservar. Na realidade, algumas há que cumpre tão somente apresentar-lhe, outras temos que amarrá-las a ela; e outras ainda precisamos forçá-la a incorporá-las. Ela pode ver e sentir todas as coisas, mas deve sustentar-se apenas com o que tem em si e para isso há que instruí-la acerca do que lhe convém e é capaz de assimilar. As leis da natureza nos ensinam. Os sábios dizem que a natureza não faz indigentes e quem o é, só o é em consequência da desordem de sua imaginação. E distinguem com sutileza os desejos naturais dos que nós mesmos criamos. Os que são realizáveis vêm dela; os que não podemos satisfazer nascem de nossa fantasia. A pobreza de bens é facilmente remediável; a da alma não tem cura. "Se o homem se contentasse com o suficiente, eu seria rico; mas como o homem não se contenta, não há riqueza bastante para mim." Sócrates, ao ver carregarem pelas ruas da cidade móveis e joias de grande riqueza, disse: quantas coisas que eu não desejo! Metrodoro vivia com doze onças de alimento por dia; Epicuro precisava de menos ainda; Metrocles dormia no inverno com os carneiros e no verão nos claustros dos templos. A natureza provê ao que exige. Cleantes vivia do trabalho de suas mãos e vangloriava-se de poder alimentar mais alguém ainda, se quisesse. A natureza exige muito pouco para nossa conservação, tão pouco que foge aos golpes possíveis da má sorte. Entretanto, permitamo-nos algo mais e chamemos natureza aos costumes e situação pessoal e fixemos assim os limites de nossas aspirações, levando em conta o que já possuímos. Parece-me desculpável agir desse modo, pois os costumes são uma segunda natureza, tão poderosa quanto à primeira. Se me vem a faltar aquilo a que estou acostumado, sinto-o profundamente. Quase preferiria que me tirassem a vida a que tornassem mais difícil e medíocre a minha condição social. Não sou mais capaz de mudar nem de modificar meu teor de vida ainda que para melhorar. É tarde para isso, e se uma grande fortuna viesse a caber-me não me alegraria, antes lamentaria que não tivesse acontecido a coisa no tempo em que me fora dado gozá-la. Para que servem as riquezas que não possa usufruir? Não me seduziria tampouco qualquer nova aquisição moral. E quase vale mais não se tornar homem de bem e não ter uma possibilidade de vida melhor, quando já não se tem mais tempo diante de si. Eu que estou de partida, de bom grado cederia a alguém a experiência que adquiri acerca da prudência que cabe observar nos negócios deste mundo. A mim já não adianta. Que vale o saber para quem não tem mais cabeça? O destino ofende-nos e zomba de nós, ao oferecer-nos presentes que não nos deu na hora certa. Não precisa de guia quem não pode andar. Basta-me agora a paciência. Para que uma voz magnífica se o cantor tem os pulmões afetados? E que fará com a eloquência um ermitão no deserto? Não há necessidade de arte para chegar ao fim; este vem sozinho. Meu mundo acabou; as pessoas de minha espécie desaparecem; pertenço por inteiro ao passado; não posso senão aprovar esse estado de coisas e adaptar-me a ele. Darei um exemplo. Essa inovação que suprimiu dez dias do ano ocorreu agora no fim de minha vida, num momento em que não posso acomodar-me a essa ideia. Sou de uma época em que contávamos o tempo de outro modo. Continuo preso a tão longo hábito, e incapaz de aceitar novidades mesmo se se destinam a corrigir erros. Permaneço algo cético. Minha imaginação, por maiores que sejam meus esforços, faz que me ache sempre com dez dias de avanço ou de atraso. Não para de murmurar-me aos ouvidos: "essa modificação somente diz respeito aos que não estão chegando ao fim". A própria saúde, quando por momentos a recupero, antes me aborrece do que alegra; não sei como aproveitá-la. O tempo abandona-me e sem ele nada possuímos. Nenhum apreço daria a essas grandes dignidades que só se conferem a quem se acha nas vésperas da morte; não se pensa então em como exercer o cargo, mas em quanto tempo se poderá exercê-lo: já ao assumi-lo temos que atentar para o momento de deixa-lo, Em suma, chego agora ao fim e não me sinto com disposição para mudar. Por efeito de um demorado uso, meu estado atual passou a fazer parte integrante de mim. Minha natureza está no que a sorte fez de meu ser. Digo portanto que, fracos como somos todos, podemos julgar-nos segundo o nosso estado habitual; além desses limites reina a confusão e não há como ampliar nossos direitos. Quanto mais aumentamos nossas necessidades e o que possuímos, tanto mais nos expomos aos golpes da sorte e da adversidade. A extensão de nossos desejos deve ser circunscrita e restrita de modo a só compreender as comodidades mais próximas de nós, as que nos são contíguas. E não deve prolongar-se em linha reta, mas em curva cujas extremidades se juntem em torno de nós, sem que se abra demasiado o círculo. Os atos que não se amoldam a essa orientação, a esse movimento essencial, a meu ver, como os do avarento, os dos ambiciosos e outros que se encarniçam atrás de uma ideia inalcançável, são atos doentios e prejudiciais. A maior parte das funções públicas tem algo de cômico, "todos representam", dizia Petrônio. Cumpre desempenhar devidamente seu papel, mas sem transformar a máscara e a aparência em realidade nem deixar que o estranho se encarne em nós. Não sabemos distinguir a pele da camisa. Basta enfarinhar o rosto, não é preciso mascarar igualmente o peito. Há quem mude e se transforme em outro ser segundo o cargo que assume; neste mergulham até o fígado e os intestinos e mesmo na privada agem como se estivessem no exercício de suas funções. Gostaria de ensinar-lhes a diferença r as saudações que se dirigem a suas pessoas das que visam o mandato, o séquito ou a mula que montam. "De tal modo se entregam à sua fortuna, que esquecem sua própria natureza"; incham e ampliam a alma e a razão para colocá-las à altura do assento que ocupam como magistrados. Montaigne prefeito e Montaigne simples particular sempre foram homens distintos, e nitidamente distintos. Não é por ser advogado ou financista que se há de ignorar o que tais profissões comportam de velhacaria; um homem de bem não é responsável pelos vícios ou tolices de seu ofício e não deve por isso recusar-se a exercê-lo, Está nos costumes do país e é de utilidade coletiva. E preciso viver no mundo e do mundo. Mas ajuízo de um imperador deve pairar acima do seu império, o qual ele deve encarar como um acidente alheio a si mesmo; e sua pessoa deve gozar de si própria à margem das suas funções e cumpre-lhe entreter-se consigo mesmo tal como o faria Pedro ou João. Não sei dar-me por inteiro, e quando minha vontade me induz a optar por um partido não crio obrigações que contagiem meu entendimento. Nas agitações que perturbam atualmente o país, meus interesses não me fazem desprezar as qualidades louváveis de meus adversários nem ignorar os defeitos de meus correligionários. Em geral adoram tudo o que fazem os seus; eu não desculpo sequer a maior parte do que perpetram os meus; uma obra não perde seus méritos só porque foi escrita contra mim. Salvo quanto à razão essencial do debate (pois sou e continuarei católico), mantenho-me equânime e indiferente: fora das exigências da guerra, não desejo nenhum mal a meus inimigos. E com isso me alegro, pois vejo comumente assumirem atitude oposta: "abandona-se à sua paixão quem não pode seguir a razão". Os que estendem seu ódio além da causa que o motiva, como costumam fazer os homens, mostram que defendem outra coisa e por razões de ordem pessoal. Assim quando a febre persiste após a cura de uma úlcera, tem-se a prova de que outra é a sua origem. Não se rebelam contra a causa porque ofende os interesses coletivos e do Estado, mas sim porque prejudica os seus próprios. Daí a animosidade pessoal, que ultrapassa o que normalmente se entende por justiça. Não concordavam todos em censurar todas as coisas, mas cada qual censurava o que o interessava pessoalmente. Eu desejo ganhar mas não perco o juízo se assim não ocorre. Ligo-me ao partido que sinceramente julgo o melhor, mas não procuro mostrar-me especialmente inimigo dos outros e não ultrapasso o que a razão determina. Profligo energicamente expressões como estas: Fulano é da Liga porque admira o Duque de Guise; Beltrano é huguenote porque adora o rei de Navarra; Sicrano é de coração um rebelde, pois critica os costumes do rei. Tampouco admito que um magistrado possa condenar um livro tão somente porque nele se menciona um herético como o melhor poeta do século. Pois não se há de poder dizer de um ladrão que tem a perna benfeita? E será obrigatório que uma mulher da vida cheire mal? Revogaram porventura, nos séculos em que reinava maior sabedoria, o título de Capitolino conferido a Marco Mânlio por ter salvo a religião e a liberdade? Esqueceram-se sua liberalidade, seus feitos guerreiros, as recompensas militares, quando mais tarde, pondo em perigo as leis de seu país, aspirou à realeza? E pelo fato de tomarmos ódio a um advogado, perde ele a eloquência no dia seguinte? Referi-me alhures ao zelo absurdo que leva certas pessoas honradas a tais excessos; eu direi sempre: "nisto conduziu-se bem; nisso, mal". Desejariam porém que, quando se verificam acontecimentos nefastos, cada qual, segundo seu partido, se tornasse cego e imbecil e os visse não como são mas como querem que sejam. Eu pecaria antes por exagero oposto, receoso sempre de que meus desejos não me influenciem. Demais, desconfio um pouco das coisas que ambiciono. Tenho visto fatos extraordinários que demonstram com que facilidade incompreensível os povos se deixam convencer e guiar pelos seus chefes quando se trata de crenças e esperanças; apesar das desilusões repetidas, são levados pela fantasia e o sonho. Não estranho por isso que as macaquices de Apolônio e de Maomé tenham seduzido tanta gente. A paixão sufoca inteiramente o bom senso e o julgamento; não distingue senão o que lhe apetece e lhe parece útil à causa. Já o observara no primeiro dos partidos que aqui se formou e foi tão exaltado; mas o que surgiu depois imita-o e o supera, o que me convence de que isso é defeito inerente aos erros populares. Após a primeira opinião dissidente, outras aparecem; semelhantes às vagas do mar, empurram-se mutuamente segundo a direção do vento. Não se pertence ao grupo, quando se é capaz de recusar a acompanhar o movimento. Mas acho que prejudica as causas justas defendê-las com dissimulações e mentiras; sempre reprovei esse procedimento recomendável apenas para os que não têm a cabeça em bom estado. Com os sãos há meios não somente mais honestos, como também mais eficientes para levantar o ânimo e atenuar os efeitos das ocorrências desfavoráveis. Não viu o céu, nem verá jamais, dissensão tão grave como a que se verificou entre César e Pompeu; parece-me entretanto observar nessas duas belas almas uma grande moderação na apreciação recíproca. Sua rivalidade em relação às honras e ao poder não os levou a um ódio furioso e desumano. Não houve maldade nem difamação. Nos seus atos mais violentos, deparamos com um resto de respeito e generosidade. E creio que ambos desejariam, se possível fosse, vencer sem destruir o outro. Bem diferente é o caso de Mário e Sila. Não nos devemos aferrar tão loucamente a nossas afeições e interesses. Na minha juventude combatia o amor quando o julgava exagerado e procurava torná-lo menos agradável, a fim de que não acabasse por me dominar inteiramente. E o mesmo faço nas demais ocasiões em que alguma paixão me acomete. Esforço-me por agir em sentido contrário de minha inclinação; e evito satisfazê-la a ponto de não a poder mais controlar sem graves danos. Os que por estupidez só veem as coisas pela metade têm a felicidade de se sentir menos molestados. É uma espécie de insensibilidade cujos efeitos se assemelham aos da saúde, e por isso não a desprezam de todo os filósofos. Não basta, entretanto"para que a qualifiquemos de sabedoria, como costumamos fazer. Em pleno inverno, Diógenes abraçava, nu, uma estátua de neve como exercício de resistência à dor. "Estais com muito frio", disse-lhe alguém. "Nem um pouco", respondeu o filósofo. "Pois então", retorquiu o outro, "que dificuldade há em fazer o que fazes, e que exemplos pensas dar?" Para medir nossa resolução, é-nos indispensável conhecer o grau de sofrimento que podemos suportar. Os que são capazes de prever os sucessos contrários e as injúrias da sorte em toda a sua profundidade e aspereza, devem procurar evitar suas causas. Assim fez o Rei Cótis. Pagara generosamente uma vasilha riquíssima e belíssima mas extremamente frágil; quebrou-a por isso propositadamente, para não ter a oportunidade de se irritar contra um servidor. Eu também sempre me esforcei por não possuir terras contíguas às de parentes ou amigos, porquanto são em geral causa de discórdias. Apreciava outrora os jogos de azar, de cartas ou dados; renunciei há muito porque, por bom perdedor que me mostrasse, sentia interiormente uma viva contrariedade. Um homem de honra, que um desmentido ou uma injúria atingem profundamente, que não se consola com uma má desculpa, deve evitar de se imiscuir em questões escusas e discussões suscetíveis de degenerar em conflito. Fujo dos temperamentos tristes, das pessoas rabugentas, como fujo dos pestíferos. E a menos que o dever me obrigue, não me meto em discussões acerca de assuntos que me interessam e comovem: "É mais fácil não começar do que parar". O mais seguro é preparar-se para o que der ou vier. Bem sei que alguns sábios agiram de outra maneira e não hesitaram, em diversas circunstâncias, em se pegarem a fundo; mas são gente de grande resolução, muito seguros de sua força e capazes de opor ao mal uma paciência a toda prova: "qual um rochedo que isolado no meio do oceano suporta a fúria do vento e das ondas, e, desafiando as ameaças e as forças do céu e do mar conjugados, permanece inabalável". Não imitamos esses exemplos; não o poderíamos. Esses sábios tiveram mesmo a força de assistir sem se perturbarem à ruína de seu país, ao qual haviam subordinado sua vontade e seus interesses; mas para nossas almas vulgares um tal esforço é excessivo. Catão sacrificou-lhe a mais bela vida que se conhece; mas nós, que não somos de igual estatura, temos de fugir à tempestade e agir de acordo com nosso instinto em lugar de nos resignarmos. Precisamos esquivar os golpes que não estamos em condições de sustar. Zenão, ao ver Cremônides, a quem amava, aproximar-se, ergueu-se imediatamente. Perguntou-lhe Cleantes por que o fizera. E respondeu Zenão: porque os médicos ordenam repouso e proíbem as emoções. Sócrates não diz: "não cedas à atração da beleza; enfrenta-a e resiste". Ele diz: "Foge, esconde-te dela; evita-a como a um veneno violento que age de longe". O melhor de seus discípulos imaginando, ou contando (o que me parece mais certo), os feitos do grande Ciro, diz que esse príncipe, receoso de sucumbir ante a beleza da divina Pântea, sua escrava, encarregou alguém menos independente do que ele, de vigiá-la e visitá-la. E nos ensina o Espírito Santo: "Não nos deixeis cair em tentação". Não rezamos para que a concupiscência não vença a nossa razão e sim para que não tente sequer lutar, para que não nos encontremos em situação de suportar-lhe a presença, as solicitações e os convites ao pecado; suplicamos ao Senhor que mantenha nossa consciência tranquila, livre de qualquer comércio com o mal. Os que afirmam ter triunfado do desejo de vingar-se ou de qualquer outra paixão difícil de dominar, dizem por vezes a verdade, mas referem-se às coisas como são e não como foram. Falam do que é quando as causas de seus erros já se acham enfraquecidas pelo tempo; mas volte-se atrás, tomem-se as causas em sua origem, não saberão que dizer. Não é menor a falta por ter envelhecido, nem de um começo injusto pode decorrer um justo fim. Os que como eu desejam o bem de seu país, mas sem se atormentar até o desespero, podem sentir-se contrariados mas não aniquilados ao vê-lo ameaçado de ruína ou de desordem prolongada. Pobre nave que as ondas, os ventos e o piloto dirigem com desígnios contraditórios! Quem pode dispensar os favores dos príncipes e não os ambiciona não se aborrece com a acolhida fria, a fisionomia carregada ou a inconstância do soberano. Quem não se faz escravo dos filhos ou das honrarias não deixa de viver comodamente em os perdendo. Quem faz o bem em vista de sua própria satisfação, não se irrita se não lhe apreciam devidamente o gesto. Um quarto de onça de paciência remedeia a tais inconvenientes. Dou-me bem com essa receita; permite-me resgatar minha sensibilidade de outrora pelo menor preço, por essa insensibilidade atual que procuro ampliar quanto possível, pois com isso evito muitas penas e dificuldades. Com pequeno esforço corto de imediato qualquer emoção que principie a me agitar; abandono-a, e antes que me pese demasiado. Quem não susta a partida não impede a corrida; quem não sabe fechar a porta às paixões, não as pode expulsar depois de entrarem; quem não as liquida de início não as domina ao fim; quem não prevê o abalo do prédio não lhe evita a queda: "pois desde que nos afastemos da razão, brotam sozinhas as paixões; a fraqueza humana compraz-se em não lhes resistir, e insensivelmente vemo-nos, em virtude de nossa imprudência, arrastados para o alto-mar, sem abrigo a nosso alcance". Sinto em tempo útil as brisas precursoras da tempestade virem ratear-me e murmurar ao redor de mim, "assim o vento, fraco ainda, agita a floresta; freme e seus mugidos surdos anunciam ao nau ta a aproximação da borrasca"! Quantas vezes não aceitei uma injustiça evidente, a fim de evitar coisa pior da parte dos juízes após um século de aborrecimentos, de gestões humilhantes e aviltantes, que muito mais pesariam a meu temperamento do que a Geena e o fogo! "Deve-se tudo fazer - e mais alguma coisa - para evitar um processo, pois é não somente honroso como também proveitoso abrir mão de algum direito.? Se fôssemos avisados, deveríamos regozijar-nos com a perda de um processo, como vi fazê-lo de uma feita a um jovem de boa estirpe, o qual a todos se vangloriava de ter sua mãe perdido o seu, como se se tratasse da tosse ou da febre, ou outra coisa desagradável. Os próprios favores que me outorgou o destino, parentes e relações influentes, sempre busquei não os utilizar contra os interesses alheios, a fim de conseguir que se reconhecessem meus direitos por outras razões que não as do mérito da causa. Em suma, empregando bem meu tempo, estou ainda virgem de processos, muito embora mais de uma vez tenha tido motivos para recorrer aos tribunais; não tive tampouco até hoje nenhuma querela. Eis-me chegando ao fim de uma longa vida sem jamais ter ofendido gravemente alguém, nem nunca ter sido ofendido, nem jamais ouvido juntar-se a meu nome algum epíteto destoante. É sem dúvida uma graça dos céus. Os grandes abalos das sociedades humanas têm origens ridículas. Quantas desgraças se abateram sobre o último duque de Borgonha por causa de uma partida de peles de carneiro! Não foi a legenda de um selo a causa inicial do mais tremendo transtorno verificado na estrutura da República romana? Pois Pompeu e César são apenas a consequência das lutas entre Mário e Sila. Em nossos dias, foi-me dado ver reunidos, à custa do tesouro, os homens mais sábios do reino para assinarem tratados e acordos cujas cláusulas tinham sido estabeleci das não raro no toucador de alguma mulher insignificante, ao sabor de seus caprichos. Bem o compreenderam os poetas que puseram a Grécia e a Ásia a fogo e sangue por causa de uma simples maçã. Indagai dos motivos que levam tal ou qual indivíduo a jogar a honra e a vida na ponta de um punhal: não os dirá sem corar, a tal ponto serão vãos e frívolos. A princípio basta um pouco de prudência para que evitemos uma questão; uma vez embarcados nela, sacodem-nos as cordas todas do litígio. Surgem então as dificuldades. Muito mais cômodo é não entrar do que sair! Há que agir ao contrário da cana, a qual de início deita um talo reto e longo, mas em seguida, como se houvesse perdido a força, vai formando nós que assinalam as pausas do crescimento. É melhor começar devagar e prudentemente, conservando o fôlego e reservando o impulso mais vigoroso para o momento em que for mais necessário. Orientamos as coisas em seu começo como melhor nos apraz, mas quando se põem em movimento arrastam-nos com elas. Não direi, entretanto, que esse procedimento me tenha poupado quaisquer aborrecimentos e que não precisei muitas vezes reprimir com grande esforço minhas paixões. Nem sempre se governam como fora desejável; não raro mesmo atuam com violência e aspereza. Como quer que seja, a tática é boa e dá-nos algum alívio e alguma vantagem, salvo aos que não desejam vantagem que não acarrete com ela a estima alheia. É que, com efeito, quem se retira da dança antes de nela entrar, pode viver mais contente mas não adquire uma reputação especial. Acrescentarei ainda que nisso, como em tudo, o caminho dos que visam unicamente às honrarias é bem diferente do que seguem os que atendem aos ditames da ordem e da razão. Há quem se arroje inconsideradamente à corrida, mas logo diminui o passo. Plutarco afirma que aqueles que por falsa vergonha cedem e facilmente concordam com o que lhes pedem, são mais tarde impelidos a faltar com a palavra. Assim também ocorre com os que tomam partido levianamente; saem da contenda não menos irrefletidamente. A mesma dificuldade que sinto em me enredar numa disputa, leva-me a persistir uma vez enredado. O que fazem está errado, pois quando se começa deve-se ir até o fim, embora se corra o risco de cair no caminho. "Empreende com frieza", dizia Bias, "e prossegue com ardor." A carência de prudência conduz à carência de ânimo, o que é pior ainda. Em sua maioria os acordos com que hoje pomos fim a nossas dissensões são vergonhosos e hipócritas; procuramos apenas salvar as aparências e por isso traímos e negamos nossas verdadeiras intenções. São remendos o que fazemos. Sabemos em que circunstâncias falamos, o sentido que deve ser dado às nossas palavras; sabem-no também os assistentes, como o sabem igualmente os amigos perante os quais quisemos engrandecer-nos. De forma que é a expensas da nossa fraqueza, de nossa honra e de nossa coragem que negamos nosso pensamento; e buscamos as escapatórias da falsidade para alcançar o acordo. Desmentimo-nos a nós mesmos para destruir o efeito de um desmentido dado a outrem. Não devemos indagar se nossos atos ou palavras podem interpretar-se desta ou daquela maneira; é o sentido verdadeiro que cumpre manter e defender a qualquer preço. Trata-se de virtude e consciência, o que não devemos mascarar; cabenos deixar tão vis subterfúgios aos chicanistas dos tribunais. As desculpas e explicações que damos de gestos indiscretos ou de palavras inoportunas parecem-me mais detestáveis do que os próprios gestos e palavras. Melhor seria ofender novamente o adversário do que se ofender a si próprio em se humilhando diante dele. Vós o desafiastes sob o impulso da cólera, e de sangue-frio procurais apaziguá-lo e lisonjeá-lo! Dessa maneira retrocedeis mais do que avançastes. Nada se me afigura mais vergonhoso para um fidalgo do que se desdizer em consequência de alguma imposição, mesmo porque a obstinação é defeito menor do que a pusilanimidade. É-me mais fácil evitar as paixões do que moderá-las; antes arrancá-las da alma do que as dominar. Quem não pode alçar-se à nobre impassibilidade dos estoicos deve apelar para a estupidez vulgar, essa que me induz a fazer por temperamento o que faziam eles por virtude. A meia altura reinam as tempestades; mais alto e mais baixo, filósofos e campônios encontram a serenidade e a felicidade. Feliz o sábio que chega a conhecer as razões de todas as coisas; isento de medo, calca aos pés o inexorável destino e despreza os fragores do Aqueronte... Feliz também o que conhece as divindades campestres: Pã, o velho Silva no e a amável família das Ninfas. Todas as coisas são débeis e frágeis ao nascer; eis por que cabe atentar para esse momento, pois enquanto pequenas não se percebe o perigo que correm e, quando crescidas, não se encontra o remédio para seus males. Menos difícil me foi sofrear minha tendência natural para a ambição do que me houvera sido vencer os mil percalços que teriam decorrido de minha fraqueza. "Com razão sempre tive horror a erguer a cabeça acima dos outros." Os atos públicos estão sujeitos a interpretações diversas e imprevisíveis; há juízes demais para os julgar. Certas pessoas, referindo-se à minha ação como prefeito de Bordéus (agrada-me dizer alguma coisa a esse respeito, não pela importância da coisa, mas como exemplo de minha maneira de ser), acham que me conduzi como alguém que não se apaixona bastante; não estão muito longe da verdade. Procuro manter serenos meu coração e meu espírito, sempre naturalmente calmo, hoje o sou ainda mais em consequência da idade, e se por vezes se desregram ante uma impressão mais rude e aguda, a culpa não cabe à minha vontade. Dessa apatia tempera mental não se deduza qualquer incapacidade (falta de aplicação e carência de bom senso são coisas diversas) e menos ainda qualquer ingratidão para com esse povo, que, antes de me conhecer, e depois igualmente, me deu a maior prova de confiança a seu alcance, elegendo-me e confirmando-me no cargo. Quero-lhe todo o bem do mundo, e se tivesse tido alguma oportunidade não a houvera poupado para servi-lo. Esforcei-me por ele como o faria por mim. E um bom povo, guerreiro, generoso e contudo capaz de disciplina e de bem agir quando convenientemente dirigido. Dizem também que minha administração passou em branca nuvem. Que tolice! Criticam minha inatividade em um momento em que se censuram os outros por fazerem demais! Ajo com energia e rapidez quando meu entusiasmo me impele, mas careço de perseverança. Quem quiser tirar partido de mim, levando em conta minha natureza, deverá empregar-me em questões exigentes de vigor e liberdade de ação; questões honestas que possam ser resolvidas prontamente e mesmo que dependam algo do acaso. Mas se a coisa exige tempo, sutileza, trabalho, malícia, que se dirija a outro. Os cargos importantes não são todos, em si mesmos, de difícil desempenho. Eu estava disposto a trabalhar um pouco mais que de costume, se absolutamente necessário, pois sou capaz de fazer mais do que faço ou gosto de fazer. Nada deixei de lado, creio, daquilo que o dever impunha. Mas esqueci os gestos e os feitos que a ambição dita e qualifica como deveres. Ora são exatamente os que impressionam e satisfazem os homens; o que estes apreciam são as aparências; se não ouvem nenhum ruído imaginam que dormimos. Por temperamento não gosto de barulho; poderia reprimir quaisquer agitações sem me agitar e punir a desordem sem me exaltar. Se tenho necessidade de me mostrar encolerizado, faço de conta que o estou, uso máscara, pois tenho antes tendência para a cordura do que para a violência. Não criticarei um magistrado por dormir, se os que administra também dormirem; é o que determinam as próprias leis. Agrada-me uma vida fácil, obscura, discreta, "igualmente afastada da baixeza e do orgulho": deu-ma o destino. Nasci em uma família que viveu sem brilho nem tumulto e que desde sempre se revelou sedenta de retidão e honestidade. A gente de hoje está tão afeiçoada à agitação e à ostentação, que a bondade, a moderação, a cor dura, a constância e outras serenas qualidades não lhe apetecem. Os corpos ásperos impressionam o tato; os lisos deixam-se manusear sem que os percebamos. Sente-se a doença; não a saúde, ou muito pouco, como não sentimos o que nos agrada e sim o que nos oprime. Age mais em prol de sua reputação que do bem coletivo, quem difere o que poderia fazer na reunião do conselho para fazê-lo em público, ou ao meio-dia o que poderia ter realizado na noite anterior, ou pessoalmente o que esteja ao alcance de qualquer um. Assim agiam na Grécia certos cirurgiões que executavam suas operações à vista do público, a fim de atrair maior número de clientes. Só julgam boas as ordenações publica das com alarde. A ambição não é um vício de gente comum; exige esforços acima de nossas possibilidades. Diziam a Alexandre: "Vosso pai vos legará um grande Estado pacificado e fácil de se governar", mas o jovem invejava as vitórias do pai e o seu espírito justiceiro. Não quisera usufruir tranquilamente o império do mundo. Alcibíades, em Platão, observa que preferiria morrer jovem, belo, rico, nobre, sábio e em tudo alcançar a perfeição, a viver muito tempo nas condições em que se encontrava. Essa doença é sem dúvida desculpável em um temperamento forte e grande como o seu, mas essas almas minguadas e doentias que se iludem acerca da possível celebridade de seu nome, somente porque souberam julgar ou defender a cidade, revelam tanto mais fraqueza quanto mais pensam engrandecer-se com isso. Por úteis que sejam, esses atos insignificantes não têm consciência nem vida; o primeiro que a eles se refere já os atenua e mal se comunicam de uma esquina a outra. Há quem chegue a proclamá-los ao próprio filho ou aos criados, como aquele cidadão que, não tendo ninguém para dar ouvidos às lisonjas que dispensava a si mesmo, se vangloriava diante da camareira: "O Perrette, que homem admirável tens por patrão!" Na pior das hipóteses resta ainda o recurso de falar com seus botões, como certo cavalheiro que, tendo desembuchado grande quantidade de comentários jurídicos extremamente sutis e ineptos, foi ouvido a murmurar para si mesmo, convictamente, entre a sala do conselho e o mictório: "não a mim, Senhor, não a mim, mas a vós é que cabe a glória". Em suma, outorgam-se a si mesmos os louvores que não conseguem receber de outrem. A fama não se prostitui tão facilmente; os atos raros e exemplares que a conferem não suportam a companhia dessa multidão de pequenas ações cotidianas. O mármore poderá exaltar-vos por terdes ordenado que se erguesse um pedaço de muro, ou se limpasse um esgoto, mas os homens de bom senso não vos recordarão. A glória não é forçosamente a consequência de uma coisa útil; cumpre ainda que essa coisa seja excepcional e difícil. Os estoicos não admitiam sequer que um ato não particularmente virtuoso merecesse consideração; não queriam que se estimasse quem, por continência, se abstivesse de cortejar alguma velha remelenta. Entre os que estão a par das admiráveis qualidades de Cipião, o Africano, há quem lhe recuse os elogios que lhe conferia Panécio, e isso porque julga que a generosidade não era uma qualidade dele e sim inerente ao próprio século em que viveu. Nós nos beneficiamos dos prazeres do meio em que a sorte nos colocou; não usurpemos o prazer da grandeza. São, os nossos, tanto mais sólidos e seguros quanto menos elevados. Se não por convicção, ao menos por respeito humano rechacemos a ambição; desdenhemos esse apetite vil e vergonhoso de reputação e honrarias que nos impele a mendigá-las e a recorrer aos meios mais baixos e onerosos para alcançá-las. E desonroso ser honrado em tais condições: Que valem essas lisonjas que se adquirem no mercado? Aprendamos a não ser mais ávidos de glória do que a podemos merecer. Jactar-se de um ato útil e inócuo é peculiar aos que o encaram como raro e extraordinário, porque o avaliam pelo preço que pagaram. Quanto mais brilhante me parece um feito a que assisto, tanto mais o rebaixo, desconfiado de que se executou em vista da reputação a ser auferida e não em consequência da grandeza de alma do autor. Exibido assim em público, perde metade de seu valor. Os atos mais belos são os que escapam sem ruído das mãos de quem os executa, e que um dia algum homem de bem recolhe e realça, dando-lhes o valor que merecem. Acho mais digno de elogios o que se faz sem ostentação e longe dos olhos do povo, disse o homem mais vaidoso do mundo. Como prefeito, cabia-me apenas conservar e continuar, o que é possível sem ruído e sem que o percebam. As inovações ressaltam naturalmente, mas não são recomendáveis em épocas como a nossa em que temos sobretudo que nos defender contra as novidades. Abster-se de fazer é por vezes tão meritório como fazer; mas isso dá menor relevo e o pouco que valho está nesse caso. Em suma, as oportunidades que se me apresentaram ajustaram-se quase todas a meu temperamento; felizmente. Pois haverá quem deseje ficar doente só para ver como se conduzirá o médico? E não se deveria açoitar o profissional que aspirasse a ver-nos com peste para experimentar suas drogas? Não tive a preocupação iníqua, e assaz frequente, de desejar que os negócios de minha cidade se perturbassem a fim de valorizar meu governo; antes regozijei-me com sua normalidade. Quem não queira louvar-me pela ordem e tranquilidade que reinaram na minha gestão, não me negue ao menos o favor da sorte. Tanto aprecio ser feliz como ser sábio e quero dever meu êxito antes às mercês de Deus do que à minha atividade. Tornei conhecido de todos a minha incapacidade para a coisa pública; acrescento que tenho algo mais grave: comprazo-me nessa incapacidade e, em razão do gênero de vida que escolhi, não aspiro a remediá-la. Não tirei desse cargo qualquer satisfação pessoal, mas quase cheguei ao que me propusera e fiz muito mais pelos outros do que prometera, porquanto em geral prometo muito menos do que posso dar. Estou convencido de que não ofendi ninguém nem provoquei ódios. Quanto a ser lembrado com saudade, sei que não o tentei; não estava em minha intenção: Fiar-me desse monstro? Entregar-me à falsa serenidade dessas pérfidas ondas? CAPÍTULO XI DOS COXOS Faz dois ou três anos que foi o ano diminuído de dez dias, em França. Quantas mudanças deviam resultar da reforma! Era, no fundo, revolver céus e terra! No entanto, nada aconteceu; meus vizinhos continuam a semear, a colher e a vender; os dias propícios e os aziagos existem como sempre existiram. Nossos hábitos não se ressentiam do erro, como não se ressentem agora da correção, tão grande é a incerteza de tudo, tão grosseira é a nossa compreensão das coisas; e tão obscura e obtusa. Dizem que o problema podia ter sido resolvido de maneira menos incômoda, como o fez Augusto, cortando nos anos bissextos durante o tempo necessário ao reajuste. Por não o terem feito assim, estamos ainda adiantados de alguns dias. Entretanto, o meio permanece ao alcance de nossa vontade no futuro. De tantos em tantos anos, esse dia será simplesmente suprimido de modo que o erro não poderá doravante sobre exceder vinte e quatro horas. Não temos senão os anos como medida de tempo e há séculos vem-na empregando o homem. É, no entanto, uma medida que ainda não acabamos de determinar e continuamos em dúvida acerca das diversas formas que lhe dão os outros povos, bem como das razões com que as justificam. Há quem diga que, na proporção em que vamos envelhecendo, os céus se abaixam e nos impedem a determinação exata dos dias e até das horas! Plutarco chega a afirmar que em seu tempo a astronomia não conseguira ainda descobrir o movimento da lua. Eis-nos bem informados a respeito dos sucessos do passado! Estava a meditar, há pouco, como faço amiúde, sobre a vagueza e a disponibilidade desse instrumento mal regulado que é a razão humana. Vejo comumente que os homens, em lugar de atentar para a realidade dos fatos, se divertem com lhes buscar as causas. Passam por cima dos antecedentes e atêm-se a examinar minuciosamente as consequências. Deixam as coisas e correm às causas. Mas o conhecimento das causas cabe apenas aos que conduzem as coisas e não a nós que nos limitamos a percebê-las, que as usamos segundo as nossas conveniências, sem a necessidade de saber-lhes a origem e penetrar-lhes os princípios. É o vinho mais agradável a quem sabe como se fabrica e de onde vem? Ao contrário, o corpo e a alma alteram o direito que têm ao uso do mundo e de si, quando lhe agregam as opiniões da ciência. Os efeitos afetam-nos, os meios não. Determinar e distribuir são funções de quem dirige e ensina; ao aprendiz e ao dirigido cabe aceitar. Ao ouvir falar de alguma coisa, começa-se por indagar: "como é?" Dever-se-ia dizer: "antes de mais nada, é?" Nosso raciocínio é capaz de reconstruir um mundo como o nosso e descobrir-lhe os princípios e a organização; não precisa para tanto nem de base nem de materiais; basta-lhe deixar-se levar, "hábil que é em dar um corpo à fumaça". Constrói tão bem sobre o vazio como sobre o cheio, com nada como com alguma coisa. Acho que de quase tudo deveríamos dizer: "isto não é". Daria amiúde tal resposta se ousasse; mas logo proclamam que falar dessa maneira denota ignorância e fraqueza de espírito e tenho, a maior parte do tempo, que representar em companhia dos outros e conversar sobre assuntos frívolos a que não dou fé. Sem contar que é em verdade algo grosseiro e peculiar ao espírito de contradição negar categoricamente um fato que nos afirmam. Tanto mais quanto poucas pessoas deixam de insistir em que o viram, indicando testemunhas autorizadas; principalmente quando o fato é pouco digno de crédito. Disso resulta conhecermos as causas e os efeitos de mil coisas que nunca existiram, e discutirem os indivíduos acerca de assuntos em que o pró e o contra são igualmente falsos: O falso aproxima-se tanto do verdadeiro, que o sábio não deve enveredar por tão perigoso desfiladeiro. Verdade e mentira têm igual fisionomia; vemo-las com os mesmos olhos. Não somente nos mostramos covardes e nos defendemos com tão pouco ardor contra a impostura, como ainda nela chafurdamos; apraz-nos emaranhar-nos em vaidade, como se ela fizesse parte de nosso ser. Vi nascerem vários milagres. Embora morram em embrião, não deixamos de prever o rumo que teriam tomado se houvessem sobrevivido, pois pela ponta do fio se deslinda a meada. Os primeiros que se metem a narrar histórias extraordinárias compreendem, pela oposição encontrada, qual o ponto fraco e o sustentam desde logo com alguma falsa prova. Demais, como os homens têm tendência para espalhar rumores falsos, acho certo dar a outros o que recebemos, sem nenhuma usura, acrescentando-lhe mesmo alguma coisa a mais. O erro individual forma o erro público, o qual, por sua vez, cria o erro individual. Assim, vai-se a coisa enraizando, de mão em mão, a ponto de cada nova testemunha se achar mais bem informada do que a precedente, e a última mais convencida do que a primeira. E uma progressão natural; quem quer que acredite em alguma coisa, considera obra convencer a outrem; e para tanto não hesita em ampliá-la e melhorá-la, na medida em que julga necessário para triunfar da falta de fé alheia. Eu mesmo, que tenho exagerado escrúpulo em mentir e não me preocupo com impor o que digo, verifico que, no calor da discussão, alteio a voz, amplio os gestos, acentuando e fortalecendo minhas expressões, não sem dano para a verdade inicial. Entretanto, se alguém me chama à ordem e exige a verdade nua e crua, logo a exponho sem ênfase nem comentário. Uma linguagem viva e ruidosa como a minha facilmente se inclina para a hipérbole. Em geral os homens gostam acima de tudo de propagar suas ideias e quando carecem dos meios habituais, juntam-lhes o mando, a força, o ferro e o fogo. E lamentável que a maior prova da verdade de alguma coisa esteja no número de pessoas que nela acreditam, quando nesse mesmo número se incluem tantos loucos e tão poucos sábios. Como se nada fosse mais comum do que a ausência de bom-senso. Uma multidão de loucos, bela garantia para a sabedoria! É difícil contrariar as opiniões aceitas por todos. A princípio persuadem-se os simples de espírito; depois, a autoridade do número e a antiguidade dos testemunhos convencem os espíritos mais abertos. Eu, porém, se não acredito no que me diz uma pessoa, não me convenço tampouco se mo dizem cem. Nem o julgo pela idade. Não faz muito, um de nossos príncipes, vítima de uma crise de gota que lhe abatera o bom senso natural e a saúde vigorosa, deixou-se persuadir da autenticidade dos milagres terapêuticos de um padre que, com palavras e gestos, curava todas as doenças. Fez então uma longa viagem para vê-lo. O padre, pelo efeito da sugestão, conseguiu extirpar-lhe a dor por algumas horas, de modo que o príncipe nesse intervalo pôde servir-se de suas pernas como não o podia fazer há muito tempo. Se o acaso houvesse provocado cinco ou seis aventuras do mesmo gênero, já se teria proclamado a realidade do milagre. Verificou-se, entretanto, que quem obtinha tais resultados agia com tamanha simplicidade e tão pouca malícia que não se julgou, sequer, conveniente processá-lo. Idênticas conclusões se tirariam de outros casos semelhantes, se examinados cuidadosamente. Admiramos as coisas que iludem porque se encontram longe de nós. Assim nossa vista descobre imagens longínquas que se afiguram estranhas e se reduzem a nada ao nos aproximarmos delas: "Nunca a fama corresponde à verdade." É espantoso verificar como certas lendas muito espalhadas têm origens tão frívolas e causas tão insignificantes. É mesmo o que nos impede de nos informarmos melhor, pois, buscando causas e fins grandes, graves e dignos de tal renome, escapam-nos os verdadeiros em sua pequenez. Nessas investigações requer-se um pesquisador prudente, atento, sutil e isento de preconceitos. Até hoje os sucessos estranhos esconderam-se de mim, e em matéria de monstros e de milagres bem caracterizados s6 conheço a mim mesmo. Com o hábito e o tempo, familiarizamo-nos com tudo o que é estranho; apesar disso, quanto mais me analiso e conheço, tanto mais minha deformidade me espanta e menos eu me compreendo. É principalmente no acaso que se acham a causa e a explicação dos milagres. Passando anteontem por uma aldeia a duas léguas de casa, dei com a notícia de um milagre que acabara de abortar. Há meses o caso interessava a vizinhança, e das províncias mais próximas acorriam magotes de pessoas de todas as condições. Para divertir-se um jovem da aldeia pusera-se a fingir de alma do outro mundo, e tendo tido certo êxito na brincadeira a ela associaria uma rapariga simplória e mais um rapaz igualmente simples de espírito. Em seguida, transformando a prédica doméstica em prédica pública, esconderam-se sob o altar da igreja, revelando-se somente à noite e proibindo que acendessem luzes. Das palavras em prol da conversão e das ameaças do Juízo Final (coisas que, por sua autoridade e respeitabilidade, sempre escondem melhor a impostura), passaram a aparições, mas tão ingênuas e absurdas que mais pareciam divertimentos de crianças. Entretanto, se a sorte os houvesse favorecido, até onde os teria levado a farsa? Os pobres-diabos estão agora na cadeia e sofrerão os castigos que deveriam recair sobre a estupidez coletiva; e não sei se algum juiz se vingará neles de sua própria tolice. Neste caso, tendo a impostura sido descoberta, tudo se esclarece, mas em numerosos casos análogos, cujas causas escapam a nosso conhecimento, acho que devemos suspender nosso juízo, a favor ou contra. Muitos abusos se engendram no mundo (talvez todos) do fato de nos ensinarem a não manifestarmos nossa ignorância e a aceitarmos o que não podemos refutar. De tudo falamos por preceitos e convicção. Era de praxe em Roma que as deposições das testemunhas e as decisões dos juízes assim se iniciassem: "Parece-me que..." Eu chego a odiar as coisas verossímeis se me são apresentadas como infalíveis, e prefiro as expressões que atenuam a audácia da proposição, como, por exemplo: "Talvez, até certo ponto, dizem, penso", e outras do mesmo gênero. Se tivesse tido de educar crianças, eu as houvera habituado às dúvidas e não às afirmações. Diriam: Como? Não sei, pode ser, será? Assim mais pareceriam aprendizes aos sessenta anos do que doutores aos dez, como acontece hoje. Quem deseja curar-se de sua ignorância precisa confessá-la. Íris é filha de Taumante, a admiração é a base de toda a filosofia; a investigação é a fonte do progresso; a ignorância um obstáculo intransponível. E, no entanto, existe certa ignorância forte e generosa que do ponto de vista da honra e da coragem nada fica a dever à ciência. E há tanta ciência em conceber essa ignorância como em conceber a própria ciência. Corras, conselheiro em Tolosa, publicou um resumo do estranho processo de dois indivíduos que se faziam passar um por outro. Lembro-me (somente disso, aliás) que considerara a impostura daquele a quem se julgou culpado tão maravilhosa, tão acima da nossa possibilidade (e a do juiz) de entender, que me pareceu excessiva a condenação à morte, do réu. Deveríamos admitir uma sentença concebida nestes termos: "O tribunal não compreende nada neste caso". Seria ainda mais livre e sincero do que o que faziam os juízes do Areópago, os quais, quando deviam pronunciar-se acerca de uma causa que não conseguiam esclarecer, determinavam às partes que voltassem cem anos depois. As feiticeiras de minha terra correm risco de morte desde que alguém afirme que os sonhos delas se realizaram. Nossos livros sagrados, que reproduzem a palavra divina, encerram também predições semelhantes (certas e irrecusáveis): para aplicá-las aos acontecimentos atuais, como não lhes distinguimos as causas e não sabemos de que maneira se realizarão, é necessário uma inteligência superior à nossa, e talvez não caiba senão a esse onipotente testemunho esclarecer-nos e dizer-nos: a tal sucesso e não a tal outro, isto se aplica. Devemos acreditar em Deus, mas não em qualquer pessoa que se maravilha com sua própria narrativa (e naturalmente se maravilha quando o acontecimento ultrapassa o alcance de nossos sentidos) tanto dos fatos imputados a outrem como dos que atribui a si mesmo. Sou pesado de espírito e atenho-me ao que tem consistência e é plausível, evitando, a propósito, o defeito já assinalado pelos antigos: "os homens são induzidos a acreditar no que não compreendem; o espírito humano inclina-se a crer mais facilmente no que é obscuro". Bem vejo que se irritam e me proíbem a dúvida sob pena das piores injúrias; é um novo método de persuasão. Mas graças a Deus não será a socos que me hão de impor uma orientação. Compreendo que aqueles cuja opinião é tachada de falsidade se revoltem contra a apreciação; quanto a mim, quando não aprovo uma ideia, satisfaço-me com achá-la ousada e dificilmente aceitável. Como todo mundo condeno as afirmações contrárias às minhas, mas em tom que nada tem de agressivo. Quem, para provar o que sustenta, se revela arrogante, mostra que a razão não é seu forte. Enquanto se trata de uma simples discussão a respeito de palavras, como se verifica nas escolas, os argumentos recíprocos podem apresentar a mesma aparência de verdade, conquanto discutam e não afirmem, mas quando se trata dos efeitos que decorrem delas, os que se conservam calmos levam vantagem. Para chegar a matar as pessoas acusadas de feitiçaria, é preciso possuir uma ideia bem nítida dos erros que lhes são imputados; a vida humana é uma realidade demasiado indiscutível para que se dê como garantia os fatos sobrenaturais e fantasistas que se lhe atribuem. Não me refiro aqui aos que empregam drogas e venenos; são homicidas da pior espécie; e, no entanto, mesmo nesses casos, não devemos confiar sempre em suas confissões; já se viu quem confessasse ter matado pessoas que continuam vivas. Quanto às acusações extravagantes que se verificaram contra os pretensos feiticeiros, direi que já é muito acreditar-se em quem diz coisas normais e naturais, e que não devemos dar fé a quem conta o que não podemos entender, a menos que haja recebido dos céus a missão de contá-las. Esse privilégio que aprouve a Deus conceder a alguns de nossos testemunhos, cumpre não envilecê-lo comunicando-o levianamente. Doem-me os ouvidos de tanto escutar: "três pessoas viram-no tal dia do lado do nascente; três outras do lado do poente; a tal hora, em tal lugar, estava assim vestido". Por certo eu não acreditaria sequer em mim mesmo. Acho muito mais natural que dois homens mintam do que passar um só do Oriente ao Ocidente em doze horas, levado pelo vento; e mais natural também que nosso juízo se perturbe arrastado por um turbilhão de ideias, do que um indivíduo como nós, em carne e osso, voar numa vassoura ou descer pela lareira por se ter algum espírito estranho apoderado dele. Não procuremos ilusões que venham de fora e nos sejam desconhecidas, quando já andamos perpetuamente agitados pelas que nos são próprias e existem em nós. Parece-me que é desculpável não crer em milagres desde que os possamos desmascarar e explicar de maneira plausível; e sou da opinião de Santo Agostinho, de que mais vale inclinar-se para a dúvida do que para a certeza, em tudo o que se apresenta dificilmente provável. Há alguns anos passei pelas terras de um príncipe soberano, o qual, a fim de esmagar minha incredulidade, houve por bem mostrar-me dez ou doze indivíduos presos em um local especial, entre os quais se encontrava uma velha que, pela sua feiura e sua deformidade, era uma verdadeira feiticeira, por sinal que famosa na profissão. Examinei as provas e as confissões e notei não sei que espécie de estigma na velha. Interroguei-a longamente, com atenção, pois não sou homem que se deixe impressionar por ideias preconcebidas. Em suma, ter-lhe-ia antes prescrito um pouco de heléboro em vez de cicuta, "seu caso parecendo-me mais próximo da loucura que do crime". Para tratar dessas doenças tem a justiça meios adequados. Quanto aos argumentos e objeções que as pessoas de boa fé me têm apresentado (nesse caso como em outros), não me pareceram convincentes e sempre fora possível encontrar outros mais verossímeis. É verdade que não perco tempo em desfazer o nó das provas e razões baseadas em experiências e fatos; não há como desfazê-lo: e, como Alexandre, corto-os. Mandar queimar vivo um homem apoiado em simples conjeturas é valorizá-las exageradamente. Prestâncio conta que seu pai (e citam-se outros exemplos), como que entorpecido por um pesado sono, imaginava ser jumento e servir de animal de tiro aos soldados; e era o que imaginava. Mas ainda que os feiticeiros possam ter sonhos que sejam realidades e tais sonhos por vezes produzirem certos efeitos, não creio que nossa vontade deva ser responsabilizada em juízo. Não falo como magistrado, nem como conselheiro do rei, cargos de que não penso ser digno, mas como homem do povo, acostumado a exprimir-se e a agir com bom senso. Quem contar com meus sonhos para opor-se à mais insignificante das leis de sua aldeia, ou uma opinião aceita, ou um costume do lugar, muito se prejudicará e não menos a mim; pois não dou nenhuma garantia do que digo, a não ser a de que o tinha na cabeça, embora confusamente, ao escrever. Isto é uma espécie de conversação em que falo de tudo; não ofereço conselhos: "Não tenho, como outros, vergonha de confessar que ignoro o que não sei": não seria tão afoito em minhas palavras se pertencesse à categoria daqueles a quem se deve dar crédito, e foi o que respondi a um grande personagem que se queixava da aspereza e da secura de minhas opiniões: "Vejo muito bem que estais disposto a tomar determinado partido, ofereço-vos outro para esclarecer-nos e facilitar-vos uma boa escolha; não para obrigar-vos a seguir a minha ideia; Deus, que sabe o que vos convém, há de inspirar-vos. Não sou sequer presunçoso a ponto de desejar que o que penso faça pender a decisão para um ou outro lado em coisa de tão grande importância; minha condição não me dá autoridade para tão graves conclusões". Reconheço os vícios de meu espírito e as fraquezas de minhas ideias e com eles desgostaria um filho que porventura tivesse. Nem sempre se acomoda o homem à verdade, tão estranha é a sua constituição! A propósito, diz-se na Itália que não conheceu o amor no que tem de mais doce, quem não dormiu com uma coxa. O acaso, sem dúvida, ou algum fato particular, há muito introduziu o ditado na boca do povo e o axioma aplica-se tanto aos homens como às mulheres. A rainha das amazonas respondeu a um cita que a convidava para o amor: "São os coxos que amam melhor". Nessa república feminina, a fim de evitar que os homens tomassem o poder, quebravam-lhes, em criança, um braço ou uma perna, e só se serviam deles para aquilo em que nós utilizamos as mulheres. Eu pensava que os movimentos desordenados da coxa aumentavam o prazer e acentuavam o gozo, mas acabo de verificar que os filósofos antigos já elucidaram a questão. Afirmam que as pernas não se alimentando como deveriam, em consequência da enfermidade, nutrem-se melhor as partes genitais, desenvolvem-se mais e tornam-se mais vigorosas. Ou, também, que com o defeito, impedindo qualquer exercício, gastam os aleijados menos forças e assim se mostram mais aptos aos jogos do amor. Por idênticas razões diziam os gregos que as tecelãs eram mais ardentes do que as outras mulheres. Tais raciocínios podem levar-nos muito longe e eu acrescentaria que o contínuo tremor a que elas são submetidas em sua tarefa as desperta e solicita, como ocorre com as mulheres sacudidas em suas carruagens. Todos esses exemplos confirmam o que disse a princípio; que a procura da causa se antecipa por vezes em nós à constatação do resultado e isso vai tão longe que chegamos a julgar não o que existe, mas o que não existe. Além dessa facilidade com que encontramos interpretações para qualquer sonho, nossa imaginação tende a impressionar-se facilmente com as coisas falsas e com as aparências mais frívolas. A simples autoridade desse ditado muito antigo e muito conhecido levou-me a crer outrora que sentiria maior prazer com uma aleijada e que a deformidade dava-lhe, a meus olhos, certa graça. Tasso, na comparação que estabelece entre a França e a Itália, observa que temos as pernas mais finas do que os italianos e o explica pelo fato de andarmos sempre a cavalo. Da mesma causa tira Suetônio conclusão diferente ao afirmar que Germânico as tinha muito fortes graças à prática contínua desse exercício. Nada existe tão dúctil e desregrado quanto o nosso juízo. E como o sapato de Terâmenes que se ajustava a todos os pés. "Dá-me um dracma de prata", disse um filósofo cínico a Antígono. E respondeu este: "não é um presente digno de um rei". "Pois dá-me então um talento." "A dádiva não convém a um cínico." "Seja porque o calor abre os poros das plantas e prepara o caminho para a seiva, seja porque torna a terra mais dura e fecha as veias à chuva fina, a um sol ardente ou a um frio boreal, é por vezes útil pôr fogo no campo." Toda medalha tem seu reverso, eis porque Clitômaco dizia que Carnéades havia superado Hércules ao arrancar dos homens a vontade temerária de julgar. Tão ousado pensamento de Carnéades viera-lhe ao espírito, penso eu, ante a impudência e a presunção que exibiam os que outrora se dedicavam à profissão de saber. Esopo estava exposto à venda com dois outros escravos. Um comprador indagou de um deles que sabia fazer; este para se valorizar contou mil maravilhas. Disse o segundo mais ainda. Quando chegou a sua vez, Esopo respondeu: "Nada, eles já pegaram tudo, eles tudo sabem". Verificou-se o mesmo nas escolas de filosofia. A afoiteza dos que atribuíam ao espírito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a afirmarem, por despeito ou contradição, que o espírito não era capaz de coisa alguma. Estes exaltavam ao extremo a ignorância como aqueles glorificavam absurdamente a ciência. De modo que não há como negar que o homem é imoderado em tudo e só para quando forçado pela incapacidade de ir além. CAPÍTULO XII DA FISIONOMIA Quase todas as nossas opiniões nos são impostas por autoridade alheia. Não é isso um mal, pois neste século tão frágil não saberíamos escolher melhor por nós mesmos. Os discursos de Sócrates, cuja forma e sentido nos foram transmitidos por seus discípulos, só têm a nossa aprovação em consequência do respeito que devotamos à opinião pública. Se um homem desse porte nascesse agora, muito poucos o louvariam. Só apreciamos as graças picantes e artificiais; as que se escondem sob a simplicidade e a sinceridade não as percebe nossa visão grosseira. Para discernir as belezas delicadas e discretas faz-se necessário uma vista pura e penetrante. E não é a pureza, na nossa opinião, parenta próxima da tolice e digna de crítica? Sócrates exprimia-se de um modo natural e simples; assim fala um campônio, assim fala uma mulher. Refere-se continuamente a cocheiros, carpinteiros, sapateiros e pedreiros; suas induções e suas analogias são tiradas das ações mais vulgares do homem; todos entendem o que ele diz. Sob tão pobre roupagem não teríamos jamais compreendido a nobreza e o esplendor de suas admiráveis concepções, pois julgamos mesquinhas as que a erudição não realça e só percebemos a riqueza pelo aparato. Nosso mundo é feito de ostentação; os homens incham-se de vento e andam aos saltos como os balões. Sócrates não procura fazer que prevaleçam ideias quiméricas, seu objetivo é prover-nos de fatos e preceitos de imediata aplicação na vida: "controlar suas ações, observar a lei do dever, obedecer à natureza". Sempre foi igual e fiel a si mesmo; e não se ergueu por impulsos até a perfeição, mas pelo seu caráter. Ou melhor, não se elevou e sim abaixou o homem para aproximá-lo de sua origem, da natureza, a que subordinou as aspirações, as desilusões e as dificuldades da vida. Em Catão vemos claramente que estamos em presença de um caráter muito acima do comum; exaltado tanto nos seus feitos como na sua morte. Sócrates, ao contrário, não se afasta do chão, nem apressa excepcionalmente o passo; e assim discorre, como aliás se conduz nos momentos mais difíceis da vida, e nos mais cotidianos. Acontece que o homem mais digno de ser conhecido e apresentado ao mundo como exemplo, é aquele que melhor conhecemos. Foi-nos descrito e pintado pelos homens mais aptos a bem julgar que já existiram. Os testemunhos que temos a seu respeito são admiráveis pela fidelidade e a competência. É espantoso que hajam disciplinado tão puras ideias sem as alterar nem ampliar, a ponto de produzirem os mais belos efeitos em nossa alma, não a apresentando rica ou ambiciosa, mas sadia, jovial e simples. Com essas ideias comuns, com esses recursos vulgares, sem se comover nem excitar, Sócrates não somente estabeleceu as mais ordenadas ações e crenças como ainda as mais elevadas e vigorosas que se conhecem. Fez descer dos céus, onde perdia seu tempo, a sabedoria humana e entregou-a ao homem, no qual encontra mais razão de ser. Vede-o arguir ante seus juízes; observai como raciocina para firmar sua coragem na guerra, como fortalece sua paciência contra a calúnia, a tirania. Nada toma de empréstimo à arte ou à ciência; as pessoas mais simples nele reconhecem seus próprios meios e forças. Grande serviço prestou Sócrates à natureza humana, mostrando-lhe quanto pode por si mesma! Somos todos mais ricos do que pensamos; mas ensinam-nos a pedir, e a apelar para os outros em vez de recorrer a nós mesmos. O homem não sabe contentar-se com satisfazer suas necessidades. Prazer, riqueza, mando, sempre abarca mais do que pode; sua avidez é incapaz de moderação. O mesmo sucede no que concerne à curiosidade de saber. Empreende tarefas mais pesadas do que lhe permitem suas forças e do que precisa: "Não temos mais moderação no estudo das letras do que no resto". E tem razão Tácito quando louva a mãe de Agrícola por sofrear no filho o desejo desmedido de aprender. Se encararmos com calma a ciência, veremos que é um bem que, como os demais bens do homem, comporta muita vaidade e fraqueza natural; por outro lado custa caro. Sua aquisição apresenta maiores riscos do que a de um alimento qualquer ou bebida; as outras coisas, nós as levamos para casa quando as compramos, e podemos colocá-las em algum recipiente em que as examinamos à vontade, utilizando-as como queremos. A ciência somente em nosso espírito é que a guardamos; já a absorvemos ao adquiri-Ia e quando saímos do mercado já nos achamos melhorados ou contaminados. Algumas ciências servem apenas para nos incomodar e perturbar; não nos enriquecem. Outras nos envenenam, quando deveriam curar-nos. Senti prazer em ver que algures, certos homens, por devoção, fazem voto de ignorância, como há quem o faça de castidade, de pobreza e de penitência. Isso equivale a castrar nossos desordenados apetites, a embotar a ânsia que nos conduz ao estudo dos livros, e a privar o espírito da voluptuosa complacência com que ouvimos dizer que somos sábios. Cumpre-se melhor o voto de pobreza quando se lhe junta o da ignorância. Não precisamos de muita ciência para vivermos satisfeitos, e Sócrates nos ensina que aquilo de que necessitamos trazemo-lo em nós mesmos; e oferece-nos o método de explorá-lo e aproveitá-lo. Toda ciência, fora da que nos vem da natureza, é vã e supérflua; e podemos considerar-nos felizes se não nos pesa e embaraça mais do que nos serve: Não é preciso saber muito para ser sábio. Na realidade, é a ciência uma febre que confunde e inquieta o espírito. Recolhamo-nos em nós mesmos e encontraremos argumentos naturais - os mais eficazes - contra o temor da morte; são os que ajudam o camponês e povos inteiros a enfrentá-la com mais firmeza de ânimo do que um filósofo. Teria eu morrido menos serenamente se morresse antes de ter conhecido os Tusculanes? Penso que não; a leitura dessa obra enriqueceu-me a língua mas não me fortaleceu muito mais o ânimo, o qual continua como o criou a natureza e não me preparo para o embate senão como o comum dos homens. Os livros não me educaram; foram um exercício para meu espírito. Talvez mesmo a ciência, tentando dar-nos novos meios de defesa contra os inconvenientes naturais, mais acrescenta à ideia que ternos da importância e do alcance dos acidentes do que nos auxilia com os sutis remédios que sugere. Pois são realmente sutilezas que nos dá e mediante as quais em vão se aviva nosso cuidado. Vede como os melhores autores - e os mais entendidos - reúnem ao redor de um bom argumento outros muitos secundários e, para quem os aprecia de perto, vazios de sentido. Meras argúcias verbais que nos iludem. Mas como isso pode ter sua utilidade não o quero discutir a fundo. Por empréstimo ou imitação também as encontrarão aqui. É que se evita denominar força à simples gentileza, e considerar sólido o que é apenas sutil, ou bom o que não é senão belo: "O que agrada ao gosto nem sempre apraz ao estômago"; nem tudo o que satisfaz alimenta, quando se trata da alma e não mais do espírito. Vendo os esforços de Sêneca no sentido de preparar-se para a morte, e como se retesa a fim de conservar sua segurança, e como se debate contra essa obsessão, sinto que se desacreditaria a meus olhos, se com a morte mesma não houvesse consolidado corajosamente sua reputação. Sua agitação febril, tão amiúde renovada, denota a que ponto era nervoso e excitável. "Uma alma forte exprime-se com mais calma e sensatez... o espírito tem o matiz da alma..."; são frases suas e cito-as para melhor mostrar a que ponto estava então preocupado. A maneira pela qual Plutarco encara a morte é altiva e menos obcecante; acho-a por isso mais viril e menos persuasiva; sua alma devia ter movimentos mais serenos e ordenados. O primeiro desses autores é mais penetrante; comove-nos, excita-nos, perturba-nos. O segundo é mais sólido; informa-nos, prepara-nos, reconforta-nos constantemente; toca-nos principalmente a inteligência. Aquele nos encanta, este nos convence. Conheço outros escritos de autores mais venerados ainda, os quais ria pintura das lutas sustentadas contra as solicitações da carne, representam-nas tão violentas e invencíveis que nós, homens comuns, somos induzidos a antes admirar a estranheza e o vigor insólito da tentação do que a resistência a ela oposta. Fortalecem-nos mais os esforços da ciência? Olhemos em torno de nós: a pobre gente que vemos, inclinada sob o trabalho, ignorante de Aristóteles e Catão, de exemplos e preceitos, obediente à natureza, dá-nos diariamente provas de firmeza de ânimo e de paciência mais puras e maiores do que as que estudamos na filosofia com tanta aplicação. Quantos há que não se preocupam com a pobreza, que desejam a morte, e a acolhem sem alarde nem aflição! O homem que trabalha neste momento em meu jardim, enterrou o pai pela manhã; ou o filho. Os nomes que dão às doenças, atenuando-lhes a aspereza, suavizam-nas; a tísica chama-se então tosse; a disenteria, desarranjo; a pleurisia, resfriado. E assim como lhes temperam os nomes, suportam-nas com naturalidade. É preciso que sejam muito graves para que lhes interrompam o labor diário. Deitam-se somente para morrer. Essa virtude simples e pura é transformada em uma ciência confusa e fútil. Escrevia isto em um momento em que desabavam sobre mim, com todo o seu peso, as turbulências que continuamos a sofrer. Tinha por um lado inimigos à porta e por outro ladrões mais perigosos ainda, combatendo não pelas armas mas pelo crime. E vinha-me ressentindo de toda espécie de prejuízos decorrentes das hostilidades. "À direita e à esquerda ameaça-me um inimigo temível; preciso defender-me de ambos os lados." Monstruosa guerra! As outras são dirigidas para fora; esta volta-se contra nós mesmos; destrói-se a si própria e morre de seu próprio veneno. É de natureza tão maligna e desastrosa que se arruína com a ruína que provoca; na sua cólera, esquarteja-se a si mesma. Vemo-la que se extingue, mais por escassez de alimento do que pela força inimiga. Renega qualquer disciplina; tem por objetivo dar cabo à sedição, mas de sedição se enche. Propõe-se a punição da desobediência e dá o exemplo da revolta; empregada na defesa das leis, desatende às prescrições legais. Para onde vamos? O único remédio a que podemos recorrer é infeccioso: O nosso mal se envenena com a terapêutica - piora e se amplia com o medicamento. O justo e o injusto, confundidos pelos nossos culposos furores, afastaram de nós a proteção dos deuses. Nessas doenças dos povos, podem-se, no início, distinguir os enfermos dos sãos. Mas quando a doença se prolonga, como em nosso caso, todo o corpo se ressente, da cabeça aos pés, nenhuma parte permanece isenta de corrupção, pois não há ar que mais gulosamente se respire e penetre um organismo do que o ar da licença. Nossos exércitos não têm consistência e só se conservam graças ao cimento de coesão que neles introduz o estrangeiro; com franceses não se consegue mais constituir um só corpo de exército bem organizado. Que vergonha! A disciplina só existe entre os estrangeiros de nossas fileiras. Quanto a nós, conduzimo-nos ao sabor de nossas ideias pessoais e não em obediência às ordens dos chefes; cada qual faz como bem entende, o comando tem mais problemas internos do que externos; cumpre-lhe vigiar seus soldados, cortejá-los, atender às suas exigências. Só ele obedece; o resto é livre e não conhece freios. Apraz-me constatar quanta covardia e pusilanimidade se escondem na ambição; quanta abjeção e mesquinharia se fazem necessárias para atingir seu alvo; mas lamento ver boas e belas almas, capazes de praticar a justiça, dissolverem-se nesse meio tão confuso. O sofrimento prolongado transforma-se em hábito e este engendra a resignação e acarreta a imitação. Já tínhamos almas malformadas em número suficiente; não é justo que as generosas se contagiem, pois a perdurar esse estado de coisas dificilmente encontraremos a quem confiar a saúde de nosso país, no caso em que o destino haja por bem lha devolver. "Não impeçais este jovem herói de reconstruir um século em ruínas." Onde foi parar o velho preceito de que o soldado deve temer mais a seu chefe do que ao inimigo? E que pensar do maravilhoso exemplo do pomar que se encontrava no meio do acampamento romano e que se verificou continuar intato ao se retirarem as tropas? Muito me alegraria que nossa juventude, em vez de empregar seu tempo em peregrinações inúteis e aprendizagens pouco honrosas, o dividisse entre fazer a guerra no mar sob o comando de um bom chefe e estudar a disciplina dos exércitos turcos, diferente da nossa e bem superior. Assim, as expedições tornam nossos soldados mais licenciosos e os turcos mais disciplinados, pois lá os roubos e os furtos praticados contra o povo, normalmente punidos com açoite, são em tempo de guerra passíveis de pena mais severa. O furto de um ovo acarreta cinquenta bastonadas; é preço fixado de antemão. Qualquer outra falta, por insignificante que seja, pode acarretar a empalação ou a decapitação imediata. Maravilhei-me ao ler na história de Salim, o mais cruel dos conquistadores, que, quando subjugou o Egito, os belos jardins de Damasco, situados em plena região deflagrada e onde o exército acampara, permaneceram intatos, respeitados pelos soldados aos quais não se dera o sinal do saque. Haverá algo em um mau governo que mereça ser tratado pela droga mortal da guerra civil? Favônio dizia que não, nem mesmo a derrubada de um tirano que houvesse usurpado o poder. Platão não admite tampouco que se violente a tranquilidade de um país para curá-lo e não aceita um remédio que o revolucione, que tudo entregue ao acaso, faça correr o sangue e provoque a ruína dos cidadãos. Aconselha aos homens de bem, nesses casos, que deixem as coisas correrem e peçam a intervenção de Deus. Parece mesmo censurar seu grande amigo Díon por ter agido de outro modo. Sempre estive de acordo com tais ideias, mesmo antes de saber que Platão houvesse existido. Não podemos evidentemente, nós cristãos, considerá-lo um dos nossos, muito embora tivesse merecido, pela limpidez de sua consciência, o divino favor de ser iluminado pelas luzes do Evangelho naqueles tempos de trevas; não penso por isso que seja justo apelar para um pagão a fim de que nos ensine quanto é ímpio não esperar de Deus um auxílio que só a Ele cabe dar. Fico por vezes a duvidar de que entre tanta gente metida em nossas desordens, haja quem, de boa fé e por insuficiência mental, possa acreditar que seja possível corrigir abusos mediante tantos outros abusos! E imagine que a salvação possa decorrer dos mesmos meios que sabemos desastrosos; que derrubando a pátria e entregando os pedaços a seus inimigos, dando a irmãos armados uns contra os outros a oportunidade de empregarem sua coragem em lutas parricidas, apelando para os demônios e as fúrias, dão seu apoio à Divina Providência, a qual encarna a justiça e a doçura, virtudes por excelência. Como se a ambição, a avareza, a crueldade, a vingança não tivessem em si mesmas suficiente vigor e impetuosidade, mascaram-nas com os rótulos gloriosos das grandes virtudes que são a piedade e a justiça. Não é possível sonhar com mais lamentável situação do que essa em que a malícia se faz legal e veste, com a conivência do magistrado, o manto da virtude: "Nada mais falaz do que uma religião que justifica crimes com o interesse dos deuses". A maior injustiça, diz Platão, consiste em considerar justo o que o não é. Nos tempos a que aludo, não sofreu o povo apenas no presente por causa das depredações cometidas, "pois muita era a desordem e muita a confusão em nossas terras, como também em relação ao futuro. Sofreram os vivos e com eles os que ainda não tinham nascido. Arrancaram-lhes, e a mim igualmente portanto, a própria esperança, e as razões de viver por longos anos. O que esses bandos de criminosos não podem carregar, destroem; chegam a incendiar inocentes choupanas. Nenhuma segurança nas cidades; tudo devastado nos campos. Além dessas provações, outras padeci. Sofri os inconvenientes que a moderação acarreta em tais ocasiões; fui despojado por todos os partidos. Era gibelino para os guelfos e guelfo para os gibelinos, como diz não sei que poeta. A situação de minha propriedade, minhas relações com os vizinhos mostravam-me sob certo aspecto; minha vida e meus atos, sob outro. Não me assacavam acusações precisas; não lhes abria o flanco por não transgredir as leis (se forjassem algum inquérito somente elogios me dariam), mas suspeitavam de mim surdamente, passando de boca em boca observações que as aparências sugeriam, o que sempre dá resultado em circunstâncias confusas e entre espíritos cheios de inveja e de estupidez. No fundo, contribuo para a propagação das presunções injuriosas contra mim, com minha mania de não me justificar, considerando que exporia minha reputação a interpretações desairosas ao defendê-la, "pois a discussão enfraquece a evidência". Por isso, como se vissem tão claramente em mim como eu próprio vejo, em vez de procurar destruir a acusação dou-lhe maior força ainda, adiantando-me a seu encontro com sarcasmos e ironias ou calando-me totalmente por julgá-la indigna de resposta. Quem encara esse meu modo de agir como testemunho de uma exagerada confiança na justiça de minha causa, não me quer menos mal do que aqueles que nele veem uma prova de sua fraqueza. Os grandes principalmente assim pensam, porque a seus olhos a ausência de espírito de submissão é a mais imperdoável das faltas, e não gostam de fazer justiça a quem não a solicita com humildade. Contra esse obstáculo não raro me choquei. Um ambicioso se enforcaria de desespero ante o que me ocorreu então; um avarento o mesmo teria feito. Eu atenho-me a nada adquirir: "Que conserve simplesmente o que me pertence, e até menos se necessário. Pouco importa. Aspiro a não me ocupar senão de mim mesmo durante o tempo que os deuses quiserem dar-me ainda". Não obstante, as perdas que experimento em consequência da maldade alheia, são-me tão dolorosas quanto as dos avarentos, porque a ofensa é mais amarga ainda do que o prejuízo. Mil desgraças de toda espécie atormentaram-me naquela época, umas após outras, e eu as houvera suportado melhor se tivessem desabado todas juntas. Já pensava a qual de meus amigos poderia confiar a incumbência de me amparar na velhice desvalida. Passando-os em revista, vi-me em fraldas de camisa! Quem cai de tão alto precisa cair nos braços de um afeto sólido, a toda prova, o que é raro e não tem preço, se é que existe. Verifiquei afinal que o mais seguro era confiar-me a mim mesmo; e que, se me traísse a sorte, teria que restringir-me mais ainda à minha pessoa. Os homens em geral recorrem aos outros, evitando olhar para os próprios recursos que são os únicos certos e poderosos; todos correm alhures para assegurar o futuro, porque nunca ninguém se voltou para si próprio. Chego a acreditar que tais provações me foram úteis; em primeiro lugar porque, quando a razão não basta, cumpre corrigir os maus alunos a chicote, assim como, pelo fogo e a disposição das cunhas, endireitamos uma peça de madeira que entortou. Embora eu me proponha há muito desprezar as coisas estranhas a mim, volta e meia surpreendo-me olhando para os lados: um sinal, uma palavra amável de um grande personagem que me sorri, constituem uma tentação. E, no entanto, Deus sabe o que valem, nestes tempos! Ainda escuto sem franzir as sobrancelhas as propostas que me fazem de cargos lucrativos, e os recuso com tal nobreza que sempre imaginam que não desejo senão ser convencido. Um espírito tão indócil merece correção; é preciso reajustar a grandes golpes de malho esse barco que se desconjunta. Em segundo lugar, tais acidentes valeram como exercício para enfrentar outros piores, se eu, que esperava ser dos últimos atingidos pela tempestade, viesse a ser dos primeiros, em virtude de minha fortuna e das condições em que vivia. Ensinaram-me a ater-me desde cedo a um gênero de vida adequado ao novo estado de coisas. A verdadeira liberdade consiste em um completo domínio de si mesmo, como afirma Sêneca. Em épocas normais e tranquilas, preparamo-nos para os acidentes comuns, porém na mixórdia atual, que já vai pelos trinta anos, todo francês se vê a cada instante sujeito a contemplar o desmoronamento total de sua fortuna, e tem portanto de tomar as medidas mais eficientes e enérgicas a fim de que sua coragem se mantenha à altura dos acontecimentos. Demos graças ao destino por nos ter feito nascer em um século em que a moleza, a ociosidade e a graça não têm curso; assim será famoso pelas suas misérias, porquanto em outras condições ficara ignorado... Sempre lamentei, ao ler a história das perturbações políticas, não as ter presenciado, mas minha curiosidade satisfaz-se agora com o espetáculo de nossa agonia pública, com seus sintomas e formas. Como não posso retardá-la, contento-me com presenciá-la e instruir-me. Buscamos com avidez no teatro as trágicas peripécias do destino humano e embora nos cause piedade o que ouvimos, apraz-nos o espetáculo; assim, em razão de sua raridade e apesar da tristeza que sentimos, tiramos alguma satisfação em testemunhar os lamentáveis sucessos de uma época. Só nos comovemos com o que nos fere. Por isso os bons historiadores fogem, como das águas dormentes ou dos mares mortos, aos períodos calmos e se interessam especialmente pelas guerras e sedições, a fim de interessar-nos. Duvido que possa honestamente confessar o vergonhoso preço pago pela serenidade de minha existência, vivida em grande parte em meio à ruína de meu país. Mostro exagerada indiferença ante os acidentes que não me dizem pessoalmente respeito. E sempre considerei lucro o que não me tiraram, tanto interna como externamente. E sempre achei um consolo em esquivar, um após outro, os males que me ameaçavam de maneira direta e foram abater-se alhures. Demais, em matéria de interesse público, quanto mais extenso o campo tanto mais tênue se toma o meu interesse, sendo em parte certo que nós não sentimos, dos males coletivos, senão o que de perto nos toca. Por outro lado o estado de saúde de que partimos só era sadio por comparação com o que se lhe seguiu, e não caímos de muito alto. Menos suportáveis se me afiguram a corrupção e o banditismo instalados nos altos cargos, pois menos nos ofende ser roubados em um bosque do que onde deveríamos estar em segurança. Em verdade, a classe dirigente era então composta de tarados e cada qual mais do que o outro. Todos com úlceras e feridas e muitas incuráveis. O desmoronamento animou-me portanto mais do que me aterrou, graças à minha consciência que não somente estava tranquila como também me envaidecia. E como Deus nunca distribui males e bens integrais, minha saúde, ao contrário do que me acontece normalmente, nada deixava então a desejar; e, se sem ela nada valho, com ela sou capaz de tudo. Ela deu-me os meios de resistir aos azares e de aparar com a mão o golpe que me foi assestado e que sem isso me houvera penetrado profundamente; verifiquei também que minha capacidade de resistência permitia aguentar-me no estribo apesar dos mais rudes corcovos. Não digo isso para provocar a sorte; estou em suas mãos e submeto-me a suas exigências. Sou-lhe um servidor fiel e lhe rendo homenagem. Que se contente com isso, por Deus, e não imagine que seja insensível a seus golpes. Assim como os que a tristeza acabrunha, sorriem por vezes a certos prazeres, em minha calma habitual sou de quando em quando sujeito a depressões melancólicas, que me dominam enquanto não me armo para rechaçá-las. Outra calamidade juntou-se a essas misérias: a peste grassou na região com uma violência nunca vista. Pois assim como os corpos sãos se acham mais sujeitos às enfermidades graves, porque só por elas são dominados, os ares de minhas terras, tão salubres que nunca haviam sido perturbados, ao serem contaminados sofreram excepcionalmente: Velhos e jovens baixavam de cambulhada ao túmulo e nenhuma cabeça escapava a Prosérpina. Minha própria casa tornou-se horrível à vista. O que nela havia ficou entregue a quem passasse; eu, tão hospitaleiro, encontrei a maior dificuldade em descobrir um refúgio para minha família, a qual passou a ser um objeto de horror para os próprios amigos e parentes; onde quer que se apresentasse, imperava o pavor; precisava mudar-se cada vez que alguém sentia a menor dor, na ponta de um dedo que fosse, pois nesses casos logo se pensa na peste e não se espera confirmação. E o pior é que, segundo dizem os médicos, é necessário aguardar quarenta dias para saber se estamos atingidos, e durante esse tempo a imaginação nos atormenta e nos põe febricitantes. Tudo isso não me teria preocupado tanto, se não devesse atender às misérias alheias e servir de guia durante seis meses a essa caravana, pois, pessoalmente, tenho meus preservativos: a paciência e a firmeza de ânimo. Não tinha muito medo, o que é o mais triste em tais casos; aliás, sozinho e com receio, poderia fugir mais rapidamente. Entretanto, a morte pela peste não me parece das mais temíveis; é em geral rápida, perdem-se logo os sentidos, não se sofre e a ameaça que pesa sobre todos igualmente é um consolo. Nos arredores, a centésima parte da população morreu. "Teríeis visto os campos desertos, e desertos os bosques."! Minhas terras constituem a parte mais importante de minhas rendas; sua produção depende essencialmente da mão de obra; uma centena de camponeses nelas trabalhavam e durante muito tempo não se pôde atender à cultura. Nesse transe quantos exemplos de resolução não vimos nessa gente simples do povo! Em geral os homens renunciavam a cuidar da própria vida. As uvas, principal riqueza do país, não tinham ainda sido colhidas. Pois bem, indiferentes à morte, que esperavam de um momento a outro, preparavam-se para recebê-la sem temor, como se a aceitassem à maneira de uma condenação universal que a todos atingiria. A morte é sempre inevitável, mas bem poucos a aguardam com firmeza de ânimo; uma diferença de horas que nos separe do momento fatal, a companhia em que iremos enfrentá-la, diversificam nossa atitude. Esses, embora crianças, jovens e velhos, não se espantavam nem choravam. Vi quem receasse ser poupado e ficar sozinho numa horrível solidão; e vi quem apenas se preocupasse com a sepultura, apavorado ante a possibilidade de morrer em um lugar ermo, exposto às feras que não tinham tardado em aparecer. Como as ideias humanas assumem formas diferentes! Os neoritas, que Alexandre subjugou, expõem os corpos dos mortos no fundo das florestas para serem comidos; é a única sepultura honrosa, a seu ver. Entre nossa gente, houve quem abrisse a própria cova; outros nela se deitavam em vida; um de meus operários aí morreu, cobrindo-se de terra com as mãos e os pés. Esse esforço por construir um abrigo onde dormir sossegado, lembra o gesto dos soldados romanos após a batalha de Canes, cavando, para enfiar a cabeça, buracos que enchiam com as próprias mãos a fim de morrerem sufocados. Em resumo, toda a região subitamente se elevou, por seus atos, a uma grandeza de alma em tudo comparável à de quaisquer decisões heroicas deliberadamente tomadas. Os ensinamentos com que nos encoraja a ciência são, em geral, mais aparentes do que eficientes; ornam mais do que frutificam. Abandonamos a natureza e queremos dar-lhe lições, a ela que tão seguramente nos conduzia. Entretanto, os vestígios de sua orientação, o pouco que resta de seu exemplo nos rústicos, são coisas que a ciência se vê forçada a solicitar-lhe a fim de fornecer a seus discípulos exemplos de constância, de pureza e de tranquilidade. Estranhamos ver seus adeptos imitarem essa tola simplicidade quando querem pôr em prática os mais elementares princípios da virtude; e constatar que nossa sabedoria precisa aprender com os próprios animais as lições indispensáveis aos atos mais graves e importantes da existência: como viver e morrer, poupar nossas forças, amar e educar os filhos, praticar a justiça. Singular testemunho da fraqueza humana! A razão que orientamos como desejamos, e anda sempre a inventar alguma novidade, não deixa que subsista em nós nenhum vestígio da natureza. Com esta fizeram os homens o que os perfumistas fizeram com o azeite; sofisticaram-na tanto com argumentos e raciocínios alheios a ela, que ela apresenta hoje um caráter essencialmente variável, peculiar a cada um, tendo perdido o que lhe era inerente e a todos se aplicava. Hoje, quem quiser redescobri-Ia terá de apelar para o exemplo dos animais, nos quais ela permaneceu inacessível à corrupção e à versatilidade das opiniões. É verdade que os próprios animais nem sempre seguem o caminho traçado pela natureza, mas afastam-se tão pouco dela que não se perdem nunca. Atente-se para os cavalos que conduzimos pela mão: continuam a dar saltos e galopes, mas sempre dentro do que lhes permitem as rédeas; e seguem quem os conduz. Da mesma forma o pássaro domesticado; quando alça o voo nunca procura ir além da distância que o comprimento do barbante amarrado a seus pés lhe concede. Meditai sobre o exílio, as guerras, as enfermidades e os naufrágios a fim de que nenhuma desgraça vos surpreenda. De que vale essa curiosidade? Por que nos preocuparmos com tantas misérias e por que nos prepararmos com tanto esforço para enfrentar as que talvez nem sequer nos atinjam? "A apreensão da dor é tão penosa quanto o próprio mal. Não é só o golpe que nos alcança, mas ainda o ruído e o sopro do dardo assestado contra nós. Agir assim seria agir em estado febril, pois somente sob a ação do delírio iria alguém açoitar-se desde já, porque pode um dia ser açoitado, ou vestir-se de lã pelo São João porque fará frio no Natal. Experimentai todos os males que vos podem atingir e em particular os piores e submetei-vos a eles - eis o que nos aconselham. Fora entretanto mais fácil e natural afastá-los até do próprio pensamento. Dir-se-ia em verdade que não virão bastante cedo e que não durarão suficientemente! Querem ainda que nosso espírito os amplie e alongue e os incorpore desde logo, como se Já não pesassem demasiado em nossos sentidos. Que vos acabrunhem quando vos encontrarem, diz um dos mestres da filosofia mais severa; enquanto não chegam, diverti-vos, ocupa i vosso pensamento no que vos agrade. Por que ir ao encontro do infortúnio e acolhê-lo, estragando o presente por temor ao futuro, tornando-vos infeliz desde agora só porque o deveis ser um dia? Talvez seja quando nos instrui acerca da extensão de nossos males, esclarecendo os mortais, mediante uma triste clarividência, que a ciência nos presta serviço. Seria com efeito lamentável que uma parte de nossa desgraça escapasse a nosso conhecimento e à nossa sensibilidade. É certo que na maioria dos homens a preparação para a morte causa maiores tormentos do que o instante fatídico. Um judicioso autor assim se exprimiu outrora: "O sofrimento que sentimos em consequência de uma desgraça nos afeta bem menos do que a própria ideia da desgraça". A sensação de uma morte iminente provoca por vezes subitamente em nós a resolução de não mais tentar evitar uma coisa que parece inevitável. No passado viram-se gladiadores que, após terem lutado com covardia, aceitavam corajosamente a morte, oferecendo o pescoço ao punhal do adversário. A perspectiva de uma morte ainda por vir exige uma firmeza de ânimo mais prolongada e portanto mais difícil de manter. Se não sabeis morrer, não vos atormenteis; a natureza ensinar-vos-á no momento preciso de um modo suficiente. Ela executará a tarefa, não vos preocupeis: "Em vão, mortais, procurais conhecer a hora incerta de vossos funerais e o caminho que tomará a morte". "É menos doloroso suportar uma grande desgraça a que não podemos escapar, e que ocorre repentinamente, do que viver durante muito tempo à sua espera." Perturbamos a vida com a preocupação de morrer e a morte com a preocupação de viver; uma nos aborrece, outra nos apavora. Não é contra a morte que nos preparamos; a coisa é por demais rápida: um quarto de hora de sofrimento, sem consequências nocivas, não está a exigir preceitos particulares. Em verdade, nós nos preparamos contra os preparativos da morte. Manda a filosofia que a tenhamos sempre diante dos olhos, prevendo-a e pensando-a antecipadamente; dá-nos também as regras que devemos seguir e as precauções que devemos tomar para que essa previdência e essa ponderação não nos magoem. Não agem de outro modo os médicos; enchem-nos de doenças para pôr em prática sua arte e ministrar suas drogas. Se não soubemos viver, não adianta aprendermos a morrer, e se o soubemos com calma e serenidade, também saberemos morrer do mesmo modo. Podem proclamar os filósofos que "toda a sua vida não passou de uma meditação sobre a morte": sou de opinião que esta é apenas o fim, mas não o objetivo da vida. O que a vida precisa ter em vista, o que ela deve propor-se é ela mesma: cumpre que se esforce por se estudar, se orientar, se suportar. Entre as várias tarefas que lhe incumbem e se indicam no capítulo principal do saber viver, o artigo referente ao saber morrer seria dos menos importantes se nosso temor não lhe desse ênfase. A julgar pela sua utilidade e pela verdade de seu conteúdo, as lições da simplicidade nada ficam a dever às da ciência. Os homens não se assemelham nem pela maneira de sentir nem pela sua força moral; portanto há que os conduzir por caminhos diversos, segundo sua capacidade: "Cedo ante a tempestade que me arrasta e abordo onde ela me joga". Nunca vi nenhum labrego a meditar sobre sua última hora. A natureza ensina-lhe a só pensar na morte quando a morte chega e, então, conduz-se melhor do que Aristóteles, porquanto este duplamente se angustia, e por causa da morte em si, e por causa da longa meditação que lhe dedicou. Sou da opinião de César, o qual achava que a mais feliz é aquela em que não pensamos. Afligir-se de antemão é afligir-se demasiado. A ideia da morte só se nos torna aflitiva em consequência de nossa curiosidade; sempre nos prejudicamos na ânsia de nos anteciparmos à natureza e de orientá-la. Que os médicos se preocupem com a doença quando estão com saúde, ainda se compreende; mas o comum dos mortais não precisa de remédios nem de consolações enquanto não o atinge a enfermidade; nesta só pensa quando sofre. É o que dizíamos do homem do povo, que não tem temor, que se resigna aos males do presente e encara com indiferença os do futuro, porque é bronco e despreocupado. Seu espírito grosseiro e obtuso é dificilmente penetrável. Mas se assim é, meu Deus, por que não estudarmos na escola da estupidez! Eis a conclusão final a que nos leva a ciência e para a qual encaminha seus adeptos. Não carecemos de bons professores que nos ensinem a simplicidade natural. Sócrates, por exemplo. Pois, se bem me lembro, é nesse sentido que fala aos juízes que vão deliberar a seu respeito: "Receio, senhores, em vos pedindo para não me condenardes à morte, expor o flanco às acusações que me fazem, de saber mais do que os outros, porque teria conhecimento de coisas que estão acima e abaixo de nós. Sei que não frequentei nem conheci a morte, nem vi ninguém que tivesse constatado suas vantagens e inconvenientes de modo a poder informar-me. Os que a temem, temem-na na pressuposição de conhecê-la; eu ignoro o que ela é, bem como o que ocorre no outro mundo. Talvez não nos traga nem bem nem mal; talvez seja desejável. É de crer entretanto que consista em uma transmigração de um lugar para outro e seria então vantajoso viver com tão grandes personagens já mortos, e livrar-se da necessidade de tratar com juízes iníquos e corruptos. Se é porém um aniquilamento total de nosso ser, não deixa de haver vantagem tampouco em entrar numa longa e tranquila noite, pois não há nada mais doce na vida do que um bom repouso e um sono suave, profundo e sem sonhos. As coisas sabidamente condenáveis, como ofender o próximo, desobedecer a seu superior, Deus ou homem, evito-as com cuidado; quanto às que não sei se são boas ou más, não as posso temer. Se eu morrer e vós continuardes a viver, só os deuses poderão dizer quem sairá lucrando. No que me respeita, resolvei como quiserdes. Se tivesse que vos dar um conselho, como só aconselho coisas justas e úteis, eu vos diria que o melhor que tendes a fazer é libertar-me, a menos que vejais em minha causa mais do que minha própria pessoa. E se julgardes, tendo em vista minha atuação passada, pública ou privada, minhas intenções, o proveito que tiram diariamente de minhas conversações tanto cidadãos moços e velhos, as vantagens que a todos ofereço, só podereis recompensar meus méritos e ordenar que, dada a minha pobreza, seja eu tido e mantido a expensas do tesouro, como tendes determinado, com menos razão que o fossem outros. Não vejais obstinação e desdém no fato de não estar aqui, segundo o costume, a suplicar-vos e a apelar para vossa comiseração. Tenho parentes e amigos, pois, como diz Homero, não fui engendrado de árvore ou rochedo, e também três filhos, capazes de se apresentarem em lágrimas para vos comover; mas seria uma afronta à nossa cidade rebaixar-me a tais covardias, dadas a minha idade e a minha reputação. Que se diria dos outros atenienses? Sempre exortei os que me ouviam a não resgatarem sua vida mediante ações desonestas. Nas guerras de que participei, tanto em Anfípole como em Potideia e Délio, ou alhures, provei que estou longe de buscar minha segurança à custa de atitudes vergonhosas. Demais, estaria tentando afastar-vos de vosso dever se assim vos incitasse à clemência, pois só vos devem persuadir as razões puras e sólidas da justiça. Jurastes aos deuses assim vos conduzirdes. Se vos suplicasse, seria como se duvidasse que acreditais na existência deles e ao mesmo tempo demonstraria que também eu neles não creio como devo; pois estaria temeroso de sua conduta em lugar de lhes confiar pura e simplesmente meus interesses. Tenho plena confiança neles e estou certo de que nesta circunstância farão o que cumpre se faça por vós e por mim; os homens de bem, vivos ou mortos, nada receiam dos deuses. Eis uma defesa simples e de uma elevação inimaginável! Verdadeira, franca, justa, exemplar. E em que circunstâncias! Por certo merece que se proclame superior à que fez por escrito o grande orador Lísias em prol de tão nobre réu, embora juridicamente fosse perfeita. Ter-se-iam admitido súplicas na boca de Sócrates? Podia fraquejar sua magnífica virtude no momento em que mais se fazia imprescindível? Devia sua rica e forte natureza apelar para artifícios em sua defesa? Cabia-lhe renunciar à verdade e à simplicidade, os mais belos ornamentos de sua palavra, para se enfeitar com as figuras de retórica de um discurso decorado? Agiu sabiamente e como devia, não alterando uma vida impoluta, não deformando a imagem perfeita da humanidade que nele se encarnava, para prolongar de um ano sua decrepitude e trair a lembrança imortal de seu fim glorioso. Devia sua vida, não a si mesmo, mas ao mundo, como exemplo. E fora desgraça pública terminá-la no ócio e na obscuridade. Uma atitude covarde teria sido tanto mais acentuada pela posteridade quanto diria respeito a quem sempre aguardara a morte com serenidade. Nada mais justo do que o que lhe reservou a sorte em favor de sua memória. Os atenienses conceberam tal aversão aos seus juízes que deles fugiam como se fossem excomungados. Consideravam profanado tudo o que deles provinha ou que eles tocassem; ninguém ia aos banhos com eles, ninguém os saudava; ao fim, não mais suportando semelhante hostilidade pública, enforcaram-se. Talvez se julgue que entre tantos exemplos que pudera escolher em apoio de minha tese, tenha errado em apontar o de Sócrates, demasiado acima do comum. Fi-lo propositadamente, porque acho que sua defesa, em sua simplicidade, se situa muito abaixo. Revela uma ousadia ingênua e uma confiança pueril, que beiram a inocência da natureza, pois é de crer-se que temos medo do sofrimento da morte e não da morte em si, a qual é parte integrante de nosso ser, tal qual a vida. Por que haveria a natureza de inspirar-nos horror à morte, se de tão grande utilidade é esta na sucessão e nas vicissitudes de suas obras? No conceito universal, a morte antes favorece o nascimento e o crescimento das criaturas do que sua perda e ruína: "Assim se renovam as coisas". "O fim de uma vida dá nascimento a mil outras. A natureza deu aos animais o cuidado de sua própria conservação; temem o que lhes é nocivo, temem ferir-se e que os batamos e mutilemos, acidentes que podem conceber ou que a experiência lhes ensinou; mas não receiam que os matemos porque não têm a faculdade de imaginar o que seja a morte; alguns há mesmo, dizem, que a aceitam serenamente (os cavalos em geral relincham ao senti-Ia aproximar-se, e os cisnes cantam) e a buscam como uma necessidade, como se deduz da maneira de agir de certos elefantes. Independentemente disso, não são admiráveis os argumentos de Sócrates pela sua simplicidade e sua energia? Incontestavelmente é bem mais difícil viver e falar como ele do que falar como Aristóteles e viver como César; é o cúmulo da perfeição, a que não atinge a arte. Nossas faculdades não foram educadas desse modo; não sabemos por isso de que são capazes; recorremos às alheias e deixamos inativas as nossas, exatamente o que se poderia dizer de mim que aqui junto um ramalhete de flores estranhas, fornecendo apenas o cordão para amarrá-las. Fiz em verdade à opinião pública a concessão de me enfeitar com esses ornatos de empréstimo; mas não quero que me cubram e escondam; seria o contrário do que me proponho, que é mostrar o que é naturalmente meu; e se houvera seguido minha ideia primeira, fora o único a falar. Sou levado a isso pela moda e também pelos lazeres de que disponho. Talvez seja um erro, mas sempre servirá aos outros. Há os que citam Platão e Homero, que nunca leram; eu também o faço e muito do que reproduzo não o colhi nos seus autores. Sem dificuldade nem trabalho, usando os livros que me cercam, poderia eu recorrer a esses compiladores - que não folheio nunca - e encontrar com que marchetar este capítulo sobre a fisionomia. A simples introdução de alguma obra alemã bastar-me-ia para encher o meu texto. Assim é que enganamos os tolos e conquistamos essa glória de que somos gulosos. Esse amálgama de lugares-comuns, que tanta gente estuda, só se aplica aos temas vulgares; pode servir de pretexto à exibição, não nos pode guiar. E é isso mais um ridículo resultado da ciência; critica-o Sócrates prazenteiramente em Eutidemo. Vi quem escrevesse livros sobre assuntos de que nem sequer ouvira falar; encarregava seus amigos sábios de pesquisarem o material necessário e contentava-se com ter tido a ideia e juntado com habilidade os elementos que lhe traziam. Tinta e papel lhe pertenciam, em todo caso. Na realidade, compram assim um livro, não o compõem, e revelam não que o sabem fazer e sim que não o sabem (o que podia ainda suscitar dúvidas!). Um presidente de tribunal jactava-se perante mim de ter amontoado em suas sentenças duzentos e tantos considerandos tirados de julgamentos alheios; tornando-o público diminuía a glória que pudera auferir de tal obra-prima; considero semelhante vaidade pusilânime e absurda, principalmente em personagem dessa condição. Procedo de modo contrário e, entre os muitos empréstimos feitos, agrada-me poder mascarar alguns que arranjo de acordo com o emprego que lhe dou. Mesmo correndo o risco de ouvir dizerem que não lhes apreendi o sentido exato, empresto-lhes uma forma particular e pessoal de modo que o plágio seja menos visível. Outros confessam seus furtos e os ostentam, por isso perdoam-se-lhes de bom grado; eu, na minha ingenuidade, penso que em inventar há muito mais mérito do que em simplesmente reproduzir. Se houvesse desejado fazer ciência, teria escrito mais cedo, em um momento em que me achava mais preso a meus estudos e não carecia tanto de memória. Para seguir a profissão de escritor, melhor fora ter-me fiado em minhas forças de então. Talvez me tivesse beneficiado do favor que a sorte quis outorgar-me agora e que saboreio e temo perder ao mesmo tempo. Dois de meus conhecidos, de grande talento literário, perderam a meu ver metade de seu valor, deixando para escrever aos sessenta o que podiam ter iniciado aos quarenta. A maturidade tem seus defeitos tal qual a mocidade, talvez piores; quanto à velhice, é tão imprópria a esse gênero de trabalho como a qualquer outra coisa, e quem quer que imprima sua decrepitude na esperança de exprimir algo não pesado, desgracioso, soporífico, comete uma loucura; o espírito amesquinha-se e embota-se ao envelhecer. Exibo minha ignorância com pompa e opulência, e meu saber parece magro e lamentável; este é acessório e acidental, aquela é que constitui o essencial em mim. Não trato de nada expressamente e se falo de saber e ciência é só para que verifiquem que tudo ignoro. Escolhi, para pintar minha vida, a época em que a tenho inteira sob a vista; o que não vejo pertence antes à morte, e quando esta chegar, se me for dado, como a outros, dizer minhas impressões, de bom grado as transmitirei ao público ao desencarnar. Sócrates foi um modelo perfeito de todas as qualidades. Lamento que tivesse um físico tão mal conformado e que a feiura de seu rosto fosse tão pouco adequada à beleza de sua alma; a esse respeito a natureza foi injusta com quem tanto apreciava a beleza. Nada me parece mais desejável do que a correlação entre as formas do corpo e as qualidades do espírito. "Importa grandemente à alma o corpo em que se aloja, pois muitas qualidades físicas afiam o espírito; outras o embotam." A citação tem porém em vista uma deformidade excepcional dos membros, mas não é somente a isso que chamamos feiura, e sim igualmente à má impressão que sentimos diante de uma fisionomia que nos repugna por certos pormenores, uma tez ruim, uma mancha, uma expressão dura, às vezes algo que não percebemos bem e que no entanto assenta em membros perfeitos. A feiura que, em La Boétie, vestia uma bela alma era desse gênero. Essa feiura superficial, a mais imperiosa não raro, pouco influi no espírito e pouco influi na opinião das gentes a nosso respeito. A outra feiura, que fora mais certo denominar deformidade, é mais efetiva e repercute amiúde em nós mesmos mais do que nos outros. Todo sapato bem ajustado faz sobressair a forma do pé, o que não ocorre se tão somente o couro é bem polido e brilhante. Quando se referia à sua feiura, dizia Sócrates que fora exatamente como sua alma, se a esta não houvesse corrigido. Mas penso que não o dizia a sério, pois nunca alma alguma tão perfeita se criou a si própria. Nunca insistirei demais em reputar a beleza uma qualidade poderosa e vantajosa. Sócrates denominava-a "uma breve tirania"; Platão considerava-a "um privilégio da natureza". Nada supera seu prestígio. Ocupa o primeiro lugar nas relações dos homens entre si; seduz e preocupa nosso espírito com sua grande autoridade e a maravilhosa impressão que produz. Friné houvera perdido sua causa, apesar do excelente advogado a quem a entregara, se, entreabrindo a túnica, não tivesse ofuscado os juízes com sua beleza. Ciro, Alexandre e César, esses senhores do mundo, não a desprezaram entre seus meios de ação; o que não fez o primeiro Cipião. Uma só palavra designava em grego o belo e o bom e o Santo Espírito diz não raro bom por belo. Eu não estou longe de classificar os bens outorgados ao homem de acordo com uma velha canção que Platão afirma ter sido muito popular: saúde, beleza, riqueza. Diz Aristóteles que aos belos cabe mandar e que quando a beleza se aproxima do divino merece a nossa veneração. A alguém que lhe perguntava por que se procurava mais comumente a companhia das pessoas belas, respondeu: "Só um cego pode indagá-lo". Os maiores filósofos pagaram sua aprendizagem e adquiriram sua sabedoria com sua beleza. Entre os meus servidores e mesmo entre meus animais não aprecio muito menos a beleza do que a bondade. Parece-me que as formas e as linhas do rosto, pelas quais se inferem algumas características internas, bem como algo de nosso destino, não têm relação direta com a beleza e a feiura, assim como um ar sereno e perfumado não garante a salubridade, nem uma atmosfera pesada e malcheirosa é indício certo de infecção em tempo de epidemia. Os que acusam as mulheres de desmentirem sua beleza com seus costumes, nem sempre acertam, pois em um rosto que deixe a desejar pode alojar-se a probidade, ao passo que muitas vezes deparamos em lindos olhos ameaças reveladoras de um caráter mau e perigoso. Há fisionomias que nos parecem favoráveis, e, entre inimigos desconhecidos que nos cercam de todos os lados, escolhemos de imediato um de preferência a outro, rendendo-nos a ele com mais confiança e sem que a beleza pese em nossa resolução. O rosto é uma garantia frágil; merece entretanto consideração. E se devesse castigar alguém, mostrar-me-ia mais severo com os perversos que desmentem a expressão que exibem, castigaria a maldade que se apresenta mascarada de bondade. Parece-me que há fisionomias acolhedoras e outras repelentes, e há uma certa arte em distinguir os rostos bondosos dos tolos, e os severos dos grosseiros, os maliciosos dos ressentidos, os desdenhosos dos melancólicos, bem como todos os que são donos de qualidades que pouco diferem umas das outras. Há belezas que não somente são altivas mas também rebarbativas; e outras há que além de doces são insossas. Quanto a prognosticar o futuro pela sua observação, é coisa sobre a qual prefiro não falar. Eu, por mim, como já o disse alhures, adotei o preceito antigo de que sempre acertaremos seguindo a natureza, e entendo que submeter-se a ela é regra soberana. Não corrigi minhas tendências naturais pela força da razão; sou com sou, e não combato coisa alguma. As duas partes essenciais de mim mesmo, o corpo e o espírito, mostram-se naturalmente dispostas a viver de acordo. Graças a Deus nasci e fui educado em uma época em que as ideias sãs e moderadas eram de rigor. Direi, de passagem, que vejo estimarem mais do que vale certa imagem de bondade escolástica, escrava dos preconceitos e limitada pela esperança e o temor. Amo-a, não como as leis e as religiões a fazem, mas como a completam e confirmam; a que pode sustentar-se sem ajuda; a que nasce de suas próprias raízes, mercê do senso comum, e se encontra em todo homem que não foi formado em oposição à natureza. Foi essa razão que corrigiu a alma de Sócrates, que o tornou obediente aos homens e aos deuses de sua cidade, e corajoso diante da morte; não porque sua alma é imortal mas porque ele próprio é mortal. Absurdo ensinamento, e muito mais absurdo do que engenhoso e sutil, é o que persuade aos povos de que basta a crença religiosa e que não há necessidade de bons costumes para contentar a justiça divina. Na realidade, evidencia-se a enorme diferença entre a devoção e a consciência. Tenho um rosto que agrada. Que disse? Tenho? Tive é que deveria ter dito. Ai de mim, já não vedes de minha pessoa senão o esqueleto de um corpo acabrunhado. Aconteceu-me, não raro, que simplesmente pelo efeito produzido pela minha atitude e meu aspecto, certas pessoas que não me conheciam confiassem plenamente em mim, o que me proporcionou no estrangeiro favores singulares e nada corriqueiros. Talvez tais experiências mereçam que as relate. Deliberou um sujeito assenhorear-se de mim e de minha casa; a fim de realizar seu intuito, apresentou-se à minha porta pedindo insistentemente para entrar. Conhecia-o de nome e pensava poder confiar nele porque era das vizinhanças e tinha algum parentesco comigo. Mandei-o entrar como faço com todos. Pois entrou apavorado, com o cavalo resfolegando, e contou-me esta fábula: "A uma légua dali acabara de encontrar um inimigo, que eu também conhecia, como conhecia a dissensão que existia entre eles. Esse inimigo lançara-se em sua perseguição e ele, desnorteado pela surpresa e pela superioridade em homens, precipitara-se em minha casa para se refugiar, muito preocupado aliás com os seus que imaginava mortos ou prisioneiros". Tentei muito ingenuamente consolá-lo e reconfortá-lo; eis senão quando quatro ou cinco de seus soldados se apresentam no mesmo estado de espírito; outros chegaram em seguida, e mais outros. Todos bem armados, em número de vinte e cinco e fingindo fugir ao inimigo. O mistério começava a inspirar-me suspeitas; não ignorava em que século vivemos, quanto minha casa era cobiçada e sabia de outras pessoas a quem haviam ocorrido desgraças em circunstâncias análogas. Vendo, porém, que outra coisa não podia fazer senão adequar-me ao caso, pois não havia como deixar de acolher os recém-chegados, mandei que entrassem, escolhendo o partido mais simples, como faço sempre. E preciso acrescentar que sou em geral pouco desconfiado por natureza; inclino-me a aceitar as desculpas que me dão e a interpretar os fatos no seu sentido mais favorável; encaro os homens como são geralmente e não acredito nos temperamentos perversos como não creio nos prodígios e milagres, a menos de haver testemunhos irrefutáveis. Demais, confio facilmente na sorte e a ela me entrego, do que tive até hoje antes razões para me louvar do que para me arrepender, tendo-a constatado mais avisada e amiga de meus interesses do que eu próprio. Há na minha vida algumas ações que, pela sua dificuldade, podem imaginar terem sido conduzidas pela minha perspicácia, mas mesmo essas a sorte contribuiu com dois terços para que tivessem êxito. Creio que nos malogramos não confiando suficientemente no céu e pretendendo que se deva mais a nosso esforço do que se deve na realidade. Mas quantas vezes não acertamos! A sorte prevê amiúde nossos desígnios e quanto mais os ampliamos tanto mais tende a burlar-nos. Em todo caso aqueles soldados permaneceram a cavalo no pátio, enquanto seu chefe se encontrava comigo na sala, sem haver permitido que levassem seu cavalo para as cocheiras e declarando que partiria logo que tivesse notícias de sua gente. Já estava senhor do lugar e só lhe restava executar seu projeto. Mais tarde repetiu amiúde (porque não se pejava de contar a coisa) que minha fisionomia e minha franqueza haviam superado o plano traidor que meditara. Montou novamente a cavalo, e seus homens, que tinham os olhos fixos nele, aguardando o sinal combinado, muito se espantaram ao vê-lo sair renunciando a aproveitar-se das vantagens que obtivera com seu estratagema. De outra feita, fiando-me de não sei que trégua de nossos exércitos, aventurei-me por uma região perigosa. Não me tinha adiantado muito quando três ou quatro magotes de cavaleiros se lançaram de diversos lados em minha perseguição. Um deles me alcançou no terceiro dia de marcha e vi-me assaltado por quinze ou vinte fidalgos mascarados, acompanhados de seus arcabuzeiros. Fui obrigado a render-me e levado ao fundo de um bosque próximo onde me tiraram tudo, dinheiro, bagagens e cavalos. Permanecemos durante muito tempo a discutir a importância fixada para meu resgate, tão elevada aliás que bem se via que não me conheciam. E debateram longamente entre eles se me deixavam a vida ou não. Em verdade, certas circunstâncias sugeriam que estava correndo grave risco, "então Enéias teve que mostrar coragem e resolução". Eu mantinha-me firme, alegando a trégua, decidido a não ceder senão o que me haviam confiscado - e não era pouco. Após duas ou três horas de discussão, deram-me um cavalo com uma escolta de quinze ou vinte arcabuzeiros, dispersaram meus homens entre os demais e levaram-nos prisioneiros. Já estávamos à distância de dois ou três tiros de arcabuz, e implorando Castor e Pólux, quando se verificou uma inesperada mudança em sua atitude. Veio a mim o chefe do bando e, com palavras comedidas, mandou que me devolvessem meus arreios bem como o meu cofre. O melhor presente que me deram foi contudo a liberdade, pois o resto me preocupava pouco. Não percebo bem até hoje as razões da mudança, desse arrependimento estranho em empresa meditada, executada deliberadamente e justificada pelos costumes da época, porquanto desde o início lhes confessara a que partido pertencia e para onde me dirigia. O indivíduo que a todos comandava, desmascarou-se e revelou-me seu nome e disse-me várias vezes que eu devia minha liberdade à minha fisionomia e à firmeza de minhas palavras, o que tornava tal tratamento indigno de mim. E pedia-me que em circunstâncias análogas com ele agisse do mesmo modo. É possível que a bondade divina houvesse querido empregar meios tão aleatórios na minha conservação; serviram-me aliás no dia seguinte contra armadilhas piores do que aquelas a que acabava de escapar e de que me haviam advertido. A pessoa que tive de enfrentar nesta última aventura ainda vive e pode confirmá-la; o ator da primeira foi morto há pouco tempo. Se meu semblante não respondesse por mim, e se eu não revelasse nos olhos e na voz a inocência de minhas intenções, não ficara sem disputas nem ofensas tanto tempo, dada minha indiscreta maneira de dizer as coisas, a torto e a direito, e de tudo julgar temerariamente. Essa maneira pode parecer indelicada e contrária aos usos, mas não encontrei ninguém que a tenha considerado injuriosa ou mal-intencionada, nem vi quem quer que fosse que minha liberdade magoasse. Isso em relação a minhas próprias palavras, pois quanto aos diz-que-diz-que, outro é o tom e diferente o sentido. Não odeio ninguém e não me apraz ofender, ainda que com razão. Quando a oportunidade me foi dada de condenar alguém, sempre preferi faltar ao dever: "Gostaria que não cometessem crimes, mas não tenho coragem de punir os que os cometeram". Censuravam a Aristóteles ter sido demasiado benevolente com um perverso: "Fui de fato benevolente", respondeu, "mas com o homem e não com o crime". Os julgamentos são em geral tanto mais severos quanto mais lamentáveis os crimes; a impressão que tenho diante de minhas faltas é diversa: o horror do primeiro crime leva-me a temer um segundo, o ódio que sinto contra a crueldade cometida induz-me a evitar a repetição e inclino-me para a doçura. Aplica-se a mim, personagem de pouca importância, o que se dizia de Carilo, rei de Esparta, isto é, que não podia ser bom com os bons, pois que não sabia ser mau com os maus. Mas também fora possível interpretar tal atitude como faz Plutarco: "Era tão bom que até com os maus o era". Assim como me desagrada intervir licitamente contra aqueles a quem isso possa aborrecer, muito mais me desgosta, em verdade, agir ilicitamente contra os que se comprazem no ilícito. CAPÍTULO XIII DA EXPERIÊNCIA O desejo de conhecimento é o mais natural. Experimentamos todos os meios suscetíveis de satisfazê-lo, e quando a razão não basta apelamos para a experiência. Através de várias provas, a experiência cria a arte e o exemplo alheio mostra-nos o caminho. Este segundo processo é menos seguro do que o primeiro e menos digno; mas a verdade é tão valiosa que nada devemos desdenhar, capaz de nos levar a ela. A razão assume tantas formas que não sabemos qual escolher. A experiência igualmente; e as consequências que procuramos tirar da comparação dos acontecimentos não oferecem segurança, porquanto não são jamais idênticas. O que encontramos nas coisas mais semelhantes é a diversidade, a variedade. Como exemplo de semelhança perfeita citamos, com os gregos e os latinos, a existente entre os ovos; entretanto, houve indivíduos, em Delfos particularmente, que sabiam não somente distinguir de que galinheiro provinha o ovo,mas ainda de que galinha. A diferença introduz-se por si só em nossas obras e nenhuma arte pode chegar à similitude. Nem Perrozet nem ninguém é capaz de polir e branquear o reverso de suas cartas a ponto de um jogador experimentado não as reconhecer simplesmente ao vê-las manuseadas. A semelhança não unifica na mesma proporção em que a dessemelhança diversifica. A natureza parece ter-se esforçado por não criar duas coisas idênticas. Por isso não acredito que, como pensava alguém, em se multiplicando as leis reprimiríamos a autoridade dos juízes, porque pouco teriam que decidir. Não pensava que a interpretação deixa grande margem para uma inteira liberdade de julgamento. Engana-se quem imagina acabar com nossas discussões citando um texto preciso da Bíblia; nosso espírito descobre tantas razões para criticar a interpretação alheia quanto para defender a nossa, e tanto comentar como inventar prestam-se às mais acerbas discussões. E bem vemos que a opinião desse indivíduo está errada, pois temos em França maior número de leis do que os demais países reunidos e mais do que seria necessário para governar todos os mundos de Epicuro: Sofremos tanto das leis como outrora dos crimes. Entretanto, nossos juízes opinam e julgam com uma liberdade e autoridade poderosas e escandalosas. Que ganharam nossos legisladores com selecionar cem mil espécies e fatos específicos e provê-los de cem mil leis? Esse número não está em proporção com a diversidade infinita dos atos humanos, nem a multiplicidade de nossas invenções alcançará jamais a variedade dos exemplos. Acrescentem cem vezes mais leis e não deixará de suceder que nas ocorrências vindouras alguma se encontre, em meio às escolhidas e registradas, que requeira ponderação e juízo diferentes. Pouca relação existe entre nossos atos, sempre em perpétua transformação, e as leis que são fixas e estáticas. O mais desejável a esse respeito é que estas sejam as mais simples possíveis e concebidas em termos gerais; e fora ainda melhor não as ter do que as possuir tão numerosas. A natureza cria sempre leis melhores do que as nossas. Atestam-no a idade de ouro de que falam os poetas e o estado natural em que vemos viverem os povos que não conhecem leis artificiais. Alguns há que tomam por juiz o primeiro viajante que passa pelas suas montanhas; outros elegem, em determinado momento, uma pessoa qualquer para dirimir suas dúvidas. Que perigo haveria em que os mais sábios resolvessem as nossas, segundo as circunstâncias, sem se aferrar a precedentes nem a consequências? Cada pé requer um sapato, cada caso sua solução. O Rei Fernando, ao enviar colonos para as Índias, muito sabiamente determinou que não se mandassem jurisconsultos, a fim de evitar que se introduzissem demandas no Novo Mundo, pois julgava com razão que a ciência da justiça gera altercações e dissensões. Na sua opinião, como na de Platão, jurisconsultos e médicos são maus elementos em um país. Por que nossa linguagem comum, tão cômoda e fácil, se torna obscura e ininteligível quando empregada em contratos e testamentos? Por que os que se exprimem tão claramente quando falam ou escrevem, não acham jeito de não se confundir ou se contradizer em atos desse gênero? É porque os príncipes dessa arte se aplicam com especial cuidado em escolher vocábulos solenes, frases artisticamente construídas, e tanto pesam cada sílaba, sutilizam cada termo, que nos embaraçam e embrulham na multiplicidade das fórmulas e das minúcias; e não mais distinguimos regras ou prescrições e não entendemos absolutamente mais nada: "Tudo o que se divide até se reduzir a pó, faz-se confuso". Quem não viu uma criança tentar dar forma a uma bola de mercúrio? Quanto mais se obstina, tanto mais se fragmenta o metal rebelde e se dispersa em gotas incontáveis. O mesmo sucede na jurisprudência. Multiplicando-se as sutilezas, ensina-se aos homens a aumentarem as dúvidas, a estenderem e diversificarem as dificuldades; ampliam-se e dispersam-se. Semeando questões e retalhando-as, fazemos com que frutifiquem a incerteza e a dissensão; assim se torna a terra mais fértil na medida em que mais profundamente se remove. As dificuldades nascem das doutrinas. Duvidamos com Ulpiano, duvidamos ainda mais com Bártolo e Baldo. Fora preciso apagar os vestígios dessas inumeráveis opiniões, em vez de nos enfeitarmos com elas e transmiti-Ias ampliadas à posteridade. Sabemos por experiência que a pluralidade de interpretações dissipa e desagrega a verdade. Aristóteles escreveu para ser entendido; se não o logrou, menos logrará alguém menos hábil do que ele e menos conhecedor das ideias de quem as expôs. Fragmentamos a matéria; de um assunto fazemos mil e caímos, multiplicando-os e dividindo-os, nessa infinidade de átomos que imaginara Epicuro. Nunca duas pessoas julgaram uma mesma coisa da mesma maneira e é impossível observarem-se duas opiniões idênticas, não só de indivíduos diferentes mas ainda de um mesmo homem em dois momentos diversos. Duvido em geral acerca de pontos não comentados; tropeço facilmente onde não há dificuldades, como certos cavalos que são menos seguros nos caminhos batidos e planos. Quem há de negar que as aplicações aumentam as dúvidas e a ignorância, quando vê que a interpretação não dirimiu nenhuma dificuldade de nenhum texto humano ou divino? O centésimo comentador transmite-o ao seguinte, mais espinhoso e escabroso do que o recebera de seu antecessor. Quando nos aconteceu convir em que determinado livro já fora suficientemente analisado? Isso se observa melhor ainda na chicana, pois então outorgamos autoridade legal a inúmeros doutores, decisões e interpretações. Poremos fim algum dia a essa mania de interpretar? Teremos feito algum progresso no caminho da tranquilidade? Precisamos de menos juízes e advogados do que quando essa massa de leis ainda se achava na primeira infância? Ao contrário, obscurecemos-lhes e abafamos-lhes a compreensão, que já não percebemos senão através de tapumes e barreiras. Os homens desconhecem a enfermidade de seu espírito, o qual não faz senão fuçar, conjeturar, chafurdar na sua agitação até se afogar nela, como o bicho-da-seda ou como um camundongo no pez. Pensa, de longe, ver certa aparência de luz e de verdade imaginárias, mas ao acercar-se surgem os obstáculos, as novas pesquisas, e ei-lo perdido e estonteado. É o caso dos cães de Esopo que, vendo um corpo a flutuar no oceano e não o podendo alcançar, resolveram beber a água para secar o mar, e morreram. E Crates dizia dos escritos de Heráclito, que necessitavam de um leitor bom nadador para que não se afogasse na profundidade e no peso da doutrina. Só por fraqueza nos contentamos com o que outros e nós mesmos deparamos nessa caça ao saber; os mais aptos não se satisfazem e haverá sempre caminho a percorrer para quem vier depois, e até para nós se agirmos de outro modo. Nossas investigações só chegarão ao fim no outro mundo. Contentar-se é sinal de falta de fôlego ou de lassidão. Nenhum espírito generoso se detém por si mesmo, antes vai: sempre para diante e além de suas forças. Se não se afana, não se apressa, não acua, não se choca, não gira sobre si mesmo, é porque não está vivo, vegeta. Suas buscas não têm forma nem fim; alimenta-se de admiração, de pesquisas, de dúvidas, o que demonstrava Apolo falando sempre com duplo sentido, obscura e obliquamente, não nos dando satisfação e sim despertando nossa imaginação, e excitando-a. Trata-se de um movimento irregular, perpétuo, sem molde e sem objetivo, cujas invenções se estimulam, se sucedem e se criam mutuamente: "Assim se vê no arroio contemplando a água que após a água vai correndo, em uma ordem eternamente igual. A água persegue a água que foge, a qual outra persegue igualmente. Uma por outra é empurrada e uma precede sempre a outra. A água segue a água e é variável. Mas o rio é sempre o mesmo, imutável." Interpretar as interpretações dá mais trabalho do que interpretar a própria coisa, mas escrevemos mais livros sobre livros do que sobre os assuntos mesmos; comentamo-nos uns aos outros. Há excesso de comentadores mas escassez de autores. A principal ciência do século consiste em entender os sábios; não está nisso o fim último de nossos estudos? Nossas opiniões sustentam-se mutuamente, uma serve de degrau à outra e assim acontece que quem sobe mais alto e maior reputação adquire não tem em verdade grande mérito, pois não fez senão superar de um átimo o que vem logo abaixo. Quantas vezes, e quiçá tolamente, não ampliei meu livro fazendo com que falasse de si mesmo? Tolice, mesmo porque devia ter-me lembrado do que digo dos outros: "todas essas olhadelas na própria obra atestam que o coração sente por ela muita ternura; e mesmo quando a maltratam e fingem desprezá-la, na realidade não fazem senão disfarçar o amor materno". É o que diz Aristóteles, acrescentando que a estima e o desdém de si mesmo se traduzem com o mesmo ar arrogante. Tenho contudo uma desculpa: cabe-me o direito à maior liberdade, porquanto é precisamente de mim mesmo e de meus escritos que trato neste livro; mas não sei se aceitarão a desculpa. Lutero, na Alemanha, provocou mais dúvidas e dissensões acerca de suas ideias do que teve a respeito das Santas Escrituras. Tudo é questão de palavras e se resolve com palavras. Uma pedra é um corpo, mas, se perguntarmos o que é um corpo, responderão: substância. E que é substância? etc. Interrogado dessa maneira, qualquer um logo se sente acuado. Muda-se uma palavra por outra, as mais das vezes desconhecida. Sei o que é um homem, mas sei menos o que seja um animal, um mortal, um ser dotado de razão; para libertar-me de uma dúvida impingem-me três; é a cabeça da hidra. Sócrates indagou de Mênon em que consistia a virtude. "Há", respondeu Mênon, "virtude de homem, virtude de mulher, de magistrado, de particular, de criança, de velho." "Ótimo", observou Sócrates, "andávamos à procura de uma virtude e dão-nos um enxame." Fazemos uma pergunta e respondem-nos com um punhado de interrogações. Assim, pois, como nenhum fato nem forma se assemelha inteiramente a outro, tampouco difere por completo. Se nossos rostos não se parecessem, não poderíamos distinguir o homem do bicho; e se fossem idênticos, um indivíduo não se distinguiria de outro. Tudo comporta alguma semelhança, mas a identidade com um dado exemplo nunca é absoluta; conseguintemente, a relação inferida da experiência é sempre imperfeita. Entretanto, as comparações ligam-se entre si por alguma parte; é o que ocorre com as leis que, mediante interpretações sutis, forçadas e indiretas, adaptamos aos casos que se vão apresentando. Sendo as leis éticas - as que regulam o dever particular de cada um consigo mesmo - tão difíceis de se estabelecerem, não há como estranhar que as que governam a muitos o sejam mais ainda. Considerai as formas da justiça que nos rege: são um autêntico testemunho da imbecilidade humana, tal o número de contradições e erros que computam. E o fato de depararmos com tanto rigor e tanta indulgência ao mesmo tempo na justiça, prova que há membros enfermos no próprio corpo e essência da jurisprudência. Neste momento mesmo em que escrevo, alguns camponeses vêm avisar-me de que encontraram à entrada da floresta um homem moído de pancadas e que lhes pedia água e ajuda para erguer-se. Não ousaram aproximar-se, dizem-me, e fugiram com medo de serem presos por policiais (como fazem estes com quem é visto ao lado de um cadáver) e terem de explicar o acidente, o que seria um desastre para eles, sem o dinheiro nem os meios com que provar sua inocência. Que podia censurar-lhes? É certo que, atendendo a seu dever de humanidade, se teriam comprometido. Quantos inocentes sabemos terem sido punidos, sem culpa sequer dos juízes? E quantos o foram que não conhecemos? Eis um fato ocorrido há tempos. Uns indivíduos são condenados por homicídio, e já se ia executar a sentença quando os juízes são informados por oficiais de justiça de um tribunal de instância inferior de que seus presos acabam de confessar categoricamente a autoria do crime, o que esclarece por completo a questão. Deliberam então os juízes sobre se se deve sustar a execução da sentença já proferida; ponderam o ineditismo do caso, e as consequências que podem advir para os julgamentos futuros; e concordam em que a sentença era válida porquanto juridicamente certa. E os pobres-diabos foram enforcados em holocausto ao formalismo da justiça. Filipe da Macedônia, ou outro qualquer, não sei bem, resolveu uma questão semelhante da seguinte maneira: condenara um indivíduo a pagar a outro forte indenização e tempos depois verificou-se que julgara iniquamente. De um lado havia o interesse da causa que era justa, de outro a razão das formas judiciais que tinham sido honestamente observadas. Filipe mandou que confirmassem a sentença e de seu bolso ressarciu os prejuízos sofridos pelo condenado. Mas o caso era reparável, enquanto na questão precedente os réus perderam a vida. Quantas condenações mais criminosas do que o crime não tive a oportunidade de ver! Isso tudo leva-me a recordar antigos princípios como este: quem deseja o triunfo do direito nas questões gerais, é forçado a sacrificá-lo nas coisas de menor importância; a injustiça no pormenor é necessária à justiça no todo. A justiça é como a medicina: tudo o que é útil é por isso mesmo, honesto e justo. O que corresponde às ideias dos estoicos: "a própria natureza em boa parte de suas obras age contra a justiça". E admitem os cirenaicos que nada é justo em si; os costumes e as leis é que determinam o que é justo e o que o não é. E os teodorianos pensam que o furto, o sacrilégio e os atos imorais de qualquer espécie se justificam aos olhos do sábio, desde que possam ser úteis. Contra isso não há nada a fazer e, como Alcibíades, limito-me a dizer que nunca, se puder, me entregarei a alguém com direito de vida e morte sobre mim e cuja decisão se inspirará muito mais no talento e na habilidade de meu advogado do que na minha inocência. Eu só me arriscaria diante de um tribunal com capacidade para conhecer de minhas boas e más ações e do qual tanto teria a temer como a esperar. Uma simples absolvição não pode satisfazer quem tenha feito algo mais do que não cometer um crime. Nossa justiça só nos mostra uma de suas mãos, e ainda por cima a esquerda; quem quer que seja com ela sai sempre perdendo. Na China, as instituições e as artes, que divergem consideravelmente das nossas e que conhecemos mal, superam amiúde, por sua excelência, o que ocorre em França. Por esses exemplos verificamos a que ponto o mundo é maior e mais variado do que os antigos - e nós mesmos - imaginamos. Ali são enviados oficiais a todos os recantos do Império, a fim de controlar o estado das províncias; e assim como punem os que prevaricam e roubam, recompensam generosamente os que se conduzem melhor do que os demais e fazem mais do que devem. Desse modo não comparecem os indivíduos perante a justiça para salvar-se e sim para ganhar alguma coisa, não esperam unicamente equidade e sim honrarias. Graças a Deus, nenhum juiz me falou até agora como juiz, nem em causa minha nem em de terceiros, nem no cível nem no criminal. Nunca entrei numa prisão sequer para visitá-la; minha imaginação torna a coisa desagradável mesmo de fora. Sou tão ávido de liberdade que, se me proibissem o acesso a algum recanto das Índias, passaria a viver por assim dizer incomodamente; e enquanto houver um lugar em que a terra e o mar sejam livres, não residirei onde precise esconder-me. Como sofreria nas condições em que vejo certas pessoas, obrigadas a residir em uma dada região do reino, proibidas de utilizar as estradas, de entrar nas cidades e na corte, porque infringiram as leis! Se aquelas sob as quais vivo ameaçassem sequer a ponta de meu dedo, iria imediatamente acolher-me à sombra de outras, fosse onde fosse. Toda a minha pequena prudência, emprego-a, durante as guerras civis que nos afligem, em evitar que entravem minha liberdade de locomoção. A autoridade das leis não está no fato de serem justas e sim no de serem leis. Nisso reside o mistério de seu poder; não têm outra base, e essa lhes basta. Foram não raro feitas por tolos; mais vezes ainda por indivíduos que, no seu ódio à igualdade, incorriam em falta de equidade; mas sempre por homens e portanto por autores irresolutos e frívolos. Nada há tão grave, ampla e comumente defeituoso quanto as leis; quem as obedece porque são justas, labora em erro, pois é a única coisa que em verdade não são. As leis francesas, pela sua confusão e sua deformidade, prestam-se à desordem e à corrupção que se verificam em sua aplicação. Seu conteúdo é tão obscuro e assenta em princípios tão variáveis, que os que lhes desobedecem, as interpretam, observam ou aplicam mal são desculpáveis. Qualquer que seja o fruto que tiremos da experiência, o que nos vier do estrangeiro não servirá para as nossas instituições enquanto utilizarmos tão mal as leis que nos demos, com as quais estamos familiarizados e que por certo são suficientes para instruir-nos acerca de tudo de que precisamos. Estudo-me a mim mesmo mais do que qualquer outra coisa e esse estudo constitui toda a minha física e a minha metafísica: "De que modo Deus governa o mundo? Que caminho percorre a lua? Como, reunindo sua dupla foice, se encontra ela cheia todos os meses? De onde vêm os ventos que comandam os mares e qual a influência do que vem do sul? Quais as águas que formam as nuvens? Ocorrerá um dia a destruição do mundo? Procurai, vós que o desejo de aprofundar os mistérios da natureza atormenta. Nesse grande todo abandono-me despreocupado e ignorante à grande lei geral que rege o mundo; conhecê-la-ei suficientemente quando lhe sentir os efeitos. Meu saber não pode afastá-la de seu caminho; não se modificará por mim, seria loucura esperá-lo; e maior loucura ainda aborrecer-me, pois necessariamente é ela igual, para todos e a todos se aplica. A bondade, o poder de quem governa o mundo eximem-nos de qualquer ingerência em suas leis. As pesquisas e as contemplações dos filósofos servem apenas de alimento para nossa curiosidade. Têm razão quando nos apontam a natureza; mas de que vale tão sublime conhecimento? Eles falsificam-lhe as regras e no-la apresentam com um rosto pintado e tão sofisticado que mal a reconhecemos nessa variedade de retratos de um mesmo modelo. Deu-nos a natureza pés para andar e prudência para nos conduzirmos na vida. Essa prudência não é, como a imaginaram, um complexo de finura, força e ostentação; é, como disse alguém, fácil, tranquila, salutar e eficiente para quem a empregar com inocência e oportunidade, isto é, naturalmente. Entregar-se simplesmente à natureza é a melhor maneira de confiar nela. Como a ignorância e a ausência de curiosidade constituem um doce e mole travesseiro para descansar uma cabeça equilibrada! Gostaria mais de entender bem o que se verifica em mim do que compreender perfeitamente Cícero. Na minha experiência própria já tenho com que me tornar sábio, desde que atente para seus ensinamentos. Quem se lembra do papel feio que fez quando tomado de cólera e a que excessos essa febre o impeliu, já sabe a que ponto tal paixão é lamentável e não precisa que lho diga Aristóteles. Quem se recorda dos males de que foi vítima, ou de que se viu ameaçado, e das circunstâncias sem gravidade que o puderam perturbar, já se acha preparado para as agitações futuras e conhece sua condição. A vida de César não nos oferece mais exemplos do que a nossa, porque tanto a de um imperador como a de um homem vulgar são vidas humanas e sujeitas a todos os acidentes humanos. Escutemos nossa experiência, e veremos que nos diz tudo aquilo de que temos necessidade especial. Não é um tolo quem não desconfia afinal de seu juízo, se reconhece ter sido por ele enganado mil vezes? Quando me convenço, diante dos argumentos que me apresentam, de que minha opinião é errônea, não é tanto a ignorância que se evidencia a meus olhos - seria pouco - é minha fragilidade que constato, é a traição de minha inteligência, e chego à conclusão de que tudo está a exigir reforma. Em todos os meus outros erros, ajo da mesma maneira e tiro dessa regra grande proveito na vida. Não olho, no caso, o fato, como uma pedra em que ocasionalmente tropeço; o que ele me revela é que possivelmente tudo precisa ser revisto e reajustado. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice, pouca importância tem; o importante é saber que somos tolos. Os maus passos que minha memória me fez dar, mesmo quando mais confiava nela, não foram inúteis. Hoje pode ela jurar-me que está segura de si, não acredito mais, e qualquer objeção que oponham a seu testemunho, põe-me de sobreaviso. Não ousaria contar com ela para algo sério, nem endossá-la quando se trata de coisas executadas por outrem, e se não fosse porque o que faço às vezes por falta de memória fazem-no os outros por má-fé, daria por certo o que sai de boca alheia mais do que o que sai da minha. Se cada um observasse de perto as causas e os efeitos das paixões que o dominam, como eu estudo as minhas, vê-las-ia aproximarem-se e lhes atenuaria a violência. Nem sempre nos pegam de improviso pela garganta; ameaçando-nos é que começam, e em seguida nos invadem a pouco e pouco: "Assim o primeiro sopro do vento clareia o mar, incha-o, arma suas ondas e aos poucos leva até as nuvens as águas dos abismos". O julgamento ocupa em mim o primeiro lugar; ao menos esforça-se por isso. Deixa inteira liberdade a meus apetites; nem o ódio, nem a amizade, nem a afeição que dedico a mim mesmo o alteram ou corrompem; e se ele não pode modificar meus outros elementos a seu modo, não permite, ao menos, que o deformem. O conselho de nos conhecermos a nós mesmos deve ser de importância capital, porquanto o deus da ciência e da luz fê-lo gravar no frontispício de seu templo, como se compreendesse tudo o que nos podia recomendar. Platão diz que a prudência não é outra coisa senão a aplicação dessa máxima, e Sócrates, em Xenofonte, desenvolve-a longa e minuciosamente. As dificuldades e obscuridades de cada ciência, só as percebem os que a conhecem, porque é preciso certo grau de inteligência para saber o que se ignora; é empurrando a porta que verificamos se está fechada. Foi o que deu origem a este aforismo da escola de Platão: "os que sabem, não precisam investigar porque sabem, porquanto para fazê-lo é necessário saber que se investiga". Assim, conhecer-se a si mesmo significa que embora todos se mostrem muito afirmativos e satisfeitos e se imaginem bastante entendidos, na realidade nada sabem, como o demonstra Sócrates a Eutidemo. Eu, que penso desse modo, vejo nessas palavras uma profundidade tão variada e infinita que o que aprendo não comporta outro resultado senão o de me fazer sentir quanto me resta ainda por aprender. À minha debilidade, tão amiúde reconhecida, devo a inclinação que tenho para a modéstia, para a obediência às crenças que me prescrevem, para a serenidade e a moderação nas minhas ideias, bem como o ódio que experimento contra a arrogância importuna e belicosa, inimiga figadal de toda disciplina e de toda verdade, dos que só creem e só confiam em si mesmos. Escutai-os e vereis que, qualquer tolice que digam, sempre se expressam em um estilo de profeta e legislador. "Nada é mais vergonhoso do que afirmar e decidir, antes de compreender e de saber?" Aristarco dizia que só se haviam encontrado outrora sete sábios no mundo inteiro, e que em sua época fora difícil descobrir sete ignorantes; não teríamos mais razão do que ele para dizê-lo de nosso século? A afirmação e a obstinação são sinais evidentes de estupidez. Há quem beije a terra cem vezes em um dia e no entanto continue a provocar, mais afirmativo e obstinado do que nunca. Dir-se-ia que lhe infundiram uma alma nova e lhe retemperaram as forças, e lhe acontece o que ocorria com aquele filho da Terra que se fortalecia com as quedas, renova as esgotadas forças de seus membros ao tocar a terra. Pensa o indócil cabeçudo que adquire novo engenho para iniciar uma nova luta. É por experiência que acuso a ignorância humana de ser o que produz de mais seguro a escola do mundo. Os que não quiserem admitir minha opinião (em verdade sem consequência) ou hesitam ante o que veem, hão de concordar diante do pensamento de Sócrates, o mestre dos mestres, de quem Antístenes dizia a seus discípulos: "Vamos ouvir Sócrates; aí serei um discípulo como vós". Esse mesmo filósofo, dissertando acerca do dogma estoico, de que "a virtude basta para assegurar a felicidade da vida, nada mais se necessitando", acrescentava: "a não ser da firmeza de ânimo de Sócrates". A atenção que de há muito aplico em analisar-me, habilita-me a julgar com algum discernimento os outros. E de poucas coisas falo com mais êxito e competência. Ocorreu-me não raro distinguir com mais justeza do que eles próprios as boas ou más disposições em que se encontravam meus amigos; alguns houve que espantei com a exatidão de minhas observações e que pus de sobreaviso contra si mesmos. Habituado desde a infância a estudar minha vida olhando-me na dos outros, adquiri uma aptidão real a escrutá-las; e quando me esforço, poucas coisas me escapam das que se verificam ao redor de mim e possam auxiliar-me nessa tarefa: fisionomias, raciocínios, tendências. Tudo estudo: o que convém evitar e o que cumpre imitar. Por isso percebo em meus amigos, pelo que fazem, o estado de alma em que se acham, embora não vise com isso classificar em gêneros e espécies essa infinita variedade de ações tão diversas pela sua natureza e forma, e em seguida juntá-los em classes e divisões conhecidas, "pois fora impossível enumerar todos os nomes e espécies, tão numerosos são". Os sábios falam e expressam suas ideias mais específicas e minuciosamente; mas eu, que só sei e vejo o que o uso me ensina, apresento as minhas sem obedecer a regras, ao acaso e parceladamente, como coisas que não cabe dizer em conjunto e de uma vez, pois nada se impõe pela harmonia nas almas vulgares como as nossas. A sabedoria é um edifício sólido e que constitui um todo; cada peça ocupa seu lugar certo e traz-lhe a marca; "somente a sabedoria se encerra toda em si mesma". Deixo aos artistas - e não sei se o conseguem em se tratando de coisa tão fortuita - o cuidado de distribuir por categorias a variedade imensa dos aspectos, fixando e ordenando a nossa inconstância. Não somente acho difícil ligar nossos atos uns aos outros, mas ainda encontrar a qualidade essencial de cada um, suscetível de defini-lo de um modo específico, já que são tão variegados e numerosos. Afirmava-se que Perseu, rei da Macedônia, era um homem raro, porque seu espírito não se preocupava com nada, não se fixava em coisa alguma e porque ele levava assim todos os gêneros de vida com hábitos tão livres e cambiantes que nem ele próprio nem os outros podiam saber que tipo de homem era. Penso que o mesmo, pouco mais ou menos, se pode afirmar de todo mundo. E em particular de alguém que conheço, a quem se aplicaria melhor ainda, creio: não tem sossego, vai de um extremo a outro sem motivo plausível; sua vida sem brilho não mostra nem reveses nem contrariedades sérias; não tem nenhuma qualidade nitidamente caracterizada; e dele se dirá provavelmente um dia que procurou tornar-se conhecido como um ser impenetrável. É preciso ter ouvidos duros para escutar um julgamento franco; e como poucos o suportam sem revolta, os que se arriscam a prestar-nos esse serviço dão-nos uma prova de amizade pouco comum, pois só o amor justifica que nos firam e ofendam para beneficiar-nos. Acho difícil julgar alguém cujos defeitos superam as qualidades; e Platão impõe ao juiz três condições: ser capaz, ser generoso e ser ousado. Perguntaram-me de uma feita o que eu pensava que fora capaz de fazer se me houvessem empregado na idade de servir, "quando um sangue mais vivo corria em minhas veias e que a velhice invejosa não tinha ainda embranquecido as minhas têmporas. Nada, respondi. E congratulo-me por não saber nada que me houvera tornado escravo de alguém. Mas fora capaz de dizer verdades a meu senhor e criticar-lhe os costumes, se ele quisesse. Não o fizera em teoria, valendo-me da filosofia, o que não sei fazer e que não creio tenha modificado realmente quem o sabe, mas observando-o em detalhe, nos momentos oportunos, julgando seus feitos e gestos um por um, simplesmente, naturalmente, mostrando-lhe o que pensam dele e não o que lhe asseguram os cortesãos. Nenhum de nós valeria mais do que os reis, se, como eles, vivesse continuamente corrompido por essa canalha. E como não hão de sucumbir a essa corrupção, se o próprio Alexandre, grande rei e grande filósofo, não pôde preservar-se? Eu teria tido bastante fidelidade, julgamento e liberdade para isso. Um tal ofício não seria remunerado, sem o que perderia sua eficiência e seu mérito, pois é cargo que não poderia ser preenchido por qualquer pessoa, não tendo a verdade o privilégio de se manifestar a qualquer momento e propósito. Por nobre que seja, seu uso tem seus limites. Acontece não raro que, dada a natureza das coisas, dizer a verdade ao ouvido do príncipe pode ser contraproducente e mesmo injusto. Uma crítica merecida pode aplicar-se erroneamente, porque o interesse do conteúdo deve por vezes dar prioridade às exigências imediatas da conveniência. Para tal cargo eu indicaria um homem satisfeito com a sorte, "que quisera ser o que é e nada mais", de situação social e financeira regular. Assim, por um lado não teria receio de, molestando o príncipe, prejudicar a própria carreira e, por outro, poderia comunicar-se com toda classe de gente. Proporia também que somente uma pessoa ocupasse o cargo, pois atribuir tal liberdade e familiaridade a muitos acarretaria . uma perniciosa irreverência. Finalmente exigiria de um tal personagem uma estrita discrição. Não há como acreditar em um rei que se vanglorie de suportar os ataques de seus inimigos quando, para se corrigir proveitosamente, não aceita a liberdade de linguagem de amigo, tanto mais quanto não se lhe pede senão que ouça; tudo o mais é de sua própria alçada. Não há homens que mais do que o príncipe necessitem de sinceras e livres advertências. Levam uma vida pública e são objeto de todas as curiosidades e juízos. E, como sempre lhes escondem tudo, acabam incorrendo nas iras de todos, quando, com um pequeno esforço, o teriam evitado, sem dano para suas satisfações próprias, tão somente ouvindo esclarecimentos oportunos. Em geral os favoritos atentam para seus interesses pessoais mais do que para os do seu senhor; e logram êxito com isso, porquanto, infelizmente, os verdadeiros serviços que um autêntico amigo pode prestar a um soberano são rudes e arriscados. Por isso exigem, além de muita afeição e franqueza, muita coragem. Em suma, todo este ensopado de frases aqui jogadas algo confusamente constitui uma espécie de registro das experiências de minha vida. No que concerne à saúde do espírito, fornecem elas muitos exemplos instrutivos, conquanto façam o contrário do que disse e eu mesmo fiz. Quanto à saúde do corpo ninguém há de falar com maior experiência do que eu, e ofereço-a em toda a sua pureza, não alterada por artifícios ou preconceitos. E quando se trata de medicina ela está à vontade; a razão cede-lhe seu lugar. Dizia Tibério que bastava ter vivido vinte anos para saber o que nos convém e o que nos é nocivo; e poder, portanto, dispensar o médico. Deve ter aprendido isso com Sócrates, o qual recomendava a seus discípulos, como estudo principal, o da própria saúde, acrescentando que um homem de bom senso, simplesmente com observar seus atos, sua maneira de comer e beber, devia distinguir, melhor do que o médico, o útil e o prejudicial. Proclamando a medicina que assenta seus mandamentos na experiência, observa Platão que o médico precisava então ter sido vítima de todas as doenças que pretende curar, e nas circunstâncias em que lhe cumpre pronunciar-se. Assim, para curar a sífilis devia primeiramente contraí-la. Nesses médicos eu confiaria. Os outros agem como quem, em segurança, pinta sobre a mesa mares, portos e recifes e passeia por eles um navio de brinquedo; na presença da realidade não saberia como conduzir-se. Descrevem os médicos nossos males como um pregoeiro de aldeia descreve o cavalo ou o cão perdidos, dizendo a cor do pelo, o tamanho e a raça, mas incapazes de reconhecê-lo se lho apresentam. Por Deus, se a medicina me prestar um dia algum serviço eficaz, não deixarei de proclamar: "enfim, eis uma ciência de resultados palpáveis". As artes que nos prometem a saúde do corpo e da alma muito prometem, mas não há nenhuma que cumpra menos suas promessas. Entre nós, os que exercem essas profissões são os que menos mostram sua eficiência; pode-se dizer deles que vendem drogas medicinais, mas não que sejam médicos. Vivi bastante para que me julgue no direito de expor as práticas que me levaram tão longe. Quem o quiser tentar que atente para minhas informações. Eis algumas dessas práticas que relato ao sabor da memória. Embora minha maneira de ser tenha variado de acordo com as circunstâncias, certas práticas foram seguidas mais do que outras; relato aqui as que empreguei mais habitualmente até agora. Doente ou com saúde meu modo de vida é idêntico. Uso o mesmo leito, as horas de refeição não mudam, como e bebo as mesmas coisas; nada acrescento nem retiro, apenas faço o que exigem minha disposição e meu apetite. Consiste minha saúde em manter sem perturbações o meu estado habitual. A doença acarreta por certo uma ruptura de equilíbrio em certo sentido, mas se ouvisse os médicos, eles o provocariam em outro sentido e assim com a ajuda de sua arte e de meu azar estaria completamente transtornado. Creio firmemente nisto: não podem prejudicar-me as coisas a que estou há tanto tempo acostumado; nossos hábitos moldam nossa vida a seu bel-prazer, como a bebida de Circe que modifica a nossa natureza a seu talante. Quantos povos, a dois passos daqui, não consideram ridículo o nosso medo do sereno? E como zombam disso os nossos campônios! Um alemão ficará doente se dormir em colchão; ao italiano repugnam as penas; e o francês não passa sem cortinas e lareira. O estômago de um espanhol não resiste à nossa alimentação, nem o nosso em beber como os suíços. Em Augsburgo um alemão criticou-me a lareira com os mesmos argumentos que usamos contra seus fogareiros. Em verdade o calor pesado e o cheiro de combustível que empregam sufocam quem não está habituado; pessoalmente não sinto esse efeito. Mas esse calor é igual e constante, global; não produz chamas nem fumaça; não se recebe o vento que se introduz pela chaminé, como em nossas lareiras. O sistema de aquecimento suporta portanto a comparação com o nosso. Dizem que outrora em Roma o fogão se situava fora de casa e o calor era introduzido por tubos que serpenteavam no interior dos cômodos e o espalhavam por toda parte. É o que nos descreve Sêneca em algum trecho que não recordo. Todo calor proveniente do fogo me enfraquece e entorpece. Eveno dizia que o fogo é o melhor condimento da existência; eu prefiro qualquer outro meio de fugir ao frio. Não apreciamos os vinhos do fundo do tonel; gostam deles em Portugal e servem-no às mesas dos príncipes. Na realidade, todo povo tem costumes e usos que não somente são desconhecidos dos outros como ainda lhes parecem estranhos e bárbaros. Que pensar deste povo que só aceita testemunhos escritos, que só acredita nos homens quando falam por meio de livros, e na verdade se é idosa? Nossas tolices, a seu ver, adquirem dignidade quando impressas; e dizer "li" é para ele muito mais importante do que "ouvi". Por mim, dou igual valor ao que sai da boca como ao que vem da mão, sei que se escreve tão indiscretamente como se fala, acho meu século igual aos outros e acredito tanto em um amigo quanto em um macróbio e no que vejo como no que escrevem. E assim como os antigos autores acham que a virtude não é maior por ser mais velha, não penso que a verdade seja mais real por ser mais antiga. Amiúde declaro que é pura tolice recorrer a exemplos alheios e escolásticos; nossa época fornece-nos um tão grande número deles quanto as épocas de Homero e Platão. Não provirá o nosso erro de emprestarmos mais veracidade às citações do que ao que dizemos? Como se, apoiando-nos em Plantin, provássemos mais do que em nos atendo ao que vemos em nossa aldeia! Ou provirá do fato de não termos suficiente inteligência para analisar e realçar o valor e tirar conclusões do que ocorre ao redor de nós? Não há como admitirmos que careçamos de autoridade para dar crédito a nosso testemunho, pois entendo que as coisas mais vulgares e comuns poderão, se soubermos esclarecê-las, colocar-nos em presença dos maiores milagres da natureza e fornecer-nos os mais maravilhosos exemplos, em particular se nos referirmos às ações humanas. Prossigamos em nosso assunto. Aristóteles dizia que Andron atravessara os desertos da Líbia sem beber; pois eu conheço um cavalheiro que já desempenhou com dignidade vários cargos e que assegura ter ido de Madri a Lisboa, em pleno verão, sem beber um gole. É um homem forte para sua idade e que nada revela de estranho em sua vida cotidiana, a não ser ficar dois ou três meses por ano sem beber. Tem sede, mas deixa-a passar, garantindo que o desejo se dissipa facilmente e que, se bebe, é antes por capricho do que por necessidade ou prazer. Não faz muito, encontrei um dos homens mais sábios de França e não menos rico. Trabalhava em um canto da sala, guarnecido de tapeçarias, e ao redor dele fazia a criadagem grande ruído. Contou-me, e Sêneca diz o mesmo de si próprio, que aquele alvoroço era útil, e como que lhe ajudava a concentrar as ideias. Estudando em Parma, trabalhara tanto tempo em um local de onde se ouviam continuamente o barulho das carruagens e o tumulto da praça, que se habituara não somente a não se incomodar com isso mas ainda a não o poder dispensar. Sócrates respondia a Alcibíades, que se espantava com vê-lo suportar a gritaria contínua da mulher: "é como o ruído comum do engenho, não atrapalha a produção". Eu sou o contrário, distraio-me facilmente; quando não estou bem-disposto, é-me insuportável o menor zumbido de mosquito. Sêneca em sua juventude aplicara-se em seguir resolutamente o exemplo de Séxtio, o qual não comia nada que tivesse vida; a experiência durou um ano e lhe foi profícua, como nos informa. Só renunciou à dieta para que não o suspeitassem de ser partidário de certas religiões novas que a propugnavam. Seguindo também a recomendação de Átalo, não dormia em colchão mole, o que fez até morrer. O que os costumes da época induziam a julgar uma prova de austeridade, é hoje considerado requinte. Os citas e os indianos não divergem mais de mim, em sua maneira de viver, que os meus criados. Retirei por vezes da mendicância jovens que, após algum tempo, abandonavam o serviço que lhes dera para retomar a seu modo de vida antigo. Um encontrei, que juntava mariscos nas ruas para comer e que não consegui desviar de sua indigência nem com recompensas nem com ameaças. Os miseráveis, assim como os ricos, têm seus prazeres e magnificências, sua hierarquia e dignitários. Tais efeitos decorrem dos hábitos, os quais nos amoldam a seu gosto, de modo que, como aconselham os sábios, convém atermo-nos aos melhores, não somente porque assim mais acessíveis se tornam, como também porque assim nos preparamos para as mudanças possíveis, e é a melhor aprendizagem que podemos fazer. Minha melhor qualidade consiste em ser flexível e pouco obstinado. Tenho inclinações mais pessoais, que me são mais agradáveis, mas com um pequeno esforço afasto-as ou as contrario. Os jovens devem mudar às vezes de regras de vida para despertar seu vigor e impedir que se amoleçam. Não há nada mais tolo do que sempre se conduzir em obediência a uma mesma disciplina: "Se quer transportar-se até o primeiro marco do caminho consulte seu tratado de astrologia; se irritou o olho, esfregando-o, providencie para que o colírio se fabrique segundo seu horóscopo". Que cometa alguns abusos, pois de outra maneira o menor excesso lhe será fatal! O que há de pior para um homem de certa condição social é ser obrigado a um gênero particular de vida, em virtude de sua exagerada delicadeza. É o que acontece quando não se possui a capacidade de se adaptar a quaisquer exigências. Há então que não fazer, por importância, o que fazem os outros; e as pessoas de semelhante temperamento devem ficar em casa com seu regime. Tal atitude é sempre inconveniente, mas na profissão militar constitui um vício insanável, porque o homem de guerra, como dizia Filopêmen, deve estar acostumado a todas as mudanças e irregularidades da vida. Embora tenha sido educado no amor à liberdade e à indiferença, ao envelhecer habituei-me a certas maneiras de agir (a idade não me permite mais corrigir-me) e o hábito, sem que o percebesse, já imprimiu em mim sua marca e muitas coisas já considero difícil não as fazer ou as fazer diferentemente. Não posso mais dormir ao ar livre, comer entre as refeições, deitar-me após o almoço, ou o jantar, sem pelo menos três horas de intervalo; ter relações com minha mulher senão antes de dormir, suportar o suor no meu corpo, beber água ou vinho puros, permanecer durante muito tempo com a cabeça descoberta, cortar o cabelo depois da refeição. Não prescindo de luvas como não fico sem camisa e é-me uma necessidade lavar-me pela manhã e ao levantar-me da mesa; julgo imprescindíveis um dossel e cortinas. Comeria, se preciso, sem toalha, mas não posso ficar sem guardanapo como os alemães. Sujo-os mais do que eles, aliás, e os italianos, porque uso pouco garfos e colheres. Lamento que não se tenha adotado o hábito de trocá-los com cada prato como fazem os reis. O grande soldado Mário tornou-se, na velhice, muito requintado no seu modo de beber e só bebia em um copo especial de seu uso particular. Eu prefiro igualmente certa forma de copo e não bebo de bom grado em copo ordinário, bem como não gosto de ser servido por qualquer um. Os copos de metal não me apetecem, aprecio-os de matéria clara e transparente; meus olhos precisam participar do prazer do paladar. Outras delicadezas dessa ordem impôs-me o hábito, e a natureza prescreveu-me certos cuidados. Assim é que não posso comer mais de duas vezes por dia sem sobrecarregar o estômago, nem tampouco dispensar totalmente uma das refeições sem sentir os efeitos dos gases, a boca seca e os protestos do apetite. Fico incomodado quando me exponho longamente ao sereno; de alguns anos para cá quando, em circunstâncias de ordem militar, assim permaneço a noite inteira, já ao fim de cinco a seis horas meu estômago se ressente, começam as dores de cabeça e não chego à madrugada sem vomitar. E, quando os outros vão almoçar, deito-me recuperando em seguida a boa disposição habitual. Sempre ouvira dizer que o sereno só cai ao anoitecer, mas um fidalgo que frequentei assiduamente e intimamente nestes últimos anos, convencido de que o sereno do crepúsculo é o mais pernicioso, evita-o nesse momento e não se incomoda com o da noite; e quase me levou a compartilhar não apenas de seu ponto de vista mas também de suas sensações. Assim, as próprias dúvidas e as pesquisas a que nos entregamos a fim de saber o que é certo e o que não o é, atuam sobre nossa imaginação e nos modificam! Os que cedem sem maior reflexão a suas inclinações, marcham para sua ruína; e conheço vários fidalgos que, pela estupidez de seus médicos, se viram forçados a uma existência reclusa embora sejam ainda jovens e fortes; é ainda preferível resfriar-se e pegar um defluxo a perder por falta de hábito os prazeres da vida normal. Triste ciência a que nos priva de nossas melhores horas! Apeguemo-nos com todas as nossas forças ao que possuímos; em geral nós nos enrijecemos obstinando-nos, e corrigimos nosso temperamento, como fez César que dominou a epilepsia à força de desprezá-la e de resistir-lhe. Devemos adotar as melhores regras, mas não nos submetermos a elas, salvo àquelas cuja observação é obrigatória e útil. Reis e filósofos precisam diariamente esvaziar os intestinos; e também as mais belas damas. Aqueles cuja vida decorre sob as vistas do público precisam manter certo decoro; a minha é obscura e gozo a vantagem de algumas liberdades naturais; demais sou soldado e gascão, um e outro algo indiscretos; posso pois dizer o que penso desse ato. É conveniente realizá-lo à noite, em horas certas; consegue-se pelo hábito e eu o consegui. Mas não deve ninguém escravizar-se a ele, ao envelhecer, a ponto de exigir local e assento especial, ou de se sentir inibido fora da hora normal. Entretanto, é muito justo que se procure ter limpeza e cuidado nesse mister; como em outros, mesmo em se tratando de coisas pouco limpas: o homem é por natureza um animal limpo e delicado. Entre todas as funções naturais, é essa a que menos me agrada ver interrompida. Sei de muitos militares que sofrem de desarranjo intestinal; o meu intestino e eu nunca faltamos ao encontro marcado, ao pular da cama, salvo em caso de doença ou de ocupação urgente. Como dizia, não vejo melhor meio dos enfermos assegurarem sua cura do que o de continuarem a levar a vida a que estão acostumados; qualquer mudança é prejudicial. Podereis por acaso admitir que as castanhas façam mal a um perigordino ou a um luquense? E que o leite e o queijo sejam nocivos a um montanhês? Proibindo-lhes esses alimentos, não somente mudareis o seu modo de vida mas ainda lhes imporeis uma regra perigosa, porque avessa a seus hábitos, pois nem mesmo um homem muda impunemente de dieta. Ordenai a um bretão de setenta anos que beba somente água; prendei um marujo numa estufa: proibi a um criado basco de passear: vós os privareis de movimento, de ar e de luz: "Valerá a vida que se renuncie a viver para prolongá-la? Sim, pois não creio que se contem no número de vivos aqueles a quem tornamos insuportáveis o ar que respiram e a luz que os ilumina". Se nenhum benefício nos oferecem os médicos, este, ao menos, se lhes há de atribuir: o de preparar os enfermos para a morte, solapando neles o uso do que lhes dá a vida. São ou enfermo, satisfaço os meus apetites: respeito os meus desejos e as minhas inclinações: não gosto de curar o mal com o mal e detesto os remédios, mais importunos do que as doenças. Ter cólicas e ser forçado a não comer ostras são dois males em vez de um, a doença magoa-nos por um lado, a dieta por outro. E, se temos que enfrentar certos aborrecimentos, enfrentemo-los ao menos depois de atender ao prazer. Os homens veem a realidade ao contrário: imaginam que só o que é desagradável pode ser útil; desconfiam do que é fácil. Meu apetite em muitas coisas acomodou-se felizmente à saúde de meu estômago: na mocidade os molhos picantes eram de meu agrado; com a idade meu estômago cansou, e o gosto também. O vinho é nocivo aos doentes, pois é a primeira coisa que recuso em tais casos. Tudo o que tomo é prejudicial se me repugna, e nada me faz mal quando tenho vontade. Nenhum ato inteiramente agradável jamais provocou algum prejuízo a meu organismo, daí ter feito, não raro, de meu prazer a minha receita. Adolescente, "quando envolto em esplêndida túnica, Cupido dançava ao redor de mim", prestei-me tão licenciosa e descuidadamente como qualquer outro ao prazer que me abraçava, "e conquistei alguma glória nessa militância", mais pela persistência, entretanto, e duração do que pelo vigor. Pareceria milagre e infelicidade confessar a que ponto era jovem quando, pela primeira vez, me vi escravizado às suas leis. Foi um efeito do acaso, pois não estava nem de longe na idade da razão e posso comparar o meu caso ao de Quartilla que não se lembrava de sua virgindade: "muito cedo tive pelo nas axilas e minha barba precoce pasmou minha mãe". Os médicos adaptam, amiúde e com vantagem, suas regras à violência dos desejos dos enfermos, porque não há anseio, por estranho e pernicioso que seja, que a natureza não acomode em proveito nosso. Demais, que imensa satisfação a de atender à nossa fantasia! E isso, a meu ver, é o que mais importa. Os mais graves males e os mais comuns são os que nos vêm de imaginação; e o ditado espanhol, "defiendame Dios de mi", parece-me simpático. Se, quando estou doente, tenho algum desejo, dificilmente a medicina me afastará dele; e o mesmo digo quando estou com saúde. Mas é doloroso que, em consequência da idade, me ache adstrito a apenas esperar. Não é a arte da medicina tão absoluta que não encontremos em nós alguma razão para fazer o que queremos; muda segundo o clima e as fases da lua, segundo Fernel ou segundo Escalígero. Se vosso médico vos proíbe beber vinho ou comer tal prato, indicar-vos-ei outro de opinião contrária; a variedade das opiniões e argumentos em matéria de medicina assume todas as formas. Vi um coitado que, para sarar, se deixava atormentar pela sede a ponto de perder os sentidos e de quem zombava mais tarde outro médico, o qual condenava as prescrições de seu colega. Não faz muito morreu de cálculos um desses profissionais; para lutar contra seu mal, recorria a uma abstinência total. Dizem seus confrades que tal jejum lhe fora prejudicial, porquanto o secara e lhe cozera a areia nos rins. Verifiquei que quando estou doente ou machucado, falar me cansa e me prejudica tanto quanto uma loucura qualquer. Falo com dificuldade e sinto-me exausto porque o timbre de minha voz é alto e exige um esforço, tendo ocorrido que, ao falar ao ouvido de algum grande personagem de qualquer assunto importante, me pedisse o ouvinte para baixar a voz. Eis uma anedota divertida: alguém numa escola grega falava alto como eu. Disse-lhe o professor que baixasse a voz: "que me dê o tom", respondeu o rapaz advertido, ao que retorquiu o mestre sugerindo-lhe que o buscasse nos ouvidos daquele a quem se dirigisse. Estava certo, sob a condição de que com isso quisesse dizer: "fala segundo o que tens a tratar com quem te ouve", pois se quisesse insinuar: "basta que te ouça, regula assim a tua voz", não creio que tivesse razão. O tom da voz encerra uma parte da expressão, cumpre graduá-lo portanto. Há um tom para ensinar, outro para adular, outro para advertir. Não somente é preciso que a voz alcance o ouvinte, mas ainda que o fira e, por vezes, o traspasse. Seria inadmissível que um criado por mim repreendido em tom ríspido me viesse observar: "falai-me, senhor, mais baixo, que eu vos ouço perfeitamente". "Há um tipo de voz apropriado aos ouvidos, não pela sua magnitude e sim pela sua qualidade." Metade da palavra pertence a quem fala e metade a quem escuta, e este deve preparar-se para recebê-la como se preparam para receber a bola os jogadores de pelota, de acordo com a força e a direção do lance. Ensinou-me ainda a experiência que nós nos perdemos por falta de paciência. Os males têm sua vida, com limites determinados, suas doenças e seu estado de saúde. A constituição das doenças é organizada da mesma maneira que a dos animais. Têm sua evolução, sua duração fixada já na origem; quem as tenta abreviar, impondo-lhes a sua vontade, prolonga-as e as multiplica, excita-as em lugar de apaziguá-las. Sou da opinião de Crantor: não há como contrariar os males com obstinação, nem deixar que nos dominem por falta de energia de nossa parte; cabe ceder naturalmente, de acordo com sua condição e a nossa. Deve-se dar passagem às doenças, e creio que não se detêm em mim porque não as molesto; livrei-me de algumas que passavam por tenazes; desgastaram-se sozinhas, sem que a arte interviesse e mesmo em me opondo às regras da medicina. Deixemos que a natureza aja por si; ela entende melhor do que nós de seus negócios. "Mas fulano morreu", dirão. É verdade, e vós também morrereis; se não dessa doença, de outra. Quantos igualmente não escaparam com três médicos à cabeceira! O exemplo é um espelho em que tudo se reflete vagamente e sob todos os seus aspectos. Se o remédio que vos oferecem é agradável, aceitai-o. Nada perdereis com isso. Eu não atentarei sequer para o nome e a cor, se for apetitoso, porquanto o prazer constitui uma das principais formas do proveito. Deixei que envelhecessem e morressem por si os defluxos, as crises de gota, os desarranjos, as palpitações, as enxaquecas e outros acidentes, os quais me abandonaram quando já me ia resignando à sua companhia; melhor se conjuram com cortesia do que com bravatas. É preciso suportar com paciência as leis inerentes à nossa condição; somos feitos para envelhecer, enfraquecer, adoecer a despeito dos remédios. É a primeira lição que os mexicanos dão a seus filhos quando, ao saírem do ventre materno, os acolhem dizendo: "Filho, vieste ao mundo para sofrer; sofre, pois, suporta e cala". É injusto queixar-se do que pode ocorrer a todos: "Queixa-te, mas só se aplicarem unicamente a ti uma lei injusta". Não é uma loucura um velho pedir a Deus que lhe mantenha intata a saúde e inteiro o vigor? Seria devolver-lhe a juventude, o que não lhe permite sua condição de velho. Insensato! por que, em tuas preces pueris, pedis coisas irrealizáveis! A gota, os cálculos, a indigestão são inerentes à idade, como o calor, as chuvas, os ventos comuns às longas viagens. Platão não crê que Esculápio devesse, com suas prescrições, fazer durar um corpo gasto e caduco, inútil ao país e à profissão, inapto à fecundação robusta e sadia. Não acha que semelhante papel possa convir à justiça divina e à divina prudência, as quais tudo devem conduzir a um fim útil. O mais que se pode fazer por ti, homem, é remendar-te, enfeitar-te um pouco e prorrogar de algumas horas tuas misérias, como faz quem, para sustentar um edifício, coloca algumas estacas no ponto que ameaça desabar; mas um dia todo o conjunto se rompe e as estacas são enterradas sob os escombros. É necessário aprender a sofrer o que não há como evitar. Nossa vida, como a harmonia dos mundos, é composta de elementos contrários e tons variados: doces e estridentes, agudos e surdos, frágeis e graves; que partido deles tiraria o músico que gostasse de uns e renegasse os outros? Cumpre-lhe empregá-los todos e misturados. Assim devemos fazer com os bens e os males que são parte integrante de nossa vida; nosso ser só é possível com essa mistura. Tentar reagir contra essa necessidade, é renovar o ato de loucura de Otesifonte que empreendera lutar a pontapés com seu jumento. Mesmo quando sinto que a saúde se altera, consulto raramente os médicos porque são indivíduos que, quando nos têm nas mãos, nos enchem a cabeça com seus prognósticos. Vendo-me outrora abatido pela doença, esmagaram-me ultrajosamente com sua ciência e suas atitudes, ameaçando-me com dores violentas e até com a morte próxima. Isso não me desmoralizou mas irritou-me e magoou-me; e embora não se conturbasse o meu espírito, sentia-me algo incomodado; e a discussão provoca agitação. Sou todo cuidados com minha imaginação; se pudesse evitar-lhe-ia todo trabalho e pena. É preciso auxiliá-la, lisonjeá-la, enganá-la mesmo se possível. É tarefa de que meu espírito entende e se soubesse persuadir como argumenta prestar-me-ia grande serviço. Quereis um exemplo? Eis o que me diz: "Esses cálculos são um bem para mim, já que todo edifício da minha idade tem suas goteiras. É a lei, e fora injusto que em relação à minha pessoa algum milagre ocorresse. Com isso pago o tributo devido à velhice e não me parece possível pagar menos. Devo consolar-me pensando que o acidente é dos mais vulgares nos homens de meu tempo. Por toda parte vê-se gente com essa doença, a qual sói atingir de preferência os grandes personagens, sendo portanto essencialmente nobre e digna. Entre os enfermos dessa doença poucos a suportam tão bem como eu, e mesmo assim à custa de drogas, ao passo que a sorte me tem permitido continuar a viver mediante umas tantas infusões de uso doméstico que algumas senhoras me fizeram beber e que tomei por considerar que não me podiam prejudicar. Os outros doentes precisam fazer promessas a Esculápio e pagar visitas de seus médicos a fim de expelir um pouco de areia, o que tenho conseguido naturalmente. A decência de minha conduta não se ressente da enfermidade, pois posso passar dez horas sem urinar, como qualquer pessoa sã. O mal assustava-me antes de eu o conhecer; os gritos e lamentos dos que o exageram por falta de resignação faziam que o temesse muito. E mais ainda, é um mal que nos castiga onde mais pecamos". E acrescenta o espírito: "Se tens consciência encara o castigo como doce e paternal em comparação com outros": - "o mal que não se mereceu é o único de que se tem o direito de queixar". "Pensa como te chegou tarde a descarga, no momento em que tua vida já se tomou vã e estéril; ela substitui os prazeres e as licenciosidades adolescentes. Tiras certa vaidade do receio e da piedade que a doença inspira, é um defeito de que imaginas ter-te curado mas que teus amigos ainda percebem em ti. E é agradável ouvir dizer: que energia, que paciência! Veem-te suar, empalidecer, tremer, vomitar sangue, verter lágrimas, expelir urinas espessas e escuras ou deixar de urinar porque um cálculo cruelmente se incrustou na uretra. Não obstante conversas com os presentes como de costume, gracejas, desmentindo as dores com tuas palavras, e superando o sofrimento. Não te recordas dessa gente de outrora que buscava a dor para exercitar a virtude, e despertá-la? Pois a natureza dá essa oportunidade que voluntariamente não houveras procurado. E se me disseres que se trata de uma doença perigosa e mortal, eu te responderei que todas o são, pois trapaceia a medicina quando te afirma que algumas não levam diretamente à morte. Que importa o caminho seguido, se é reto ou ziguezagueante! Não morres porque estás doente e sim porque estás vivo; a morte não precisa da doença para matar. Em alguns casos esta afastou a morte e viveram mais tempo os doentes porque lhes pareceu que estavam sempre por morrer. As doenças assemelham-se aos ferimentos: são por vezes salutares. A cólica, não raro, dura tanto quanto o homem; há quem a suporte desde a infância até a decrepitude. E ainda que fosse um indício de morte, não te presta serviço forçando-te a meditar sobre o momento fatal? Finalmente - e é o pior - nada pode curar-te. Considera com que arte e quão suavemente a enfermidade te arrasta ao desprezo pela vida e te afasta do mundo, não com violência e tirania (como outros males comuns aos velhos e que os entravam em meio a mil tormentos), mas através de advertências e ensinamentos, repetidos com intervalos de bom repouso, a fim de que possas meditar comodamente, e aprender. Para dar-te o meio de bem julgar e de tomar o partido dos homens de caráter, apresenta-te a situação tal qual é, e em um mesmo dia te oferece uma vida ora alegre, ora insuportável. Se não abraças a morte, não deixas, ao menos uma vez por mês, de tocar-lhe a mão, o que te dá a esperança de ser um dia arrastado sem aviso prévio. Tantas vezes serás conduzido ao porto que, confiante, atravessarás inopinadamente o mar, sem o perceberes. Não há como queixar-se das doenças que partilham lealmente o tempo com a saúde. Sou grato à sorte por me assaltar tão frequentemente com as mesmas armas; molda-me assim e me educa, e fortalece-me. E hoje sei com bastante exatidão em que estado me encontro. Falho de memória, apelo para o papel; qualquer sintoma novo é logo anotado, de modo que, tendo já conhecido quase todos os casos que podem ocorrer, diante de uma dúvida consulto essas notas e nunca deixo de deparar na experiência do passado com algum prognóstico favorável. O hábito leva-me a esperar um melhor futuro, pois é de crer que a natureza não modificará o que há. tanto tempo vem fazendo, nem produzirá acidentes mais graves. Demais os efeitos dessa enfermidade não perturbam meu temperamento vivo e impaciente. Temo as crises pouco intensas porque se prolongam; mas, quando são violentas, atormentam-me um dia ou dois apenas. Meus rins ficaram quarenta anos sossegados; há quatorze tudo mudou. Temos nossos períodos de doença como nossos períodos de saúde, e talvez a minha enfermidade esteja chegando ao fim. A idade atenuou o calor de meu estômago; menos benfeita a digestão, os alimentos alcançam os rins menos elaborados. Pode também acontecer que em dado momento se debilite igualmente o calor de meus rins e que, não produzindo mais secreções arenosas, tenha a natureza de inventar outro modo de evacuação. Os anos acabaram com meus defluxos; por que não acabariam também com esses cálculos? Nada me parece mais delicioso do que o que sinto quando, depois de expelir um cálculo, recupero de imediato a saúde, inteira e perfeita. Haverá na dor experimentada algo comparável ao prazer da repentina melhora? Muito mais bela é a saúde depois da enfermidade, e segue-a tão de perto que posso distingui-Ias ambas, na sua luta encarniçada. Dizem os estoicos que os vícios são úteis porque valorizam a virtude; com maior razão pode-se dizer que a natureza nos deu o sofrimento a fim de realçar a •excelência do prazer e da tranquilidade. Quando lhe tiraram os ferros, sentiu Sócrates a sensação agradável de se libertar do entorpecimento que o peso causara às pernas e constatou então a estreita ligação existente entre o sofrimento e a volúpia, tão intimamente associados que se sucedem e se engendram reciprocamente. E o filósofo acrescentou que Esopo devia ter-se aproveitado do tema para uma fábula. O que há de pior nas outras enfermidades está em que não são tão graves em seus efeitos quanto em seu desenlace; leva-se por vezes um ano para recuperar a saúde e, nesse ínterim, vive-se em constante sobressalto e penoso estado de fraqueza. Há tantas etapas a percorrer, que mal se pensa em chegar. Antes que nos retirem os curativos, que nos desembaracem do boné, nos permitam tomar ar, beber vinho, comer melão e ver nossa mulher, corre tanto tempo que é em verdade um milagre não termos alguma recaída. Meu mal comporta essa vantagem de desaparecer de repente, enquanto os outros nos deixam sempre vestígios e perturbações suscetíveis de facilitar o aparecimento de nova moléstia. Menos graves são as doenças que se contentam com possuir-nos sem nos entregar a outras, e graciosas são aquelas que acarretam alguma consequência útil. Desde que fiquei com esses cálculos, parece-me que me tomei, mais do que antes, refratário a diversos males, como as febres, por exemplo. Deduzo disso que os vômitos violentos e frequentes me purgam e que as repugnâncias que sinto, e os jejuns, dissolvem meus humores malignos e a natureza despeja nessas areias o que tem de supérfluo e nocivo. Não me venham alegar que o remédio é caro, pois que diríamos então de tantos xaropes hediondos, cautérios e incisões, suores e dietas e outros tratamentos que amiúde provocam a morte pela sua violência e sua inoportunidade? Julgo minhas crises como remédios em atuação e fora delas considero-me completamente bom. Citarei outra vantagem particular de minha doença. Age sem me impedir de agir; uma vez terminada a crise, ainda que extremamente aguda, posso andar dez horas a cavalo. Todo o regime consiste em suportar a dor; quanto ao resto, jogai, ceai, fazei isto ou aquilo se puderdes. Vossos desmandos vos serão úteis até. Já não se dirá o mesmo da gota, da varíola, da hérnia. As outras enfermidades impõem-nos obrigações de toda sorte, entravam nossa atividade, desequilibram nosso organismo; e seus efeitos perseguem-nos o resto da vida. A minha belisca-me apenas a pele, não toca na inteligência, nem na vontade, nem na língua, nos pés ou nas mãos; excita-nos mais do que nos entorpece. A febre atinge a alma; a epilepsia esmaga-a; uma enxaqueca redu-la à impotência; em suma, é ela influenciada por todas as moléstias que atuam sobre nosso ser e em particular sobre as partes mais nobres. No meu caso a alma não é perturbada e se porventura sofre cabe-lhe a culpa. Traiu-se a si própria, fraquejou. Somente um louco pode acreditar que esses corpos duros e maciços que se formam nos rins se dissolvem com beberagens; quando se põem em movimento não resta senão deixá-los passar, mesmo porque abrirão caminho à força se preciso. Ainda encontro em minha moléstia uma comodidade especial: é um mal que não nos dá muitos motivos de dúvida, ao passo que os restantes nos enchem de incerteza acerca de suas causas, condições e progressos, o que é infinitamente penoso. Eu não sei que fazer de médicos; o que sinto já revela em que consiste e onde se localiza. Com esses argumentos, uns fortes, outros frágeis, e agindo como Cícero agia no combate à velhice, essa outra enfermidade, procuro adormecer e distrair a imaginação, tento pensar as chagas. Se porventura vierem a agravar-se, verei outras escapatórias. Em verdade, de uns tempos para cá, os mais ligeiros movimentos fazem que urine sangue puro; por que razão? Isso não me impede entretanto de ir e vir como antes, de acompanhar meus cães à caça com um ardor juvenil; esse grave acidente não me causa senão um entorpecimento passageiro e alguma irritação na parte do corpo em que se situa o cálculo. Essa recrudescência da doença deve provir de um cálculo grande que me comprime os rins e se forma a expensas desse órgão, o qual assim se esvai aos poucos - e com ele minha vida - não sem que eu sinta um pequeno alívio, como quem expila uma coisa incômoda e supérflua. Quando vejo que vou piorando, não procuro verificar o pulso nem analisar a urina, a fim de não submeter-me a providências aborrecidas; basta o que sofro, não é necessário ampliar meus sofrimentos. Quem teme sofrer, sofre mais do que receia. Digamos ainda que a dúvida e a ignorância dos que procuram explicar as molas internas dos fatos e os prognósticos não raro errôneos que emitem, devem convencer-nos de que os recursos infinitos da natureza nos são totalmente desconhecidos; a maior incerteza, a maior diversidade, a maior obscuridade reinam no que podemos esperar ou recear dela. Salvo a velhice, que é sinal inegável da aproximação da morte, não deparo nos demais acidentes com nenhuma indicação em que nos seja permitido assentar uma ideia qualquer acerca do futuro. Julgo-me pelo que sinto realmente e não pelo raciocínio; de que serviria agir de outro modo, se ao mal somente posso opor a paciência e a resignação? Quereis saber o que ganho seguindo essa linha de conduta? Vede os que fazem o contrário, e buscam opiniões e conselhos, quanto padecem pela imaginação atribulada sem que entretanto suas apreensões se justifiquem. Mais de uma vez diverti-me, nos momentos de sossego, em me entreter com os médicos acerca do acidente que eu dizia aguardar. Estava assim à vontade para ouvir seus horríveis prognósticos; tanto mais agradecia a Deus e tanto mais me convencia da inanidade de tal arte. Nada se deve recomendar mais à juventude do que a atividade e a vigilância; a vida é movimento. Sou tardo em tudo, custo a levantar-me, a deitar-me, a comer; para mim, sete horas é cedo, e onde tenho liberdade não almoço antes das onze e só janto depois das seis. Outrora atribuía minhas febres e enfermidades a um excesso de sono e sempre lamentei tornar a dormir pela manhã. Platão é de parecer que o excesso de sono é mais prejudicial do que o excesso de bebida. Gosto de dormir em cama dura, só, como os reis, e bem coberto. Nunca aquecem meu leito, porém agora que estou velho, quando necessário, cubro o estômago e os pés com panos quentes. Acusavam Cipião, o Grande, de dorminhoco, mas penso que os invejosos não acharam o que lhe censurar e encontraram isso. Se alguma coisa se me afigura dever ser requintada, estará ela no leito, mas nisso, como no resto, sei acomodar-me às circunstâncias. Dormir foi e continua sendo a grande ocupação de minha vida. Na idade a que cheguei, durmo ainda de oito a nove horas de enfiada. Quando é preciso, liberto-me dessa propensão para a preguiça e dou-me visivelmente bem; a mudança é-me penosa, mas durante dois ou três dias tão somente. Não sei de muita gente que seja mais frugal e simples do que eu quando o exigem as circunstâncias, que se exercitem mais e achem menos duras as atividades militares. Meu corpo é capaz de suportar durante muito tempo uma vida agitada, mas não se adapta a uma agitação veemente e repentina. Evito porém agora os exercícios violentos suscetíveis de me fazer transpirar; meus membros cansam antes de se aquecerem os músculos. Fico sem dificuldade em pé durante um dia inteiro, e passear nunca me entedia; mas não gosto de andar nas cidades senão a cavalo e isso desde a infância, pois quando ando a pé, emporcalho-me até a espinha e as pessoas de pequena estatura, como eu, correm o risco de ser permanentemente empurradas e atropeladas. Tanto estendido como sentado, agrada-me ter sempre as pernas à altura do assento ou mais alto. Não existe atividade mais agradável do que a militar; nobre em sua prática (pois a maior, mais bela e generosa virtude é a coragem), essa atividade é igualmente nobre em seus fins, porquanto nada é mais justo e útil do que proteger a tranquilidade e a grandeza do país. E grata a companhia de tantos fidalgos jovens e ágeis; admirável a contemplação habitual de espetáculos trágicos; atraente a conversação livre e sem artifícios, bem como o gênero de vida varonil e sem cerimônias, a belicosa harmonia das músicas que estimulam e entretêm a alma e os ouvidos, a honra que esse exercício nos outorga, e até as dificuldades e os maus momentos que comporta. Platão no entanto a desprezava a ponto de sugerir que as mulheres e crianças tomassem parte nas guerras. Tudo isso incita a feitos e proezas particulares e voluntários, segundo a importância e o brilho que se colocam ao nosso alcance. E mesmo se nos ocorre morrer pela causa que abraçamos, "é belo morrer de armas nas mãos". Temer os perigos a que tantos se expõem, não fazer o que faz todo um povo, é ter um coração por demais covarde e mau, pois a companhia dá coragem às próprias crianças. Outros podem superar-nos em graça, força, fortuna; isso decorre de causas alheias à nossa vontade, mas a firmeza de ânimo só de nós mesmos depende. A morte é mais abjeta, mesquinha e triste na cama do que na luta; as febres e os catarros tão dolorosos e mortais como um tiro de arcabuz. Quem sabe suportar corajosamente os acidentes da vida comum não precisa engrandecer-se para ser soldado: Viver, caro Lucílio, é lutar. Não me lembro de ter tido sarna, mas coçar-se é um dos prazeres mais suaves que possamos usufruir e está sempre à nossa disposição; implica porém em pronta penitência. O que mais me ocorre coçar são as orelhas, onde por vezes sinto comichões. Nasci com sentidos quase perfeitos. Meu estômago é sólido e a cabeça também, e ambos, bem como meu hálito, sempre se mantiveram bons mesmo nas febres. Passei da idade em que, entre certos povos, não sem motivo se fixava o limite da vida, não se permitindo que ninguém o ultrapassasse. Mesmo agora tenho momentos, curtos embora e irregulares, em que me encontro na posse tão total de mim mesmo que me sinto quase como na mocidade. Não me refiro ao vigor e à agilidade, pois não há razão para que se projetem além do normal, "minhas forças já não me permitem enfrentar as intempéries do céu à porta da mulher amada". Meu rosto e meus olhos revelam imediatamente meu estado de saúde; por aí começam todas as mudanças e meus amigos não raro se compadecem de mim antes que perceba a causa. Eles veem nesse espelho que não engana, pois, mesmo na mocidade, mais de uma vez ocorreu que se alterassem sem motivo a minha tez e a minha fisionomia, o que os médicos atribuíam a um estado de espírito provocado por alguma paixão maligna. E se iludiam. Se meu corpo acompanhasse a alma, estaria muito bem. Esta tinha eu então, não somente isenta de preocupações, mas ainda satisfeita e festiva, o que é em mim normal, já porque assim quer a natureza, já porque me esforço por não a perturbar: Jamais as dores da alma influíram em meu corpo. Creio, ao contrário, que muitas vezes ela ajudou o corpo nas suas fraquezas. Este está amiúde cansado, ao passo que ela, se não se mostra brejeira, mantém-se ao menos serena. Tive uma febre intermitente durante quatro ou cinco meses; alterou-me completamente a fisionomia. Entretanto, meu espírito conservou-se calmo e mesmo alegre. Quando não sinto dores, minha fraqueza e languidez não me entristecem. Sei de inúmeras misérias físicas cujo nome basta para me causar horror e as receio mais do que as mil paixões que perturbam o espírito de tanta gente. Tomei a decisão de não mais correr e contentar-me com me arrastar; e não me queixo de uma decadência que está na ordem natural das coisas: Quem se espanta com encontrar papeira nos Alpes? Não lamento tampouco não dever durar tanto e sem decrepitude quanto um carvalho. Não posso queixar-me de minha imaginação; poucas preocupações na vida me perturbariam sequer o sono, e salvo quando o desejava, sempre me senti contrariado ao despertar. Sonho raramente; quando sonho é com coisas fantásticas e quiméricas, produzidas em geral por pensamentos prazenteiros, antes ridículos do que tristes. Acho que nossos sonhos são a expressão fiel de nosso estado de espírito, mas é preciso certo talento para apreender tais relações: "Não é surpreendente, com efeito, que os homens encontrem no sonho o que os preocupa na vida que meditam, veem e fazem acordados". Platão vai mais longe e diz que é prudente tirar dos sonhos indicações acerca do futuro; nada vejo em apoio dessa tese, senão os maravilhosos exemplos que nos dão Sócrates, Xenofonte, Aristóteles, cuja autoridade é indiscutível. Os historiadores afirmam que os atlantes não sonhavam nem comiam carne; associo essas coisas porque na segunda está possivelmente a causa da primeira. Não recomendava Pitágoras uma alimentação especial a quem quisesse ter sonhos de acordo com seus desejos? Os que tenho são bons e não me excitam. Tampouco sonho em voz alta. Conheci muitas pessoas que se enervavam demasiadamente. Téon, o filósofo, andava em sonho, e o criado de Péricles passeava dormindo pelos telhados. À mesa não tenho preferências. Pego o primeiro prato ao alcance da mão, e dificilmente passo de um a outro. A multidão de pratos e serviços desagrada-me. Contento-me com reduzido número de petiscos e não compartilho a opinião de Favoríno, o qual recomenda que nos festins retirem os pratos antes que o conviva acabe de comer e os substituam por outros. Acrescenta que pobre é o banquete em que os convidados não se saciem de coxas de diversas aves e considera que somente a toutinegra deve ser comida inteira. Como em casa muita carne salgada e por isso me apraz o pão sem sal, de modo que meu padeiro não me fornece outro, contrariamente aos costumes da região. Quando criança tiveram principalmente de me corrigir da recusa em comer o que em geral apetece aos meninos: doces, geleias, biscoitos. Meu preceptor combateu essa minha tendência como se se tratasse de uma espécie de requinte absurdo; e na realidade isso revelava um gosto dificilmente satisfeito. Quem ensina uma criança a não apreciar exageradamente o pão trigueiro, o toucinho ou o alho, combate também uma tendência para a gulodice. Há quem se mostre reticente diante de uma perdiz, lamentando a falta de carne de vaca e presunto; isso é mais do que um requinte, é a prova de um gosto que já não encontra satisfação a não ser nas coisas vulgares, "é o luxo querendo fugir ao tédio da riqueza". Deixar de comer o que outros acham bom, cuidar meticulosamente da refeição, não saber contentar-se com um pouco de legumes no jantar, eis a essência desse vício. Há por certo uma diferença no caso citado, pois é melhor evidentemente ter predileção pelas coisas fáceis; mas é sempre prejudicial ter manias, quaisquer que sejam. Delicado era sem dúvida um parente meu que, em consequência do serviço prestado durante longos anos na marinha, perdera o hábito de dormir na cama e de desvestir-se para deitar. Se tivesse filhos homens desejar-lhes-ia a minha sorte. O excelente pai que Deus me deu e por quem nada pude fazer senão lhe dedicar toda a minha gratidão pela sua bondade, enviou-me, recém-nascido, para uma pobre aldeia onde fiquei durante a primeira infância, acostumando-me à existência mais humilde: "É um grande passo para a liberdade saber disciplinar o estômago." Não vos encarregueis nunca - e menos ainda vossas mulheres - da educação de vossos filhos. Deixai que se eduquem ao acaso segundo as leis da natureza; e se habituem à frugalidade e à austeridade; que se surpreendam antes com a atenuação de suas privações do que com seu agravamento. Outra era a intenção de meu pai: pensava em me aproximar do povo, dos homens que precisam de nosso auxílio; queria que eu fosse levado a olhar para o lado dos que nos estendem os braços mais do que para os que nos viram as costas. Por essa mesma razão quis que pessoas humildes me conduzissem à pia batismal, pois assim eu lhes ficaria devendo obrigações e a elas me afeiçoaria. Sua intenção deu certo. Ocupo-me com prazer dos pequenos, tanto por considerar que há nisso algum mérito como por sentimento natural de compaixão, virtude que tem sobre mim grande influência. O partido que combato nesta guerra civil, muito mais sinceramente o criticara se fosse florescente e próspero. Ao contrário, mostrar-me-ia mais generoso se o visse infeliz e esmagado. Admiro o caráter de Quelônis, essa filha e mulher de reis de Esparta. Quando, nas desordens verificadas na cidade, Cleômbroto, seu marido, venceu Leônídas, seu pai, ela acompanhou o vencido ao exílio, abraçando a causa do mais fraco. Quando a sorte mudou ela também mudou de partido e corajosamente tomou o do marido, dedicando-se sempre desse modo a quem mais precisava dela. Eu seria antes levado a imitar o exemplo de Flamínio, que se devotava aos que necessitavam de seu auxílio, do que o de Pirro, que se humilhava diante dos grandes e se mostrava orgulhoso com os pequenos. Aborrece-me demorar à mesa e isso me faz mal, pois vou comendo enquanto não me levanto, talvez por força do hábito, porque em criança era o único meio de me obrigarem a comer. Eis por que em minha casa, embora ninguém se demore demasiado, sento-me um pouco depois dos outros, como fazia Augusto, mas não o imito no sair antes da mesa. Ao contrário, aprecio um ligeiro descanso, ouvindo a conversa, conquanto nela não tome parte. Falar de estômago cheio cansa-me, como gritar e discutir antes da refeição constituem um bom exercício para mim. Os gregos e os romanos andavam certos, dedicando às refeições, ato essencial de vida, várias horas e a maior parte da noite. Não havia ocupação que mais os divertisse. Comiam e bebiam mais tranquilamente do que nós que tudo fazemos às pressas, e entremeavam esse prazer com conversações úteis e agradáveis. Os que cuidam de mim à mesa podem sem esforço deixar de me servir o que julguem prejudicial à minha saúde, porque não peço senão o que vejo. Por outro lado perdem seu tempo aconselhando-me a não comer o que esteja à minha frente. Por isso, quando devo jejuar, como em mesa separada, pois de outro modo esqueço minha resolução. Quando peço que se mude o tempero de algum prato logo sabem os meus que estou sem apetite. Quando possível, quero que as carnes sejam pouco cozidas e descansadas, inclusive, em certos casos, já com um odor alterado. Só não suporto que sejam duras; quanto ao resto, sou indiferente à maneira por que são preparadas. Daí ocorrer-me, ao contrário dos outros, achar não raro o peixe fresco e consistente demais. E não é porque tenha maus dentes; sempre foram muito bons e só agora a idade começa a ameaçá-los. Desde criança habituei-me a esfregá-los com um guardanapo pela manhã e no começo e no fim das refeições. Deus dá essa mercê dos dentes se estragarem com a idade àqueles que ele afasta aos poucos da vida; é a única vantagem da velhice, pois então a morte já não mata senão metade do homem. Um de meus dentes acaba de cair, sem dor, sem esforço; chegou ao fim de sua vida. Essa parte de meu ser - e outras mais - estão mortas. Outras - e das mais ativas na mocidade - começam a morrer. Assim me dissolvo e vou-me subtraindo a mim mesmo. Não seria tolo sentir a dor dessa lenta decadência como se viesse repentinamente? Espero que tal não me aconteça. Em verdade, consola-me bastante pensar que minha morte será justa e natural, e espero que o destino não me enganará! Os homens são levados a imaginar que outrora sua vida era mais longa e sua estatura maior; enganam-se porém, porque Sólon, que pertence à antiguidade, fixa em setenta anos o extremo limite da existência. Eu que tanto admirei a "excelente mediocridade" dos tempos idos, e que vislumbrei na justa medida e na boa média a perfeição, poderei aspirar a uma velhice prolongada e excepcional? Tudo que contraria a ordem natural das coisas pode ser nocivo e tudo que obedece a suas leis deve ser útil: "É bom tudo o que se faz naturalmente." Por isso Platão considera morte violenta toda aquela decorrente de ferimentos ou enfermidades, e natural a morte a que nos conduz a velhice da maneira mais suave e por assim dizer deleitosa. Morrem os moços de morte violenta e os velhos de amadurecimento. Em tudo e por toda parte a morte mistura-se à vida; o declínio lembra a hora fatal e acentua-se na medida em que o fim se aproxima. Possuo retratos com as idades de vinte e cinco e trinta e cinco anos. Ocorre-me compará-los aos de hoje; por certo não mostram a mesma pessoa, minha fisionomia atual difere muito mais das precedentes do que da que terei ao morrer. É abusar demasiado da natureza atormentá-la de antemão com cuidados que a obriguem a abandonar-nos; cansa-se de ver-nos entregar a direção de nós mesmos, de nossos olhos, nossos dentes, nossas pernas e o resto a estranhos, confiando-nos inteiramente à arte. Não sou grande amador de saladas e frutas, salvo melões. Meu pai não apreciava nenhum molho; eu gosto de todos. Comer demais incomoda-me, mas não pude ainda verificar com exatidão se algum prato me-é prejudicial, como não constatei tampouco se a lua cheia ou minguante, o outono ou a primavera, influem em mim. Os rabanetes, por exemplo, durante muito tempo não me foram nocivos, mais tarde fizeram-me mal e agora não mais me perturbam. A muitos respeitos sinto que meu estômago se está modificando; do vinho branco passei ao clarete e eis-me voltando ao branco. Adoro o peixe e os dias de magro são para mim dias de regalo, como os de festa me parecem de jejum. Creio (há quem o diga) que se digere mais facilmente do que a carne. E assim como evito comer carne nos dias em que o peixe é obrigatório, evito misturar carne com peixe nos demais dias, pois acho que há entre ambos uma diferença excessiva. Na minha mocidade aconteceu-me suprimir uma refeição para ter melhor apetite no dia seguinte e assim aumentar o meu prazer com a abundância, agindo desse modo ao contrário de Epicuro, que jejuava para se acostumar a prescindir dessa volúpia. Mas eu também, por vezes, deixava de comer para me conservar bem-disposto em vista de algum trabalho do corpo ou do espírito, os quais se tornam incrivelmente preguiçosos quando me alimento bem. Demais, detesto esse casamento da alegre deusa com o deusinho da gula, indigesto, arrotador e recendendo a licores. Igualmente abstive-me de comer, não raro, por andar com estômago cansado ou quando não tinha companhia agradável, pois digo, como esse mesmo Epicuro, que, mais do que aquilo que se come, se deve olhar com quem se come. E admiro Quílon por não ter prometido ir a um banquete organizado por Periandro antes de saber quais eram os convivas. Não há para mim tempero ou molho que valham uma boa companhia. Acho que é mais saudável comer devagar, pouco e amiudadamente; gosto entretanto de satisfazer meu apetite e nenhum prazer experimentaria em seguir os preceitos médicos de três ou quatro refeições mesquinhas. Sei lá se o apetite da manhã durará até a noite? Aproveitemos a oportunidade, principalmente nós os velhos, e deixemos aos fazedores de almanaques as esperanças e os prognósticos. O fruto essencial da saúde está nos prazeres que nos oferece; fiquemos pois com o primeiro que surja e que nos seja conhecido. Evito ater-me demasiado longamente à mesma dieta; para que nos seja benéfica não a devemos seguir indefinidamente, sem o que nos calejamos, o organismo perde algo de sua atividade, habitua-se à rotina, nossas forças definham e não mais poderemos mudar sem inconvenientes. Tanto no inverno como no verão uso simplesmente meias de seda. Por causa dos resfriados, consenti em cobrir a cabeça e, em razão das dores, a manter o ventre bem agasalhado. Em poucos dias essas indisposições se acostumaram, desdenhando minhas precauções. Tinha passado do boné ao gorro e deste a um chapéu forrado; hoje as peles de meu gibão servem apenas de enfeite e tudo isso não adianta se não acrescento um colete de lebre e um barrete. Nesse pé onde iremos parar? Nada mais farei e desistiria do que já fiz se me atrevesse. Assim ocorre com quem se enterra em dietas e regimes especiais a que obedecem supersticiosamente. Sempre mais e mais ainda: é um nunca acabar. Em relação às ocupações e aos prazeres, melhor seria não almoçar como os antigos, e fazer uma refeição copiosa na hora do repouso, ao fim do dia. É o que fazia outrora. Do ponto de vista da saúde, ensinou-me a experiência que, ao contrário, devemos conservar o almoço, pois a digestão é melhor quando estamos acordados. Não sinto muita sede nem mesmo quando enfermo; neste caso tenho a boca seca, mas não é de sede, e em geral só bebo comendo, e só sinto vontade de líquido quase ao fim da refeição. Bebo copiosamente para alguém que nada tem de particular; no verão, no decurso de uma refeição apetitosa, ultrapasso a medida de Augusto, o qual só bebia três vezes, a fim de não parar em quatro, número que Demócrito considerava azarado. Eu vou até cinco, se preciso, o que corresponde a pouco mais de meio litro, pois uso copos pequenos que esvazio de uma vez, coisa que os outros não fazem por não julgar de boa educação. Corto o vinho com água, metade ou um terço, e, seguindo um conselho dado a meu pai, a mistura é feita na copa três ou quatro horas antes de ser servida. Dizem que esse costume de misturar a água ao vinho remonta a Cranau, rei de Atenas; quanto às vantagens são discutíveis. Acho mais conveniente e saudável para as crianças, só lhes servir vinho após os dezesseis ou dezoito anos; antes, deveriam beber unicamente água. O modo de vida preferível é o mais comum; toda singularidade deve ser evitada e parece-me tão errado um alemão que mistura água ao vinho como um francês que o bebe puro. O uso é lei nessas coisas. Sou avesso ao ar carregado e detesto a fumaça; a primeira reforma que me apressei em executar foi a das lareiras e privadas que deixam muito a desejar nas antigas construções; e entre as incomodidades da guerra figuram essas espessas nuvens de poeira dentro das quais, nos dias de calor, somos obrigados a permanecer. Respiro com desenvoltura e as mais das vezes, quando pego algum resfriado, meus pulmões não são atingidos nem tenho tosse. O rigor do verão é-me mais insuportável que o do inverno, pois além do calor contra o qual nos defendemos menos bem do que contra o frio, e além dos raios de sol sobre a cabeça, meus olhos sofrem com a luz; atualmente já não posso sequer comer diante de um fogo da lareira. Quando há mais do que hoje, a fim de amortecer a brancura do papel, cobria o livro com um pedaço de vidro. Até agora não uso óculos e vejo muito bem; é certo entretanto que, ao fim do dia, já sinto, ao ler, alguma perturbação e cansaço; mas o trabalho, principalmente à noite, sempre me cansou a vista. É um passo atrás. Outro logo darei, e mais outro, e outro, e assim estarei cego antes de sentir a fraqueza da vista, talo cuidado com que as Parcas desfiam a trama de nossa vida. Quando começar a pensar que me vai endurecendo o ouvido, estarei meio surdo e atribuirei a culpa de não ouvir a quem me fale. Muito há que fustigar a alma para que sinta como se esvai aos poucos. Tenho o andar vivo e firme e não sei o que sou mais capaz de sustar em um dado ponto, se o corpo ou o espírito. Muito meu amigo terá de ser o predicador, para que eu o escute durante o tempo todo de seu sermão. Nas cerimônias em que cumpre manter certa compostura e as próprias senhoras evitam olhar ao sabor de sua fantasia, nunca pude conseguir que alguma coisa em mim não destoasse; ainda que sentado não fico calmo. A criada de Crisipo dizia que o filósofo bebia com pessoas que eram sujeitas à ação do vinho e que somente ele nada sentia; e que suas pernas se embriagavam porque as mexia sem cessar, em qualquer posição que estivessem. De mim também diziam, na infância, que tinha mercúrio nos pés, a tal ponto sou impelido a mexer-me e agitar-me onde quer que me encontre. Como com voracidade, o que não é decente e prejudica a saúde e até o prazer. Na pressa chego a morder a língua e por vezes os dedos. Diógenes, vendo uma criança que comia desse modo, deu um tabefe no preceptor. Havia em Roma quem ensinasse a mastigar como há quem nos habitue a andar com graça. Por isso não me sobra muito tempo para falar, o que constitui um dos maiores prazeres da mesa, sempre que se trate de assuntos agradáveis e curtos. Nossos deleites invejam-se mutuamente e lutam entre si, chocam-se e se contrariam reciprocamente. Alcibíades, que entendia de comer, bania a própria música das refeições, a fim de que não perturbasse a doçura das conversações, acrescentando (segundo Platão) que "convidar músicos e cantores para seus festins era costume de gente vulgar, que não sabe entreter-se de maneira útil e agradável". Varro julga que para um bom banquete é preciso gente gentil, nem muda nem por demais falante, comida delicada, serviço conveniente e bom tempo. Não era outrora festa de pouca arte e volúpia um festim, e nunca a desdenharam os grandes filósofos e os grandes capitães. Conservo a lembrança de três refeições desse gênero que me foram muitíssimo agradáveis; doravante essas festas não estão mais ao meu alcance, dado o meu estado de saúde. Eu que nunca alço voo, detesto essa sabedoria antinatural que procura fazer com que desprezemos o corpo; é tão absurdo repelir os prazeres que a natureza nos oferece como se apegar demasiado a eles. Xerxes, que podia ter todas as volúpias, foi bem néscio em prometer uma recompensa a quem descobrisse um novo prazer; não o é menos porém quem se priva dos prazeres da natureza. Não devemos correr-lhes atrás, nem tampouco fugir-lhes: precisamos aceitá-los. Prezo-os mais agora do que no ano passado e deixo-me seduzir de bom grado. Não há como exagerar sua inanidade, já que esta se faz sentir suficientemente graças a nosso espírito mesquinho, o qual nos induz a aborrecê-los, e a si mesmo, pois trata tudo o que acolhe ora de um jeito, ora de outro, segundo sua versatilidade: "Em um vasilhame impuro tudo se corrompe". Aplicando-me a analisar de perto as vantagens específicas da vida, não encontro nelas senão vento. Como se espantar? Haverá em nós outra coisa? Entretanto, mais sábio do que nós, o vento compraz-se em se agitar e mover, contentando-se com seu próprio ofício, sem desejar a estabilidade e a solidez que não são qualidades suas. Dizem alguns que os prazeres e dissabores da imaginação são os maiores, como o assinalava a balança de Critolau. Não é de estranhar: nosso espírito forma-os ao sabor de sua fantasia; sei de exemplos insignes e desejáveis. Mas eu, homem de gosto pouco requintado, não posso ventilar tão singelo tema sem deixar de inclinar-me fortemente para os prazeres presentes da lei humana e geral, intelectualmente sensíveis e sensivelmente intelectuais. Querem os filósofos cirenaicos que, assim como as dores, os prazeres físicos sejam os mais poderosos, e mais justos. Há pessoas de uma estupidez feroz, diz Aristóteles, que deles se afastam; e eu conheço algumas que o fazem por ambição. Por que não renunciam também a respirar? Por que não recusam a luz, que é gratuita e não lhes custa invenção ou esforço? Por que não trocam Vênus, Ceres e Baco por Marte, Palas e Mercúrio? Andarão à descoberta da quadratura do círculo, de cima de suas mulheres? Não gosto que nos recomendem elevarmos o espírito às nuvens quando estamos à mesa; não quero que o espírito chafurde no prazer, mas que participe dele; que não durma à mesa, mas sente-se. Aristipo cuidava do corpo, como se não tivéssemos alma; Zenão só considerava a alma, como se não tivéssemos corpo. Ambos erravam. A filosofia de Pitágoras era, dizem, toda contemplativa; a de Sócrates tinha unicamente por objeto os costumes e os atos; e Platão situa-se entre os dois. A medida exata foi-nos dada por Sócrates; Platão inclina-se mais para ele do que para Pitágoras. Quando danço, danço; quando durmo, durmo; e mesmo quando passeio por um belo bosque, se porventura meus pensamentos se dirigem para coisas estranhas, forço-os a voltarem-se para o bosque, a solidão. A boa mãe natureza fez que os atos que somos instigados a praticar, para satisfazer às nossas necessidades, nos dessem igualmente prazer. Incita-nos não somente pela razão mas ainda pelo desejo, e é um erro ir de encontro a suas regras. Quando vejo César e Alexandre em seus momentos mais árduos gozar tão plenamente os prazeres humanos e físicos, não considero que sua alma se haja amolecido; acho que a fortaleciam subordinando suas ocupações e seus laboriosos pensamentos às práticas da vida cotidiana. E sábios terão sido se a estas encararam como normais em sua existência, e àquelas como excepcionais. Somos insensatos. Dizemos: "Passou a vida na ociosidade", ou "nada fiz hoje". Não vivestes então? Pois essa é a ocupação mais fundamental e ilustre. "Se ao menos", direis "houvesse dirigido grandes empresas, teria mostrado minha capacidade." Não soubesses então dirigir a vossa vida? Tereis nesse caso cumprido a mais bela das tarefas. Para se manifestar e frutificar, a natureza não precisa da fortuna; sua ação se exerce em todas as condições sociais: às ocultas como a descoberto. Se soubesses controlar vossos costumes, fizestes muito mais do que quem escreveu livros; sabendo como e quando vos repousardes, agistes mais sabiamente do que se houvésseis conquistado cidades e impérios. A mais admirável obra-prima do homem consiste em viver com acerto. Em outras palavras, a fazer cada coisa em seu devido tempo. Tudo mais - reinar, juntar, edificar - não passa de acessório, de minúcia. Admira-me ver um general, às vésperas do assalto, libertar-se de quaisquer preocupações e conversar com seus amigos; ver Bruto, com céus e terra conspirando contra ele e a liberdade romana, sonegar algumas horas da noite aos cuidados que tem para com seus homens a fim de, tranquilamente, ler e anotar Políbio. Só as almas sem envergadura, esmagadas pelos negócios, não sabem libertar-se, esquecê-los e voltar a eles quando necessário: "Bravos companheiros que tantas vezes partilhastes comigo os mais duros momentos, afoguemos hoje nossas preocupações em vinho; amanhã voltaremos a percorrer os vastos mares." Por mofa ou a sério, o vinho teológico e sorbônico tomou-se proverbial; e assim também os festins da universidade. Pois acho razoável que comam confortável e agradavelmente os que empregaram a manhã nas atividades da escola. A consciência de ter gasto honestamente o resto de seu tempo constitui um justo e saboroso condimento aos que passam à mesa. Assim viviam os sábios. E essa inimitável e contínua propensão para a virtude, que nos impressiona nos dois Catões, esse humor severo a ponto de se tomar importuno, sem dificuldade se submeteram às leis que regem a natureza humana, às de Vênus e Baco como às outras, e eles de bom grado as observaram, obedecendo aos preceitos de sua seita, a qual determinava que para ser perfeito devia o sábio ser perito no desempenho dos prazeres naturais: Que tenha o paladar delicado tanto quanto o juízo. A distração e o amor à vida honram, a meu ver, uma alma forte e generosa. Epaminondas não pensava que dançar e cantar, e participar das festas da cidade fossem atos indignos de suas vitórias. Entre muitos traços admiráveis da vida do primeiro Cipião, tão notável que diziam descender dos deuses, nenhum lhe dá maior encanto do que o de passear à beira-mar em companhia de Lélio, brincando, colhendo conchas, apostando corridas; e, quando fazia mau tempo, escrevendo comédias em que esboçava os costumes das classes mais baixas. E quando arquitetava seus planos de guerra contra Arubal, não deixava de visitar as escolas da Sicília assistindo às aulas dos filósofos, a ponto de despertar a inveja de seus adversários em Roma. Haverá coisa mais extraordinária em Sócrates do que aprender a dançar e a tocar depois de velho? Pois esse mesmo homem foi visto passar um dia inteiro de pé, em êxtase, diante do exército grego, mergulhado em profunda meditação, o que não o impediu de ser o primeiro a precipitar-se ao socorro de Alcibíades, rodeado de inimigos, cobrindo-o com seu corpo e libertando-o pelas armas. Em outra batalha salvou Xenofonte que caíra do cavalo. E foi também o único em Atenas, indignada como ele ante tão odioso espetáculo, a tentar arrancar Terâmenes das mãos dos trinta tiranos que o haviam condenado à morte, só renunciando, com os dois companheiros que afinal arranjara, a instâncias da própria vítima. Solicitado por uma beldade de quem se enamorara e que por ele igualmente se apaixonara, atém-se à mais estrita abstinência. Amiúde, na guerra, marcha descalço, mesmo sobre o gelo, usa uma só roupa no inverno como no verão e supera a todos pela paciência com que suporta as fadigas. Quando assiste a um banquete, come como de costume. Durante vinte e sete anos, sem que seu rosto revele a menor emoção, enfrenta a fome, a pobreza, a indisciplina dos filhos, as violências da mulher, e finalmente a calúnia, a tirania, a prisão, os ferros e o veneno. E no entanto se, por um dever de cortesia, precisava erguer um copo, era no exército quem melhor bebia; não se recusava a brincar com as crianças e o fazia de bom humor, porque, como diz a filosofia, tudo assenta ao sábio. Tais fatos abundam na vida de S6crates; e nunca podemos deixar de apresentar esse personagem como modelo de toda perfeição. Poucos exemplos há de uma vida tão plena e tão pura, e é um erro em nossa educação oferecer-nos outros exemplos frágeis e defeituosos, recomendáveis apenas de um s6 ponto de vista e mais suscetíveis de nos fazer retroceder do que avançar. Engana-se o povo: em verdade é mais fácil, para atingir um objetivo sem se perder, contorná-lo com habilidade do que enfrentá-lo sem rodeios; mas é também menos honroso e digno de admiração. A grandeza de alma consiste menos em se elevar e avançar do que em se ordenar e se circunscrever. Grande é tudo o que é suficiente; e há mais elevação em amar as coisas comuns do que as eminentes. Nada é tão legítimo e belo como desempenhar o papel de homem em todos os seus aspectos. Não há ciência mais árdua do que a de saber viver naturalmente; e a mais terrível das moléstias é o desprezo pela vida. Quem quiser isolar a alma, faça-o se o puder, quando o corpo se achar enfermo, a fim de evitar o contágio. Fora disso, ao contrário, que ela o assista sempre e não lhe recuse tomar parte nos prazeres naturais; contribuindo além disso com sua moderação para evitar o abuso que acarreta o desprazer. A intemperança é a peste da volúpia; a temperança é o condimento. Eud6xio, que considerava a volúpia um bem soberano, e seus companheiros que tanto a valorizavam, saborearam-na em toda a sua doçura, graças à temperança que, neles, sempre foi exemplar. Ordeno à minha alma que olhe com os mesmos olhos a dor e o prazer: A dilatação da alma no prazer não é menos anormal do que sua contração na dor. Ordeno-lhe que os encare com igual firmeza; jovialmente aquela, severamente este, e que procure acalmar a primeira com o mesmo cuidado com que deve procurar não exacerbar o outro. Uma apreciação sadia dos bens acarreta um julgamento sadio dos males. Assim como a dor tem algo inevitável em seu início, o prazer tem algo evitável. Platão coloca-os em pé de igualdade e quer que seja tarefa da firmeza de ânimo combater os excessos de ambos. São duas fontes; feliz quem sabe dessedentar-se numa e noutra segundo suas necessidades. Tome-se a dor como um remédio, quando imprescindível, e o menos possível; tome-se o prazer quando se tem sede, mas sem se embriagar. A dor, o prazer, o amor, o ódio são os primeiros sentimentos da criança; na sua subordinação à razão, mais tarde, encontra-se a virtude. Tenho um vocabulário meu: digo que "passo o tempo" quando o tempo é mau e incômodo; mas quando é bom não quero "passar", quero saboreá-lo e parar. Cumpre correr quando é mau e andar devagar em caso contrário. Estas expressões comuns "passatempo" e "passar o tempo" espelham bem a maneira de viver dessa gente prudente que imagina não haver melhor emprego para a vida. Deixam-na passar, esquivam-se, ignoram-na como se fosse coisa nociva e desprezível. Eu porém penso de outro modo, acho-a agradável e valiosa mesmo em seus últimos momentos. A natureza no-la deu em condições tão favoráveis que somente por nossa culpa pode tornar-se pesada e inútil: "A vida do insensato é desagradável, inquieta; pois só tem por objetivo o futuro". Preparo-me, contudo, para perdê-la sem queixas, porque isso está na ordem das coisas e não porque ela me seja penosa e importuna; aliás, quem se compraz na vida não teme deixá-la. Há que gozar a existência e eu a gozo duplamente, porquanto o gozo se mede pela atenção que lhe dedicamos. Sobretudo neste momento em que percebo que a minha toca de tão perto o fim, quero sublinhar quanto a aprecio, sustar a rapidez de sua fuga com minha presteza em detê-la, e compensar, quanto possível, a transitoriedade pela intensidade. Na medida em que diminui o tempo de que ainda disponho, aplico-me em fazer que a posse seja mais profunda e completa. Sentem outros a doçura da satisfação e da prosperidade; sinto-a também, mas não de passagem e sem me apegar a ela. Cabe estudá-la, saboreá-la, ruminá-la para melhor devolver àquele que no-la outorga a graça que lhe devemos. Gozamos os prazeres como gozamos o sono, sem sentir. Pois, para melhor apreciar esse prazer do sono, lembrei-me outrora de mandar que me acordassem. Analiso meus prazeres; não me mantenho à superfície; aprofundo-me e obrigo minha razão a prestar-lhes atenção quando principiam a entediar-me. Se me encontro em um momento de calma, ou experimento alguma sensação agradável, não deixo que os sentidos os esbanjem, faço intervir o espírito para que os sinta igualmente, para que deles tenha consciência. Quero que se mire nesse estado e participe da euforia do corpo. Quero que pondere quanto deve a Deus por se achar com a consciência repousada e livre de paixões e por ter um corpo em condições normais, gozando ordenada e competentemente as funções doces e agradáveis que Deus houve por bem atribuir-lhe para compensar as dores que sua justiça também lhe dá. Examina minha alma o valor de se achar instalada de tal maneira que, de onde quer que dirija a vista, depara com um céu sereno que nenhum desejo, temor ou dúvida perturba; e sempre pode sua imaginação representar-se, sem sofrimento, qualquer dificuldade passada, presente ou futura. Vejo que isso é do maior alcance, quando o comparo com casos diferentes e quando encaro, sob mil aspectos, o destino das pessoas cujos erros as expõem ao furor da tempestade e também as que, mais próximas de mim, consideram sem entusiasmo e negligentemente a sua sorte. São gente que realmente "passa o tempo"; não vê senão além do presente e do que possui; vive de esperanças, de sombras, de miragens; "como esses fantasmas que se veem rodar em volta dos túmulos após a morte, ou esses sonhos que iludem os nossos sentidos entorpecidos", e fogem de quem os persegue. O fim e o resultado que essas pessoas têm em mira consistem em apenas prosseguir, assim como Alexandre só trabalhava por trabalhar, achando nada ter feito quando sobrava alguma coisa por fazer. Amo pois a vida e a cultivo tal qual Deus outorgou. Não gostaria que carecesse de necessidade de beber e comer, nem me agradaria que essa necessidade fosse maior do que é: Busca o sábio com ansiedade as riquezas naturais. Tampouco lamento que não nos alimentemos com aquela droga graças à qual Epaminondas se privava de apetite e que lhe bastava para viver; nem que os filhos não nasçam das unhas ou dos calcanhares, ainda que com tais soluções não fosse menor a volúpia da fecundação; nem que nosso corpo não seja sem desejos e insensível às carícias; queixar-me seria mostrar-me ingrato e injusto. Aceito de bom grado e com reconhecimento o que a natureza fez por mim. Declaro-me satisfeito e congratulo-me com ela. Ofendemos essa grande e poderosa doadora, recusando-lhe os dons, anulando-os ou os deformando. De sua parte tudo é bom, o que faz é bem feito: Tudo o que se ajusta à natureza é digno de apreço. Entre as opiniões da filosofia prefiro as mais sólidas, isto é, as mais humanas, as mais nossas. Raciocinando como vivo, com humildade, sem elevação de ideias, acho infantil de sua parte pregar-nos solenemente as vantagens de unir o divino ao humano, a razão à loucura, a severidade à indulgência, a honestidade à desonestidade. São coisas monstruosas. Acho-a ridícula quando afirma que a volúpia é brutal e indigna do sábio; que o único prazer que se deve usufruir de uma bela e jovem esposa é o de cumprir um ato natural, como o de calçar as botas para uma longa cavalgada. Talvez abandonassem os filósofos tais ideias se os seus direitos de desvirginar suas mulheres se reduzissem aos termos de seus ensinamentos! Sócrates, mestre desses sábios e nosso, não diz o mesmo. Aceita, como deve, o prazer físico; mas prefere o do espírito, que julga mais rico, forte, variado e digno. Este último porém não deve isolar-se - Sócrates não é um sonhador - mas tão somente controlar o outro; deve atentar para a moderação e não se apresentar como adversário. A natureza é um guia amável, mas no qual a prudência e a justiça superam a doçura: "É preciso penetrar a natureza das coisas e ver exatamente o que ela exige". Ando continuamente à sua procura, mas a pista perde-se por vezes em meio às intervenções da arte, eis por que o soberano bem, acadêmico e peripatético, "de viver segundo a natureza" é difícil de se delimitar e aplicar. O mesmo acontece com o que propugnam os estoicos: "consentir no que ela pede". Não será um erro considerar certos atos desairosos só porque são necessários? Por isso acredito que a aliança do prazer com a necessidade, que os deuses procuram sempre impor, é uma união de grande conveniência. Por que desmembrar e divorciar tais elementos de uma associação tão fraternal? Apertemos ao contrário o laço que os prende e façamos com que se prestem mutuamente serviço. Que o espírito desperte e vivifique o corpo tão pesado em si e que este modere a leveza daquele e o torne estável: "Quem quer que exalte a alma como soberano bem e condene a carne como coisa má, abraça e adora a alma com os sentidos; a seus sentidos também se atribuirá o sentimento que o induz a fugir da carne, e que nasce do fato de raciocinarmos sob o império da vaidade humana e não em obediência à verdade divina". No presente que Deus nos oferece não há nada indigno de nosso cuidado; de tudo teremos de prestar contas em todas as suas minúcias. O criador, ao dar ao homem a missão de se conduzir por si, fê-lo de um modo expresso, severo e franco. Como as palavras alheias têm mais peso do que as que dizemos, insistamos nesse ponto com a opinião de Sêneca: "Não é tolice fazer com negligência e de mau humor o que se tem obrigação de fazer? Empurrar o corpo para um lado e a alma para o outro, é dividir-se em prol de dois movimentos contrários". Se quiserdes algum dia examinar os pensamentos e argumentos que tem na cabeça quem rechaça a ideia de uma boa refeição e lamenta o tempo perdido em comer, vereis que entre todos os pratos de vossa mesa nenhum haverá tão insípido quanto o estado em que desse modo entretém a alma (as mais das vezes melhor fora que dormíssemos, dadas as causas que nos mantêm acordados) e achareis que suas razões não valem vosso ensopado. E o próprio êxtase em que caía Arquimedes, que importância tinha na realidade? Não viso aqui (não as confundindo com a turba de fedelhos que somos, nem lhes atribuindo os desejos e os pensamentos em que se compraz nossa vaidade) a essas almas veneráveis que o ardor religioso e a devoção induzem a uma constante e conscienciosa meditação acerca das coisas divinas, e que, inteiramente amarradas pelo esforço que lhes inspira a esperança viva e profunda de conquistar a felicidade eterna - fim último para o qual tendem as aspirações cristãs, único prazer contínuo e incorruptível- desdenham dar atenção a essas necessidades que são também satisfações, mas passageiras e ambíguas, e renunciam tão facilmente a preocupar-se com o corpo, recusando-lhe o uso daquilo que, nesta vida, é apanágio dos sentidos. Trata-se nesse caso de um ideal. Geralmente tenho visto marcharem de comum acordo as ideias elevadíssimas e os costumes mais condenáveis. Esse grande homem que foi Esopo, ao ver seu amo urinar andando, exclamou: "Teremos também que esvaziar o ventre correndo?" Com efeito, por melhor que empreguemos o tempo, sempre nos sobrará algum para a ociosidade e os erros; nosso espírito encontrará, se quiser, horas bastantes para executar suas tarefas sem se dissociar do corpo no curto espaço de tempo que este exige. As pessoas obcecadas por essa ideia de separar o corpo do espírito, de se tornarem diferentes e de deixar de ser homens não passam de loucos; não se transformam em anjos e sim em feras; em lugar de se elevarem, abaixam-se. Esses humores transcendentes apavoram-me, como os sítios excessivamente altos e inacessíveis, e nada me parece tão difícil de admitir na vida de Sócrates quanto seus êxtases e aquele gênio familiar a que atribuía sua inspiração. Quanto a Platão, as qualidades em virtude das quais o apelidaram divino são exatamente, a meu ver, o que tem de mais humano. E entre as ciências, as que pretendem tratar das coisas mais elevadas são as que mais perto da terra se acham e as de menor importância. Não acho tampouco nada na vida de Alexandre, mais chão, e sinal evidente de que é um mortal, quanto sua quimérica pretensão à imortalidade. Isso, de resto, acarretou-lhe uma espirituosa observação de Filotas. Quando Alexandre lhe escreveu que o oráculo de Júpiter Amon o colocara entre os deuses, Filotas redarguiu: Folgo em sabê-lo, por causa da consideração que terás; mas como são dignos de piedade os homens obrigados a viver com uma pessoa que os sobre-excede a tal ponto, que despreza a condição humana, e a quem devem obediência! É porque te submetes aos deuses, que comandas os homens. A graciosa inscrição com que os atenienses homenagearam Pompeu concorda com minha maneira de pensar: "És tanto mais divino quanto reconheces que és apenas um homem. Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer. Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo. As mais belas vidas são, penso, as que se adaptam ao modelo geral da existência humana, as mais bem ordenadas e de que se excluem o milagre e a extravagância. Quanto à velhice, cumpre tratá-la com alguma ternura; eis por que termino recomendando a minha a esse deus protetor da saúde e da sabedoria, da sabedoria jovial e sociável: Peço-te, filho de Latona, que me deixes gozar o fruto de meus trabalhos, dando-me uma saúde constante e perfeita, livrando-me da senectude, surda aos doces cantos das Musas.