Marco Aurélio - Meditações LIVRO I 1. De Vero, meu avô, a honradez e serenidade. 2. Da reputação e memória de meu genitor, a discrição e virilidade. 3. De minha mãe, a religiosidade, a generosidade e a abstenção não só de praticar o mal mas até de se demorar em semelhante pensamento; ainda, a singeleza do passadio e a distância do teor de vida dos ricos. 4. De meu bisavô, o ter em casa mestres excelentes, em vez de frequentar escolas públicas, e compreender que a instrução requer se despenda largamente. 5. De meu aio, o não me haver tornado partidário dos Verdes ou dos Azuis, nem dos Palmulários ou dos Escutários; o aturar fadigas e precisar de pouco; o executar eu próprio minhas tarefas, o não ser intrometido e a repulsa a intrigas. 6. De Diogneto, o descaso das futilidades; o não crer no que dizem os milagreiros e charlatães sobre encantamentos, expulsão de demônios e similares imposturas; o não criar codornizes nem me entregar a paixões dessa espécie; o suportar franquezas; o familiarizar-me com a Filosofia e ouvir as lições, primeiramente, de Báquio, depois, de Tândasis e Marciano; o ter escrito diálogos na infância; o ter desejado o catre, o pelego e todas as outras simplicidades da educação helênica. 7. De Rústico, a compreensão de que devia corrigir e cultivar o meu caráter; o não me entregar à paixão da sofistica, nem compor tratados teóricos, redigir arengas de exortação ou exibir-me, para suscitar admirações, como pessoa operosa e benfazeja; a abstenção da retórica, da poesia, do preciosismo; o não andar de toga em casa, nem alimentar vaidades que tais; o usar de simplicidade nas minhas cartas, como ele na que mandou de Sinoessa a minha mãe; a presteza em responder ao apelo de reconciliação dos que se irritaram comigo e me ofenderam, tão logo de si mesmos queiram voltar às boas; o ler acuradamente, não me satisfazendo com uma vista d'olhos superficial; o não assentir precipitadamente às indiscrições; o conhecer os comentários de Epicteto, que me emprestou de sua biblioteca. 8. De Apolônio, a independência, a decisão sem longos debates nem recurso à sorte dos lados; o não me orientar, sequer por instantes, senão pela razão; o não me alterar nos sofrimentos agudos, na perda dum filho, nas doenças prolongadas; o ter visto com meus olhos, num exemplo vivo, que o rigor extremo se compadece com a benignidade; o não ser irritadiço nas explicações; o ter visto um homem que manifestamente reputava como o menor de seus dotes o tirocínio e facilidade em transmitir os princípios doutrinários; o ter aprendido como receber as assim consideradas gentilezas dos amigos, sem render-me a elas nem desdenhá-las indelicadamente. 9. De Sexto, a benevolência; o exemplo de casa regida pela tradição; a concepção de como viver segundo a natureza; a gravidade não afetada; a solicitude atenta para com os amigos; a tolerância para com os ignorantes e para com os que opinam sem maduro exame; a boa harmonia com todos, tanto que seu convívio agradava mais que qualquer blandícia, apesar de infundir, ao mesmo tempo, o máximo respeito para com sua pessoa; o atinar arguta e metodicamente com as normas necessárias à vida e ordená-las; o jamais mostrar nem aparência de cólera ou qualquer outra emoção, mas ser ao mesmo tempo muito sereno e muito afetuoso; o elogiar sem espalhafato; a erudição vasta sem alarde. 10. De Alexandre, o gramático, o não criticar, o não vituperar quem profere algum barbarismo, erro gramatical ou cacofonia, mas aduzir aquela única expressão que devia ser dita, jeitosamente, em forma quer de resposta, quer de confirmação ou debate do assunto mesmo, e não de seu enunciado, quer ainda de alguma outra semelhante sugestão casual adequada. 11. De Frontão, o notar quanta inveja, falsidade e hipocrisia há nos tiranos e que esses chamados em Roma patrícios quase sempre são de certo modo bem falhos de afeição. 12. De Alexandre, o platônico, o não dizer ou escrever, amiúde e sem necessidade, que estou ocupado, nem me subtrair assim constantemente aos deveres sociais para com os de minha convivência, a pretexto de fainas prementes. 13. De Catulo, o não desdenhar as queixas dum amigo, embora porventura infundadas, e tratar, ao contrário, de restaurar o bom entendimento habitual; o louvar os mestres com ardor, como se recorda de Domício e Atenódoto; e o amor verdadeiro para com os filhos. 14. De meu irmão Severo, o amor à família, à verdade e à justiça; o ter conhecido por seu intermédio a Tráseas, Helvídio, Catão, Dião, Bruto; a concepção dum poder régio que acima de tudo respeite a liberdade dos súditos; dele, ainda, o culto da Filosofia, constante e sem desfalecimento; a beneficência e a liberalidade copiosa; o bem esperar da afeição dos amigos e confiar nela; a franqueza para com aqueles a quem acaso censurava e o não precisarem os seus amigos conjeturar o que ele desejava ou não desejava, por ser patente. 15. De Máximo, o domínio de si mesmo e o não titubear em matéria nenhuma; a fortaleza nas vicissitudes, notadamente nas enfermidades; a feliz fusão da doçura e da imponência em seu caráter; o cumprimento de suas obrigações sem queixas; o crerem todos que ele pensava como dizia e não havia maldade em seus atos; a ausência de espantos e de medos; o jamais açodar-se ou demorar, embaraçar-se, descoroçoar, ou gargalhar e em seguida entregar-se a cóleras ou suspeitas; a beneficência, a indulgência e a lealdade; o dar antes a impressão de não entortado que de endireitado; que ninguém jamais se imaginaria menosprezado por ele, nem ousaria acreditar-se superior a ele. 16. De meu pai, a placidez e a firmeza inabalável nas decisões, fundadas em exames acurados; a indiferença para com a vaidade de supostas honrarias; o amor ao trabalho e a perseverança; o escutar as pessoas capazes de alguma contribuição para o bem comum; a inflexibilidade no aquinhoar cada um segundo seu mérito; a experiência de quando apertar e quando afrouxar; o ter posto fim à pederastia; a afabilidade; o consentir aos amigos nem sempre jantar em sua companhia nem acompanhá-lo obrigatoriamente nas viagens; o não o acharem mudado os que se houvessem afastado por algum dever; o exame acurado nas deliberações em comum e a persistência, sem abandonar as pesquisas e contentar-se com as ideias óbvias; a conservação das amizades, sem enfado nem exagerado apego; a autossuficiência em tudo e a serenidade; a longa previsão e o arranjo prévio das minúcias, sem teatralidade; o ter coibido as aclamações e toda bajulação de sua pessoa; a vigilância permanente dos interesses do Império; a administração das rendas do erário e a tolerância da crítica em alguns itens administrativos; o não ter superstições em relação aos deuses e, quanto aos homens, não ser bajulador das massas, blandicioso, populista, mas em tudo sóbrio, firme e nunca de mau gosto nem inovador; o uso dos bens que concorrem para a comodidade da vida e a sorte lhos proporcionara copiosamente — sem vaidade e ao mesmo tempo sem pretextos, de modo que, quando os havia, os fruía sem requintes e, quando carecia, passava sem eles; o não poderem chamá-lo trapaceiro, nem chocarreiro, nem pedante, e sim homem amadurecido, completo, inacessível à bajulação, capaz de gerir os seus interesses e os alheios; além disso, as atenções para com os filósofos autênticos e, em relação aos outros, sem todavia ofendê-los, o não se deixar conduzir por eles; ainda, a afabilidade, a amabilidade não fastidiosa; os cuidados comedidos com o seu corpo, que eram os de alguém não apegado à vida, sem tafularia nem desmazelo tampouco; contudo, dado o seu zelo de si mesmo, mínima era sua precisão de médicos-, poções ou emplastros; principalmente, a deferência votada, sem ciúmes, àqueles que tivessem adquirido algum talento, como a oratória, a ciência das leis ou costumes, ou outras disciplinas, e o interesse por que cada um deles gozasse de reputação na medida de seus méritos; seguindo em tudo o costume dos antepassados, o não demonstrar que o seu propósito era esse de preservar a tradição; também o não ser instável e irrequieto, mas demorar nos mesmos lugares e ocupações; o entregar-se às tarefas habituais logo após os acessos de dor de cabeça, refeito e em pleno vigor; o não ter muitos segredos, mas o menos possível e o mais raramente, e isso apenas em questões administrativas; a prudência e comedimento, tanto na celebração de festividades como na construção de obras, na liberalidade oficial e atos desse gênero, como homem que visava àquilo que era mister fazer e não à glória advinda das realizações; o não tomar banho em hora imprópria, não edificar apenas por gosto, não se preocupar com requintes à mesa, nem com o pano e cores da roupa, ou com os dotes físicos dos servos; a ordem dada em Lório que recolheu a maior parte das alfaias da residência da beira-mar e das de Lanúvio; o modo como despachou o pedido do cobrador de impostos de Túsculo e seu procedimento em casos semelhantes; nenhum ato cruel, nem indecoroso, nem violento, nem azo a dizerem alguma vez chegou a suar, mas o cálculo minucioso de tudo, como se o tempo sobrasse, sem confusão, com ordem, solidez e coerência. A ele se ajustaria o que de Sócrates se lembra: podia tanto abster-se como gozar daqueles bens que a maioria, se lhe faltam, debilita-se, se os tem, a eles se rende. A força e firmeza, bem como a continência num caso e no outro, são próprias de homem dotado de alma equilibrada e invencível, como ele o foi na moléstia que o levou. 17. Dos deuses, o ter bons avós, bons pais, uma boa irmã, bons mestres, bons familiares, parentes, amigos quase todos bons; o não ter cometido faltas para com nenhum deles, apesar de ter um temperamento que poderia eventualmente induzir-me a alguma; foi graça dos deuses não ter ocorrido conjuntura que me viesse a pôr à prova; o não ter sido educado em casa da amásia de meu avô por muito tempo; o ter preservado minha juventude e não ter usado a virilidade antes do tempo, tendo-o, ademais, ultrapassado; o ter estado sob as ordens do soberano, meu pai, que havia de extirpar em mim toda presunção e fazer-me compreender que é possível viver na corte sem necessitar de guarda pessoal, nem de roupagens aparatosas, nem lampadários, nem estátuas e objetos desse gênero igualmente faustosos, mas limitando-se quase ao teor de um simples particular, sem por isso rebaixar-se nem desleixar o cumprimento dos deveres de imperador em relação aos interesses do Estado; o deparar um irmão capaz, por seu caráter, de incentivar-me no cuidado de mim próprio, encantando-me, ao mesmo tempo, com sua deferência e estima; não ter tido filhos estúpidos nem deformes; o não me haver avançado excessivamente na oratória, na poética e nas demais disciplinas em que me pudera, talvez, deter, caso sentisse que progredia sem esforço; o ter-me antecipado em conferir a meus aios dignidades a que pareciam aspirar, sem me fiar da esperança de fazê-lo mais tarde, pois ainda eram moços; o ter conhecido a Apolônio, Rústico e Máximo; o ter feito, com clareza e amiúde, a ideia do que é a vida segundo a natureza, e assim, no que depende dos deuses, de suas comunicações, assistência e inspiração, nada daí por diante impede que eu viva segundo a natureza e, das minhas deficiências nesse ideal, o culpado sou eu por não atentar nos avisos, para não dizer nas lições dos deuses; o ter meu físico resistido tão longamente à vida que levo; o não ter tido contato com Benedita nem com Teódoto e o ter-me curado também das paixões amorosas concebidas ao depois; nas minhas frequentes irritações contra Rústico, nada mais ter feito que me houvesse de pesar; o haver morado comigo, ao menos em seus últimos anos de vida, minha mãe, que havia de morrer ainda jovem; nas ocasiões em que desejei acudir alguém em aperturas, ou que me pedia por alguma outra razão, o nunca me responderem que não havia recursos donde tirar; o não ocorrer a mim próprio igual precisão de pedir emprestado a outrem; o ser minha mulher o que é, tão obediente, tão afetuosa, tão simples; o dispor de aios proficientes para meus filhos; a inspiração, em sonhos, de remédios, sobretudo para não escarrar sangue e não ter vertigens, e como que um oráculo, em Caieta, a esse respeito; quando aspirei à Filosofia, o não ter deparado um sofista, nem me sentar a analisar autores ou silogismos, ou aplicar-me ao estudo dos fenômenos celestes. Tudo isso, com efeito, devo aos deuses protetores e à Fortuna. No país dos Quados, à margem do Grã. LIVRO II 1. Previne a ti mesmo ao amanhecer: "Vou encontrar um intrometido, um mal-agradecido, um insolente, um astucioso, um invejoso, um avaro". Eles devem todos esses vícios à ignorância do bem e do mal. Eu, porém, que observei ser o belo a natureza do bem e a vergonha a do mal, bem como consistir a natureza do próprio pecador em seu parentesco comigo, não em razão do mesmo sangue ou da mesma semente, mas por ter parte na inteligência e numa parcela da divindade, nenhum dano posso receber deles, pois nenhum me cobrirá de vergonha. Tampouco me posso exacerbar com um parente, nem odiá-lo porque nascemos para a ação conjunta, como os pés, como as mãos, como as pálpebras, como as filas de dentes superiores e inferiores. Por isso, é contra a natureza agir em sentido contrário; agastar-se é agir em sentido contrário. 2. O que sou é carne, alento e o meu guia. Larga os livros e não te deixes mais atrair; não te é lícito; ao invés, como quem está para morrer, despreza a carne — lama de sangue, ossos, renda de nervos, de veias, trança de artérias. Observa, também, o que é o alento: vento, e nem sempre o mesmo, mas a todo momento expelido e de novo aspirado. Em terceiro lugar, enfim, o guia. Pensa nisto: estás velho; não o deixes continuar escravo, titereado pelos impulsos egoístas, enfadado com o destino atual ou apreensivo quanto ao futuro. 3. As obras dos deuses são plenas de providência; as da Fortuna dependem da natureza, ou da trama a e entretecimento do que a Providência dispôs. Tudo dela se origina. Acresce, ainda, o inevitável e o conveniente ao universo, de que és parcela. É um bem para toda parcela da natureza o que a natureza do universo acarreta e o que importa à preservação desta. Preservam o mundo as transformações, tanto dos elementos como dos compostos. Que te bastem essas ideias, adotadas como dogma. Lança de ti a sede de leituras, para não morreres rezingando e sim com real contentamento, agradecendo de coração aos deuses. 4. Lembra-te quanto tempo vens protelando e quantas prorrogações de prazo concedidas pelos deuses deixaste de aproveitar. Precisas compreender duma vez para sempre de que universo és parte, de que regedor do mundo emanaste e, bem assim, que foi circunscrito um limite à tua duração e, se a não usares para serenar-te, ela passará, passarás tu e não haverá outra ocasião. 5. Pensa firmemente, a todo momento, como romano e como varão, em executar o mister que tens nas mãos com gravidade exata e desafetada, com afeto, independência e justiça, e proporcionar a ti mesmo uma folga de todas as demais cogitações. Consegui-lo-ás se desempenhares cada ação de tua vida como se fosse a última, isenta de toda leviandade, de aversão sentida ao arbítrio da razão, de fingimento, de egoísmo e inconformação com o destino. Já vês quão pouco domínio temos de exercer para que nossa vida flua fácil, no temor dos deuses; porque os deuses não exigirão mais de quem observa esses preceitos. 6. Rebaixa-te, minha alma, rebaixa-te! Não terás mais ocasião de honrar a ti mesma, que breve é a vida de cada um, a tua está prestes a terminar e tu, em vez de respeitares a ti mesma, colocas nas almas dos outros a tua felicidade. 7. Não te distraiam os eventos surgidos de fora; arranja vagares para aprenderes mais algo de bom e para de voltear. Guarda-te também, doravante, de outro desvario; desvairam, com efeito, aqueles que, ao cabo de tantas ações, se enfastiam da vida e carecem dum alvo para onde orientar todos os seus impulsos e, numa palavra, as suas cogitações. 8. Dificilmente vemos alguém sofrendo por não ter observado o que se passa na alma de outrem, mas por força há de sofrer quem não anda atento às comoções de sua própria alma. 9. Deves sempre lembrar qual a natureza do universo, qual a minha, qual a relação entre esta e aquela, qual parte sou de qual universo e que ninguém te impede de fazer e dizer o que é consequência da natureza de que és parte. 10. Falando como filósofo, Teofrasto, na comparação dos pecados, disse como se expressaria quem os comparasse pelo senso comum, que são mais graves as faltas causadas pela concupiscência que as causadas pela cólera. Evidentemente, o encolerizado não se afasta da razão sem algum sofrimento, sem um latente aperto no coração, enquanto quem peca por concupiscência, dominado por um prazer, se revela um, tanto incontinente e feminino nos pecados. Tinha, pois, razão ao dizer, em palavras dignas de filósofo, que o pecado cometido com prazer merece mais severa censura do que o cometido com sofrimento. Em suma, num caso, antes parece tratar-se de vítima de injustiça, coagida pelo sofrimento a encolerizar-se, enquanto no outro, de alguém de si mesmo impelido a praticar injustiça, induzido a agir pela concupiscência. 11. Em todos os teus atos, ditos e pensamentos, procede como se houvesses de deixar a vida dentro de pouco. Se os deuses existem, nada há de temeroso em partir dentre os homens; eles não te haveriam de precipitar numa desgraça; mas se eles não existem ou não se importam com os assuntos humanos, que me interessa viver num mundo vazio de deuses ou vazio de providência? Existem, porém, importam-se com os assuntos humanos e deixaram na inteira dependência do homem evitar cair nos verdadeiros males; e se houver algum outro além desses, teriam também providenciado para que dependesse de cada qual não lhe acontecer. Aquilo que não piora o homem, como poderia piorar a vida do homem? A natureza do universo não haveria de tolerar tal situação, quer por ignorância, quer sabendo mas sem poder prevenir ou corrigir, nem cometeria, por impotência ou incapacidade, o grave erro de atribuir aos bons e aos maus, indistintamente, quinhões iguais de bens e de males. A morte e a vida, a fama e o olvido, a dor e o prazer, a riqueza e a pobreza, tudo isso acontece igualmente na Humanidade a bons e maus, sem constituir honra nem labéu; portanto, não são bens nem males. 12. Como tudo desaparece depressa! No espaço, os corpos mesmos; no tempo, sua memória! Assim é com todas as sensações, sobretudo as que atraem porque deleitam ou afugentam porque doem, ou se apregoam a todos os ventos porque envaidecem. Quão insignificantes são, quão desprezíveis, vulgares, perecíveis e mortas, pode compreendê-lo o entendimento. O que são aquelas pessoas cujas opiniões e pronunciamentos propiciam a glória? Que é a morte? E, mais, se a gente a considera em si mesma e, com definir-lhe o conceito, dissipa as fantasias que a envolvem, já não a concebe senão como operação da natureza; quem teme uma operação da natureza é uma criança; aliás, ela não é apenas uma operação; é até uma conveniência da natureza. Como entra o homem em contato com a divindade? Por qual de suas partes e, sobretudo, como está disposta essa parte do homem? 13. Nada mais digno de pena do que aquele que a tudo faz a volta completa, investigando, como diz Píndaro, o âmago da terra e perquirindo, através de ilações, a alma do próximo, sem embargo de sentir que basta dar atenção exclusiva ao deus que traz no seu íntimo e prestar-lhe um culto sincero. Cultuá-lo é preservá-lo de paixões, de leviandades e de inconformação com o que advém dos deuses e dos homens. Afinal, o que advém dos deuses merece respeito por sua virtude; o que advém dos homens, afeto, mercê do parentesco, e às vezes piedade, devido à ignorância do bem e do mal — deficiência essa tão grave quanto aquela que impede a distinção entre o branco e o preto. 14. Mesmo se houveres de viver três mil anos ou dez mil vezes esse tempo, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão aquela que está vivendo, nem vive outra senão a que perde. Assim, a mais longa e a mais curta vêm a dar no mesmo. O presente, por sinal, é o mesmo para todos; o perdido, portanto, é igual e assim o que se está perdendo se revela infinitamente pequeno. De fato, não podemos perder o passado nem o futuro; como nos poderiam tirar o que não temos? Lembra-te, pois, sempre destas duas máximas: primeira, que tudo, desde todo o sempre, tem o mesmo aspecto e se renova em ciclos; nenhuma diferença faz verem-se os mesmos fatos por cem anos ou por duzentos, ou eternamente; segunda, que a perda é igual tanto para o de vida mais longa como para quem morre cedo, porquanto o presente é a única coisa de que será desapossado, pois só tem este e não perde o que não tem. 15. Que tudo é opinião. São evidentes as palavras ditas a Mônimo, o Cínico; evidente também o proveito do asserto para quem o degusta dentro dos limites da verdade. 16. A alma do homem a si mesma desonra sobretudo quando se torna, tanto quanto dela depende, um apostema e um como tumor do mundo. Com efeito, agastar-se com um dos acontecimentos é desertar da natureza, que abrange como partes suas as naturezas individuais dos demais seres. Desonra-se, em segundo lugar, quando repele algum ser humano ou avança contra ele para causar-lhe dano, como as almas dos coléricos. Terceiro, desonra a si mesma quando se deixa subjugar pelo prazer ou pela dor. Quarto, quando dissimula, com fingimentos e mentiras, o que faz ou diz. Quinto, quando larga seus atos e impulsos sem nenhum propósito, executando à toa e inconsequentemente seja o que for, quando os mínimos atos cumpre se realizem de acordo com a finalidade. E a finalidade dos viventes racionais é obedecer à razão e às leis da mais venerável das cidades e repúblicas. 17. Da vida humana, a duração é um ponto; a substância, fluida; a sensação, apagada; a composição de todo o corpo, putrescível; a alma, inquieta; a sorte, imprevisível; a fama, incerta. Em suma, tudo que é do corpo é um rio; o que é da alma, sonho e névoa; a vida, uma guerra, um desterro; a fama póstuma, olvido. O que, pois, pode servir-nos de guia? Só e única a Filosofia. Consiste ela em guardar o deus interior livre de insolências e danos, mais forte que os prazeres e mágoas, nada fazendo com leviandade, engano e dissimulação, nem precisando que outrem faça ou deixe de fazer nada, acatando, ainda, os eventos e quinhões que lhe tocam, como vindos da mesma origem qualquer donde vem ele próprio; sobretudo, aguardando de boa mente a morte, qual mera dissolução dos elementos de que se compõe cada um dos viventes. Se os elementos mesmos nada têm a recear da contínua transformação de cada um em outro, por que havemos de temer a transformação e dissolução do todo? Ela é conforme com a natureza e não existe nenhum mal conforme com a natureza. Em Carnunto. LIVRO III 1. Não devemos ter em conta somente que, dia a dia, se vai consumindo nossa vida e restando uma parte menor, mas computar também que, se alguém houver de viver mais tempo, não se sabe se ainda terá inteligência bastante ampla para a compreensão das questões e da teoria que aspira ao conhecimento dos assuntos divinos e humanos. Se entrar em senilidade, não lhe faltará a respiração, o nutrimento, a imaginação, os instintos e mais funções congêneres; porém o dispor de si próprio, o acertar na conta das obrigações, o analisar as aparências e, a seu próprio respeito, o examinar seja não será tempo de retirar-se e demais cogitações análogas, que requerem um raciocínio absolutamente exercitado, apagam-se antes. É mister, portanto, apressar-se, não só por estar a morte cada vez mais próxima, mas também por cessarem, antes dela, a percepção e acompanhamento dos fatos. 2. É mister também ter sob as vistas fatos como o seguinte: até os acidentes dos produtos da natureza têm sua graça e sedução. Por exemplo, na assadura, o pão fende-se em alguns lugares; as rachaduras assim formadas, contrárias, de certa maneira, aos propósitos da panificação, têm o seu atrativo e excitam particularmente a vontade de comer. Igualmente, quando bem sazonados, os figos racham; nas azeitonas amadurecidas na planta, a aproximação mesma do apodrecimento confere ao fruto uma beleza particular; as espigas vergadas para baixo, a pele da fronte do leão, a espuma a escorrer do focinho do javali e muitos outros exemplos, embora longe de um belo aspecto quando examinados em si mesmos, não obstante, como consequências de obras da natureza, concorrem para a beleza e atração do conjunto. Assim, a quem tem sensibilidade e inteligência profunda do que há no todo, quase nada, mesmo entre os acidentes advindos como consequências, deixaria de ostentar uma graça peculiar; não menor prazer experimentará contemplando as fauces hiantes das feras na realidade do que nas imitações exibidas pelos pintores e escultores; seus olhos experimentados poderão ver certa perfeição e encanto mesmo nas velhas e nos velhos, e uma graça sedutora nas crianças. Muitos exemplos semelhantes se encontrarão, que não creria um qualquer, senão apenas quem esteja realmente familiarizado com a natureza e suas obras. 3. Hipócrates, após ter curado muitas doenças, adoeceu por sua vez e morreu. Os caldeus, que predisseram a morte de muitas pessoas, foram depois alcançados por sua vez pelo destino. Alexandre, Pompeu e Caio César, depois de tantas vezes destruírem cidades inteiras desde os fundamentos e destroçarem em batalhas campais dezenas e dezenas de milhares de cavaleiros e peões, um dia, por sua vez, partiram desta vida. Heráclito, autor de tratados tão valiosos sobre a destruição do mundo pelo fogo, morreu cheio de água por dentro e todo untado de bosta. Os vermes mataram Demócrito e vermes de outra espécie a Sócrates. A que vem isso? Embarcaste; navegaste, aportaste. Desembarca! Se há de ser para outra vida, nela igualmente nada é vazio de deuses; se é para a insensibilidade, deixarás de suportar dores e prazeres e de servir ao teu invólucro, tão desvalioso que o servidor vale mais, pois este é inteligência e divindade, aquele, terra e lama de sangue. 4. Não gastes a parte restante da vida a cogitar nos outros, salvo quando estiveres promovendo o bem público; ou então ficarás privado de outra atividade, isto é, entregue a cismas sobre o que fulano estará fazendo e por que, o que ele diz, o que ele cogita, o que ele maquina e todas as indagações dessa espécie, que te desnorteiam e distraem da vigilância sobre o teu guia. Assim, pois, cumpre obstar a entrada, no encadeamento das ideias, da aventura e vaidade, e muito especialmente da futilidade e malícia. Deves acostumar-te a só pensar em assuntos tais que, se perguntarem de improviso em que pensas neste momento?, possas responder prontamente com franqueza: Nisto e naquilo; assim evidenciares direta e imediatamente que tudo em si é singeleza, bondade, dum ser comunicativo e não cuidadoso de sonhos sensuais ou, em suma, voluptuosos, ou de rivalidades, inveja, desconfiança ou algum outro sentimento de que hajas de corar ao confessar que o tens em mente. O homem que assim procede, não mais adiando sua entrada definitiva para o número dos melhores, é um sacerdote, um ministro dos deuses, servidor daquele deus estabelecido em seu âmago; isso o põe a salvo da mácula dos prazeres, incólume a todo sofrimento, imune de todo excesso, inatingível a toda maldade, atleta da luta mais excelsa, para não ser derrubado por nenhuma paixão, profundamente impregnado de justiça, saudando do fundo da alma todos os acontecimentos que constituem o seu quinhão, sem imaginar amiúde, salvo por força maior e no interesse do bem público, o que outrem estará dizendo, fazendo ou cogitando. Desempenhará o seu mister e terá incessantemente no pensamento a parte do todo que para ele foi tecida; de seu mister se desincumbirá nobremente e estará convencido de que seu destino é bom. Com efeito, o quinhão de sorte de cada um convém ao todo e o todo lhe convém. Não esquece que um parentesco liga todos os racionais, que o interesse por toda a Humanidade é conforme com a natureza humana e não deve apegar-se à estima de toda e qualquer pessoa, senão à de quem vive em harmonia com a natureza. Jamais esquece como são, em casa e fora, de noite e de dia, aqueles que assim não vivem. Por isso, não faz caso do louvor de tal gente, até de si mesma insatisfeita. 5. Não haja nos teus atos má vontade, nem egoísmo, nem falta de exame, nem contrariedade. Não embeleze os teus pensamentos a finura; não sejas loquaz nem afanoso. Ademais, seja o deus que há em ti o superior de um ente viril, respeitável, um estadista, um romano, um príncipe que a si próprio tenha disciplinado, como seria quem aguardasse, desprendido, o chamado para deixar a vida, sem precisão nem de juramentos nem de um testemunho humano. Além disso, serenidade, prescindindo de ajuda externa, prescindindo de tranquilidade propiciada por outrem. Cumpre ser direito; não desentortado. 6. Se encontras na vida humana um bem mais valioso do que a justiça, a verdade, a temperança, a coragem, em suma, a satisfação de tua inteligência, de um lado consigo mesma, por prover a que sigas em teus atos a razão reta, e de outro com o teu destino, nos quinhões independentes de teu arbítrio — se divisas, digo, um bem mais valioso, entrega-te a ele de todo coração e desfruta essa ventura suprema que descobriste. Se, porém, nada se te depara mais valioso do que aquele deus alojado em teu íntimo, que reduziu à obediência os teus impulsos, que escruta as ideias, que, no dizer de Sócrates, se arrancou às paixões dos sentidos, que se subordinou aos deuses e cogita do bem da Humanidade; se verificas que tudo mais, comparado com ele, é diminuto e desvalioso, não dês oportunidade a nenhum outro guia que, por te atrair e desviar, impeça continues, sem lutas, a honrar com primazia aquele bem particular, o teu. De fato, não te é lícito, ao bem segundo a razão e os interesses do Estado, opor seja o que for de natureza diversa, como o louvor da multidão, o poder, a riqueza, o gozo dos prazeres. Todos esses objetivos, embora pareçam, por algum tempo, quadrar a tua natureza, costumam assumir de repente o domínio e desencaminhar. Tu, repito, escolhe franca e livremente o mais valioso e apega-te a ele. — Mas o mais valioso é o que dá proveito. — Se tiras proveito como ser racional, adota-o; se como ser animal, confessa-o e guarda modestamente o teu juízo; apenas, cuidado para não te enganares no exame. 7. Jamais aprecies como proveitoso para ti o que algum dia te obrigue a trair a tua fé, a renunciar ao teu pudor, a odiar, suspeitar, maldizer alguém, a fingir, a apetecer o que haja mister de paredes e reposteiros. Quem preferiu a sua própria inteligência, o seu deus e o culto da dignidade deste, não encena dramas, não dá gemidos, prescindirá do isolamento e da multidão; o que é mais, viverá sem perseguir nem fugir. Absolutamente não lhe importa seja maior ou menor o lapso de tempo em que há de usufruir da alma que seu corpo reveste. Se houver de retirar-se já, partirá com o mesmo desembaraço com que iria a qualquer das outras operações que se podem realizar com discrição e decoro. Durante a vida toda não terá outra cautela senão a de preservar sua inteligência de toda alteração imprópria do animal racional e social. 8. Na mente de quem se castigou e purificou, nada se pode encontrar de purulento, nada de sujo, nenhum mal velado por cicatriz. O destino não lhe interrompe a vida em meio, como se diria de um ator que se retira sem terminar, sem representar até o fim o seu papel. Além disso, nenhum servilismo, nenhuma afetação, nenhum liame, nenhuma cisão, nem contas por prestar, nem tocas de refúgio. 9. Venera o poder de opinar. Dele depende inteiramente que não haja nunca em teu guia uma opinião discrepante da natureza e da constituição do vivente racional. Ele assegura a ponderação, as boas relações com os homens e a obediência aos deuses. 10. Recusa tudo mais e retém apenas esses poucos ditames; lembra, ainda, que cada um vive apenas o presente momento infinitamente breve. O mais da vida,ou já se viveu ou está na incerteza. Exíguo, pois, é o que cada um vive; exíguo, o cantinho de terra onde vive; exígua até a mais longa memória na posteridade, essa mesma transmitida por uma sucessão de homúnculos morrediços, que nem a si próprios conhecem, quanto menos a alguém falecido há muito. 11. Aos conselhos já ditos acrescente-se mais um: determinar e definir invariavelmente a imagem percebida, para vê-la tal qual é na essência, nua e por inteiro distinta no seu todo, e dizer, de si para consigo, o nome que a designa, bem como o das partes de que se compõe e em que se dissolverá. Nada concorre tanto para sentimentos elevados como a capacidade de inquirir, com método e veracidade, cada um dos eventos da vida e sempre os olhar de modo que se considere a que mundo trazem proveito, qual o proveito e, dado o proveito, que valor tem, dum lado, em relação ao conjunto e de outro, em relação ao homem como cidadão da cidade suprema, da qual as demais cidades são, por assim dizer, as casas; o que é, de que elementos se compõe, quanto tempo, por sua natureza, deverá perdurar o efeito em mim produzido no momento por essa imagem e que virtude exige de mim, se mansuetude, coragem, lealdade, lhanura, autossuficiência, etc. Daí cumpre dizer em cada caso: isto me vem de um deus; isso decorre das conjunturas, da trama urdida pelos acontecimentos, de tal coincidência fortuita; aquilo procede de um ser de minha espécie, de um parente meu, de um companheiro, que, todavia, ignora o que é conforme com a sua natureza, Eu, porém, não ignoro e por isso o trato com benevolência e justiça, de acordo com a lei natural da comunhão; contudo, nos casos indiferentes, tenho em mira ao mesmo tempo o seu mérito. 12. Se cumprires o dever do momento seguindo a reta razão com zelo, com vigor e de boa vontade, sem intenções secundárias, conservando, porém, em permanente pureza o teu deus, como se estivesses em vias de restituí-lo; se a isso ligares a observância do preceito de nada esperar nem evitar, e sim contentar-te da presente atividade conforme com a natureza e da veracidade dos tempos heroicos em tudo quanto disseres e falares, terás vivido feliz. E não há ninguém capaz de impedi-lo. 13. Os médicos têm sempre à mão os instrumentos e ferros para os casos imprevistos; assim tenhas tu prestes os preceitos com que possas conhecer as coisas divinas e as humanas e proceder em tudo, mesmo nos atos mínimos, como quem não esquece os liames mútuos destas e daquelas; nada realizadas bem na área humana sem uma relação simultânea com a área divina e vice-versa. 14. Não divagues mais. Com efeito, já não hás de reler as tuas notas, nem os feitos dos antigos romanos e gregos, nem os excertos das obras que vinhas reservando para a velhice. Avia-te para o fim; abandona as esperanças ocas e acode a ti mesmo, enquanto podes, se de ti mesmo fazes algum caso. 15. Nem todas as acepções se conhecem por aí dos termos furtar, semear, comprar, repousar, ver o que deve ser feito; isto não se faz com os olhos, mas com certa outra visão. 16. Corpo, alma, mente. Do corpo são as sensações; da alma, os instintos; da mente, os princípios. Receber impressões na imaginação pertence também aos brutos; ser titereado pelos instintos pertence também às feras, aos andróginos, aos Fálaris, aos Neros; o guiar-se pela mente no que se afigura o dever pertence também aos que não creem nos deuses, aos que renegam a pátria e aos que praticam... quando fecham as portas. Se, pois, tudo mais temos em comum com os seres sobreditos, ao bom resta a prerrogativa de amar e de bem acolher os eventos urdidos na trama do destino; não envolver nem perturbar na multidão de ideias o deus alojado dentro do peito, mas preservá-lo propício, na obediência disciplinada à divindade, sem proferir palavra contrária à verdade, sem praticar ato contrário à justiça. Mesmo se toda a Humanidade duvidar que ele viva com singeleza, modéstia e bons sentimentos, com ninguém se zangará, nem se desviará da estrada que leva ao termo da vida, aonde cumpre chegar puro, sereno, solto, ajustado, sem constrangimento, ao seu destino. LIVRO IV 1. Nosso amo interior, quando se conforma com a natureza, tem diante dos acontecimentos um comportamento que lhe faculta sempre, na medida do possível, modificar sem esforço o que se lhe oferece. Não tem predileção a matéria alguma colocada fora de seu alcance; àquilo, porém, que lhe achegam ele se lança com reservas e do que se introduz em substituição faz matéria para si, tal como o fogo quando se apodera do que lhe cai em cima e apagaria uma pequena candeia. O fogo vivo assimila rapidamente o que lhe deitam em cima, consome-o e daí mesmo tira com que se erguer mais alto. 2. Nada executes ao acaso, nem de maneira diversa dos princípios que integram a arte. 3. A gente procura para si retiros nas casas de campo, na beira-mar, nas serras; tu também costumas anelar vivamente por isolamentos desse gênero. Tudo isso, porém, é o que há de mais estulto, quando podes retirar-te em ti mesmo à hora que o desejes. A lugar nenhum se recolhe uma pessoa com mais tranquilidade e mais ócios do que na própria alma, sobretudo quando tem no íntimo aqueles dons sobre os quais basta inclinar-se para gozar, num instante, de completo conforto; por conforto não quero dizer senão completa ordem. Proporciona a ti mesmo constantemente esse retiro e refaze-te; mas haja nele aquelas máximas breves e elementares que, apenas deparadas, bastarão para fechá-lo a todo sofrimento e devolver-te livre de irritação contra o ambiente aonde regressas. Com efeito, com o que te irritas? Com a maldade humana? Reaviva o juízo de que os viventes racionais nasceram uns para os outros; que a paciência é uma parte da justiça; que não pecam por querer; que tantos já, após ódios ferrenhos, suspeitas, rancores, jazem transpassados pela lança e reduzidos a cinza; e sossega, enfim. Porém estás irritado também com os quinhões do todo que te couberam? Recorda a disjuntiva ou uma providência, ou os átomos e todas as provas de que o mundo é como uma cidade. Porém ainda te afetarão os interesses do corpo? Considera que a inteligência não se imiscui nas agitações, suaves ou violentas, do alento, uma vez que, recolhida, haja compreendido o seu poder próprio; recorda, enfim, tudo quanto ouviste e admitiste sobre a dor e o prazer. Porém a gloria vã te fascinará? Volta a atenção para a rapidez com que tudo se esquece, para a extensão do tempo infinito num sentido e no outro, para o vazio da repercussão, para a volubilidade e falta de critério dos aparentes aplausos e na estreiteza do espaço onde se circunscrevem. A terra toda não passa de um ponto, e que diminuto cantinho dela é realmente a parte habitada! E ali quantos são e quem são os que te hão de louvar? Por fim, lembra-te de teu retiro para dentro dessa nesga de terra tua e, antes de tudo, nada de tormentos e contensões; sê livre e encara as coisas como um varão, como um ser humano, como um cidadão, como um vivente mortal. Entre as noções mais à mão, sobre as quais te inclinarás, estejam estas duas: primeira, que as coisas não atingem a alma; param fora, quietas, e os embaraços vêm exclusivamente dos pensamentos de dentro; segunda, que tudo quanto estás vendo se transformará dentro de instantes e deixará de existir. Pensa constantemente em quantas transformações tu mesmo presenciaste. O mundo é mudança; a vida, opinião. 4. Se a inteligência nos é comum, também é comum a razão, em virtude da qual somos racionais; posto isso, a razão determinadora do que devemos ou não devemos fazer é comum; posto isso, a lei também é comum; posto isso, somos cidadãos; posto isso, o mundo é como uma cidade. Com efeito, de que outro organismo político se dirá que todo o gênero humano participa? Daí, dessa cidade comum, deriva nossa mesma inteligência, nossa razão, nossa lei. Senão, de onde? Assim como de alguma terra foi tirado o que há de terreno em mim, de outro elemento o líquido, de alguma fonte o alento e de alguma fonte especial o quente e o ígneo — pois nada procede do nada e tampouco para o nada se vai —, assim também de algum lugar veio a inteligência. 5. Tal qual o nascimento, a morte é um mistério da natureza; nos mesmos elementos de que ele nos compõe, ela nos dissolve. Em suma, não é motivo de vergonha; não é incompatível com a condição do ser inteligente, nem com o plano da estrutura. 6. Essas coisas tinham naturalmente de ser feitas assim por pessoas tais; não o querer é querer que a figueira não tenha látex. Em suma, lembra-te disto: dentro de brevíssimo tempo estareis mortos tu e ele, e logo mais de vós não restará nem o nome. 7. Suprime a opinião e estará suprimido o lesaram-me, suprime o lesaram-me e estará suprimido o dano. 8. Aquilo que não piora o homem mesmo tampouco lhe piora a vida nem lhe causa dano, quer de fora, quer de dentro. 9. A necessidade obrigou a natureza do útil a produzir esse efeito. 10. Todo acontecimento tem sua razão de ser; descobri-lo-ás se o observares acuradamente; não digo apenas que assim é por via de consequência, mas também segundo a justiça e como se alguém atribuísse os quinhões considerando os méritos. Vai, pois, observando, como principiaste, e em tudo quanto fizeres seja o teu propósito seres bom na acepção da palavra. Guarda essa intenção em todos os teus atos. 11. Não sejam tuas opiniões aquelas que o insolente adota ou quer que tu adotes, mas verifica se, em si mesmas, se conformam com a verdade. 12. Deves sempre estar pronto para estas duas decisões: primeira, praticar só e precisamente aquilo que a razão do trono e da lei inspira para o bem da Humanidade; segunda, mudar de orientação, se alguém houver que te corrija e dissuada. Cumpre, porém, se origine sempre a dissuasão nalguma verossimilhança de justiça e de bem comum; as motivações devem ser somente dessa natureza e não o agrado ou a glória aparente. 13. És dotado de razão? — Sou. — Então, por que dela não usas? Se ela desempenha o seu papel, que mais queres? 14. É como parte que existes; desaparecerás no elemento que te gerou; ou melhor, serás retomado na sua razão seminal por via de transformação. 15. Muitos grãos de incenso caem no mesmo altar; uns antes, outros depois, mas isso não faz nenhuma diferença. 16. A esses que hoje veem em ti uma fera e um símio, dentro de dez dias parecerás um deus, se tomares atrás, aos princípios e ao culto da razão. 17. Não procedas como se houvesses de durar dez milênios; o fim inevitável pende sobre ti; enquanto vives, enquanto podes, torna-te um bom. 18. Quantos lazeres ganha quem não olha o que o próximo disse, fez ou pensou, mas apenas o que ele próprio está fazendo, para que sua obra mesma seja justa, santa e integralmente boa. Não fiques em guarda contra a malvadeza; corre para a baliza em linha reta, sem zigue-zagues. 19. Quem se deixa fascinar pela glória póstuma não imagina que cada um dos que o hão de lembrar morrerá logo por sua vez, e depois também quem dele receber a lembrança, até se extinguir toda recordação na sucessão de fachos que se acendem e apagam. Suponhamos, porém, imortais os que hajam de recordar e imortal a memória. Que te adianta isso? Já não digo que não te adianta na morte; mas, em vida, de que te serve o louvor? Salvo, é claro, nos propósitos da governança. Esquece por ora, como intempestivo, o dom da natureza, ligado a outro aspecto. 20. Ademais, toda e qualquer beleza é bela por si mesma e a si mesma se completa, sem compreender o louvor como parte; o que louvamos não piora nem melhora com isso. O mesmo digo também das coisas chamadas vulgarmente belas; por exemplo, os objetos materiais e as produções da arte. O ente deveras belo carece de alguma coisa? Não mais que a lei, não mais que a verdade, não mais que a benevolência ou o pudor. Desses exemplos, qual o louvor embeleza ou a censura enfeia? Desmerece a esmeralda se lhe faltam os elogios? E o ouro? E o marfim? A púrpura? Uma lira? Uma espada? Uma florinha? Uma planta? 21. Se as almas sobrevivem, como pode comportá-las o ar desde a eternidade? E a terra não comporta todos os corpos sepultados desde séculos tão longos? Como aqui a transformação e dissolução de uns após alguma duração abrem lugar para outros cadáveres, assim as almas transferidas para o ar, depois de subsistirem algum tempo, se transformam, se derramam, ardem absorvidas pela razão seminal do universo e dessa maneira deixam lugar às que emigram depois. Essa a resposta na hipótese da sobrevivência das almas. Não basta considerar apenas a multidão dos corpos assim enterrados; cumpre ainda considerar a daqueles de que diariamente nos alimentamos nós e os outros viventes. De fato, que número enorme é assim consumido e, de certo modo, sepultado nos corpos que deles se alimentam! Sem embargo, o espaço os comporta devido à conversão em sangue, à transformação em substância aérea ou ígnea. Qual o meio de investigar aí a verdade? A distinção entre a causa material e a formal. 22. Não te atordoes; a cada impulso, pratica a justiça; a cada ideia, resguarda o intelecto. 23. Adapto-me a tudo que contigo se harmoniza, ó mundo; nada para mim é prematuro ou tardio, se para ti é tempestivo. É fruto para mim tudo quanto produzem as tuas estações, ó natureza; tudo vem de ti, tudo está em ti, tudo volta para ti. Lá dizia aquele: "Ó amada cidade de Cécrops!" E tu não dirás: "Ó amada cidade de Zeus!"? 24. "Ocupa-te de pouco", diz ele, "para viveres satisfeito." Não será melhor, afinal, ocupar-se do necessário e de tudo que a razão do vivente sociável por natureza decide e como o decide? Isso traz não só a satisfação do dever cumprido mas também a de ocupar-se de pouco. Se eliminarmos a maior parte de nossas palavras e ações, não farão falta, e nos sobrarão mais lazeres e sossego. Deves, por isso, de cada vez, lembrar a ti mesmo: Não será isto uma das coisas dispensáveis? Aliás, devemos eliminar não só os atos mas também os pensamentos desnecessários, pois assim tampouco os seguirão os atos que acarretam. 25. Experimenta igualmente como te vai a vida de homem bom que, comprazendo-se com o seu quinhão no conjunto, contenta-se com ser justo nas ações e benévolo nos sentimentos. 26. Viste aquilo? Vê também isto. Não te compliques; faze-te simples. Alguém está pecando? Contra si mesmo peca. Aconteceu-te alguma coisa? Ótimo! Tudo que te acontece estava, desde o início, determinado e urdido para ti no conjunto. Em suma, a vida é breve; é mister desfrutar o presente com prudência e justiça. Sê sóbrio folgando. 27. Ou um mundo organizado, ou uma papa, um amontoado sem ordem. É possível, acaso, subsista alguma ordem em ti, mas desordem no universo, e isso quando tudo se acha tão combinado, tão fundido, tão solidário? 28. Caráter negro, caráter mulheril, caráter árido, feroz, bestial, infantil, indolente, desleal, de histrião, de mercador, de tirano. 29. Se é forasteiro no mundo quem não reconhece o que nele existe, não menos forasteiro quem não reconhece o que nele sucede. É um desterrado quem foge à razão social; cego, quem baixa as pálpebras sobre os olhos da inteligência; mendigo, quem precisa de outrem e não tem em si mesmo o que é útil à vida. Um apostema do mundo, quem se retira e aparta da razão da natureza comum por não se conformar com os acontecimentos; porque a natureza que os traz é a mesma que te trouxe. É membro amputado da cidade quem corta sua própria alma daquela dos racionais, que é uma só. 30. Um vive como filósofo sem túnica; outro, sem livros; esse outro, seminu. "Não tenho pão", diz ele, "mas sou fiel à razão." Já eu não tenho o sustento das ciências e sou fiel. 31. Estima o pouco de ciência que aprendeste e descansa. Passa o resto da vida como quem confiou aos deuses, de todo coração, tudo que é seu e não fez de nenhum homem seu tirano nem seu escravo. 32. Pensa, por exemplo, no tempo de Vespasiano; verás tudo isto: pessoas casando, criando filhos, adoecendo, morrendo, guerreando, festejando, comerciando, trabalhando, adulando, presumindo-se, suspeitando, maquinando, rogando a morte a diversos, queixando-se da situação, amando, amealhando, ambicionando o Consulado, o Império. Pois bem, o mundo vivo daquele tempo já não existe. Passa, agora, ao tempo de Trajano; de novo o mesmo espetáculo; esse mundo também morreu. Examina igualmente as denominações de outras épocas e de povos inteiros e vê quantos, após esforços ingentes, tombaram em breve e se dissolveram em seus elementos. Deves, sobretudo, rever aqueles que conheceste pessoalmente a esfalfar-se em vão, esquecidos das operações próprias de sua constituição, de apegar-se a elas firmemente e com elas contentar-se. É necessário que dessa forma te lembres de que a solicitude empregada em cada ação tem o seu mérito próprio e sua justa medida; pois assim não descoroçoarás, salvo se te ocupares de ninharias mais tempo do que convém. 33. As expressões correntes outrora são hoje arcaísmos; assim também os nomes dos homens muito celebrados outrora estão hoje, de certo modo, arcaizados: Camilo, Cesão, Vóleso, Leonato; dentro em pouco, também Cipião e Catão; depois, Augusto; depois, Adriano e Antonino. Tudo é passageiro, logo se torna lendário, logo o olvido completo o sepulta. Isso digo daqueles que luziram de maneira admirável, porque os demais, apenas morrem, somem, são desconhecidos. Que é, afinal; a memória eterna? Um vazio apenas. Que é, então, o que merece o nosso devotamento? Somente um alvo: mente justa, atuação no bem comum, palavra que jamais engane, disposição a saudar todo evento como coisa necessária, conhecida, emanada do mesmo princípio e da mesma fonte. 34. Entrega-te de bom grado às mãos de Cloto; deixa-a tecer o teu destino com os fatos que houver por bem. 35. Tudo é efêmero, tanto o que memora quanto o memorado. 36. Considera constantemente que tudo procede de transformação; habitua-te a pensar em que a natureza do universo nada aprecia tanto como transformar o que há, para criar novos seres semelhantes. Todo ser é de certa forma a semente do que dele há de vir a ser. Tu, porém, fantasias que semente é só a que se lança na terra ou numa matriz; é o cúmulo da ingenuidade! 37. Logo estarás morto e ainda não és simples, nem tranquilo, nem seguro de não receber dano de fora, nem bondoso para com todos, nem pões a sabedoria apenas na prática da justiça. 38. Investiga os princípios que os guiam, ao que fogem os sábios, o que buscam. 39. Do guia de outrem não procede mal teu; tampouco de qualquer mudança e alteração do meio ambiente. De onde, então? Daquela parte de ti que opina sobre o mal. Que ela, pois, não opine e tudo irá bem. Mesmo que o corpo, seu mais próximo vizinho, seja retalhado, queimado, ou supure, putrifique, ainda assim permaneça tranquila a parte que sobre tais fatos opina; isto é, não julgue um mal nem um bem o que tanto pode ocorrer ao mau como ao bom. Com efeito, o que tanto acontece a quem vive em desacordo com a natureza quanto a quem vive de acordo com ela não é nem conforme nem contrário à natureza. 40. Pensa continuamente no mundo como vivente único, com uma só substância e uma só alma, e em como tudo reverte a uma percepção única, a dele; como tudo ele faz sob um impulso único; como tudo é com causa de todo acontecimento e como é feita a urdidura e a meada. 41. "És uma almazinha carregando um cadáver", dizia Epicteto. 42. Quem se está transformando nenhum mal está padecendo, bem como nenhum bem desfruta em resultar duma transformação. 43. O tempo é um rio formado pelos eventos, uma torrente impetuosa. Mal se avista uma coisa, já foi arrebatada e outra se lhe segue, que será carregada por sua vez. 44. Tudo que acontece é tão corriqueiro e conhecido como a rosa na primavera e as frutas no verão; assim a doença, a morte, a calúnia, a insídia e tudo mais que alegra ou aflige os estultos. 45. Há sempre afinidade entre o que sucede e o que precede; não é como uma série de números separados, que têm apenas o cunho da necessidade, mas uma contextura lógica; assim como os seres estão dispostos numa ordem harmônica, os acontecimentos evidenciam não uma sucessão pura e simples, mas certa afinidade admirável. 46. Lembra sempre o ensinamento de Heráclito: a morte da terra é mudar-se em água; a morte da água é mudar-se em ar; a do ar, mudar-se em fogo, e vice-versa. Lembra-te também daquele que esquece aonde o leva o caminho; recorda a passagem: "Divergem daquilo com que mais continuamente convivem, a razão que governa o universo; os fatos que deparam dia após dia parecem-lhes estranhos"; que "não devemos agir e falar como em sonho" — que também então supomos agir e falar — "nem como os filhos..., isto é, simplesmente, da maneira hereditária". 47. Se um deus te dissesse que morrerás amanhã ou quando muito depois de amanhã, já não estimarias mais fosse depois de amanhã do que amanhã, salvo se fosses o último dos covardes; pois que diferença faz? Do mesmo modo, não consideres grande vantagem morrer daqui a tantos anos em vez de amanhã. 48. Pensa constantemente em quantos médicos morreram, depois de tantas vezes carregarem os sobrolhos à cabeceira dos enfermos; quantos astrólogos, depois de predizerem a morte de outros como se obrassem maravilha; quantos filósofos, após manterem acirradas disputas inúmeras sobre a morte ou a imortalidade; quantos potentados, após mandarem executar a tantos; quantos tiranos, depois de abusarem com tremenda arrogância, como se fossem imortais, do poder de vida e de morte; quantas cidades inteiras, por assim dizer, morreram: Hélice, Pompéia, Herculano e outras inúmeras. Repassa, também, um por um, todos os teus conhecidos. Quem fez as exéquias deste, mais tarde o deitaram num esquife; assim com quem fez as dele. Tudo isso num breve lapso de tempo. Em suma, considera sempre as coisas humanas como efêmeras, desvaliosas; ontem, um pouco de muco, amanhã, múmia ou cinzas. Este átimo de tempo, vive-o segundo a natureza e acaba sem revolta, como cairia a azeitona madura abençoando a terra que a produziu e agradecendo à árvore que a gerou. 49. Ser como o promontório onde se quebram incessantemente as ondas; ele queda-se ereto e a agitação da maré vêm morrer em seu redor. "Infeliz de mim, que tal me aconteceu!" Nada disso e sim: "Feliz de mim, porque, tendo-me isso acontecido, continuo a salvo do sofrimento, sem que me fira o presente nem me atemorize o futuro". O mesmo podia suceder a qualquer, mas nem todos o suportariam sem sofrimento. Então, por que será isto uma desgraça mais do que aquilo uma felicidade? Chamas, em suma, infortúnio humano o que não é um malogro da natureza humana? Consideras malogro da natureza do homem aquilo que não contraria os desígnios da sua natureza? Mas como? Aprendeste quais os desígnios; esse acontecimento te impede acaso de ser justo, magnânimo, temperante, prudente, ponderado, leal, discreto, livre, etc., virtudes de cuja reunião colhe a natureza humana o que é seu? Não te esqueças daqui por diante de recorrer a este princípio em todos os fatos que acarretem sofrimento: isto não é uma desgraça, mas suportá-lo nobremente é uma felicidade. 50. Recurso vulgar, porém eficaz, para o menosprezo da morte é passar em revista os que se demoraram aferrados à vida. Que vantagem tiveram sobre quem morreu prematuramente? Afinal, nalgum lugar jazem Cadiciano, Fábio, Juliano, Lépido e pessoas como eles, que, após enterrarem muitos outros, foram por sua vez enterrados. Em suma, a distância é mínima e se vence através de quais percalços, com quais companheiros e com que corpo! Portanto, não dês importância a isso. Olha o abismo de tempo atrás de ti e o outro infinito à frente. Nessa ordem de coisas, qual a diferença entre o ser que vive três dias e o que vive três vezes a idade de Nestor? 51. Corre sempre ao caminho curto; o caminho curto é o da natureza; assim procederás em todos os atos e ditos da maneira mais sadia. Tal norma de vida livra-te de penas, de campanhas, do peso da administração e dos requintes. LIVRO V 1. Quando te custa levantar de manhã, tem presente este pensamento: desperto para um trabalho de homem. Enfada-me ainda sair para o mister para o qual fui posto no mundo? Ou fui constituído para me aquecer deitado sob as cobertas? — Mas é mais agradável! — Então, nasceste para o deleite? Em suma, não foi para o sofrimento ou para a ação? Não vês as plantas, as avezinhas, as formigas, as aranhas, as abelhas, entregues a suas tarefas, colaborando, com a sua parte, na boa ordem do mundo? Então, não queres tu desempenhar a parte de homem? Não acorres à atividade conforme com a tua natureza? — Mas o descanso também é necessário. — É, concordo; todavia, a natureza pôs também a ele um limite, como ao comer e beber; apesar disso, não estás indo além dos limites, além do suficiente? Quando se trata de agir, já não é assim; ficas aquém do possível. Por não amares a ti mesmo; do contrário, amarias a tua natureza e seus desígnios. Outros, que amam o seu mister, esfalfam-se nas obras que lhes concernem, passando sem banho, passando sem comer; tu estimas a tua natureza menos que o gravador o cinzelar, o bailarino a dança, o avaro o dinheiro, ou o presunçoso a glória vã? Esses, quando os enleva a paixão, a comer e a dormir preferem acrescer o alvo de seu devotamento; tu, porém, achas mais desprezível ou merecedor de menor dedicação o trabalho do bem público? 2. Quão fácil é arredar de si e apagar toda ideia inoportuna ou estranha, e logo experimentar uma calma absoluta! 3. Considera-te digno de toda palavra e ação conformes com a natureza. Não te distraiam a censura ou os comentários por elas suscitados; se agiste e falaste com acerto, não te consideres indigno. Aquelas pessoas têm seu próprio guia e seguem impulsos seus; não te preocupes com elas, mas prossegue, acompanhando a tua natureza e a universal; o caminho de uma e outra é um só. 4. Vou seguindo os roteiros da natureza até cair e descansar, devolvendo meu alento a este ar donde o aspiro dia após dia, tombando sobre esta terra donde recolheu meu pai a semente, minha mãe o sangue e minha ama o leite, e que, dia após dia, por tantos anos, me alimenta e abebera, e sofre que a pise e dela retire tantos benefícios para mim. 5. Não há por que te admirarem a finura? Seja; mas há muitos outros predicados sobre os quais não podes dizer: "Não é de meu feitio". Procura, pois, mostrar os que dependem inteiramente de ti: sinceridade, circunspecção, laboriosidade, temperança, resignação, simplicidade, benevolência, liberdade, comedimento, seriedade, magnanimidade. Não percebes quantos predicados podes desde logo adquirir, para os quais não tens nenhuma desculpa de inaptidão natural, e insuficiência, entretanto ficas voluntariamente aquém? Porventura a razão de murmurares, de mesquinhares, de bajulares, de criminares o teu corpo, de lisonjeares, de futilizares, de tanto te agitares na alma, é uma inaptidão natural de tua constituição? Não, pelos deuses! Ao contrário, há muito te podias ter libertado desses defeitos e apenas, se tanto, ser acusado de um pouco lento de espírito e distraído. E nisso deves exercitar-te, em vez de tolerar essa preguiça mental ou comprazer-te nela. 6. Fulano, quando presta um benefício a alguém, dispõe-se a cobrar-lhe a gratidão. Sicrano não se dispõe a fazê-lo, mas lá consigo o imagina um seu devedor, e sabe o que fez. Beltrano, de certo modo, nem sabe o que fez; é semelhante à videira, que deu uva e, uma vez produzido o fruto que lhe compete, nada mais indaga; como o cavalo que correu, o cão que rasteou, a abelha que melificou. Um homem, depois de praticar uma boa ação, não a puxa para si, mas volta-se para outra, como a videira se volta para de novo dar uva na estação. — Devemos, então, colocar-nos entre os que, de certo modo, fazem o bem sem o notar? — Sim. — Mas á isso mesmo é que é mister prestar atenção; por ser próprio do ser social, diz ele, sentir que sua atividade é social e, por Zeus!, querer que o sinta a sociedade. — E verdade o que dizes, mas interpretaste mal o que estamos dizendo; serás por isso um daqueles atrás referidos, igualmente transviados por uma aparência de razão. Se queres, porém, compreender o sentido daquelas palavras, não tenhas o receio de, com isso, negligenciar alguma tarefa de interesse da comunidade. 7. Prece dos atenienses: "Chove, chove, ó amado Zeus, sobre as aradas dos atenienses e nas planícies". Ou não devemos orar, ou devemos orar assim, ingênua e livremente. 8. Tal como se diz: Asclépio prescreveu a fulano a equitação, ou banhos frios, ou andar descalço, assim se diz: A natureza prescreveu a sicrano uma doença, um aleijão, uma perda ou infortúnio semelhante. Naquele caso, prescreveu significa mais ou menos isto: ordenou isto a fulano como adequado ao seu estado de saúde; neste, o que acontece a cada um lhe foi, de certo modo, ordenado como adequado ao seu destino. Assim é que dizemos que um fato calhou, como das pedras de cantaria dizem os pedreiros que calharam bem nos muros e nas pirâmides, quando se ajustam entre si em tal ou qual colocação. Em suma, há uma só harmonia e como o mundo se inteira de todos os corpos num tão grande corpo, assim também o destino se inteira de todas as causas numa tão grande causa. Mesmo os completamente ignaros entendem isto que assevero, pois dizem: Estava-lhe destinado. Logo, isto estava destinado a este e isto estava prescrito àquele. Aceitemos, portanto, os fatos como os tratamentos que Asclépio prescrevia; nestes há, sem dúvida, muito de desagradável, mas acatamo-los pela esperança da cura. Considera algo como a tua saúde o acabamento e perfeição dos decretos da natureza comum e saúda como tal todo acontecimento, ainda quando pareça um tanto árduo, porque conduz à saúde do mundo, ao bom andamento e bom êxito de Zeus. Ele não teria trazido a tal pessoa tal sucesso, se não conviesse ao todo; nem traz qualquer natureza nada que não seja correspondente ao ser por ela regido. Portanto, deves conformar-te com o que te acontece, por duas razões: primeira, porque foi feito para ti, prescrito para ti e, de certo modo, se relacionava contigo desde o alto, na urdidura das causas mais veneráveis; segunda, porque o que acontece a cada um em particular assegura a quem rege o conjunto o bom andamento, a perfeição e, por Zeus!, a própria coexistência. Com efeito, é mutilar o todo amputar-lhe seja o que for do complexo e coesão tanto das causas como das partes e, quando não te conformas, tu, no que de ti depende, estás amputando e, de certo modo, destruindo. 9. Não te aborreças, nem desanimes, nem desistas, se, em tuas ações, nem sempre consegues seguir os princípios corretos; após cada malogro, recomeça e rejubila-te se as mais das vezes te sais como convém ao homem; tem afeição àquilo a que tornas; não voltes à Filosofia como quem torna ao mestre-escola, mas como os oftálmicos voltam à esponja e ao ovo, como outros doentes ao cataplasma, à compressa. Assim não farás ostentação da obediência à razão, mas nela repousarás. Lembra-te de que a Filosofia quer apenas os dons que a tua natureza quer, ao passo que tu quiseras outra coisa não concorde com a natureza. Que há, com efeito, mais atraente que eles? Não é com seus atrativos que o prazer ilude? Bem, examina se não são mais atraentes a grandeza de alma, a liberdade, a lhanura, a nobreza de sentimentos, a piedade. Que há mais fascinante que a própria sabedoria, quando refletimos nos passos em tudo firmes e prósperos da faculdade de observar e conhecer? 10. As coisas se acham de certo modo veladas, de sorte que a filósofos, não poucos nem quaisquer, pareceram absolutamente ininteligíveis; menos aos estoicos, e estes mesmos julgam-nas ao menos difíceis de apreender. E toda adesão nossa às percepções sói mudar. Onde, com efeito, o homem imutável? Passemos aos objetos perceptíveis em si; quão passageiros, triviais e acessíveis ao invertido, à meretriz, ao salteador! Passemos em seguida ao caráter das pessoas de teu convívio; mesmo a mais simpática te custa suportar, para não dizer que a ela mesma custa aguentar-se. Em semelhante escuridão e imundície, em tal fluxo da substância, do tempo, do movimento e dos seres movidos, não concebo o que possamos distinguir com estima ou, em suma, o que valha um esforço. Ao invés, temos de exortar-nos a nós mesmos e aguardar a dissolução natural, sem lastimar a demora, mas repousando apenas nestes pensamentos: primeiro, nada me sucederá que não esteja de acordo com a natureza universal; segundo, é-me dado nada fazer em desacordo com a minha divindade e o meu deus. Porque ninguém me forçará a transgredir seus ditames. 11. Em que ando empregando agora as faculdades de minha alma? Perguntar isso a mim mesmo a todo instante e indagar: o que tenho agora naquela parte de meu ser a que chamam guia? De que tenho agora a alma? Duma criança? Dum adolescente? Duma mulherzinha? Dum tirano? Duma rês? Duma fera? 12. O que vem a ser o que a maioria considera como bem pode-se verificar deste modo: quem reputasse verdadeiros bens certos dons reais, como a sensatez, a temperança, a justiça, a coragem, não mais poderia, concebida essa ideia, compreender aquele verso: Por causa dos bens. . ., que será um contrassenso; mas, concebida a ideia de bens como os entende a maioria, compreendê-lo-á bem e admirará facilmente a justeza da expressão do poeta cômico. Tão bem imagina a maioria a diferença. Com efeito, o verso não pareceria estranho e impróprio; ao contrário, aplicado à riqueza e às venturas do luxo e da glória vã, admitimos a propriedade e finura da passagem. Prossegue, pois, e indaga se devemos estimar e supor sejam bens coisas tais que, assim consideradas, concluiríamos naturalmente que o possuidor, devido à abundância, não sabe onde aliviar-se. 13. Consisto em causa formal e material; das duas, nenhuma se desfará no não ser, assim como não proveio do não ser. Logo, cada parte de meu ser irá localizar-se, por via de transformação, numa parte do universo; esta, por sua vez, se mudará numa outra parte do universo e assim infinitamente. Por via de semelhante transformação surgi eu, bem como meus genitores; poder-se-ia remontar a outro infinito, pois nada impede se afirme isso, ainda que seja regido o universo por períodos delimitados. 14. A razão e a lógica são forças que bastam a si mesmas e às operações de seu âmbito. Partem, efetivamente, de um ponto inicial próprio; caminham ao fim predeterminado; por esse motivo se chama retidão aquele procedimento, significando a direitura do seu caminho. 15. Não deve o homem observar nenhuma das coisas que não competem ao homem como homem. Não são das que se requeiram dum homem, nem as promete a natureza humana, nem são perfeições da natureza humana. Portanto, tampouco reside nela a finalidade do homem, nem aquilo que preenche a sua finalidade, o bem. Ademais, se alguma delas competisse ao homem, não lhe competiria menosprezá-la ou contra ela insurgir-se; tampouco mereceria louvores quem lograsse delas prescindir; não seria um homem bom quem tendesse a diminuir o seu quinhão nalguma, caso fossem bens. Na verdade, porém, quanto mais uma pessoa delas se despoja, ou de outras da mesma espécie, ou, ainda, quanto mais suporta ser despojada de alguma delas, tanto melhor homem é. 16. Quais sejam tuas ideias mais frequentes, tal será a tua inteligência, pois a alma se embebe das ideias. Embebe-a, pois, com o hábito de ideias tais como estas: onde se pode viver, pode-se viver bem; pode-se viver na corte; logo, pode-se viver bem na corte. E ainda: cada ser é levado ao fim para o qual e em vista do qual foi constituído; para onde é levado, aí está sua finalidade; onde está sua finalidade, ali está sua conveniência e seu bem, e o bem do ser racional é a sociedade. Que fomos feitos para a sociedade está há muito demonstrado; não é acaso evidente que os seres inferiores existem em vista dos superiores e estes em vista uns dos outros? Ora, os seres animados são superiores aos inanimados e os racionais aos animados. 17. Desejar o impossível é loucura; impossível é absterem-se os maus de praticar ações más. 18. Nada acontece a ninguém que sua natureza não suporte. Acontecem as mesmas coisas a outrem e, seja por ignorar que elas acontecem, seja por ostentação de altivez, mantém-se firme e permanece ileso. É estranho possam mais a ignorância e a presunção do que a sabedoria. 19. As coisas mesmas absolutamente não atingem a alma, não têm por onde chegar à alma, não podem fazê-la mudar, nem mesmo mover. Só ela mesma a si faz mudar e mover; quais sejam os juízos de que acredita ser digna, tais conforma, para si mesma, as contingências. 20. Por outra razão é o homem o que mais de perto nos toca: à medida que devemos fazer-lhe o bem e suportá-lo; mas na medida em que alguns estorvam os trabalhos que me competem, o homem se torna para mim tão indiferente como o sol, o vento, os brutos. Estes podem impedir alguma atividade minha, mas não há o que impeça meus impulsos e minhas disposições, graças à minha retração e à reversão. A inteligência, com efeito, reverte todo empecilho à sua atividade, transmuda-o em algo que lhe abra o caminho, e o que empeça a ação passa a favorecê-la, o que barrava o caminho, a facultá-lo. 21. Respeita o que há de mais poderoso no universo; é a força que de tudo se serve e tudo regula. Respeita igualmente o que de mais poderoso há em ti; é congênere daquela. Porque dependes do poder que dos outros seres se serve e tua vida é regida por ele. 22. O que não é daninho à cidade tampouco lesa o cidadão. Toda vez que tiveres a impressão de seres lesado, aplica esta regra: se à cidade isso não causa dano, tampouco sofri eu. — Mas se a cidade é lesada, não devo irar-me contra quem a está lesando? — O que estás esquecendo? 23. Reflete amiúde com que rapidez os seres e os fatos passam e se esvaecem. A substância é como um rio num fluxo perene; as forças estão em transformações contínuas, as causas em mudanças incontáveis; quase nada é estável; aí perto está o infinito abismo do passado e o do futuro, onde tudo desaparece. Não é louco, pois, quem, em meio a isso, se infla ou se arrepela, ou se lastima como se algo o estivesse incomodando por algum tempo, ou mesmo por longo tempo? 24. Recorda a substância toda, da qual és mínima parte, e o tempo todo, do qual te foi asse-lado um lapso breve, infinitamente pequeno; e do destino, do qual és parte... de que tamanho? 25. Alguém comete falta contra mim? Isso é lá com ele; ele tem o seu gênio, a sua atividade. Eu tenho agora o que a natureza comum quer que eu tenha agora, e faço o que a minha natureza quer que eu faça agora. 26. Permaneça a parte de tua alma que guia e senhoreia inabalável às comoções, brandas ou violentas, que há na carne, e não se envolva; ao contrário, circunscreva a si mesma e limite essas afecções aos membros. Quando, pela solidariedade recíproca, elas se comunicam à inteligência, como num corpo unido, então não se há de tentar obstar a sensação, que é da natureza; não acrescente, porém, o guia, por sua iniciativa, a opinião de que seja um bem ou um mal. 27. Conviver com os deuses! Convive com os deuses quem lhes mostra constantemente a alma satisfeita com o seu quinhão, praticando tudo quanto quer o deus dado a cada um como protetor e guia por Zeus, fragmento dele mesmo. Este deus é a mente e razão de cada um. 28. Tu te irritas com quem tresanda bodum? Tu te irritas com quem tem mau hálito? Que queres que ele faça? Sua boca é assim; suas axilas são assim; tais partes hão de ter por força tais exalações. — Mas, dirão, o homem é dotado de razão e, refletindo, pode dar-se conta de seu desmazelo. — Bravo! Por conseguinte, tu também és dotado de razão; suscita com a tua faculdade racional a sua faculdade racional, demonstra-lhe, lembra-lhe. Se te der ouvido, curá-lo-ás e será escusada a irritação. Nem ator trágico, nem meretriz. 29. Como pensas viver depois que te vás, assim podes viver aqui mesmo. Se não to consentem, deixa a vida, certo, porém, de nada estares padecendo. Fumaça; vou-me embora. Por que veres nisso um problema? Enquanto nenhuma razão semelhante me induz a sair, permaneço livremente e ninguém me impedirá de fazer o que desejo. E meus desejos quadram à minha natureza de vivente racional e social. 30. A mente do universo é social. Ela criou os seres inferiores em vista dos superiores e ajustou estes entre si. Vês como subordinou, como coordenou, como atribuiu quinhões a cada qual segundo o seu valor e conciliou os seres superiores em mútua concordância? 31. Como tens procedido até aqui com os deuses, os pais, os irmãos, a esposa, os filhos, os mestres, os aios, os amigos, os familiares, os fâmulos? Tens seguido até o presente, para com todos, o preceito de a ninguém fazer nem dizer nada de maldoso? Recorda os transes que passaste, as provações que lograste suportar, que teu conhecimento da vida é já profundo, que tua missão está cumprida, quantos bons exemplos deste, quantos prazeres e mágoas desprezaste, quantas ocasiões de glória desdenhaste, a quantos mal-agradecidos trataste com benevolência. 32. Por que almas incapazes e ignorantes confundem uma pessoa capaz e sábia? Que alma é capaz e sábia? A que conhece o princípio e o fim, a razão que se difunde por toda a substância e rege o universo, através de todo o tempo, segundo períodos ordenados. 33. Pouco falta para seres cinza, ou esqueleto, talvez um nome, ou sequer um nome; e o nome, um som vago, um eco. O que tanto se estima na vida: vazios, podridões, ninharias, cães que se mordem, crianças briguentas, que riem e logo estão chorando. A lealdade, o pudor, a justiça, a verdade, emigrados desta terra de largos caminhos para o Olimpo. Que há que ainda te retenha por aqui, se as coisas sensíveis são mudáveis, inconstantes, os sentidos embotados, sujeitos a falsas impressões, a alma mesma uma evaporação do sangue, e a boa reputação entre tal gente um vácuo? E daí? Aguardarás de bom grado quer a extinção, quer a transmutação. Até que venha a ocasião dela, que nos basta? Que mais, senão venerar e louvar os deuses, fazer bem aos homens, suportá-los, não os tocar? Tudo que há para dentro dos limites da carne e do espírito, lembra-te, nem te pertence nem depende de ti. 34. Podes ter sempre um curso de vida próspero, já que podes seguir um bom caminho e, seguindo-o, opinar e agir. Há duas coisas comuns à alma dos deuses, à do homem e de todo vivente racional: o não ser estorvado por outrem e o situar o bem nos sentimentos e atos justos, a isso reduzindo os desejos. 35. Se não se trata de um vício meu, nem de atividade decorrente de vício meu, nem é lesada a comunidade, por que me afligir com isso? Qual o dano da comunidade? 36. Ser arrebatado de envolta com a imaginação, não; sim, socorrer na medida em que podes e merecem, mesmo quando a perda é medíocre. Todavia, não imagines se trate duma perda; é esse um mau costume. Como o velho que reclamava, ao retirar-se, a entrega do pião do aluno, sem esquecer que também um pião, assim também neste caso... — Homem, esqueceste o que isso era? — Sim, mas eles o tomam tão a sério! — É isso razão para enlouqueceres também tu? Outrora, em qualquer momento que me surpreendessem, eu era um homem ditoso. Ditoso significa quem atribui a si mesmo um bom quinhão; bom quinhão são as boas tendências da alma, os bons impulsos, as boas ações. LIVRO VI 1. A substância do universo é dócil e maleável; a razão que a rege não tem em si nenhum motivo de fazer o mal; não tem maldade, não faz mal nenhum e dela nada recebe nenhum dano. Tudo se produz e completa de acordo com ela. 2. Quando cumpres o teu dever, não faça diferença que sintas frio ou calor, que estejas sonolento ou tenhas dormido bastante, que te censurem ou gabem, que morras ou faças outra coisa. Com efeito, um dos atos da vida é também esse no qual morremos. Basta, portanto, dispor bem o presente também para esse ato. 3. Vê o fundo; não te passe despercebida, em coisa alguma, sua qualidade própria, nem seu valor. 4. Tudo que aí está em breve será transformado e ou evaporará, se a substância é simples, ou se dispersará. 5. A razão que rege sabe como está disposta, o que faz e com que matéria. 6. A melhor maneira de arredá-los é não parecer com eles. 7. Tenhas um só deleite e contentamento, o de passar dum ato social a outro ato social, com o pensamento em Deus. 8. O guia é o que a si mesmo desperta, modifica e amolda como quiser, e faz que todo acontecimento apareça tal como ele o quer. 9. Tudo se cumpre segundo a natureza do universo; não pode ser segundo outra natureza, que, ou seria externa e o conteria, ou seria interna e por ele contida, ou seria exterior e sem ligação. 10. Ou uma papa, enleio e dispersão, ou coesão, ordem e providência. Na primeira alternativa, por que desejar eu uma longa permanência numa aglomeração casual e em semelhante mixórdia? Que outra coisa me importa senão como tornar-me terra um dia? Por que me conturbo? O dia da dispersão chegará para mim, faça eu o que fizer. Na segunda alternativa, venero, tenho firmeza e confiança em quem rege. 11. Quando a força das circunstâncias te deixar como que transtornado, volta depressa a ti mesmo; não fiques fora do ritmo além do necessário, porque serás tanto mais senhor da harmonia quanto mais frequentemente voltares a ela. 12. Se tivesses ao mesmo tempo uma madrasta e uma mãe, sem embargo de tuas atenções para com a primeira, seriam constantes os teus retornos para junto de tua mãe. O mesmo se dá agora com a corte e a Filosofia; volta assim com frequência a repousar nesta, porque graças a ela a vida te é suportável na outra e tu és suportável naquele meio. 13. Assim como, dos pratos de carne e outros alimentos, o pensar que um é o cadáver dum peixe, outro o cadáver duma galinha ou dum leitão; igualmente, do Falerno, que é o suco duma uva e, da toga, que é o pelo duma ovelha tinto com o sangue dum molusco, e, ainda, da copulação, que não passa de fricção do ventre e ejeção de muco acompanhada de algum espasmo; assim como essas ideias atingem as coisas em si e as penetram até ver o que elas são afinal, assim devemos agir durante toda a vida; quando mais fidedignas se afiguram as coisas, despi-las, contemplar a sua vulgaridade e suprimir os comentários que a esta conferem imponência. Porque a presunção é uma embusteira formidável e quando mais te imaginas entregue a tarefas sérias, aí é que estás sendo mais ludibriado. Vê o que diz Crates do próprio Xenócrates. 14. Do que o vulgo admira, prende-se ao gênero mais amplo a maior parte, constituída por um estado ou natureza: pedras, madeira, figueiras, vinhas, oliveiras; outra parte, constituída por seres um pouco menos brutos, prende-se à espécie animal, como os rebanhos e manadas; uma terceira, de constituição ainda mais delicada, à espécie da alma racional, não admirada por ser racional, mas por habilidades ou préstimos quaisquer, ou apenas por representar a posse dum grande número de escravos. Quem, porém, preza a alma racional, universal e sociável, já não dá atenção aos demais seres; antes de tudo, preserva os sentimentos e movimentos racionais e sociáveis de sua própria alma e ajuda o seu parente a igual preservação. 15. Continuamente umas coisas se apressam a ser, outras se apressam a passar, e, do que vem a ser, uma parte já se extinguiu. Escoamentos e transformações renovam o mundo incessantemente, como o fluxo ininterrupto das eras faz sempre novo o tempo infinito. Das coisas que passam a correr nesse rio, qual podemos distinguir com nossa estima, se não nos é dado firmar-nos em nenhuma? É como se alguém começasse a amar um dos pardais que passam a voar e ei-lo já fora de vista. A vida mesma de cada um é algo como a evaporação do sangue e a inalação de ar; o mesmo que aspirar o ar uma vez e expirá-lo, como fazemos a todo momento, é devolver à fonte donde primeiro a hauriste toda a faculdade respiratória que adquiriste ontem ou anteontem, ao nascer. 16. O que tem valor não é o transpirar como as plantas, nem o respirar como os animais de criação e as feras, nem o colher impressões pela imaginação, nem o ser titereado pelos impulsos, nem o ser apascentado, nem o alimentar-se; isso vale tanto quanto a expulsão dos resíduos da alimentação. — Então, o que tem valor? As palmas? — Não. Nem, portanto, as palmas das línguas, pois os louvores da multidão são línguas batendo palmas. — Eliminaste também a glória vã; que resta que tenha valor? — A meu ver é o mover-se e parar de acordo com a própria constituição e a isso nos conduzem os estudos e as artes. Com efeito, o fito de toda arte é que esteja bem apropriado ao efeito para o qual foi preparado aquilo que ela prepara. Isso é o que têm em mira o cultivador que trata da vinha, o domador de cavalos e o tratador de cães. A pedagogia e a didática a que se devotam? Eis, pois, o que tem valor. Se nisso te saíres bem, não diligenciarás obter mais nada. Não cessarás de dar valor a muitas outras coisas? Então, não serás livre, autossuficiente e isento de paixão; sentirás necessariamente invejas, ciúmes, suspeitas das pessoas capazes de tomar-te aquilo a que dás valor e tramarás contra quem o detém. Em suma, quem é carecido de algum daqueles bens há de por força andar perturbado e ainda com muitas queixas, até dos deuses. Já o respeito e o apreço da tua inteligência te farão contente contigo mesmo, bem adaptado à sociedade e concorde com os deuses, isto é, grato por todos os quinhões por eles distribuídos, por todos os postos por eles determinados. 17. Os elementos se movimentam para cima, para baixo, em círculo. O movimento da virtude, porém, não segue nenhuma dessas direções; é algo de divino e marcha com felicidade para diante, por um caminho difícil de conceber. 18. Como é estranha sua atitude! Não querem louvar os homens que vivem na mesma época e em sua própria companhia, mas dão grande importância a terem o louvor da posteridade, que jamais viram nem hão de ver. É quase o mesmo que te afligires por não terem tecido louvores teus as gerações anteriores. 19. Se achas demasiado árdua para ti uma empresa, nem por isso a suponhas impossível ao homem; ao contrário, se algo é possível e próprio de homem, considera-o acessível também a ti. 20. Nos ginásios, se alguém nos arranha com as unhas e nos acerta uma cabeçada violenta, não reclamamos, não nos ofendemos, nem o suspeitamos de futuras insídias. Precavemo-nos, por certo; não, porém, como dum inimigo, nem com desconfiança, mas com uma esquiva isenta de malquerença. Seja mais ou menos assim nos outros setores da vida; relevemos muitas faltas desses como que nossos parceiros de luta; podemos, como dizia, esquivar-nos sem desconfianças nem ressentimentos. 21. Se alguém pode confundir-me e provar que estou errado em minhas opiniões ou atos, eu mudarei com prazer. Procuro a verdade; ela jamais causou dano a ninguém; dano sofre quem persiste no seu engano e ignorância. 22. Eu cumpro o meu dever. Os outros seres não me inquietam; ou são inanimados, ou irracionais, ou vagantes que desconhecem o caminho. 23. Como ente dotado de razão, trata, nobre e livremente, como entes desprovidos dela, os viventes irracionais e, em geral, as coisas e matérias; aos homens, trata-os como entes racionais, como sócios. A todo momento invoca os deuses e não te importe quanto tempo despenderás nisso; bastam, com efeito, três horas assim passadas. 24. Alexandre da Macedônia e seu arrieiro igualaram-se na morte, porque ou foram recolhidos pejas mesmas razões seminais do mundo, ou se dissiparam de modo igual no seio dos átomos. 25. Considera quantas coisas, na mesma parcela infinitamente pequena do tempo, ocorrem simultaneamente quer no teu corpo, quer no teu espírito; assim não te admirarás de que muitas mais, ou melhor, tudo quanto se produz nesse todo único, que chamamos universo, exista simultaneamente. 26. Se alguém te perguntasse como se escreve o nome de Antonino, haverias de proferir aos brados cada uma das letras? E então, se ficam irritados, vais irritar-te também? Não enumerarias com calma, seguidamente, letra após letra? Assim também agora lembra-te de que todo dever se compõe de determinadas contas; cumpre observá-las sem te perturbares, nem te acerbares por tua vez com os que se acerbam, para executares com método a tarefa proposta. 27. Que crueldade não permitir aos homens que se atirem ao que lhes parece natural e conveniente! Todavia, de certo modo não consentes que o façam quando te agastas porque pecam; com efeito, eles deixam-se levar absolutamente como as coisas naturais e convenientes a eles. — Mas não são! — Então, ensina-os, mostra-lhes, sem te agastares. 28. A morte é o descanso das repercussões sensórias, do titerear dos impulsos, das divagações do intelecto e dos serviços à carne. 29. É uma vergonha seja tua alma a primeira a descoroçoar duma vida a que teu corpo ainda não renunciou. 30. Cuidado para não te cesarizares, para não te imbuíres; isso costuma acontecer. Preserva-te simples, bom, puro, grave, desafetado, amigo da justiça, piedoso, benévolo, afetuoso, firme no cumprimento do dever. Luta por permaneceres tal qual te quis formar a Filosofia. Venera os deuses, socorre os homens. A vida é breve; fruto único da existência sobre a terra são os sentimentos santos e a prática do bem comum. Sê, em tudo, um discípulo de Antonino, com a sua tenacidade nos empreendimentos planejados, a sua equanimidade em todas as circunstâncias, a sua piedade, o seu rosto sereno, a sua brandura, a sua ausência de vanglória, o seu pundonor em bem apreender as questões. Recorda como ele jamais abandonava nada sem ter examinado a fundo e compreendido claramente; como suportava, sem retaliar, as censuras improcedentes; como por nada se açodava; como não dava guarida a calúnias; com que minúcias examinava os caracteres e as ações; quão avesso era a ofensas, a temores, a suspeitas, a intrujices; com quão pouco se satisfazia, por exemplo, em questão de moradia, de leitos, de roupas, de pratos, de criadagem; que disposição para as fadigas, que perseverança; quão capaz de permanecer no mesmo lugar até o anoitecer, graças a uma dieta simples, sem precisar aliviar-se dos resíduos da alimentação fora da hora habitual; a firmeza e constância de suas opiniões, e sua satisfação quando lhe demonstravam outra melhor; como era piedoso sem superstições — para que assim, ao chegar tua última hora, encontre a tua consciência pura, como a dele. 31. Recobra os sentidos, reanima-te e, sacudido o sono, compreendendo que eram sonhos o que te molestava, olha de novo as coisas desperto, como as costumavas olhar. 32. Sou formado de corpo e alma. Ao corpo, tudo é indiferente, porque não pode inquietar-se. À inteligência tudo que não é operação sua é indiferente; tudo, porém, que é operação sua depende dela. Ainda, neste seu âmbito, ela se interessa apenas pelo presente; as mesmas suas atividades futuras e passadas lhe são indiferentes agora. 33. O trabalho da mão ou do pé não é contrário à natureza enquanto o pé executar o mister do pé e a mão o da mão. Assim também o trabalho do homem, como homem, não é contrário à natureza enquanto executar o seu mister de homem. Ora, se não é contrário à sua natureza tampouco é um mal para ele. 34. Que prazeres enormes terão experimentado os bandoleiros, os devassos, os parricidas, os tiranos! 35. Não vês como os artífices, com se adaptarem em certa medida aos profanos, nem por isso deixam de ater-se aos princípios de sua arte e não suportam afastar-se deles? Não é estranho respeitem o arquiteto e o médico a razão de sua arte mais do que o homem à sua própria, que lhe é comum com os deuses? 36. A Ásia, a Europa, são cantos do mundo; o mar todo, uma gota do mundo; o monte Atos, um terrão do mundo; todo o presente, um ponto da eternidade. Tudo é pequeno, mudável, evanescente. Tudo provém de lá, ou por ter recebido impulso daquele princípio diretor comum, ou por via de consequência. Portanto, até as fauces do leão, até o veneno e todo malefício, como os espinhos, como o lodo, são resultados do que lá existe de augusto e de belo. Não os imagines, pois, estranhos àquele ser que veneras, mas tem em conta a fonte de tudo. 37. Quem viu o presente viu tudo, não só o que existiu desde a eternidade como tudo o que haverá no tempo infinito, pois tudo tem a mesma origem e o mesmo aspecto. 38. Reflete amiúde na ligação e relação mútua de tudo que há no mundo. De certo modo, todas as coisas estão entretecidas e, por esse motivo, são amigas umas das outras; com efeito, uma se segue à outra graças à coordenação do movimento e ao concerto, bem como à coesão da substância. 39. Ajusta-te às coisas cujo destino é ligado ao teu; estima os homens cuja sorte está unida à tua; porém, com sinceridade. 40. Um instrumento, uma ferramenta, qualquer aparelho, quando prestam, fazem aquilo para que foram fabricados; todavia, quem os fabricou está ausente. Já nos seres que uma natureza constituiu, a força que os formou está no seu interior e ali permanece. Por conseguinte, deves respeitá-la mais e pensar que, se tu mesmo te comportas e vives segundo os desígnios dela, tudo contigo se passa a contento. Igualmente se passa a contento no universo tudo que lhe concerne. 41. Se consideras para ti um bem ou um mal alguma das coisas que não são de teu arbítrio, fatalmente, conforme esse mal te ocorra ou esse bem te falte, te queixarás dos deuses e odiarás os homens causadores ou suspeitos de causadores possíveis da falta ou da ocorrência. Cometemos muitas injustiças por causa de disputas a esse respeito. Se, porém, considerarmos como bens ou males apenas o que de nós depende, nenhum motivo resta quer de acusar os deuses, quer de manter uma atitude hostil para com o homem. 42. Todos colaboramos numa única realização, uns consciente e inteligentemente, outros sem o perceberem. Isso, penso, significava Heráclito ao dizer que até os que dormem são obreiros e colaboradores dos acontecimentos do mundo. Cada qual colabora a seu modo, mesmo, de sobejo, quem critica e quem tenta sabotar e destruir os resultados, pois até de tal gente precisaria o mundo. Resta veres de qual dos lados te vais alinhar. Aquele que rege o universo te empregará muito bem e acolherá como parte entre os seus ajudantes e cooperadores. Tu, porém, não sejas parte à maneira daquele verso cômico e tolo no drama, a que alude Crisipo. 43. Acaso o sol se mete a fazer o mister da chuva? Acaso Esculápio o de Ceres Frugífera? Que dizer de cada um dos astros? Não são eles, conquanto diferentes, colaboradores da mesma obra? 44. Se os deuses tomaram decisões a meu respeito e sobre o que deve acontecer-me, decidiram bem, pois é até difícil conceber um deus mal intencionado. Que razão os impeliria a fazer-me mal? Que proveito tirariam disso, quer para si, quer para a comunidade, sua máxima preocupação? Se não tomaram decisões em particular a meu respeito, fizeram-no a respeito da comunidade, afinal de contas, e devo saudar e estimar o que me acontece como uma consequência. Se, porém, eles não deliberaram sobre nada — o que é impiedade admitir, aliás não houvéramos de imolar, nem de orar, nem de jurar, nem praticar outros ritos, cada um dos quais praticamos na crença de estarem os deuses presentes em nosso convívio — se, pois, eles não deliberaram sobre nada do que nos concerne, então posso decidir sobre mim próprio, cabe a mim examinar os meus interesses. Ora, o interesse de cada um vai com sua constituição e natureza; a minha é racional e social. Como um Antonino, minha cidade e minha pátria é Roma; como homem, o mundo. Logo, só é um bem para mim o que for útil a essas cidades. 45. O que a cada um acontece é útil ao todo. Isso bastaria; observando, porém, verás mais que, em geral, o que é útil a um homem é útil também aos outros. Tome-se aqui a palavra útil na acepção mais ampla, como se aplica às coisas indiferentes. 46. Assim como te enfadam as funções no anfiteatro e lugares semelhantes, por se exibirem sempre as mesmas coisas e porque a uniformidade torna tedioso o espetáculo, assim deves sentir a respeito do curso todo da vida, pois tudo, de alto a baixo, são os mesmos efeitos das mesmas causas. Até quando? 47. Reflete assiduamente em quantos homens, de toda e qualquer profissão, de raças de toda sorte, estão mortos; recua até o tempo de Filistião, Febo, Origanião. Passa agora às outras espécies. Temos, por certo, de emigrar para onde se foram tantos oradores disertos, tantos filósofos graves — Heráclito, Pitágoras, Sócrates —, tantos heróis antes deles e tantos generais e tiranos depois. Além desses, Eudoxo, Hiparco, Arquimedes, outras naturezas penetrantes, altivas, infatigáveis, ousadas; motejadores presunçosos da própria vida humana perecível e efêmera, como Menipo e tantos seus iguais. Reflete em que todos eles jazem há muito. Que de terrível para eles há nisso? Que dizer dos que nem sequer são nomeados? Assim, uma só coisa existe de grande valor: passar a vida na prática da verdade e da justiça, sem querer mal aos mentirosos e injustos. 48. Quando quiseres alegrar-te, põe-te a pensar nos méritos das pessoas de teu convívio; por exemplo, a eficiência desta, o decoro daquela e a liberalidade daquela outra e outras serventias de outras mais. Nada nos alegra tanto como os exemplos de virtudes manifestados nos costumes dos conviventes, reunidos em número tão grande quanto é possível. Por isso, devem ser mantidos à mão. 49. Acaso te agastas por pesares tantas libras e não trezentas? Tampouco, então, por teres de viver tal número de anos e não mais. Assim como te contenta o volume de substância a ti atribuído, satisfaze-te também com a medida de tempo. 50. Procura convencê-los; procede até contra a sua vontade, quando a razão da justiça o reclamar. Se, porém, alguém se opuser recorrendo à força, passa a uma atitude cordial e sem mágoa; vale-te do obstáculo para exercitar outra virtude e lembra-te de que tomaras a iniciativa sob reserva e não aspiravas ao impossível. — Ao que, então? — A uma iniciativa análoga. Esse objetivo alcançaste; aquilo que iniciamos já é uma realização. 51. Quem ama a glória situa o seu bem numa atividade alheia; quem ama o prazer, em suas próprias sensações; quem tem inteligência, em seus próprios atos. 52. É lícito não formar opinião a este respeito e não sofrer atribulações da alma; as coisas em si mesmas não têm natureza capaz de criar nossos juízos. 53. Habitua-te a dar plena atenção ao que outrem diz e, quanto possível, penetrar na alma de quem fala. 54. O que não convém ao enxame não convém tampouco à abelha. 55. Se os marujos insultassem o piloto ou os doentes o médico, cuidariam estes dois de outra coisa senão de como levar a efeito a preservação dos navegantes ou a cura dos pacientes? 56. Quantos com quem entrei no mundo, já se foram! 57. Aos ictéricos o mel sabe amargo; aos hidrófobos a água mete medo; às crianças a bola parece bonita. Por que, pois, me enfurio? Achas que o engano tem menos força que a bile no ictérico ou o vírus no hidrófobo? 58. Ninguém te impedirá de viver segundo a razão de tua natureza e nada te acontecerá contra a razão da natureza comum. 59. Como são aquelas pessoas a quem se quer agradar? Quais os resultados em vista? Quais os meios empregados? Quão depressa o tempo tudo ocultará e quanta coisa já ocultou! LIVRO VII 1. Que é o vício? Aquilo que viste tantas vezes. A todo acontecimento, tem presente a ideia de que é o que muitas vezes viste. Em suma, de alto a baixo, encontrarás os mesmos fatos de que andam cheias as histórias, quer antigas, quer intermédias, quer recentes, de que andam cheias hoje as cidades e as casas. Nada há de novo; tudo é corriqueiro, tudo é efêmero. 2. Os dogmas vivem. Como, aliás, poderiam morrer sem se extinguirem as ideias que a eles correspondem? Depende de ti reavivar incessantemente as chamas destas. Eu posso formar ideias sobre o que é necessário; se posso, por que me perturbar? O que há fora de meu intelecto absolutamente não existe em relação ao meu intelecto. Aprende esse princípio e estás de pé. És capaz de reviver; vê de novo as coisas como as vias; nisso consiste o reviver. 3. Vão açodamento pelas pompas; encenação de dramas; rebanhos; manadas; corpos varados de lanças; ossos atirados a cães; migalhas de pão deitadas em viveiro de peixes; azáfama de formigas carregando os seus fardos; correria de camundongos espavoridos; bonecos movidos por cordéis. . . Cumpre, pois, suportar tudo isso com benevolência, sem refugar, advertindo, todavia, que cada qual vale tanto quanto vale o alvo de seus esforços. 4. É mister acompanhar o que se diz, palavra por palavra, e, de cada impulso, o resultado. Neste caso, ver o escopo visado; naquele, atentar no significado. 5. Basta a minha inteligência para isto, ou não? Se basta, sirvo-me dela no trabalho como dum instrumento fornecido pela natureza universal; senão, ou passo a tarefa a quem possa desincumbir-se melhor, se não convier doutra forma, ou executo-a como possa, tomando como colaborador quem for capaz de realizar, com ajuda do meu guia, o que, neste momento, for oportuno e útil à comunidade. Tudo quanto eu fizer, quer por mim mesmo, quer com ajuda alheia, deve tender a um objetivo único: o que é útil e ajustado à comunidade. 6. Quantos homens celebrados em hinos já caíram no esquecimento! Quantos, que os celebravam, partiram há muito! 7. Não te acanhes de receber auxílio; tens que cumprir a missão determinada, como o soldado no assalto à muralha. Como farias, se tu, coxeando, não pudesses galgar as ameias sozinho, mas fosse possível fazê-lo com ajuda? 8. Não te inquiete o futuro; a ele chegarás, se for preciso, levando a mesma razão de que ora te vales nas questões presentes. 9. Todas as coisas estão entretecidas; seus laços são sagrados, e, a bem dizer, não há uma estranha a outra; estão coordenadas e, juntas, compõem a ordem do próprio mundo. O mundo é único, composto de todas as coisas; única a divindade, disseminada por todas as coisas; única a substância; única a lei; comum a razão de todos os viventes inteligentes; única a verdade,posto que única a perfeição dos seres da mesma espécie e dos viventes que compartilham a mesma razão. 10. Tudo que é material se esvaece rapidamente na substância universal; toda causa é rapidamente recolhida na razão do universo e a memória de cada um sepulta-se rapidamente na eternidade. 11. No vivente racional, ato natural e ato racional é tudo um. 12. Ou direito, ou em vias de endireitar-se. 13. O que são os membros do corpo nos seres unos são, nos seres distintos, as faculdades racionais, constituídas para uma atuação conjunta e única. A compreensão disso te será mais óbvia se disseres a ti mesmo amiúde: "Sou um membro do corpo formado pelos seres racionais". Mas se, trocadas as letras, disseres que és uma parte, ainda não amas de coração a Humanidade, ainda não te alegra evidentemente o bem fazer; ainda o praticas como uma simples obrigação, não como um benefício para ti mesmo. 14. Que suceda o acidente de origem externa que quiser aos seres capazes de sofrer suas consequências. Tais seres que se queixem, se quiserem, de tais acidentes; de minha parte, basta que não julgue um mal o sucedido, já não sofri dano; e posso não o julgar. 15. Façam o que fizerem, digam o que disserem, eu tenho de ser bom; é como se o ouro, a esmeralda ou a púrpura vivessem repetindo: "Façam o que fizerem, digam o que disserem, eu tenho de ser esmeralda e ter a minha cor própria". 16. Meu guia não se molesta a si mesmo; quero dizer, não cria para si temores a seu talante. Se alguém mais pode causar-lhe temores e aflições, que o faça; ele a si mesmo, por suas opiniões, não se lança em tais vicissitudes. Cuide o corpo por si de não sofrer nada, se puder; se sofrer, que o diga. A alma, quando tentam assustá-la, afligi-la, basta, em suma, que forme juízo a esse respeito e nada há de sofrer; ela não está obrigada a admiti-lo. O guia, no que dele depende, não tem precisões, salvo se criar para si alguma necessidade; por isso mesmo está livre de perturbações e embaraços, a menos que a si próprio perturbe e embarace. 17. Felicidade é um bom deus tutelar ou um bom. . . Que fazes aqui, ó imaginação? Vai-te, pelos deuses te peço, como vieste; não preciso de ti. Vieste por um velho hábito. Não me agasto contigo; apenas, vai-te. 18. As mudanças assustam? Mas pode alguma coisa ocorrer sem que haja mudança? Que há de mais caro e familiar à natureza universal? Tu próprio podes tomar banho sem que a lenha seja transformada? Podes comer sem que sejam transformados os alimentos? Pode-se realizar alguma outra ação útil sem transformação? Não vês, então, que as mudanças em ti mesmo são fatos semelhantes e semelhantemente necessários à natureza universal? 19. Todos os corpos passam na substância do universo como numa torrente, unificados com o todo e com ele colaborando, como nossos membros uns com os outros. Quantos Crisipos, quantos Sócrates, quantos Epictetos já não tragou a eternidade! O mesmo pensamento te ocorra a respeito de todo e qualquer homem ou coisa. 20. Tenho só uma preocupação; o temor de fazer o que a constituição do homem não consente, ou da maneira que ela não consente, ou o que ela não consente neste momento. 21. Perto estás de esquecer tudo e de ser esquecido de todos. 22. É próprio do homem amar até os que o magoam. Isso conseguirás se te ocorrer a lembrança de que são teus parentes; que erram por ignorância e sem querer; que, dentro em pouco, tu e eles estareis mortos e, sobretudo, que não te causaram dano, pois ao teu guia não tornaram inferior ao que era antes. 23. Da substância universal, como duma cera, a natureza universal plasma agora um cavalo, depois o derrete e usa a sua matéria para uma plantinha, em seguida para um homúnculo, depois para outra coisa. Cada uma dessas formas subsistiu por um rápido momento. Para o escrínio nada há de terrível em ser desfeito, como nada havia em ser formado. 24. Um rosto irado é por demais contrário à natureza. Quando frequente, a beleza do rosto fenece ou por fim se apaga de tal maneira que lhe é absolutamente impossível reacender-se. Este ponto é que deves tentar compreender: que é contrário à razão, pois, se a consciência do erro se vai, qual o motivo de continuar vivendo? 25. A natureza que rege o universo mudará num instante tudo quanto vês, de sua substância criará outros seres e, depois, da substância destes, ainda outros, para que o mundo esteja sempre novo. 26. Quando alguém falta para contigo, pensa imediatamente que ideia do bem ou do mal o levou a cometer a falta; quando o tiveres verificado, passarás a ter pena dele e não sentirás surpresa nem cólera. Com efeito, ou tu mesmo continuarás pensando sobre o bem de maneira igual ou semelhante e, portanto, deves perdoar-lhe, ou já não formas ideias iguais sobre o bem e o mal e mais fácil te será a complacência para com o seu engano. 27. Não considerar presentes as coisas ausentes; das presentes, computar as que são mais propícias e, por isso, imaginar como seriam procuradas, se não estivessem presentes. Ao mesmo tempo, contudo, toma cautela para não te acostumares, pela satisfação que experimentas, a dar-lhes tão subido valor que sua falta eventual possa conturbar-te. 28. Recolhe-te em ti mesmo; o guia da razão, por sua natureza, a si mesmo se basta quando pratica a justiça e por isso mesmo desfruta de calma. 29. Apaga a imaginação. Para o jogo de títeres. Circunscreve o momento presente. Toma conhecimento do que acontece a ti ou a outrem. Separa e divide o objeto considerado em causa formal e material. Reflete sobre a hora derradeira. O pecado de fulano, deixa-o lá onde foi cometido. 30. Compara, lado a lado, o pensamento e a expressão. Mergulha a mente nos efeitos e suas causas. 31. Exorna-te com a simplicidade, com o decoro e com a indiferença a quanto está situado entre a virtude e o vício. Ama o gênero humano. Toma um deus como teu guia. Fulano afirma que tudo é convencional e, na realidade, só os elementos existem. Basta, porém, lembrar que tudo se comporta como convencional; pouco já é demais. 32. Sobre a morte: ou é dispersão, se somos átomos; se somos um todo uno, ou extinção ou transmigração. 33. Sobre a dor: o que é insuportável mata; o que dura é suportável. A inteligência, retraindo-se, conserva a sua serenidade e o guia não sofre dano. As partes maltratadas pela dor, se o puderem, que se manifestem sobre ela. 34. Sobre a glória: verifica os pensamentos deles, quais são, do que fogem, o que perseguem. E mais, que assim como os montes de areia, à medida que uns se depositam sobre os outros vão escondendo os primeiros, assim na vida as camadas precedentes são logo encobertas pelas que vêm depois. 35. "A uma inteligência dotada de altivez e duma visão total do tempo e da substância, crês acaso que a vida do homem se afigure valiosa? — Impossível, disse ele. — Portanto, a uma pessoa assim tampouco parecerá terrível a morte? — Absolutamente não." 36. "É próprio dos reis fazerem o bem e serem malsinados." 37. É uma vergonha que o rosto se preste docilmente a moldar-se e compor-se ao mando da inteligência e esta a si mesma não se molde e componha. 38. "Não adianta agastar-se com as coisas; elas não fazem caso nenhum." 39. "Oxalá dês alegrias aos deuses imortais e a nós." 40. "Segar a vida como espiga rica de grãos, e que um viva e o outro não." 41. "Se os deuses se descuidaram de mim e de meus filhos, isso também tem sua razão." 42. "Comigo estão o bem e a justiça." 43. Não tomar parte em seus lamentos e convulsões. 44. "Eu lhe daria esta resposta justa: Estás enganado, homem, se cuidas que um varão de algum préstimo deve pesar as possibilidades de vida e morte, em vez de considerar apenas este aspecto de seus atos: se o que faz é justo ou injusto, de homem de brio ou covarde." 45. "A verdade, atenienses, é esta: quando a gente ocupa um posto, seja por o considerar o melhor, seja porque tal foi a ordem do comandante, aí, na minha opinião, deve permanecer diante dos perigos, sem pesar o risco de morte ou qualquer outro, salvo o da desonra." 46. "Mas, meu caro, vê lá se a nobreza e o bem não diferem de salvar do perigo outras pessoas e a própria; essa preocupação de quantos anos viver, um homem deveras homem deve pô-la de lado, em vez de apegar-se à vida; deve confiar esse cuidado à divindade, crer nas mulheres quando dizem que ninguém escapa à sua sina e examinar o corolário, isto é, qual a maneira mais digna de viver esse tempo que vai viver." 47. Observa o curso dos astros como se os acompanhasses no giro e reflete assiduamente nas mútuas conversões dos elementos. Esses pensamentos lavam a impureza da vida terrena. 48. Bela esta reflexão de Platão. Por certo, quem discorre sobre a Humanidade deve examinar também o que há sobre a terra, como se a contemplasse do alto duma elevação: rebanhos, exércitos, lavouras, casamentos, divórcios, nascimentos, mortes, vozearia dos tribunais, regiões desertas, diversidade de povos bárbaros, festas, lutos, feiras, a mixórdia e a boa ordem formada dos contrários. 49. Revendo o passado e as múltiplas transformações do que existe no presente, podemos antecipar a contemplação do futuro, pois será absolutamente semelhante e incapaz de sair do ritmo dos fatos atuais. Daí, tanto faz estudar a vida humana por quarenta anos como por dez milênios. Com efeito, o que verás a mais? 50. "E o que da terra nasceu à terra volta; o que brotou dum germe do éter, à abóbada celeste." Em outras palavras: o desmanchar dos entretecimentos existentes, em átomos, e uma dispersão análoga dos elementos impassíveis. 51. Também: "Vão desviando o curso do tempo com alimentos, bebidas, e sortilégios, a fim de não morrer". — "O vento que os deuses desencadeiam, temos de suportá-lo entre sofrimentos, sem queixas." 52. Melhor na luta, sim, porém não mais votado ao bem comum, nem mais discreto, nem mais disciplinado em face dos acontecimentos, nem mais indulgente para com os enganos do próximo. 53. Quando se pode desempenhar um mister segundo a razão comum dos deuses e dos homens, nada há que temer, pois quando podemos ser úteis graças a uma atividade próspera, desenvolvida de acordo com a nossa constituição, então nenhum dano é de recear. 54. Em toda parte e continuamente de ti depende dar bom acolhimento, em respeito aos deuses, às conjunturas presentes, tratar com justiça os homens presentes e esmerar-te no pensamento presente para que nele nada se insinue que não compreendas. 55. Não distraias a tua atenção para veres os guias alheios, mas atenta diretamente para este ponto: para onde te encaminham não só a natureza universal, por meio do que te acontece, como também a tua, por meio das tarefas que te impõe? Da constituição de cada um decorre o seu mister; ora, os demais seres foram constituídos em vista dos racionais e, em todos os outros casos, os seres inferiores o foram em vista dos superiores, e os racionais em vista uns dos outros. Na constituição do homem predomina a sociabilidade. Em segundo lugar vem a não sujeição às paixões corpóreas, que é próprio do movimento da razão e da inteligência circunscrever-se e não se deixar vencer quer pelo movimento dos sentidos, quer pelo dos instintos; com efeito, um e outro são de natureza animal, enquanto o intelectual quer primar e não ser submetido àqueles. E com razão, pois é de sua natureza servir-se de ambos. Em terceiro lugar, na constituição racional, vem o dom de não precipitar os juízos e não se deixar embair. Que o teu guia siga por um caminho direto, firmado nesses dotes, e terá o que lhe pertence. 56. Deves viver conforme a natureza o tempo excedente que te resta, como se já estivesses morto, terminada aqui tua vida. 57. Preza apenas o que te acontece, urdido na trama do teu destino. Que se ajusta melhor a ti? 58. A cada evento, tem diante dos olhos aqueles a quem sucedeu o mesmo e, sofrendo, agastados e surpresos, reclamavam. Onde estão eles agora? Em parte alguma. E então? Queres imitá-los? Não queres deixar as vicissitudes alheias a seus causadores e vítimas, e empregar todos os teus esforços em como tirar proveito delas? Tirarás, com efeito, excelente proveito e será matéria tua, se te aplicares, com decisão, a ser bom em tudo o que fazes e tiveres presentes estes dois princípios: que é indiferente o momento da ação. . . 59. Cava fundo; no fundo está a fonte do bem, capaz de jorrar perenemente, basta que não pares de cavar. 60. Cumpre que o corpo também esteja firme e não descaia para um e outro lado, quer quando em movimento, quer quando em repouso. O mesmo que a inteligência faz ao rosto, mantendo-o constantemente composto e de nobre aspecto, deve-se exigir do corpo todo. Deve-se manter tudo isso sob vigilância, com naturalidade. 61. A arte de viver é mais semelhante à luta que à dança em nos mantermos eretos e preparados para os acontecimentos imprevistos. 62. Reflete assiduamente em quem são as pessoas cujo testemunho desejas e quais os seus guias; assim não te queixarás dos que erram sem querer, nem precisarás de seu testemunho quando olhares para as fontes de suas opiniões e impulsos. 63. É sem querer, diz ele, que toda alma se priva da verdade; igualmente, portanto, da justiça, da temperança, da benevolência e de toda virtude. É sumamente necessário te lembres disso continuamente; serás assim mais brando para com todos. 64. A cada sofrimento, lembra que não traz vergonha nem causa dano à inteligência que te rege, por que não a corrompe enquanto racional, nem enquanto social. Na maioria dos sofrimentos, ademais, acuda-te a máxima de Epicuro: a dor não é insuportável nem eterna, se te lembrares dos seus limites e não a ampliares com a imaginação. Lembra-te igualmente que muitas coisas aborrecidas, sem que o percebamos, são o mesmo que a dor, como a sonolência, o calor ardente e a falta de apetite. Por isso, quando passares por um desses dissabores, dize a ti mesmo que cedes a uma dor. 65. Toma cuidado para não sentires para com os misantropos o mesmo que os misantropos sentem para com a Humanidade. 66. Como saber se Telauges não tinha disposições melhores que as de Sócrates? Não basta haja Sócrates morrido de maneira mais gloriosa, discutido com os sofistas com maior sutileza, suportado melhor a vigília noturna sob a geada, demonstrado mais nobreza desatender à ordem de ir buscar o Salamínio, nem que caminhasse pelas ruas empertigado — sobre o que valeria bem a pena deter a atenção, se é que é verdade. O que cumpre investigar é que disposições de espírito tinha Sócrates, se podia contentar-se com ser justo para com os homens e piedoso para com os deuses, sem se agastar com os vícios daqueles, nem escravizar-se à ignorância de nenhum, nem receber com estranheza qualquer parcela de seu quinhão no conjunto, nem sofrê-la como intolerável, nem solidarizar sua inteligência com as paixões da carne. 67. A natureza não te fundiu na composição a ponto de não permitir que te estremes e possuas o que é teu. Ao homem é sumamente possível ser como um deus sem ser reconhecido de ninguém. Lembra-te sempre disso e igualmente que a vida feliz depende de mui pouco; por desesperares de ser competente na dialética e na física não é que hás de renunciar a ser livre, modesto, social e submisso à divindade. 68. Passa a tua vida a salvo de violências, na mais completa alegria do coração, ainda que todos clamem o que quiserem e as feras espostejem os pobres membros dessa massa que nutres em torno de ti. Realmente, que impede que, em meio a tudo isso, a tua mente se conserve calma, com discernimento correto do que a circunda e pronta a tirar proveito do que se lhe oferece? Desse modo, dirá o discernimento ao que depara: Tu, por tua essência, és isto, embora a opinião te apresente como outro. O aproveitamento dirá ao que depara: Eu estava à tua procura, pois o que me está à mão é sempre matéria de virtude racional e social e, em geral, de arte humana ou divina. Tudo quanto acontece à divindade ou ao homem se toma habitual e já não é novo nem difícil de manejar, mas conhecido e fácil de trabalhar. 69. É da perfeição moral passar cada dia como se fosse o último, sem comoções, nem torpores, nem fingimento. 70. Os deuses, que são imortais, não se amofinam por terem de suportar por tantos séculos, inevitável e constantemente, seres inferiores tais e tantos; ademais, zelam por eles de todas as maneiras. Tu, porém, descoroçoas, tu, que estás em vias de partir, e isso quando és um desses seres inferiores? 71. É cômico não fugir à própria maldade — o que é possível; e querer fugir à dos outros — o que é impossível. 72. A faculdade racional e social, com boas razões, considera inferior a si tudo quanto se lhe depara não inteligente nem social. 73. Quando tiveres a satisfação de prestar um benefício, e outrem a de tê-lo recebido, para que ainda procuras, como os insensatos, uma terceira, a de saberem que fizeste o bem ou a de receberes a paga? 74. Ninguém se cansa de receber ajuda. A ajuda é uma ação conforme com a natureza. Não te canses, pois, de recebê-la ao mesmo tempo que a dás. 75. Foi a natureza universal que decidiu formar o mundo. Logo, ou todo acontecimento se dá por via de consequência, ou são absurdos até os objetivos mais importantes a que se impele em especial o guia do mundo. A evocação desse pensamento te dará maior serenidade em muitas contingências. LIVRO VIII 1. Um dos fatos que contribuem para a despretensão é o de já não depender de ti o teres vivido toda a existência ou, pelo menos, desde a juventude, como filósofo; ao contrário; aos olhos de muitos outros e aos teus próprios, é evidente que andas longe da Filosofia. Estás, pois, desmentido e já não te é fácil granjear a fama de filósofo; até as bases se opõem. Se enxergas deveras onde reside a questão, desinteressa-te da fama e contenta-te com viveres como quer a natureza o resto de tua vida, dure o que durar. Procura entender o que ela quer e nada mais te aflija. Sabes por experiência, após quantos erros, que não deparaste a felicidade nenhures, nem nos silogismos, nem na riqueza, nem na glória, nem nos deleites, em nada. — Onde, pois, está? — Em realizar o que a natureza do homem reclama. — Como, então, realizá-lo? — Possuindo os princípios que regem os impulsos e as ações. — Que princípios? — Os do bem e do mal, quais sejam: nada é bom para o homem, se não o torna justo, temperante, viril, livre, e nada é mau, se não lhe infunde os vícios opostos às mencionadas virtudes. 2. A cada ação, pergunta a ti mesmo: Que efeitos terá para mim? Não me trará arrependimento? Em breve estarei morto e tudo haverá desaparecido. Se o que estou fazendo é de um ser inteligente, social e com regalias divinas, que mais procuro? 3. O que são Alexandre, Caio e Pompeu ao lado de Diógenes, Heráclito e Sócrates? Estes viram as coisas, suas causas, sua matéria, e tais conhecimentos eram os seus guias; naqueles, porém, a ignorância de quantos fatos! A sujeição a quantos amos! 4. Ainda que arrebentes, nem por isso deixarão de fazer o que fazem. 5. Em primeiro lugar, não te perturbes; tudo obedece à natureza do universo e em breve não serás ninguém em parte alguma, como Adriano e Augusto. Depois, olhos postos em teu mister, observa-o e, lembrado da obrigação de seres um homem bom e do que a natureza humana reclama, cumpre-o sem desvios e tal como te parece justo; apenas, faze-o de bom grado, com modéstia e sinceridade. 6. O mister da natureza universal é transpor para lá o que está aqui, transformá-lo, erguê-lo dali e levá-lo para acolá. Tudo são mudanças, mas não há razão de se temerem novidades; tudo é corriqueiro e, ademais, os quinhões se equivalem. 7. Toda natureza satisfaz-se com seguir bem o seu caminho. A natureza racional segue bem o seu caminho quando, nos pensamentos, não assente ao falso e ao dúbio; nos impulsos, tende apenas para as obras do bem comum; nos desejos e aversões, atém-se ao que depende de nos, acatando de bom grado tudo que a natureza comum lhe atribui. Porque ela é uma parte desta, como a natureza da folha o é da natureza da planta. A diferença está em que, no caso da folha, sua natureza é parte duma natureza desprovida de sentidos e de razão, possível de ser empecida, enquanto a do homem é parte duma natureza sem empecilhos, inteligente e justo, que atribui a cada qual segundo o mérito equitativas parcelas de tempo, substância, causa, energia e acidentes. Examina, pois, não se vais encontrar igualdade nos quinhões ponto por ponto, mas sim no confronto da soma de tudo que é de um com a reunião do que é de outro. 8. Não podes ler. Mas podes refrear os excessos; podes suplantar os prazeres e dores; podes alçar-te acima da glória vã; podes não te irritar com os insensíveis e ingratos e, de sobejo, zelar por eles. 9. Que ninguém te ouça mais lastimar a vida na corte, nem tu mesmo. 10. O arrependimento é como uma repreensão a si mesmo por ter negligenciado algo útil. O bem é necessariamente alguma coisa útil e o homem bom deve dedicar-se a ele. Nenhum homem de bem se arrependeria de ter negligenciado um prazer; logo, o prazer não é nem útil, nem um bem. 11. Que é isto em si mesmo, pela sua própria constituição? Qual é sua substância e sua matéria? Qual a causa formal? Que faz no mundo? Quanto tempo dura? 12. Quando te custa despertar do sono, lembra-te de que conforme à tua constituição e à natureza humana é prestar serviços à comunidade, enquanto o dormir é comum também aos viventes irracionais; o que é conforme à natureza de cada um lhe é mais adequado, mais natural e, portanto, também mais agradável. 13. Constantemente e, se possível, a cada ideia, aplica a ciência da natureza, a das paixões, a dialética. 14. Quando deparas seja quem for, dize logo a ti mesmo: Que princípios sobre o bem e o mal segue esse homem? Com efeito, se segue tais e tais princípios sobre o prazer, a dor, as causas desta e daquele, bem como sobre a glória, a obscuridade, a morte e a vida, não acharei esquisito ou estranho que pratique determinados atos e lembrar-me-ei de que tem de proceder necessariamente assim. 15. Lembra-te de que fica tão mal estranhar que a figueira dê figos, como que o mundo dê os frutos de que é produtor. Igualmente ao médico e ao piloto fica mal estranharem que alguém tenha febre ou que um vento sopre contrário. 16. Lembra-te de que mudar de opinião e seguir a quem te corrige são igualmente atos livres, pois é atividade tua, desenvolvida de acordo com um impulso ou julgamento teu e naturalmente também de acordo com a tua inteligência. 17. Se depende de ti, por que o fazes? Se de outrem, a quem inculpas? Os átomos? Os deuses? Em ambos os casos, ê insensatez. A ninguém deves culpar, pois, se podes, corrige-o; se a ele não podes, corrige ao menos o fato; se este tampouco, que adianta ainda queixares-te? Nada se deve fazer sem propósito. 18. Aquilo que morre não cai fora do mundo. Se aqui fica, aqui também se transforma e se decompõe nos elementos próprios, que são os do mundo e os teus. Os elementos mesmo se trans formam e não resmungam. 19. O cavalo, a vinha, cada ser nasceu para um fim. Do que te admiras? O sol também, dirá, para algum fim nasceu, bem como os outros deuses. Tu, pois, para que nasceste? Para o prazer? Vê se essa concepção resiste. 20. A natureza de cada um tem em mira não menos o seu fim que o seu começo e o decurso de sua vida; é como quem atira a bola. Que bem há para a bola em subir, ou que mal em descer e mesmo em cair? Que bem há para a bolha em ser formada ou que mal em ser desfeita? Iguais perguntas sobre a candeia. 21. Dá-lhe uma volta e vê o que é, o que fica com a velhice, com a doença, com a prostituição. Efêmero é tanto quem louva como o louvado, tanto quem lembra como o lembrado; ademais, num canto desta parte do mundo! Mesmo aí nem todos concordam; nem sequer concorda alguém consigo mesmo, e a terra toda não passa dum ponto! 22. Atenta no objeto, ou na atividade, ou no preceito, ou no significado. Sofres o que mereces, mas preferes ser bom amanhã a sê-lo hoje. 23. Faço alguma coisa? Faço-a tendo em vista o bem da Humanidade. Acontece-me alguma coisa? Acolho-a tendo em vista os deuses e a fonte de tudo, desde a qual se enovela tudo que ocorre. 24. Tal como vês o banho — óleo, suor, sujeira, água viscosa, tudo asqueroso —, tal é toda parte da vida e todo objeto deparado. 25. Lucila pranteou Vero; depois foi a vez de Lucila; Secunda, Máximo; depois a vez de Secunda; Epitincano, Diotimo; depois a vez de Epitincano; Antonino, Faustina; depois, a vez de Antonino. Assim é tudo. Céler, Adriano; depois, a vez de Céler. Aqueles célebres pela sutileza, ou pelas previsões, ou pela ufania, onde estão? (Sutis são, por exemplo, Córax, Demétrio Platônico, Eudêmon e outros como eles.) Tudo efêmero, morto há muito; vários nem por pouco tempo lembrados; outros convertidos em lenda e outros lendas já extintas. Lembra-te, pois, disto: necessariamente se dispersará o composto que és, o teu alento se extinguirá, transmigrará e se localizará alhures. 26. A alegria do homem consiste em fazer o que é próprio de homem. Próprio de homem é querer bem ao seu semelhante, desprezar as comoções dos sentidos, distinguir as ideias fidedignas, contemplar a natureza do universo e os acontecimentos conformes com ela. 27. Três ordens de relações: uma com o estojo que nos reveste; outra com a causa divina, origem de tudo que a todos acontece; e outra com os conviventes. 28. A dor ou é um mal para o corpo — portanto, ele que se manifeste — ou para a alma; mas esta pode preservar sua própria serenidade e calma, não admitindo que seja um mal. Com efeito, todo juízo, impulso, desejo ou aversão estão no âmago e nada penetra até lá. 29. Apaga as fantasias dizendo a ti mesmo continuamente: Depende de mim neste momento que nesta alma não haja maldade alguma, desejo algum, em síntese, perturbação alguma; ao invés, vendo tudo como é, trato cada coisa segundo o seu valor. Lembra-te dessa faculdade que tens segundo a natureza. 30. Falar, quer no Senado, quer na presença de quem for, com apuro e clareza; usar uma linguagem sã. 31. Corte de Augusto: esposa, filha, netos, ascendentes, irmã, Agripa, parentes, familiares, amigos, Areu, Mecenas, médicos, sacrificadores. A morte de toda a corte. Passa depois às outras não a morte de cada homem, por exemplo a dos Pompeus. Leva em conta igualmente aquela inscrição dos túmulos: Último de sua linhagem. Quanto se afligiram os seus antepassados para deixar após si um herdeiro e, afinal, era fatal que algum fosse o último! Novamente, aqui, a morte de toda uma linhagem. 32. Deves organizar tua vida ato por ato e dar-te por satisfeito se cada um deles alcança o seu fim tanto quanto possível; ninguém pode impedir que leves cada ato a alcançar o seu fim. — Mas surgirão obstáculos de fora. — Nenhum, pelo menos, que te impeça a justiça, a temperança, a prudência. — Mas talvez me impeça alguma outra atividade. — Talvez; porém, com a boa acolhida ao obstáculo mesmo e com a sábia mudança para uma atividade não obstada, a primeira ação é imediatamente substituída por outra, que quadra à organização a que aludi. 33. Ganhar sem orgulho e perder com abnegação. 34. Viste alguma vez uma mão amputada, ou um pé, ou uma cabeça decepada, caída algures longe do resto do corpo? Mais ou menos isso faz de si, quanto dele depende, quem, recusando os acontecimentos, se desmembra do bem comum ou age contra ele. Estás expulso da unidade natural, pois nasceste como parte dela e agora tu mesmo te amputaste. Mas o admirável nisto é que te podes reintegrar. A divindade não concedeu a nenhuma outra parte o privilégio de voltar a juntar-se depois de se haver separado e amputado. Considera, pois, a benignidade com que ela distinguiu o homem, deixando ao seu arbítrio não só o não se arrancar absolutamente do todo mas também o retornar depois de arrancado, reincorporando-se e retomando o seu lugar de parte. 35. Assim como a natureza dos racionais deu a cada um dos seres racionais as demais faculdades, assim também dela recebemos a seguinte: da mesma forma que ela converte, entrosa na ordem de seu destino, integra em si mesma como parte tudo que a obsta e contraria, assim também o vivente racional pode mudar todo empecilho em material seu e utilizá-lo, seja qual for o desígnio primitivo. 36. Que não te transtornem as conjeturas sobre o desenrolar de tua vida. Não imagines em conjunto quais e quantas canseiras é de crer te sobrevenham, mas, a cada uma que surge, pergunta a ti mesmo: Que de insuportável e intolerável há nesse trabalho? Terás vergonha de confessá-lo. Em seguida, recorda que não é tampouco o passado que te aflige, mas sempre o presente. E este se apouca, desde que o isoles e desmintas a tua inteligência de que não pode arrostá-lo só. 37. Acaso Pantéia ou Pérgamo estão agora sentados junto ao esquife de Vero? — E daí? — E Cábrias ou Diotimo junto ao de Adriano? — Ridículo! E daí? — Se estivessem ali sentados, haveriam estes de notá-lo? — E daí? — Se o notassem, haveriam de gostar? — E daí? — Se gostassem, haveriam aqueles de ser imortais? Não estava assim determinado, que deviam primeiro envelhecer e depois morrer? O que, pois, iam aqueles outros fazer mais tarde, quando estes morressem? Bodum tudo isso, odre cheio de lama de sangue. 38. Se tens vista aguda, olha e julga com o ânimo mais sábio. 39. Virtude sublevada contra a justiça não vejo na constituição do vivente racional; contra o prazer, vejo a temperança. 40. Se suprimires tua opinião sobre o que aparentemente te aflige, tu mesmo te colocas na máxima segurança. — A quem te referes? — À tua razão. — Mas eu não sou a razão. — Bem; então, que tua razão não aflija a si mesma; se outra coisa está mal em ti que forme opinião sobre si mesma. 41. Um empecilho à sensação é um mal para uma natureza animal; um empecilho ao instinto é igualmente um mal para uma natureza animal. Existe alguma outra coisa igualmente empecilho e mal para a constituição vegetal. Da mesma forma, portanto, um empecilho da inteligência será um mal para uma natureza inteligente. Transpõe isso tudo para o teu caso. Toca-te uma dor, um prazer? Que a sensibilidade se encarregue. Um obstáculo se opôs a um impulso? Se te entregaste sem reserva ao impulso, então é um mal enquanto és ser racional; se, porém, eximiste a inteligência, já não sofreste dano nem impedimento. Ao que é próprio da inteligência, nenhum outro ente sói empecer; não a toca o fogo, nem o ferro, nem o tirano, nem a calúnia, nada de nada; uma vez tornada esfera perfeita, assim fica? 42. Não tenho o direito de magoar a mim mesmo, pois jamais magoei a outrem por querer. 43. Cada qual tem o seu deleite. O meu é quando o meu guia goza de bem-estar, sem aversão a nenhuma pessoa ou a nenhum dos acontecimentos que ocorrem aos homens, tudo vendo com olhos benevolentes, dando a cada coisa boa acolhida e tratando-a pelo que vale. 44. Concede a ti mesmo este momento presente. Quem aspira de preferência à celebridade no futuro não leva em conta que os homens de então hão de ser tais quais os de agora, que mal suporta; aqueles também serão mortais. Que te importa, em suma, que eles façam eco a tais ou quais vozes ou tenham tal ou qual opinião a teu respeito? 45. Toma-me e atira-me onde quiseres; ali manterei jovial o meu deus, isto é, satisfeito de encontrar-se e agir da maneira que convém à sua própria constituição. Isto merece, acaso, que, por sua causa, minha alma sofra e se rebaixe, humilhada, prostrada, submersa, amedrontada? E o que acharás que valha tanto? 46. A homem nenhum pode suceder nada que não seja contingência humana; nem ao boi, que não seja de boi; nem à vinha, que não seja de vinha; nem à pedra, que não seja próprio de pedra. Se, pois, a cada qual acontece o que lhe é costumeiro e natural, por que te agastares? A natureza comum nada trouxe de insuportável para ti. 47. Se uma causa exterior te magoa, não é ela que te molesta, mas o juízo que dela fazes. Está em tuas mãos apagá-lo prontamente. Se alguma das tuas próprias disposições te aflige, quem impede que retifiques o teu critério? Igualmente, se te pesa de não realizares determinado propósito que te parece são, por que não o realizas em vez de te afligires? — É que um obstáculo mais forte se opõe. — Então, não te aflijas, pois não é tua a culpa de não o realizares. — Mas não vale a pena viver sem que se realize. — Então, deixa a vida de bom grado, tal como morre também quem realiza, mas sem rancor aos obstáculos. 48. Lembra-te de que o guia se torna inexpugnável quando, recolhido em si, contenta-se de não fazer o que não quer, mesmo quando se põe em guarda sem raciocínios. Que será quando, cercado de precauções e raciocínios, formar juízo de alguma coisa? Por isso a inteligência isenta de paixões é uma fortaleza; o homem não tem abrigo mais fortificado onde se refugie e se livre, para o futuro, de cair prisioneiro. Quem não o viu é um ignorante; quem viu e não se refugiou, um infeliz. 49. Não digas a ti mesmo nada em acréscimo ao que revelam as ideias que se apresentam. Comunicaram-te que fulano fala mal de ti. Comunicaram isso; que ficasses prejudicado não comunicaram. Vejo que o filho está doente. Vejo-o; mas que esteja em perigo não vejo. Fica, pois, assim, sempre nas primeiras ideias, sem ajuntar nada de teu, e nada te acontece. Antes, ajunta que reconheces cada um dos fatos que ocorrem no mundo. 50. O pepino amarga? Deixa-o. Há espinheiros no caminho? Esquiva-te. Basta. Não acrescentes a pergunta: Por que existem essas coisas no mundo? Aliás, rirá de ti o estudioso da natureza, como ririam o marceneiro e o sapateiro, se os repreendesses por veres em suas oficinas raspas e aparas de seus trabalhos. Em verdade, eles têm onde as despejar, enquanto a natureza universal não tem lugar fora; o admirável no seu mister é que, tendo traçado seus próprios limites, tudo quanto dentro deles parece estragado, velho e imprestável, ela o transmuda em si própria e dessas mesmas coisas de novo cria outras novas, e assim não precisa de substâncias estranhas nem de lugar onde despejar as podridões. Basta-lhe, portanto, seu próprio espaço, sua própria matéria, seu próprio engenho. 51. Não sejas vagaroso em teus atos, confuso em tuas conversas, errante em tuas ideias; não te encolhas duma vez em tua alma nem te projetes fora, nem passes a vida absorvido no trabalho. Matam-te, espostejam-te, perseguem-te com maldições? Que há nisso que impeça tua mente de conservar-se pura, sensata, prudente, justa? É como se alguém, parado junto duma fonte clara e doce, a insultasse: ela não deixaria de manar sua água boa de beber. Que lhe atire lama, estrume, que seja; ela prestes o dissolverá e lavará, sem tingir-se de modo algum. Como, pois, terás uma fonte inexaurível e não um poço? Cresce a todo momento em independência, com bondade, singeleza, recato. 52. Quem não sabe o que é o mundo não sabe onde está; quem não sabe para o que nasceu não sabe o que é, nem o que o mundo é. Quem negligenciou uma dessas noções não poderia dizer sequer para o que existe. Que te parece quem foge ou teme o louvor dos que o aplaudem, ou os que ignoram onde estão e o que são? 53. Queres ser louvado por um homem que se maldiz três vezes por hora? Queres agradar a um homem que de si mesmo não se agrada? Agrada-se de si mesmo quem se arrepende de quase tudo que faz? 54. Não te limites a respirar com os outros o ar circundante, mas doravante pensa em conjunto com a inteligência que tudo envolve; a força intelectiva está tão derramada em toda parte e tão distribuída a quem pode sorvê-la quanto o ar a quem o pode aspirar. 55. O vício não causa nenhum dano ao mundo em geral: em particular, não causa nenhum dano a outrem, mas só é prejudicial àquele a quem é facultado livrar-se dele tão cedo o queira. 56. O livre arbítrio de meu próximo é tão indiferente ao meu livre arbítrio quanto o seu espírito e a sua carne. Com efeito, embora tenhamos sido criados tanto quanto possível uns para os outros, cada um de nossos guias é senhor de si. Doutra forma, o vício do próximo haveria de ser mal meu, o que não houve por bem a divindade, para que não estivesse em poder de outrem causar a minha desventura. 57. A luz do sol parece despejada e está difundida por tudo; não, porém, esgotada; é que esse difundir é um prolongar. Sua luminosidade chama-se actínia pelo fato de se alongar. Podemos verificar o que vem a ser um raio de luz, quando observamos a do sol penetrar numa sala escura por uma abertura estreita; ela se alonga em linha reta e como que se apoia no primeiro objeto sólido que aparece barrando-lhe a passagem para o ar além; ali para, sem escorregar nem cair. Assim se deve a inteligência derramar e difundir, nunca se exaurindo, mas alongando-se, sem bater com violência ou ímpeto nos obstáculos apresentados, nem tampouco cair, mas parando e iluminando aquilo que a recebe. Por si mesmo se privará do brilho aquilo que não o refletir. 58. Quem teme a morte teme ou a ausência dos sentidos, ou sentir de outra maneira. Ora, ou não haverá mais sensação e tampouco sentirás nenhum mal, ou adquirirás sensibilidade de outra natureza e serás um vivente de outra espécie, não terás cessado de viver. 59. Os homens foram feitos uns para os outros; ensina-os, pois, ou suporta-os. 60. Dum modo voa a flecha, doutro a inteligência; mas não menos voa em linha reta e sobre o alvo a inteligência quando se previne e quando se detém no exame. 61. Penetra até o guia de cada um e deixa todos os outros penetrarem até o teu. LIVRO IX 1. Quem pratica injustiça comete impiedade. Como a natureza universal constituiu os viventes racionais uns em vista dos outros, para se ajudarem mutuamente segundo seu mérito e não se prejudicarem de modo nenhum, quem transgride esse decreto comete impiedade, evidentemente, perante a mais augusta das divindades. Também quem mente comete impiedade para com a mesma divindade; a natureza do universo é a natureza das realidades e as realidades têm parentesco com as coisas existentes. Ademais, ela se chama também Verdade e é a causa primeira de todas as verdades. Portanto, quem mente por querer comete impiedade, pois, enganando, pratica injustiça. Também quem o faz sem querer, na medida em que destoa da natureza universal e a desordena combatendo a natureza do mundo. Sim, combate-a quem, malgrado seu, é levado para o lado oposto à verdade; recebeu da natureza recursos, mas negligenciou-os e por isso é incapaz de discernir entre a verdade e a mentira. Igualmente comete impiedade quem procura os prazeres como bens e foge das dores como de males. Com efeito, pessoa que age assim há de necessariamente acusar amiúde a natureza comum de injustiça nos quinhões atribuídos aos biltres e aos honrados, porque muitas vezes os biltres gozam prazeres e conseguem aquilo que os produz, enquanto os honrados deparam o sofrimento e suas causas. Além disso, quem teme o sofrimento há de temer um dia algum dos eventos do mundo: já nisso há impiedade. Quem vai em busca de prazeres não se absterá da injustiça; aí está uma impiedade evidente. Há opostos a que a natureza comum é indiferente — e não teria criado uns e outros se não fosse indiferente a uns e outros; quanto a eles quem deseja seguir a natureza, afinando por ela os seus sentimentos, deve também sentir indiferença. Quem, pois, não é indiferente à dor e ao prazer, à morte e à vida, à glória e à obscuridade, que a natureza universal trata com indiferença, comete, é claro, impiedade. Dizer que a natureza comum os trata com indiferença é como dizer que eles acontecem indiferentemente, decorrendo dos fatos e de suas consequências graças a um impulso inicial da Providência, pelo qual. a partir de certo momento, ela deu começo à presente organização do mundo, compondo determinadas razões das coisas futuras e separando certas forças geradoras de substâncias, transformações e sucessões como as de que se trata. 2. Seria mais próprio de pessoa culta partir dentre os homens sem ter provado o gosto da mentira, de toda simulação, sensualidade e orgulho; contudo, um roteiro de emergência é exalar o último alento enfastiado desses vícios. Acaso preferes apegar-te ao vício e ainda não te persuadiu a experiência a fugir dessa peste? Peste, com efeito, é a corrupção da inteligência muito mais do que uma análoga má composição e alteração do ar respirável em torno de nós. Esta é a peste para os viventes enquanto viventes; aquela, dos homens enquanto homens. 3. Não desprezes a morte; dá-lhe boa acolhida, como a uma das coisas que a natureza quer. A decomposição é em si mesma um fenômeno como a juventude, a velhice, o crescimento, a maturidade, o aparecimento dos dentes, da barba, das cãs, a fecundação, a gravidez, o parto e quantas outras operações naturais trazem as quadras da tua vida. Portanto, diante da morte, a atitude do homem que raciocina não é recebê-la com revolta, violência ou soberba, mas aguardá-la como uma das operações naturais. Como aguardas agora que o nascituro saia um dia do ventre de tua esposa, assim acolhe a hora em que tua alma escapará desse invólucro Se queres um preceito simples, que toque o coração, nada te conformará melhor com a morte do que examinar de que objetos te vais separar e com quais caracteres deixará de estar misturada tua alma. Não é absolutamente mister te desavenhas com eles, mas que zeles por eles e os suportes com brandura, não esquecendo, embora, que os homens que deixarás não cultivam os teus princípios. Com efeito, se algo te pode reter e prender à vida, seria apenas a concessão de conviveres com pessoas de princípios iguais. Vês, porém, quanto exaure a divergência de vistas no convívio, a ponto de dizeres: Oxalá mais cedo venhas, ó morte, para que eu não acabe por me esquecer de mim mesmo! 4. Quem peca contra si peca; quem comete injustiça a si agrava, porque a si mesmo perverte. 5. Muitas vezes comete injustiça quem omite, não apenas quem faz alguma coisa. 6. Basta o juízo evidente do momento, a ação de interesse social do momento, a disposição do momento, de bem acolher todo acontecimento produzido pela causa exterior. 7. Delir a imaginação; reprimir o impulso; apagar o desejo; dominar o guia. 8. Entre os viventes irracionais foi distribuída uma alma única; aos racionais foi partilhada uma alma inteligente única, como única é a terra de todos os seres terrenos, por uma luz única enxergamos e um ar único respiramos todos quantos temos vista e respiração. 9. Todos os seres que compartilham algo em comum anseiam por seus semelhantes. Tudo que é terreno pende para a terra; todo líquido conflui; igualmente o aeriforme, de sorte que é preciso recorrer a barragens e violência. O fogo tende a subir graças ao fogo elementar; tão pronto está a conflagrar com todo fogo daqui, que todo material um tanto mais seco é inflamável devido a menor grau de combinação com aquilo que impeça o acendimento. Desse modo, tudo que participa da natureza inteligente comum anseia, igualmente e até mais, por seus semelhantes. Quanto mais excele sobre os outros seres, tanto mais prontamente se mistura e confunde com o seu semelhante. Entre os irracionais não custa notar enxames, manadas, ninhadas e como que amores; porque neles já existem almas e se encontra no ser superior o instinto gregário intenso, qual não há nos vegetais, nem nas pedras e paus. Entre os viventes racionais verificam-se regimes políticos, amizades, famílias, reuniões, bem como, nas guerras, tratados e tréguas. Entre os seres ainda superiores, conquanto distantes, de certo modo subsiste uma união, por exemplo entre os astros. Assim, o esforço para ascender a grau mais elevado pode operar solidariedade mesmo em seres distantes. Observa, pois, o que ora sucede: apenas os seres inteligentes andam agora esquecidos da atração mútua e da tendência à união e somente neles não se vê confluência. Contudo, por mais que fujam, são detidos de todos os lados, pois pode mais a natureza; verás o que digo, se prestares atenção. Mais depressa se poderá achar um objeto de terra sem contato com nenhum objeto de terra do que um homem desligado da Humanidade. 10. O homem, a divindade, o mundo, dão fruto; na quadra própria cada qual dá fruto. Se o uso aplica o termo, no sentido próprio, à vinha e outras plantas, não importa; a razão dá um fruto, tanto comum como particular, do qual provêm outros semelhantes, de natureza igual à da razão mesma. 11. Se podes, corrige; senão, lembra-te de que para isso te foi dada a bondade. Os deuses mesmos são bondosos para com tais pessoas; ajudam-nas até na obtenção de alguns desejos, como o de saúde, riqueza, glória; tão bondosos são. Tu também o podes ser; senão, dize-me: quem to proíbe? 12. Trabalha, não como um coitado, nem como quem quer inspirar dó ou ser admirado; deseja, sim, apenas uma coisa: andar e parar como determinar a razão política. 13. Hoje saí de todos os embaraços; ou melhor, expulsei todos os embaraços; pois não se achavam fora de mim, mas cá dentro, nas opiniões. 14. Tudo isso é, na experiência, vulgar; na duração, efêmero; na matéria, grosseiro. Tudo hoje é tal qual era no tempo daqueles que sepultamos. 15. As coisas, por si mesmas, param do lado de fora, sem nada saberem de si e nada manifestarem. Quem se manifesta a respeito delas? O nosso guia. 16. O bem e o mal do ser racional e social não estão no que sente, mas no que faz, como sua virtude ou vício tampouco estão no que sente, mas no que faz. 17. Para a pedra atirada, cair não é um mal, nem subir um bem. 18. Penetra-os até o guia e verás que juízes temes e que juízes são de si mesmos! 19. Tudo está em transformação. Tu próprio estás numa alteração contínua e, em certo sentido, perecendo; todo o universo também. 20. O pecado de outrem cumpre deixá-lo onde está. 21. O fim da atividade, a cessação e como que morte dum impulso, duma opinião, não constituem nenhum mal. Passa agora às idades, ou seja, à infância, à adolescência, à juventude, à velhice; toda mudança desses estados também é morte. É de temer? Passa agora à vida com teu avô, com tua mãe e por fim com teu pai; achando aí outras muitas destruições, transformações e cessações, pergunta a ti mesmo se eram de temer. Assim, pois, tampouco o será o fim, a cessação, a transformação de toda a tua vida. 22. Penetra até o teu guia, até o do universo e o dessa pessoa; o teu, para criar nele uma mente justiceira; o do universo, para te lembrares de que todo és parte; o dessa pessoa, para saberes se é ignorância ou juízo formado e ao mesmo tempo levares em conta que é teu parente. 23. Assim como tu mesmo integras a comunidade social, assim integre toda ação tua a vida social. Ação tua sem relação, próxima ou remota, com o bem comum lacera a vida, impede que seja una, é sediciosa como quem numa república isolasse dessa espécie de sinfonia a sua parte individual. 24. Cóleras e brinquedos infantis, almas que carregam cadáveres, que nos trazem à lembrança, com mais vida, a Evocação dos Mortos. 25. Atenta na qualidade da causa formal e examina-a abstraída da causa material; em seguida, delimita também o tempo máximo que, por sua natureza, subsiste esta individualidade. 26. Sofreste milhares de penas por não te satisfazeres com que teu guia exerça o mister para que foi constituído. Basta, porém! 27. Quando outrem te censura ou odeia, ou quando clamam contra ti similares insultos, busca-lhes a alma, penetra e vê como são. Verás que é escusado te esfalfes por que tenham de ti uma opinião boa ou má. Não obstante, deves ser benevolente para com eles, por natureza teus amigos. Os próprios deuses ajudam-nos de todas as maneiras, por meio de sonhos, de oráculos, naquilo justamente por que eles se atormentam. 28. Os ciclos do mundo são esses, de alto a baixo, século após século. Ou a inteligência do universo age por um impulso em cada caso — e, se assim é, acolhe tu seu movimento; ou teve um impulso único, derivando o resto por via de consequência, e uma coisa contém a outra, pois de certo modo são átomos ou indivisos. Em suma, se há um Deus, tudo está bem; se reina o acaso, não obres tu ao acaso. Em pouco, a terra nos cobrirá a todos; depois, ela, por sua vez, se transformará e o resultado, por sua vez, se transformará indefinidamente e o novo resultado, por sua vez, se transformará indefinidamente. Quem considerar as vagas sucessivas de transformações e mudanças, bem como sua rapidez, desprezará tudo que é mortal. 29. A causa universal é uma torrente; tudo ela carrega. Quão vulgares esses estadistas anãos, que supõem praticar a Filosofia! Recheados de muco! Homem, que fazer? Faze o que agora a natureza requer. Começa, se deixam, e não olhes em tomo a ver se alguém o saberá. Não esperes a república de Platão; satisfaze-te com um progresso ainda que mínimo; considera que não é pouca coisa o resultado desse progresso. Quem lhes mudará um dos princípios? Sem mudança de princípios, que mais haverá, senão servidão de lamurientos a fingir que obedecem? Aduze Alexandre e Filipe, cita-me Demétrio de Falera. Eu os seguirei, caso tenham visto o que a natureza comum queria e o tenham ensinado a si mesmos; mas, se encenaram papéis, ninguém me condenou a imitá-los. A obra da Filosofia é singela e modesta; não me induzas a exibir grandezas. 30. Contemplar, do alto, rebanhos aos milhares, ritos aos milhares, barcos de todo gênero nas tempestades e nas calmas, diversidade de pessoas nascendo, convivendo, desaparecendo. Imagina também a vida que outros viveram outrora, a que se viverá depois de ti e a que se vive agora entre as nações bárbaras; quantos sequer sabem o teu nome, quantos logo o esquecerão, quantos ora te louvam e talvez em breve te maldigam; como não é digna de menção a memória, nem a glória, enfim, nada de nada. 31. Impassibilidade em face dos acontecimentos oriundos da causa exterior; justiça nas obras oriundas da causa que vem de ti; isto é, impulsos e atos confinados exclusivamente ao mister do bem comum, que isso é conforme com a tua natureza. 32. Podes eliminar muitas coisas supérfluas que te incomodam e subsistem inteiramente de tua opinião, e abrir a ti mesmo, daí por diante, largo espaço para abarcar com o pensamento o universo inteiro, para meditar sobre o tempo infinito e considerar a rápida transformação de cada coisa em particular, sobre quão breve o que vai do nascimento à dissolução, que infinito precedeu o nascimento e quão igualmente imenso o que vem após a dissolução. 33. Cedo estará destruído tudo que vês; as testemunhas da destruição, por sua vez, serão destruídas; quem morre em extrema velhice e o morto prematuro se acharão em situação idêntica. 34. Quais os guias dessa gente, o alvo de seus esforços, o móvel de seu afeto e sua estima? Imagina que estás vendo suas almas nuas. Quando supõem ferir com suas críticas ou servir com seus louvores, que pretensão! 35. A perda nada mais é que mudança. Nesta se compraz a natureza universal; segundo seus desígnios tudo com acerto se produz, se vem produzindo desde a eternidade sem variar de aspecto e se reproduzirá infinitamente em outros seres semelhantes. Qual a razão, pois, de dizeres que tudo saiu errado e que tudo sairá sempre errado e nenhum poder se encontrou jamais, entre tantos deuses, que venha a corrigi-lo, e que o mundo está condenado a afundar em misérias perpétuas? 36. A podridão da matéria que é substância de cada ser é água, pó, ossos, ranço; ou, ainda: calos da terra são os mármores; sedimentos, o ouro, a prata; pelos, as roupas, sangue, a púrpura, e assim tudo mais. O alento também é coisa da mesma sorte, que passa de um a outro desses estados. 37. Basta dessa existência lastimável, de resmungos, de macaquices. Por que te transtornas? Que há nisso de novo? O que te desvaira? A causa? Examina-a. A matéria? Examina-a. Fora delas nada existe. Mas torna-te, afinal, mais simples e melhor perante os deuses. Tanto faz observar isso durante um século como por três anos. 38. Se pecou, o mal é seu; quiçá não tenha pecado. 39. Ou tudo procede, como num só corpo, duma única fonte inteligente e a parte não deve queixar-se do que ocorre para o bem do todo, ou o que há são átomos, nada mais do que papas e dispersão. Por que, pois, te transtornas? Estás dizendo a teu guia: Estás morto, destruído; viraste uma fera, um comediante; entraste num rebanho, pastas. 40. Os deuses ou nada podem ou podem. Se não podem, por que rezas? Se podem, por que não lhes rogas a graça de não temer nem cobiçar nada disso, nem sofrer por nada disso, em vez de pedir que uma dessas coisas se te depare ou não depare? Afinal, se podem ajudar aos homens, podem ajudá-los também nesses pedidos. Dirás, talvez: "Os deuses deixaram isso nas minhas mãos". Então, não é melhor usares tuas forças com liberdade em vez de lutares com o que de ti não depende, com servidão e aviltamento? E quem te disse que os deuses não nos ajudam no que está em nossas mãos? Começa a orar por isso e verás. Fulano roga: "...que fulana me receba". Roga tu: "...que eu não deseje ser recebido por ela". Outro: "...que eu fique livre de beltrano". Tu: "...que eu não precise livrar-me dele". Outro: "...que eu não perca o meu filho". Tu: "...que eu não sinta o medo de perdê-lo". Em suma, passa a rezar assim e observa o resultado. 41. Conta Epicuro: "Na doença, meus assuntos não eram os sofrimentos físicos, nem conversava sobre doenças com as visitas; continuava nos meus estudos anteriores da natureza e aplicava-me em especial a esta questão: como a inteligência, embora envolvida em semelhantes agitações da carne, preserva, sem se perturbar, o seu bem próprio? Tampouco", prossegue, "dava azo aos médicos de se envaidecer da importância de seu mister, mas minha vida decorria feliz e digna". Que sintas como ele na doença, se adoeceres, e em qualquer circunstância. Não abandonar a Filosofia em nenhuma conjuntura, nem disparatar com leigos em pontos de ciência natural, são preceitos comuns a todas as seitas; atentar somente no que se está fazendo e no instrumento com que se faz. 42. Quando esbarrares com a impudência de alguém, pergunta logo a ti mesmo: Podia não haver impudentes no mundo? Não podia. Não reclames, portanto, o impossível; esse é um daqueles impudentes que há necessariamente no mundo. Recorre ao mesmo pensamento ao deparar um celerado, um desleal, um culpado do que for. Com a lembrança de que é impossível não existir essa espécie de gente, serás mais indulgente para com cada um. Eficaz, também, é pensar em qual virtude deu a natureza ao homem para suportar determinada falta, pois ela deu como antídoto da ingratidão a paciência e de outros vícios outras virtudes. Em suma, tens o direito de ensinar a quem se transvia; todo pecador é alguém que erra a meta e se transvia. Aliás, que mal te fez? Verificarás que, dentre as pessoas com quem te acerbas, nenhuma fez nada que redunde em detrimento de tua inteligência, e neste apenas consiste para ti todo mal e todo dano. Que de mau e estranho há em proceder o inculto como inculto? Vê se não deves recriminar antes a ti por não teres previsto que ele cometeria essa falta. A razão te dá elementos para entenderes provável que tal pessoa incorra em tal pecado; tu, não obstante, o esqueces e estranhas que o pratique. Sobretudo, quando te queixas dum desleal ou ingrato, volta os olhos para ti mesmo; evidentemente é culpa tua se acreditaste que um homem dessa índole manteria a palavra ou se, ao consideres uma mercê, o fizeste com reservas e com o intuito de recolher prontamente todo o fruto de teu próprio ato. Que mais queres quando fizeste o bem a uma pessoa? Não te basta haveres procedido conforme à tua natureza? Ainda procuras a recompensa? É como se os olhos reclamassem a paga de verem e os pés a de andarem. Assim como esses órgãos foram feitos para essas funções e alcançam o seu fim quando as desempenham segundo sua constituição própria, assim o homem, feito para a beneficência, quando pratica algum benefício ou apenas colabora num trabalho indiferente, desempenhou o mister para que foi constituído e alcançou o seu fim. LIVRO X 1. Serás, minha alma, algum dia boa, simples, una, nua, mais visível do que o corpo que te envolve? Provarás algum dia o sabor de sentimentos amoráveis e resignados? Estarás alguma vez saciada, sem precisão nem saudade, nem desejo de coisa alguma, animada ou inanimada, para desfrutar deleites? Nem de tempo para os desfrutar mais longamente, nem de lugar, nem de espaço, nem de clima propício, nem de boa harmonia das pessoas? Estarás satisfeita com a situação, contente com tudo que te acontece, convencida de que tudo vai bem para ti e é graça dos deuses, de que estará bem tudo que a eles apraz e tudo que hão de outorgar para a salvação do vivente perfeito, bom, belo, que gera, une, envolve e abraça tudo quanto se desfaz para o nascimento de outros seres iguais? Serás um dia tal que habites a mesma cidade que os deuses e os homens, sem deles te queixares nem lhes dares razão de queixa? 2. Observa o que a natureza exige de ti como de um ser só por ela governado; depois, cumpre-o e sê submisso para não vir tua natureza de vivente a sofrer detrimento em suas disposições. Em seguida, deves observar o que de ti exige a tua natureza de vivente e aceitá-lo integralmente, para não vir tua natureza de vivente racional a sofrer detrimento em suas disposições. Porém, o racional é desde logo social. Segue estas regras e não desperdices os teus esforços. 3. Todo acontecimento ocorre de maneira que tua natureza ou o suporte ou não. Se te acontece o que a tua natureza suporta, não te rebeles; suporta-o como a tua natureza pode. Se acontecer o que tua natureza não suporta, não te rebeles, porque tanto mais cedo te há de exaurir. Lembra-te, porém, de que tua natureza suporta tudo que de tua opinião depende tornar suportável e tolerável, bastando imaginares que é de tua conveniência ou de teu dever fazê-lo. 4. Se ele se engana, ensina-o com bondade e mostra-lhe o erro. Se não o podes, culpa a ti mesmo ou nem sequer a ti mesmo. 5. O que quer que te aconteça estava para ti preparado desde a eternidade, e a urdidura das causas desde o tempo infinito havia entretecido a tua substância com a sua ocorrência. 6. Quer sejam os átomos, quer seja a natureza, admita-se em primeiro lugar ser eu uma parte do todo regido pela natureza; depois, ter eu certo parentesco com as partes de igual origem. Lembrado disso, na minha qualidade de parte, não me hei de contrariar com nenhum quinhão do todo, pois nada prejudica uma parte, se convém ao todo. O todo, com efeito, nada tem que lhe não convenha; isso é comum a todas as naturezas, mas a do mundo goza ainda da vantagem de não ser forçada por nenhuma causa exterior a produzir nada que lhe seja nocivo. Lembrando-me de que sou uma parte de semelhante todo, acolherei de bom grado tudo que acontecer. Como sou de certo modo aparentado com as partes de igual origem, nada farei contrário à comunidade; antes, visarei ao bem de meus semelhantes, dirigirei todos os meus impulsos no sentido da conveniência comum e os desviarei do rumo oposto. Assim realizados esses propósitos, minha vida necessariamente correrá com felicidade, tal como se imaginaria o curso feliz da vida dum cidadão que, na sequência de seus atos, fosse útil aos concidadãos e saudasse de bom grado as partes que a cidade lhe distribuísse. 7. É fatal que se deteriorem as partes do todo, quero dizer, tudo que o mundo abrange; entenda-se no sentido de que se alterem. Mas, digo, se isso for para elas um mal inevitável, o todo não pode estar bem dirigido, uma vez que as partes caminham para a alteração e estão diversamente constituídas para a deterioração. Acaso a natureza empreendeu arruinar suas próprias partes, criando-as sujeitas a cair no mal e necessariamente inclinadas para o mal, ou não percebeu que assim acontecia? Não; ambas as hipóteses são incríveis. Se, dispensando a natureza, se interpretasse o fato pela constituição das coisas, que ridículo seria afirmar, de um lado, que as partes do todo estão constituídas para se transformar e admirar-se, de outro, indignar-se como se fosse um acontecimento fora do natural, principalmente quando a decomposição as resolve naqueles elementos de que cada qual é composta! Ou há uma dispersão dos elementos componentes, ou a transformação da parte sólida em terra e do alento em ar, para que também estes sejam recolhidos pela razão do universo, quer seja este consumido periodicamente pelo fogo, quer se renove por meio de mudanças perpétuas. Não penses que tua parte sólida e teu alento são os de quando nasceste; pois isso tudo se acresceu afluindo dos alimentos e do ar inalado a partir de ontem ou anteontem. É, pois, a massa adquirida que se transforma e não a que a mãe deu à luz. Supõe, ao contrário, que a esta estás estreitamente ligado pela individualidade, que nada significa, a meu ver, na tese que ora exponho. 8. Depois de teres atribuído a ti mesmo os qualificativos de bom, grave, veraz, prudente, cordato, altivo, cuidado para não mudares jamais de qualificativos e, se vieres a perder esses, regressa a eles depressa. Lembra-te de que prudente significa em ti a atenção minuciosa e cuidadosa a cada pormenor; cordato, a aceitação espontânea dos quinhões distribuídos pela natureza comum; altivo, a supremacia da parte pensante sobre as emoções brandas ou violentas da carne, sobre a glória vã, a morte, etc. Se te conservares nesses qualificativos sem anelar que tos atribuam as outras pessoas, serás outro e encetarás uma outra vida. O permaneceres tal qual tem sido até agora e te deixares nessa vida lacerar e conspurcar é próprio de indivíduo grosseiro e apegado à vida, parecido com aqueles lutadores semidevorados, que, embora cobertos de ferimento e de sangue, ainda assim pedem que os guardem até amanhã, para serem, como estão, atirados às mesmas garras e colmilhos. Monta, pois, nesses poucos qualificativos; se te puderes manter neles, mantém-te como se tivesses emigrado para umas Ilhas Afortunadas, se perceberes, porém, que estás caindo e já não dominas, aparta-te, animoso, para algum recanto onde possas dominar, ou então deixa definitivamente a vida, sem cólera, com singeleza, liberdade e modéstia, tendo realizado na vida pelo menos uma façanha, a de sair assim. Contudo, muito te ajudaria a lembrar-te dos qualificativos a lembrança dos deuses e a de que estes não querem ser adulados e sim que todos os seres racionais a eles se igualem, que a figueira faça o mister de figueira, o cão o de cão, a abelha o de abelha e o homem o de homem. 9. A farsa, a guerra, o terror, o torpor, a servidão, apagarão em ti, dia após dia, todos aqueles princípios sagrados que concebes no estudo da natureza e transmites. Deves, porém, tudo ver e fazer de tal maneira que, além de levar a cabo tuas volumosas tarefas, ponhas em prática a teoria, e preserves, despercebida, não oculta, a confiança emanada da ciência de cada questão. Quando te deleitarás com a singeleza? Quando com a circunspecção? Quando com o conhecimento de cada ser, do que é sua essência, que lugar ocupa no mundo, quanto tempo por sua natureza deve durar, de que elementos se compõe, quem o deve possuir, quem o pode dar e tomar? 10. Enfatua-se a aranha de ter caçado a mosca; este, de uma lebre; aquele, de uma anchova na rede: outro, de javardos; outro, de ursos; outro, de sármatas. Se investigarmos seus princípios, não são todos eles salteadores? 11. De que modo se transformam todas as coisas umas nas outras? Procura um método de investigá-lo, presta atenção constante e trata de exercitar-te nesse particular: nada contribui tanto para a elevação dos sentimentos. Despiu-se do corpo e advertindo que, dentro em pouco, terá de deixar tudo isto e partir dentre os homens, confiou-se todo à justiça no tocante a suas ações e à natureza universal no tocante aos outros acontecimentos. Do que dirão ou pensarão a seu respeito, ou do que farão contra ele, nem sequer cogitará, contentando-se com estes dois pontos: praticar a justiça no que está fazendo agora e acolher de bom grado o seu quinhão presente; deixou de lado todas as outras ocupações e fainas, e nada mais quer senão palmilhar a estrada direita da lei e seguir a divindade que palmilha a estrada direita. 12. Que necessidade há de conjeturas, quando podes examinar o que cumpre fazer e, se tudo abarcas com a vista, seguir nesse rumo de boa mente e sem olhar para trás? Se não abarcas, podes parar para ouvir os melhores conselheiros e, se a isso outras causas se opõem, prosseguir, atido ao que parecer mais justo à luz dos cálculos que fizeres com base nas conjunturas do momento. O mérito está em ser bem sucedido nesses cálculos, porque deles costuma vir o malogro, quem obedece à razão em tudo é alguém tranquilo, apesar de móbil; jovial, apesar de retraído. 13. Pergunta a ti mesmo, assim que despertas do sono: acaso te importa que outrem pratique a justiça e o bem? Não importa. Acaso esqueceste como procedem no leito e à mesa aqueles que elogiam ou censuram os outros com arrogância, o que fazem, o que evitam, o que buscam, o que furtam, o que roubam, não com as mãos e os pés, mas com sua parte mais nobre, aquela onde, quando se quer, há lealdade, pudor, verdade, a lei, o bom deus? 14. À natureza que tudo dá e toma, diz o homem instruído e modesto: "Dá o que queres e toma o que queres". Diz isso não de atrevido, mas apenas por ser obediente e ter bons sentimentos para com ela. 15. O que resta de tua vida é breve; vive-o como numa montanha. Não importa estar aqui ou ali, quando, seja onde for, vivemos no mundo como numa cidade. Veja a Humanidade, conheça um homem que vive deveras segundo a natureza. Se não o suportam, matem-no, que é preferível a viver ao modo deles. 16. Não mais se trata, de modo algum, de discutir o que é um homem de bem, mas de sê-lo. 17. Imagina, assiduamente, em sua totalidade, o tempo e a substância, e que cada ser em particular é, diante da substância, uma semente de figo; diante do tempo, uma torcida de broca. 18. Detém-te sobre cada ser sob teus olhos e reflete que já se está dissolvendo, já entrou numa transformação, por exemplo, em putrefação ou dispersão, ou na espécie de morte natural a cada um. 19. Vê-los quando comem, quando dormem, quando copulam, quando defecam, etc. Depois, vê-los quando impam e se ensoberbecem, ou quando zangam e ralham autoritários! Todavia, a quantos há pouco se escravizavam, e por que!, e, dentro em breve, a que condições estarão reduzidos! 20. A cada um convém o que a natureza universal traz a cada um, e convém na hora em que ela o traz. 21. "A terra ama a chuva; o Éter venerável também ama"; o mundo ama criar o que há de ser. Digo, pois, ao mundo: Temos o mesmo amor. Não é assim que se diz que tal coisa ama acontecer? 22. Ou vives aqui, e já te acostumaste; ou escapas para fora, e era o que querias; ou morres, e tua missão está terminada; além dessas, não há outra hipótese. Portanto, coragem! 23. Fique sempre claro que o campo é outro tanto. E como tudo aqui é o mesmo que no campo, na montanha, na praia, onde quiseres! Encontrar-te-ás, com efeito, diante do que diz Platão: "Fechando-se em cercados na montanha", diz ele, e também "ordenhando ovelhas que balam". 24. Que é para mim o meu guia? Que feitio lhe estou agora dando? Para que dele agora me sirvo? Não estará vazio de inteligência? Solto e arrancado da comunidade? Não está fundido e misturado com a carne de sorte que sofra as mesmas alterações? 25. Quem foge a seu amo é fujão. A lei é o amo; o fora da lei é o fujão. Ao mesmo tempo, quem se aflige, se irrita, ou teme, não deseja que tenha acontecido, esteja acontecendo ou venha a acontecer alguma das determinações de quem tudo rege, a lei que distribui os quinhões que tocam a cada um. Portanto, quem teme ou se aflige ou se irrita é fujão. 26. Quem depositou o sêmen na matriz retira-se; daí por diante outra causa se encarrega de completar e acabar o nascituro. O que foi e o que é! Ao depois, deitam-lhe alimento garganta abaixo; daí por diante, outra causa se encarrega de criar nele a sensação, os impulsos, em suma, a vida, a força, quais e quantos efeitos! Contempla, pois, essas maravilhas realizadas em tamanho arcano e vê essa força como vemos o peso e a força de ascensão, se não com os olhos, com a mesma clareza. 27. Adverte amiúde como as coisas que ora acontecem já ocorreram antes tais- e quais; e adverte que voltarão a ocorrer. Põe diante dos teus olhos os dramas inteiros e as cenas iguais, que conheces de experiência própria ou de narrativas mais antigas; por exemplo, toda a corte de Adriano, toda a corte de Antonino, toda a corte de Filipe, de Alexandre, de Creso; eram todas cenas tais quais estas; os atores apenas eram outros. 28. Imagina que todo aquele que se aflige ou se rebela contra seja o que for é semelhante ao leitão imolado, a escoicinhar, a cuinchar. Semelhante também quem, deitado na cama, só e em silêncio, lamenta nossos percalços. Adverte que só ao vivente racional foi dado acompanhar os acontecimentos de bom grado, quando todos os mais os têm de acompanhar simplesmente. 29. A cada um de teus atos em particular, detém-te e pergunta a ti mesmo se a morte é de temer por te privar dele. 30. Quando o pecado de alguém te mortifica, afasta-te logo e avalia que pecados equivalentes cometes; por exemplo, quando julgas um bem o dinheiro, ou o prazer, ou a glória vã, e similares. Atentando nisso, depressa esquecerás tua ira, por advertires que ele está sendo constrangido. O que pode ele fazer? Então, se podes, livra-o da força que o constrange. 31. Quando vires a Satirão, imagina que é um socrático, ou Êutiques, ou Hímem; quando vires a Eufrates, imagina que é Eutiquião ou Silvano; quando vires a Álcifron, imagina que é Tropioforo; quando vês a Severo, imagina que é Xenofonte ou Critão e, volvendo os olhos para ti. imagina que és um dos Césares, e de igual modo em cada caso. Depois, que te ocorra esta ideia: onde andam eles? Em lugar nenhum, ou pouco importa onde. Assim verás continuamente o fumo e o nada que são as coisas humanas, tanto mais quando te lembrares juntamente de que nunca mais existirá no tempo infinito aquilo que uma vez se transformou. Por que, pois, essa tensão? Por que não te contentas com chegar airosamente ao termo deste breve prazo? Que matéria e que hipótese evitas? Que é tudo isso senão temas de exercício duma razão que viu, com precisão de naturalista, o que se passa na vida? Continua, pois, até haveres assimilado tais pensamentos, como um estômago forte tudo assimila, como o fogo ardente, do que quer que lhe atirem, formará chama e luz. 32. A ninguém assista razão de dizer que não és simples ou que não és homem de bem; minta quem de ti formar tal opinião. Isso depende exclusivamente de ti, pois quem impede sejas bom e simples? Basta decidires não mais viver se não o fores, pois nem a razão exige que vivas sem que o sejas. 33. Nesta matéria, o que de mais sadio se pode dizer ou fazer? Seja o que for, tens o direito de fazê-lo ou dizê-lo, e não alegues que to impedem. Não pararás de gemer enquanto, ao fazeres, da matéria que se te apresentar ou deparar, o que é próprio da constituição do homem, não sentires o mesmo deleite que os voluptuosos sentem nos prazeres. Tens de achar um prazer todo mister que podes desempenhar conforme a tua natureza, e isso é possível em toda parte. Não é dado ao rolão levar para toda parte seu movimento próprio; nem à água, nem ao fogo, nem a nada de quanto é governado por uma natureza ou vida irracional, pois os obstáculos e impedimentos são muitos. Mas a mente e a razão podem atravessar tudo quanto se lhes assemelha, segundo faculta a sua natureza e segundo queiram. Tendo diante dos olhos essa faculdade, mediante a qual a razão será levada através de tudo, como o fogo para cima, como a pedra para baixo, como o rolão obliquamente, não reclames mais nada. Os demais obstáculos ou são do corpo, do cadáver, ou — salvo ilusão e abandono da razão mesma — não causam ferimento nem mal de espécie alguma; aliás, quem o sofresse depravar-se-ia imediatamente. No caso de todas as demais constituições, acontecendo o mal que for a qualquer delas, o próprio ser que o sofre, por efeito dele, se deprava; mas no caso presente, se é mister dizê-lo, fica melhor e mais digno de elogios o homem que aproveita bem os obstáculos. Em suma, lembra-te de que ao cidadão por natureza nada causa dano se não o causar à cidade; nem à cidade, se não à lei. Desses pretensos infortúnios, nenhum causa dano à lei. Ora, o que não faz dano à lei tampouco o faz à cidade, nem ao cidadão. 34. A quem foi mordido dos princípios verdadeiros basta a citação mais breve e mais óbvia para lembrar a insensibilidade à dor e ao medo. Por exemplo: O vento espalha as folhas pelo chão; assim as gerações humanas... São folhas os teus filhos, folhas também esses que em voz alta lealmente te glorificam ou, pelo contrário, te amaldiçoam, ou então, em voz baixa, te censuram ou escarnecem; folhas igualmente os que hão de recolher tua fama na posteridade. Pois todos eles brotam na primavera; depois o vento os derruba; depois a selva cria outros em seu lugar. A efemeridade é comum a todas as coisas, mas tu a todas foges e a todas buscas como se houvessem de existir eternamente. Em pouco cerrarás os olhos e quem te sepultar será logo por sua vez pranteado por outro. 35. Um olho são deve ver tudo quanto é visível e não dizer quero o verde, que isso é de quem sofre de oftalmia. O ouvido e olfato sãos devem estar prontos para todo som e cheiro; o estômago são deve comportar-se de modo igual para com todo alimento, como a mó para com tudo quanto foi constituído para moer. Por conseguinte, a inteligência sã deve estar pronta para todos os eventos; mas aquela que diz: Que se salvem meus filhos e Louvem todos o que eu fizer é um olho em busca do verde, ou dentes em busca de algo tenro. 36. Ninguém é tão ditoso que à cabeceira de seu leito de morte não velem alguns jubilosos com o triste acontecimento. Era sisudo e sábio; no último momento haverá quem diga de si para consigo: "Vamos, afinal, respirar livres desse pedagogo? Ele, de fato, não molestava a nenhum de nós, mas eu sentia que, lá consigo, nos condenava". Isso a respeito do homem sisudo; quanto a nós, quantas outras razões para quererem muitos livrar-se de nós. Pensarás nisso na hora da morte e partirás mais conformado, se refletires assim: "Deixo uma vida de tal valor que os meus companheiros mesmos, por quem tanto lutei, tanto orei, tanto me preocupei, são justamente os que desejam desfazer-se de mim, esperando daí quiçá alguma outra folga". Por que, pois, se haveria de ter apego a uma permanência mais longa aqui? Nem por isso, todavia, tenhas ao partires, menos benevolência para com eles, mas, conservando o teu caráter, sê amistoso, bondoso, caroável. Tampouco te vás como que arrancado; qual acontece a quem tem uma boa morte, cuja alma deixa placidamente o envoltório do corpo, tal deve ser tua partida dentre eles, porque com eles te prendeu e misturou a natureza. — Mas agora desliga! — Desligo-me como de parentes, mas não arrastado, nem com violência, pois é este também um dos fatos conformes com a natureza. 37. Acostuma-te, quanto possível, cada vez que alguém pratica uma ação, a indagar de ti para contigo: "A que refere ele esse ato?" Começa por ti mesmo e examina a ti mesmo em primeiro lugar. 38. Lembra-te! Quem move o títere é aquele poder oculto em teu íntimo; a eloquência é ele, a vida é ele, o homem, já que é mister dizê-lo, é ele. Não o envolvas na ideia do invólucro que o reveste e desses órgãos plasmados em redor. Porque eles são semelhantes a instrumentos, com a única diferença de serem congênitos. Com efeito, sem a causa que as move e freia, nenhuma dessas partes é mais útil que a lançadeira à teceloa, a pena a quem escreve e o relho ao cocheiro. LIVRO XI 1. Propriedades da alma racional: vê a si mesma, analisa a si mesma, molda-se como quer, colhe ela própria os frutos que produz — pois os frutos das plantas e produtos análogos dos animais são outros que colhem —, alcança seu próprio fim, chegue quando chegar o termo da vida. Não é como no bailado, no espetáculo cênico ou função congênere, onde a ação fica por acabar quando algo a empece; em cada parte e no ponto onde for surpreendida, ela perfaz, completo e acabado, o seu propósito, podendo dizer: Eu recolho o que é meu. Mais que isso, percorre o mundo todo, o espaço circundante e sua forma, penetra no infinito do tempo, abarca a reprodução periódica do universo, considera todos os aspectos e verifica que nada de novo verão nossos futuros nem viram nada mais notável nossos predecessores, mas de certo modo, por menos inteligência que tenha, o quarentão viu, em retrato, todo o passado e todo o futuro. Próprios da alma racional são também o amor do próximo, a verdade e o pudor, bem como não dar a nada mais valor que a si mesma — o que é próprio também da lei. Assim, pois, nenhuma diferença há entre a razão reta e a razão da justiça. 2. Desprezarás o deleite do canto, a dança, o pancrácio; a melodia, basta que a decomponhas em cada uma das notas e perguntes a ti mesmo se não lhe resistes e te desenganarás; quanto à dança, faze exame análogo de cada movimento ou parada; da mesma forma com o pancrácio. Em suma, excetuada a virtude e seus efeitos, lembra-te de examinar a fundo os componentes e por essa análise chegar ao desprezo; aplica o mesmo método à extensão toda da vida. 3. Que bela é a alma preparada para uma imediata separação do corpo, seja para se extinguir, seja para se dispersar ou sobreviver! Que essa preparação, porém, provenha de um juízo próprio e não dum simples sectarismo, como o dos cristãos; uma preparação raciocinada, grave e, para ser convincente, nada teatral. 4. Realizei algo para o bem comum? Então tirei proveito. Que sempre tenhas presente esse pensamento e jamais o abandones. 5. Qual o teu mister? O de ser bom. Como obter êxito nele, senão mediante o estudo, não apenas da natureza universal, mas também da constituição própria do homem? 6. Primeiramente se representaram as tragédias; davam, com a sugestão dos acontecimentos, a de que era de sua natureza assim acontecerem e que não vos deve magoar, na cena maior, aquilo que, na do teatro, vos encanta. Vê-se, com efeito, que eles têm de realizar-se assim e os sofrem mesmo aqueles que exclamam Ó Citerão! Igualmente, os dramaturgos oferecem ensinamentos úteis; por exemplo, a célebre passagem: "Se os deuses se descuidaram de mim e de meus filhos, isso também tem sua razão" e a outra: "Não adianta agastar-se com as coisas"; ainda: "Segar a vida como espiga rica de grãos" e tantas do mesmo teor. Depois da tragédia, representou-se a comédia antiga; com sua franqueza instrutiva, através de sua própria linguagem sem regras, sugeria-nos, não sem proveito, a modéstia. Com intuito semelhante é que Diógenes lhe adotou o estilo. Depois da comédia antiga, a intermediária e por fim a nova; presta atenção ao propósito que as inspirava, quando derivaram aos poucos para a imitação artística da vida. Que elas também trazem ensinamentos úteis é fato reconhecido; porém, em seu plano geral, semelhantes poesia e dramaturgia a que alvo apontavam? 7. Quão claro se manifesta não existir na vida outra situação tão propícia ao cultivo da Filosofia como esta em que te encontras agora! 8. Não é possível podar um galho do galho vizinho sem podá-lo da árvore toda. Assim também o homem que se aparta de um só homem desliga-se de toda a comunidade. O galho, todavia, é podado por outrem; o homem por si mesmo se afasta do próximo, quando o odeia e lhe volta as costas; não sabe que ao mesmo tempo se está amputando da sociedade toda. Contudo, eis um dom de Zeus, que organizou a comunidade; temos a faculdade de nos religar ao próximo e integrar de novo no todo. Quando, porém, semelhante operação se amiúda, dificulta extremamente a reunião e reintegração do apartado. Em suma, ao galho que desde o início vem crescendo e respirando junto com a árvore não se compara o que foi podado e se tornou a enxertar, digam o que disserem os hortelãos. Crescer no mesmo tronco, sim; adotar os mesmos princípios, não. 9. Os que te impedem de progredir segundo a reta razão, assim como não te poderão desviar da prática do bem, tampouco te arredem da bondade para com eles próprios. Ao invés, preserva em ti mesmo estes dois propósitos igualmente: não só juízo e procedimento inabaláveis, mas também indulgência com aqueles que intentem estorvar-te ou de outra maneira aborrecer-te. Com efeito, tanta fraqueza haverá em te irritares com eles quanta em abandonares a ação e capitulares de medo; são desertores equivalentes tanto quem se assusta como quem se alheia de seu parente amigo por natureza. 10. Não há natureza inferior à arte, porquanto as artes imitam a natureza. Assim sendo, a mais perfeita das naturezas e mais inteligente não pode ser superada pelo talento artístico. Todas as artes produzem obras inferiores com vistas às superiores; portanto, o mesmo faz a natureza comum. Eis aí a gênese da justiça e dela procedem as demais virtudes. Com efeito, não se preservará a justiça se dissentirmos em coisas indiferentes, se nos deixarmos enganar facilmente, se formos temerários e volúveis. 11. Se não vêm para junto de ti as coisas que te inquietas buscando ou evitando e, de certo modo, tu é que vais ao seu encontro, basta se aquiete o teu juízo a seu respeito e elas ficarão imóveis e não serás visto a buscá-las ou a evitá-las. 12. A esfera da alma permanece inalterável quando, sem se projetar para fora nem encolher para dentro, sem se dispersar nem concentrar, brilha duma luz que lhe revela a verdade universal e a que nela mesma reside. 13. Alguém me desprezará? O problema é seu. O meu é não ser surpreendido em ação e palavras merecedoras de desprezo. Odiar-me-á? O problema é seu. De minha parte, serei benevolente e bondoso para com todos e estarei até pronto a mostrar a ele mesmo o seu engano, não insultando nem dando demonstração de minha constância, mas com nobreza e sinceridade, como o célebre Focião, se é que não fingia. Cumpre sejam esses os sentimentos íntimos e vejam os deuses um homem que contra nada se rebele e proteste. Que de mal haverá para ti, se, de teu lado, estás agora fazendo o que é próprio de tua natureza, se dás boa acolhida ao que no momento é oportuno à natureza universal, como homem que se esforça por realizar, de qualquer modo, o bem da comunidade? 14. Desprezam-se mutuamente, mas mutuamente se bajulam; querem dominar uns aos outros, mas submetem-se uns aos outros. 15. Quão rançoso e falso quem diz: "Resolvi ser sincero contigo!" — Que fazes, homem? Esse preâmbulo não se usa. A sinceridade se revela de pronto; deve estar gravada na fronte, soar de imediato na voz, surgir de imediato nos olhos, como o ente amado tudo compreende de imediato no olhar dos amantes. Em suma, a singeleza e a bondade devem ser como a morrinha, que o vizinho sente, queira ou não queira, logo ao chegar. Sinceridade deliberada é cutelo. Nada mais ignóbil que amizade de lobo; foge dela mais que de tudo. O bom, o sincero, o amigo, trazem essas marcas nos olhos e dão na vista. 16. Viver a mais bela vida; o poder de vivê-la reside na alma; basta manter-se indiferente às coisas indiferentes. Será indiferente quem considerar cada uma em separado e no conjunto, lembrando-se de que nenhuma cria em nós opinião a seu respeito nem vem até nós, mas que elas se quedam imóveis e nós é que formamos juízo sobre elas e de certo modo o gravamos em nós mesmos, quando podemos não só deixar de gravar mas também, caso se esconda algures, apagá-lo imediatamente; bem assim, que tal cuidado será por pouco tempo e depois a vida terá cessado. Que há, porém, de penoso em serem as coisas assim? Se são conformes com a natureza, alegra-te com elas e te serão mais cômodas; se são contra a natureza, procura saber qual o mister conforme com a tua natureza, dedica-te a ele, ainda que apagado; com quem quer que procure o próprio bem, somos indulgentes. 17. Donde cada coisa procede; que elementos a constituem; no que se transforma; como será depois de transformada; como nenhum mal sofrerá. 18. E em primeiro lugar: que relação tenho com eles? Fomos feitos uns em vista dos outros e, sob outro ângulo, eu fui criado para juntar-me a eles, como o carneiro ao rebanho, o touro à manada. Volta a partir do princípio que diz: Ou os átomos, ou a natureza regendo tudo. Nesse caso, os seres inferiores existem em vista dos superiores e estes em vista uns dos outros. Em segundo: como procedem eles à mesa, na alcova, etc.; principalmente, que consequências necessárias de seus princípios dão por estabelecidas e com que soberba praticam esses mesmos atos. Em terceiro: se o fazem a justo título, não te deves irritar; senão, fazem-no evidentemente sem querer e sem saber. Com efeito, nenhuma alma se priva da verdade por querer; tampouco de tratar cada coisa pelo que vale. Pelo menos todos se indignam de serem chamados injustos, ingratos, cobiçosos, numa palavra, faltosos para com o próximo. Em quarto: tu próprio cometes muitas faltas e és como eles; embora te abstenhas de algumas, tens, todavia, tendência a elas e é por temor, ambição de glória ou vício análogo, que evitas pecados iguais. Em quinto: nem sabes ao certo se eles pecam, pois muitas coisas acontecem em virtude de um plano. Em síntese, há muito que indagar antes de poder pronunciar-se sobre atos alheios com conhecimento de causa. Em sexto — quando no auge duma indignação: a vida humana é um breve instante e dentro em pouco todos estaremos estendidos. Em sétimo: o que nos molesta não são as ações deles — elas estão em seus guias —, são as nossas opiniões. Suspende, pois, rejeita de boa mente a opinião de que houve agravo, e teu furor passa. Como a suspenderás? Raciocinando que não há desonra, pois, se o único mal não fosse a desonra, cometerias necessariamente muitas faltas, serias um salteador, capaz de tudo. Em oitavo: quanto, em tais casos, de nossas iras e mágoas sofremos mais do que mesmo das ações que nos irritam e magoam. Em nono: a bondade é invencível, quando sincera, não de semblante e fingida. Que te fará o maior dos insolentes, se te mantiveres bondoso para com ele, se, dada oportunidade, o aconselhares com brandura e o instruíres com calma na mesma ocasião em que intenta causar-te mal? — Não, filho, fomos nascidos para outro fim; quem vai sofrer o dano não sou eu, mas tu, meu filho. Mostra-lhe, delicadamente e num sentido geral, que assim é, que esse não é o procedimento nem das abelhas, nem de qualquer animal social por natureza. Tal advertência deve ser feita sem ironia, nem afronta, mas com simpatia e de coração não ferido; não, porém, em tom de mestre-escola, nem a fim de suscitar admiração dos circunstantes, e sim para ele só, embora estejam algumas outras pessoas em redor. Lembra-te desses nove preceitos capitais como se fossem presentes das Musas e começa, enfim, a ser um homem, enquanto vives. Cumpre te guardes, com igual cuidado, de te irares com eles tanto como de os bajulares; uma e outra atitude são antissociais e prejudiciais. Nas tuas iras, não esqueças que virilidade não é arrebatamento; a brandura e a serenidade, por serem mais próprias de homem, são também mais viris; força, nervos e bravura tem quem possui aquelas virtudes e não o agastado e incontentável. Quanto mais essa atitude se aproxima da impassibilidade tanto mais perto está do vigor. Como a dor é própria do fraco, assim também a cólera; em uma e outra há ferimento e capitulação. Se quiseres, aceita uma décima dádiva do chefe das Musas: "Não admitir que os maus pequem é de insensato; é desejar o impossível; permitir sejam maus para com outros, mas não admitir que pequem contra ti, é de néscio e de tirano". 19. Deves guardar-te sem cessar principalmente de quatro corrupções de teu guia e, quando as surpreenderes, apagá-las, dizendo a respeito de cada uma: Essa ideia não é necessária — Isso é coisa que rompe os laços da comunidade — Isso não vais dizer de teu cabedal próprio; considera um dos maiores absurdos dizeres o que não seja de teu próprio cabedal. A quarta corrupção é aquela pela qual aviltares a ti mesmo, que isso é a derrota e submissão de tua parte mais divina ante a parte mais desprezível e mortal, a do corpo, e ante os prazeres grosseiros deste. 20. Teu alento e todo elemento ígneo de tua constituição, muito embora tendam por natureza a subir, obedecem, contudo, ao plano geral do universo e mantêm-se no seu lugar na composição. Igualmente tudo que há de terreno e aquoso em ti, embora tenda a descer, se ergue e apruma numa postura que não lhe é natural. Assim, pois, os elementos mesmos, uma vez postados no lugar, obedecem ao conjunto, violentando-se para ali ficar até vir de lá o sinal da dissolução. Não é estranho que só tua parte inteligente desobedeça e proteste contra o lugar a ela atribuído? Sem embargo, nenhum constrangimento lhe é imposto, apenas o que está de acordo com a sua natureza; ela, porém, não se conforma e tende ao oposto. O movimento em direção às injustiças, à licença, às paixões, às dores e aos temores não passa duma deserção da natureza. Também quando o guia se desgosta com algum acontecimento está desertando o seu posto; ele não está menos constituído para a piedade e temor dos deuses do que para a justiça. Com efeito, aquelas virtudes pertencem ao gênero da comunhão social e têm mais valor que os atos de justiça. 21. "Ninguém pode ser um e o mesmo durante a vida toda, se o escopo de sua vida não é sempre um e o mesmo." Não basta dizer isso, sem acrescentar qual deve ser o escopo. Assim como, embora divirjam as opiniões sobre tudo quanto o vulgo, por isto ou por aquilo, considera como bens, concordamos, todavia, quanto a certos dentre eles, isto é, os de interesse comum, assim também cumpre escolher como escopo o bem comum e social. Quem para ele orientar todos os seus impulsos dará igualdade a todas as suas ações e, dessa maneira, será sempre o mesmo. 22. O rato do mato e o caseiro; a timidez e fugacidade deste. 23. À crença popular na Lâmia Sócrates chamava espantalho de crianças. 24. Os lacedemônios, nas suas festividades, instalavam os forasteiros em bancos à sombra e sentavam eles próprios em qualquer lugar. 25. Escusando-se ao convite do filho de Perdicas para que o visitasse, Sócrates disse: "Não quero acabar da maneira mais triste"; queria com isso significar o não poder retribuir os favores recebidos. 26. Nos escritos dos efésios figurava o conselho de lembrar-se amiúde de um dos antigos que praticavam a virtude. 27. Os pitagóricos recomendam olhemos de manhã para o céu, a fim de nos lembrarmos dos seres que cumprem seu mister sempre obedientes aos mesmos princípios e da mesma maneira, de sua disciplina, sua pureza, sua nudez. Porque os astros não usam véu nenhum. 28. O aspecto de Sócrates cingindo um pelego, quando Xantipa saiu levando a sua roupa, e o que disse aos companheiros que se retiraram envergonhados de vê-lo assim vestido. 29. Não poderá ser mestre na escrita e leitura sem ter sido antes aluno. Quanto menos na vida! 30. "Nasceste escravo; não tens direito à palavra." 31. "Cá dentro, o coração se pôs a rir." 32. "Condenarão a virtude em termos contundentes." 33. "Procurar figos no inverno é de louco; igualmente procurar o filho quando não é mais possível." 34. Quem beija um filhinho deve, ao que dizia Epicteto, murmurar no íntimo: "Talvez morras amanhã". — È mau agouro! — "Agouro nenhum", respondia, "e sim o enunciado dum fato natural; aliás, seria também agouro dizer que foram colhidas as espigas." 35. "Uva verde, uva madura, uva-passa"; tudo são mudanças, não para o nãoser, mas para o que ainda não é. 36. "Ladrão do livre arbítrio não existe." É de Epicteto. 37. "É mister", disse ele, "descobrir a arte de anuir" e, no capítulo sobre as iniciativas: "Vigiar a atenção, para que haja nelas reserva, interesse comum, relação com o valor; abster-se completamente de desejos e não nutrir aversão a nada do que não depende de nós". 38. "Não discutimos", disse ele. "um tema qualquer, mas se estamos loucos ou não." 39. Sócrates dizia: "Que desejais? Ter almas de seres racionais ou de irracionais? — De racionais. — De quais seres racionais? Dos sãos ou dos doentes? — Dos sãos. — Por que, pois, não procurais tê-las? — Porque já as temos. — Então, por que brigais e disputais?” LIVRO XII 1. Podes ter desde já tudo aquilo que anelas atingir por um rodeio, se não quiseres mal a ti mesmo; quero dizer: se puseres de lado todo o passado, se entregares o futuro à Providência e orientares o presente unicamente no sentido da piedade e da justiça; da piedade, para amares o teu quinhão, pois a natureza o destinava para ti e te destinava para ele; de justiça, para dizeres a verdade livremente, sem circunlóquios, e obrares segundo a lei e o mérito. Que não te empeçam a maldade, a opinião e a palavra alheias, nem as sensações do bocado de carne crescido em torno de ti; se lhe dói, isso é com ele. Se, pois, quando for o momento de partires, deres atenção apenas a teu guia e ao que há de divino em ti, deixando para trás tudo mais; se o que temos não é cessar de viver um dia e sim não começar nunca a viver segundo tua natureza, serás um homem digno do mundo que te gerou, deixarás de ser um estrangeiro em tua pátria, de estranhar como inesperados os acontecimentos de cada dia e de depender disto e daquilo. 2. Deus vê todos os guias despidos do invólucro material, das cascas e impurezas; exclusivamente com sua inteligência atinge apenas aquilo que dele emanou e se canalizou para aqueles seres. Se tu também te acostumares a fazer o mesmo, livrar-te-ás dos excessivos afãs. Quem não dá atenção às carnes que o envolvem perderá o tempo em cuidar de roupas, moradia, fama e similares indumentos e aparato? 3. Três são os elementos de que és constituído: o corpo, o alento, a mente. Os dois primeiros são teus na medida em que te compete cuidar deles; só o terceiro é teu na acepção da palavra. Se removeres de ti, isto é, de teu pensamento, tudo quanto fazem ou dizem os outros, ou fizeste ou disseste tu mesmo, tudo quanto, como futuro, te perturba, tudo quanto trazes quer no corpo que te envolve, quer no alento unido a ti por natureza, não dependente de teu arbítrio, bem como tudo quanto revolve o turbilhão exterior em seu giro, para que, liberta das contingências de sua sorte, a faculdade inteligente viva pura, desligada e recolhida em si, praticando a justiça, acolhendo os acontecimentos e dizendo a verdade — se, digo, removeres daquele guia o que as paixões lhe pegaram e, do tempo, o porvir e o passado; se fizeres de ti, no dizer de Empédocles, uma esfera perfeita, ufana da estabilidade a girar, e cuidares de viver apenas o que estás vivendo, ou seja, o presente, poderás passar o tempo que resta até a morte de maneira calma, benevolente e favorável ao teu deus. 4. Admira-me muitas vezes como cada um, embora ame a si mesmo acima de todos, dá menos valor à sua opinião a seu respeito que à dos outros. Por certo, se, de um deus que aparecesse, ou de um sábio mestre, alguém recebesse a ordem de nada refletir nem meditar de si para consigo sem, ao mesmo tempo, exprimi-lo em voz alta, não suportaria a imposição sequer por um só dia, a tal ponto respeitamos mais o que pensará de nós o próximo do que a nossa própria opinião. 5. Os deuses, que tudo dispuseram com sabedoria e bondade para com o homem, como puderam negligenciar apenas o fato de que algumas pessoas absolutamente virtuosas, após inúmeras alianças, por assim dizer, pactuadas com a divindade e dela por mui longo tempo se tornarem familiares por meio de obras pias e sacrifícios, uma vez mortas já não voltam a existir e se extinguem completamente? Se assim se passam as coisas, podes estar certo de que, se pudesse ser diferente, eles o fariam. Se fora justo, seria também possível; se fora conforme com a natureza, esta o acarretaria. O fato de assim não ser, se deveras assim não é, basta para convencer-te de que assim não deve ser. Vês tu mesmo que com essa especulação entras a contender com a divindade; ora, não argumentaríamos assim com os deuses, não fossem eles sumamente bons e justos. Posto isso, nenhuma negligência injusta houve de sua parte, nenhum descuido absurdo no arranjo do mundo. 6. Acostuma-te até com o que te custa. A mão esquerda, tão remissa no mais, por falta de hábito, governa as rédeas com mais força que a direita, por estar acostumada. 7. Em que disposições, de corpo e de alma, devemos aguardar que a morte nos surpreenda; a brevidade da vida, a imensidade do tempo antes de nós e depois de nós, a debilidade de toda matéria. 8. Contemplar as causas formais limpas de escória; as relações finais dos atos; o que é a dor; o que é o prazer; o que é a morte; o que é a glória; quem o causador de seus próprios afãs; como ninguém é obstado por outrem; que tudo é opinião. 9. No uso dos princípios devemos ser como o pugilista e não como o gladiador; a este basta largar a espada que maneja e está morto; aquele tem sempre a mão e não precisa mais do que fechá-la. 10. Ver o que são as coisas em si, distinguindo matéria, causa, fim. 11. Que admirável poder tem o homem de não fazer senão o que a divindade haja de aprovar, e de aceitar todo quinhão que a divindade lhe destine! 12. Do que decorre da natureza não devemos culpar os deuses — pois não pecam por querer nem sem querer — nem os homens — pois não pecam jamais por querer. Logo, não devemos culpar ninguém. 13. Quão ridículo e estranho quem se admira seja do que for que acontece na vida! 14. Ou um destino inevitável e uma ordem inflexível, ou uma providência compassiva, ou ainda caos sem regras, ao sabor do acaso. Se há um destino inflexível, para que opor-me? Se uma providência acessível à compaixão, torna-te digno do socorro divino. Se um caos anarquizado, dá-te por feliz por teres em ti mesmo, em meio a tal vagalhão, uma inteligência dirigente. Se o vagalhão te arrebata, que arraste a tua carne, o teu alento e o mais; a mente ele não arrebatará. 15. Se a luz da candeia alumia e conserva o brilho até que a apaguem, hão de apagar-se antes da hora a verdade, a justiça e a temperança em ti? 16. Quando tens a impressão de que alguém pecou: "Ele condenou a si mesmo e assim é como se arranhasse o próprio rosto". Quem não admite que os maus pequem é comparável a quem não quer que a figueira produza o suco nos figos, que recém-nascidos chorem, que o cavalo rinche e todos os outros fatos inevitáveis. Que será de ti se tens semelhante temperamento? Se és nervoso, cura-te. 17. Se não convém, não faças; se não é verdade, não digas. Que a iniciativa seja tua. 18. Em todos os casos, vê sempre o que é em si mesmo aquilo que produz em ti aquela ideia e explica-o, distinguindo a matéria, o fim, o prazo dentro do qual terá de cessar. 19. Compreende, afinal, que há em ti algo mais forte e divino do que as causas das tuas paixões e, numa palavra, do que os motivos que te titereiam. Que tenho agora no pensamento? Medo? Suspeita? Cobiça? Algo semelhante? 20. Primeiro: nada ao acaso, nem sem propósito. Segundo: não ter em mira outra coisa senão a finalidade social. 21. Dentro em pouco não serás ninguém em parte alguma e bem assim tudo quanto vês e todos quantos estão vivos hoje. Tudo é por natureza feito para transformar-se, mudar, perecer, a fim de se produzirem em seguida outros seres. 22. Tudo é opinião e esta de ti depende. Suprime, pois, a opinião quando queiras e, como se tivesses dobrado um cabo, tudo será calma e quietude numa enseada mansa. 23. Uma atividade qualquer, que cessa no devido tempo, nenhum dano padece com a cessação; tampouco padece algum dano o autor daquela ação com o fato mesmo de ter ela cessado. De igual maneira, o conjunto de todas as ações, que é a vida, se cessar no devido tempo, nenhum dano padecerá do fato mesmo de cessar; tampouco sofre quem pôs termo a essa cadeia no tempo certo. Quem dita o tempo certo e o limite é a natureza; às vezes, a natureza particular, quando na velhice, mas sempre a universal, pela transformação de cujas partes o mundo todo se mantém perenemente novo e em pleno vigor da idade. Tudo que convém ao todo é sempre belo e de vez. A cessação da vida, individualmente, não é um mal, posto que não é vergonhosa, por não ser de livre escolha, nem oposta ao bem comum; é um bem, porque oportuna ao todo, conveniente e trazida no movimento geral. Assim, é conduzido pela divindade quem, pela reflexão, se conduz pelas mesmas forças e aos mesmos fins que a divindade. 24. Cumpre ter presentes estas três considerações: naquilo que fazes, não atuares ao acaso ou de maneira diversa da que o teria realizado a justiça; nos acontecimentos vindos de fora, serem obra ou do acaso ou da Providência, não se devendo acusar o acaso nem culpar a Providência; segunda: o que é cada um desde a geração até ser animado e desde que é animado até devolver a alma, bem como de quais elementos foi composto e em quais se dissolverá; terceira: se, elevado de repente às alturas, observares a vida dos homens e sua diversidade, tu os desprezarás, ao veres, ao mesmo tempo, em torno, a imensidade, mundo dos seres que habitam o ar e o éter; e, ainda, quantas vezes te elevasses, verias as mesmas coisas, sua uniformidade, sua curta duração. E disso se nutre o orgulho! 25. Alija a opinião e estás salvo. Quem impede que a alijes? 26. Se te custa suportar alguma coisa, é por esqueceres que tudo ocorre de acordo com a natureza universal; que a falta não é tua; ademais, que tudo que ocorre sempre ocorreu assim, sempre ocorrerá e está ocorrendo agora em toda parte; que um parentesco próximo liga o homem a todo o gênero humano, não pelo sangue ou pela semente, mas pela comunhão da inteligência. Esqueces também que a inteligência individual é uma divindade e emanou de lá; que nada é particular a ninguém, mas seu filho, seu corpo, seu alento mesmo provieram de lá; que tudo é opinião; que cada um só vive o presente e só perde este. 27. Meditar assiduamente sobre aqueles que se exacerbaram ao extremo por alguma causa, sobre aqueles que atingiram o fastígio das mais altas honras ou desditas, ou ódios, ou quaisquer vicissitudes; depois, refletir: Que é feito de tudo isso? Fumo, cinza, lenda, ou sequer lenda. Acudam à tua memória também todos os casos semelhantes, como o de Fábio Catulino no campo, de Lúsio Lupo nos jardins, de Estertínio em Baias, de Tibério em Capri, de Vélio Rufo, em suma, a excentricidade em qualquer sentido unida a uma presunção; quão ignóbeis todos esses esforços e quão mais filosófico mostrar-nos, quando se nos depara matéria, justos, temperantes, obedientes aos deuses simplesmente. Porque nada é mais insuportável que o orgulho impando sob a capa da modéstia. 28. Aos que perguntam onde viste os deuses ou quando averiguaste que existem, para os adorares: primeiro, eles são visíveis a nossos olhos; depois, ora, tampouco vi minha própria alma, sem embargo, respeito-a. Assim também quanto aos deuses: das provas que tenho, em todo momento, de seu poder, deduzo que existem e venero-os. 29. A salvação da vida está em ver a fundo o que é cada ser em si, qual sua matéria, qual a causa formal. Praticar do fundo da alma a justiça e dizer a verdade. Que mais, senão aproveitar a vida encadeando um bem a outro, de maneira que não fique o mais breve intervalo? 30. Uma é a luz do sol, embora a dividam muros, montanhas, milhares de outros obstáculos. Uma é a substância comum, embora a dividam milhares de corpos individuais. Uma é a alma, embora a dividam milhares de naturezas e contornos individuais. Uma é a alma inteligente, embora se afigure repartida. As demais partes dos seres referidos, como o alento e as coisas perceptíveis, entre si são desconhecidas e alheias; não obstante, liga-as o princípio unificador e a gravidade que sobre elas pesa; a inteligência, porém, tem a prerrogativa de ser atraída pelo seu semelhante, de compor-se com ele, e seu sentido de socialidade não encontra empecilhos. 31. Que mais procuras? O subsistir? Não, mas sentir, ter impulsos, crescer, morrer outra vez, usar da palavra, pensar? Que achas aí de que valha a pena ter saudade? Mas se cada uma dessas faculdades é assaz desprezível, aplica-te, afinal, a seguir a razão e a divindade. Bem, entre a estima desses bens e a mágoa de perdê-los com a morte há um conflito. 32. Que fração do tempo infinito e imenso foi atribuída a cada um? Em breve, com efeito, desaparecerá no nada. Que fração da substância universal? Que fração da alma universal? De que tamanho é a pelota de terra em que rastejas? Refletindo em tudo isso, a nada atribuas mais importância do que a agir segundo te induz a tua natureza e a sentir conforme a natureza comum acarreta. 33. Como se comporta o teu guia? Nisso está tudo. O resto, quer de teu arbítrio, quer não, é cadáver e fumo. 34. O maior estímulo ao desprezo da morte é a ideia de que mesmo aqueles que veem no prazer o bem e na dor o mal, não obstante, a desprezam. 35. Aquele que só vê o bem no que acontece no tempo devido a quem tanto faz executar muitas ações conformes com a reta razão quanto poucas, a quem é indiferente contemplar o mundo por mais ou por menos tempo, esse nada teme, nem a morte. 36. Homem, foste cidadão nesta grande cidade. Que te importa se foi por cinco anos? O que é conforme as leis é igual para todos. Que há de estranho em seres despedido da cidade não por um tirano, nem por um juiz iníquo, mas pela natureza que nela te fez entrar? É como se o pretor despedisse do teatro o comediante por ele contratado. — Porém, não representei os cinco atos, mas apenas três! — Disseste bem; na vida, os três atos completam o drama. Quem fixa o final é o mesmo que foi, outrora, autor da composição e é, agora, o da dissolução; tu não és o autor desta nem daquela. Sê, pois, caroável ao partires, porque caroável também é quem te despede.