Pedro Abelardo – A História das Minhas Calamidades (Carta Autobiográfica) Carta de Abelardo para a consolação de um amigo Às vezes, os exemplos mais que as palavras excitam ou acalmam os sentimentos humanos. Assim, após alguma consolação proporcionada pela conversa com o interlocutor presente, resolvi escrever ao amigo ausente uma carta de consolação que gira em torno das experiências das minhas calamidades, a fim de que reconheças que as tuas, em comparação das minhas, são nulas ou módicas provações e, desse modo, as suportes com mais tolerância. O lugar do seu nascimento Sou oriundo de um lugarejo situado na entrada da pequena Bretanha, afastado creio que oito milhas a oeste da cidade de Nantes e que se chama propriamente de Le Pallet. Tal como a natureza de minha terra ou de minha família, eu me distingui tanto pela vivacidade do espírito e pelo talento como pela facilidade para o estudo das letras. Meu pai foi um pouco versado nas letras antes de haver cingido o cinturão de soldado e mais tarde abraçou com tanto amor as letras que se dispôs a fazer com que nelas fossem instruídos, antes dos exercícios militares, quaisquer filhos que tivesse. E, sem dúvida, assim foi feito. Por isso, tratou com tanto mais cuidado da minha formação quanto mais me dedicava o seu afeto, uma vez que era o seu filho primogênito. Eu, na verdade, quanto mais longe e mais facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardentemente a elas me apeguei, e fui seduzido por um tão grande amor por elas que, abandonando aos meus irmãos a pompa da glória militar junto com a herança e a prerrogativa dos primogênitos, renunciei completamente à corte de Marte para ser educado no regaço de Minerva. E, visto que eu preferi as armas dos argumentos dialéticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras armas por essas e antepus os choques das discussões aos troféus das guerras. Por isso, perambulando pelas diversas províncias a travar debates, onde quer que ouvisse dizer que florescesse o estudo dessa arte, tornei-me um êmulo dos peripatéticos. A perseguição de seu mestre Guilherme contra ele Finalmente cheguei a Paris, onde essa disciplina conseguira florescer ao máximo, junto a Guilherme, a saber, o de Champeaux, meu preceptor, reputado então como o principal expoente nesse magistério, tanto pela fama como de fato. Com ele me demorei algum tempo; de início fui bem aceito, mas logo depois eu lhe pareci muito incômodo quando tentei refutar algumas das suas opiniões e acometi contra ele a argumentar frequentemente, sendo que, por vezes, eu parecia levar a melhor nas discussões. Por certo, aqueles mesmos entre os nossos condiscípulos que eram considerados como os principais sofriam com indignação tanto mais quanto eu era tido como o último pelo tempo da idade e do estudo. Daí começaram as minhas calamidades que continuam até agora, e quanto mais longe se estendia a minha fama mais se inflamava a inveja dos outros contra mim. Por fim, aconteceu que, presumindo do meu engenho acima das forças da idade, eu aspirava à direção de uma escola sendo ainda um adolescente, e imaginava o lugar em que realizaria esse plano, a saber, na então famosa cidade de Melun, que era sede real. Meu já mencionado mestre pressentiu isso, tendo envidado esforços para afastar para bem longe de si a minha escola. Maquinou ocultamente com todos os meios de que dispôs para, antes que eu me afastasse da sua escola, prejudicar a preparação da minha e me arrebatar o lugar previsto. Mas como entre as pessoas influentes da terra eu contava ali com alguns partidários, confiado no seu auxílio consegui quanto desejava, sendo que a inveja manifestada por ele angariou para mim a aprovação de muitas pessoas. No entanto, em consequência desse meu tirocínio na escola, o meu nome começou a difundir-se de tal modo na arte da dialética, que não apenas a fama dos meus condiscípulos, como também a do próprio mestre, reduzida pouco a pouco, acabou por se extinguir. Daí resultou que, presumindo eu próprio cada vez mais de mim mesmo, transferisse o mais depressa possível a minha escola para Corbeil, mais próxima da cidade de Paris, para que daí certamente a minha indiscrição promovesse assaltos mais frequentes de discussão. Não havia, porém, transcorrido muito tempo quando, por causa do ardor descomedido pelos estudos, e atingido pela doença, fui obrigado a retornar à terra natal; afastado da França durante alguns anos, eu ainda era procurado mais ansiosamente por aqueles que o estudo da dialética espicaçava. Decorridos, entretanto, alguns poucos anos, quando eu já estava curado havia muito tempo da minha enfermidade, aquele meu preceptor Guilherme, arquidiácono de Paris, tendo trocado o seu antigo estado de vida, entrou para a Ordem dos Clérigos Regulares com a intenção, como diziam, de, quanto mais religioso ele fosse considerado, conseguir ser promovido a um grau mais elevado da dignidade eclesiástica, como de fato logo aconteceu, quando foi feito bispo de Châlons. Todavia, o revestimento desse seu novo estado de vida não o retirou da cidade de Paris ou do costumeiro estudo da filosofia, mas no próprio mosteiro no qual se refugiara, por causa da vida religiosa, imediatamente fez funcionar uma escola pública, segundo o costume estabelecido. Então eu retornei para junto dele a fim de estudar retórica com ele. Além de outras tentativas das nossas discussões, eu o constrangi por meio de claríssimas provas racionais a modificar, ou melhor, a destruir a sua antiga sentença a respeito dos universais. Na verdade, ele era da opinião, a respeito da comunidade dos universais, de que a mesma coisa existia essencial e, ao mesmo tempo, inteiramente em cada um dos seus indivíduos, dos quais, por certo, não haveria nenhuma diversidade na essência a não ser a variedade na multiplicidade dos acidentes. Então ele corrigiu de tal modo essa sua sentença que, em seguida, afirmava que a mesma coisa existe não essencialmente mas indiferentemente. E visto que neste mesmo assunto a respeito dos universais sempre foi esta a principal questão entre os dialéticos, e tão importante que também Porfírio, na sua Isagoge, ao escrever sobre os universais, não se aventurava a resolvê-la mas declarava: "Com efeito, é um assunto muito difícil", quando Guilherme corrigiu, ou melhor, quando, coagido, abandonou essa sentença, suas aulas caíram em tamanha negligência que mal incluiriam outras questões de dialética, como se o resumo inteiro dessa arte consistisse na sentença sobre os universais. Em consequência disso, o meu ensino recebeu tanta força e autoridade que aqueles que anteriormente aderiam com mais veemência àquele nosso mestre, e que molestavam ao máximo o meu ensino, acorreram em revoada às minhas aulas, e aquele mesmo que havia sucedido ao meu mestre na escola-catedral de Paris me ofereceu o seu lugar, a fim de que aí mesmo, junto com os outros, ele se inscrevesse entre os meus alunos, onde antes florescera aquele que fora o seu e o meu mestre. No entanto, não é fácil exprimir como, poucos dias depois de eu aí reger a cadeira de dialética, meu mestre começou a consumir-se de inveja, e com que sofrimento se atormentava, de tal modo que, não sustentando por muito tempo o ardor da miséria que o dominara, empreendeu astutamente conseguir a minha remoção. Mas como não tinha motivo para agir contra mim abertamente, resolveu privar da escola, sob a acusação de crimes detestáveis, aquele que me cedera o seu lugar de professor e que foi substituído na sua função por outro que fora outrora meu rival. Então eu voltei a Melun e aí estabeleci a minha escola como antes, e quanto mais claramente a sua inveja me perseguia tanto mais autoridade ele me proporcionava, de acordo com o dito do poeta: "A inveja acomete o que é mais alto; os ventos sopram com violência contra os cumes mais elevados". Não muito tempo depois, porém, como ele percebesse que quase todas as pessoas sensatas tinham muitas dúvidas a respeito do seu espírito religioso, e começassem a murmurar severamente quanto à sua conversão — pois, na verdade, ele de modo algum havia abandonado a cidade —, transferiu-se junto com a comunidade dos irmãos e com a escola para certa vila afastada da cidade. Imediatamente voltei de Melun a Paris com a esperança de que ele me deixaria doravante em paz. No entanto, como observei, ele fizera o meu lugar ser ocupado por um meu rival. Por isso, fui estabelecer o meu acampamento da escola fora da cidade, na montanha de Santa Genoveva, como se eu quisesse assediar aquele que ocupara o meu lugar. Quando meu mestre soube disso, imediatamente, e com impudência, retornou à cidade, tornando a trazer os alunos de que então dispunha e a comunidade de irmãos para o seu primitivo mosteiro, como quem viesse libertar do meu cerco o seu soldado que ali deixara. Mas, ao pretender ajudá-lo, prejudicou-o gravemente. Com efeito, antes ele ainda tinha uns discípulos quaisquer, principalmente por causa das suas lições sobre a gramática de Prisciano, na qual se acreditava que ele gozava de muito crédito. Todavia, depois que o mestre voltou, ele perdeu absolutamente todos os alunos e, desse modo, foi obrigado a desistir do seu cargo escolar. Não se passou muito tempo que ele próprio, desesperando doravante da glória mundana, também se convertesse à vida monástica. Mas depois da volta do meu mestre para a cidade, a própria realidade há muito tempo já te fez ciente dos conflitos e discussões que meus alunos mantiveram tanto com ele como com os seus discípulos, e dos êxitos que a fortuna nos proporcionou nesses combates, ou melhor, a mim mesmo. Para falar comedida-mente citarei com audácia aquele dito de Ajax: "Se procuras saber o resultado desta luta, eu não fui vencido por ele." Se eu silenciasse sobre isso, os próprios fatos clamariam e haviam de contar o desfecho. Mas enquanto se passavam essas coisas, minha mãe caríssima, Lúcia, obrigou-me a voltar à terra natal. Na verdade, depois da entrada de meu pai Berengario para a vida monástica, ela se dispunha a fazer o mesmo. Depois que isso se realizou, retornei à França, principalmente para estudar a doutrina sagrada, quando o meu já mencionado Mestre Guilherme se destacava como bispo de Châlons. Nesse ensino, entretanto, o seu Mestre Anselmo de Laon desfrutava então da máxima autoridade por lecionar havia muitos anos. Abelardo vem ter com Mestre Anselmo em Laon Então fui ter com esse velho que conquistara um grande nome mais pela sua longa prática do que pelo engenho ou pela memória. Se alguém vinha bater à sua porta, incerto, para consultá-lo sobre alguma questão, voltava mais incerto. Na verdade, parecia admirável aos olhos dos seus ouvintes mas era nulo aos olhos dos que lhe faziam perguntas. Tinha uma elocução admirável, mas era vazio de conteúdo, oco de pensamento. Quando acendia o fogo, enchia a sua casa de fumaça mas não a iluminava. Sua árvore parecia toda vistosa na sua folhagem aos que a olhavam de longe, mas revelava-se infrutífera aos que a observavam de perto e com cuidado. No entanto, quando eu me aproximei dela para lhe recolher o fruto, percebi que se tratava daquela figueira que o Senhor amaldiçoou ou daquele carvalho ao qual Lucano comparou Pompeu, ao dizer: "Eleva-se, sombra de um grande nome, Como um carvalho altivo no campo fecundo, etc." Estando, pois, disso convencido, não me deixei ficar ocioso à sua sombra por muito tempo; pouco a pouco, todavia, como eu comparecesse cada vez mais raramente às suas aulas, alguns dentre os seus discípulos mais destacados tomaram isso como ofensa grave, como se eu estivesse a desprezar tão grande mestre. Por isso, provocando-o, também, contra mim secretamente, tornaram-me odioso a ele com as suas pérfidas sugestões. Aconteceu que, certo dia, depois de algumas conferências sobre as Sentenças, nós estudantes gracejássemos uns com os outros. Vai daí que um deles me perguntou com intenção sorrateira, a mim que ainda não estudara senão livros de filosofia, o que eu achava das lições sobre os livros sagrados. Respondi que, decerto, o estudo dessas obras era muito salutar, pois através da sua leitura chega-se a conhecer o modo de salvar a alma, mas que eu muito me admirava de que para aqueles que são instruídos não bastassem, para entender as exposições dos Santos Padres, os seus próprios escritos ou os comentários, de tal modo que não precisassem evidentemente de outro ensino. Muitos dos presentes caíram no riso e perguntaram se eu poderia fazer isso e se ousaria empreender tamanha tarefa. Retruquei que estava pronto para me submeter à prova se eles o quisessem. Então, a gritar e a rir ainda mais, exclamaram: "Por certo que nós aprovamos. Vamos procurar e entregar-te o comentário de algum passo pouco conhecido da Escritura, e assim comprovaremos o que prometeste". Todos concordaram, então, na escolha de uma profecia muito obscura de Ezequiel. Aí, tomando o comentário, convidei-os logo para minha aula no dia seguinte. Houve alguns que, contra a minha vontade, me davam conselhos, dizendo que eu não devia me apressar a cumprir o prometido, mas que, como eu ainda era inexperiente, devia velar por muito tempo a esquadrinhar e a confirmar a minha exposição. Indignado, porém, respondi que não era do meu costume avançar por meio da prática, mas sim por meio do engenho, e acrescentei que ou eles não adiariam o comparecimento à minha aula conforme a minha decisão ou eu desistiria completamente de tudo. Sem dúvida, poucas pessoas estiveram presentes à minha aula, já que parecia ridículo a todos que eu, quase absolutamente inexperiente na ciência sagrada, dela viesse a tratar tão apressadamente. Entretanto, minha aula encantou de tal modo a todos os que a ela compareceram que eles a exaltaram com extraordinários elogios e me compeliram a fazer comentários de acordo com o teor da minha exposição. Logo que ouviram isso, aqueles que não estiveram presentes começaram, à porfia, a concorrer à segunda e à terceira aula, e todos se puseram igualmente muito solícitos a copiar os comentários, que eu começara a fazer desde o seu início no primeiro dia. Anselmo começa a perseguir Abelardo Em consequência disso, esse velho senhor, abalado por violenta inveja e já estimulado então contra mim pelas instigações de alguns, como lembrei acima, começou a perseguir-me pelas minhas aulas sobre a ciência sagrada, não menos do que anteriormente o fizera meu Mestre Guilherme pelas de filosofia. Estavam então na escola desse velho senhor dois estudantes, que pareciam destacar-se acima dos outros, Alberico de Rheims e Lotulfo de Lombardia, que quanto mais presumiam da própria excelência tanto mais se exasperavam contra mim. Assim, movido principalmente pelas sugestões desses dois, como algum tempo depois se advertiu, aquele velho perturbado proibiu-me arrogantemente de continuar a exercer o papel de comentador que eu havia começado no lugar em que ele ensinava, aduzindo, como justificativa, por ser eu ainda desprovido de instrução nessa área de estudos, que eu talvez viesse a escrever algo de errado naquela obra, e que tal erro lhe seria imputado. Quando essa notícia chegou aos ouvidos dos estudantes, eles ficaram tocados por profunda indignação diante de tão clara aleivosia dita pela inveja, tal como a ninguém jamais acontecera. E quanto mais clara foi a desfeita, tanto mais se converteu em motivo de honra para mim e, desse modo, perseguindo-me, ele me tornou mais glorioso. Abelardo finalmente triunfou em Paris Assim, depois de alguns dias, voltei a Paris e desfrutei por alguns anos tranquilamente da escola que, havia muito tempo, me fora destinada e oferecida e da qual eu havia sido expulso. Aí, logo no início do curso, tratei de terminar aqueles comentários de Ezequiel que começara em Laon. E, na verdade, essas aulas foram tão bem recebidas pelos estudantes, que já admitiam que eu não tinha menos encanto na ciência sagrada do que aquele que eles já haviam apreciado na filosófica. E, por causa do interesse despertado pelos meus dois cursos, o número de alunos da escola multiplicou-se de modo extraordinário, e não te pôde passar despercebido, devido à fama, quanto lucro financeiro e quanta glória eles me proporcionaram. Mas, porquanto a prosperidade sempre faz inchar os tolos, e o repouso mundano debilita o vigor da alma e facilmente o enfraquece por meio dos atrativos carnais, quando eu já me considerava como o único filósofo eminente e não temia mais nenhuma outra inquietação, comecei a afrouxar as rédeas às paixões, eu que antes vivera na maior continência. E quanto mais eu me adiantava na filosofia e na ciência sagrada, mais eu me afastava dos filósofos e dos santos pela vida impura. É certo que os filósofos, e nem se fale dos santos, isto é, dos que atendem às exortações da Sagrada Escritura, destacaram-se de modo extraordinário pelo brilho da castidade. Quando, pois, eu estava completamente atormentado pela soberba e pela luxúria, a graça divina proporcionou-me, ainda que eu não o quisesse, o remédio para essas duas doenças, primeiro da luxúria, e depois, da soberba; da luxúria, privando-me dos meios com os quais a ela me entregava; mas da soberba que se originava em mim principalmente da ciência das letras, conforme aquela palavra do Apóstolo: "A ciência incha" — humilhando-me, ao queimarem aquele livro de que principalmente eu me gloriava. Quero que conheças agora a história dessas duas curas de modo mais verdadeiro pela narração dos próprios fatos do que através dos boatos e na mesma ordem em que ocorreram. Uma vez que sempre detestei a sujeira das meretrizes, e como a dedicação ao estudo e à atividade escolar me mantinha retraído do contato e do convívio com mulheres nobres, e como eu não me relacionava muito com as mulheres de condição comum, a má sorte acariciando-me, como se diz, descobriu uma ocasião mais conveniente para me derrubar do píncaro da glória, ou melhor, a piedade divina reivindicava para si um homem humilhado em vez de muito soberbo e esquecido das graças recebidas. Como o amor por Heloísa levou Abelardo à queda que lhe feriu o corpo e a alma Havia na cidade de Paris certa mocinha chamada Heloísa, sobrinha de um cônego chamado Fulberto, que quanto mais a amava tanto mais cuidadosamente procurava que ela se adiantasse em toda a ciência das letras, tanto quanto possível. Pelo rosto ela não fazia má figura, mas era a primeira pela riqueza dos seus conhecimentos. De fato, quanto mais esta vantagem da ciência literária é rara entre as mulheres tanto mais servia de recomendação à mocinha e a tornara famosíssima em todo o reino. Ponderadas então todas as coisas que costumam cativar os amantes, pensei em uni-la a mim pelo amor muito cômodo e acreditei poder conseguir isso de modo muito fácil. Por certo que eu era, então, pessoa de grande nome e me destacava pelo encanto da juventude e da aparência de tal modo que eu não temia ser repelido por qualquer mulher que eu dignasse favorecer com meu amor. Acreditei que essa mocinha cederia diante de mim tanto mais facilmente quanto eu sabia que ela possuía e amava a ciência das letras. Embora nós estivéssemos separados, era possível que nos tomássemos presentes um ao outro por intermédio de cartas, assim como escrever com mais audácia aquelas coisas que geralmente não se dizem de viva voz e, desse modo, estaríamos sempre em agradáveis colóquios. Ora, todo inflamado de amor por essa mocinha, procurei a ocasião pela qual ela se me tornasse familiar pelo convívio doméstico e cotidiano e assim a arrastasse a ceder mais facilmente. Para que isso acontecesse, tratei com o mencionado tio da moça, por intermédio de alguns dos seus amigos, para que ele me recebesse em sua casa, que ficava próxima da minha escola, por um preço qualquer que ele estipulasse, alegando na verdade o pretexto de que o cuidado da minha casa prejudicava os meus estudos e que a excessiva despesa me onerava. Ele era muito avarento e muito preocupado com que a sua sobrinha progredisse sempre mais nos seus estudos literários. Por meio dessas duas fraquezas obtive facilmente o seu consentimento e consegui o que desejava, uma vez que ele, de fato, era todo ambição de dinheiro e acreditava que a sua sobrinha aproveitaria alguma coisa do meu ensino. Rogando-me por causa disso com muita insistência, acedeu aos meus votos muito além do que eu ousaria esperar e concorreu para o amor, confiando-a inteiramente à minha orientação para que todas as vezes que me sobrasse algum tempo, depois de voltar da escola, tanto de dia como de noite, eu me consagrasse a ensiná-la. Se eu percebesse, porém, que ela fosse negligente, então que eu a castigasse severamente. Nessa matéria fiquei imensamente admirado com a sua grande ingenuidade, o que não me espantou menos que se ele confiasse uma tenra ovelha a um lobo faminto. Quando ele a entregou a mim, não apenas para ensiná-la mas, também, para castigá-la severamente, que outra coisa fazia do que dar passo livre absolutamente aos meus votos e oferecer ocasião, ainda que não quiséssemos, para que eu dobrasse mais facilmente com ameaças e golpes aquela que eu não pudesse vencer com carícias? Mas havia duas coisas que principalmente lhe desviavam a atenção de qualquer suspeita vergonhosa, a saber, o amor da sobrinha e a fama passada da minha continência. Que mais direi? Primeiro nós nos juntamos numa casa e depois no espírito. Assim, com a desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da lição, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios do que para os livros e mais frequentemente o amor se refletia nos olhos do que a lição os dirigia para o texto. E para que não despertássemos suspeitas, o amor de vez em quando vibrava alguns golpes, não a cólera, não o ódio, mas o encantamento; golpes que ultrapassavam a suavidade de todos os bálsamos. Em suma, que direi? Nenhum grau do amor foi omitido por nós dois apaixonados, e tudo o que o amor pôde imaginar de insólito foi acrescentado e, quanto menos tínhamos experiência dessas alegrias, tanto mais ardentemente nelas nos demorávamos e tanto menos nos cansávamos disso. E quanto mais essa volúpia me dominava, tanto menos eu podia consagrar-me à filosofia e ocupar-me da escola. Para mim era muito aborrecido ir à escola ou nela permanecer, como era, igualmente, muito difícil para eu ficar em pé, enquanto dedicava as vigílias noturnas ao amor e as horas diurnas ao estudo. As aulas, então, tinham em mim um expositor negligente e indiferente, de tal modo que eu já nada proferia servindo-me do engenho, mas repetia tudo mecanicamente, e já não passava de um repetidor dos meus primeiros achados e, se fosse possível ainda achar algo, seriam versos de amor e não os segredos da filosofia. A maior parte desses versos, como tu próprio o sabes, ainda são repetidos e cantados em várias regiões, principalmente por aqueles aos quais encanta semelhante vida. Não é fácil imaginar quanta tristeza, que gemidos e lamentos foram os dos meus alunos, quando perceberam a preocupação, ou melhor, a perturbação do meu espírito por causa disso. Com efeito, fato tão patente não poderia enganar senão a poucos ou a ninguém, creio, a não ser àquele para cuja vergonha isso concorria principalmente, a saber, o próprio tio da mocinha. De vez em quando, se alguns boquejavam algo sobre isso, ele não o podia acreditar, tanto, como lembrei acima, pelo excessivo afeto por sua sobrinha, como, também, pela conhecida castidade da minha vida anterior. De fato, não suspeitamos facilmente da desonra daqueles que muito amamos nem pode existir a nódoa de uma vergonhosa suspeita numa profunda afeição. Daí escrever São Jerônimo em sua carta a Sabiniano: "Nós costumamos ser os últimos a saber dos males de nossa casa, e os vícios de nossos filhos e esposas permanecem ignorados, enquanto os vizinhos os proclamam." Mas o que se vem a saber por último, em todo o caso, sempre se acaba por saber, e não é fácil esconder de uma pessoa aquilo que todos já conhecem. Depois de passados vários meses, foi o que aconteceu conosco. Oh! Que dor imensa a do tio ao tomar conhecimento de tudo isso! Quanta dor, também, na separação dos próprios amantes! Como fiquei confundido e envergonhado! Como me consumi de arrependimento pela aflição da mocinha! Que gemidos de tristeza a sacudiram diante da minha vergonha! Nenhum de nós dois se queixava do que acontecera a si mesmo e sim ao outro; nenhum de nós chorava os próprios infortúnios, mas sim os do outro. Entretanto, essa separação dos corpos tornou-se o maior fator de união das nossas almas e, por se lhe negar satisfação, mais ainda se inflamava o nosso amor, e a impressão da vergonha passada despojou-nos mais ainda do pudor, e tanto menos ela se fazia sentir quanto mais a ação nos parecia ainda mais conveniente. Aconteceu conosco o que a ficção poética narra de Marte e de Vênus, ao serem surpreendidos. Não muito tempo depois, a mocinha verificou que estava grávida, e logo me escreveu a respeito disso com a maior alegria, querendo saber o que eu próprio resolvia sobre o que devia ser feito. Assim, certa noite, enquanto o seu tio estava ausente, conforme combináramos, eu a tirei às escondidas da casa do tio e a conduzi sem demora para a minha terra natal, onde ficou a viver junto com minha irmã até quando deu à luz um filho que se chamou Astrolábio. O tio dela, nesse ínterim, após a sua fuga, quase ficou louco, e ninguém poderia avaliar, exceto se passasse pela mesma experiência, quanto ele gemeu de dor e quanta vergonha sentiu. Ignorava, porém, o que faria comigo e que armadilhas me aprontaria. Se me matasse ou se me mutilasse, temia especialmente que a sua caríssima sobrinha viesse a sofrer as consequências disso em minha terra natal. Não podia de modo nenhum apoderar-se de mim e conservar-me preso em alguma parte contra a minha vontade, principalmente por eu me achar muito vigilante quanto a isso, de tal modo que, se ele o pudesse fazer ou se o ousasse, eu não teria dúvida em atacá-lo mais depressa. Enfim, bastante compadecido da sua excessiva inquietação e do engano que o amor lhe infligira como a maior traição, e acusando-me severamente a mim próprio, fui procurar o homem, suplicando-lhe e prometendo-lhe qualquer reparação por tudo isso e que ele próprio decidiria qual devia ser. Eu lhe afirmei, igualmente, que tal fato não surpreenderia a quem quer que tivesse experimentado a força do amor, e que ele se lembrasse de quantas desgraças já haviam existido nas quais as mulheres atiraram os maiores homens logo desde o início da humanidade. E para que eu ainda mais o apaziguasse de modo a lhe ultrapassar as esperanças, ofereci-me para lhe dar uma satisfação, unindo-me em matrimônio com aquela que eu seduzira, desde que isso fosse mantido em segredo, a fim de que a minha reputação não ficasse prejudicada. Ele concordou e estabeleceu comigo a concórdia que eu solicitava, empenhando a sua palavra e a de seus amigos selada com beijos, a fim de me atraiçoar mais facilmente. A argumentação de Heloísa contra as núpcias Imediatamente parti para minha terra natal e trouxe comigo de volta a minha amante para fazer dela a minha esposa. Ela, contudo, de modo nenhum aprovou-me o plano, mas, pelo contrário, dele me procurou dissuadir inteiramente por dois motivos, a saber, tanto pelo perigo quanto pela desonra em que eu ia incorrer. Ela jurava que seu tio nunca poderia ser aplacado por satisfação alguma, como mais tarde o reconhecemos. Ela também indagava que glória ia tirar de mim, uma vez que esse casamento me acabaria com o prestígio e humilharia igualmente tanto a ela como a mim. E ademais, que punição o mundo deveria exigir para ela, se ela lhe arrebatava tão grande luzeiro? Quantas maldições, quantos prejuízos para a Igreja, quantas lágrimas dos filósofos seguir-se-iam desse matrimônio! Quão indecoroso e lamentável seria ver que um homem como eu, que a natureza criara para todos, me dedicava a uma só mulher e me sujeitava a tanta indignidade! Ela abominava veementemente esse matrimônio que por todos os motivos seria ignominioso e pesado para mim. Ela me debuxava a minha infâmia e igualmente as dificuldades do matrimônio que o Apóstolo decerto nos exorta a evitar, quando diz: "Estás livre de mulher? Não procures mulher. Mas se recebes mulher em casamento, não pecas, e se a virgem se casar, não pecará. Todavia, terão as tribulações da carne. Eu, porém, quisera poupar-vos, etc.". E ainda: "Desejo que fiqueis livre de toda preocupação". Que se eu não acatasse nem o conselho do Apóstolo nem as exortações dos santos sobre o pesado jugo do matrimônio, pelo menos, dizia ela, que eu consultasse os filósofos, e prestasse atenção ao que sobre esse assunto foi escrito por eles ou para eles. Em geral, os santos tinham feito isso cuidadosamente para nos repreender. Um exemplo é o de São Jerônimo no primeiro livro da sua obra Contra Joviniano, onde ele recorda que Teofrasto, depois de haver exposto diligentemente e de modo quase completo os intoleráveis aborrecimentos do matrimônio e as suas contínuas inquietações, prova por meio de argumentos muito claros que o sábio não deve casar-se, e ele próprio arremata aquela argumentação de uma exortação filosófica com a seguinte peroração: "Isso e outras coisas desse gênero serviram de argumento para Teofrasto, e qual dos cristãos não ficaria confundido? etc.". No mesmo livro diz, ainda, São Jerônimo: "Quando Cícero, após o repúdio de Terência, foi instado por Hírcio a casar com a sua irmã, ele recusou vigorosamente, afirmando que não podia consagrar-se igualmente a uma mulher e à filosofia". Ele não disse apenas "consagrar-se", mas acrescentou "igualmente", não querendo fazer qualquer coisa que viesse a competir com a filosofia. No entanto, para que eu agora deixe de lado esse impedimento ao estudo da filosofia, prossegue Heloísa, considera a situação de uma vida honesta. Com efeito, que relação pode haver entre estudantes e criadas, escrivaninhas e berços, livros ou tabuinhas de escrever e uma roca, estiletes ou penas e fusos? Por fim, quem poderia, aplicando-se às meditações sagradas ou filosóficas, suportar o vagido das crianças, as cantarolas das amas que as embalam e a multidão barulhenta da família composta de homens e de mulheres? Quem poderia também tolerar aquelas contínuas e desprezíveis sujeiras das crianças? Os ricos podem safar-se bem da situação, dirás, uma vez que os seus palácios ou vastas moradias possuem repartições, e já que a sua opulência não sente as despesas nem se perturba com as preocupações cotidianas. Mas eu digo que a situação dos filósofos não é a mesma que a dos ricos, nem aqueles que se dedicam às riquezas ou se envolvem com as coisas profanas têm tempo para os deveres sagrados ou filosóficos. Por isso, filósofos célebres do tempo antigo, desprezando completamente o mundo e fugindo do século mais do que o abandonando, proibiam a si mesmos todos os prazeres, para repousarem apenas nos braços da filosofia. Um deles, que por sinal é o maior, Sêneca, declara ao instruir Lucílio: "Não deves filosofar só por teres tempo disponível... Tudo deve ser posto de lado para que nos dediquemos a essa atividade para a qual nenhum tempo é suficientemente longo... Não importa muito se deixas de fazer ou se interrompes o estudo da filosofia; com efeito, ela não permanece quando é interrompida... É preciso resistir às ocupações, que não devem ser adiadas, mas removidas". Por conseguinte, os que entre nós se dizem verdadeiramente monges sustentam agora por amor de Deus aquilo que nobres filósofos entre os pagãos suportaram por amor da filosofia. De fato, em todos os povos, tanto entre os pagãos como entre os judeus ou os cristãos, sempre existiram alguns homens que se notabilizaram pela fé ou pela honestidade dos costumes e que se conservaram afastados do povo por uma continência e abstinência singulares. Assim, entre os judeus na Antiguidade foram os nazarenos que se consagraram ao Senhor segundo a Lei, ou os filhos dos profetas e os seguidores de Elias e Eliseu que, de acordo com o testemunho de São Jerônimo, lemos no Antigo Testamento que foram monges. Por último estão aquelas três seitas da filosofia que José no seu livro das Antiguidades distingue e denomina como fariseus, saduceus e essênios. Entre nós existem os monges que imitam a vida comum dos apóstolos ou a primitiva e solitária existência de João Batista. Entre os pagãos, porém, como se observou, há os filósofos. Com efeito, eles não atribuíam o termo sabedoria ou filosofia tanto à aquisição do conhecimento quanto a uma vida religiosa, como aprendemos também pela própria origem desse nome e, ainda, pelo testemunho dos próprios santos. Por isso, Santo Agostinho declara no oitavo livro da Cidade de Deus, ao distinguir as três classes de filósofos: "A escola Itálica teve por fundador a Pitágoras de Samos, de quem se diz que se originou o próprio nome da filosofia. De fato, como anteriormente fossem chamados de sábios aqueles que pareciam avantajar-se às outras pessoas por certo estilo de vida louvável, quando interrogado sobre o gênero de vida que abraçava, respondeu que era filósofo, isto é, alguém que busca e ama a sabedoria, porquanto lhe parecia o cúmulo da arrogância declarar-se um sábio". Assim, nesse lance em que se diz: "Aqueles que pareciam avantajar-se às outras pessoas por certo estilo de vida louvável, etc.", demonstra-se claramente que os sábios dos pagãos, isto é, os filósofos, eram assim denominados mais em louvor da sua vida do que do seu conhecimento. Entretanto, quão sóbria e continentemente eles próprios tenham vivido, não é meu propósito alegar com exemplos, para que eu não pareça estar a ensinar a própria Minerva. Agora, se leigos e pagãos viveram assim, eles que não estavam ligados por nenhum voto especial de vida religiosa, o que é preciso que faças como clérigo e como cônego para que não prefiras os vergonhosos prazeres aos ofícios divinos, para que não sejas tragado pelo abismo desse Caríbdis, para que não mergulhes vergonhosa e irrevogavelmente nessas torpezas? Mas se não te preocupas com os compromissos de clérigo, pelo menos defende a dignidade de filósofo. Se a reverência para com Deus é desprezada, que pelo menos o amor à honestidade refreie o impudor. Lembra-te de que Sócrates foi casado, e do degradante incidente pelo qual ele próprio reparou por primeiro essa nódoa da filosofia, e para que daí em diante, pelo exemplo dele, os outros homens se tornassem mais cautelosos. Esse episódio não escapou ao próprio São Jerônimo que, no primeiro livro da sua obra Contra Joviniano, assim escreveu a respeito do próprio Sócrates: "Um dia, como resistisse aos inúmeros insultos que Xantipa lhe prodigalizava de um andar superior, vendo-se banhado por uma água imunda, depois de limpar a cabeça, nada mais respondeu que as seguintes palavras: Eu sabia que a chuva viria depois desses trovões". Por fim, acrescentava Heloísa que seria muito perigoso para eu trazê-la de volta, dizendo que lhe seria mais caro, e mais honroso para mim, ser ela chamada de minha amante antes que de minha esposa, a fim de que ela me conservasse só pelo seu encanto e não devido à força do laço nupcial. E ela afirmava que as alegrias que havíamos de conhecer nos nossos encontros após breves separações seriam tanto mais deliciosas quanto mais raras. Tentando convencer-me ou dissuadir-me com esses e semelhantes argumentos, como não conseguisse dobrar a minha loucura e como não tolerasse ofender-me, ela suspirou profundamente e, a derramar lágrimas, encerrou a sua peroração com o seguinte desfecho: "Finalmente, uma só coisa nos resta a fazer, que é na perdição de nós dois não vir a ser menor a dor do que o amor que a precedeu". Nem lhe faltou nessa afirmação, como todo o mundo reconheceu, o espírito de profecia. Ora, logo que nasceu o nosso filho, depois de tê-lo confiado à minha irmã, voltamos ocultamente a Paris e, depois de poucos dias, tendo passado a noite numa certa igreja entregues a uma secreta vigília de orações, aí mesmo, de madrugada, estando presentes o tio dela e alguns amigos seus e meus, fomos unidos pela bênção nupcial. Imediatamente depois, retiramo-nos ocultamente cada um para o seu lado, e não nos vimos mais a não ser raramente e às escondidas, encobrindo com muita dissimulação o que tínhamos feito. O tio dela, porém, e seus familiares, procurando uma consolação para a sua desonra, começaram a divulgar o matrimônio que havíamos contraído e a violar a respeito disso a palavra que me haviam empenhado. Heloísa, ao contrário, amaldiçoava-o, e jurava que isso não passava de refinada mentira. Por isso, Fulberto, profundamente exasperado, impunha-lhe repetidos ultrajes. Quando me inteirei do que acontecia, enviei-a para certa abadia de monjas, perto de Paris, chamada Argenteuil, onde ela outrora, quando menina, fora educada e instruída. Fiz preparar para ela o hábito religioso conveniente à vida monástica e com ele a revesti, exceto o véu. Tendo ouvido o que se passara, o tio dela e os seus parentes ou cúmplices acharam que eu já zombara imensamente deles e que, ao fazê-la monja, eu queria desembaraçar-me dela facilmente. Donde, profundamente indignados e mancomunados contra mim, certa noite, enquanto eu repousava e dormia num quarto retirado da minha residência, tendo corrompido com dinheiro o meu servidor, puniram-me com a vingança mais cruel e vergonhosa, e de que o mundo tomou conhecimento com o maior espanto, isto ê, cortaram aquelas partes do meu corpo com as quais eu havia perpetrado a façanha que eles lamentavam. Imediatamente depois disso, eles fugiram e dois deles, que puderam ser presos, foram privados dos olhos e dos órgãos sexuais, sendo um deles o meu servidor já mencionado que, enquanto permanecia comigo a meu serviço, foi levado à traição pela cobiça. A chaga do corpo Depois que amanheceu, estando a cidade inteira reunida em tomo de mim, seria difícil, ou melhor, impossível exprimir o espanto, a estupefação que deles se apoderou, as lamentações a que se entregaram, os gritos com que me afligiram e o pranto com que me perturbaram. Na verdade, foram principalmente os clérigos e, de modo especial, os meus alunos que me torturaram com os seus intoleráveis lamentos e queixumes, de tal modo que eu me via muito mais incomodado pela sua compaixão do que pelo sofrimento da ferida; sentia mais a vergonha do que a mutilação e era mais atormentado pela infâmia do que pela dor. Ocorria-me o pensamento da grande glória que eu havia pouco desfrutava e de que modo ela fora abatida por um incidente vulgar e vergonhoso, ou melhor, como ela fora completamente destruída e, por justo juízo de Deus, eu fora castigado naquela parte do meu corpo em que eu pecara, e como por uma justa traição aquele que eu antes atraiçoara me deu o troco por sua vez; como os meus rivais exaltaram uma equidade tão manifesta, e como essa chaga provocaria a desolação de um sofrimento perpétuo em meus parentes e amigos, e com que extensão essa infâmia singular difundir-se-ia pelo mundo inteiro. Que outro caminho restava para mim? Como eu enfrentaria o público ao ser apontado a dedo por todos, ao ser denegrido por todas as línguas e ao ser dado a todos em espetáculo monstruoso? E o que também não pouco concorria para a minha confusão era que, de acordo com a letra da Lei, que mata, fosse tão grande junto a Deus a abominação dos eunucos, de tal modo que os homens reduzidos a esse estado pela amputação ou pelo esmagamento dos órgãos genitais eram proibidos de ingressar numa igreja por serem imundos e fétidos, e que os próprios animais nessa condição eram absolutamente rejeitados num sacrifício: "Não oferecereis ao Senhor um animal cujos testículos tenham sido machucados, esmagados, arrancados ou cortados". E ainda: "O eunuco, cujos testículos foram esmagados ou cortado o membro viril, não será admitido na assembleia do Senhor". Encontrando-me nesse mísero estado de abatimento, confesso que foi mais a confusão provocada pela vergonha do que a devoção suscitada pela conversão que me impeliu para o refúgio de um claustro monástico. Nesse ínterim, Heloísa, primeiro por minha ordem, e depois por sua espontânea vontade, tomou o véu e ingressou num mosteiro. Assim, ambos recebemos, ao mesmo tempo, o sagrado hábito, eu na abadia de São Dionísio, e ela, no mosteiro de Argenteuil, já mencionado. Lembro-me de que, quando muitos dos seus simpatizantes em vão procuravam dissuadi-la, jovem como ela era, de submeter-se ao jugo da regra monástica como a um castigo intolerável, ela prorrompia entre lágrimas e soluços, quanto podia, naquela queixa de Cornélia: "Ó excelente esposo, não foste feito para o meu leito nupcial! A Fortuna tinha tanto direito sobre alguém tão grande? Por que sendo criminosa eu me casei, se eu devia tornar-te infeliz? Recebe agora o castigo que, por livre vontade, expiarei". Com essas palavras ela se apressou logo em ir para o altar e, sem demora, dele tomou o véu abençoado pelo bispo e diante de todos ligou-se à vida monástica. Entretanto, mal ainda eu me restabelecera da ferida, que os clérigos vieram ter comigo, solicitando tanto ao meu abade quanto a mim, com súplicas contínuas, para que eu agora me consagrasse ao estudo pelo amor de Deus, já que até então eu só o fizera pela ambição do dinheiro ou do louvor. Diziam que eu devia considerar que o talento que me fora concedido por Deus me seria exigido por Ele com juros e que, como eu me ocupara até aqui principalmente dos ricos, tratasse agora de instruir os pobres. Eles observavam que eu agora reconheceria ter sido tocado pela mão do Senhor principalmente para que, mais livre dos prazeres carnais e afastado da vida tumultuosa do mundo, eu pudesse dedicar-me ao estudo das letras e tornar-me verdadeiramente um filósofo de Deus e não do mundo. Entretanto, aquela abadia à qual eu me recolhera apresentava um estilo de vida muito profano e vergonhoso, e o seu próprio abade, quanto mais se avantajava aos outros pela dignidade, tanto mais era conhecido pela vida dissoluta e pela má reputação. Como eu denunciasse com frequência e veementemente, tanto em particular como em público, as suas intoleráveis torpezas, tornei-me odioso e importuno a todos, acima da medida. Embora eles estivessem tremendamente satisfeitos com as solicitações constantes feitas pelos meus discípulos, aproveitaram essa ocasião para me afastar do seu caminho. Desse modo, devido aos seus constantes pedidos e à importuna pressão, e devido à intervenção do meu abade e dos irmãos, retirei-me para uma casinhola a fim de consagrar-me da forma costumeira ao ensino. Na verdade, acorreu tal multidão de estudantes às minhas aulas que nem o lugar lhes permitia acomodação nem a terra bastava para os alimentos. Ali, o que era mais conveniente ao meu estado de vida, eu me aplicava grandemente ao estudo da ciência sagrada mas sem ter abandonado totalmente o ensino das artes seculares com as quais eu estivera mais habituado e que eles reclamavam bastante de mim. Fiz das artes liberais uma espécie de anzol com o qual, sob o engodo do sabor filosófico, eu os atraía ao estudo da verdadeira filosofia, tal como a História Eclesiástica, de Eusébio, recorda que costumava fazer Orígenes, o maior dos filósofos cristãos. Todavia, como o Senhor parecia ter-me concedido não menos facilidade na Escritura divina do que na profana, minha escola, por causa dos dois cursos, começou a crescer extraordinariamente, e todas as outras, a declinarem de modo impressionante. Com isso eu provoquei contra mim de modo especial a inveja e o ódio dos mestres, que, sempre que podiam, me tiravam a autoridade, ao me lançarem em rosto, enquanto eu estava ausente, principalmente duas coisas: que é muito contrário ao objetivo de um monge deter-se no estudo dos livros profanos, e que eu presumia arvorar-me em mestre da ciência sagrada sem ter tido a orientação de um professor. Queriam desse modo que me fosse proibido todo o exercício do ensino e, para conseguir isso, atiçavam incessantemente os bispos, os arcebispos, os abades e todas as pessoas de nome, na vida religiosa, ao seu alcance. O livro de teologia e a perseguição que sustentou da parte de alguns condiscípulos Ora, aconteceu que eu me aplicasse, de início, a discorrer sobre o próprio fundamento da nossa fé por meio de analogias propostas pela razão humana, e que eu compusesse para os meus alunos um tratado Sobre a Unidade e a Trindade de Deus. Eles me pediam argumentos humanos e filosóficos, e insistiam mais naqueles que pudessem ser entendidos do que proferidos, dizendo ser supérflua a prolação de palavras sem a compreensão das mesmas, e que não se pode crer naquilo que antes não se entendeu, e que é ridículo alguém pregar aos outros o que nem ele próprio nem aqueles que ensina podem compreender com o intelecto. O próprio Senhor estigmatizou-os como cegos a servirem de guias de cegos. Quando muitas pessoas viram e leram esse tratado, o contentamento foi geral, já que ele parecia satisfazer a todos quanto a esse assunto. E visto que essas questões pareciam as mais difíceis entre todas, tanto maior se julgava a sutileza da sua solução. Vai daí e os meus rivais profundamente excitados reuniram contra mim um concilio, destacando-se principalmente entre eles aqueles dois velhos conspiradores, a saber, Alberico e Lotulfo, que depois da morte dos seus e meus mestres, Guilherme e Anselmo, pretendiam reinar sozinhos depois deles e também suceder-lhes como seus herdeiros. Como ambos dirigiam escola em Rheims, através das suas contínuas sugestões concitaram contra mim o seu arcebispo Raul para que, de concerto com Conão, bispo de Preneste, e que então desempenhava a função de legado na Gália, convocasse certa assembleia, sob o nome de concilio, na cidade de Soissons e me fizesse vir e trazer comigo aquele tratado que eu compusera sobre a Trindade. E assim se fez. Antes, porém, que eu ali chegasse, aqueles meus dois citados rivais haviam me difamado de tal maneira junto ao clero e ao povo que no primeiro dia da minha chegada quase me lapidaram e aos poucos discípulos que me acompanharam, dizendo que eu havia ensinado e escrito que há três deuses, tal como lhes fora inculcado. Logo que cheguei à cidade, fui ter com o legado e lhe entreguei o meu livro para que ele o examinasse e o julgasse, e declarei que estava pronto para fazer correções ou dar satisfação, se eu tivesse escrito ou dito alguma coisa que discrepasse da fé católica. Todavia, ele imediatamente me ordenou que levasse o livro ao arcebispo e aos meus dois rivais para que aqueles mesmos que me acusavam julgassem a questão, de sorte que se cumprisse em mim, também, a sentença da Escritura: “Meus inimigos são meus juízes”. Eles, porém, tendo examinado e revolvido várias vezes o livro, como não tivessem encontrado coisa alguma que ousassem me lançar em rosto na audiência, adiaram para o fim do concilio a condenação do livro, pela qual tanto ansiavam. Nesse entretempo, antes que se abrisse o concilio, eu expunha cada dia em público para todos a fé católica, conforme o que eu escrevera, e todos os que me ouviam recomendavam com grande admiração tanto a fluência do meu discurso quanto a minha compreensão do assunto. Quando o povo e o clero observaram isso, começaram a dizer entre si: "Vejam que ele agora fala abertamente e ninguém diz algo contra ele, e o concilio convocado especialmente contra a sua pessoa, segundo ouvimos, chega rapidamente ao fim. Porventura reconhecem os juízes que são eles os que estão errados e não ele?" Por causa disso os meus rivais ficavam cada dia mais e mais enraivecidos. Um dia, Alberico, com a intenção de me armar um laço, aproximando-se com alguns dos seus discípulos, e depois de algumas palavras amáveis, disse que ficara perplexo com algo que observara em meu livro, ou seja, pois uma vez que Deus gerou Deus, como não existe senão um só Deus, eu, no entanto, negava que Deus gerasse a si mesmo. Imediatamente lhe respondi: "Se quiseres, explicarei essa questão". "Nesses assuntos", replicou ele, "não estamos interessados nas justificações da razão humana nem na tua interpretação, mas apenas nas palavras da autoridade." Disse-lhe eu então: "Vira a página do livro e encontrarás a autoridade". Ele estava com o livro que trouxera consigo. Voltei-me para a passagem que eu conhecia e que ele ou não descobrira ou não achara porque só procurava o que me pudesse prejudicar; e foi da vontade de Deus que logo me caísse sob os olhos o que eu queria. Era uma sentença do primeiro livro do De Trinitate, de Santo Agostinho. Ela assim reza: "Quem pensa que Deus é de tal poder que se geraria a si próprio, erra tanto mais quanto não só Deus não existe assim, como tampouco a criatura espiritual ou a corpórea. Com efeito, não existe absolutamente coisa alguma que se engendre a si mesma". Quando os seus discípulos que estavam presentes ouviram isso, ficaram aturdidos e ruborizados de vergonha. Ele próprio, todavia, para proteger-se de qualquer modo, exclamou: "Sim, mas isso é para ser bem entendido". Eu, porém, concedi que isso não era novidade mas que nada tinha a ver com a presente questão, pois ele próprio exigia apenas palavras e não uma interpretação; agora, se ele quisesse escutar a interpretação e a razão, declarei que estava pronto para demonstrar que, de acordo com o seu parecer, ele havia caído na heresia segundo a qual Aquele que é o Pai é o Filho de Si mesmo. Quando ele ouviu isso, imediatamente, como louco de raiva, passou às ameaças e asseverou que nem os meus argumentos nem as minhas autoridades me salvariam nesse caso. E desse modo se retirou. No último dia do concilio, antes que tomassem os seus assentos, o legado e o arcebispo começaram a confabular longamente junto com os meus rivais e algumas outras pessoas sobre o que devia ser decretado a meu respeito e quanto ao meu livro, pois tal fora a razão pela qual eles principalmente haviam sido convocados. E visto que no momento não tinham o que alegar contra mim, fosse pelas minhas palavras, fosse pelos meus escritos, conservaram-se calados por algum tempo ou falaram mal de mim menos abertamente. Então, Godofredo, bispo de Chartres, que se destacava dos restantes bispos pela fama de santidade e pela dignidade da sua sé, começou a falar nos seguintes termos: "Vós sabeis todos, senhores aqui presentes, qual seja a doutrina deste homem, e do talento que qualquer coisa que tenha estudado lhe obteve defensores e partidários, e que ele reduziu ao máximo a fama tanto dos seus mestres como dos nossos, de tal modo que a sua vinha estendeu os seus ramos de um mar a outro. Se vós o tratardes severamente, sem o ouvir antes em juízo, o que não penso que o façais, sabei que ireis ofender a muitos, ainda que a vossa intenção seja reta, e que não faltarão muitos que o queiram defender, principalmente porque no seu escrito que temos em mãos nada vemos que confirme as acusações públicas e caluniosas. E como diz São Jerônimo: 'A coragem manifestada em público sempre desperta ciúmes’, e os 'relâmpagos ferem os cimos das montanhas'. "Sede cuidadosos para que não lhe aumenteis a fama, agindo violentamente e, desse modo, mais se nos atribua o crime de sermos movidos pela inveja a ele do que por causa da justiça. Como lembra o supracitado doutor: Com efeito, um falso rumor é logo abafado e a vida que se leva em seguida serve de base para julgar a anterior. Mas se estais dispostos a agir canonicamente contra ele, divulgai em plena assembleia a sua doutrina ou os seus escritos, que ele seja interrogado e lhe seja permitido responder livremente, de sorte que, se ficar como convicto ou se confessar a culpa, ele seja reduzido completamente ao silêncio e aí, pelo menos, agir-se-ia de acordo com a sentença do bem-aventurado Nicodemos, que, desejando livrar o próprio Senhor, dizia: Por acaso, a nossa lei julga um homem antes de o ouvir e de conhecer o que ele faz? Quando ouviram isso, os meus rivais imediatamente prorromperam numa gritaria, a exclamar: "Oh! sábio conselho, esse, de enfrentarmos a verbosidade de um homem a cujos argumentos e sofismas o mundo inteiro não poderia resistir". Mas, certamente era muito mais difícil discutir com o próprio Cristo que, no entanto, Nicodemos insistia que fosse ouvido, de acordo com a disposição da Lei. Entretanto, como o bispo não pudesse levá-los a aceitar aquilo que propusera, tentou refrear-lhes a inveja por outro meio, dizendo que as poucas pessoas “que estavam presentes não podiam bastar para a discussão de um assunto de tanta importância e que por acaso demandava um exame mais extenso”. Além disso, nessa questão ele era apenas do parecer de que o meu abade, que se achava presente, me reconduzisse para a minha abadia, isto é, o mosteiro de São Dionísio, e aí, depois de haver convocado muitas pessoas doutas, após uma cuidadosa investigação, ficasse determinado o que devia ser feito quanto a essa questão. O legado aprovou esta última resolução e todos os outros também. Daí a instantes, o legado levantou-se para celebrar missa antes de entrar no concilio e, através do bispo Godofredo, mandou-me a permissão combinada, isto é, de retornar ao meu mosteiro para que aí eu aguardasse o que fosse resolvido. Então, os meus adversários, pensando que não teriam conseguido nada se essa questão fosse tratada fora da sua diocese, onde de modo algum poderiam usar de violência, eles que não confiavam na justiça da sua causa, convenceram o arcebispo de que seria muito vergonhoso para ele se essa causa fosse transferida para outro tribunal, e que seria perigoso que eu fosse desse modo absolvido. E imediatamente foram ter com o legado e fizeram com que ele alterasse a sua decisão, e contra a sua vontade induziram-no a condenar meu livro sem nenhuma investigação e a queimá-lo imediatamente à vista de todos e a encerrar-me num outro mosteiro em clausura perpétua. Com efeito, diziam que para a condenação do livro devia ser suficiente que eu me tivesse atrevido a lê-lo publicamente, e que eu próprio o tivesse dado para ser copiado a muitas pessoas, sem que ele tivesse sido aprovado pela autoridade do Romano Pontífice ou de qualquer outra autoridade da Igreja. Achavam que isso seria muito útil para a fé cristã se, graças ao meu exemplo, se viesse a prevenir semelhante presunção da parte de muitos outros. Como o legado fosse menos instruído do que seria necessário para o seu cargo, apoiava-se demasiadamente no conselho do arcebispo e este, por sua vez, no dos meus oponentes. Quando o bispo de Châlons pressentiu o que ia acontecer, imediatamente pôs-me a par dessas maquinações e exortou-me veementemente a que suportasse isso de modo tanto mais brando quanto mais se patenteava a todos que eles agiam do modo mais violento e que eu não duvidasse de que essa violência tão manifesta do seu sentimento de inveja redundaria muitíssimo em prejuízo deles e em vantagem para mim. Advertiu-me, igualmente, para eu não ficar perturbado de modo algum com a clausura do mosteiro, porque ele tinha certeza de que o próprio legado, que ordenara isso sob coação, havia de conceder-me completa liberdade poucos dias depois que ele fosse embora dali. E assim, a chorar, ele próprio consolou-me, quanto pôde, a mim que também chorava. A queima do próprio livro Depois disso, convocado para o concilio, compareci imediatamente e, sem nenhum exame ou discussão, obrigaram-me a lançar ao fogo, com minha própria mão, o meu livro, que assim foi queimado. Contudo, para que não parecesse que eles nada tinham a dizer, um dos meus adversários murmurou que tinha deparado em meu livro com a afirmação de que só o Pai é Deus onipotente. Quando o legado se inteirou dessa observação, ficou muito surpreso e respondeu que não se devia acreditar que nem sequer uma criança cometeria tal erro, e disse que a fé comum sustenta e professa que existem três onipotentes. Ao ouvir isso, certo Teodorico, mestre de uma escola, aduziu com ironia um passo de Santo Atanásio: "E contudo não existem três onipotentes, mas um só Onipotente". Quando o seu bispo começou a repreendê-lo e a detê-lo como se fosse um réu de lesa-majestade, ele o enfrentou audaciosamente e, lembrando as palavras de Daniel, exclamou: "Tão estultos sois vós, filhos de Israel? Condenastes um filho de Israel sem julgamento e sem conhecer a verdade. Recomeçai o julgamento e julgai o próprio juiz, vós que o constituístes juiz para o estabelecimento da fé e para a correção do erro; quando ele devia julgar, condenou-se pela própria boca, enquanto hoje a divina misericórdia absolve manifestamente um homem inocente, tal como outrora Deus livrou Susana dos seus falsos acusadores". Então, o arcebispo levantou-se e, modificando as palavras tanto quanto convinha, confirmou a sentença do legado, dizendo: "Na verdade, Senhor, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito Santo é onipotente, e quem discorda disto está claramente fora do caminho e não deve ser ouvido. E agora, se vos agrada, seria bom que esse irmão expusesse perante todos a sua fé para que a mesma, conforme seja conveniente, seja aprovada ou reprovada e corrigida". Todavia, quando eu me levantei para professar e expor a minha fé, a fim de exprimir o que eu sentia, com palavras próprias, meus adversários disseram que eu não precisava de outra coisa senão recitar o símbolo de Atanásio, o que qualquer criança poderia fazer igualmente. E para que eu não alegasse uma desculpa por ignorância, como se eu não estivesse acostumado com aquelas palavras, fizeram trazer o texto para que eu o lesse. Eu o fiz, em meio a suspiros, soluços e lágrimas, do modo que me foi possível. Em seguida, entregue, como se fosse um réu e um convicto, ao abade de São Medardo, que estava presente, fui arrastado para o seu claustro como para um cárcere, e imediatamente o concilio foi dissolvido. No entanto, o abade e os monges daquele mosteiro, pensando que eu ia permanecer ali com eles por mais tempo, receberam-me com a maior alegria e, tratando-me com todo o cuidado, tentavam consolar-me em vão. Ô Deus, que julgas a equidade, com quanto amargor da alma e com quanta amargura do coração eu então te censurava, como louco, e te acusava, cheio de cólera, repetindo frequentemente a queixa de Santo Antão: "Bom Jesus, onde estavas?" O que eu pude sentir então, a saber, a dor que me atormentou, a vergonha que me confundiu, a perturbação do desespero, eu não posso exprimir agora. Eu comparava com aquelas coisas que outrora eu padecera no corpo tudo quanto eu agora suportava, e julgava-me o mais miserável de todos os homens. Eu julgava a passada tradição pequena em comparação desta afronta, e lamentava muito mais o prejuízo da fama que o do corpo, uma vez que eu incidira na primeira por uma falta, enquanto fui induzido a esta crua violência por uma sincera intenção e pelo amor da nossa fé, que me impeliram a escrever. Quando a notícia deste fato tão cruel e rigoroso espalhou-se pela vizinhança, todos censuraram veementemente os seus autores e cada um dos que estiveram presentes rejeitava a culpa do seu lado, transferindo-a para os outros, a tal ponto que, também, os meus próprios rivais negavam que a ação fora feita por seu conselho, e o legado perante todos atribuía tudo isso à inveja dos francos. Ele foi tocado pelo arrependimento incontinenti e, após alguns dias, quando já dera satisfação à inveja deles por algum tempo contra a sua vontade, tirou-me desse mosteiro estranho e enviou-me para o meu próprio, onde, como lembrei acima, cada monge era hostil à minha pessoa desde outrora, quando a sua vida vergonhosa e os seus hábitos desonestos me tornaram absolutamente suspeito, e eles acharam que seria muito difícil suportar-me, já que eu os censurava tão severamente. Entretanto, passados alguns poucos meses, a Fortuna ofereceu-lhes uma oportunidade para maquinarem a minha perda. De fato, aconteceu, por acaso, que um dia, enquanto eu estava lendo, deparei com certa passagem de Beda no seu Comentário dos Atos dos Apóstolos, no qual ele diz que Dionísio, o Areopagita, fora bispo de Corinto e não de Atenas. Essa afirmação parecia ser-lhes muito contrária, pois eles se vangloriavam de que o seu Dionísio (fundador do mosteiro) era o Areopagita e que a história dele indicava haver sido bispo de Atenas. Quando fiz esse achado, apresentei a alguns dos irmãos que me rodeavam, em tom de brincadeira, aquele testemunho de Beda, que se opunha à nossa tradição. Eles, porém, profundamente indignados, disseram que Beda era um escritor muito mentiroso e que o seu abade Hilduíno era tido como testemunha mais digna de fé, pois havia percorrido a Grécia durante muito tempo para investigar esse assunto e, tendo chegado à verdade, removeu completamente qualquer dúvida quando descreveu os feitos de Dionísio. Então, quando um deles me procurou com insistência e com perguntas importunas para que eu dissesse o que pensava sobre essa contenda entre Beda e Hilduíno, respondi que preferia a autoridade de Beda, cujos escritos são seguidos por todas as igrejas latinas. A perseguição do abade e dos irmãos contra ele. Depois disso, os monges ficaram enfurecidos porque lhes parecia que Abelardo queria tirar-lhes a glória, negando que o Areopagita fosse o seu patrono. Foram ter com o abade e reuniram-se em conselho, após o qual fizeram a Abelardo sérias ameaças, dizendo que iam enviá-lo ao rei para que fosse punido como homem que atentara contra a glória do reino e pusera a mão sobre a sua coroa. Com a ajuda de alguns irmãos movidos de compaixão pela sua sorte, e com o apoio de um pequeno número de discípulos, Abelardo conseguiu evadir-se secretamente durante a noite, indo refugiar-se numa terra do Conde Tebaldo, situada na vizinhança, e onde Abelardo já havia ocupado uma casinhola anteriormente, que lhe servira de cela. O conde sabia das suas desditas e simpatizava com ele. Abelardo refugiou-se primeiro no castelo de Provins, e depois no mosteiro de Troyes, onde foi muito bem acolhido. Com o auxílio de alguns amigos influentes, Abelardo apelou para o rei e obteve permissão para retirar-se num local da sua escolha, ficando independente de qualquer abadia, e esse acordo celebrado com as autoridades monásticas foi regulamentado na presença do rei e dos seus ministros. Abelardo ganhou de amigos um terreno num lugar deserto do território de Troyes, e aí, com o consentimento do bispo da diocese, ergueu um oratório feito de juncos e colmo sob a invocação da Santíssima Trindade. Começaram então a acorrer ao deserto discípulos provenientes das cidades e dos castelos, que vinham residir em cabanas que construíam com as suas mãos, comendo ervas silvestres e pão grosseiro, dormindo na palha e usando montículos de terra por mesas. A inveja, entretanto, foi alcançar Abelardo nesse lugar remoto. A pobreza levou-o a abrir uma escola, pois reconhecia que não tinha forças para trabalhar a terra e envergonhava-se de mendigar. Os discípulos providenciavam tudo: alimento, roupa, cultivo do campo e construções para que Abelardo ficasse desimpedido dos cuidados domésticos, para só dedicar-se ao estudo. O oratório foi reformado e aumentado numa construção de pedra e madeira e foi denominado Paráclito, o Consolador, em memória da consolação que recebera nesse lugar. A perseguição contra Abelardo por parte de certos novos apóstolos Diz Abelardo que corporalmente estava oculto nesse lugar, enquanto a sua fama percorria o mundo inteiro, e isso levou os seus velhos e incansáveis rivais a recorrerem aos novos apóstolos, nos quais o mundo tinha fé. Um deles, São Norberto, fundador da Ordem dos Premonstratenses, fazia reviverem os princípios dos Cônegos Regulares, e o outro, São Bernardo, cisterciense, renovava os princípios da vida monástica. Esses apóstolos, diz Abelardo, espicaçados pelos seus adversários, entraram a atacá-lo implacavelmente, conseguindo até mesmo afastar dele alguns dos seus principais amigos. Devido a essas perseguições, Abelardo chegou até a pensar em ir viver em país de infiéis. Abelardo foi eleito abade e a perseguição dos monges e de um tiranete contra ele Havia na Bretanha, no bispado de Vannes, a abadia de Saint-Gildas-de-Rhuis, que estava sem chefe devido à morte do abade. Os monges, de acordo com o senhor da região, escolheram Abelardo para abade, enquanto o superior de Abelardo e os monges do seu mosteiro, onde era estável por voto, aprovaram essa indicação. Abelardo acabou aceitando essa dignidade, como diz, para evitar os vexames de tantas perseguições, e foi viver numa terra bárbara, de língua desconhecida, população brutal e selvagem, no meio de monges indisciplinados e corrompidos. O senhor feudal dominava o mosteiro e oprimia-o com impostos exagerados. Abelardo era molestado no interior do mosteiro pelos monges, e fora dele pelo senhor e pelos seus esbirros. Ao saber que o abade de São Dionísio reclamara como propriedade sua a abadia de Argenteuil, expulsando de lá Heloísa e as suas companheiras, Abelardo ofereceu-lhes, à esposa e irmã em Jesus Cristo e às monjas, abrigo definitivo no seu Oratório do Paraclito, fazendo-lhes doação do edifício com todas as suas dependências, doação que o Papa Inocêncio II, com o consentimento e a intervenção do bispo da diocese, confirmou como perpétua. Acusação de lascívia contra Abelardo Abelardo, até mesmo por insistência dos protetores das monjas do Paraclito, passou a visitá-las, fazendo para elas pregações especiais. Tanto bastou para que logo as más línguas entrassem em ação e começassem a difamá-lo. E ele se afastou do Paraclito para o bem de Heloísa e suas companheiras. Os seus monges, entretanto, de Saint-Gildas, chegaram até mesmo a tentar matá-lo por várias vezes, tanto era o ódio que lhes inspirava o zelo reformador de Abelardo. De certa feita, colocaram veneno no cálice com que Abelardo ia celebrar a missa. Doutra vez, quando se achava na casa de um seu irmão carnal, conseguiram envenenar-lhe a comida, da qual Abelardo se absteve, mas que outro monge comeu, morrendo num instante. Os monges chegavam a pagar a salteadores para que o emboscassem nas estradas, e uma vez só escapou de uma cilada com o auxílio de um dos poderosos guerreiros da região. Conclusão Caríssimo irmão em Cristo e íntimo companheiro de vida religiosa, esta é a história das minhas calamidades, que venho sofrendo continuamente quase desde o berço. Penso que já é suficiente o que escrevi em vista da tua desolação e da injustiça que sofreste, para que julgues, como declarei no início de minha carta, que a tua provação é nula ou ínfima em comparação das minhas, e para que a suportes mais pacientemente, considerando-a pequena. E assim, encorajados por esses ensinamentos e por esses exemplos, suportemos mais tranquilamente estas provações quanto mais injustas elas são. Não duvidemos de que, se elas não servem para nosso mérito, pelo menos concorrem para a nossa purificação, e visto que todas as coisas ocorrem por disposição divina, que cada um dos fiéis se console com este pensamento de que a suprema bondade de Deus não permite jamais que nada aconteça desordenadamente, e que todas as coisas que se fazem de mal Ele próprio se encarrega de levar a um ótimo fim.