Sêneca – Apocoloquintose do Divino Cláudio Apocoloquintose I — 1. Os acontecimentos que se passaram nos céus durante o dia 13 de outubro, primeiro ano de uma nova era de felicidade, eis o que eu quero transmitir à história. E sem ressentimento nem simpatias. Aqui será apresentada a verdade: se por acaso alguém me perguntar de onde tirei estas notícias tão exatas, em primeiro lugar, se não tiver vontade, não responderei. Quem poderá forçar-me a isso? Eu sei que me tornei livre no mesmo instante em que acabou os seus dias aquele que tinha demonstrado a verdade do provérbio: Um homem nasce ou rei ou idiota. 2. Pelo contrário, se me agradar responder, direi aquilo que me vier aos lábios. Quem exigiu de um historiador deposições juradas? Mas se for preciso apresentar uma testemunha, dirija-se o leitor a quem viu subir Drusila aos céus: ele confirmará ter visto também Cláudio percorrer o mesmo itinerário "passinho por passinho". Queira ou não, ele deve ver tudo o que acontece nos céus: é inspetor da Via Ápia, onde passaram — é notório — também o divo Augusto e Tibério César, quando foram para os deuses. 3. Se o interrogarmos, dirá tudo direitinho; mas a sós: no meio de muita gente não abre a boca, pois, desde o dia em que no Senado jurou ter visto Drusila subir aos céus — e, como agradecimento por tão bela notícia, ninguém quis acreditar aquilo que ele tinha visto —, declarou solenemente que nunca mais faria nenhuma revelação, mesmo que visse matar um homem no meio do Foro. Tudo o que ele me contou, aqui vou transcrever sem mudar uma vírgula: e que tudo isso possa transformar-se para ele em saúde e felicidade. II — 1. Já tinha reduzido Febo a luz com caminho mais breve e cresciam obscuras as horas contínuas do Sono; ao contrário, já Cíntia estendia vitoriosa o seu reino; já o deforme inverno tirara os presentes jucundos do outono opulento; já o vindimador, demorando, de Baco envelhecido os pouquíssimos cachos apanhava 2. Talvez compreender-se-á melhor se eu disser assim: o mês era de outubro; o dia, 13. Não sei a hora exata: é mais fácil pôr de acordo os filósofos do que os relógios. Bom, a hora: entre meio-dia e a primeira badalada. 3. "Oh! homem sem polidez", dirá o leitor, "em geral, os poetas não se contentam em descrever a aurora e o pôr do sol: incomodam até o meio-dia. E tu queres deixar de lado uma hora tão bela?" 4. Já Febo com o carro dividira a metade do curso e mais perto da noite as bridas, cansado, agitava, a claridade extrema levando por curvos caminhos. III — 1. Cláudio dispôs a sua alma para a partida; mas não encontrava a saída. Então, Mercúrio, que sempre gostou do talento dele, chama de um lado uma das Parcas e assim lhe fala: — Mulher impiedosa, por que deixas padecer aquele infeliz? Nunca terá descanso, depois de tão longas torturas? Durante sessenta e quatro anos ele brigou com a própria alma. Por que não queres dar uma alegria a ele e ao seu povo? 2. Deixa uma vez os astrólogos adivinharem: desde quando se tornou imperador, eles o enterraram cada ano, cada mês. Todavia, não é esquisito que eles não se orientem e que ninguém conheça a hora da morte dele: de fato, ninguém nunca pensou que ele tivesse nascido. Cumpre o teu dever: "Mata-o; e no trono lhe suceda outro mais digno". 3. Mas Cloto retrucou: — Eu tinha pensado, por Hércules, em deixar-lhe alguns dias, somente para poder conceder a cidadania aos poucos que ainda não a possuem: ele decidira ver todos com a toga, Gregos, Gauleses, Hispanos, Britanos. Mas, se acharem melhor deixar alguns estrangeiros, e tu queres isto, então seja assim. 4. Abriu uma caixinha e pegou três fusos: um era de Augurino, o segundo de Baba, o terceiro de Cláudio. E disse: — Estes três deverão morrer no espaço de um ano, um pouco depois do outro: desta maneira, Cláudio não irá sem companhia. Não é bonito que uma pessoa, a qual até agora viu tantos milhares de aduladores ao seu redor, diante, atrás, por todos os lados, de repente fique sozinha. Mas, por enquanto, contente-se com esses companheiros. IV - 1. Disse: e enrolando sobre o seu fuso funesto os estames interrompeu o curso real duma tola existência. Láquesis, entretanto — coroada e enfeitada a cabeça, a testa e os cabelos guarnecidos de louro piério —, cândidos fios deriva do velo que neve parece, e depois os envolve com dedos espertos: os fios de nova cor se tingem. Admiram-se disso as irmãs: a tosca lã no instante em precioso metal se transforma e séculos de ouro procedem do fúlgido fio: Não descansam as Parcas: fiando o magnífico velo (fadiga entre as mais belas) de roçadas têm cheias as mãos! Corre alegre o trabalho: do fuso que rápido gira naturalmente descem os dóceis e leves estames: e vencem de Titão a idade, de Nestor os anos. Está presente Febo com o canto; e se alegra da sorte: contente agita o plectro, contente fornece as roçadas. Prende-as com o canto, com o canto alivia o trabalho. De fato, enquanto louvam a citara e o canto fraterno, fiam mais depressa as mãos: o notável labor ultrapassa os destinos mortais. "Deste fio nada seja tirado”, Febo sussurra às Parcas, o curso mortal ultrapasse quem a mim se assemelha no aspecto, na graça do rosto, também na voz, no canto. Ele um século de ouro aos opressos vai dar com alegria, vai quebrar o silêncio das leis. Assim como Lucífero dissipa no céu as estrelas ou Héspero no céu a volta dos astros anuncia; assim como, depois das trevas, a Aurora difunde a rubra luz e o Sol cintilante o universo saúda, pra fora das barreiras guiando com ímpeto o carro; assim o novo César aparece, aclamado por Roma agora será Nero: desprende-se a luz do seu rosto,do cândido pescoço guarnecido de longos cabelos." 2. Assim falou Apoio; e Láquesis, que tinha simpatia para com a personagem tão bela, contentou-o plenamente, dando por sua parte a Nero como presente ainda muitos anos. Quanto a Cláudio, todos gritam: "Fora da casa seja acompanhado com muitos vivas!”Entretanto, ele soltou a alma: daquele momento em diante, deixou de parecer vivo. Exalou o último suspiro, enquanto assistia a um espetáculo de comediantes: eis a razão pela qual eu gosto de estar longe dessa gente. 3. As últimas palavras que ele pronunciou entre os homens (depois de ter soltado um som, mais alto do que de costume, pela parte do corpo com que se exprimia mais eloquentemente) foi esta: "Ai de mim, acho, talvez, que me sujei". Se era verdade, não sei: o que é certo é que ele sempre sujou em qualquer lugar. V — 1. Quanto aconteceu, depois, sobre a terra, é inútil narrá-lo. Todos vós sabeis muito bem; e não há perigo de que possa sair da memória aquilo que a alegria popular gravou tão fortemente: ninguém esquece a própria felicidade. Ouvi, antes, o que aconteceu nos céus: poderá confirmar tudo isso o meu informante. 2. Anunciam a Júpiter a chegada de um fulano, estatura normal, cabelos quase brancos: "Não deve ter boas intenções, pois abana continuamente a cabeça; e coxeia do pé direito. Perguntei-lhe de onde vinha: respondeu não sei que, com sons indistintos e voz confusa. Não compreendo a sua língua: não é nem grego nem latino, nem de qualquer outro povo conhecido". 3. Então Júpiter manda chamar Hércules, que viajara pelo mundo inteiro e devia conhecer todos os povos; e lhe pede que investigue a raça daquele sujeito. Hércules, à primeira vista, sentiu grande medo, como se ainda não tivesse acabado de lutar contra os monstros. De fato, logo que viu aquele focinho nunca visto, aquele modo de andar tão esquisito, e ouviu aquela voz rouca e inarticulada, que não era de animal terrestre, mas parecia-se com a dos monstros marinhos, pensou: "Não acabei: eis meu décimo terceiro trabalho!" 4. Depois, olhando-o melhor, encontrou nele alguma aparência de homem. Aproximou-se e lhe perguntou em grego, coisa fácil para um natural da Grécia: — Qual o teu nome? O teu povo? A cidade em que moras? Os pais? Alegra-se Cláudio: lá também há filólogos; e já tem a esperança de poder colocar as suas "Histórias". Então, responde com outro verso de Homero, para indicar as suas qualidades de César: — De Ílio os ventos levaram-me à terra onde os Ciconos moram. Na verdade, o verso seguinte teria sido mais exato e igualmente homérico: "Onde toda a cidade saqueei, destruindo os seus homens". VI — 1. E certamente teria impingido gato por lebre a Hércules, que não é malicioso, se não estivesse ali a deusa Febre, a única divindade que tinha acompanhado Cláudio, deixando o seu templo: todos os outros deuses ficaram em Roma. — Este indivíduo — assim falou a deusa — é mesmo um pantomimeiro. Posso esclarecer tudo eu, que vivi tantos anos com ele: nasceu em Leão. Apresento-te um patrício de Planco. Repito: nasceu a dezesseis léguas de Viena, é um gaulês autêntico. E, como bom gaulês, apoderou-se de Roma. Garanto: nasceu em Leão, onde durante tantos anos Licínio teve o governo. Agora, tu, que percorreste mais caminhos do que qualquer tropeiro profissional, deves conhecer os Leoneses e saber que o Xanto está longe do Ródano mil e mil léguas. 2. Neste momento, Cláudio pega fogo e dasabafa com um barulho danado. Ninguém compreendia nada: certamente, mandava que a Febre fosse presa; e mandava com aquele seu gesto da mão trêmula, todavia firme só para enviar a gente ao cadafalso. Ele tinha dado a ordem de cortar-lhe a cabeça; mas ali todos pareciam ser libertos, pois ninguém lhe dava ouvido. VII — 1. — Ouve-me — disse então Hércules. — Chega de brincadeiras. Aqui, neste país, os ratos comem o ferro. Vamos, dize logo a verdade, se não queres que eu acabe com essas tuas birras. — E para que Cláudio tivesse mais medo, Hércules se transforma em ator trágico e declama: 2. Dize depressa a terra onde nasceste, se não queres provar esta boa clava que tão ilustres príncipes matou! Que resmungo o teu lábio está cuspindo? Onde a cabeça trêmula viveu? Dize logo. No dia em que procurava as terras hespérias do triforme rei, para levar o nobre gado a Argo, um monte eu vi, que a lua nova ilumina e que sobre dois rios horrendo pende. O Ródano veloz e imenso corre; o volúvel Arar procura o curso e preguiçoso as margens vai lambendo. Deu-te o sopro da vida aquela terra? 3. Declamou com muita alma e decisão; todavia não se sentia completamente sossegado, esperando sempre os "raios do idiota". Mas Cláudio, vendo um adversário tão maciço, deixa de lado a conversa fiada, compreendendo que, se em Roma ninguém podia vencê-lo, ao contrário, ali não gozava do mesmo privilégio: um galo é dono só na sua estrumeira. 4. Então, falou assim (ou assim pareceu dizer no meio do informe ruído): — Ó Hércules, fortíssimo entre os deuses, sempre tive confiança em ti e no teu auxílio para com os outros; aliás, se me tivessem pedido um fiador, teria dado o teu nome: tu me conheces melhor do que os outros. De fato, vê se recordas: eu, diante do teu templo em Tivoli, administrava a justiça longos dias a fio nos meses de julho e agosto. 5. Tu sabes quantos tormentos aguentei, ouvindo dia e noite os advogados: se por acaso a sorte te tivesse jogado entre aqueles causídicos, embora acreditando ser muito corajoso, tu terias preferido limpar outra vez os estábulos de Augias: foi muito maior o estrume que eu tive de varrer. Mas querendo agora... VIII — 1- Ninguém acha esquisita a tua impetuosa entrada na Cúria: não há obstáculos que tu não possas superar. Todavia, seria bom sabermos qual deus queres que seja este sujeito. Um "deus à maneira epicuréia" não é possível: seria um deus que "não se incomoda por nada e não incomoda ninguém". Um deus estoico? Mas como poderia ser "redondo" — conforme as palavras de Varrão — "sem cabeça nem prepúcio"? Embora. . . espera um momento, nele há alguma coisa do Deus estoico, pois não tem coração nem cabeça. 2. Vamos! Se ele tivesse pedido o favor da apoteose a Saturno — ele que, verdadeiro príncipe das Saturnais, festejava durante o ano todo o mês deste deus — não o teria obtido: ainda menos poderia obtê-lo de Júpiter, que ele — quando lhe foi possível — condenou como incestuoso. De fato, condenou à morte seu genro Silano: e, pergunto eu, por quê? Porque, tendo uma irmã, a mais linda moça do mundo, que todos chamavam Vênus, ele preferiu chamá-la Juno! — Oh! — retruca —, gostaria de sabê-lo: por que mesmo a irmã? — Ignorante, vai à escola: em Atenas é lícito pela metade, em Alexandria por inteiro. 3. Agora, sendo que em Roma — são suas palavras — os ratos lambem as mós, este sujeito quer subir à cátedra? Não sabe o que acontece no seu tálamo; certamente, "perscruta os espaços celestes". E quer tornar-se um deus. Não lhe basta ter um templo na Bretanha; não lhe basta que os habitantes o venerem e lhe ofereçam preces como a um deus, "a fim de propiciar-se o idiota!" IX — 1. No fim, Júpiter lembra-se de que nem aos deuses é consentido, enquanto estiverem pessoas estranhas na Cúria, apresentar e discutir propostas. — Eu — assim fala —, ó senadores, vos dei licença para pedir explicações; mas aqui, agora, é uma verdadeira balbúrdia. Quero seja observado o regimento interno da Cúria. Qual será a opinião que de nós poderá ter este sujeito, quem quer que seja? 2. Cláudio é mandado para fora da sala; e o primeiro a usar da palavra o pai Jano. Este tinha sido designado para as calendas de julho como cônsul da tarde: era um indivíduo que, até onde chega a sua estrada, via "diante de si e, ao mesmo tempo, atrás". Pronunciou um longo e eloquente discurso, como quem vive sempre no Foro; e o taquígrafo não conseguiu pegar tudo. Por isso, não apresento a oração, para não alterar com palavras diferentes as suas frases. 3. Falou longamente acerca da majestade dos deuses: não se devia dar esta honra a um sujeito qualquer. "Nos tempos idos", concluiu, "era grande honra ser feito deus: agora foi tudo reduzido por vós a uma palhaçada. Por isso, para não dar a sensação de julgar mais a pessoa do que o princípio, proponho: de hoje para diante não poderá ser divinizado ninguém entre os que comem os frutos da terra, ou seja, entre os que são alimentados pela terra pródiga de trigo. Quem, contra este senatus consulto, for feito ou dito ou pintado deus, seja entregue aos espíritos e, no próximo espetáculo, bem chicoteado entre os gladiadores noviços." 4. Logo em seguida está com a palavra Diéspiter, filho de Vica Pota, também ele cônsul designado. Modesto cambista, vivia de outra profissão: vendia cidadanias ao varejo. Hércules aproximou-se dele com jeitinho e lhe puxou a orelha. Então Diéspiter formulou assim a sua proposta: 5. "Considerando que o divo Cláudio é consanguíneo do divo Augusto, e também da diva Augusta sua avó, que ele quis divinizada; considerando que ele supera de muito em sabedoria a todos os mortais e que pelo público interesse deve existir alguém em condição de comer nabos fervidos com Rômulo; "proponho que, desde hoje, o divo Cláudio seja uma divindade com todos os direitos, igual a qualquer outro nomeado anteriormente; e que este ato seja transcrito nas Metamorfoses de Ovídio". 6. As opiniões estavam divididas; e Cláudio parecia sair vencedor: de fato, Hércules, batendo o ferro enquanto estava quente, corria continuamente, sussurrando a cada um: "Não me negues este favor, é para mim uma questão pessoal. Amanhã, se precisares, retribuir-te-ei: uma mão lava a outra". X — 1. Então, foi a vez do divo Augusto, que se levantou e falou com inigualável eloquência. "Ó senadores", disse, "vós todos sois testemunhas: desde o momento de minha divinização, nunca abri a boca. Sempre e só cuido de mim mesmo. Mas agora não posso ficar indiferente e sufocar uma dor, que minha reserva tornaria ainda mais dura. 2. Para isso procurei na terra e no mar a paz? Para isso acabei com as guerras civis? Para isso consolidei a Urbe com as minhas leis, dei-lhe decoro de obras públicas, a fim de que... Ó senadores, nem sei o que devo dizer: qualquer palavra é nada para manifestar a minha indignação. Não me resta senão recorrer à célebre frase de Messala Corvino, homem de alta eloquência: tenho vergonha do poder! 3. Este sujeito, ó senadores, que vos parece incapaz de maltratar um mosquito, matara os homens com a mesma facilidade com a qual um cão levanta a pata. Mas para que lembrarei eu tantas e tão ilustres vítimas? Não tem tempo para chorar as desventuras da pátria quem olha para os lutos domésticos. Por isso, deixarei de lado as desventuras da pátria e falarei só dos lutos domésticos, pois, se também minha irmã não sabe o grego, eu conheço-o: é mais próximo o joelho do que a canela da perna. 4. Este sujeito, então, depois de ter ficado por tantos anos à sombra do meu nome, agradeceu-me desta maneira: mandando matar duas Júlias, minhas sobrinhas, uma por ferro, outra por fome; e depois um sobrinho, Lúcio Silano. Júpiter, veja se Silano não estava do lado da razão: pelo menos, conforme a justiça, estava do teu lado. Dize-me, ó divo Cláudio, por que todos os que mandaste matar, os condenaste sem processo nem defesa? Onde existe este costume?" XI — 1. "Aqui, no céu, não", continuou o divo Augusto. "Vê, por exemplo, Júpiter, que reina há tantos séculos: somente a Vulcão quebrou uma perna quando o pegou pelo pé, jogando-o dos reinos celestes. "Brigou com a mulher e a levantou no ar; mas, porventura, a matou? Pelo contrário, tu mataste Messalina: dela, eu era o tio dos pais; e tu mesmo o eras. Não sei nada de nada, gritas. Raio que te parta! É ainda pior essa tua inconsciência do que tê-la matado. 2. E sempre perseguiste o teu predecessor Calígula, também depois de morto. Calígula matou o sogro; Cláudio também o genro. Calígula não quis que o filho de Crasso fosse chamado Magno; Cláudio lhe devolveu o nome, mas lhe tirou a vida. Nesta família, matou Crasso, Magno e Escribônia: três patetas, mas nobres; e Crasso era tão bobo que até podia ser imperador. 3. Vamos: vós quereis fazer deste sujeito um deus? Ele tem tal físico, que parece ter nascido para enfurecer os deuses. . . Em suma, se ele proferir três palavras, uma depois da outra, tornar-me-ei seu escravo. 4. Um deus. . . e quem poderá adorá-lo? Quem terá confiança nele? Se criardes deuses como este, ninguém acreditará que vós mesmos sois deuses. Ó senadores, quero concluir: se no vosso meio sempre tive uma conduta honrada; se nunca dei a ninguém respostas rigorosas demais, vingai as ofensas que me foram dirigidas. Conforme as minhas argumentações, eis a proposta que eu apresento. E, tendo pegado as tábuas de cera, disse: 5. "Considerando que o divo Cláudio matou o sogro Ápio Silano, dois genros — Magno Pompeu e Lúcio Silano; o sogro da filha — Crasso Frugi, com quem se parecia como se parecem dois ovos; Escribonia, sogra de sua filha; a própria mulher, Messalina; e todos os outros que não foi possível contar; "proponho sejam tomadas severas providências contra este sujeito, não lhe seja concedida a faculdade de ser julgado, aliás seja levado daqui quanto mais cedo: saia dos céus no máximo dentro de um mês; para deixar o Olimpo: três dias". 6. A proposta ganhou os votos da assistência. Imediatamente, Mercúrio pegou-o pelo pescoço e arrastou-o dos céus até aos ínferos, lá "de onde — dizem — ninguém nunca voltou". XII — I. Enquanto desciam pela Via Sacra, Mercúrio pergunta o porquê da aglomeração de gente: seria o enterro de Cláudio? Era o mais esplêndido enterro de todos os séculos; e organizado nos mínimos pormenores: compreendia-se bem que era o enterro de um deus. Tão grande era o número dos flautistas, dos corneteiros, de todos os tipos de tocadores, tão grande era o barulho que até Cláudio o podia ouvir. 2. Todo o mundo estava alegre, em festa: o povo romano passeava, sentindo-se livre. Agatão e alguns rábulas se queixavam de todo o coração. E os juízes, pelo contrário, deixavam os seus abrigos, pálidos, emagrecidos, quase que no momento de entregar os pontos: gente que recomeçava naquele instante a viver. Um destes juízes, vendo os rábulas chorarem a própria sorte, aproximou-se e disse: "Quantas vezes eu falei: não é sempre carnaval!" 3. Como viu o seu enterro, Cláudio compreendeu que estava morto, pois um grande coro cantava solene hino fúnebre em anapestos: Chorar devemos, bater o peito: ressoe no Foro triste clamor! Deu a ossada um homem grande: nunca no mundo viveu outro maior varão! Vencia no curso em disparada os mais velozes; vencia os rebeldes dos fortes Partos, vexava os Persas com flechas leves, com firme punho sabia do arco setas soltar, para ferir hoste que foge ou as pintadas costas dos Medos. Impôs o jugo férreo de Roma ora aos Britanos pra além das praias do noto mar, ora aos Brigantes de bruno escudo: o mesmo pélago tremeu vencido sob o ameaço da nossa lei. Chorai o grande que celeremente mais do que os outros sabia processos estudar, uma só parte ouvindo, também nenhuma. Existe agora um magistrado que julgue as brigas no ano inteiro? Deixa-te o assento no além-túmulo quem foi já dono de cem cidades da grande Creia. Com mãos aflitas batei os peitos, ó causídicos, raça vendável; chorai, poetas novos; e mais ainda vós que conseguistes, jogando os dados, ganhar fortunas! XIII — 1. Deleitava-se Cláudio, ouvindo os próprios louvores; e queria assistir mais longamente ao espetáculo. Mas Mercúrio, divino mensageiro, pega-o e arrasta-o (tendo-lhe coberto a cabeça para que ninguém pudesse reconhecê-lo) através do Campo de Marte: entre o Tibre e a Via Coberta desce aos ínferos. 2. Por um atalho já o liberto Narciso precedera o patrão para fazer as honras da casa; e, à chegada, apresenta-se bem limpo, como quem sai do banho, e grita: — Os deuses misturam-se aos homens? — Vamos — interrompe Mercúrio —, anuncia a nossa chegada. Imediatamente, Narciso voa. 3. A estrada desce bastante: é fácil descer. E Cláudio, embora gotoso, num instante chega às portas de Dite, onde estava estirado Cérbero, ou, como o chama Horácio, "a fera que tem cem cabeças". Cláudio fica um pouco perturbado (sempre se tinha deleitado com um cachorrinho branco) quando vê na sua frente aquele canzarrão preto e peludo que não gostaríamos de encontrar na escuridão. Mas põe-se a gritar: — Está chegando Cláudio! 4. Acorre uma multidão festiva: — Alegre-se o mundo inteiro: novamente o encontramos! — Havia o cônsul designado Caio Sílio, o ex-pretor Junco, Sexto Traulo, Marco Hélvio, Trogo, Vétio Valente, Fábio, cavaleiros romanos que Narciso mandara ao suplício. No meio da multidão ululante, encontrava-se o pantomimo Mnester, que Cláudio tornara, como título de distinção, um divertimento de Messalina. 5. Num relâmpago espalha-se a notícia da chegada de Cláudio: acodem, correndo, os libertos Políbio, Míron, Arpócrates, Anfeu, Feronacto, que Cláudio tinha enviado na frente para não se encontrar em nenhum lugar sem os devidos preparativos; chegam, em seguida, os dois prefeitos Justo Catônio e Rúfrio Polião; depois os amigos Saturnino Lúsio, Pédon Pompeu, Lupo, Céler Asínio, homens de grau consular; enfim, a filha do irmão, a filha da irmã, genros, sogros, sogras, em suma, todos os parentes mais próximos. Formam uma fila, que vai ao encontro de Cláudio. 6. Vendo-os, exclama: — Tudo lotado, aqui de amigos! Mas como chegastes? — Então Pédon Pompeu lhe grita: — Que dizes, monstro cruel? De que maneira? Quem podia enviar-nos aqui, senão tu, o assassino de todos os amigos? Mas vamos diante dos juízes: mostrar-te-ei os nossos tribunais. XIV — 1. Então, leva-o ao tribunal de Éaco, que instruía processos conforme a lei Cornélia acerca do homicídio. Pédon pede seja inscrita a causa contra Cláudio e apresenta o ato de acusação: "Mortos trinta e cinco senadores, duzentos e vinte e um cavaleiros romanos; e depois todos os outros... quantos são os grãozinhos de pó e areia". 2. Cláudio não encontra um advogado defensor; enfim, apresenta-se Públio Petrônio, seu velho companheiro, homem experto na linguagem claudiana, e pede um pouco de tempo para preparar a defesa. Não é atendido. Pédon Pompeu sustenta a acusação, no meio de um barulho danado; o defensor gostaria de responder. . . Mas Éaco, homem justo, pronuncia o veto e condena o réu, depois de ter ouvido somente a acusação, declarando: — Receba o mal que fez: assim seja feita a justiça. 3. Seguiu-se um grande silêncio. Todos ficaram estupefatos pela novidade: nunca tinham visto um sistema igual. Todavia, a Cláudio pareceu mais uma injustiça do que uma novidade. 4. Discutiu-se muito acerca do tipo de castigo. Uns sustentavam: Sísifo já fora carregador por bastante tempo; Tântalo, não recebendo socorro, morrera de sede; era preciso brecar a roda de Ixião, coitadinho. Mas a proposta foi rejeitada: aposentar aqueles veteranos podia dar a Cláudio a ilusão de ter, num dia futuro, igual tratamento. 5. Decidiram que era necessário encontrar um novo castigo: isto é, inventar para ele uma fadiga vã e, ao mesmo tempo, a ilusão de um novo tormento sem fim e sem resultado. Eis: Éaco condena-o a brincar com os dados, mas usando um copo sem fundo. E Cláudio começa, imediatamente: corre atrás dos seus dados que sempre lhe fogem; e não pode concluir nada: XV — 1. E quantas vezes quis jogá-los do copo sonoro, ambos os dados pelo seu fundo furado escapavam; e quando, novamente reunidos, ousava jogá-los, sempre pronto a brincar, sempre pronto a pegar os seus dados; ficou desiludido; os dados lhe fogem das mãos, perenes traidores, escapando às ocultas, distantes. Assim, quando está para chegar sobre o cume do monte, escapa-se das costas de Sísifo o inútil penedo. 2. De improviso, chega Calígula, que o pede como criado: apresenta testemunhas, que podem afirmar ter visto Cláudio receber chicotadas e bofetadas por parte de Calígula. É adjudicado a Calígula, que o dá de presente a Éaco; e Éaco o entrega ao seu liberto Menandro, para que faça dele um esbirro na instrução dos processos.