Herbert Spencer – O Indivíduo Contra o Estado ÍNDICE Prefácio O novo conservadorismo A escravidão futura Os pecados dos legisladores A grande superstição política Post scriptum PREFÁCIO Na "A Revista de Westminster", publiquei um artigo intitulado: "Reforma parlamentar: os perigos e a defesa". Nesse artigo aventurei-me a prognosticar alguns resultados das transformações políticas propostas naquele tempo. Eis aqui, reduzida a sua expressão mais simples, a tese que sustentava: "Se não se tomam as precauções convenientes, o acréscimo da liberdade aparente será seguido de uma diminuição da liberdade real". Nada aconteceu depois, que me obrigasse a mudar de opinião. A legislação, desde aquele tempo, seguiu o curso que eu previra. Medidas ditatoriais, rapidamente multiplicadas, têm a tendência continua, e de dois modos diferentes, de restringir as liberdades individuais. Têm-se estabelecido, cada ano em maior número, regulamentações que coarctam o cidadão em esferas onde, antes, se movia em plena liberdade, e que o forçam a realizar atos que, anteriormente, tinha o direito de executar, ou não. Ao mesmo tempo os encargos públicos, cada dia mais pesados, sobretudo os locais, reduziram ainda mais a sua liberdade, diminuindo a porção de benefícios de que podia dispor à vontade, e aumentando a que se lhe arrebata, para ser gasta segundo o capricho dos funcionários públicos. Continuam existindo as causas e os efeitos que predisse. E, provavelmente, seu poder crescerá. Vendo, pois, que as conclusões que deduzi dessas causas e desses efeitos, se confirmaram, decidi-me a expor conclusões análogas com referência ao porvir, a insistir sobre o assunto, a fazer tudo quanto está ao meu alcance, para chamar a atenção sobre os males que nos ameaçam. Com esse fim, escrevi os capítulos que seguem. Para responder a certas críticas e, na previsão de possíveis objecções, acrescentei um "Post-scriptum". O INDIVÍDUO CONTRA O ESTADO O NOVO CONSERVADORISMO A maior parte dos que passam atualmente por liberais, são conservadores de uma nova espécie. Eis aqui a paradoxo que me proponho justificar. Para isso, estou obrigado, primeiramente, a mostrar o que ambos os partidos políticos eram em sua origem; e rogo ao leitor desculpar-me se lhe recordo fatos que lhe são familiares; não poderia, de outro modo, fazer-lhe compreender a natureza intrínseca do verdadeiro conservadorismo e do verdadeiro liberalismo. Se nos remontamos a uma época anterior a existência de seus nomes, os dois partidos políticos representam, originariamente, dois tipos opostos de organização social: o militar e o industrial. O primeiro se caracteriza pelo regímen do Estado, quase universal nos antigos tempos; o segundo, pelo do contrato, que se tem generalizado em nossos dias, principalmente nas nações ocidentais, e, sobretudo, entre nós mesmos e os americanos. Se, em vez de empregar a palavra "cooperação" em seu sentido restrito, a usarmos em seu mais amplo significado, designando com ela as atividades combinadas dos cidadãos, sob qualquer forma de governo, aqueles dois regimes podem ser definidos assim: o primeiro, como o sistema da cooperação forçada; o segundo, como o da cooperação voluntária. A estrutura típica do primeiro, vemo-la em um exército regular, onde as unidades em seus diferentes graus, têm que obedecer sob pena de morte, e recebem o alimento, as roupas e o soldo em proporções arbitrárias. A do outro, encontra-se em um corpo de produtores e de distribuidores que combinam entre si receber uma recompensa especificada, em troca de serviços também especificados e que podem, quando queiram, mediante prévio aviso, deixar a organização se esta lhes desagradar. Durante a evolução social, na Inglaterra, a distinção entre estas duas formas de cooperação, radicalmente opostas, manifesta-se de maneira gradual; porém, muito tempo antes de estarem em uso os nomes de conservadores e liberais, podia ser notada a existência dos dois partidos, como, também, ainda que de maneira vaga, suas relações com o militarismo e com o industrialismo. Todo o mundo sabe que, tanto em nosso país como nos demais, foi geralmente nas cidades, formadas de artesãos e comerciantes, acostumados a cooperar sob o regímen do contrato, onde começou a resistência a regulamentação coercitiva que caracteriza a cooperação sob o regime do Estado. Esta cooperação, que deve sua origem e sua constituição às guerras crônicas, mantinha-se, ao contrário, nos distritos rurais, povoados geralmente por chefes militares e seus subordinados, nos quais sobrevieram as ideias e as tradições primitivas. Semelhante contraste nas tendências políticas, que se manifestava antes de que os princípios liberais e conservadores fossem claramente definidos, mostrava-se em tudo. Na época da Revolução, "enquanto que as aldeias e as pequenas povoações estavam nas mãos dos conservadores, as grandes cidades, os distritos manufatureiros e os portos de comércio, eram as fortalezas dos liberais". Inútil é dizer que, não obstante certas excepções, a mesma situação subsiste em nossos dias. Tal era o caráter que aos dois partidos impunha a sua origem. Vejamos agora como esse caráter se manifesta, igualmente, em suas primeiras doutrinas e em seus primeiros atos. O liberalismo começou com a resistência aos esforços de Carlos II e sua camarilha para restabelecer a monarquia absoluta. Os Liberais consideravam a monarquia como uma instituição civil estabelecida pela nação em benefício de todos os seus membros, ao passo que, para os conservadores "o monarca era o delegado do Céu". A primeira destas doutrinas implicava a crença de que a submissão ao rei era condicional; a segunda, a de que esta submissão deveria ser absoluta. Falando dos liberais e dos conservadores como eram concebidos nos fins do século XVII, isto é, uns cinquenta anos antes de escrever a sua "Dissertação acerca dos partidos", diz Bolingbroke: "Poder e soberania do povo, contrato original, autoridade e independência do Parlamento, liberdade, resistência, exclusão, abdicação, deposição; estas eram as ideias que se associavam naquela época ao conceito que se tinha de um liberal: ideias que se supunham incompatíveis com o conceito que se formava de um conservador. Direito divino, hereditário, incomutável, sucessão em linha direta, obediência passiva, prerrogativa, não resistência, escravidão e, algumas vezes, também papismo: eis aí as ideias que se associavam na maior parte dos entendimentos, ao conceito de um conservador, as quais se consideravam igualmente incompatíveis com aquele que se tinha de um liberal". ("Dissertação acerca dos partidos", pag. 5) Se compararmos estas descrições, vemos que em um partido existia o desejo de contrariar e diminuir o poder coercitivo do rei sobre os súditos, e que o outro queria manter e aumentar esse poder. Esta diferença nas aspirações, que excede em significação e importância a todas as demais diferenças políticas, mostra-se já em seus primeiros atos. Os princípios dos Liberais apareceram na Acta do “Habeas Corpus" e na medida que declarou os juízes independentes da Coroa; na repulsa do "Bill" em que se pedia que os legisladores e os funcionários fossem obrigados a prometer, sob juramento, não resistir ao rei pelas armas em caso algum, e, finalmente, no "Bill" que tinha por objetivo proteger os súditos contra as agressões da monarquia. Todos estes atos tinham o mesmo caráter intrínseco. Por eles se debilitava o princípio da cooperação obrigatória na vida social, e se fortificava o da cooperação voluntaria. Uma observação de "mister" Green, referente ao período durante o qual os liberais exerceram o poder, depois da morte da rainha Ana, demonstra que a política do partido seguia a mesma tendência geral em uma época posterior. "Antes de haverem transcorrido os cinquenta anos de seu poder - diz - os ingleses se haviam olvidado de que se pudera perseguir a alguém por diferença de religião, ou suprimir a liberdade da imprensa, ou intervir na administração da justiça, ou governar sem Parlamento". ("Compendio de História"; Pag. 705). Agora, deixando de um lado o período de guerra de fins do último século e princípios do corrente, durante o qual a liberdade perdeu grande parte do terreno conquistado, e o movimento retrógrado até ao tipo social do militarismo manifestou-se em toda a espécie de medidas coercitivas, desde aquelas que autorizaram a apoderar-se das pessoas e dos bens dos cidadãos para as necessidades da guerra, até as que suprimiram as reuniões públicas e tentaram amordaçar a Imprensa; recordemos o caráter geral das transformações efetuadas por iniciativa dos liberais, quando o restabelecimento da paz permitiu que renascesse o regime industrial com a estrutura que lhe é própria. Sob a crescente influência dos liberais, anularam-se as leis que proibiam as associações de trabalhadores e ás que restringiam a sua liberdade de viajar. Outra das reformas dos Liberais foi a lei que reconhecia aos dissidentes o direito de crer o que quisessem, sem se expor a determinadas penas civis, o que permitiu aos católicos confessar sua religião sem menoscabo de sua liberdade. Estendeu-se o campo destas com as Atas que proibiam a compra de negros e sua manutenção como escravos. Aboliu-se o monopólio da Companhia das Índias Orientais, e foi declarado livre para todos, o comércio com o Oriente. Graças ao "Reform Bill" e ao "Municipal Reform Bill", diminuiu o número dos cidadãos não representados, de modo que, assim, na nação, como no município, a massa foi, em parte, emancipada da dominação dos privilegiados. Os dissidentes, libertos da submissão á forma eclesiástica do matrimônio, puderam casar-se civilmente. Mais tarde veio a diminuição e a abolição das restrições à compra e importação de mercadorias estrangeiras, e ao emprego de navios e marinheiros de outros países; e, mais ainda, a abolição dos empecilhos à liberdade da imprensa, impostos originariamente para impedir a difusão das opiniões. É evidente que todas estas mudanças, devidas ou não aos Liberais, estavam de acordo com os princípios professados e sustentados por eles. Mas, para que enumerar fatos tão conhecidos de todos? Unicamente porque, como antes disse, parece-me necessário recordar o que foi o liberalismo nos tempos passados, afim de que se veja quanto difere dele o que atualmente traz o seu nome. Inútil seria haver indicado uma a uma essas diferentes medidas, para mostrar seu caráter comum, se não fosse porque, em nossos dias, muitos têm olvidado esse mesmo caráter comum. Não se recorda que, de uma maneira, ou de outras, todas essas mudanças verdadeiramente "liberais", diminuíam a cooperação obrigatória na vida social, e aumentavam a cooperação voluntária. Tem-se olvidado que, em um sentido ou em outro, reduziam a extensão da autoridade governamental e alargavam o campo de ação onde todo o cidadão poderia obrar livremente. Tem-se esquecido esta verdade: que em outro tempo o liberalismo defendia, habitualmente, a liberdade individual contra a coerção do Estado. Perguntamos agora: Como é que os liberais olvidaram esta verdade? Como é que o partido liberal, tendo aumentado cada vez mais seu poder, se torna cada vez mais coercitivo em suas medidas legislativas? Como é que, já diretamente, por meio de suas próprias maiorias, já indiretamente, prestando seu concurso, em certos casos, às maiorias de seus adversários, o partido liberal tem adotado com demasiada frequência, a política de dirigir as ações dos cidadãos e de diminuir, portanto, a esfera dentro da qual são livres essas ações? Como poderemos explicar essa confusão de ideias que o tem levado, na busca do que parece ser o bem público, a inverter o método que o ajudou, em tempos passados, a realizar esse mesmo bem? Embora à primeira vista pareça impossível explicar essa mudança política inconsciente, já veremos que ela se produziu de um modo natural. Conhecido o critério concreto que, geralmente, prevalece nas questões políticas, e, dadas as circunstâncias atuais, não se podia esperar outra coisa. Para demonstrar a verdade desta asserção, são necessárias algumas explicações preliminares. Em todos os animais, desde os inferiores aos superiores, a inteligência progride por atos de diferenciação: da mesma forma progride nos homens, desde os mais ignorantes, aos mais instruídos. Classificar com exatidão, colocar no mesmo grupo as coisas que são essencialmente da mesma natureza, e, em outros grupos, as que são essencialmente de natureza diferente, é a condição fundamental para dirigir bem as ações. Começando pela visão rudimentar que nos assinala a passagem de algum corpo opaco pelas nossas proximidades - da mesma maneira que, voltados para a janela, com os olhos fechados, percebemos a sombra produzida por uma mão colocada ante eles, a qual nos indica que algo se move diante de nós - chegamos, a pouco e pouco, a visão desenvolvida que, pela apreciação exata da combinação das formas, das cores e dos movimentos, nos permite reconhecer de longe os objetos, a presa, ou o inimigo, e nos põe em condições de aperfeiçoar nossa maneira de agir para assegurarmos o alimento, ou escapar a morte. Esta percepção progressiva das diferenças, e a classificação mais exata que dela resulta, constituem, sob um de seus principais aspectos, o desenvolvimento da inteligência, e se observa também, quando passamos da visão física, relativamente simples, a visão intelectual, relativamente complexa, que nos permite agrupar de uma maneira mais acertada e mais conforme com sua estrutura, ou sua natureza intrínseca, objetos antes agrupados segundo certas "Semelhanças exteriores, ou certas circunstancias extrínsecas. A visão intelectual, que não se desenvolveu, discerne tão mal e se engana tanto, como a visão física "não desenvolvida". Podemos citar, como exemplo, a classificação primitiva das plantas em arvores, arbustos e ervas, na qual a altura, isto é, o caráter mais visível, era o fundamento da distinção, e na qual os grupos eram formados reunindo muitas plantas de natureza essencialmente distinta, e separando outras da mesma família. Ou, melhor, todavia, a classificação popular que reúne sob a mesma denominação geral os peixes e as conchas (fish and shell fish), que inclui nestas últimas os crustáceos e os moluscos, e que chega até a contar entre os peixes, os mamíferos cetáceos. Seja por causa de sua semelhança na maneira de viver, como habitantes da água, seja porque os acha de sabor parecido, agruparam-se na mesma divisão e na mesma subdivisão seres os mais diferentes, por sua natureza, que um peixe e uma ave. A verdade geral, demonstrada por esses exemplos, manifesta-se igualmente nas esferas superiores da visão intelectual concernente às coisas inacessíveis aos sentidos, tais como as instituições e as medidas políticas. Também nestas questões, de uma faculdade intelectual inadequada, ou de uma cultura intelectual incompleta, resultam classificações errôneas, que conduzem a conclusões incertas. Certamente, a possibilidade de equivocar-se é aqui muito maior, posto que os objetos que são do domínio da inteligência não podem ser examinados com a mesma facilidade. Não se pode tocar nem ver uma instituirão política: somente pode ser conhecida por um esforço da imaginação criadora. Não é possível, de modo algum, compreender, pela percepção física, uma medida política: exige igualmente um processo da representação mental que combine os elementos em um pensamento e nos leve a essência da combinação. Anui, pois, mais ainda que nos casos citados, uma visão intelectual defeituosa manifesta-se no agrupamento segundo os caráteres externos e as circunstancias extrínsecas. A prova de que esta causa produz erros na classificação das instituições, é a opinião geral de que a República Romana era uma forma de governo democrático. Examinai as ideias dos velhos revolucionários franceses, e vereis que tomavam por modelo as formas e os atos políticos dos romanos; e ainda se poderia citar um historiador que fala das corrupções romanas, para mostrar as consequências dos governos democráticos. Sem embargo, há menos semelhanças entre as Instituições romanas e as verdadeiras instituições livres, do que entre um tubarão e um porco marinho: essas instituições apresentam, ao lado de uma forma exterior semelhante, estruturas internas muito diferentes. Uma sociedade, na qual os homens, relativamente, pouco numerosos, que possuíam o poder público e gozavam de certa liberdade, eram outros tantos déspotas que mantinham, não somente a seus escravos e a seus inferiores, senão mesmo aos próprios filhos, em absoluta servidão, antes pode ser considerada como uma sociedade subjugada por um despotismo vulgar, do que como sociedade de cidadãos politicamente iguais. Se passarmos agora a questão especial que nos ocupa, poderemos compreender desde logo a espécie de confusão na qual se perdeu o liberalismo, e a origem das classificações errôneas das medidas políticas que motivaram seus erros: classificações feitas, como veremos, segundo caráteres externos muito visíveis e não segundo a natureza interna das coisas. Qual era, para o povo e para os mesmos que o levavam a cabo, o fim das mudanças realizadas pelos Liberais nos tempos passados? Acabar com os prejuízos que sofria o povo, ou parte dele: tal era o seu caráter comum, e isso foi o que mais fortemente quedou impresso no espirito dos homens. Tratavam de mitigar os males que direta, ou indiretamente, afetavam a grande número de cidadãos, de diminuir as causas da miséria, de romper os obstáculos que se opunham à felicidade. E, como para a maioria dos homens, um mal que se evita equivale a um bem que se logra, essas medidas chegaram a ser julgadas como outros tantos benefícios positivos, e o bem-estar da massa foi considerado como o objetivo do liberalismo, tanto pelos seus homens de Estado, como pelos seus eleitores. Daí proveio a confusão. Como a obtenção de um bem para o povo foi o rasgo saliente comum nas medidas liberais dos passados tempos - se bem que consistia então, essencialmente, na diminuição das restrições - aconteceu que os liberais encararam o bem do povo, não como um fim que era preciso. alcançar indiretamente, com a diminuição das restrições, mas como um fim que deveria ser alcançado diretamente. E, tratando de alcança-lo diretamente, empregaram métodos intrinsecamente contrarias aos que foram empregados em princípio. Tendo demonstrado já, como se têm produzido essas mudanças na política (mudanças parciais, de todos os modos, pois que as leis recentes sobre os funerais e os esforços feitos para abolir as desigualdades religiosas, ainda existentes, mostram a continuação da política primitiva em certas direções) examinemos até que ponto se estenderam e até que ponto se estenderão no futuro, se as ideias e os sentimentos reinantes continuam prevalecendo. Antes de continuar, será bom advertir que não temos a intenção de condenar os motivos que têm sido louváveis, sem dúvida, na maior parte dos casos. Devemos admitir que as restrições impostas pela lei de 1870 ao trabalho das mulheres e das crianças nas indústrias onde se emprega o vermelho de Andrinopolis, eram, na intenção dos legisladores, tão filantrópicas, como as de Eduardo IV prescrevendo o tempo mínimo durante o qual se poderia contratar um operário. Indubitavelmente, a Acta do Parlamento relativa à distribuição de sementes na Irlanda, que permitia aos administradores comunais compra-las para os lavradores pobres e os autorizava a exigir provas de que tinham sido devidamente semeadas, foi ditada por um desejo de bem público tão grande como o que inspirou a Acta de 1533 prescrevendo o número de carneiros que um criador poderia ter, ou a de 1597, que ordenava a reconstrução das propriedades rurais em ruina. Ninguém porá em dúvida que as diferentes medidas tomadas nestes últimos anos, para restringir a venda de bebidas alcoólicas, obedecem a considerações de moral pública, da mesma maneira que as ditadas antigamente para atalhar os males do luxo, como, por exemplo, quando no século XIV, foram postos entraves aos gastos com alimentação e vestidos. Todos compreenderão que os editos publicados por Henrique VIII, para impedir às classes inferiores o jogo dos dados, naipes, etc. eram inspirados por um desejo tão grande de contribuir para o bem público, como as leis recentes que proíbem os jogos de azar. Porém, eu não me proponho a pôr em dúvida a sabedoria dessas ingerências modernas que os conservadores e os liberais multiplicam á porfia, como tampouco quero discutir a sabedoria das ingerências antigas, ás quais as primeiras se parecem em muitos casos. Não cuido de examinar se as precauções adotadas ultimamente para preservar a vida dos marinheiros são, ou não mais judiciosas que a medida radical escocesa que, em meados do século XV proibia aos capitães de navios sair dos portos durante o inverno. Por enquanto não trataremos de averiguar se há razões mais poderosas para conceder a certos inspetores o direito de visitar algumas casas, com o fim de ver se ali encontram alimentos deteriorados, do que as que existiram para Eduardo III, que ordenou aos hospedeiros dos nortes prestar juramento de que revistariam os seus hóspedes, para impedir a exportação da moeda. Admitimos que há tanto sentido na cláusula da Acta que proíbe ao proprietário de uma barca tomar por pupilos, gratuitamente, os filhos dos barqueiros, como havia nas atas relativas aos "Spitafields", em virtude das quais esteve proibido os manufatureiros, até 1824, no interesse dos artesãos, estabelecer suas manufaturas a mais de dez milhas da Bolsa Real. Não perguntaremos, pois, se os legisladores foram guiados pela filantropia e pela sabedoria; admitimos que o tenham sido por uma e por outra. Do que, unicamente, nos ternos de ocupar, é da natureza coercitiva dessas leis que boas ou más, segundo as circunstancias, foram ditadas no período em que os liberais estavam no poder. Para não buscar demasiadamente longe os exemplos, remontemos somente até 1860, época do segundo ministério de lord Palmerston. Nesse ano, as restrições contidas na lei relativa às manufaturas, estenderam-se ás indústrias de lavanderias e tinturarias: deu-se o direito de fazer analisar os alimentos e as bebidas, sendo que os gastos com estas analises ficavam a cargo das comunas; criaram-se inspetores para as fábricas de gás, fixando-se a qualidade e o preço máximo deste; ditou-se uma lei reforçando o que concerne a inspeção de minas, impondo penas para os que empregassem rapazes menores de doze anos que não tivessem frequentado escolas e não soubessem ler e escrever. Em 1861 as restrições impostas às manufaturas estenderam-se ás fábricas de molduras: os administradores do patrimônio dos pobres adquiriram o direito de impor a vacina; os conselhos locais foram autorizados a fixar o preço de aluguel dos cavalos, burros e barcas, e a alguns deles foi concedido poder para cobrar a vizinhança um tributo destinado à drenagem, á rega dos campos e a provisão de água para o gado. Em 1862 se promulgou uma lei restringindo o emprego das mulheres e das crianças nas operações de lavagens de roupas ao ar livre; outra que proibia a exploração das minas de carvão que tivessem um só poço, ou dois, separados por uma distância menor do que a especificada; e outra, afinal, outorgando ao Conselho de Instrução Medical o direito exclusivo de publicar uma farmacopeia, cujos preços seriam fixados pelo ministério da Fazenda. Em 1863 se declarou obrigatória a vacina na Escócia e na Irlanda; autorizou-se certos Conselhos a fazerem empréstimos, pagáveis por meio de contribuições locais; concederam-se direitos ás autoridades municipais para que se apropriassem dos terrenos abandonados que pudessem contribuir para o embelezamento da povoação, e para impor aos habitantes novos impostos destinados a esse fim; imediatamente veio a lei relativa ás padarias, especificando a idade mínima dos operários ocupados a certas horas, e prescrevendo a limpeza e revestimento periódico: uma vez, pelo menos, cada seis meses, três mãos de pintura e lavagem com agua quente e sabão; por último, outra lei autorizando aos magistrados a decidir acerca do bom ou mal estado dos alimentos que os inspetores lhes apresentassem. Entre as medidas coercitivas que datam de 1864 se pode citar a extensão da lei concernente às manufaturas e certas indústrias, certos regulamentos para a limpeza e ventilação, e a proibição imposta aos empregados das fábricas de fósforos de tornar seus alimentos em outra parte que não nas oficinas onde cortavam a madeira. Correspondem a este ano, ademais, uma lei sobre a limpeza de chaminés, outra sobre a venda de cerveja na Irlanda, outra que dispõe sobre o prévio ensaio dos cabos e das ancoras, outra dando mais extensão às obras públicas de 1863, e outra acerca das enfermidades contagiosas; esta última, dá a polícia, em alguns lugares, poderes que anulam, para certas mulheres, diferentes garantias da liberdade individual estabelecidas em épocas anteriores. No ano de 1865, se tomaram novas medidas para o albergue e assistência de determinados viajantes, às expensas dos contribuintes; uma lei para o fechamento das tabernas, e outra regulamentando a maneira de extinguir os incêndios em Londres. Sob o ministério de lord John Russel, em 1866, devemos citar uma lei concernente aos estábulos das propriedades rurais na Escócia, que confere às autoridades locais o direito de inspecionar as suas condições higiênicas e de fixar o número do gado; outra que obriga os plantadores de lúpulo a indicar nos fardos, o ano da colheita e o peso exato, dando a polícia a faculdade de comprovar essas exigências; outra que facilita a construção de casas de moradia na Irlanda e regulamentando o número de inquilinos; outra sobre higiene pública, ordenando a visita e inspeção das hospedarias, a limitação de seus habitantes e adoção de medidas para a sua limpeza; outra, finalmente, acerca das bibliotecas públicas, conferindo às autoridades locais poderes em virtude dos quais a maioria pode obrigar a minoria a contribuir para a compra de seus livros. Se passamos agora ao legislado sob o primeiro ministério de Gladstone, temos, em 1869, o estabelecimento do telégrafo pelo Estado e a proibição de enviar despachos por outros meios; o poder dado a um ministro para regulamentar os meios de transporte em Londres; uma regulamentação mais estrita para evitar a propagação das epizootias; uma lei sobre as cervejarias e outra acerca da conservação das aves marinhas, (cujo resultado será uma mais rápida destruição dos peixes). Em 1870 temos uma lei autorizando o Conselho de Obras Públicas a fazer adiantamentos aos proprietários, para melhorarem as suas propriedades, e aos rendeiros, para que comprem as mesmas propriedades; outra que confere ao Departamento de Educação o direito de organizar comités com poderes para adquirir terrenos para a fundação de escolas, manter estas mediante contribuições locais, custear a instrução de algumas crianças e obrigar os pais a que enviem os seus filhos ao colégio; e outra acerca das manufaturas e oficinas, criando novas restrições, entre elas, uma, relativa ao emprego das mulheres e menores nos trabalhos de conservas de frutas e salgamento de pescado. Em 1871 encontramos uma lei sobre a marinha mercante que ordena aos empregados do Conselho do Comercio inscrever o calado dos navios saídos dos portos; outra sobre oficinas e fábricas, criando restrições; outra estabelecendo penas para os que exerçam a venda ambulante sem licença, a qual é válida apenas para determinadas zonas, e autorizando a polícia a revistar os artigos desses comerciantes; e novas medidas concernentes a vacinação obrigatória. Entre as leis de 1872 podemos citar a que proibiu às amas amamentar mais de uma criança, a não ser em estabelecimentos fiscalizados pelas autoridades, que prescrevem o número de crianças que podem ser recebidas; a que proíbe aos taverneiros vender bebidas alcoólicas aos menores de dezesseis anos, e a concernente a marinha mercante que dispõe uma inspeção anual dos navios que transportem passageiros. Em 1873 ditou-se uma lei acerca do emprego dos menores nos trabalhos agrícolas, na qual se proíbe os lavradores tomar a seu serviço rapazes que não tenham certificado de instrução elementar, e outra sobre a marinha mercante que exige que os navios apresentem uma tabuleta indicando o seu calado, e concedendo aos Conselhos de Comercio o direito de fixar o número de botes e salva-vidas que cada um deve levar. Vejamos agora as leis promulgadas sob o atual ministério. Em 1880 temos uma lei que proíbe fazer adiantamentos aos marinheiros por conta de seu soldo; outra que prescreve certas medidas para o transporte dos carregamentos de trigo; e outra que permite obrigar aos pais a enviar os seus filhos à escola. Em 1881 se dita uma proibindo a venda de cerveja aos domingos, no país de Gales. Em 1882 autoriza-se ao Conselho de Comercio a expedir licenças concernentes a produção e venda da eletricidade; confere-se aos municípios o direito de estabelecer contribuições para a iluminação elétrica; autorizam-se novas imposições para os estabelecimentos de banhos e lavadouros, e as autoridades locais obtêm o poder de ditar leis acessórias para assegurar alojamento conveniente aos trabalhadores encarregados da colheita de frutas e legumes. Entre as leis de 1883 que estão nesta categoria, podemos citar as relativas aos trens econômicos, que vêm arrebatando a nação 400.000 libras anuais, pela supressão do imposto sobre viajantes, ou que à custa das empresas, permite aos trabalhadores viajar por menor preço; o Conselho de Comercio deve procurar, pela intervenção dos comissários de ferro-carris, a frequente saída dos trens e a necessária comodidade dos vagões. Ademais, a que, sob pena de dez libras de multa, em caso de contravenção, proíbe pagar aos trabalhadores nas tabernas; a nova lei sobre as fábricas e oficinas, ordenando a inspeção das fábricas de alvaiade - afim de ver se nelas há trajes apropriados para o trabalho, respiradores, banhos, bebidas aciduladas, etc. - e as padarias, regulando as horas de trabalho em umas e outras e ditando prescrições detalhadas acerca de certas construções que se devem conservar do modo determinado pelos inspetores. Porém, estaremos muito longe de ter uma ideia aproximada da questão, se examinamos somente as leis coercitivas ditadas nos últimos anos. É preciso examinar também as que são reclamadas, que ameaçam ser ainda mais radicais e restritivas. Um ministro, que se tem por liberal muito avançado, declarou, recentemente, que os planos do último governo, para melhorar a vivenda dos trabalhadores eram insuficientes, sustentando que é necessário exercer uma pressão efetiva sobre os proprietários de casas pequenas e de terrenos, e sobre os contribuintes. Outro ministro, dirigindo-se aos seus eleitores, falou com desdém dos esforços das sociedades filantrópicas e das corporações religiosas para acudir em ajuda dos pobres, e disse "que o povo inteiro devia considerar esta obra como sua", o que equivale a pedir uma grande medida governamental. Por outro lado, há um membro radical do Parlamento que aspira, com probabilidade de êxito, que cada ano vae aumentando, a impor a sobriedade, dando às maiorias locais o direito de impedir a liberdade de comercio a respeito de certas mercadorias. A regulamentação das horas de trabalho, cada vez mais geral, graças às sucessivas extensões dadas às leis sobre as fábricas, se generalizará mais ainda, provavelmente, em nossos dias: fala-se já em ditar uma medida que submeta os empregados de todos os armazéns e uma regulamentação desse gênero. Reclama-se, também, o ensino gratuito para todos. Começa-se a dizer que a retribuição escolar é uma injustiça: o Estado deve arcar com toda a responsabilidade. Muitas pessoas propõem que o Estado, considerado como juiz competente no que concerne à boa educação dos pobres, deve prestar também uma boa educação para as classes medias, dando a todas as crianças a mesma instrução oficial, cuja boa qualidade lhes parece tão evidente, como pareceu aos chineses, quando o estabeleceram, o seu sistema de educação. Desde há algum tempo, reclamam-se energicamente "fundos para as investigações". Todos os anos dá já o Estado, para esse fim, 4.000 libras que devem ser distribuídas pela Sociedade Real: e na ausência dos que têm poderosos motivos para resistir à pressão dos interessados, sustentados pelos que se deixam facilmente persuadir, se poderia estabelecer, a pouco e pouco, esse "sacerdócio da ciência" retribuído, que há tempo foi reclamado por "sir" David Brewster. Propõe-se, de novo, com possíveis razões, a necessidade de ser organizado um sistema de seguro forçado, que obrigue aos homens, em sua juventude, a fazer economias para a época em que não possam mais trabalhar. A enumeração dessas medidas coercitivas, que poderão ser levadas a cabo mais cedo, ou mais tarde, não é completa. Até aqui não aludimos ás que vão acompanhadas de algum aumento de impostos gerais ou locais. Em parte, para pagar os gastos que são necessários afim de serem postas em execução essas medidas coercitivas, cada vez mais numerosas, e cada uma das quais requerendo um maior número de funcionários, e, em parte para cobrir os ocasionados pelas novas instituições públicas, como escolas, bibliotecas livres, museus, banhos e lavadouros, lugares de recreio, etc., etc., as contribuições locais vão aumentando cada ano, ao mesmo tempo que as contribuições gerais aumentam, pelas subvenções para a educação e para os departamentos de ciências, artes, etc. Cada um desses impostos implica numa nova coação, numa restrição maior ainda das liberdades do cidadão. Cada um deles implica, de fato, no seguinte discurso dirigido aos contribuintes: "Até agora tendes sido livres de gastar essa parte de vossos ganhos como melhor o quisésseis; de agora em diante já não tendes a liberdade de dispor dela: tomamo-la nós, para o benefício público". Assim, direta, ou indiretamente, ou de ambos os modos, que é o que acontece com mais frequência, o cidadão se vê, a cada passo, nesta legislação coercitiva, privado de qualquer liberdade que gozava antes. Esses são os atos de um partido que pretende o nome de liberal e que se intitula liberal, porque acredita ser o defensor de uma liberdade cada vez maior. Estou seguro de que muitos membros do partido liberal terão lido com certa impaciência as anteriores páginas, desejosos de mostrar-me uma grave omissão que, a seu juízo, destroem a validez do argumento. "Olvidais - desejariam dizer-me - a diferença fundamental que existe entre o poder que no passado estabelecia as restrições abolidas pelo liberalismo, e o que dita atualmente essas medidas que chamais antiliberais. Olvidais que o primeiro era um poder irresponsável, e que o segundo é um poder responsável. Olvidais que se a legislação recente tem introduzido diversas regulamentações, o corpo donde elas emanam foi criado pelo próprio povo, tendo recebido deste os seus poderes". Minha resposta é que não olvidei essa diferença, e que estou disposto a sustentar que não tem importância para o proposito que nos ocupa. Em primeiro lugar, a verdadeira questão consiste em saber se se intervém mais hoje na vida do cidadão que antigamente, não em averiguar a natureza do agente interventor. Estabeleçamos um exemplo muito simples. Um trabalhador se une a outros para estabelecer uma organização de caráter puramente representativo. De acordo com esta organização, tem que se declarar em greve se assim o decide a maioria; não pode aceitar o trabalho em outras condições que não sejam as estabelecidas pela maioria; encontra-se impossibilitado de obter de sua habilidade, ou maior capacidade o proveito que obteria se fosse completamente livre; não pode desobedecer sem se privar dos benefícios pecuniários da associação, e sem se expor a perseguição e, talvez, a violência de seus companheiros. Estará menos sujeito por ter contribuído, ele próprio, como os outros, a formar o corpo que o oprime? Em segundo lugar, se se me objetar que a analogia é falsa, porque o corpo que governa uma nação, que protege a vida e os interesses nacionais, e ao qual todos se devem submeter sob pena da desorganização social, tem sobre os cidadãos maior autoridade que o governo de uma organização privada sobre os membros que a constituem, responderei que, ainda admitida a diferença, a resposta dada não é menos valiosa. Se os homens usam de sua liberdade de maneira a chegar ao desaparecimento dela, serão, por isso, menos escravos no que suceder? Se um povo elege, por meio de um plebiscito, a um homem que o governe despoticamente, permanecerá livre só porque esse plebiscito foi obra sua? As medidas coercitivas que dita esse déspota, devem ser consideradas como legitimas porque são o fruto do voto popular? Se assim se julgasse, poder-se-ia, igualmente, sustentar que o habitante da África, ao quebrar seu arco em presença de outro declarando-se, portanto, seu escravo, continuaria sendo livre, por ter eleito, livremente, o seu senhor. Por último, se alguns liberais, não sem certa irritação, como devo supor, desdenham este raciocínio e dizem que não existe verdadeiro paralelismo entre relação de povo a governo onde há um senhor único, irresponsável, eleito para governar de um modo permanente, e essa mesma relação onde existe um corpo responsável, submetido de tempos a tempos a reeleição, então, minha resposta última, certamente, heterodoxa, assombrará a muitos. Minha resposta é que, os atos restritivos não podem ser defensíveis pela alegação de que emanam de um corpo eleito pelo povo; porque a autoridade de um corpo eleito pelo povo não pode ser considerada ilimitada, como tampouco o pode ser a autoridade de um monarca. Do mesmo modo que o liberalismo lutou, nos tempos passados, contra o rei que pretendia exercer uma autoridade ilimitada, o verdadeiro liberalismo de nossos dias lutará contra o Parlamento que se queira arrogar semelhante autoridade. Não insistirei mais sobre isto, esperando que esta minha resposta seja suficiente. Tanto antigamente como em nossos dias, o verdadeiro liberalismo tem demonstrado em seus atos uma tendência para a limitação da autoridade parlamentar. Todas as abolições das leis que restringiam as crenças e as práticas religiosas, o comércio e os transportes, as associações trabalhistas e a liberdade de viajar dos trabalhadores etc., etc., são testemunhos eloquentes do desejo de uma limitação. Da mesma maneira que o abandono das antigas leis sumptuárias, ou das que proibiam determinados passatempos, ou das que prescreviam certa forma de cultivo, e outras muitas de igual gênero, implicava a crença de que o Estado não devia intervir nessas questões, as medidas adotadas pelo partido liberal, durante a última geração, para desviar os obstáculos que se opunham à atividade individual sob seus diferentes aspectos, expressavam a opinião de que, também nessa esfera devia restringir-se a ação governamental. Ao reconhecer a utilidade que implicava limitar a ação governamental, preparava-se a limitação em teoria. Uma das verdades políticas mais familiares é que, no curso da evolução social, os costumes precedem às leis; que estas resultam daqueles, quando estão solidamente estabelecidos, sanção oficial e forma definida. Evidentemente, pois, o liberalismo, ao praticar a limitação antigamente, preparava a via a este princípio. Porém, deixando estas considerações gerais e tornando a questão especial que nos ocupa, insisto na resposta de que a liberdade que goza o cidadão deve ser medida. não com referência a natureza do mecanismo governamental sob que viva, seja ou não, representativo, mas, de acordo com o número relativamente escasso de restrições que se lhe imponham, e em que o funcionamento desse mecanismo, tenha sido ou não, criado com o concurso do povo, não terá um caráter liberal se aumentam estas restrições além do necessário para impedir toda agressão direta ou indireta, isto é, mais além do que o necessário para manter a liberdade de cada um contra os ataques dos demais; essas restrições, poderão ser designadas como negativamente coercitivas, e não como positivamente coercitivas. É provável que ainda proteste o liberal e, sobretudo, sua subespécie, o radical, que mais do que nenhum outro parece, em nosso tempo, estar dominado pela crença de que, se o fim que pretende é bom, tem direito a exercer sobre os homens toda a coação possível. Sabendo que o seu objetivo é o bem do povo, que deve ser realizado de uma maneira ou de outra, e crendo que o conservador, ao contrário, é guiado pelo interesse de casta e pelo desejo de manter o poder das castas, o radical considerará manifestamente absurdo que se o inclua na mesma categoria que o seu adversário, e desdenhará o arrazoamento empregado para provar que realmente faz parte dela. Talvez, uma analogia o ajuda a compreender a certeza do que dizemos. Se lá, no longínquo Oriente, onde o governo pessoal é a única forma de governo conhecida, ouvisse narrarem os habitantes o resultado de uma luta na qual um déspota cruel e vicioso havia sido destituído, sendo posto em seu lugar um outro, cujos atos demonstram preocupação pelo bem-estar de todos, e, depois de os ouvir dizer isso, lhes dissesse que não haviam modificado essencialmente a natureza de seu Governo, assombrar-se-iam grandemente e, sem dúvida, não lhe seria coisa fácil fazer-lhes compreender que substituir um déspota malévolo por outro afável, não impede que o governo continue sendo despótico. Este é o caso do conservadorismo bem entendido. Quando é sinônimo de coação exercida pelo Estado em oposição a liberdade dos indivíduos, o conservadorismo permanece sendo conservadorismo, sejam interessados ou desinteressados os moveis da coação. Como um déspota é sempre um déspota, quaisquer que sejam as razões, boas ou más, que o levem a exercer o poder arbitrariamente, da mesma forma, o conservador é sempre conservador, sejam interessados ou desinteressados os motivos que o impelem a empregar o poder do Estado para restringir a liberdade individual além ao limite necessário para a manutenção da liberdade dos demais. O conservador desinteressado pertence ao mesmo gênero que o conservador egoísta, embora dentro dele, constitua uma variedade nova. Ambos formam um contraste bem visível com o liberal, tal como se definia na época em que os liberais mereciam realmente esse nome, isto é, como "uma pessoa que pugna pela abolição progressiva de todas as restrições, sobretudo em matéria política". Assim, pois, fica justificado o paradoxo que estabeleci ao começar. Como já temos visto, o conservadorismo e o liberalismo surgiram, um do militarismo, outro do industrialismo. O primeiro sustentava o regime do Estado, e o segundo o regime do contrato; aquele, a cooperação forçada que acompanha a desigualdade legal das classes, e este, a cooperação voluntaria, que acompanha a sua igualdade legal; e é indiscutível que os primeiros atos dos dois partidos tenderam, por uma parte, a fortalecer as instituições que mantêm a cooperação forçada, e, pela outra, a diminuir ou suprimir essas instituições. A conclusão evidente do que antecede é que, havendo contribuído para estender o sistema coercitivo, o que atualmente se chama liberalismo, não é mais do que uma nova espécie de conservadorismo. (Algumas publicações que mencionaram estas doutrinas, quando as publiquei, supuseram que nos parágrafos anteriores tratava-se de demonstrar que os liberais e conservadores haviam-se mutuamente se substituído. Isso é um erro, pode aparecer uma nova espécie de conservador, sem que a espécie originaria tenha desaparecido. Quando eu digo, por exemplo, que em nossos dias "conservadores e liberais multiplicam á porfia suas ingerências", indico claramente a minha opinião de que, se os liberais fomentam as leis coercitivas, os conservadores não renunciaram a fazer o mesmo. Sem embargo, é inegável que as leis ditadas pelos liberais aumentam as coações e as restrições de tal modo, que entre os conservadores, os quais, como os demais, sofrem as consequências, se observam tendências a resisti-las. A prova é que a "Liga para a Defesa da Liberdade e da Propriedade ", composta, em grande parte, de conservadores, tomou por lema "Individualismo contra Socialismo". Se a marcha atual das coisas continua, depressa pode ocorrer, realmente, que os conservadores se convertam em defensores das liberdades que os liberais ferem, procurando o modo de fazer o que eles acreditam que seja a felicidade do povo). A certeza desta asserção será ainda mais claramente demonstrada nas páginas seguintes. A ESCRAVIDÃO FUTURA Uma das provas do parentesco entre o amor e a piedade, é que esta, como aquele, idealiza seu objetivo. A simpatia para com uma pessoa que sofre, faz com que se olvidem, momentaneamente, as faltas que haja cometido. O sentimento que revela a frase "Pobre homem", ao se contemplar um indivíduo desgraçado, exclui a ideia de "mau homem", que nos poderia ocorrer em outras circunstancias. Naturalmente, se os desgraçados são desconhecidos de uma forma vaga, ignoram-se todos os seus deméritos; desse modo, quando em uma época como a nossa, pintam-se as misérias dos pobres, o público as imagina como a miséria dos pobres virtuosos, em lugar de imagina-las - o que seria mais justo na maior parte dos casos - como as misérias dos pobres culpáveis. Aqueles cujas penalidades se expõem nos folhetos, nos sermões e nos discursos que ecoam de um extremo ao outro do país, são-nos apresentados todos como personagens muito dignos, vítimas de injustiças cruéis: nenhum deles nos é apresentado como sofrendo a pena de suas próprias faltas. Quando se toma um coche em Londres, é assombroso ver a abundância de pessoas que, esperando receber alguma recompensa por seu trabalho, abrem complacentemente a portinhola. A surpresa diminui ao se observar o grande número de desocupados que há em redor das tavernas, e a multidão de vagabundos que atrai qualquer espetáculo de rua, ou uma procissão. Vendo quão numerosos são em tão pequena superfície, compreende-se que milhares de indivíduos semelhantes devem formigar em Londres. "Não têm trabalho", dir-me-á. Diga-se melhor que, ou recusam trabalhar, ou se fazem despedir imediatamente por quem os emprega. São, simplesmente, parasitas que, de uma forma ou de outra, vivem a extensa dos homens que valem alguma coisa; vagabundos e imbecis, criminosos ou em via de o serem, jovens mantidos por seus pais que trabalham duramente, maridos que se apropriam do dinheiro ganho por suas mulheres, indivíduos que participam do rendimento das prostitutas; e, misturada a tudo isso, encontra-se uma classe correspondente, de mulheres, menos visível e menos numerosa. É natural que a felicidade seja o quinhão de indivíduos dessa classe? Não é, mais certo e lógico, que atraiam a desgraça sobre si e sobre os que o rodeiam? Não é evidente que em nosso meio deve haver uma imensidade de misérias que são o resultado normal da má conduta, e que deveriam estar sempre associadas a esta? Ha uma opinião, mais ou menos espalhada em todos os tempos, e preconizada em nossos dias com grande fracasso, segundo a qual toda a dor social pode ser remediada, sendo dever de uns e de outros faze-la desaparecer. As duas coisas são falsas. Separar o castigo da má ação, é lutar contra a natureza das coisas, e causar uma quantidade de dor ainda maior. Livrar os homens do castigo natural de uma vida dissoluta, dá ocasião a que se lhes aplique castigos artificiais nas celas e solitárias, como o da roda e o do látego. A meu juízo há um axioma cuja verdade é igualmente admitida pela crença comum e pela ciência, e que pode ser considerado, portanto, ele uma autoridade indiscutível. O mandamento "quem não queira trabalhar, não deve comer", é, simplesmente, o enunciado cristão de uma lei da Natureza, lei sob cujo Império a vida alcançou o seu atual desenvolvimento, e pela qual, toda a criatura incapaz de se bastar a si mesma, deve perecer; a única diferença está em que a lei, que, em um caso, deve ser imposta à força, é, em outro, uma necessidade natural. Sem embargo, esse doma particular de sua religião, que a ciência justifica de uma maneira tão evidente, é o que os cristãos parecem menos dispostos a aceitar. A opinião corrente é que não deve haver sofrimentos, e que a sociedade é responsável pelos que existem. "Indubitavelmente, - dizem - temos alguma responsabilidade, embora sejam pessoas indignas de todo o interesse as que sofrem". Se, com tal afirmativa, se quer referir não somente a nós mesmos, mas também a nossos antepassados, e sobretudo aos que fizeram as leis, nada tenho que replicar. Admito que os autores, modificadores e executores da antiga lei dos pobres são responsáveis pela desmoralização produzida, cujos efeitos durarão muitas gerações antes de desaparecerem. Admito também que os legisladores recentes e atuais são responsáveis, em parte, pelas medidas que tornaram possível a existência de um exército permanente de vagabundos, que vão de uma a outra associação, e que deles é, igualmente, a responsabilidade da presença entre nós de um número crescente de criminosos, posto que permitem sair os licenciados dos presídios em condições que os forçam quase á pratica de novos crimes. Admito, ainda, que os filantropos têm também a sua parte de responsabilidade, uma vez que, para ajudar aos filhos de gente indigna, prejudicam os pais virtuosos, impondo a estes últimos contribuições locais cada vez mais elevadas. Admito, ademais, que esse enxame de parasitas, alimentados e multiplicados por instituições públicas e privadas, sofreu mais por ingerências perniciosas, do que teria sofrido sem elas. São estas as responsabilidades de que se fala? Creio que não. Se deixarmos de lado a questão das responsabilidades, de qualquer modo que se conceba, e consideramos unicamente o mal em si mesmo, que diremos de seu tratamento? Começarei referindo um fato. Um dos meus falecidos tios, o reverendo Tomaz Spencer, titular durante vinte anos de "Hinton-Charterhouse", próximo de Bat, desde que começou o exercício de suas funções, afirmou sua solicitude pelo bem estar dos pobres, estabelecendo uma escola, uma biblioteca, uma sociedade para lhes proporcionar roupas, e fazendo com que se distribuíssem terrenos e se construíssem casinhas de campo, modelo, para eles. Até o ano de 1833, foi o amigo dos indigentes, defendendo-os sempre contra o administrador dos socorros aos mesmos destinados. Porém, sobrevieram os debates acerca da lei dos pobres, e compreendeu os maus efeitos do sistema até então em vigor. Embora filantropo ardoroso, não era um tímido sentimentalista. Assim, pois, desde que se promulgou a nova lei, tratou de aplicar as suas disposições. Levantou-se contra ele uma oposição quase geral, não somente por parte dos pobres, mas, também, por parte dos lavradores, sobre os quais recaía o peso de novas contribuições destinadas ao caso. De fato, ainda que pareça estranho, estes últimos tinham, aparentemente, interesse em manter o antigo sistema, que lhes impunha pesados encargos. Eis aqui a explicação. Havia-se introduzido o costume de pagar com os fundos de socorro parte do salário dos trabalhadores do campo. "Complemento do salário" denominava-se esta soma. E, embora os lavradores houvessem subministrado a maior parte dos fundos de onde esse "complemento do salário" era tirado, como todos os demais contribuintes entravam com sua quota, eles pareciam sair ganhando nesse arranjo. Meu tio, que não se deixava assustar facilmente, afrontou toda a oposição, e fez executar a lei. O resultado foi que, em dois anos, reduziram-se as contribuições de setecentas a duzentas libras anuais e que, ao mesmo tempo, melhorou muito a situação da paróquia. "Os que até então perambulavam pelas esquinas das ruas, ou portas das tavernas, tiveram o que fazer, foram obtendo trabalho uns atrás dos outros", de forma que, em uma povoação de oitocentos habitantes, dos quais cem recebiam, antes, socorro a domicílio, quinze somente necessitaram ser enviados à "União" de Bat, quando esta foi estabelecida. Se me dissessem que o telescópio de vinte libras que alguns anos mais tarde foi dado de presente a meu tio, prova unicamente a gratidão dos contribuintes, responderei que, mais tarde ainda, quando morreu em consequência de trabalhar mais do que lhe permitiam as forças, pelo bem estar do povo, ao ser conduzido o seu cada ver para Hinton, onde deveria ser sepultado, o comboio fúnebre foi acompanhado não somente pelas pessoas de posição, mas também pelos pobres. Várias razões obrigaram-me a fazer esta curta narração. Uma delas, o desejo de provar que a simpatia pelo povo e os esforços desinteressados tendentes ao seu bem-estar, não implicam necessariamente a aprovação dos socorros gratuitos. Outra, a de mostrar que o bem pode resultar, não da multiplicação dos remédios artificiais para mitigar a extrema miséria, mas, ao contrário, da diminuição desses remédios. Meu terceiro proposito, por último, foi preparar o caminho para uma analogia. Sob outra forma, e em uma esfera diferente, vamos estendendo agora, de ano para ano, um sistema em todo idêntico ao antigo do "complemento do salário". Ainda que os políticos não reconheçam o fato, é fácil demonstrar que algumas medidas ditadas para proporcionar comodidades a classe trabalhadora, a expensas dos contribuintes, são intrinsicamente iguais ás aplicadas em outro tempo ao operário que era considerado como meio trabalhador e meio indigente. Em ambos os casos, o trabalhador recebe em troca do que faz, dinheiro para comprar alguns objetos de que necessita; para que se proveja dos demais, facilitasse-lhe meios obtidos do fundo comum criado pelas contribuições. Nada importa que os objetos que lhe dão gratuitamente os contribuintes, em vez do patrão, de um modo direto, em forma de salário, sejam de tal ou qual espécie: o princípio é o mesmo. Vejamos as somas e os objetos e gozos proporcionados e comparemos. Na época da antiga lei dos pobres, o lavrador dava em forma de salário, o equivalente ao aluguel, ao pão, às roupas e ao aquecimento, e os contribuintes subministravam ao indivíduo e a sua família, calçado, chá, açúcar, luz, toucinho, etc. Naturalmente a divisão é arbitraria, porém, é indubitável que o lavrador e os contribuintes proporcionavam esses objetos em comum. Atualmente o operário recebe de seu patrão, em paga de seu trabalho, o equivalente aos objetos de consumo, enquanto que o público lhe facilita a satisfação de outras necessidades e desejos. Graças aos contribuintes tem, em alguns casos, e depressa terá em muitos mais, uma casa por preço inferior ao devido; pois, evidentemente, quando, por exemplo, uma municipalidade como a de Liverpool, gasta cerca de duzentas mil libras, e está a ponto de gastar outras tantas, para demolir e reedificar as vivendas das classes inferiores, pode-se inferir que, de certa maneira, os contribuintes facilitam aos pobres um alojamento mais cômodo do que o que poderiam ter de outro modo, pagando o mesmo aluguel. Os mesmos contribuintes pagam, ademais, a maior parte dos gastos ocasionados pela instrução dos filhos dos trabalhadores, e é provável que, bem depressa, o total dessa despesa corra por conta sua. Também lhes proporcionam livros, jornais e lugares onde os possam ler. Noutros casos, como acontece em Manchester, estabeleceram ginásios para as crianças de ambos os sexos e sítios de recreio. Isto é, os operários recebem, graças aos fundos criados pelos impostos locais, benefícios superiores aos que poderiam obter com seus salários. A única diferença, pois, entre este sistema e o antigo do "complemento do salário", é a que existe no gênero de satisfações obtidas, diferença que não afeta em nada a natureza das coisas. Por outro lado, a mesma ilusão prevalece nos dois sistemas. O que em ambos se considera como um dom gratuito, não o é, de modo algum. A soma que, sob a antiga lei dos pobres, o trabalhador meio indigente recebia da paróquia para completar seu salário não era, na realidade, uma doação, posto que ia acompanhada de uma diminuição correspondente do jornal, como bem depressa se demonstrou, quando da abolição do sistema, que foi seguida da elevação dos salários. O mesmo acontece com os benefícios aparentemente outorgados aos trabalhadores das cidades. Não me refiro somente ao fato de que eles paguem, sem se dar conta, parte desses benefícios, satisfazendo, por exemplo, um aluguel de casa mais caro, (quando não são contribuintes), mas, também, ao de que os salários diminuem, à medida que aumentam os encargos públicos que pesam sobre os patrões. Lede os ultimes ditames da greve algodoeira no Lancashire, e tereis a prova facilitada pelos próprios obreiros, de quanto íntima é a margem de benefícios, tanto, que os fabricantes menos hábeis e os que não dispõem de capital, forçosamente hão de quebrar; as próprias sociedades cooperativas que com eles competem, raramente se podem manter. Deduzi, agora, as consequências desse fato no que respeita aos salários. Entre os gastos de produção, há que contar as contribuições gerais e locais. Se, como acontece nas grandes cidades, os impostos locais absorvem, pelo menos, a terça parte da renda efetiva, se essa terça parte se deve pagar, não somente da vivenda particular, como também do escritório, da fábrica, dos armazéns, etc., necessariamente essa soma deve ser retirada dos interesses do capital, ou da importância dos salários, ou, mesmo, de um e de outro lado. E se a competência entre os capitalistas da mesma indústria, ou de outras indústrias, é causa de se manter o interesse do capital em nível tão baixo, que, se uns ganham, outros perdem e não poucos se arruínam, e, como consequência, o capital, sem a renumeração competente, toma outros rumos, claro é que ao trabalhador só se oferecem dois caminhos: ou menos trabalho, ou menor salário. Ademais, por análogas razões, os encargos locais aumentam o preço dos artigos de consumo. Os preços exigidos pelos comerciantes retalhistas, estão determinados pelo interesse decorrente do capital empregado no comércio a retalho, e os gastos extraordinários deste comercio, devem ser compensados por preços também extraordinários. Deste modo, o trabalhador das cidades, hoje, como em outro tempo, o dos campos, perde por um lado o que ganha por outro. Ha que acrescentar, ainda, os gastos ocasionados pela Administração e os dispêndios inúteis que a acompanham. Porém, que relação tem tudo isto com a "escravidão futura"? Perguntar-se-me-á. Nenhuma relação direta, porém, sim, indireta, desde muitos aspectos, como mais adiante veremos. Diz-se que, quando se estabeleceram as ferrovias na Espanha, acontecendo que alguns camponeses fossem atropelados, foram esses acidentes atribuídos aos maquinistas, que não detinham os trens a tempo: a pratica agrícola não permitira que se fizesse ideia alguma do impulso adquirido por uma massa enorme que se move a grande velocidade. Acode a minha memória esse fato, ao examinar as ideias que os políticos denominados "práticos", os quais não suspeitam a existência de um "momento" político, e menos ainda, de um "momento" político que, longe de diminuir, ou de permanecer estável, aumenta sem cessar. A teoria de acordo com a qual o político procede habitualmente, é a de que as mudanças operadas por suas medidas se deterão no ponto em que ele quer que se detenham. Examina atentamente os resultados imediatos de seus atos, porém, sequer imagina os efeitos longínquos do movimento por ele produzido e, menos ainda, os concomitantes. Quando, na época da guerra, se necessitava imprescindivelmente de "carne para canhão", estimulava-se aos pais para que tivessem muitos filhos; quando "mister" Pit dizia: "Procuremos fazer com sue os socorros concedidos às famílias numerosas, sejam um direito e uma honra, em lugar de ser um motivo de opróbrio e de menosprezo", não supunha que as contribuições para os pobres se quadruplicariam em cinquenta anos, que, atendendo ao socorro recebido das caixas dos indigentes, as mulheres com filhos ilegítimos seriam preferidas ás honradas para contrair matrimonio, e que uma multidão de contribuintes desceriam a extrema pobreza. Os legisladores que, em 1833, votaram vinte mil libras para ajudar a construção de escolas, não supuseram que tal medida havia de acarretar depois contribuições forçadas, gerais e locais, que se elevam atualmente a seis milhões de libras; não tiveram a intenção de estabelecer o princípio de que A seria responsável pela educação dos filhos de B; não imaginaram que as viúvas poderiam ser privadas do auxílio de seus filhos de certa idade; e menos suspeitaram de que os seus sucessores, autorizando aos pais indigentes a se dirigirem aos administradores do patrimônio dos pobres, para pagar a retribuição escolar de seus filhos, criariam o costume de tudo esperarem desses administradores, formando o pauperismo. E os que, em 1834, aprovaram a lei que regulamentava o trabalho das mulheres e dos menores em certas manufaturas, não imaginaram que o sistema assim iniciado, acabaria na restrição e inspeção do trabalho em todas as classes de estabelecimentos onde se empregam mais de cinquenta pessoas, nem puderam suspeitar que a inspeção chegaria ao extremo de exigir de "toda a pessoa jovem" que desejasse colocação em uma fábrica um certificado médico, cujo prévio exame pessoal, (ao qual não se estabelece nenhum limite) assegure que é valido e não padece nenhuma enfermidade ou achaque que o incapacite para o trabalho, dependendo do referido certificado, poder a pessoa jovem ganhar ou não seu salário. Menos ainda, como já tenho dito, prevê o político que se gaba de conhecer as vias práticas, os resultados indiretos que se seguirão aos efeitos de suas medidas. Assim, para citar um exemplo de ordem igual aos anteriores, o sistema de "retribuir segundo os resultados" tinha unicamente por objetivo estimular os professores de uma maneira eficaz, não se pensou que tal estimulo poderia ser prejudicial para a saúde, nem que os levaria a adotar métodos de "ensinamento indigesto" e a exercer uma pressão excessiva sobre crianças débeis, ou pouco inteligentes, com frequência em detrimento de seu desenvolvimento, cujo resultado seria um empobrecimento físico que, certamente, não pode ser compensado pelos conhecimentos gramaticais ou geográficos. A proibição de abrir uma taberna sem licença, tinha por objetivo a manutenção da ordem pública; jamais se acreditou que esta medida pudesse ter uma influência poderosa e funesta nas eleições. Não ocorreu aos políticos "práticos" que impuseram uma tabela de carga obrigatória aos navios mercantes, que o prestigio dos armadores faria com que tal tabela se elevasse até ao limite extremo e que, de precedente em precedente, se elevasse por graus nas melhores naves, o que se realizou, segundo informações que possuo, de boas fontes. Os legisladores que há quarenta anos obrigaram às companhias ferroviárias a facilitar passagens econômicas, ter-se-iam rido se alguém lhes dissesse que chegaria um tempo em que seria preciso castigar os que interpretam essa disposição em um sentido mais amplo. Sem embargo, assim aconteceu, pois, tem-se castigado mais de uma vez as companhias que estabeleceram serviços de terceira classe nos trens rápidos: foi-lhes imposta uma multa igual ao preço obtido de cada viajante assim transportado. A este exemplo, tomado das ferrovias, ajuntemos um fato que resulta da comparação entre a forma como as mesmas são administradas na França e na Inglaterra. Os legisladores franceses que ditaram medidas para a encampação das linhas férreas pelo Estado, não imaginaram que isso poderia redundar em prejuízo para os viajantes; não previram que o desejo de não diminuir o valor de uma propriedade que, por fim, deve pertencer ao Estado, impediria autorizar a abertura de novas linhas e que, faltando a concorrência, a locomoção seria mais lenta e mais cara, e os trens menos frequentes. De fato, o viajante inglês tem, sobre o francês, segundo demonstrou recentemente sir Tomaz Farrer, grandes vantagens na economia, na rapidez e na frequência com que pode transportar-se de um para outro sitio. Porém, o político "prático" que, a despeito de tais experiencias, repetidas de geração em geração, continua pensando somente nos resultados próximos, não suspeita sequer, naturalmente, outros efeitos ainda mais distantes, ainda mais gerais e ainda mais importantes que os anteriormente aduzidos como exemplos. Repetindo a metáfora já empregada, jamais se pergunta se o "momento político" posto em ação por sua medida, diminuindo algumas vezes, porém, aumentando fortemente em outros casos, seguirá, ou não, a mesma direção geral que outros "momentos" análogos, e se se poderá unir a eles para produzir rapidamente um movimento composto que origine mudanças das quais nunca se havia pensado. Contemplando unicamente os efeitos da corrente produzida por suas próprias leis, e não vendo outras correntes já existentes, e outras ainda devidas ao impulso dado, que seguem a mesma direção, não nota de que todas essas correntes podem se unir para formar uma torrente que mudará por completo a face das coisas. Ou, abandonando a metáfora, não tem consciência de que ajuda a criar um determinado tipo de organização social, nem de que medidas análogas, produzindo análogas mudanças de organização, tendem, com força cada vez maior, a generalizar esse tipo, até que, em um momento dado, a tendência chegue a ser de tal modo poderosa, que se torna irresistível. Do mesmo modo que cada sociedade aspira, na medida do possível, a criar outras sociedades de estrutura análoga à sua própria; do mesmo modo que na Grécia os espartanos e os atenienses se esforçaram á porfia em propagar suas instituições políticas respectivas; do mesmo modo que na época da Revolução Francesa, as monarquias absolutas da Europa trabalharam para restabelecer a monarquia absoluta na França, enquanto que a república alentava a formação de outras repúblicas, assim em cada sociedade tendem a se propagar as estruturas criadas. Do mesmo modo que o sistema de cooperação voluntaria, estabelecido por companhias, por associações formadas com fins industriais, comerciais, ou de outra classe, estende-se a toda uma comunidade, assim se propaga o sistema contrário, da cooperação forçada, sob a direção do Estado. E quanto mais se estende qualquer deles, mais ganha em força expansiva. A questão capital para todo o político devia ser sempre: "Que tipo de estrutura social desejo produzir?". Porém, jamais se formula esta pergunta. Nós queremos faze-la aqui por ele. Observemos agora a tendência geral das mudanças recentes, com a corrente de ideias que os acompanham, e vejamos onde nos leva. Eis aqui, na forma mais simples, a pergunta que os políticos se fazem diariamente: "Já fizemos isto, por que não faremos aquilo?". E o respeito aos precedentes, que isto implica, impele sempre a novas regulamentações. Estendendo-se a ramos da indústria, cada vez mais numerosos, as Atas do Parlamento que restringem as horas de trabalho e prescrevem a maneira de tratar os trabalhadores, devem agora ser aplicadas aos armazéns. Da inspeção das casas de moradia coletiva para limitar o número de inquilinos e impor as devidas condições higiênicas, passamos a inspeção de todas aquelas que não rendem determinada renda e nas quais habitam mais de uma família, e depressa passaremos a de todas as que sejam menores. A compra e exploração dos telégrafos pelo Estado, serve de fundamento para reclamar igual medida a respeito das ferrovias. O fato de dar instrução gratuita ás crianças, será seguido em alguns casos, pelo de lhes facilitar da mesma forma o alimento, e quando este uso se haja generalizado gradualmente, podemos estar seguros de que se estenderão a outros muitos casos; esta extensão será a consequência lógica do princípio de que tão indispensável é fortalecer o corpo como o espírito, para formar um bom cidadão. E, em seguida, apoiando-se abertamente nos precedentes da igreja, a escola e a sala de leitura, sustentadas às expensas do público, se diz que "o prazer, no sentido que geralmente se dá hoje a esta palavra, necessita ser regulamentado e organizado pelas leis, da mesma forma que o trabalho". Estas usurpações da regulamentação devem ser atribuídas, não somente aos precedentes, mas, também, a necessidade de suprir as medidas ineficazes e de remediar os males artificiais que surgem continuamente. A falta de êxito não destrói a fé nos meios empregados; porém, sugere a ideia de os usar de uma maneira mais rigorosa, ou de aplica-los em maior número de casos. Como as leis contra a intemperança, velhas de séculos e ainda em vigor em nossos dias, em que a necessidades de restringir a venda das bebidas alcoólicas ocupa muitas sessões durante cada legislatura, não tem produzido o efeito esperado, reclamam-se outras mais severas que proíbam em absoluto a venda das referidas bebidas em algumas localidades; e aqui, como na América, pedir-se-á, sem dúvida, depois, que a proibição seja geral. Não tendo conseguido os numerosos meios ideados para "extirpar" as numerosas epidemias, impedir a varíola, as febres, etc. etc., solicita-se um novo remédio, consistente em dar a polícia o direito de visitar as casas para ver se há pessoas atacadas de alguns desses males, e em autorizar aos médicos para que possam examinar a qualquer pessoa que suponham padecer alguma enfermidade epidêmica ou infeciosa. Havendo favorecido a lei dos pobres, durante duas gerações, o desenvolvimento do habito da imprevidência, e multiplicado o número de imprevidentes, propõe-se agora, como remédio, a males causados pela caridade obrigatória, o seguro obrigatório. O desenvolvimento desta política, originando o recrudescimento de ideias correspondentes, sustenta em todos os lugares a opinião de que o Governo deve intervir sempre que qualquer coisa não andar direito. "Certamente não querereis que esses males continuem!". Exclamará alguém, se expondes qualquer objeção contra o que agora se diz, ou se faz. Notai o que esta objecção implica. Em primeiro lugar admite como certo que todas as dores devem ser impedidas, o que não é verdade; muitas dores são curativas e, ao impedi-las, impedir-se-ia o efeito do remédio. Em segundo lugar, supõe que todos os males poder ser aliviados, quando o certo é que, com os defeitos inerentes à natureza humana, muitos males somente podem ser mudados de lugar, ou de forma, aumentando frequentemente sua intensidade com a troca. A exclamação implica também a firme crença de que o Estado devia dar remédio aos males de todas as espécies. Não se cogita de que existam outros meios que possam evitar alguns deles, e se aqueles de que se trata são dos que possam ser evitados com esses meios. E, evidentemente, quanto mais o Governo intervém, mais se firma esta maneira de pensar, e com mais insistência se reclama a sua intervenção. Toda a extensão da regulamentação administrativa implica a nomeação de novos agentes reguladores, um maior desenvolvimento da burocracia e aumento de poder dos corpos de funcionários. Tomai uma balança; colocas em um dos pratos muitos grãos de chumbo e alguns poucos no outro; tirando chumbo do prato mais carregado e passando-o para o outro, chegará um momento em que se restabelecerá o equilíbrio; porém, se continuais a operação, a posição reciproca dos pratos mudará. Supondo que a haste da balança está dividida em duas partes desiguais e que o prato menos carregado esteja do lado maior, neste caso, produzindo um efeito mais considerável a mudança do chumbo, a mudança de posição dos pratos se verificará mais de pressa. Emprego esta figura para mostrar o resultado que se obteria trasladando um indivíduo depois do outro, da massa governada da comunidade, às estruturas governamentais. A mudança debilita uma e robustece a outra muito mais do que faria supor a troca relativa do número. Um corpo, relativamente pequeno, de funcionários que tenha interesses comuns e aja sob a direção de uma autoridade central, tem imensa vantagem sobre um público que não tenha regras fixas de conduta e que não possa ser impelido a agir de acordo, senão sob o império de uma forte provocação. Isto é que torna as organizações de funcionários, que alcançam certa fase de desenvolvimento, cada vez mais irresistíveis, como vemos nas burocracias do continente. Não somente diminui a força de resistência da parte governada em razão ao que aumenta na parte governante, senão que, também, os interesses privados de muitos indivíduos, aceleram ainda as variações da proporção. As conversações de todos os círculos demonstram que, em nossa época, na qual os destinos públicos se provêm por oposição, educam-se os jovens para que possam sair vitoriosos e obter um emprego. Daí resulta que muitos homens que, de outro modo, reprovariam o aumento do funcionalismo, inclinam-se a contempla-lo, senão com agrado, com certa tolerância, posto que lhes oferece a probabilidade de uma carreira para seus filhos ou protegidos. Todos os que sabem quantas famílias ha, nas classes médias e altas, desejosas de colocar os seus filhos nas repartições do Estado, terão a prova de que a regulamentação legislativa é alentada por aqueles que, se não tivessem em jogo os seus interesses pessoais, ser-lhe-iam hostis. Esta predileção pelas carreiras oficiais aumenta ainda pela preferência concedida ás que se reputam respeitáveis. "Embora o salário seja pequeno, sua ocupação será a de um gentleman", diz para si mesmo o pai que deseja obter para seu filho um emprego do Governo. E a dignidade relativa dos empregados do Estado, comparada com a dos do comércio, aumenta, à medida que a organização administrativa adquire mais importância e mais poder na sociedade, tendendo a fixar o tipo de honra. A ambição predominante de um jovem, na França, é obter um modesto cargo oficial em sua localidade, chegar em seguida a um posto no Governo da província e passar por último a uma Diretoria em Paris. E na Rússia, onde esta universalidade da regulamentação administrativa, que caracteriza o tipo militante da sociedade, está ainda mais difundida, vemos a mesma ambição levada ao limite extremo. "Mister" Walace, citando certa passagem de uma obra dramática, diz: "Todos os homens, inclusive os vendeiros e sapateiros, aspiram a ser funcionários públicas; e o homem que passou toda a sua vida sem haver desempenhado um cargo oficial, parece que não é uma criatura humana". A estas diferentes influencias, operando de cima para baixo, correspondem esperanças e solicitações, cada vez mais poderosas, que vêm de baixo para cima. Os homens submetidos a rude labor e acabrunhados por pesados encargos, que formam a grande maioria, e mais ainda, os incapazes que são continuamente socorridos e aspiram ainda socorros mais amplos, sustentam com empenho todos os projetos que lhes prometam tais ou quais benefícios, graças à intervenção administrativa, e acreditam facilmente a quantos lhes dizem que esses benefícios podem e devem ser concedidos. Têm uma fé absoluta em todos os construtores de castelos políticos no ar, desde os graduados de Oxford, até os irreconciliáveis irlandeses; e cada novo emprego dos fundos públicos em seu proveito os faz esperar outras medidas ulteriores do mesmo gênero. Certamente, quanto mais aumenta a intervenção do Estado, mais se estende entre os cidadãos a crença de que tudo deve ser feito para eles e nada por eles. A ideia de que o fim em mira deve ser realizado pela ação individual, ou das associações particulares, é cada vez menos compreendida de geração em geração; e a de que deve realizar-se pelo concurso do Governo, cada vez se torna mais familiar, até que, por último, a intervenção governamental chegue a ser considerada como o único meio prático. Este resultado se manifesta de uma maneira evidente no último congresso das associações trabalhistas, celebrado em Paris. Nas informações prestadas aos seus comitentes, os delegados ingleses dizem que entre eles e seus colegas estrangeiros "o ponto em litigio consistia em saber até que ponto se devia pedir ao Estado a proteção do trabalho". Aludem com isto ao fato, tão patente nas resoluções das sessões, de que os delegados franceses invocavam sempre o poder governamental como o único meio de satisfazer seus desejos. A difusão do ensino tem atuado e atua cada dia mais no mesmo sentido. "É preciso instruir os nossos mestres", estas são as palavras, bem conhecidas, de um liberal que votou contra a última isenção de impostos. Certamente, se a instrução fosse digna deste nome e contribuísse para proporcionar as noções políticas necessárias, poder-se-ia esperar muito dela. Porém, conhecer as regras da sintaxe, somar com exatidão, possuir algumas noções geográficas e saber de memória as datas dos adventos dos reis e das vitórias de nossos generais, não implica a capacidade de discorrer com propriedade em política, como a habilidade no desenho não traz consigo o conhecimento do telégrafo, ou a destreza no jogo do "cricket", não supõe um talento de violinista. "Efetivamente - replicará alguém - porém, sabendo ler tem-se aberta a via aos conhecimentos políticos". Sem dúvida, mas, será percorrida essa via? As conversações de café provam que, de cada dez pessoas, nove têm o que os entretém ou os interessa, antes do que o que os instrua, e que, o último que lê, é um escrito que lhe diga verdades desagradáveis ou dissipe esperanças mal fundadas. Que a educação popular propaga a leitura de publicações que alimentam gratas ilusões, mais ao que aquelas que insistem na dura realidade, é indiscutível. Um artesão escreve na "Pall Mall Gazete" (3 de dezembro, 1883): "Uma boa educação primaria desperta o desejo da cultura intelectual; a cultura intelectual desperta o desejo de muitas coisas que se acham ainda fora do alcance dos trabalhadores...: na luta terrível em que está empenhada a geração atual, é absolutamente impossível às classes pobres obtê-las. Daí o estarem descontentes com o presente estado de coisas, e que, quanto mais instruídas sejam, mais descontentes se tornarão. Daí também que "mister" Ruskin e "mister" Morris sejam considerados como verdadeiros profetas por muitos dos nossos". A situação presente da Alemanha é a prova definitiva de quão certa é a relação entre a causa e o efeito, afirmada neste capítulo. Como as pessoas ás quais se faz crer que a futura organização social lhes proporcionará imensos benefícios possuem o direito eleitoral, resulta que o candidato que deseje obter o seu voto, deve, pelo menos, abster-se de provar a falsidade de suas crenças, se é que não cede à tentação de afirmar a sua conformidade com elas. Todo o candidato ao Parlamento se vê obrigado a propor ou sustentar, alguma nova lei "ad captandum". Ademais, os próprios chefes de partido, tanto os que se esforçam para conservar o poder, como os que querem consegui-lo, procuram, cada um por seu lado, ganhar aderentes, indo mais longe que o adversário. Cada um procura a popularidade prometendo mais do que o outro haja prometido, segundo temos visto recentemente. Depois, como as lutas parlamentares demonstram, a fidelidade tradicional ao chefe impede discutir o valor intrínseco das medidas propostas. Os representantes da nação têm suficiente falta de escrúpulos para votar a favor de proposições cujo princípio lhes pareça mal, porque o reclamam os interesses ao partido e o interesse de sua reeleição. Desse modo uma má política é defendida mesmo até pelos que vêm os seus defeitos. Ao mesmo tempo, faz-se fora uma propaganda ativa que encontra seu auxiliar em todas essas influências. As teorias comunistas, aceitas em parte, uma atrás da outra pelo Parlamento, e aprovadas tácita, senão abertamente, por muitos homens políticos que tratam de atrair partidários, são sustentadas, de uma maneira mais ou menos ruidosa, sob uma ou outra forma, por chefes populares, enquanto que são levadas para mais longe por sociedades organizadas. Assim se produziu, por exemplo, o movimento para a aquisição da terra pelo Estado: do ponto de vista abstrato, o sistema que.se preconiza é equitativo, porém, como todo o mundo sabe, "mister" George e seus amigos querem estabelecer esse sistema de propriedade desdenhando completamente os direitos dos proprietários atuais, e tomando-o como base de um projeto que conduz diretamente ao socialismo de Estado. Ha também a federação democrática de "mister" Hyndham e seus partidários. Estes nos dizem que "o punhado de salteadores que detêm atualmente a terra, não têm nem podem ter outro direito que o da força bruta contra os milhões de homens a quem prejudicam". Protestam contra os "acionistas, aos quais se permitiu deitar a mão sobre as grandes vias de comunicação com a posse dos caminhos de ferro". Condenam "sobretudo, a classe ativa dos capitalistas, a dos banqueiros, lavradores, exploradores de minas, contratadores, burgueses, fabricantes; a todos esses-modernos possuidores de escravos, que pretendem obter um benefício cada vez maior dos assalariados que empregam". E pensam que chegou a "hora de emancipar a indústria da avidez individual". Resta-nos mostrar como essas diferentes tendências são ainda alentadas pela imprensa, que cada dia as apoia mais. Os jornalistas, que evitam cuidadosamente de dizer o que poderia desagradar a seus leitores, seguem, muitos deles, a corrente e aumentam a sua força. Nada dizem das ingerências legislativas que haviam combatido em outro tempo, se é que não tomam a sua defesa, e falam do "laissez faire" como de uma doutrina antiquada. "O socialismo não assusta já aos homens, dizem-nos um dia, e no dia seguinte põem em ridículo a cidade que não adota as bibliotecas livres, assegurando que está assustada com uma medida tão moderadamente comunista. Os editores, por sua parte, afirmam que esta evolução se impõe e deve ser aceita, e dão preferência aos artigos dos que a defendem. Ao mesmo tempo, os que consideram desastrosa essa corrente criada pela legislação, e vêm que ainda o será mais no futuro, guardam silencio, convencidos de que é inútil discutir com pessoas em estado de embriaguez política. Vede, pois, quantas causas concorrem para acelerar continuamente a transformação que se opera. Ha, em primeiro lugar, a extensão da regulamentação, cuja autoridade, devida aos precedentes, se faz tanto maior, quanto mais estes aumentam. Em segundo lugar, existe essa necessidade incessante de coações e restrições administrativas originadas dos males imprevistos e dos funestos resultados das coações e das restrições anteriores. Por outra parte, cada nova ingerência do Estado robustece a opinião tácita de que é dever do Governo remediar todos os males e assegurar todos os bens. A medida que a organização administrativa adquire mais poder em seu desenvolvimento, tem-no menos o resto da sociedade para resistir às suas usurpações. A multiplicação das carreiras originada pelo desenvolvimento da burocracia, é favorecida pelas classes governantes, ás quais se lhes oferece a possibilidade de procurar para os seus familiares posições seguras e respeitáveis. Em geral, os cidadãos, habituados a considerar os benefícios recebidos por mediação dos agentes públicas, como beneficias gratuitos, continuamente esperam receber mais. A difusão do ensino, favorecendo a propaganda de erros agradáveis antes que a de duras verdades, generaliza e aviva essas esperanças, as quais, e isto é pior ainda, são alentadas pelos candidatos ao Parlamento, que assim aumentam as probabilidades de Seu triunfo, e pelos homens de Estado influentes, que cortejam desse modo o favor popular no interesse do partido. Vendo frequentemente confirmadas as suas opiniões pelas novas leis, de acordo em tudo com sua maneira de ver, os energúmenos políticos e os filantropos imprudentes continuam suas agitações, com êxito e confiança cada dia maiores. O jornalismo, que é sempre o eco da opinião pública, fortifica-a tornando-se o seu órgão; entretanto, a opinião contraria, cada vez mais desalentada, não encontra nenhum gênero de defensores. Desse modo, influencias de diversas classes conspiram para aumentar a ação coletiva e diminuir a individual. Essa mudança é ajudada em todos os sentidos pelos fazedores de projetos, os quais, pensam cada um somente no seu, sem se ocupar em nada com a reorganização geral que prepara com ele, unido a outros do mesmo gênero. Tem-se dito que a Revolução Francesa devorou os seus próprios filhos. Parece bastante provável, agora, uma catástrofe análoga. As transformações realizadas pelo Parlamento, juntas a outras muitas que estão em via de se realizarem, acarretarão bem depressa o socialismo de Estado, e se confundirão então na imensa onda que elas mesmas levantaram insensivelmente. Porém, por que chamar a esta mudança de "escravidão futura?" perguntarão, sem dúvida, muitos. A resposta é simples. Todo socialismo implica escravidão. Que é, fundamentalmente, um escravo? Todos nós o representamos, em primeiro lugar, como um homem possuído por outro. Sem embargo, para que essa pose não seja somente nominal, é preciso que se torne efetiva pela vigilância dos atos do escravo, vigilância exercida habitualmente em proveito do patrão. O que, em realidade, caracteriza o escravo, é o fato de trabalhar por coação, para satisfazer os desejos de outro. Esta relação de dependência admite diversos graus. Se recordamos que em sua origem o escravo é um prisioneiro, cuja vida está á mercê daquele que o possui, inútil será fazer notar aqui que há uma forma dura de escravidão na qual o homem, tratado como uma besta, deve consagrar todos os seus esforços ao benefício de seu amo. Sob um sistema menos duro, ainda que ocupado essencialmente em trabalhar para seu patrão, concede-se ao escravo algum tempo para que trabalhe em seu proveito, e um pouco de terreno em cujo cultivo possa aumentar sua alimentação. Uma melhora ulterior concede-lhe o direito de vender os frutos do seu pedaço de terra e de guardar o produto da venda. Em seguida vem a forma mais moderada ainda, que aparece onde, havendo sido o homem livre, cultivando a sua própria terra, foi reduzido por efeito de uma conquista ao estado de servidão. Neste caso o escravo deve entregar ao seu amo, cada ano, uma quantidade determinada de trabalho, ou de produtos, ou das duas coisas ao mesmo tempo, guardando o resto para si. Por último, em alguns casos, como acontecia na Rússia, até uma época recente, o escravo pode abandonar a casa de seu patrão e trabalhar em outra parte por conta própria, sob a condição de pagar uma renda anual. Que é o que nos faz dizer, nestes diversos casos, que a escravidão é mais, ou menos dura? Evidentemente a nossa opinião é determinada pelo grau de coação sob o qual o indivíduo trabalha em benefício de outro, em lugar de trabalhar em seu proveito próprio. Se todo o trabalho do escravo é para o seu dono, a escravidão é dura; se somente uma pequena parte, é leve. Vamos agora mais longe. Suponhamos que um proprietário morre e que a sua propriedade e escravos sejam comprados por uma companhia; teriam melhorado as condições do escravo, se a soma de seu trabalho forçado contínua a ser a mesma? Suponhamos que a companhia é substituída pela comunidade; constituirá isto. uma diferença para o escravo, se o tempo que deve trabalhar para os demais é o mesmo que antes, e igual ao que pode trabalhar para si? O tempo em que seja obrigado a trabalhar para os outros, e aquele em que possa trabalhar para si, é o essencial da questão. O grau de sua escravidão varia em relação com o que se vê forçado a dar e o que pode guardar; nada importa que o seu amo seja um indivíduo ou uma sociedade. Se é obrigado a trabalhar para a sociedade, e recebe do fundo comum a porção que esta lhe concede, será escravo da sociedade. A organização socialista necessita uma escravidão deste gênero; a ela somos arrastados por muitas medidas recentes, e mais o seremos ainda por outras que se propõem. Vejamos, primeiro, as consequências próximas dessas medidas, e em seguida veremos as mais distantes. O sistema iniciado com as leis sobre as vivendas operarias admite desenvolvimento e se desenvolverá. Construindo casas, as corporações municipais rebaixaram inevitavelmente o valor das já construídas e dificultaram a construção de outras. Cada prescrição referente a maneira de construir e a forma dos prédios, diminui os benefícios do construtor e o impele a empregar seu capital em empresas onde tal não aconteça. Por outro lado, os proprietários, vendo que as casas pequenas impõem mais trabalho e acarretam mais perdas que as outras, sujeitos já aos incômodos da inspeção e das ingerências administrativas, e aos gastos que delas resultam, tratarão de vende-las, uma vez que se tornaram propriedades desvantajosas: mas, as mesmas razões afastarão os compradores, e se verão obrigados a perder na venda. E quando essas regulamentações, cada dia mais numerosas, cheguem, como propõe lord Grey, a exigir do proprietário que mantenha a salubridade das vivendas, expulsando os habitantes pouco asseados, e acrescentem às suas demais responsabilidades a de inspecionar as sujidades e o lixo, aumentará a necessidade de vender e afugentará ainda mais os compradores, do que resultará uma maior depreciação. Que acontecerá então, inevitavelmente? Havendo cada vez mais dificuldades para a construção de vivendas, das pequenas principalmente, solicitar-se-á prementemente que a autoridade local supra essa falta. As corporações municipais, ou outras, terão que multiplicar a construção de vivendas, ou comprar aos particulares as que, pelas razões expostas, chegaram a se tornar invendáveis; na realidade, acharão mais vantajosas as compras destas, dada a grande diminuição de seu valor, do que a construção de outras. Esse processo terá uma dupla consequência, posto que toda a contribuição local tende a depreciar a propriedade. Depois, quando as autoridades locais das cidades, como resultado daquele processo, possuam a propriedade de muitas vivendas, haverá um bom precedente para que se cuide de prover também de vivendas a povoação rural, como propõe o programa radical e quer também a Federação Democrática; esta última insiste "na construção obrigatória de vivendas sãs para os artífices e os trabalhadores do campo, em proporção a população". Indubitavelmente, o que se tem feito, se faz, e se fará bem depressa, tende a realizar o ideal socialista, segundo o qual a comunidade é a única proprietária das casas. Esta será também a consequência do sistema preconizado referente à posse e exploração da terra. Um número maior de instituições públicas exige o aumento correspondente de agentes públicos e de encargos públicos, diminuindo consequentemente o valor das rendas da terra, e a tal extremo levam sua depreciação, que vencem, a resistência dos possuidores de terra em transformar seu capital. Como todos sabemos, é já difícil em muitas partes, encontrar arrendatários, ainda reduzindo consideravelmente o preço da renda; os terrenos de qualidade inferior não se cultivam, em certos casos, e quando o proprietário se arrisca a cultiva-los, perde quase sempre. Evidentemente, a renda da propriedade territorial não é tão elevada que permita a exação de pesadas contribuições locais e gerais para sustentar numerosas instituições públicas; os proprietários terão que vender e tirar o melhor partido possível do capital realizado, emigrando e adquirindo terras onde os encargos sejam mais leves. Isso é o que já têm feito alguns. O resultado seguro deste processo é que as terras de qualidade inferior ficarão sem ser cultivadas; então se generalizará a petição feita por "mister" Arch, o qual, falando recentemente ante a Associação radical de Brighton, e sustentando que os proprietários atuais não fazem produzir a terra quanto o exige o bem público, disse: "Ser-me-ia agradável que o Governo fizesse votar uma lei acerca do cultivo obrigatório"; proposição que foi aplaudida e que o seu autor justificou com o exemplo da vacina obrigatória (mostrando assim a influência dos precedentes). E insistir-se-á nesta petição, não somente pela necessidade de cultivar a terra, mas também, pela de dar trabalho à população rural. Quando o Governo haja estabelecido o costume de tomar a jornal os trabalhadores desocupados para cultivar as terras abandonadas, ou as adquiridas a preços insignificantes, não estará distante a organização que, no programa da Federação democrática, deve seguir a aquisição da terra pelo Estado, ou seja "a organização de Exércitos Agrícolas e industriais sob a direção do Estado e segundo os princípios cooperativos". Se alguém duvida de que se pode chegar desta maneira a semelhante revolução, bastará citar-lhe alguns fatos que demonstram a possibilidade. Nas Gallias, durante o declínio do império Romano, "tão excessivo era o número dos que recebiam em comparação com o dos que pagavam, tão pesada era a carga dos impostos, que o lavrador sucumbiu, os campos foram abandonados e os bosques cresceram nos lugares antes sulcados pelo arado". Do mesmo modo, ao aproximar-se a Revolução Francesa, haviam-se tornado tão acabrunhadores os encargos públicos, que muitos campos quedaram sem cultivo e outros foram abandonados; a quarta parte do solo estava absolutamente sem cultivo e em algumas provindas a metade das terras era verdadeiros páramos. Na Inglaterra temos sido testemunha de fatos do mesmo gênero. Sob a antiga lei dos pobres, os impostos se elevaram em algumas paróquias ao ponto de absorver a metade das rendas, e em muitos pontos não havia quem arrendasse as propriedades rurais. Houve um caso em que os impostos absorveram todos os produtos do solo. "Em 1832, em Cholesbury (Buckinghamshire), o imposto dos pobres cessou subitamente, porque era impossível arrecadá-lo, em consequência de haverem os proprietários renunciado às suas terras, os colonos aos seus arrendamentos e o vigário a seus benefícios e dízimos. Este último, "mister" Jeston, refere que em outubro de 1832, os administradores da paróquia fecharam os seus livros e que os indigentes, agrupados em frente a suas portas desde a madrugada, pediam-lhe conselhos e alimentos. Em parte, com seus próprios recursos, muito escassos, em parte com os socorro dos vizinhos caritativos e em parte com a sobrecarga imposta ás paróquias próximas, pode sustenta-los durante algum tempo". E os comissários acrescentam que o "caritativo vigário recomenda que repartam todas as terras entre os indigentes capazes de trabalhar", esperando que depois de ajuda-los durante dois anos possam bastar-se a si mesmos. Estes fatos, confirmando, como se diz no Parlamento, que se a lei dos pobres houvesse durado trinta anos teriam ficado incultas todas as terras, demonstram claramente que o aumento dos encargos públicos pode conduzir-nos ao cultivo obrigatório sob a direção do Estado. Falemos agora do Estado como proprietário das ferrovias; já o é em grande parte do continente. Entre nós esse sistema foi preconizado há alguns anos. Atualmente esta reforma, pela qual pugnam vários políticos e publicistas, tem os seus melhores defensores na Federação democrática, que propõe "a apropriação das ferrovias pelo Estado, com compensação ou sem ela". Evidentemente, a pressão de cima, unida á de baixo, é provável que produza essa mudança, conforme com a política reinante, a qual será seguida por outras muitas; porque os proprietários das ferrovias, a princípio proprietários e exploradores de ferrovias somente, acham-se agora a frente de numerosas indústrias, que mantêm com aquela, uma relação mais ou menos direta. O Governo, pois, se verá obrigado a adquirir estas indústrias, ao mesmo tempo que compre as ferrovias. Encarregado já, exclusivamente, do serviço postal e telegráfico, e a ponto de ter o monopólio dos vapores correios, o Estado não somente transportará os passageiros, as mercadorias e os minerais, mas, acrescentará às suas diferentes ocupações atuais, muitas outras. Atualmente, além, de construir estabelecimentos para a marinha, quartéis, portos, docas, diques, etc. fabrica navios, fuzis, canhões, munições, roupas e calçados para o exército; e quando tiver tomado as ferrovias, "com compensação ou sem ela", como dizem os membros da Federação democrática, construirá locomotivas e vagões, fabricará alcatrão e graxa e se converterá em proprietário de navios, minas de hulha, pedreiras, ônibus, etc. Entretanto, os seus lugares-tenentes locais, os governos municipais, encarregados já, em muitos lugares, da distribuição da água e do gás, possuidores e exploradores dos bondes, proprietários dos banhos, terão usurpado, sem dúvida, novas ocupações. E, quando o Estado se ache assim, diretamente, ou por delegação, à frente de numerosos estabelecimentos dedicados à produção e venda por grosso, haverá muitos precedentes para que estenda as suas funções a venda a retalho, seguindo o exemplo do Governo francês, o qual, desde há muito tempo, é vendedor de tabaco a miúdo. É evidente, pois, que as mudanças realizadas, as que estão em vias de se realizarem e as que se propõem, nos levarão, não só ao Estado possuidor das terras, das casas, das vias de comunicação, tudo administrado por funcionários públicos, mas também, á usurpação pelo Estado de todas as indústrias e, as indústrias privadas, incapazes de lutar com a concorrência do Estado, que de tudo pode dispor segundo sua conveniência, desaparecerão pouco a pouco, da mesma forma que desapareceram muitas escolas livres em presença das estabelecidas sob a vigilância oficial. E assim se realizará o ideal dos socialistas. Depois que esse ideal se haja realizado, para o qual nos levam os políticos "práticos", de acordo com os socialistas, ideal tão tentador pelo seu lado brilhante, único que os socialistas gostam de contemplar, qual será o lado sombrio do qual todos desviarão o olhar? É fácil observar, frequentemente, que os homens, ao contrair matrimonio, detêm seu pensamento de modo prazenteiro nos gozos prometidos, olvidando por completo as dores que o acompanham. Outro exemplo desta mesma verdade no-lo oferecem os políticos energúmenos e os revolucionários fanáticos. Comovidos pelas misérias que existem na atual organização da sociedade, e não querendo atribui-las aos defeitos da natureza humana imperfeitamente adaptada ao estado social, imaginam que podem ser remediadas imediatamente com este ou outro sistema. Sem embargo, ainda quando os seus planos tivessem êxito, este levaria consigo a substituição de um mal por outro. Uma simples reflexão nos demonstraria que com a reorganização proposta, ver-se-iam obrigados a ir renunciando à liberdade, á medida que fosse aumentando o bem-estar material. Nenhuma forma de cooperação, ampla, ou restrita, pode se estabelecer sem regulamentação, e, por consequência, sem a submissão aos agentes reguladores. Qualquer de suas próprias organizações, dessas organizações que estão em via de realizar mudanças sociais, proporciona a prova: não podem existir sem conselhos, sem agentes locais e gerais e sem chefes, aos quais é preciso obedecer sob pena de confusão e falta de êxito. A experiencia dos que têm preconizado com mais entusiasmo uma nova ordem social, sob a paternal direção do Governo, mostra que, mesmo nas sociedades particulares, organizadas livremente, é grande o poder da parte reguladora, quando não irresistível, até ao extremo da parte regulamentada murmurar com frequência e negar-se a obedecer. As organizações trabalhadoras que sustentam uma espécie de guerra industrial para defender os interesses dos trabalhadores contra os dos patrões, descobrem que a obediência passiva é necessária para assegurar a eficácia de sua ação, toda a vez que a divisão de pareceres pode malograr o êxito. Mesmo nas organizações cooperativas, formadas para a fabricação ou a venda, nas quais não é precisa esta obediência, necessária nas outras, cujo fim é o ataque e a defesa, vê-se os agentes adquirirem tal supremacia, a ponto de aparecerem muitos a se queixar "da tirania da Administração". Julgai, pois, o que sucederá, quando, em lugar de associações, relativamente de poucos membros, nas quais se pode ou não entrar à vontade, tenhamos uma associação nacional, a qual todo o cidadão deverá pertencer, e da qual não poderá sair sem abandonar o país. Julgai o que será, em tais condições, o despotismo de uma burocracia graduada e centralizada, dona dos recursos da comunidade, e tendo atrás de si toda a força que creia necessária para fazer executar os seus decretos e manter o que ela chame de ordem. Não há nada de estranho em que o príncipe de Bismark sinta simpatia pela socialização do Estado. Depois de haver reconhecido o imenso poder que terá a parte reguladora do novo sistema social, pintado com tão belas cores, reconhecimento a que estão obrigados se reflexionarem nas consequências de seus projetos, devem se perguntar, os defensores desse poder, de que forma será exercido. Não se limitando exclusivamente, como têm por costume, no bem-estar material e nas satisfações intelectuais que lhes deve proporcionar uma administração benfeitora, não consideram, por um instante, a que preço hão de paga-la. Os funcionários não podem criar os recursos indispensáveis; somente podem distribuir entre os indivíduos, o que os próprios indivíduos hajam produzido conjuntamente. Se a administração pública deve atender às necessidades dos indivíduos, é preciso que reclame deles a provisão dos meios. Não pode fazer, como no atual sistema, acordo entre o patrão e o operário: o projeto exclui esse acordo. Haverá, em troca, ordens dadas pelas autoridades locais aos trabalhadores, e aceitação por parte destes da tarefa que lhes seja designada. E tal é, em realidade, a organização que se indica, clara, embora, ao que parece, inconscientemente, pelos membros da Federação democrática. Propõem, de fato, que se encarreguem da produção "exércitos" agrícolas e industriais, sob a direção do Estado", olvidando, aparentemente, que os exércitos pressupõem uma hierarquia de oficiais que exigiriam a obediência, posto que, de outro modo não se poderia assegurar nem ordem, nem trabalho eficaz. Assim, pois, o Indivíduo quedaria, ante a parte reguladora, na mesma situação que o escravo ante seu amo. "Porém, o Governo será um amo que ele próprio e outros terão eleito e que estará constantemente em cheque; um amo, por conseguinte, que não regulará os seus atos, nem os dos outros, senão quando se tornar necessário no interesse de cada um em particular e no de todos em geral". Minha primeira resposta a esta réplica, é que, embora sendo assim, cada membro da comunidade, considerado como indivíduo, será o escravo da comunidade em conjunto. Uma relação dessa classe tem existido geralmente nas comunidades militantes, mesmo sob formas de governo quase populares. Na Grécia antiga era reconhecido o princípio de que o cidadão não se pertencia a si mesmo, nem pertencia à sua família, mas a cidade: a cidade era, entre os gregos, o equivalente a comunidade. E esta doutrina, própria a um estado de guerra permanente, a ressuscitam os socialistas, sem plena consciência disso, em um estado que deve ser puramente industrial. Os serviços de todos pertencerão ao conjunto, e serão pagos pela autoridade como esta o julgar conveniente. Portanto, mesmo quando a autoridade seja tão benéfica como se supõe, a escravidão, em forma mais ou menos mitigada, será o resultado fatal dessa organização. Eis aqui minha segunda resposta: A administração não conservará durante muito tempo o caráter que se lhe atribui, nem a escravidão será tão fácil de suportar como se pensa. A especulação socialista será viciada por uma hipótese semelhante à que vicia as especulações do político "prático". Supõe-se que o funcionalismo atuará como se deseja, o que não acontece jamais. O mecanismo do comunismo, como o mecanismo social atual, achar-se-á constituído pelos elementos da natureza humana existente, cujos defeitos produzirão os mesmos males neste caso como no outro. O amor ao poder, o amor próprio, a injustiça, a deslealdade, que, com frequência, em um espaço dê tempo relativamente curto, causam a ruína de organizações privadas, acarretarão sem dúvida alguma, onde os seus efeitos se acumulem de geração em geração, males muito maiores e menos fáceis de remediar, posto que a organização administrativa, vasta, complicada e provida de todos os recursos, uma vez que se tenha desenvolvido e consolidado, far-se-á, necessariamente, irresistível. E como prova de que o exercício periódico do direito eleitoral não impedirá esse resultado, citemos o exemplo do Governo francês. Popular em sua origem, e submetido ao julgamento popular muito frequentemente, fere, sem embargo, a liberdade dos cidadãos, até ao extremo de os delegados ingleses ao congresso recente das organizações trabalhistas dizerem: "É uma desonra para uma nação republicana e uma anomalia para uma república". O resultado será a ressurreição do despotismo. Um exército disciplinar de funcionários civis, da mesma forma que um exército de funcionários militares, confere o poder supremo ao seu chefe, poder que tem conduzido, frequentemente, á usurpação, como na Europa da idade Média, no Japão e como entre nossos vizinhos em nossa própria época. As recentes confissões do senhor de Maupas demonstraram quão facilmente um chefe constitucional, eleito pelo povo inteiro e depositário da confiança geral, pode, com o concurso de alguns militares, sem escrúpulos, paralisar o corpo representativo e tornar-se dono absoluto. Temos excelentes motivos para crer que quem quer que fosse elevado ao poder em uma organização socialista, não recuaria de ante de nenhum meio, para chegar aos seus fins. Quando ouvimos dizer ao Conselho da Federação democrática, que os acionistas que criaram a rede ferroviária e contribuíram ao grande desenvolvimento presente da prosperidade nacional, ganhando algumas vezes, porém, frequentemente perdendo, "lançaram mãos" sobre nossas vias de comunicação, podemos inferior como interpretariam os que estivessem à frente de uma organização socialista, os direitos dos indivíduos e das classes colocadas sob sua autoridade. E quando, indo mais longe, os membros do mesmo Conselho afirmam que o Estado deve tomar posse das ferrovias "com compensação ou sem ela", podemos presumir que nenhuma consideração de equidade impediria aos chefes da sociedade ideal, tão desejada, seguir a política, qualquer que ela fosse, que Julgassem necessária, política que sempre estaria de acordo com sua própria supremacia. Bastaria uma guerra com qualquer sociedade adjacente, ou que algum descontentamento interior exigisse a repressão pela força, para que a administração socialista se transformasse, de súbito, em uma tirania humilhante como a do antigo Peru. Sob essa administração, a massa do povo, governada por uma hierarquia de funcionários, e vigiada em todos os seus atos públicos e privados, trabalharia para manter o corpo organizado que exercesse o poder, e não lhe ficariam senão os recursos precisos para arrastar uma existência miserável. E, em seguida, reaparecia completamente, sob forma distinta, o regime de Estado, o sistema de cooperação obrigatória, cuja tradição debilitada representa o antigo conservadorismo, e para o qual, o novo conservadorismo nos conduz. "Porém, estaremos prevenidos contra todos esses males; tomaremos precauções para evitar semelhantes desastres", dirão, sem dúvida, os energúmenos. Trate-se de políticos "práticos", com suas novas medidas regulamentadoras, ou de comunistas, com seus projetos de reorganização do trabalho, sua resposta e sempre a mesma: “É certo que planos de análoga natureza fracassaram por causas imprevistas ou lamentáveis acidentes, ou, em consequência da deslealdade dos encarregados de os executar; porém, agora, aproveitar-nos-emos das experiencias anteriores e triunfaremos". Parece impossível fazer compreender a muitas pessoas esta verdade evidente, sem embargo: que a prosperidade de uma sociedade, e a equidade de sua organização, dependem, essencialmente, do caráter de seus membros; e que nenhum progresso se pode realizar sem a modificação do caráter que resulta do exercício de uma indústria pacifica sob as restrições impostas por uma vida social bem ordenada. Não somente os socialistas, mas, também, os que se chamam liberais, que lhes preparam o caminho, creem que os defeitos humanos podem ser corrigidos com habilidade por boas instituições. Isto é uma ilusão. Qualquer que seja a estrutura social, a natureza defeituosa dos cidadãos manifestar-se-á nos maus efeitos que produza. Não há alquimia política com cuja ajuda se possa transformar instintos de chumbo em conduta de ouro. (Os socialistas publicaram duas respostas ao presente artigo: Socialismo e Escravidão, por H. M. Hyndmàn e Herbert Spencer e o Socialismo, por Frank Fairman , Devo limitar-me a dizer aqui, que ambos os autores me atribuem, segundo o costume dos adversários, opiniões que não professo. Do fato de não estar de acordo com o socialismo, não se segue, necessariamente, como pretende M. Hyridman, que aprove a organização atual. Muitas coisas que ele condena, condeno-as eu também; porém, não admito o seu remédio. A pessoa que assigna com o pseudônimo de "Frank Fairman", censura-me por não ter as mesmas opiniões que quando escrevi, em Estática Social, uma simpática defesa das classes trabalhadoras. Não tenho consciência dessa mudança. A indulgencia para com os que arrastam uma vida dura, não implica, de modo algum, na tolerância para com os folgazões) OS PECADOS DOS LEGISLADORES Seja, ou não, certo que o homem é composto de iniquidades e concebido no pecado, é indubitável que o governo nasceu da agressão e pela agressão foi engendrado. Nas pequenas sociedades primitivas, onde reinou durante séculos uma paz completa, nada existe semelhante ao que nós chamamos de Governo; não há nelas nenhuma organização coercitiva: somente existe, e nem, sempre, uma supremacia honorária. Nessas comunidades excepcionais, que não são agressivas, e que, por causas sapienciais, não estão expostas a nenhuma agressão, a veracidade, a honradez, a justiça e a generosidade são praticadas de modo tão completo, que é bastante poder a opinião pública, de vez em quando, manifestar-se numa assembleia de anciãos convocada a intervalos irregulares. Em troca, temos provas de que a autoridade de alguns chefes, reconhecida em princípio temporário durante a guerra, estabelece-se de uma forma permanente se o estado de guerra se prolonga, e se fortalece, se qualquer agressão afortunada termina submetendo as tribos vizinhas. Mais tarde, exemplos fornecidos por todas as raças põem fora de dúvida esta verdade: é que o poder do chefe convertido em rei e em rei de reis (título frequente no Oriente antigo), aumenta, à medida que estende as suas conquistas, e reúne sob seu cetro maior número de nações. As comparações nos revelam outra verdade, que sempre deveríamos ter presente: que o poder direto se faz tanto mais agressivo no interior de uma sociedade, quanto mais agressivo se mostra no exterior. Da mesma forma que, para formar um bom exército, é preciso que os soldados, nos seus diferentes graus, obedeçam ao que os comanda, assim, para formar uma comunidade guerreira poderosa é necessário que os cidadãos obedeçam ao poder dirigente, subministrando-lhe o número de homens que exija e entregando-lhe todas as propriedades que reclamar. A consequência evidente de tudo isto é que a moral governamental, originariamente idêntica à dos costumes da guerra, deve, durante muito tempo, assemelhar-se aqueles e não pode desviar-se senão à medida que as atividades e os preparativos guerreiros diminuem. Temos provas constantes disso. Agora mesmo, no continente, o cidadão só é livre quando não serve no exército, e durante o resto de sua vida não são poucas as fadigas que sofre para manter e sustentar a organização militar. Mesmo entre nós uma guerra formal, impondo o recrutamento necessário, suspenderia a liberdade de grande número de cidadãos e diminuiria a dos demais, aos quais se fariam pagar em forma de contribuições, os recursos precisos, isto é, aos que se veriam obrigados a trabalhar certo número de dias para o Estado. Inevitavelmente, o código da conduta do Governo em suas relações com os cidadãos, modela-se no da conduta deste entre si. Não falarei neste artigo, nem das violações do direito, nem das represálias exercidas: a maior parte da História é composta de relatos desses fatos. Tampouco quero recordar as iniquidades interiores que têm acompanhado as exteriores. Não tenho a intenção de catalogar aqui os crimes dos legisladores irresponsáveis, começando pelos do rei Khufu, cuja vasta tumba foi construída com o suor de sangue de milhares e milhares de escravos, que trabalharam sob o látego durante muitos anos, continuando com os dos conquistadores egípcios, assírios, persas, romanos, macedônios, etc. e concluindo com os de Napoleão, que, para satisfazer sua ambição de ver o mundo civilizado prosternado a seus pés, fez perecer mais de dois milhões de homens. Não me proponho, finalmente, enumerar os pecados dos legisladores responsáveis, inscritos na larga lista de leis ditadas nos interesses das classes dominantes. Em nosso país essa lista começa nas leis que mantiveram longo tempo a escravidão e o comércio de escravos, mergulhando na tortura uns quarenta mil negros por ano, amontoando-os nos porões dos navios durante a travessia sob os trópicos, o que dava causa a que perecessem muitos deles, e termina com as leis dos cereais, que, segundo sir Erskine May, "para elevar o preço dos arrendamentos, ordenaram a uma multidão inumerável que padecesse fome". Indubitavelmente, não seria inútil a enumeração dos crimes mais importantes dos legisladores responsáveis e irresponsáveis. Serviria para muitos fins. Mostraria claramente como a identidade da moral governamental e os costumes da guerra, que existe necessariamente nos tempos primitivos, quando o exército não é mais do que a sociedade mobilizada e a sociedade o exército em repouso, se mantem durante largos períodos e exerce atualmente grande influência em nossos procedimentos judiciais e em nossa vida quotidiana. Depois de haver mostrado, por exemplo, que em numerosas tribos selvagens a função judicial do chefe não existe, ou é nominal e que, geralmente, durante as primeiras épocas da civilização europeia, o indivíduo devia defender-se a si mesmo e fazer valer os seus direitos do melhor modo que pudesse; depois de haver mostrado que na idade Média aboliu-se o direito à guerra privada entre os membros da ordem militante, não porque o chefe supremo acreditasse de seu dever submeter os litígios a uma arbitragem, mas, porque as guerras privadas diminuíam a força de seu exército nas guerras públicas; depois de haver mostrado que, mais adiante, a administração da justiça manifestava ainda um caráter primitivo nos combates judiciais, sustentados em presença do rei, ou de um seu representante na qualidade de árbitro - combates mantidos até 1819 sob a forma de duelos - poderíamos fazer ver que todavia subsiste o combate judicial sob outra forma, sendo campeões os advogados, e as armas o dinheiro. Nos pleitos civis, o Governo não se preocupa muito mais do que antes, com o fato de ser feita justiça a parte lesada; na pratica o seu representante atende somente a que se observem as regras do combate, em cujo resultado influi menos a equidade da causa, do que uma bolsa bem recheada, ou a habilidade dum advogado. Ademais, o Governo interessa-se tão pouco pela administração da justiça, que, se em um combate legal celebrado em presença de seu representante, as bolsas dos combatentes se esgotam, e é reformada a sentença, em resultado da apelação interposta por um deles, o que sucumbe é obrigado a pagar os erros do representante atual, ou de seu predecessor. Mui frequentemente, pois, o indivíduo prejudicado, que solicitava proteção, ou restituição, morre pecuniariamente ao terminar o pleito. Um estudo completo dos delitos do Governo, tanto em seus atos como em suas omissões, ao demonstrar que uma parte do código moral ainda em vigor remonta-se e se identifica com o estado de guerra, desvaneceria, quiçá, as esperanças dos que trabalham para estender a direção governamental. Depois de haver observado que não somente os caráteres, mas, também os princípios da estrutura política primitiva, produzida pelo militarismo crônico, subsistem, acaso o reformador e o filosofo contariam com menores bens da intervenção, em tudo, do Governo, e quiçá, se inclinariam a ter mais confiança nas organizações não governamentais. Mas, prescindindo da maior parte das vastas questões compreendidas sob o título deste artigo, ocupar-me-ei somente dos pecados dos legisladores, que não são frutos de sua ambição ou do interesse de classe, mas, que provêm da negligencia em se preparar para o cumprimento de sua missão, por estudos a que estão moralmente obrigados. Suponhamos que um aluno de farmácia, depois de haver ouvido a descrição de certas dores, que, equivocamente, atribui a um cólica, porém, que, na realidade, são motivadas por uma inflamação do "cécum", prescreve um purgante enérgico e mata o enfermo; ele será declarado culpado de homicídio por imprudência. Não se admitirá a escusa de que a sua intenção era boa e que esperava fazer um bem. Não poderá justificar-se dizendo que tudo foi um simples erro de diagnostico: Responder-se-lhe-á que não tinha direito de expor a vida do enfermo, pondo-se a exercer uma profissão sem conhecimentos suficientes para isso. Não poderá alegar que ele próprio não sabia quão grande era a sua ignorância. A experiencia, comum a todos, deveria ter-lhe ensinado que mesmo os que estudaram medicina, e com mais razão os que não a estudaram, cometem erros nos diagnósticos das enfermidades e nos remédios que prescrevem: deixando de atender a advertência dada por esta experiencia comum, tornou-se responsável pelas consequências. As responsabilidades em que incorrem os legisladores, pelos males que podem causar, são julgadas com demasiada indulgencia. Na maior parte dos casos, longe de imaginar que merecem castigo pelos males que acarretam com leis ditadas por ignorância, apenas os acreditamos dignos de censura. Admite-se que a experiencia comum deveria ter ensinado o aluno de farmácia, pouco instruído, a não fazer ingerir um medicamento; porém, não se admite que a mesma experiencia deveria ter ensinado ao legislador a não se pôr a legislar sem estar convenientemente instruído. Embora grande número de fatos, tomados das leis de seu próprio país, e das de outros, devessem ter-lhe demonstrado os imensos danos causados pela má legislação, quase que se não o condena por ter descuidado essas advertências contra ingerências demasiado prematuras. Ao contrário, considera-se como um ato meritório seu, que, talvez, recém-saído do colégio, ou possuidor de uma coleção de cães que o tornaram celebre no condado, ou recém-vindo de uma cidade provinciana, onde adquiriu solida fortuna, ou saído da tribuna forense, onde obteve algum renome, entre no Parlamento e comece imediatamente a facilitar, ou a impedir, com animo ligeiro, tal ou qual intento do corpo político. Em semelhante caso não é necessário alegar por ele a escusa "de que não sabe quão ignorante é", porque o público em geral pensa, como ele, que é inútil saber das medidas que se discutem qualquer causa a mais do que sobre elas os debates lhe ensinem. Sem embargo, basta deitar um olhar a história das legislações, para ver que os males causados pelos legisladores ignorantes são mais numerosos que os ocasionados pelos que, sem instrução adequada, não vacilam em administrar medicamentos. O leitor me perdoará se lhe recordar alguns exemplos familiares. Um século após outro, os homens de Estado têm continuado a promulgar leis contra a usura, que não têm tido outra consequência que a de piorar a situação do devedor, fazendo com que se elevasse a taxa de juros "de cinco a seis, quando queriam reduzi-la a quatro, como sob Luiz XV", e originando indiretamente muitos males imprevistos, ao impedir o emprego dó capital disponível e ao "impor aos pequenos proprietários uma enormidade de encargos perpétuas". Do mesmo modo, as medidas tomadas na Inglaterra, durante quinhentos anos, para impedir o açambarcamento, e as que em França chegaram a proibir, segundo Artur Young, "que se comprasse no mercado mais de duas medidas de trigo", aumentaram durante várias gerações a miséria e a mortalidade, resultantes da carestia. Como todo o mundo sabe, a função do negociante de atacado, ao qual se chama no estatuto "De Pistoribus" "opressor público do pobre povo", consiste simplesmente em equilibrar o aprovisionamento do mercado, evitando um consumo demasiado rápido. Da mesma natureza foi a medida que em 1815, para minorar a fome, prescrevia o preço dos alimentos, a qual teve de ser revogada rapidamente, em vista de causar o desaparecimento de certos artigos do mercado. Ao mesmo princípio obedecem às medidas aplicadas durante maior espaço de tempo, como, por exemplo, as que autorizavam os magistrados a marcar os "benefícios razoáveis" dos vendedores de comestíveis. As tentativas feitas para fixar o salário, tinham o mesmo fundamento e foram seguidas dos mesmos efeitos desastrosos. Começaram com o estatuto dos trabalhadores sob Eduardo III, e não terminaram até há sessenta anos, quando os lords e os comuns, convencendo-se de que seus únicos resultados eram galvanizar uma indústria em decadência, no bairro de Spitafields, e sustentar ali uma população miserável, renunciaram a fazer marcar por um magistrado o salário de um tecedor de seda. Aqui, interromper-se-me-á, sem dúvida alguma, com impaciência: "Já sabemos de tudo isso; a história é antiga: já nos foi repetido até a saciedade os males causadas pelas ingerências na indústria e no comércio, e não é necessário que nos seja dada novamente essa lição". Minha primeira resposta é que a lição não foi jamais devidamente estudada pela maioria e que a esqueceram muitos dos que a aprenderam, pois, os pretextos que atualmente se invocam, para ditar prescrições parecidas, são os mesmos que se invocavam noutro tempo. No estatuto 35 de Eduardo III, cujo fim era impedir que subisse o preço dos arenques - estatuto que se derrogou em seguida, porque seu resultado foi aumentar o referido preço - queixa-se o legislador do povo, "acudindo ao mercado ... disputam o arenque e cada comprador, por malícia ou por inveja, passa sobre o outro; se um oferece quarenta, o outro aumenta dez, e um terceiro dá sessenta, assim, a oferta de cada um excede a do anterior". Pois bem; a "disputa no mercado", condenada aqui e atribuída “á malicia ou a inveja", torna-se a condenar em nossos dias. Os males da concorrência têm sido sempre uma das queixas fundamentais dos socialistas, e o Conselho da Federação democrática denuncia as trocas efetuadas sob "a direção da avidez e da capacidade "individuais". Minha segunda resposta é que o Parlamento estende constantemente a novos domínios da lei da oferta e, da procura sua intervenção, julgada desastrosa pelas gerações precedentes, que aumenta nesses domínios os males que pretende curar, como provarei depois, e que origina outros novos, como os originava antigamente nos domínios em que intervinha. Fechando este parêntesis, continuo minha demonstração de que os legisladores ignorantes dos tempos passados aumentaram constantemente as misérias da humanidade, esforçando-se por diminui-las, e, dirigindo-me ao leitor, dir-lhe-ei: multiplique as leis que acabo de citar e os males que têm causado, por dez, ou outro número mais elevado, e poderá formar uma ideia da soma de calamidades ocasionadas pela legislação feita com ignorância da ciência social. Em um trabalho lido na Sociedade de Estatística, em maio de 1873, "mister" Janson, vice-presidente da Sociedade de Legislação, provou que desde o estatuto de Merton (20, Henrique III) até fins de 1872, haviam-se votado dezoito mil cento é dez medidas legislativas, das quais se aboliram, total, ou parcialmente, as quatro quintas partes. Também demonstrou que o número de disposições anuladas, em todo, ou em parte, ou modificadas durante os três anos, 1870, 1871 e 1872, havia sido de três mil e quinhentas e trinta e duas, das quais foram completamente revogadas duas mil e setecentas e cinquenta e nove. Para ver se as derrogações continuavam na mesma proporção, consultei os volumes que contêm os estatutos públicos gerais das três últimas legislaturas. Deixando de parte as numerosas proposições parlamentares modificadas, vi que durante essas três legislaturas foram derrogadas, separadamente, ou em grupo, seiscentas e cinquenta leis, "correspondentes ao atual reinado" ou aos anteriores. Este número excede, naturalmente, ao termo médio ordinário, pois, nestes últimos tempos, tem-se expurgado consideravelmente a "Compilação legislativa". Mas, tendo em conta todas essas circunstancias, forçoso é reconhecer que, em nossos dias, as revogações sobem a vários milhares. Indubitavelmente, algumas leis foram abolidas porque caíram em desuso; outras, em consequência da mudança de circunstancias (o número destas não deve ser muito elevado, dada a curta data de muitas das abolidas); outras, simplesmente, porque eram inúteis, e outras, enfim, por terem sido fundidas em uma só. Porém, é evidente que, na maior parte dos casos, as leis foram derrogadas porque produziam maus efeitos. Correntemente, falamos com excessiva ligeireza de semelhantes mudanças; pensamos com indiferença nas medidas legislativas anuladas. Olvidamos que as leis, antes de serem abolidas, causaram, geralmente, males mais ou menos graves: umas, durante pouco tempo, outras, durante dezenas de anos, outras, durante séculos. Trocai vossa ideia vaga de uma lei má, por uma ideia definida; considerai-a como causa que atua sobre a vida dos povos, e vereis que significa muitas dores, muitas enfermidades e muitos falecimentos. Uma forma viciosa de procedimento judicial, esteja prescrita, ou se tolere, ocasiona aos litigantes, gastos, dilações, talvez, a perda da causa por aquele que a deveria ganhar. De tudo isto resulta inútil emprego de dinheiro que, talvez, fosse necessário para outras coisas; grande e prolongada ansiedade, frequentemente seguida de enfermidades; a miséria de uma família; a impossibilidade de oferecer aos filhos o alimento e os vestidos precisos; em uma palavra, desgraças que se encadeiam umas ás outras. Pensas também no grande número de pessoas que, carecendo de meios, ou de valor para iniciar um pleito, resignam-se a fraude, empobrecem e sofrem, física e moralmente, em consequência do dano experimentado. Só pelo fato de uma lei ter sido um obstáculo, compreende-se que tem causado perdas de tempo desnecessárias, aborrecimentos e incômodos: e para as pessoas já sobrecarregadas de aborrecimentos, esse aumento implica uma saúde debilitada, com seu cortejo de sofrimentos diretos e indiretos. Vendo, pois, que legislação má é sinônimo de ataque dirigido a vida dos homens, julgai que soma de angustias morais, de dores físicas, de mortes, representam esses milhares de leis revezadas. Para demonstrar por completo que o legislador que não possui conhecimentos suficientes ocasiona males imensos, permiti-me citar um caso especial, trazido à minha memória por uma questão do dia. Já disse que as tentativas para mudar a relação entre a oferta e a procura, ás quais foi preciso renunciar em certos domínios econômicos, visto as calamidades que ocasionavam, têm lugar agora em outros domínios. Supõe-se que a lei é certa unicamente onde sua omissão causou males: tão fraca é a crença dos homens em sua exatidão. Não se quer compreender, de modo nenhum, embora não pareça, que a marcha natural das coisas foi interrompida por obstáculos artificiais. Sem embargo, no caso que vou referir - o da construção de vivendas para os pobres - basta perguntar-se qual é, desde muito tempo, a ação das leis, para provar que os males terríveis que se deploram, são, em sua maior parte, produto delas, A geração precedente sustentou uma polemica a propósito da insuficiência e salubridade das habitações operarias, e eu tive ocasião de ocupar-me do assunto. Eis aqui um extrato do que escrevi então: "Um arquiteto, que é também inspetor, diz que a lei de construção produz os efeitos seguintes: nos bairros de Londres onde há casas em ruinas, construídas do modo pouco solido que a lei quer evitar, estas produzem a seus proprietários um termo médio de renda suficientemente remunerativo. Este termo médio determina o aluguel que se pode exigir nesses bairros pelas casas novas que tenham as mesmas disposições, isto é, o mesmo número de cômodos, pois, as pessoas para as quais se constroem não apreciam a segurança que oferecem as paredes consolidadas por barras de ferro. Pois, bem; a experiencia demonstra que as casas construídas de acordo com os regulamentos atuais, e alugadas ao preço assim estabelecido, não produzem renda razoável. Os construtores, pois, limitaram-se a edificar em melhores distritos (onde a possibilidade da concorrência com as casas preexistentes demonstra que estas eram bastante cômodas), deixando de construir para as massas, desde que não seja nos bairros em que as condições de salubridade reclamem mudanças urgentes. Entretanto, nos distritos pobres, aglomeraram-se os habitantes, vivendo meia dúzia de famílias em cada casa, e mesmo vinte indivíduos em cada cômodo. Porém, ainda há mais. Esse triste estado de ruinas ao qual se permite chegar as casas dos pobres, deve-se à falta de concorrência, posto que não se constroem casas novas. Seus proprietários sabem que os inquilinos não as abandonarão em busca de outras melhores. As reparações, desde que não sejam necessárias para assegurar melhores lucros, não se fazem ... Verdadeiramente, a maior parte dos horrores que nossos agitadores em matéria sanitária tratam de remediar por meio das leis, devemo-los aos agitadores anteriores da mesma escola". ("Estatística Social", pag. 384, edição de 1851). Não são estes os únicos males causados pela legislação. A seguinte passagem demonstra que outros existem também: "Em um artigo do "Construtor", antes de que fosse derrogado o imposto sobre as telhas, lemos: "Supõe-se que a quarta parte do custo de uma habitação que se aluga por dois shilings e seis dinheiros, ou três shilings por semana, é imputável aos gastos do contrato e ao imposto sobre a madeira e os ladrilhos empregados na construção. Naturalmente, o proprietário quer reembolsar-se desses gastos e cobra sete "dinheiros" e meio, ou nove, a mais. "Mister" C. Gatliff, secretário da sociedade para o melhoramento das vivendas operarias, diz, descrevendo os efeitos do imposto sobre as janelas: "Nossa Sociedade paga agora em S. Pancrácio, pelo imposto sobre as janelas, cento e sessenta e duas libras e dezesseis shilings, ou seja, um por cento do capital primitivo. O termo médio dos alugueis pagos pelos inquilinos da Sociedade é de cinco shilings e seis dinheiros por semana; o referido imposto absorve, pois, semanalmente, sete "dinheiros" e um quarto". ("Times", 31 de janeiro de 1850) - "Estatística Social"; pag. 385, edição de 1851). As publicações dessa época nos oferecem outros testemunhos. O "Times", de 7 de dezembro de 1850, publicou uma carta datada no "Reform Club" e assinada por "Arquiteto", na qual lemos os parágrafos seguintes: "Lord Kinnaird recomenda, em vosso número de ontem, a construção de casas modelo, nas quais se reúnam duas ou três em uma só. Permiti-me sugerir- a S; S. e a seu amigo lord Ashley, em quem se apoia, que: 1º, Se o imposto sobre as janelas fosse abolido; 2º, Se a lei de construções se derrogasse (exceto os artigos que ordenam que as paredes, tanto exteriores, como interiores, sejam à prova de fogo); 3º, Se os direitos sobre a madeira: empregada nos edifícios fossem igualados, ou abolidos; e 4º, Se se votasse uma lei para facilitar o trespasse de propriedades; não haveria razões para construir casas modelo, como não as ha para se construir navios modelo, fiações modelo, ou maquinas a vapor modelo. O imposto sobre as janelas limita o número das mesmas, nas casas dos pobres; a sete. A lei de construção limita a superfície dessas mesmas casas a vinte e cinco pés por dezoito (aproximadamente as dimensões de uma sala de jantar normal) e em tal espaço deve o construtor colocar a escada, uma entrada, uma sala e uma cozinha, além dos muro e paredes. Os direitos sobre a madeira obrigam o construtor a empregar nas sobreditas casas, as de piores qualidades, pois, o imposto sobre a boa (Riga) é quinze vezes maior que sobre a má (Canadá). O Governo exclui esta última de todos os seus contratos. A lei facilitando o trespasse da propriedade daria lugar a grandes modificações no miserável estado atual das casas dos pobres. A venda de pequenos terrenos livres seria tão fácil como o seu arrenda- mento. Frequentemente, só se tem construído mal, porque se constroem sobre terreno que não é próprio". Para não incorrer em erro, nem em exageração, consultei "mister" C. Forrest, contratador com quarenta anos de experiencias e grande construtor nos bairros pobres. Como membro do Conselho de construções e do Comité de beneficência, reúne ao conhecimento dos assuntos públicos locais, seus vastos conhecimentos em tudo o que concerne a construções. "Mister" Forrest, que me autorizou a citar seu nome, confirma os assertos precedentes, à excepção de um só, que, a seu juízo, não chega a exprimir toda a verdade. Diz que "Arquiteto" atenua o mal causado por "uma casa de quarta classe", posto que as dimensões desta são muito menores que as que ele explica, talvez, de conformidade com uma lei de construções mais recente. "Mister" Forrest vai mais longe. Além de mostrar os maus efeitos do considerável aumento das contribuições sobre a prosperidade urbana - em sessenta anos elevaram-se de uma a oito libras e dez shilings para casas de quarta classe - o qual, reunido a outras causas, o havia feito renunciar ao projeto que tinha de construir vivendas para trabalhadores; ademais de estar de acordo com "Arquiteto" em que este mal se agravou pelas dificuldades do trespasse da propriedade dos terrenos, resultantes do sistema de fideicomissários e substituições estabelecido pelas leis, faz ressaltar que o desenvolvimento dos encargos locais - que chama de impostos proibitivos - cria outro obstáculo à construção de casas de pequenas dimensões. Um de seus argumentos é que, ao preço de custo de cada casa nova, há que juntar os impostos para sustentar o calçamento e o serviço de esgotos, contribuições reguladas pela longitude das fachadas, e que, por conseguinte, pesam mais sobre as casas de pouco fundo, que sobre as de grande profundidade. Destes males produzidos pela legislação, que eram já grandes na época da geração anterior, e que aumentaram depois, passemos aos mais recentes que derivam da mesma causa. Havendo aumentado constantemente, em proporções escandalosas a miséria, as enfermidades e a mortalidade nos casinholos, como consequência dos obstáculos impostos a construção de casas de quarta classe e do amontoamento das famílias nas existentes, se reclamou do Governo o remédio a esses males, o qual respondeu com a lei das vivendas para obreiros, que dão às autoridades locais o direito de derrubar as casas ruinosas e construir outras mais confortáveis. Qual foi o resultado? Um resumo das operações da Repartição Metropolitana de Obras Públicas, datado de 21 de dezembro de 1883, mostra que, até ao mês de setembro anterior, aquele departamento, aumentando a contribuição em um milhão e um quarto, arrojou de suas moradas vinte mil pessoas e construiu casas para doze mil. Futuramente se proverá ao alojamento das oito mil restantes, que, entretanto, acham-se sem abrigo. Isto não é tudo. Outra representação local do Governo, a Comissão do serviço de esgotos da cidade, trabalhando no mesmo sentido, derrubou, a mandado legal, em Golden Lane e Peticoat Square, grande número de pequenas casas denunciadas, nas quais viviam mil e setecentos e trinta e quatro infelizes; e do terreno assim despejado, há cinco anos, a metade foi vendida como medida de ordem pública, para a construção de uma estação ferroviária, e na outra metade começa-se a levantar agora casas para trabalhadores, nas quais somente caberão dois quartos da população expulsa. Se às pessoas que deixou sem abrigo a Repartição Metropolitana de Obras Públicas, juntarmos estas mil e setecentos e trinta e quatro, teremos que ha, aproximadamente, dez mil indivíduos que foram privados de seus alojamentos e obrigados a procurar albergue nas miseráveis construções já repletas. Vede, pois, o que os legisladores têm feito. Pela má disposição do imposto, ao elevar o preço dos ladrilhos e da madeira, aumentaram os gastos de construção e obrigaram, por razões de economia, a empregar péssimos materiais e ainda em quantidade insuficiente. Para impedir o efeito dessas medidas sobre as vivendas; estabeleceram, á maneira da idade Média, regulamentos que prescreviam a qualidade da mercadoria proibida, não considerando que, exigindo uma qualidade superior, e aumentando, por conseguinte o preço de custo, limitariam a procura e diminuiriam a oferta no futuro. Criando encargos locais, opuseram, recentemente, novos obstáculos à construção de casas pequenas. Por último, depois de terem obrigado mediante sucessivas medidas, a construção de casas em más condições, e motivado a falta de outras mais confortáveis, remediaram o amontoamento das pessoas pobres, reduzindo o espaço que já não as podia comportar. Para que, pois, lamentar-se das misérias nos bairros pobres? Contra quem deveriam se elevar os gritos dolorosos dos "proscritos" de Londres? O antropólogo alemão Bastian, diz-nos que se um natural da Guiné adoece e desmente o feiticeiro não se curando, é estrangulado; isto nos autoriza a supor que entre os habitantes daquele país, qualquer que tenha audácia bastante para pôr em dúvida o poder do fetiche, será imediatamente sacrificado. Na época em que a autoridade governamental era sustentada por medidas severas, havia um perigo análogo em se falar com irreverencia do fetiche político. Em nossos dias o perigo maior a que está exposto quem ponha em dúvida a onipotência desse fetiche, é o de ser tratado de "reacionário", que fala do "laissez faire". Não é possível fazer com que diminua a fé estabelecida, com a ajuda dos fatos compilados, porque diariamente vemos que essa fé desafia todos os testemunhos contrários. Examinemos alguns destes numerosos testemunhos, aos quais não se prestou nenhuma atenção. "Um departamento do Governo parece um filtro invertido; enviai-lhe as contas bem claras, e elas ficarão embrulhadas". Tal foi a comparação feita em minha presença, há muitos anos, pelo falecido sir Carlos Fox, que tinha grande experiencia em assuntos administrativos. Se essa comparação pertence a ele somente, sua opinião é comum a muitas pessoas, como todo o mundo o sabe. Os escândalos divulgados pela imprensa e as críticas feitas no Parlamento, não permitem a ninguém ignorar os vícios da rotina oficial. Sua lentidão, do que nos queixamos continuamente, e que chegava, no tempo de "mister" Fox Maule, "até a resolver alguns assuntos com dois anos de atraso", manifestou-se recentemente com a publicação do censo geral de 1881, mais de dois anos depois de ter sido feito o recenseamento. Se procurarmos a explicação dessa lentidão, veremos que provem de uma confusão apenas concebível. Com referência aos estados do censo, o diretor geral do Registro diz "que a dificuldade não reside somente no grande número das diversas circunscrições a que é preciso atender, mas, também, e de modo notável, na divisão inextricável dos limites de cada uma". Ha, de fato, trinta e nove mil circunscrições administrativas de vinte e duas classes diferentes, que se cruzam e entrecruzam: cantões, paróquias, municípios, bairros, juizados de paz, províncias, distritos sanitários, urbanos, rurais, dioceses, etc. E, como diz "mister" Ratbone, estas numerosas classes de circunscrições superpostas, com seus limites entrecruzados, têm seus diferentes corpos administrativos, cujos poderes se estendem aos distritos vizinhos. Alguém perguntará: "Porque o Parlamento estabeleceu uma nova série de divisões para cada nova administração?" A única resposta natural que ocorre, é que quis ser logico em seu método. Esta confusão organizada corresponde por completo a confusão organizada que o Parlamento aumenta cada ano, acrescentando ao grande número de antigas medidas legislativas certo número de medidas novas, cujas disposições contradizem e mudam de mil maneiras as prescrições das leis ás quais se juntam; o cuidado de determinar o que é a lei, fica a cargo dos particulares, que perdem sua fortuna para obter uma interpretação dos juízes. Por outro lado, este sistema de entrecruzar uma rede de distritos com outra, está de acordo com o método segundo o qual o interessado na lei de 1872, referente à higiene pública, desejando saber os deveres que lhe são impostos, vê-se remetido a vinte e seis leis precedentes de distintas categorias e promulgadas em datas muito diversas. Outro tanto demonstram a resistência do funcionalismo ao progresso: Assim é o do Almirantado que, quando se lhe propôs o emprego do telégrafo elétrico, respondeu: "Temos um excelente sistema de sinais semafóricos"; ou o da Administração dos Correios, que, como disse há muitos anos o falecido sir Carlos Siemens, pôs obstáculos a adoção de métodos aperfeiçoados de telegrafia, e entorpeceu depois o uso do telefone. Outros casos análogos ao das casas operarias demonstram, de vez em quando, como o Estado aumenta com uma das mãos os males que com a outra quer diminuir. Por exemplo, impõe um direito sobre os seguros contra incêndios e estabelece, regulamentos para facilitar a extinção do fogo, ou prescreve certas formas de construção que, como o capitão Shaw prova, produzem aumento do perigo. Por outro lado, o absurdo da rotina oficial, que se mostra rígida onde deveria ser flexível, e flexível onde deveria mostrar-se rígida, resulta às vezes tão claramente, que degenera em escandalosa. Assim vemos que chega a se tornar público um documento oficial secreto de grande importância, depois de chegar ás mãos de um escriturário mal retribuído, que nem sequer era empregado permanente do Governo; ou que se oculta aos nossos oficiais superiores de artilharia o modo de fundir segundo o método Morson, indo estes aprende-lo dos russos, aos quais se havia permitido conhece-lo; ou que um diagrama demonstrativo das distâncias em que os couraçados podem ser perfurados pelos nossos grandes canhões, é comunicado por um "adido" atrevido ao seu próprio Governo, e conhecido em seguida, "por todos os Governos da Europa", ao passo que os nossos oficiais nada sabem ainda. O mesmo ocorre com a inspeção administrativa. Porém, não se aproveitam semelhantes lições. Mesmo nos casos em que a inutilidade da inspeção salta aos olhos, passa inadvertida, como quando ruiu a ponte de Tal, lançando ás aguas um trem cheio de passageiros. De todas as partes elevaram-se gritos contra o engenheiro, o construtor, etc.; porém, ninguém falou ou, se se falou, foi muito pouco, da repartição que havia dado a ponte a aprovação oficial. Igualmente acontece com as medidas preventivas contra as enfermidades. Não se reflete que, sob a direção e, por conseguinte, sob as prescrições dos agentes do Estado, produzem-se grandes calamidades; recordemos, por exemplo, as oitenta e sete mulheres e filhos de soldados que pereceram a bordo do vapor "Acrington"; ou a febre tifoide e a difteria que foram propagadas por um sistema oficial de esgotos em Edimburgo; ou as medidas sanitárias ordenadas pelo Estado e sempre mal aplicadas, que aumentam os males que se propõem diminuir. Inúmeras provas desse gênero não quebrantam a confiança com que se invoca a inspeção sanitária. Invoca-se hoje mais do que nunca, como o demonstra a sugestão recente de que todas as escolas públicas deveriam estar sob a vigilância de médicos nomeados pelo Governo. Ademais, mesmo quando o Estado tenha sido a causa manifesta do mal que se lamenta, não diminui a fé em sua intervenção benfeitora, como se vê pelo fato de, havendo, há uns oitenta anos, dado autorização, ou melhor, ordenado aos municípios o estabelecimento de sistemas de esgotos que desaguassem nos rios, o que originou a infecção das fontes, o grito geral se levantou contra a companhia de aguas, reclamando a sua impureza. Os gritos não cessaram, até que os municípios se viram obrigados a transformar completamente, à custa de despesas enormes, seu sistema de esgotos. E agora, como único remédio, pede-se que o Estado administre todo o assunto, valendo-se de seus mandatários locais. Neste caso, como no das casas para operários, os delitos do Estado dão motivo a que se cometam outras mais. Verdadeiramente, a submissão a legislatura é, de certo modo, menos escusável que a do fetiche, a qual a tenho comparado. Os selvagens podem alegar que seu fetiche não fala, que não confessa sua impotência. Porém, o homem civilizado persiste em atribuir ao ídolo, obra de suas próprias mãos, poderes que o próprio ídolo, de uma maneira ou de outra, reconhece não possuir. Não quero dizer somente que os debates parlamentares nos revelam, cada dia, a existência de medidas legislativas que causaram males em lugar de bens, nem que milhares de leis, derrogando outras anteriores, são, pelo menos, declaração tácita da falta de êxito destas últimas. Tampouco me refuto ás confissões quase oficiais, como, por exemplo, a contida nos informes dos "Comissionados para a lei dos pobres", os quais se expressam assim: "Apenas encontramos um estatuto referente, a administração da beneficência pública, que produziu os efeitos visados pela legislatura; pelo contrário, a maior parte deles deram origem a novos males e agravaram os que tinham o propósito de impedir". Refiro-me, antes de tudo, a certas confissões de homens de Estado e de administrações públicas. Por exemplo, em um memorial dirigido a "mister" Gladstone e adotado em uma reunião de personagens muito influentes, celebrada sob a presidência do falecido lord Lytelton, se lê: "Os abaixo assignados, membros da Câmara dos Lords e da Câmara dos Comuns, e vizinhos da capital, reconhecendo plenamente a exatidão e gravidade de vossa afirmação, feita na Câmara dos Comuns, em 1886, de que todas as nossas disposições legislativas concernentes a obras públicas são lamentáveis, e que em todas se nota, ao mesmo tempo, indecisão, incerteza, gastos exagerados, extravagancias, sovinices e todos os vícios imagináveis... etc. etc." ("Times" de 31 de março de 1873). Eis aqui um outro exemplo, facilitado por uma nota recente do Conselho de Comércio (novembro de 1883), onde se diz que "desde a formação de um Comité com esse fim, em 1836, não tem passado ano em que não se tenha votado uma lei, ou ditado alguma medida, seja pelo Parlamento, ou pelo Governo, para evitar os naufrágios", e que "a multiplicidade desses estatutos, reunidos em uma só lei em 1854, chegou a ser de novo um escândalo e um motivo para constantes queixas", pois, cada nova medida era a prova do fracasso das anteriores. Imediatamente confessa-se que, "desde 1876, as perdas de homens e navios foram mais consideráveis do que nunca". Entretanto, os gastos de administração elevaram-se de dezessete mil, a setenta e três mil libras por ano. É surpreendente ver a força com que alguns meios artificiais, empregados de certa maneira, atuam sobre a fantasia, a despeito da razão. A história inteira prova a certeza deste asserto, ao registrar, desde a tatuagem com a qual os selvagens tratam de espantar os seus adversários, até as cerimonias religiosas e as procissões reais, nas quais são imprescindíveis o largo manto do presidente e o bastão do porteiro-mór em uniforme. Recordo-me de um menino que podia olhar com bastante calma uma horrível careta, quando seu pai a tinha na mão, porém, que lançava altos berros se este a punha no rosto. Mudança análoga se opera nos sentimentos dos corpos eleitorais, quando os seus eleitos passam dos municípios, ou províncias, ao Parlamento. Todo o tempo em que estes são candidatos, estão expostos às burlas, ás sátiras e ás "porfias" de um ou outro partido, e são tratados, a todos os respeitos, com muita reverencia; porém, tão depressa se reúnem em Westminster, os que foram injuriados, vilipendiados, acusados de ignorância e de loucura pelos jornalistas e oradores públicos, inspiram confiança sem limites. A julgar pelas petições que lhes são dirigidas, nada há por cima de sua sabedoria e seu poder. A todas estas observações, responder-se-á, sem dúvida: "Não se pó de encontrar nada melhor que o Governo pela "sabedoria coletiva"; os eleitos da nação, escolhendo dentre si um pequeno número de homens de Estado, aplicam toda sua inteligência esclarecida pela ciência moderna, a resolver as questões que se debatem em sua presença. Que mais quereis?", perguntará a maior parte dos leitores. Responderei que essa ciência moderna, com a qual se prepararam os nossos legisladores, segundo se diz, para bem cumprir os seus deveres, lhes é, em sua maior parte, evidentemente, inútil e que são passiveis de censura por não terem sabido que ciência lhes teria sido proveitosa. Se muitos deles são distintos filólogos, nem por isso serão melhores juízes nas questões que se discutam, e o conhecimento da literatura, facilitado por seus estudos filológicos, não lhes será de grande auxílio. As experiencias e as especulações políticas fundadas na história das pequenas sociedades antigas e nos livros dos filósofos que afirmam que a guerra é o estado normal, que a escravidão é necessária e justa, e que as mulheres devem estar submetidas a perpetua tutela, não lhes servirão para apreciar de antemão, os efeitos das leis nas grandes nações do tipo moderno. Podem meditar nas ações de todos os grandes homens que, segundo a teoria de Carlyle, dão a sociedade a sua forma, e passar anos inteiros lendo detalhes acerca de conflitos Internacionais, traições, intrigas e tratados que enchem as obras históricas, sem chegar a compreender as origens e as causas das estruturas e das ações sociais, e a maneira como a lei as afeta. Os conhecimentos adquiridos nos escritórios, na Bolsa e no Foro, não ajudam muito a preparação indispensável. O que realmente se necessita é um estudo sistemático de encadeamento natural entre a causa e os efeitos, tal como se manifesta nos seres humanos reunidos em sociedade. Embora uma consciência distinta deste encadeamento seja um dos últimos resultados do progresso intelectual; embora o selvagem não tenha nenhuma concepção de uma causa mecânica; embora os próprios gregos tivessem pensado que o voo de uma flecha era dirigido por um deus; embora se tenha dado ás epidemias, até quais em nossa época, uma causa sobrenatural; e mesmo o mais complexo de todos os fenômenos sociais, a relação entre a causa e o efeito seja, provavelmente, o que mais tempo leve a se conhecer, em nossos dias chegou a ser bastante evidente a existência dessa relação para infundir em todos os homens que pensam a convicção de que antes de intervir nela, é preciso estudá-la com cuidado. Os simples fatos geralmente conhecidos hoje, a saber, que há certa conexão entre o número de nascimentos, falecimentos, matrimônios e o preço do trigo; que na mesma sociedade, durante a mesma geração, a proporção entre os crimes e a população varia em estreitos limites, deveria bastar para fazer ver a todo o mundo que os desejos humanos, guiados pela inteligência que lhes é conexa, atuam de uma forma aproximadamente uniforme. Dever-se-ia deduzir que, entre as causas sociais, as nascidas da legislação, atuando do mesmo modo, com uma regularidade constante, devem mudar não somente as ações dos homens, mas, também sua natureza, e isto, de forma diversa lia que se havia previsto. Dever-se-ia reconhecer que, na sociedade, mais do que em qualquer outra parte, as causas são fecundas em efeitos, e ver que as consequências distantes e indiretas não são menos inevitáveis que as imediatas. Não pretendo que se neguem estes assertos e estas conclusões. Porém, há crenças e crenças; algumas não professadas nominalmente; outras influem apenas em nossa conduta; outras, por último, exercem sobre ela uma influência irresistível em todas as circunstancias; e, desgraçadamente, as crenças dos legisladores, no que se refere ao encadeamento das causas e dos efeitos nas questões sociais, pertencem a primeira categoria. Vejamos algumas verdades que todos admitem, e que muitos não têm em conta ao legislar. Indiscutivelmente, todo o ser humano é modificável até a um certo limite, tanto sob o ponto de vista físico, como do intelectual. Todos os métodos de educação, todos os exercícios, desde os do matemático, aos do lutador profissional; todas as recompensas concedidas a virtude; todos os castigos infligidos ao vicio, implicam a crença, expressa em diversos provérbios, de que o uso, ou desuso de uma faculdade física, ou mental, é acompanhado de uma mudança na adaptação, perdendo, ou ganhando forças, segundo o caso. Ha o fato reconhecido em toda a parte, em seus grandes traços, de que as modificações da natureza, produzidas de uma ou de outra maneira, são hereditárias. Ninguém nega que, pela acumulação de pequenas mudanças, durante gerações sucessivas, a constituição se adapta às condições; de sorte "que um clima, funesto a outras raças, não causa mal algum á que a ele se adaptou. Ninguém nega que os povos do mesmo tronco que se espalharam por regiões diferentes e têm levado diferentes existências, adquiram, com o decorrer do tempo, aptidões e tendências diversas. Ninguém nega que em condições novas formam-se novos caracteres nacionais, sendo disto testemunho, o povo americano. E se ninguém nega que existe um processo de adaptação, em todas as partes e sempre, a conclusão evidente é que, cada mudança nas condições sociais, vai acompanhada, necessariamente, de modificações na adaptação. Pode-se, ainda, acrescentar, como corolário, que toda a lei que contribua para alterar a atividade dos homens - seja impondo-lhes novas coações, seja proporcionando-lhes novos auxílios – afeta os de tal modo, que a sua natureza se adapta a ela com o tempo. Além do efeito imediato, existe o distante, ignorado da maioria, e que consiste em uma reforma do caráter médio: reforma que pode, ou não, ser desejável, porém, que, em todo o caso, é o resultado mais importante que há a considerar. Outras verdades gerais que o cidadão e, mais ainda, o legislador deveria meditar até assimilá-las por completo, se nos revelam quando nos perguntamos como se produzem as atividades sociais e nos convencemos do evidente que" é a resposta de que são o resultado coletivo dos desejos dos indivíduos, que cada qual procura satisfazer por sua parte, seguindo o caminho que lhe parece mais fácil, segundo seus hábitos e seus pensamentos preexistentes, isto é, seguindo a linha de menor resistência: as verdades da economia política são, simplesmente, corolário desta lei. Não é preciso demonstrar que as estruturas e as ações sociais são, necessariamente, de uma ou outra maneira, o produto dos sentimentos humanos, guiados pelas ideias, já dos antepassados, já dos contemporâneos. A consequência forçosa é que a interpretação dos fenômenos sociais se acha na cooperação desses fatores, de geração em geração. Tal interpretação conduz, prontamente, a conclusão de que, entre os desejos humanos que se querem satisfazer, os que excitaram as atividades particulares e as cooperações espontâneas, contribuíram muito mais para o desenvolvimento social, que os que foram obrigados a atuar por efeito da intervenção governamental. Se messes abundantes cobrem agora os campos, onde antes só se poderia colher cardos silvestres, devemo-lo a perseguição de satisfações individuais durante numerosas gerações. Se casas confortáveis substituíram as choças, é porque os homens desejaram aumentar o seu bem-estar; as cidades também devem a sua existência a estímulos desse gênero. A organização comercial, atualmente tão vasta e tão complexa, começou com as reuniões que se celebravam por motivos de festas religiosas, e é devida por completo aos esforços dos homens para realizar seus fins particulares. Os Governos têm entorpecido e perturbado continuamente esse desenvolvimento, sem favorece-lo jamais, desde que deixaram de cumprir as suas funções próprias e manter a ordem pública. O mesmo acontece com o progresso das ciências e de suas aplicações, que tornaram possível as mudanças de estrutura e o aumento das atividades sociais. Não é ao Estado a quem devemos os inúmeros inventos uteis, desde a enxada ao telefone; não foi o Estado que fez os descobrimentos em física, em química e nas demais ciências que são o fundamento da indústria moderna; não foi o Estado que imaginou esses mecanismos que servem para fabricar objetos de todas as classes, para transportar homens e coisas de um lugar para outro, e que contribuem de mil modos para a nossa comodidade. As transações comerciais que se estendem pelo mundo inteiro, o tráfego que enche as nossas ruas, a venda a retalho, que põe todas as coisas ao nosso alcance, e distribui á porta de nossa casa os objetos necessários para a vida quotidiana, não têm origem governamental. São resultado das atividades espontâneas dos cidadãos, isolados ou em grupos. Os próprios Governos devem a essas atividades espontâneas os meios de cumprir seus deveres. Tirai ao mecanismo político todos os auxílios que as ciências e artes lhes têm facilitado; deixai o Estado sem outros recursos que os inventados pelos funcionários, e bem depressa ficará interrompida a marcha do Governo. A própria linguagem que lhe serve para ditar as leis e dar as ordens aos seus agentes, é um instrumento que não se deve, de nenhum "modo, ao legislador: foi criado, sem que ele tornasse parte, nas relações dos homens em prol de suas satisfações pessoais. Outra verdade que se une a precedente, é que as diferentes partes desta organização social formada espontaneamente, ligam-se entre si, de tal maneira, que não é possível atuar sobre uma, sem atuar, mais ou menos, sobre todas. Isto se vê claramente quando uma escassez de algodão paralisa primeiro certos distritos manufatureiros; influi, em seguida, nas operações dos negociantes por atacado e a retalho do reino inteiro, assim como nas de seus clientes e afeta, por último, aos fabricantes, negociantes e compradores dos artigos de lá e linho, etc. Também o vemos quando uma alta do preço da hulha influi em toda a parte sobre a vida doméstica, cria obstáculos a maioria dos industriais, eleva o preço dos produtos fabricados, restringe o consumo e transforma os hábitos dos consumidores. O que advertimos claramente nos casos citados, descobre-se em todos, de uma forma mais ou menos perceptível. Evidentemente, os atos legislativos devem ser contados entre os fatores que, aparte sua influência direta, produzem efeitos incomensuráveis e muito diversos. Um professor eminente, cujos estudos lhe dão grande competência nestas questões, me expos a seguinte observação: "Quando se começou a intervir na ordem da Natureza, é impossível saber qual será o resultado". Se essa observação é real na ordem sub-humana da Natureza a que se refere, mais ainda o é na natureza existente nas organizações criadas pelos seres humanos reunidos em sociedade. E agora, para apoiar a conclusão, segundo a qual o legislador deveria empregar no exercício de seu mandato a mais viva consciência dessas verdades evidentes, e de outras da mesmas espécies referentes à sociedade humana da qual tem intenção de se ocupar, me permitirei apresentar mais detalhadamente uma dessas verdades de que ainda não falei. Para que uma espécie superior qualquer subsista, é necessário que se conforme com dois princípios radicalmente opostos. Seus membros devem ser tratados de maneira diversa na infância e na idade adulta. Observemo-lo nas duas idades Um dos fatos mais familiares é que os animais de tipo superior, relativamente mais demorados em alcançar sua maturidade, podem, depois de alcançá-la, prestar mais auxílio aos seus filhos que os animais de tipo inferior. Os adultos alimentam os filhos durante um período mais ou menos longo, enquanto eles são incapazes de prover sua existência; e é evidente que a permanência da espécie unicamente se pode assegurar, se os cuidados dos pais se conformam às necessidades dos filhos, resultantes de sua imperfeição. Inútil é provar que o pássaro cego e sem penas, ou o cão recém-nascido, embora vendo, pereceriam imediatamente se estivessem obrigados a procurar calor e alimentos. O cuidado dos pais deverá ser tanto maior, quanto mais incapazes sejam os filhos para cuidar de si e dos outros, e poderá diminuir a medida que estes, desenvolvendo-se, conseguem valer-se a si próprios, primeiro, e ajudar depois a pouco e pouco, os demais. Basta dizer, pois, que durante a infância, os benefícios recebidos devem estar na razão inversa da força ou destreza de quem os recebe. Claro é que, se na primeira parte da vida, os benefícios fossem proporcionais ao mérito, ou as recompensas aos serviços, a espécie desapareceria no espaço de uma geração. Deste regime do grupo familiar, passemos ao regime do grupo mais extenso formado pelos membros adultos da espécie. Perguntai o que sucede quando o novo indivíduo, depois de haver adquirido o uso completo de suas forças, cessa de receber o auxílio de seus pais e fica abandonado a si mesmo; aqui entra em jogo um princípio que é justamente contrário ao descrito antes. Durante o resto de sua vida, cada adulto obtém benefícios proporcionais ao seu mérito, recompensas proporcionais aos seus serviços: por mérito e por serviços entendemos, nos dois casos, a capacidade de satisfazer as necessidades da vida, de procurar alimentos, assegurar-se um abrigo e escapar aos inimigos. Em concorrência com os membros de sua própria espécie, em luta com os de outras, o indivíduo debilita-se e morre, ou prospera e se multiplica, segundo esteja dotado. Evidentemente, um regime contrário, se pudesse ser mantido, seria, com o tempo, fatal á espécie. Se os benefícios recebidos por cada indivíduo, fossem proporcionais à sua inferioridade; se, por conseguinte, a multiplicação dos indivíduos inferiores fosse favorecida e obstada a dos superiores, o resultado seria uma degeneração progressiva da espécie; e depressa a espécie degenerada não poderia subsistir ante a que estivesse em luta e concorresse com ela. O importante fato que se deve notar aqui, é que os procedimentos da Natureza, dentro e fora do grupo familiar, são diametralmente opostos, e que a inversão da ordem desses procedimentos seria fatal á espécie, imediatamente ou no futuro. Ha alguém que pense que esta verdade não é aplicável á espécie humana? Não pode negar que, na família humana, da mesma forma que em todas as famílias inferiores, acarretaria funestas consequências regular os benefícios pelos méritos pode sustentar que, fora da família, entre os adultos, não deveriam ser os benefícios proporcionais aos méritos? Pretenderia, acaso, que não resultaria nenhum dano se os indivíduos mal dotados fossem postos em condições de prosperar e multiplicar-se tanto, ou mais que os hem dotados? Uma sociedade humana em luta, ou em concorrência com outras sociedades, pode ser considerada como uma espécie, ou melhor, como uma variedade de espécie; e se pode afirmar que, da mesma forma que outras sociedades ou variedades, sucumbirá se favorecer suas unidades inferiores à custa das superiores. Certamente, ninguém pode negar que, se se adotasse e se aplicasse completamente o princípio da vida familiar na vida social, se as recompensas fossem sempre maiores que os serviços prestados, resultariam consequências funestas para a sociedade. Se isto é assim, uma introdução do regime da família no regime do Estado, embora seja parcial, deve produzir consequências análogas. A sociedade, considerada em seu conjunto, não pode, sem se expor a um desastre imediato, ou futuro, intervir na seção desses dois princípios opostos, cuja aplicação tornou todas as sociedades aptas para alcançar seu modo de vida atual e para se manter em seu estado. Intencionadamente disse “a sociedade considerada em seu conjunto", pois, não pretendo suprimir nem condenar os auxílios concedidos aos homens mal dotados pelos bem-dotados, em sua qualidade de indivíduos. Mesmo quando esses auxílios produzem dano distribuídos a trouxe-mouxe, pondo os homens mal dotados em condições de se multiplicar, a falta de socorros pela sociedade, a assistência individual, reclamada mais frequentemente do que agora, e associada a uma ideia mais exata da responsabilidade, será, em geral, concedida com o propósito de ajudar aos desgraçados merecedores de comiseração, antes que aos que são indignos por natureza. Desta beneficência a sociedade obterá, por outra parte, as vantagens resultantes do desenvolvimento dos sentimentos simpáticos. Mas, tudo isso não impede sustentar que se deve manter a diferença radical entre a moral da família e a moral do Estado, e que, se a generosidade deve ser o princípio essencial da primeira, a justiça deve ser o princípio essencial da segunda. Não é preciso alterar as relações normais entre os cidadãos, segundo as quais, cada um recebe em troca de seu trabalho, hábil ou imperfeito, físico ou mental, o salário determinado, que permite prosperar e educar os seus filhos em proporção com sua capacidade ou aptidões. Apesar da evidencia destas verdades, que impressionam a quantos abandonam suas preocupações burocráticas e contemplam a ordem de coisas em meio à qual vivemos e com a qual nos devemos conformar, se continua a pedir um Governo paternal. A introdução da moral familiar na moral do Estado, em lugar de ser encarada como nociva à sociedade, é reclamada cada vez mais, como o único meio eficaz de assegurar o bem público. Esta ilusão chegou atualmente a tal ponto, que viciou as crenças dos que mais isentos deveriam estar dela. No ensaio a que o "Cobden Club" outorgou o prêmio em 1880, afirma-se que "a verdade do livre cambismo está obscurecida pelos sofismas do "laissez-faire" e que "necessitamos um Governo muito mais paternal, do que esse espantalho dos antigos economistas". A verdade que acabo de expor é de uma importância tão vital, desde que, de aceitá-la, ou não, depende a mudança de todas as nossas opiniões políticas, que me permito insistir citando algumas passagens de uma obra que publiquei em 1851; rogo ao leitor, unicamente, que não me considere ligado às conclusões teológicas que contêm. Depois de haver descrito "esse estado universal de guerra em meio ao qual vivem todos os seres inferiores", e de haver demonstrado que dele resulta certa soma de bens, continuo assim: "Notai, ademais, que seus inimigos carnívoros, não somente fazem desaparecer, nos rebanhos dos herbívoros, os indivíduos esgotados pela velhice, mas, também os enfermos, os mal conformados, menos ágeis e menos vigorosos. Essa depuração acrescentada aos numerosos combates durante a época do cio, impede a degeneração da raça que resultaria da multiplicação dos indivíduos inferiores, e assegura a manutenção de uma constituição completamente adaptada ao meio circulante, a mais própria, portanto, para procurar o bem-estar. O desenvolvimento das espécies superiores é o progresso para uma forma de existência capaz de procurar uma felicidade isenta de necessidades enfadonhas. Na raça humana é que esta felicidade deve realizar-se. A civilização é a última etapa para seu cumprimento. E o homem ideal, é aquele que viver nas condições próprias para que se realize. Entretanto, o bem-estar da humanidade presente e o progresso até a perfeição final estão assegurados pela disciplina, benfeitora embora severa, a que está sujeita toda natureza animada: disciplina desapiedada, lei inexorável que conduz ao bem e que não se dobra jamais para evitar dores parciais e temporárias. A pobreza dos incapazes, a angustia dos imprudentes, a nudez dos preguiçosos, esse arrasamento dos débeis pelos fortes, que deixa tantos seres "na miséria", são decretados por uma benevolência imensa e previsora". "Para se acomodar ao estado social, o homem não somente tem necessidade de perder sua natureza selvagem, como deve adquirir também as capacidades indispensáveis à vida civilizada. É preciso que desenvolva a faculdade de aplicar-se, que modifique seu intelecto de forma que se adapte às suas novas funções, e, sobretudo, é mister que possua a energia suficiente para renunciar aos pequenos gozos imediatos afim de obter outros maiores no porvir. O estado de transição será, naturalmente, um estado desgraçado. A miséria é o resultado inevitável do desacordo entre a constituição e as condições. Todos esses males que nos afligem e que parecem aos ignorantes consequências claras de tal ou qual causa que se pode evitar, acompanham fatalmente a adaptação quando em via de se cumprir. A humanidade está obrigada a submeter-se às necessidades inexoráveis de sua nova posição, e é preciso que se conforme e suporte como melhor possa os males que dela derivarem. É "necessário” sofrer o processo; é "necessário" suportar as dores. Nenhum poder sobre a terra, nenhuma lei imaginada por legisladores hábeis, nenhum projeto destinado a retificar as coisas humanas, nenhuma panaceia comunista, nenhuma reforma que os homens tenham realizado, ou realizem, pode diminuir essas dores em um ápice. O que se pode, é aumentar sua intensidade, e aumenta-se; e o filosofo que queira impedir este mal, achará sempre em sua tarefa, amplos meios de se exercitar. Porém, a mudança leva consigo uma quantidade "normal" de dores que não pode ser reduzida sem que se alterem as próprias leis da vida...” "Naturalmente, se o rigor desse processo é mitigado pela simpatia espontânea de uns homens por outros, nada há que dizer, embora essa simpatia, indubitavelmente, produza males quando se manifesta sem exame prévio das consequências finais. Mas os inconvenientes que resultam não significam nada em comparação com o bem realizado. Somente quando essa simpatia impele a atos de iniquidade, quando é causa de uma confusão, proibida pela lei, da liberdade igual para todos, quando, procedendo desse modo, suspende em qualquer manifestação particular da vida, a relação entre a constituição e as condições, produz, realmente, males. Porém, então, ela própria descobre seus desígnios. Favorece a multiplicação dos homens mais ineptos, e impede, por conseguinte, a dos mais aptos. Tende a encher o mundo de pessoas para quem a vida será uma carga, e cerra a entrada àquelas para quem seria um prazer. Inflige uma miséria positiva e impede uma felicidade real". ("Estatística Social", pag. 322/325 e 388/391. Edição de 1851). Embora haja decorrido um terço de século desde que se publicaram estas passagens, não tenho nenhum motivo para retificá-las. Pelo contrário, esse lapso de tempo trouxe inúmeras provas que confirmam minha posição de então. Demonstrou-se que dá sobre existência dos mais aptos resultaram consequências infinitamente mais ditosas do que as que eu indicava. Darwin provou que a seleção natural, unida a uma tendência a variação e á hereditariedade das variações, é uma das causas principais - porém, não a única segundo meu parecer - dessa evolução graças à qual todos os seres animados, começando pelos mais humildes, alcançaram seu estado atual e a adaptação a seu modo de existência. Esta verdade chegou a ser tão familiar, que não acredito necessário citá-la. Sem embargo, - coisa estranha! - agora que essa verdade é admitida pela maior parte das pessoas ilustradas, que estão convencidas da influência benfeitora da perpetuação dos mais capazes, até ao extremo de que se deveria esperar que vacilassem antes de neutralizar seus efeitos, fazem-se mais esforços que em qualquer época anterior, para favorecer a perpetuação dos mais incapazes. Porém, o postulado de que os homens são seres racionais, induz-nos continuamente a conclusões que estão muito longe da verdade. "Sim, certamente; porém, vosso princípio foi tirado da vida dos brutos e é um princípio brutal. Não lograreis persuadir-me de que os homens devem viver sob a mesma disciplina a que estão submetidos os animais. Não me preocupo com os vossos argumentos de História Natural. Minha consciência diz-me que os débeis e os desgraçados devem ser socorridos; e se os egoístas não os querem socorrer, é preciso obriga-los a que o façam pela lei. Não me digais que a bondade humana deve ficar adstrita às ações entre os indivíduos, e que os Governos somente devem ser administradores de uma justiça rigorosa. Todo o homem dotado de alguma simpatia sente que é preciso impedir a fome, a miséria e a imundice e se as instituições privadas não bastam para tanto, o Governo deve intervir". Esta é a resposta que me darão nove pessoas em cada dez. E algumas delas o farão levadas por sentimentos demasiado vivos, sob cujo domínio não podem contemplar as misérias humanas sem uma impaciência que as incapacita para pensar nas consequências distantes. Com referência a sensibilidade das demais, poderemos ser um tanto céticos. As pessoas que, neste ou naquele caso, irritam-se ao ver que o Governo não envia imediatamente, para sustentar nossos supostos "interesses", ou nosso prestigio nacional, alguns milhares de homens a países longínquos, dos quais muitos perecerão e farão perecer outros tantos, de cujas intenções suspeitemos, ou cujas instituições pareçam oferecer-nos algum perigo, ou cujo território seja cobiçado pelos nossos colonos, tais pessoas, repito, não podem estar animadas de sentimentos tão delicados a ponto de julgar intolerável o espetáculo da dor dos pobres. De nenhum modo deve admirar a simpatia dessa gente que reclama uma polícia destruidora de sociedades em via de progresso, e que contemplam, depois, cinicamente indiferentes, a confusão lamentável que deixa atrás de si, com o cortejo de misérias e de mortes que arrasta em seu séquito. Aqueles que quando os boers nos resistiam com êxito, defendendo sua independência, estavam coléricos porque não se queria sustentar a "honra" britânica, enviando a morte e expondo a miséria maior número de nossos soldados e de nossos adversários, não podem ser "humanitários tão entusiastas" como nos poderiam fazer supor os protestos antes mencionados. Certamente essa sensibilidade de que fazem alarde e que não lhes permite ser testemunhas da dor causada pela "luta pela vida", que se processa sem ruído em torno seu, parece associar-se neles a uma insensibilidade que, não somente tolera os combates propriamente ditos, mas, que encontra prazer em contempla-los, como se vê pela venda que alcançam os jornais ilustrados que contêm cenas de carnificina e pela avidez com que leem as narrações detalhadas de lutas sangrentas. Não se nos pode censurar que duvidemos da sinceridade de pessoas que aparentam estremecem ante as dores sofridas, principalmente por indivíduos preguiçosos e imprevidentes, e que, ao mesmo tempo, devoram trinta e uma edições sucessivas da obra "Cinco batalhas decisivas do mundo", para se deleitar com narrativas de verdadeiros horrores. O que assombra ainda mais, no contraste entre a sensibilidade aparente e a crueza dos que desejariam torcer o curso natural das coisa, para aliviar misérias imediatas, ainda que a custa de maiores misérias futuras, pois, em outras ocasiões ouvireis sustentar, a essas mesmas pessoas, sem nenhuma consideração pela vida de seus semelhantes, que, no interesse da humanidade em geral, é preciso exterminar as raças inferiores, substituindo-as pelas superiores. Assim - coisa estranha! - não se pode pensar com calma nos males que acompanham a luta pela vida, que se verifica sem violência entre os membros da mesma sociedade, e se pode serenamente contemplar esses males, sob sua mais terrível forma, quando são infligidos pelo ferro e pelo fogo a comunidades inteiras. Parece-me, pois, que não merecem muito respeito os que afetam generosidade para com os inferiores do próprio país, estando dispostos a sacrificar sem escrúpulos os inferiores de outras terras. Esse interesse excessivo para com os do próprio país, acompanhado de completa indiferença para com os dos outros, parece ainda menos respeitável quando observamos como se manifesta. Se fosse impelido por esforços pessoais para aliviar aos desgraçados, mereceria aprovação. Se, quantos alardeiam essa compaixão barata se parecessem aos poucos que, sem descanso, uma semana após outra, um ano atrás do outro, consagram a maior parte de seu tempo a socorrer, a animar, e algumas vezes a distrair seus semelhantes reduzidos a miséria pelos infortúnios, por incapacidade, ou má conduta, não lhes regatearíamos nossa admiração. Quantos mais homens e mulheres hajam que ajudem os pobres a auxiliar-se a si mesmos, pondo em pratica sua solicitude diretamente e não por mandatários, tanto mais poderemos alegrar-nos. Porém, a maior parte das pessoas que desejam ajudar por meio das leis as misérias dos infelizes e dos imprevidentes, propõe que essa obra se realize, não a expensas suas, mas nas dos outros, algumas vezes pedindo o seu consentimento, porém, frequentemente, sem lhe pedir. Ainda há mais; aqueles aos quais se quer obrigar a auxiliar os desgraçados, têm, muitas vezes, tanta ou mais necessidades que eles. Os pobres dignos de interesse se encontram entre os que estão acabrunhados pelos encargos para acudir aos pobres indignos de todo o interesse. Do mesmo modo que sob a antiga lei dos nobres, o trabalhador ativo e previdente era obrigado a trabalhar para que os folgazões não padecessem, até que sucumbia pelo excesso de cargas e se refugiava por sua vez na "Workhouse", assim, atualmente, vê-se que as contribuições locais alcançam cifra tão elevada nas grandes povoações, que não é possível aumentá-las sem impor maior número de privações aos comerciantes a retalho e aos artífices, que, dificilmente, podem livrar-se da mancha do pauperismo". Desta maneira a política seguida em tudo, tende a aumentar o sofrimento das pessoas mais dignas de interesse, para aliviar as que não merecem nenhuma piedade. Em resumo; homens de tal forma compassivos, que não querem admitir que as pessoas menos aptas, por sua incapacidade, ou má conduta, sofram os males infligidos pela luta pela vida, são bastante insensíveis para tornar mais dura ainda essa luta às aptas, e inflige a elas e a seus filhos males artificiais além dos naturais que têm a suportar. Aqui, volvemos ao tema contido no título deste trabalho: aos pecados dos legisladores. Aqui aparece-nos, claramente, a mais comum das faltas cometidas pelos governantes, falta de tal modo comum, e de tal modo sancionada pelos costumes, que ninguém a considera como uma falta. Aqui vemos que o Governo, nascido, como disse, da agressão, e engendrado pela agressão, continua revelando sua natureza originária por seu caráter agressivo; embora, à primeira vista se nos pareço sob aparências benéficas, é, em realidade, maligno, isto é, embora se mostre bom, está em risco de ser cruel. Não é uma crueldade aumentar as dores da melhor parte da humanidade para diminuir as da pior? Realmente é curioso ver com que facilidade nos deixamos induzir ao erro pelas palavras e frases que exprimem somente um aspecto dos fatos, sem nada dizer do aspecto oposto. Temos uma prova patente no emprego das palavras "proteção" e "protecionista" pelos adversários do livre-cambismo e na aceitação tácita dessas expressões pelos livre-cambistas. Os primeiros olvidaram, e os outros não cuidaram de patentear que a suposta proteção implica sempre uma agressão, e que o nome de protecionista deveria ser trocado pelo de "agressionista", pois, se para manter os lucros de A se proíbe a B que compre de C, ou se lhe impõe uma multa sob o nome de direitos de entrada, no caso de comprar, é evidente que se comete uma agressão contra B para "proteger" a A. Os "protecionistas", ademais, merecem o título de "agressionistas", posto que, para proporcionar lucros a um só produtor, esfolam dez consumidores. A mesma confusão de ideias, causada por não se encarar mais que um lado do problema, observa-se em toda a legislação que arrebata pela força a propriedade a uns, para conceder benefícios gratuitos a outros. Habitualmente, quando se começa a discutir qualquer medida nova desse gênero, o pensamento dominante é que se deve proteger o infeliz João contra tal ou qual mal; porém, não se pensa de modo algum que se prejudica a Pedro, que trabalha constantemente e é, muitas vezes, mais digno de compaixão. Arranca-se o dinheiro - já diretamente, já elevando os preços dos aluguéis - aos revendedores que não se podem manter senão a custa de grandes sacrifícios; ao operário que está sem trabalho em consequência de uma greve; ao artífice cujas economias foram devoradas por uma enfermidade; á viúva que lava e cose desde a manhã até a noite para alimentar seus filhos; e tudo isso para que não passe fome o dissoluto; para que os filhos de vizinhos menos pobres recebam instrução por pouco dinheiro, e para que muitas pessoas, a maior parte das quais contam com recursos, possam ler, gratuitamente, jornais e novelas. O emprego, neste caso, de expressões falsas, tem consequências mais graves do que no caso dos protecionistas, porque, como acabamos de ver, a proteção dos pobres viciosos implica numa agressão aos pobres virtuosos. Sem dúvida alguma, a maior parte do dinheiro arrancado procede dos que gozam de algum bem-estar; porém, isto não é um consolo para os que vivem penosamente e dos quais se arranca o resto. Por outro lado, se se comparam os encargos suportados por ambas as classes, torna-se evidente que o caso é ainda pior do que parece à primeira vista; de fato, para o opulento, exação, significa perda do supérfluo; para o que vive em apertos, perda do necessário. Agora, vede a Nêmesis que ameaça seguir a este pecado crônico dos legisladores. Eles e suas classes, assim como todos os proprietários, estão em perigo de sofrer a aplicação radical do princípio que se afirma na pratica por cada uma das leis de confisco votadas pelo Parlamento. Qual é, em realidade, a suposição tácita de que todas essas leis procedem? A de que nenhum homem tem direito a sua propriedade, nem mesmo a adquirida com o suor de seu rosto, sem permissão da comunidade, e que essa comunidade pode anular esse direito à medida que o julgue conveniente. É impossível justificar essa usurpação dos bens de A em proveito de B, desde que não o seja apoiando-se no postulado de que a comunidade, em seu conjunto, tem direito absoluto sobre os bens de cada membro. Esta doutrina, que tem sido admitida de maneira tácita, é abertamente proclamada em nossos dias. Lord George e seus amigos, e mister Hyndmann e seus partidários, levam-na às suas consequências logicas. Têm eles afirmado com exemplos, cujo número aumenta cada ano, que o indivíduo não tem direito algum que a comunidade não possa anular, e agora dizem: "A tarefa será difícil, porém, sobrepujaremos a nossos mestres", e passaremos por sobre todos os direitos individuais de uma vez. Os diversos delitos dos legisladores, antes mencionados, explicam-se em certa medida, e merecem uma reprovação menos severa, se nos remontamos á sua origem. Provêm da opinião errônea de que a sociedade é um produto fabricado, sendo, como é, produto da evolução. Nem a educação dos tempos passados, nem a da época atual, permitiram que muita gente formasse uma ideia cientifica da sociedade, que lhes é apresentada como uma estrutura natural - estrutura que, em certo sentido, é orgânica - donde todas as instituições: governamentais, religiosas, industriais, comerciais, etc., estão em dependência reciproca - Se existe nominalmente alguma concepção desse gênero, não é de natureza capaz de influir na conduta. Pelo contrário, crê-se geralmente que a sociedade é uma espécie de massa, a qual o cozinheiro pode dar a forma que lhe apraze: a de uma torta" um pastelzinho, ou uma empada. O comunista manifesta, evidentemente, que, segundo sua opinião, o corpo político pode ser organizado à vontade, desta, ou daquela maneira; e muitas medidas legislativas implicam a crença de que a sociedade a que se impôs tal ou qual organização, conservará a forma que se lhe pretendeu dar. Certamente, poder-se-ia crer que, aparte do reconhecimento do erro consistente em se considerar a sociedade como uma massa plástica, sendo, como é, um corpo organizado, os fatos que a toda a hora se impõem a nossa atenção, deveriam nos tornar céticos a respeito do êxito de muitos métodos com os quais se quer mudar: a ação dos homens. A experiência domestica demonstra, diariamente, ao cidadão, da mesma forma que ao legislador, que a conduta do homem burla todos os cálculos. Renunciou ao pensamento de ser governado por sua mulher, e deixa-se governar por ela. De todos os métodos de educação que ensaiou com seus filhos - as repreensões, os castigos, a persuasão, a recompensa - nenhum lhe deu resultados satisfatórios; nenhuma advertência impediu a mãe de os tratar de uma forma que ele crê perniciosa. A mesma coisa acontece em suas relações com os criados: repreenda-os, ou discuta com eles, raramente dura muito tempo o efeito produzido; a falta de atenção, ou de pontualidade, de asseio, ou de sobriedade, acarreta constantes mudanças. Sem embargo, apesar das dificuldades que encontra em suas relações com a sociedade em detalhe, tem confiança em sua habilidade para ordenar os negócios da sociedade em conjunto. O legislador não conhece a milésima parte dos cidadãos; não viu sequer a centésima parte deles; não tem mais do que insignificantes noções dos hábitos e modos de pensar dos mesmos; todavia, acredita firmemente que todos atuarão como ele prevê e tenderão ao fim que deseja ver realizado. Não existe aqui um desacordo patente entre as premissas e a conclusão? Esses fracassos na vida doméstica, a amplitude, a variedade, a complicação da vida social, tal como aparece em todos os jornais, tão grandes que a própria imaginação se esforça por concebe-las, deveriam fazer crer que os homens vacilassem muito, antes de se comprometer a ditar leis. Não obstante, nisto, mais do que em qualquer outra coisa, mostram uma presunção surpreendente. Em nada existe um contraste semelhante entre a dificuldade da tarefa e a falta de preparo daqueles que a empreendem. Certamente entre as crenças monstruosas, nenhuma o é tanto como a de dizer-se que se necessita um largo aprendizado para qualquer oficio, o de sapateiro, por exemplo, e que o único que não exige nenhum, é o de ditar leis para uma nação! Para resumir os resultados do exposto, não poderemos afirmar, categoricamente, que o legislador se encontra ante muitos segredos conhecidos, tão conhecidos, que não deveriam ser segredos para aquele que toma sobre si a grande e terrível responsabilidade de fazer, para milhões de seres humanos, leis que, se não contribuem para sua felicidade, aumentarão sua miséria e apressarão sua morte? Temos, em primeiro lugar, a verdade, a verdade incontestável, evidente, e, todavia, absolutamente ignorada, de que todos os fenômenos que se apresentam em uma sociedade têm sua origem nos fenômenos da vida individual, os quais, por sua vez, têm suas raízes nos fenômenos vitais em geral; do que resulta a conclusão forçosa de que, a menos que as relações entre os fenômenos vitais físicos e intelectuais sejam um caos - suposição excluída pela continuação da vida, - os fenômenos que delas derivam não podem estar tampouco em estado de caos: é preciso que haja, por conseguinte, uma espécie de ordem na sucessão dos fenômenos, quando seres humanos associados devem cooperar. Evidentemente, pois, se um homem empreende a tarefa de organizar a sociedade, sem ter estudado estes fenômenos consecutivos, é bastante certo que produzirá o mal. Em segundo lugar, deixando de parte todo o raciocínio "a priori", a mesma conclusão deveria impor-se aos legisladores pela comparação das sociedades. Deveriam saber que, antes de se imiscuir nos detalhes da organização social, é necessário saber se esta organização tem uma história natural própria, e que, para saber isso, há que examinar, começando pelas sociedades mais simples, em que relações se assemelham as estruturas sociais. Um rápido estudo da sociologia comparada, mostra-nos umas gêneses realmente uniforme. A existência habitual de um chefe e o estabelecimento de sua autoridade pela guerra; o ascendente em toda a parte dos medicas e dos sacerdotes; a presença de um culto com os mesmos caráteres fundamentais em todos os lugares; as linhas de divisão do trabalho, bem depressa visíveis, e que se fazem cada vez mais claras, e as diversas combinações políticas, eclesiásticas e industriais que aparecem à medida que os grupos se compõem e recompõem pela guerra, são fatos que demonstram, a quem comparar as sociedades, que, abstração feita de suas diferenças particulares, todas apresentam semelhanças gerais em seu modo de se originar e desenvolver-se. Todas oferecem caráteres de estrutura que provam que a organização social tem leis superiores às vontades individuais, leis cujo descobrimento podem causar muitos danos. Em terceiro lugar, por último, há a massa de informações instrutivas contidas nas colecções das leis de nosso próprio país e dos demais que, evidentemente, chamam ainda mais a atenção. Aqui, e em todas as partes, inumeráveis tentativas feitas por homens de Estado, não produziram o bem que prometiam e causaram males que não se esperavam. Um século depois do outro novas medidas, semelhantes ás antigas, e outras fundadas no mesmo princípio, contrariaram sempre as esperanças e acarretaram desastres. Sem embargo, nem os eleitores, nem os eleitos julgam que seja mister um estudo sistemático dessas leis, que, nos tempos passados, tornavam o povo desgraçado, tendo por objetivo faze-lo feliz. Certamente, não pode ter competência para exercer as funções de legislador, o homem que careça de um conhecimento profundo dessas experiências legadas pelo passado. Volvendo a analogia estabelecida ao princípio, estamos a dizer que o legislador é moralmente censurável, ou não, segundo tenha, ou não, estudado essas várias classes de fatos. Um médico que, depois de muitos anos de estudo, tenha adquirido conhecimentos suficientes em fisiologia, patologia e terapêutica, não pode ser perseguido como um criminoso no caso de lhe morrer um enfermo: está preparado e fez tudo quanto era possível. Da mesma forma o legislador, cujas medidas produzam males em lugar de bens, apesar dos vastos e metódicos estudos que lhe iluminam o espírito, só pode ser acusado de haver cometido um erro de raciocínio. Pelo contrário, o legislador que ignora, ou que conhece muito pouco essa massa de fatos, cujo dever é examina-los, para que a sua opinião acerca de uma lei proposta, possa ter valor, e que, sem embargo, contribui para o estabelecimento da referida lei, não pode ser absolvido se esta aumenta a miséria e a mortalidade, como não o pode ser, também o moço o da botica, se o remédio que prescreveu, por ignorância, ocasiona a morte de quem o tomou. A GRANDE SUPERSTIÇÃO POLITICA A grande superstição política de outros tempos era o direito divino dos reis. A grande superstição da política de hoje, é o direito divino dos Parlamentos. O óleo santo parece haver deslizado, inadvertidamente, da cabeça de um á de muitos, consagrando estes e seus decretos. Por irracional que nos pareça a primeira dessas crenças, é preciso admitir que era mais lógica do que a última. Se nos remontarmos ao tempo em que o rei era considerado como um deus, ou aquele em que se acreditava ser ele descendente de deuses, ou ao em que era tido como delegado de Deus, encontramos poderosas razões para que sua vontade fosse passivamente obedecida. Quando, por exemplo, sob Luiz XIV, teólogos como Bossuet, ensinavam que os reis eram deuses e participavam de certo modo da independência divina, ou quando se cria, como entre nossos próprios conservadores dos tempos antigos, que a monarquia era "o delegado do céu", claro é que, concedidas essas premissas, a conclusão forçosa devia ser que não existia limite algum ao poder do Estado. Porém, o princípio moderno não se pode defender assim. Um corpo legislativo, não podendo aspirar uma origem divina, nem uma missão divina, não pode recorrer ao sobrenatural para legitimar as suas pretensões de poder ilimitado; por outra parte, jamais intentou estabelecer assas pretensões com provas de ordem natural. Por conseguinte, a crença de sua autoridade ilimitada, não tem o caráter logico da antiga crença no poder ilimitado do rei. É curioso ver como os homens, geralmente, permanecem fiéis, de fato, a doutrinas que abandonaram de nome, conservando a substancia depois de haver relegado a forma. Em teologia temos o exemplo de Carlyle: quando era estudante, julgou abjurar as crenças de seus pais; porém, não abandonou mais do que o continente e conservou o conteúdo: suas concepções do universo e do homem e sua conduta, demonstram que continuou sendo um dos mais fervorosos calvinistas escoceses. A ciência nos oferece, da mesma maneira, o exemplo de um homem que é naturalista em geologia e supernaturalista em biologia: sir Charler Lyell. É ele o primeiro a expor as teorias das causas atuais em geologia, prescindindo da cosmogonia de Moysés, porém, sustenta durante muito tempo a fé na criação especial de cada tipo orgânico, a qual não se pode assinalar outra origem que aquela cosmogonia, e unicamente ao fim de sua vida se rende aos argumentos de Darwin. Em política, como prova do que temos dito, temos um caso análogo. A doutrina, tacitamente aceita, de que o poder do Estado é ilimitado, que é comum aos conservadores, liberais e radicais, remonta-se a época em que se supunha que os legisladores eram delegados de Deus; não desapareceu nada mais do que a crença nesta delegação divina. "Oh! Uma ata do Parlamento pode tudo!" É o que se responde ao cidadão que põe em dúvida a legitimidade de alguma intervenção arbitraria do Estado. E o cidadão não sabe o que dizer. Não se lhe ocorre perguntar como, quando e onde nasceu essa suposta onipotência, limitada somente por impossibilidades materiais. Aqui permitimo-nos duvidar dessa onipotência. Já que não se invoca a teoria, noutro tempo lógica, de que sendo ele quem governa sobre a terra, representante de quem governa no céu, é um dever obedece-lo em tudo, perguntaremos que razão ha para aceitar como um dever essa obediência a um Governo constitucional, ou republicano, cuja supremacia não provem do céu. Esta pergunta, evidentemente, nos leva à crítica das teorias antigas e modernas, concernentes ao poder político. Talvez, necessitasse desculpas fazer reviver questões que se consideram resolvidas há muito tempo; a desculpa se encontra, e suficiente, na afirmação, já desenvolvida, que a teoria geralmente admitida está mal fundada, ou não tem fundamento. A noção da soberania é a que se apresenta em primeiro termo, e um exame critico dessa noção, tal como é compreendida pelos que não admitem a origem sobrenatural da soberania, conduzem-nos aos argumentos de Hobbes. Aceitemos como verdadeiro o seu postulado: "Quando os homens não vivem sob uma autoridade comum que os mantenha no temor, estão nesse estado que se chama guerra... de uns contra os outros", o que não é certo, pois existem sociedades não civilizadas, onde, sem "uma autoridade comum que mantenha os homens no temor", reina paz profunda e maior harmonia que nas sociedades onde a tal autoridade existe. Suponhamos igualmente que Hobbes tem razão quando cita o princípio de que o poder governamental deve sua origem ao desejo de manter a ordem no seio das sociedades, ainda que, em realidade, nasça habitualmente da necessidade de subordinar-se a um chefe durante uma guerra ofensiva, ou defensiva, e não tenha em sua origem, nem em teoria, nem de fato, nenhuma relação com a manutenção da ordem em uma sociedade "formada por indivíduos. Admitamos, por último, a hipótese insustentável de que, para escapar aos males causados por conflitos crônicos, os membros de uma comunidade fazem um "pacto ou contrato", pelo qual se comprometem a renunciar à sua primitiva liberdade de ação, e aceitemos que os descendentes permanecem ligados para sempre ao contrato de seus longínquos antepassados. Não façamos, repito, nenhuma objecção a estas premissas de Hobbes, porém, vejamos as conclusões que se deduzem delas. Eis aqui como se exprime: "Onde não existe nenhum contrato, nenhum direito terá sido transmitido, e cada homem tem direito a tudo; por conseguinte, nenhuma ação pode ser injusta. Porém, onde há contrato, violá-lo é "injusto", e a definição de "injustiça" não é outra que a "não execução do contrato". Assim, antes de que se possa qualificar um ato de justo ou injusto, é preciso que exista um poder coercitivo que obrigue a todos os homens, pelo temor a um castigo superior ao benefício que esperam obter de sua violação, ao cumprimento do contrato". Seriam, realmente, bastante perversos os homens, no tempo de Hobbes, para justificar sua hipótese de que não cumpririam seus contratos sem a existência de um poder coercitivo e o temor ao castigo? Em nossos dias, "as qualificações de justo e injusto podem ser aplicadas" mesmo sem se admitir nenhum poder coercitivo. Entre meus amigos, posso citar meia dúzia que, estou convencido disso, cumpririam fielmente os seus compromissos sem que fosse necessário ameaça-los com um castigo, e para os quais as obrigações seriam tão imperativas na ausência de um poder coercitivo como em sua presença. Não obstante, sem nos determos em observações de que esta hipótese não justificada vicia o argumento de Hobbes em favor da autoridade do Estado, e aceitando ao mesmo tempo suas premissas e conclusões, devemos chamar a atenção sobre duas consequências importantes. A primeira é que a autoridade do Estado, baseada em tal fundamento, é o meio de alcançar um fim, e que só é legítimo no caso de servir para a realização desse fim: se o fim não é logrado, a autoridade, por hipótese, não existe. A segunda, é que o fim que tem que alcançar a autoridade, consiste em impor a justiça, e manter a equidade em todas as relações. Logicamente, pois, nenhuma coação é legitima, contanto que não seja indispensável, já para prevenir os ataques diretos ou indiretos que violem o contrato, já para prover a defesa contra os inimigos exteriores. E aqui temos, integralmente, a função da autoridade soberana, tal como resulta da teoria de Hobbes. Hobbes argumentava em favor da monarquia absoluta. Seu admirador moderno, Austin, tratou de fazer derivar a autoridade da lei, da soberania ilimitada de um homem, ou de um grupo de homens, pequeno ou grande, em proporção com o conjunto da comunidade. Austin serviu primeiro no exército, e tem se observado com razão, que "a vida militar deixou rastros em sua "Provínce of Jurisprudence". Quando, sem nos deixarmos intimidar pelo pedantismo exasperante, pelas distinções, definições e repetições sem fim, que, unicamente, servem para disfarçar a essência da doutrina, examinamos em que ela consiste, advertimos que Austin assimila a autoridade civil á militar, admitindo "a priori" que ambas, tanto a respeito de sua origem, como de sua extensão, são indiscutíveis. Para legitimar a lei positiva, conduz-nos a soberania absoluta do poder que a impõe: monarquia, aristocracia, ou o grupo mais considerável de eleitores de uma democracia, pois, também dá o título de soberano a uma corporação desta natureza, por oposição ao resto da comunidade que, por incapacidade ou outro qualquer motivo, permanece em estado de sujeição. E depois de haver afirmado, ou, melhor, admitido como indiscutível a autoridade ilimitada da corporação, simples, ou composta, pequena ou grande, que qualifica de soberania, deduz, naturalmente, sem nenhuma dificuldade, o valor legal de seus decretos, aos quais chama de leis positivas. Mas, assim, não resolve o problema: afasta-se dele. A verdadeira questão é esta: De onde procede a soberania? Em que título se funda essa supremacia ilimitada que se arroga um indivíduo, ou uma minoria ou uma maioria, sobre todos os outros? Um crítico poderia dizer, com razão: "Não é necessário que vos esforceis para fazer derivar a lei positiva da soberania ilimitada; a filiação é bastante evidente. Demonstrai a existência dessa soberania absoluta". Austin não responde a esta interpelação. Examinai seu ponto de partida e vereis que a doutrina desse autor não repousa em bases mais firmes que a de Hobbes. Se não se admite sua origem divina, ou delegação divina, nenhum Governo, resida em uma ou em muitas cabeças, pode exibir os títulos necessários para justificar suas aspirações ao poder absoluto. "Porém - replicar-se-á em coro - existe o direito indiscutível da maioria, que dá um direito indiscutível ao Parlamento que elege". Perfeitamente, agora chegamos ao âmago da questão. Direito divino dos Parlamentos quer dizer direito divino das maiorias. A base do raciocínio dos legisladores, da mesma forma que o do povo, é que a maioria tem direitos ilimitados. Esta é a teoria corrente que todos aceitam sem provas, como uma verdade evidente por si mesma. Sem embargo, a crítica mostrará, segundo penso, que essa teoria exige uma modificação radical. Em um ensaio dos "princípios de administração das ferrovias", publicado na "Revista de Edimburgo", em outubro de 1854, tive oportunidade de tratar da questão dos poderes de uma maioria como exemplo a conduta das companhias públicas, e nada melhor como introdução às conclusões que devo assentar, que transcrever esta passagem: "Em qualquer circunstância, ou para qualquer fim que os homens cooperem, admite-se que, se surgir entre eles alguma divergência de opinião, a justiça exige que prevaleça a vontade da maioria; e esta regra se supõe uniformemente aplicável, seja qual for a questão em litigio. Tão grande é esta convicção, e tão pouco meditado tem sido o princípio que a origina, que a indicação de uma dúvida assombrará a muitas pessoas. Todavia, basta uma rápida análise para mostrar que esta opinião não é, em suma, mais do que uma superstição política. Facilmente se encontram exemplos que provam, pela redução ao absurdo, que o direito da maioria é um direito puramente condicional, valido somente dentro de determinados limites. Suponhamos que, em assembleia geral, uma sociedade filantrópica resolve, não somente ajudar os pobres, mas, empregar, além disso, pregadores para combater o papismo na Inglaterra. As subscrições dos católicos, membros da sociedade com fins caritativos, poderiam ser legitimamente aplicadas com este propósito? Suponhamos que a maioria dos componentes do comité de uma biblioteca, acreditando que nas atuais circunstancias é mais importante o exercício do tiro do que a leitura, decide mudar o fim da associação e aplicar os fundos disponíveis na compra de pólvora, balas e alvos. Essa decisão ligaria os outros membros do comité? Suponhamos que, sob a impressão de notícias chegadas da Austrália, a maioria de uma sociedade de proprietários de terra determina, não somente partirem todos para explorar minas de ouro, como também dedicar os fins da sociedade ao fretamento de um vapor. Esta usurpação da propriedade seria equitativa com referência à minoria? Estaria está obrigada a se reunir a expedição? Talvez, não haja alguém que responda afirmativamente a primeira destas perguntas e muito menos ás outras. Porque? Porque todo o mundo compreende que nenhum individuo, pelo simples fato de se associar a outros, pode, sem que cometa injustiça, ser obrigado a atos totalmente estranhos ao fim que se propunha ao associar-se. Em cada um dos casos supostos, as minorias poderiam dizer, e com razão, aos que pretendessem obriga-las: "Associámo-nos a vós outros com um fim determinado; demos nosso dinheiro e nosso tempo para alcançar esse fim; em todas as questões que com ele se relacionam, submetemo-nos tacitamente a vontade da maioria, porém, não estamos dispostos a nos submeter com referência ás outras. Se nos propondes uma associação para determinado fim, e depois empreendeis a execução de outro, obtereis nosso apoio com falsos pretextos; rompereis as condições explícitas, ou tácitas celebradas conosco, e desde esse momento, não estaremos ligados às vossas decisões". Evidentemente, esta é a única interpretação racional da questão. O princípio geral em que repousa o governo equitativo de toda associação, consiste em que seus membros se obrigam reciproca e individualmente a submeter-se a vontade da maioria em todos os assuntos concernentes a realização do fim para o qual se associaram, porém, não nos demais. Somente é valido o contrato dentro desses limites. Como a própria natureza de todo contrato implica no conhecimento de todas as suas obrigações pelos contratantes, e como os que se associam para um fim especificado, não poderiam ter ciência de todos os fins não especificados cuja obtenção, possivelmente, a associação poderia prometer, resulta que o contrato subscrito não se pode estender a fins não determinados. E no caso de não existirem convenções explícitas ou implícitas entre a associação e seus membros, acerca de fins não especificados, a maioria, ao obrigar a minoria a segui-los, se fará culpável da tirania mais irritante. Naturalmente, se existe tal confusão de ideias acerca dos poderes da maioria, onde o contrato de associação limita tacitamente esses poderes, maior deve ser ainda essa confusão onde não existiu semelhante contrato. Sem embargo, o princípio em ambos os casos é o mesmo. Insisto na proposição de que os membros de uma associação se obrigam "individualmente a submeter-se a vontade da maioria em todos os assuntos concernentes a realização do fim para o qual se associaram, porém, não nos demais". E sustento que a mesma coisa é aplicável a uma nação, ou a uma companhia. "Porém - objetar-se-á ainda - como não existe contrato em virtude do qual os homens se hajam constituído em nação, como para o que a associação se formou não está, nem nunca foi especificado, não pode ter limitação, e, por conseguinte, o poder da maioria é ilimitado". Evidentemente, é forçoso admitir que a hipótese de um contrato social, seja sob a forma adotada por Hobbes, seja sob a concebida por Rousseau, carece de fundamento. Também é forçoso admitir que, embora tal contrato se houvesse celebrado alguma vez, não poderia obrigar aos descendentes dos que o celebraram. Por outra parte, se alguém diz que na ausência das limitações de poder que poderia implicar um contrato, nada há que impeça a maioria impor pela força sua vontade a minoria, devemos assentir, nas mesmas condições, que, se essa força superior da maioria serve de justificação, a força superior de um déspota, apoiado por seu exército, justificará igualmente o despotismo. Porém, apartamo-nos de nosso problema. O que procuramos aqui é um fundamento mais sério a subordinação da minoria a maioria, do que aquele que resulta da incapacidade de resistir a coação material. Austín, mesmo, apesar de seu desejo de estabelecer a autoridade indiscutível da lei positiva, e de sustentar que se origina de uma soberania absoluta, monárquica, aristocrática, constitucional ou popular, vê-se obrigado em última análise, a admitir um limite moral á ação dessa soberania sobre a comunidade. Enquanto insiste, desenvolvendo sua teoria rigorosamente, que uma corporação soberana, saída do povo, "é legalmente livre de restringir a liberdade política do próprio povo, a vontade e a discrição", concede que a "moral positiva" pode impedir a um Governo de mutilar a liberdade política que deixe, ou outorgue a seus súditos". Trata-se, pois, de encontrar, não uma justificação material, más, uma justificação moral da suposta onipotência da maioria. Não faltará quem me faça a objecção seguinte: "Não é-preciso dizer que, na ausência de toda convenção e das limitações que implica, o poder da maioria deve ser ilimitado, pois, é mais justo que prevaleça a vontade da maioria, do que a da minoria". Esta objeção parece muito razoável, antes de ser refutada. Podemos opor-lhe a proposição, não menos defensável, de que na ausência de toda convenção, o predomínio da maioria não deve existir de modo nenhum. A cooperação, de qualquer forma que seja, é a única fonte dos direitos e dos deveres da maioria e da minoria, e se não houver acordo para cooperar, não existem esses direitos e esses deveres. Aqui a argumentação chega, ao que parece, a um beco sem saída. No estado atual de coisas, nenhuma origem moral parece atribuível a soberania da maioria, nem a limitação dessa soberania. Porém, se refletirmos, poderemos resolver a dificuldade. Porque se, abandonando todo o pensamento de um acordo para cooperar, perguntamo-nos qual é o que gozaria hoje, na pratica, do apoio dos cidadãos, obteremos uma resposta suficientemente categórica, e com ela uma justificação suficientemente clara da preponderância da maioria em certa esfera, porém, não além dessa esfera. Observemos, antes de tudo, algumas limitações que aparecem imediatamente. Perguntai a todos os ingleses se querem chegar a um entendimento para cooperar no ensino da religião, ou dar a maioria o poder de fixar as crenças e a forma do culto: a maior parte responderá energicamente: "Não!" Se, depois de uma proposição para restabelecer as leis suntuárias, se fizesse uma consulta para saber se se submeteriam a vontade da maioria no referente ao custo e a qualidade de seus vestidos, quase todos diriam que não. Analogamente - fixando-nos em uma questão de atualidade - se os consultassem para averiguar se aceitariam a decisão da maioria a respeito de sua bebida, a metade, ou mais da metade, responderia negativamente. Qualquer desejo que se manifestasse de cooperar para executar, ou regulamentar certas ações, estaria muito longe de ser um desejo unânime. Evidentemente, pois, se nós próprios tivéssemos de dar começo a uma cooperação social, e tivéssemos que especificar seu fim antes de poder obter que se consentisse em cooperar, haveria vastos campos da atividade humana pelos quais se declinaria da cooperação, nos que nenhuma autoridade poderia ser legitimamente exercida peja maioria sobre a minoria. Passemos agora a questão contraria. Para que fim conviriam todos em cooperar? Ninguém negará que, para resistir a uma invasão, o acordo seria unanime. A excepção dos Quakers que, tendo realizado, em seu tempo, uma obra útil, estão, atualmente, a ponto de desaparecer, todos se associariam para uma guerra defensiva - não para uma guerra ofensiva - e todos se obrigariam tacitamente a se submeter a vontade da maioria na adoção das medidas necessárias para triunfar na empresa. Também haveria unanimidade efetiva em um pacto de cooperação para defesa contra os inimigos exteriores. Exceção feita dos criminosos, todos devem desejar que suas pessoas e suas propriedades sejam defendidas. Em suma, todos os cidadãos querem preservar sua vida, preservar as coisas que ajudam a viver e a gozar a vida, e guardar intacta sua liberdade de usar dessas coisas e aumenta-las. E cada um vê que não pode, para isso, atuar isoladamente. Contra os inimigos exteriores, o indivíduo seria impotente, no caso de não estar associado aos demais; e sem esta união, a defesa contra os inimigos interiores seria uma tarefa pesada, perigosa e ineficaz. Ha outra cooperação na qual todos estão interessados: a que tem por fim tirar proveito do território que habitam. Se a comunidade dos bens subsistisse, como nos primeiros tempos, a direção comum primitiva do emprego que poderiam dar a terra os Indivíduos, ou os grupos, subsistiria da mesma forma, e as decisões da maioria prevaleceriam legitimamente na determinação das condições em que as porções do solo serviriam para cultivo, para criar vias de comunicação, ou para outros usos. Hoje mesmo, embora a questão seja mais complexa, pelo acrescentamento da propriedade privada, como o Estado continua sendo o proprietário supremo - cada proprietário é, segundo a lei, um arrendatário da Coroa - proprietário que tem direito a recuperar a posse, ou expropriar, pagando um preço razoável, resulta que a vontade da maioria prevalece com referenda aos modos e condições em que se pode utilizar o solo e o subsolo, o que implica certas convenções feitas em favor do público com particulares e companhias. Não é necessário dar detalhes, nem discutir os limites que separam estas diversas categorias de casos, nem dizer o que entra em uma e é exclui do noutra. Para nosso propósito, basta reconhecer a verdade inegável de que existem muitas classes de ações que os homens, se fossem consultados, achar-se-iam muito longe de querer, unanimemente, realiza-las, embora essa fosse a vontade da maioria; ao passo que há outras para cuja realização consentiriam em concorrer quase unanimemente. Aqui, pois, achamos uma razão definida para impor a vontade da maioria em determinados limites, e uma razão definida para negar a autoridade dessa vontade além desses limites. Porém, evidentemente, assim analisada, a questão resolve-se nesta outra: Quais são os direitos respectivos do grupo e de seus membros? Serão validos, em todos os casos, os direitos da comunidade contra o indivíduo, ou possui este alguns que prevaleçam contra a comunidade? Do juízo que se faça sobre este particular, depende todo o entrelaçamento das opiniões políticas, e, principalmente, das que se referem a esfera particular do Governo. Quero, portanto, ressuscitar uma controvérsia que se tem esquecido, na esperança de chegar a uma conclusão diferente da geralmente aceita. Em sua obra "Relações do Estado e do trabalho", o professor Jevons diz: "O que primeiro devemos fazer é arrojar de nosso pensamento a ideia de haver nas questões sociais algo parecido a direitos abstratos". Em seu artigo sobre a propriedade literária "mister" Mathew Arnold expressa opinião semelhante: "Um autor - diz - não tem nenhum direito natural a sua obra". Ninguém tem, por conseguinte, nenhum direito natural ao que possa produzir ou adquirir. Também li, recentemente, em um semanário de grande reputação: "Demonstrar de novo que não existe nada que se possa chamar direito natural, seria perder o tempo e filosofar em vão". E esta opinião é enunciada, geralmente, por homens de Estado e por legistas, de uma maneira que implica que só as massas inconscientes podem ter outras. Talvez, essa declaração devesse ter sido feita em um tom menos dogmático, posto que se sabe que toda uma escola de legistas, no continente, mantém opinião diametralmente oposta á sustentada pela escola inglesa. A ideia do direito natural é a ideia fundamental da jurisprudência alemã. E qualquer que seja o juízo que se tenha da filosofia alemã, não se pode dizer que não vai ao fundo das coisas. Uma doutrina corrente em um povo que se distingue por seu espirito de investigação, e cujos pensadores não podem ser colocados entre os superficiais, não deveria ser eliminada como se se tratasse, simplesmente, de uma ilusão popular. Porém, não insistamos mais nisto. A proposição que se nega nas citações feitas, une-se a afirmativa de uma contraposição. Vejamos qual é, examinando-a de perto e procurando os seus fundamentos. Em Bentham, encontramos esta contraposta claramente expressa. Bentham nos diz, de fato, que o Governo cumpre sua missão "criando direitos que confere aos indivíduos; direitos de segurança para as pessoas; direitos de proteção para sua honra; direitos de propriedade, etc.". Se esta doutrina se afirmasse como consequência do direito divino dos reis, não haveria nela nada manifestamente ilógico. Se procedesse do antigo Peru, onde o inca era "fonte de onde tudo emana", ou de Shoa (Abissínia) onde "o rei é dono absoluto das pessoas e de todos os bens terrestres", ou do Dahomey, onde "todos os homens são escravos do rei", seria bastante lógica. Porém, Bentham, longe de ser absolutista como Hobbes escreveu a favor do governo popular. Em seu "Código Constitucional" coloca a soberania no povo inteiro, arguindo que o melhor é "dar o poder soberano a maior parte dos que atuam principalmente para fazê-lo o melhor possível", porque "esta proporção é mais conveniente que qualquer outra para alcançar aquele fim". Observemos agora o que acontece quando comparamos estas duas doutrinas. O povo soberano, em seu conjunto, designa seus representantes e cria o Governo. O Governo assim criado, cria direitos e os confere, separadamente, a cada um dos membros do povo soberano pelo qual ele foi criado. Que maravilhosa obra de escamoteação política! Mister Mathew Arnold, sustentando, no artigo já citado, que "a propriedade é uma criação da lei", diz que há que se precaver do "fantasma metafísico da propriedade em si". Seguramente, de todos os fantasmas metafísicos, nenhum mais parecido a uma sombra, que o que supõe uma coisa criada por um agente que foi também criado, e conferida em seguida por este ao seu próprio criador. De qualquer ponto de vista que a consideremos, a proposição de Bentham é incompreensível. O Governo, diz, cumpre sua missão "criando direitos". A palavra "criar" pode ser entendida de duas maneiras. Pode significar o ato de tirar algo do nada, ou o de formar e dar estrutura a uma coisa que já existe. Muitas pessoas creem que tirar algo do nada é impossível, mesmo para um ser onipotente; e, provavelmente, ninguém afirmará que seja da competência de um Governo humano. No segundo caso" o Governo humano cria somente no sentido de dar forma ao que já existe. E, então, surge esta pergunta: "O que é isso que preexiste e que o Governo forma? Evidentemente, toda a questão gira em torno da palavra "criar" que ilude de certo modo o leitor. Bentham era muito escrupuloso no que respeita a propriedade das expressões, e em seu "Livro dos erros" há um capítulo sobre "os termos que induzem a equívocos". É curioso que, ele mesmo, nos subministre exemplo tão patente do extravio de juízo que pode produzir um termo dessa índole. Mas, prescindamos de todas estas proposições ininteligíveis, e procuremos a interpretação mais sustentável da opinião de Bentham. Pode-se dizer que a totalidade de poderes e direitos existe originariamente como um todo indivisível em um povo soberano, e que este todo se confia, como dizia Austin, a um poder governamental designado pelo próprio povo, que realiza a distribuição. Se, como vimos, a proposição de que se cream direitos é" simplesmente, uma figura de linguagem, o sentido inteligível da opinião de Bentham é que uma porção de Indivíduos, que, particularmente, querem satisfazer seus desejos, e que possuem todos os meios para satisfaze-los, como ainda a autoridade sobre todos os atos pessoais, nomeiam um Governo, o qual declara de que maneira e sob que condições podem agir as atividades individuais para obter aquelas satisfações. Observemos o que isto implica. Em cada homem ha que distinguir dois aspectos. Como homem privado, está submetido ao Governo: como membro da sociedade, é uma parte do povo soberano que nomeia o Governo. Isto é, que a título de homem privado lhe são conferidos direitos, e a título de membro da sociedade, é um dos que, por intermédio do Governo, que contribuiu para eleger, confere esses direitos. Passemos do abstrato ao concreto, e vejamos o que contem esta definição. Suponhamos que a comunidade consiste em um milhão de homens que, segundo nossa hipótese, não são somente os coproprietários do país que habitam, mas, que tem também em comum a liberdade de agir, ou de possuir, não se reconhecendo outro direito a todas as coisas além do na comunidade. O que se deduz disto? Cada indivíduo, mesmo não possuindo nenhum produto de seu próprio trabalho, é dono, como unidade do corpo soberano, da milionésima parte do produto do trabalho dos demais. Esta é uma conclusão inevitável. Como o Governo, segundo Benthnam, não é mais do que um agente, os direitos que confere, são direitos que lhe foram confiados pelo povo soberano. Se isto é assim, esses direitos devem ser possuídos em comum pelo povo Soberano antes do que o Governo, para cumprir seu mandato, os confira aos Indivíduos, e cada indivíduo terá a milionésima parte de tais direitos, a título de membro da sociedade, ao passo que não possuirá nenhum a título de homem privado. Estes, unicamente os adquirirá quando os outros membros do milhão se reúnam para conceder-lhes, ao mesmo tempo que ele se reúna aos outros, para concede-los igualmente a cada um dos demais membros do milhão. Assim, de qualquer modo que a interpretemos, a proposição de Bentham nos deixa em um emaranhado de absurdos. Mesmo ignorando a opinião adversa dos juristas alemães; mesmo sem uma análise que demonstrasse a insustentabilidade de sua própria opinião, os discípulos de Bentham poderiam ter tratado com menor ligeireza a doutrina dos direitos naturais. Em realidade, diferentes grupos de fenômenos sociais se unem para provar que esta doutrina está bem fundada, ao passo que a que se lhe opõe não tem fundamento. Várias tribos, em diversas partes do mundo, mostram-nos que antes do nascimento de um Governo definido, a conduta se regula pelos costumes. Os bechuanas, do Sul da África, obedecem a "costumes reconhecidos há muito tempo". Entre os hottentotes koranna que "suportam, mais do que obedecem a seus chefes, quando os antigos usos não o proíbem, agem segundo o que lhes parece justo a seus próprios olhos". Os araucanos guiam-se unicamente, "por usos primitivos e convenções tácitas". Entre os kirghises (Sibéria) os julgamentos dos anciãos baseiam-se em "costumes geralmente reconhecidos". Dos dyacks, Rajah Broocke nos diz: “Os costumes parecem, simplesmente, converterem-se em lei, e sua violação é punida com multas". São tão sagrados os costumes imemoriais para o homem primitivo, que jamais pensa em discutir sua autoridade; e quando se estabelece o Governo, seu poder se acha limitado por eles. Em Madagascar, é bastante a palavra do rei "quando não há lei, costume ou precedente". Raffles diz que em Java "os costumes do país restringem a vontade do chefe". Em Sumatra tampouco "se permite aos chefes alterar os antigos usos". Algumas vezes, como aconteceu entre os ashantees, “a tentativa de mudar certos costumes" ocasiona a deposição do rei. Entre os costumes anteriores ao Governo, e aos quais se subordina o poder deste, depois de seu estabelecimento, figuram os que reconhecem certos direitos individuais: direito de agir livremente e de possuir determinadas coisas. Mesmo onde o direito de propriedade é menos admitido, reconhece-se a propriedade das armas, dos utensílios, dos adornos pessoais e, geralmente, esse reconhecimento se estende a muitos outros objetos. Entre alguns índios da América do Norte, como os "serpens" que não têm Governo, existe a propriedade privada dos cavalos. Entre os "chippeways" que não possuem governo regular, a caça apanhada em redes privadas é considerada como propriedade particular. Fatos análogos referentes a propriedade individual das coisas, utensílios, etc. poderiam ser citados, recorrendo-se aos relatos sobre os ahts, os comanches, os esquimós e os índios do Brasil. Em vários povos não civilizados, o costume estabeleceu o direito ao fruto que cresce no terreno que se cultiva, não, porém, ao próprio terreno. E os tódas, que estão desprovidos de qualquer organização política, estabelecem distinção semelhantes entre a propriedade do gado e da terra. Porém, mesmo sem procurar provas entre os povos não civilizados, bastam-nos as que encontramos nas primeiras etapas da civilização. Bentham e seus discípulos parecem ter olvidado que nossas leis não são mais do que a fusão, em um só corpo, dos costumes do reino. As leis, de fato, não têm feito outra coisa que dar forma definida ao que já existia. Assim, o fato e a teoria são absolutamente contraditórios. O fato é que a propriedade era perfeitamente reconhecida antes da existência da lei; a teoria diz que "a propriedade é criação da lei". Outro gênero de considerações teria bastado para detê-los, se as tivessem estudado devidamente. Se fosse certo, como sustenta Bentham, que o Governo cumpre sua missão "criando direitos que confere aos indivíduos", isto implicaria no fato de não poder haver uniformidade aproximativa nos direitos conferidos por Governos diferentes. Na ausência de uma causa determinante, reguladora das decisões de todos, poder-se-ia apostar cem por um em que estas apenas mal concordariam. Entretanto, existe, entre tais decisões, uma concordância muito apreciável. Para qualquer lado que nos voltemos, veremos que os Governos proíbem as mesmas espécies de agressões e, por conseguinte, reconhecem as mesmas espécies de direitos. "Proíbem. geralmente, o homicídio, o roubo, o adultério; afirmam dessa forma que os cidadãos devem ser postos ao abrigo de certos ataques. E, à medida que a sociedade progride, a proteção se estende a direitos individuais menos importantes, e são impostas reparações por violação de contrato, por difamação, por falso testemunho, etc. Em uma palavra, a comparação mostra que os códigos, se diferem nos detalhes; de seu desenvolvimento. concordam em seus pontos fundamentais. O que prova isso? Um acordo semelhante não pode ser fortuito. Se existe, é porque a suposta criação de direitos consiste unicamente em sancionar, formulando-os, e em definir, com mais precisão, os direitos que derivam naturalmente dos desejos individuais dos homens que vivem em sociedade. A sociologia comparada mostra-nos, manifestamente, outro grupo de fatos de onde se pode tirar a mesma conclusão. Com o progresso social aumenta para o Estado a tarefa, não só de sancionar, formulando-os, os direitos dos indivíduos, mas também de os defender contra os ataques de terceiros. Antes de que se constitua um Governo permanente e, em muitos casos, depois de se haver o mesmo desenvolvido consideravelmente, os direitos do indivíduo são firmados e defendidos por ele mesmo, ou por sua família. Nas tribos selvagens de hoje, como nos povos civilizados de outros tempos, e mesmo nas regiões incultas da Europa atual, o castigo de um assassinato é um assunto de ordem privada: "o dever sagrado de exigir sangue por sangue, transmite-se a uma parte do grupo familiar". Do mesmo modo, nas sociedades primitivas, o indivíduo, ou sua família, reclamam, arbitrariamente, compensações para as agressões contra a propriedade, ou para as ofensas de outra classe. Mas á medida que a organização social melhora, o poder central toma a seu cargo, cada vez em maior escala, a missão de garantir a segurança pessoal dos indivíduos, a segurança de seus bens, e, até certo ponto, a validade de suas pretensões estabelecidas em contrato. Em sua origem, exclusivamente ocupado em defender a sociedade inteira contra outras sociedades, ou em dirigir seus ataques contra estas, o Governo se foi encarregando, cada vez mais, de proteger uns indivíduos contra os outros. Basta recordar a época em que o porte de armas era uso constante, ou mencionar a maior segurança das pessoas e dos bens de que hoje se goza, ou notar a facilidade com que se cobram as mais pequenas dividas, para ver que cada dia se considera o Estado mais obrigado a assegurar a cada indivíduo a livre satisfação dos fins da vida, dentro dos limites em que cabe essa satisfação em face dos demais. Em outros termos: simultaneamente com o progresso social, não somente vai sendo mais completo o reconhecimento do que chamamos direitos naturais, mas, também mais efetiva a sua garantia pelo Governo, o qual tem o dever de velar, cada vez mais, pela realização das condições essenciais ao bem-estar individual. Outra mudança conexa e mais significativa ainda, acompanha a precedente. Nos primeiros tampos, não somente o Estado não intervinha para proteger o indivíduo contra as agressões, mas, ele próprio o agredia de muitas formas. As sociedades antigas que se aperfeiçoaram o suficiente para deixar lembranças, tendo sido conquistadoras, mostram-se em todas as partes com os traços do regime militante. Da mesma forma que, para organizar eficazmente um corpo de combatentes, devem os soldados obedecer passivamente e nada fazer sem a autorização de seus chefes, também para organizar eficazmente as sociedades militares devem os cidadãos subordinar sua vontade. Os direitos particulares desaparecem ante os direitos públicos e o indivíduo perde grande parte de sua liberdade de ação. Um dos resultados disso é que o sistema de arregimentação, invadindo a sociedade da mesma forma que o exército, acarreta minuciosa regulamentação da conduta. As prescrições do chefe, que são sagradas, posto que se reputam emanadas de um deus, seu antepassado, não são restritas por nenhuma concepção da liberdade individual, e regula as ações humanas até nos menores detalhes: alimentação e maneira de prepará-la, a forma da barba, os adornos dos vestidos, a semeadura do trigo, etc. Esta intervenção geral que aparece em quase todas as antigas nações da Europa, mostra-se também, amplamente, entre os gregos, e foi levada a seus últimos extremos na cidade militar por excelência: Esparta. Do mesmo modo em toda a Europa, durante a idade Média; época em que o estado de guerra era crônico, com as formas políticas e as ideias que lhe são próprias, apenas havia algum limite a intervenção governamental. A agricultura, a indústria, o comércio, estavam regulamentados em todos os seus detalhes, as crenças e as práticas religiosas eram impostas, e os chefes decidiam quem tinha direito de vestir peles, usar vasilhas de prata, publicar livros, instalar um pombal, etc. Mas com o progresso das atividades industriais e a implantação do regime de contrato em substituição ao da coação governamental, e com o desenvolvimento dos sentimentos conexos a tal mudança, produziu-se (até a recente reação para o Estado militante) uma diminuição dessa ingerência nos atos individuais. O legislador cessou gradualmente de regulamentar o modo de fazer a colheita e foi aos poucos abandonando outras regulamentações. Em outros termos, o direito do cidadão de agir sem obstáculos impôs-se em muitas atividades, às pretensões intervencionistas do Estado. O Governo restringiu sua intromissão. Porém, ainda não citamos todas as categorias de fatos que revelam a mesma verdade. As próprias melhorias e reformas da lei o patenteiam, assim como as confissões e declarações de seus autores. "Já no século XV - diz o professor Polack - um juiz de direito comum declara que, assim como em um caso não previsto pelas ordenanças escritas, os jurisconsultos imaginam uma regra nova em harmonia com a lei natural, que é o princípio de todas as leis, a corte de Westminster pode e quer fazer o mesmo". Por outra parte, nosso sistema de equidade, introduzido e desenvolvido para suprir as falhas do direito comum, e para retificar suas injustiças, é inteiramente fundado no reconhecimento dos direitos do indivíduo, que existem mesmo na ausência de toda autoridade legal. E as mudanças que atualmente experimenta a lei, de tempos em tempos, depois de alguma resistência por parte dos legisladores, verificam-se igualmente de acordo com as ideias correntes acerca da equidade necessária, ideias que, em vez de derivarem da lei, estão em oposição a ela. Por exemplo, a ata recente, que concede a mulher casada o direito de propriedade sobre suas aquisições pessoais, tem sua origem, evidentemente, na consciência de que a ligação natural entre o trabalho realizado e o benefício adquirido deve ser respeitada em todos os casos. A lei reformada não criou o direito, mas, foi o reconhecimento desse direito que originou a reforma da lei. Assim, de cinco categorias diferentes de provas, surge este ensinamento: as noções populares acerca dos direitos, por confusas que sejam, e embora inaceitáveis para muitos, projetam, sem embargo, a luz de uma verdade. Resta-nos agora examinar a fonte primitiva desta verdade. Falei anteriormente de um segredo conhecido, ou seja, que todos os fenômenos sociais, se os analisarmos a fundo, nos levam às leis da vida, e que é impossível conhece-los bem, se não nos referimos a tais leis. Transportemos, pois, esta questão dos direitos naturais, do campo político ao domínio da ciência: da ciência da vida. Tranquilize-se o leitor: os fatos mais simples e claros bastarão. Examinaremos, primeiro, as condições gerais da vida individual, e, depois, as da vida social. Veremos que umas e outras conduzem a mesma conclusão. A vida animal supõe uma perda; toda perda exige reparação; a reparação implica nutrição. A nutrição pressupõe, por sua vez, aquisição de alimentos; os alimentos não podem ser obtidos sem faculdades de apreensão e, geralmente, de locomoção; e para que estas faculdades possam exercitar-se é necessário que haja liberdade de movimentos. Encerrai um mamífero em um espaço reduzido, ou amarrai-lhe as pernas, ou, ainda, tirai-lhe o alimento que ele tenha encontrado: causareis a sua morte persistindo em qualquer desses procedimentos. Mais além de certos limites, a impossibilidade de satisfazer essas necessidades é fatal. O que aqui dizemos dos animais superiores em geral, é também aplicável aos homens. Se adotamos o pessimismo por crença, e com ele a consequência que implica em que sendo a vida um mal, é necessário pôr lhe fim, não há base moral para os atos mediante os quais a vida se sustenta. Todo o edifício rui. Porém, se adotamos a doutrina do otimismo, ou a do progresso; se dizemos que, em suma, a vida proporciona mais prazeres do que dores, então esses atos estão justificados, e a liberdade de realizá-los tem sua razão de ser. Estima-se a vida como um bem? Nesse caso não se deve impedir aos indivíduos as atividades necessárias para sustentá-la. Em outros termos: se se admite que é "justo" não opor obstáculos a essas atividades, admite-se, reciprocamente, que existe o direito de exerce-las. Sem dúvida alguma, a "concepção dos direitos naturais", tem sua origem no reconhecimento da verdade de que se a existência é justificável, deve haver uma justificação para o cumprimento dos atos necessários à sua conservação e, por conseguinte, para as liberdades e os direitos que tornam possíveis esses atos. Mas, esta proposição, embora seja verdadeira com referência aos outros seres, com referência ao homem não tem caráter moral. O caráter moral nasce somente com a distinção entre o que é permitido ao indivíduo fazer, exercendo as atividades que sustentam sua vida, e o que "não" lhe é permitido fazer. Esta distinção resulta, evidentemente, da presença de seus semelhantes. Se os indivíduos se acham em contato imediato, ou pouco separados entre si, os atos de uns podem influir nos dos outros, e se é impossível demonstrar que alguns têm o poder de fazer o que querem, enquanto que outros não têm, é preciso admitir uma limitação natural. O direito de visar fins particulares passará da forma "não ética", á forma ética quando se haja reconhecido a distinção entre os atos que podem e os que não podem ser realizados sem transgredir os limites. Esta conclusão, estabelecida "a priori", é a que se obtém "a posteriori", quando se estudam os atos dos povos não civilizados. Em sua forma mais vaga, a limitação mutua das esferas de ação, com as ideias e os sentimentos conexos, manifesta-se nas relações mutuas dos grupos entre si. Habitualmente, acaba-se por estabelecer determinados limites nos territórios em cuja extensão cada tribo encontra o que necessita para viver, e se alguém ultrapassar tais limites, será banido. Entre os wedhas dos bosques, que não têm organização política, as pequenas tribos possuem sua parte respectiva da selva, e estas divisões convencionais são sempre respeitadas. A respeito das tribos sem governo da Tasmânia, diz-se que seus terrenos de caça estão delimitados e os que violam tais limites expõem-se a ser atacados. E, manifestamente, as querelas originadas entre tribos por intrusões reciprocas em seus territórios, acabam por fim, por fixar limites e dar-lhes certas sanções. O que é certo a respeito dos territórios, o é também acerca dos respectivos grupos de habitantes. Um homicídio em um deles, atribuído a um habitante do outro, exige o cumprimento da pena sagrada de Talião, e embora as represálias se perpetuem assim, evitam, todavia, novas agressões. Causas semelhantes produziram fatos análogos nas primeiras etapas das sociedades civilizadas, durante as quais a família, ou a tribo, tinha que se defender e defender suas propriedades contra os outros grupos. As restrições mútuas que, segundo a natureza das coisas, impõe uma comunidade a outra, são impostas igualmente dentro de cada comunidade entre um indivíduo e outro, e as ideias e usos peculiares ao grupo, aplicam-se mais ou menos nas relações entre os indivíduos. Embora haja sempre, em cada grupo, certa tendência por parte do mais forte, a atacar o mais fraco, serve de freio na maior parte dos casos, a consciência dos males resultantes de uma conduta agressiva. Que a limitação reciproca das atividades origina as ideias e os sentimentos entendidos na fórmula "direitos naturais", vemo-lo muito claramente nas tribos pacificas que só têm Governo nominal, ou não o têm absolutamente. Certamente, acha-se tão longe da verdade a suposta criação dos direitos pelo Governo, que, pelo contrário, os já estabelecidos antes do aparecimento do Governo, tornam-se menos evidentes a medida que este se desenvolve, paralelamente à atividade que, pela captura de escravos e o estabelecimento da hierarquia, produz o Estado; e o reconhecimento dos direitos, por sua vez, não adquire precisão senão quando o regime militante deixa de ser permanente e declina o poder do Governo. Se passarmos da vida dos indivíduos á das sociedades, surge a mesma conclusão. Embora tenha sido o instinto de sociabilidade o que impeliu os homens primitivos a viver em grupos, levou-os a isso, principalmente, a experiencia das vantagens obtidas com a cooperação. Em que condições pode nascer essa cooperação? Evidentemente só na que os que unem os seus esforços encontrem proveito individual. Se, como nos casos mais simples, unem-se para fazer o que nenhum deles poderia fazer sozinho, ou se o fizesse, seria muito dificilmente, a união se realiza com esta cláusula: ou que se repartirão os benefícios (se se dedicam à caça, por exemplo), ou que, se um recolhe os benefícios em determinado tempo (como numa cultura de terras) cada um dos outros recolherá, por seu turno, benefício semelhante. Quando, em lugar de unir seus esforços para fazer uma mesma coisa, executam coisas diferentes; quando nasce a divisão do trabalho, com a mudança dos produtos, o acordo implica que cada qual, em troca do que possui em excesso, obterá o equivalente, pouco mais ou menos, do que lhe falta. Se dá com uma mão e não recebe com outra, deixará de atender as futuras propostas de troca. Voltar-se-á ao estado social inteiramente primitivo, no qual cada um faz tudo para si. A possibilidade da cooperação, pois, depende do cumprimento do contrato tácito ou explícito. Esses fatos que se produzem necessariamente desde que se dão os primeiros passos para a organização industrial, pela qual se sustenta a vida de uma sociedade, devem produzir-se necessariamente, de forma mais ou menos idêntica, durante todo o seu desenvolvimento. Embora em uma organização, segundo o tipo militar resultante da guerra permanente, as relações baseadas em contrato sejam muito menos visíveis, existem, todavia, em parte. São respeitadas mesmo entre os homens livres e entre os chefes dos pequenos grupos que formam as unidades das primeiras sociedades, e, até certo ponto, são mantidas dentro desses mesmos pequenos grupos, posto que sua existência como tais, implica que se reconheça a seus membros, embora escravos, o direito de obter, em troca de seu trabalho, o necessário em alimentos, roupas e proteção. E quando a cooperação voluntaria substitui progressivamente a cooperação forçada, de acordo com a diminuição da guerra e o desenvolvimento do comércio, quando a vida social, baseada em trocas estipuladas, interrompidas durante certo tempo, se restabelece gradualmente, esse restabelecimento torna possível a extensão e aperfeiçoamento da organização industrial, pela qual se mantem uma grande sociedade. De fato, quanto mais livres são os contratos, e mais segura a sua execução, mais visíveis são os progressos e mais ativa a vida social. As perniciosas consequências da violação de um contrato, não as sofre somente uma ou outra das partes contratantes. Em uma sociedade adiantada, alcançam as classes inteiras de produtores e vendedores, que se formaram graças à divisão do trabalho; em certas ocasiões, ninguém se livra de seus efeitos. Perguntai sob que condições Birminghan se dedica a manufatura de ferragens, ou uma parte de Staffordshire a cerâmica ou, ainda, Lancashire a indústria de tecidos de algodão. Perguntai como os habitantes dos campos, que aqui cultivam o trigo e ali apascentam o gado, encontram a possibilidade de se consagrar a sua tarefa habitual. Estes grupos somente podem operar separadamente porque trocam entre si o excedente de seus respectivos produtos. Essa troca não a realizam de uma maneira direta, mas, indireta, por meio da moeda; e se averiguarmos como cada grupo de produtores obtém a moeda de que precisa, veremos que é pela execução dos contratos. Se Leads fábrica telas de lã e não recebe, por meio dos contratos, os meios de obter nos distritos agrícolas, a quantidade de alimentos que lhe são indispensáveis, morrerá de fome e cessará de produzir. Se o país de Gales funde o ferro, sem receber o equivalente convencionado, que lhe dê os meios de procurar tecidos para se vestir, terá paralisada a sua indústria. E assim em toda a parte, tanto em conjunto, como em detalhe. Esta mútua dependência das partes, que observamos na organização da sociedade, da mesma forma que na dos indivíduos, somente é possível, uma vez que cada parte, enquanto executa a espécie de atividades a que se adaptou, receba a quantidade de material que necessita para se refazer e se desenvolver, material que é produzido pelas outras partes, regulando-se a proporção da distribuição por livre acordo. Ademais, o cumprimento do contrato estabelece o equilíbrio entre a produção e as necessidades (consumo) fazendo com que sejam fabricados muitos canivetes e poucas lancetas, que se semeie muito trigo e pouca mostarda. Por último devemos assinalar o fato, mais significativo ainda, de que a única condição mediante a qual um grupo de trabalhadores pode aumentar os produtos de sua especialidade de trabalho, quando a comunidade necessite maior quantidade deles, é que os contratos sejam livres e que esteja assegurada a sua execução. Se no momento em que Lancashire não pudesse, por falta de matéria prima, produzir a quantidade necessária de tecidos de algodão, se interviesse nos contratos para impedir que Yorkshire exigisse preço mais alto pelas suas telas de lã, uma vez que a procura era muito maior, ninguém se sentiria com animo de aplicar seu capital nesta indústria, não se teria aumentado o material, nem o número de operários, nem a produção, e, como consequência, a comunidade teria sofrido os afeitos, não podendo adquirir aqueles tecidos, para cobrir a falta dos de algodão. Os consideráveis prejuízos que podem resultar para uma nação o fato de não permitir a seus membros contratar livremente entre si, tem-se visto muito bem pelo contraste entre Inglaterra e França, na parte relativa às ferrovias. Em Inglaterra a liberdade concedida ás iniciativas particulares, permitiu que grandes valores monetários e ótimas energias individuais se dedicassem a exploração da indústria de transportes ferroviários, dando como resultado imensos progressos nesse particular, em benefício da coletividade; em França, pelo contrário, a visão estreita de seus legisladores, impediu esse progresso, fazendo com que se atrasasse de muitos anos o desenvolvimento ferroviário no país, em prejuízo da nação. Que significam todos esses fatos? Significam que as indústrias, as ocupações, as profissões que fornecem o necessário à manutenção da vida de uma sociedade, para exercitar-se de uma maneira racional, e nas proporções convenientes, exigem em primeiro lugar que não haja restrições à liberdade dos contratos, e, em segundo, que sua execução seja assegurada. Como temos visto, a limitação reciproca é a única fonte das restrições que se impõem naturalmente a atividade dos homens, quando formam sociedade; não pode haver restrições, pois, para os contratos livremente feitos. Imiscuir-se neles é usurpar os direitos a liberdade de ação que correspondem a cada um, quando os dos demais são completamente respeitados. Por outra parte, como também temos visto, a garantia dos direitos individuais implica a dos contratos, posto que a violação de um contrato é um ataque indireto. Quando um comprador, colocado do lado do balcão, pede a um comerciante, colocado do outro lado, que lhe forneça artigos de valor determinado, aproveitando-se da distração do vendedor, sai, sem deixar o dinheiro que, tacitamente, convencionou pagar, seu ato não difere essencialmente de um roubo. Em qualquer caso desse gênero o indivíduo se vê privado de um objeto que lhe pertence, sem receber a importância equivalente. Gasta sua atividade sem proveito, e é vítima da violação de uma condição essencial a manutenção da vida. Resulta, pois, que reconhecer e assegurar os direitos individuais, é, ao mesmo tempo, reconhecer e assegurar as condições de uma existência social regular. Em ambos os casos se trata de uma necessidade vital. Antes de passar aos corolários que têm aplicação pratica, observemos como as conclusões especiais já assentadas, se as examinarmos em ordem inversa, convergem para a mesma conclusão geral. Acabamos de ver que o que é condição indispensável para a vida individual, é, de um duplo ponto de vista, condição indispensável para a vida social. A vida de uma sociedade, depende da salvaguarda dos direitos individuais. Não sendo mais do que a soma das vidas de seus cidadãos, a conclusão é evidente. Se consiste na multiplicidade das atividades variadas que os cidadãos exercem, em mutua dependência, essa vida, composta e impessoal, tem, na proporção que os direitos dos indivíduos são assegurados, ou negados, maior ou menor intensidade. O estudo das ideias ou dos sentimentos político-éticos dos homens, conduz a conclusões análogas. Os povos primitivos de tipos diferentes mostram-nos que, antes da existência dos governos, costumes de data imemoriais reconhecem os direitos particulares e justificam sua permanência. Os códigos que se têm desenvolvido independentemente nas diversas nações, coincidem em proibir certas transgressões referentes às pessoas, aos bens, e a liberdade dos cidadãos, e essas concordâncias provam que a fonte dos direitos individuais não é artificial, mas natural. Sucessivamente, e em proporção ao desenvolvimento social, a lei formula com mais clareza e precisão os direitos preestabelecidos pelos costumes. Ao mesmo tempo, o Governo se encarrega, cada vez mais amplamente, de assegura-los. A medida que se faz mais protetor, o Governo se torna menos agressivo, restringindo progressivamente suas ingerências no domínio dos atos privados. Por último, da mesma forma que nos tempos passados as leis eram manifestamente modificadas para se adaptarem às ideias de equidade correntes, assim, agora os reformadores da lei são guiados pelas ideias de equidade ás quais a lei se deve conformar, e não, de modo nenhum, dar-lhes nascimento. Aqui, pois, temos uma teoria ético-política, justificada pela análise e pela história. Que se lhe opõe? Uma teoria contraria que não se pode justificar. Por um lado, comprovando que a vida individual e a vida social implicam a manutenção da relação natural entre o trabalho e o proveito, comprovamos também que essa relação natural, reconhecida antes da existência do Governo, foi se reafirmando, cada vez mais, pelos códigos e pelos sistemas de moral. Por outro lado, a teoria contraria, que consiste em negar os direitos naturais e em afirmar que estes são criados artificialmente pela lei, não somente está desmentida pelos fatos, mas, ainda, destrói-se a si mesma: quando se pede a seus defensores uma prova, respondem com toda a classe de absurdos. Ainda há mais. O restabelecimento de uma concepção popular vaga em uma forma definida e sobre base científica, conduz-nos ao conhecimento racional da relação existente entre a vontade da maioria e a da minoria. Faz-se evidente, de fato, que as cooperações para as quais todos podem livremente associar-se, e para cuja direção deve prevalecer legitimamente a vontade da maioria, são cooperações relativas a manutenção das condições necessárias à vida individual e social. A defesa da sociedade, em seu conjunto, contra os inimigos exteriores, tem por fim remoto manter cada cidadão na posse dos meios de que disponha para satisfazer seus desejos e na da liberdade que tenha para aumentar esses meios. E a defesa de cada cidadão contra os inimigos interiores, desde os criminosos, aos que causam prejuízos aos outros, tem, evidentemente, o mesmo fim, por todos desejado, exceto pelos malvados e pessoas desordenadas. De onde se segue que, para a defesa deste princípio vital, trate-se do indivíduo ou da sociedade, a subordinação da minoria a maioria é legitima, contanto que isso não implique em outras restrições da propriedade e da liberdade de cada um, mais do que as necessárias para a maior proteção dessa propriedade e dessa liberdade. Ao mesmo tempo, resulta que tal subordinação não é legitima além de determinado limite: isso implicaria em menoscabo dos direitos do indivíduo mais do que o necessário para protege-lo, e seria uma violação do princípio vital que se trata de defender. Voltamos assim a proposição de que o suposto direito divino dos Parlamentos e o direito divino das maiorias que implica, não são mais do que superstições. Tem-se abandonado a antiga teoria referente a fonte de autoridade do Estado, não, porém, a crença na ilimitacão dessa autoridade, que era o corolário legítimo daquela teoria, e que de modo algum está de acordo com a nova. O poder absoluto sobre os súditos, logicamente atribuído ao homem que governava, quando era tido como representante de Deus, atribui-se agora á corporação que governa, da qual ninguém afirma ser delegada da divindade. Talvez, nos oponham que a discussão sobre a origem e os limites da autoridade dos governos não passa de pedantismo. "O governo - dir-se-á - é obrigado a empregar, para aumentar a felicidade pública, todos os meios que possua, ou possa adquirir. Seu fim deve ser a utilidade, e está autorizado a usar de todas as medidas necessárias para realizar fins uteis. O bem-estar do povo é a suprema lei, e os legisladores não devem desobedecer essa lei por considerações relativas a origem e extensão de seu poder". Será um argumento de valor, ou pode ser facilmente refutado? A questão essencial de que se trata concerne na certeza da teoria utilitária, tal como se professa geralmente, e a resposta que se deve dar é que essa teoria, tal como geralmente é professada, não é verdadeira. Os tratados dos moralistas utilitários, e os atos dos políticos que consciente, ou inconscientemente, se inspiram neles, supõem que a utilidade deve ser determinada diretamente pela simples inspeção dos fatos presentes e a consideração dos resultados prováveis; mas, o utilitarismo bem entendido implica que se tomem por guia as conclusões gerais que subministra a analise experimental dos fatos já observados. "Nem os bons, nem os maus resultados podem ser acidentais; são as consequências necessárias da natureza das coisas; e o objetivo da ciência da moral é deduzir das leis da vida e das condições da existência, qual classe de atos tendem necessariamente a produzir a felicidade e quais a desgraça". As doutrinas correntes dos utilitaristas, como a pratica corrente dos políticos, testemunham um conhecimento insuficiente das relações materiais da causalidade. Habitualmente, se pensa que, na ausência de obstáculos manifestos, tudo se pode fazer de uma ou de outra maneira; e ninguém cogita de saber se ao atuar de um ou outro modo, está, ou não, de acordo com o curso normal das coisas. As discussões precedentes terão mostrado, segundo creio, que os editos da utilidade, e, por conseguinte, os atos do governo, não podem ser regulados pelo exame de fatos superficiais e pela admissão do que nestes pareça significar "prima facie", senão em razão e por dedução de fatos fundamentais. Estes fatos, aos quais devem referir-se todos os juízos racionais de utilidade, são que a vida consiste em certas atividades e que se sustenta por meio delas; e que, sendo forçoso que estas atividades se limitem reciprocamente, entre os homens reunidos em sociedade, seu exercício deve ser livre dentro dos limites assim criados, embora nunca além deles: defender esse exercício será, por conseguinte, a função dos agentes que dirigem a sociedade. Se cada um, tendo a liberdade de usar de suas faculdades até ao limite fixado pela liberdade idêntica dos demais, obtém de seus associados, em troca dos serviços que lhes presta, benefícios que se regulam por comparação desses serviços com os dos outros; se os contratos, geralmente executados, proporcionam a cada um a parte determinada, e todos estão protegidos em sua pessoa e em seus bens, de maneira que possam satisfazer suas necessidades com suas rendas, acha-se a salvo o princípio vital, tanto da existência individual, como da social. Ademais, o princípio vital do progresso social é igualmente salvaguardado, posto que, em tais condições, os indivíduos mais capazes prosperam e se multiplicam mais que os ineptos. Assim, pois, a utilidade, não avaliada empiricamente, mas, determinada racionalmente, prescreve que se respeitem os direitos individuais, e, ao mesmo tempo, proíbe tudo o que possa contrariá-los. Aqui chegamos ao termo supremo no qual se deve deter a intervenção legislativa. Mesmo sob a forma mais modesta, qualquer propósito de se imiscuir no exercício das atividades dos cidadãos, desde que não seja para assegurar suas limitações reciprocas, é um proposito para melhorar a existência, violando as condições normais da vida. Quando se impede a certas pessoas que comprem cerveja para que outras não se possam embriagar, os que fazem a lei prejulgam que resultará mais bem do que mal dessa intervenção na relação normal entre a conduta e suas consequências, da mesma maneira para a minoria de intemperantes que para a maioria de moderados. O Governo que tira do povo uma parte de suas rendas para enviar às colônias indivíduos que não foram bem sucedidos na metrópole, ou para melhorar as vivendas operarias, ou criar bibliotecas ou museus, reconhece que, não somente no presente como no porvir, o aumento do bem estar geral resultará da violação das condições essenciais para este bem estar: a faculdade, para cada um, de gozar do bem estar que seus atos, realizados sem constrangimento algum, possam lhe proporcionar. Declarando que a propriedade é sagrada contra os ataques privados, não cuidamos de averiguar se o benefício que obtém o faminto que se apodera de um pão é maior ou menor que o prejuízo causado ao padeiro; consideramos, não os efeitos particulares, mas o efeito geral produzido pela insegurança da propriedade. Mas, quando o Estado impõe encargos ao cidadão, ou estabelece novas restrições à sua liberdade, somente examinamos os efeitos diretos e próximos, olvidando-nos dos indiretos e remotos produzidos pela usurpação continua dos direitos individuais. Não vemos que, pela acumulação de ligeiras infrações desses direitos, as condições vitais da existência individual ou social chegam a ser tão imperfeitamente cumpridas, que essa própria existência declina. Sem embargo, a decadência assim acarretada torna-se visível onde se governa com excesso. Aquele que estudar, nas obras de Taine e Tocqueville, o estado de coisas que precedeu a Revolução francesa, verá que aquela terrível catástrofe teve por origem uma regulamentação tão excessiva da atividade humana, até em seus novos detalhes, e uma absorção tão exorbitante dos produtos dessa atividade em proveito do Governo, que a vida se tornou quase impossível. O utilitarismo empírico daquela época, como o utilitarismo empírico da nossa, diferia do utilitarismo racional em que, em todos os casos, somente examinava os efeitos das intervenções particulares nos atos das classes particulares de homens, olvidando os efeitos produzidos pela multiplicidade de semelhantes intervenções na existência dos homens em geral. Se procuramos o que tornou possível então, e o que torna agora possível esse erro, achamos que é a superstição política, segundo a qual o poder governamental não deve ser submetido a nenhuma limitação. Quando o "resplendor divino" que "rodeava o rei", e que deixou um reflexo em redor da corporação herdeira de seu poder, tenha desaparecido completamente; quando se comece a ver com clareza que, em uma nação onde governa o povo, o Governo é, simplesmente, um comité de administração, ver-se-á também que este comité não tem nenhuma autoridade intrínseca. Acabar-se-á inevitavelmente por estabelecer que sua autoridade foi recebida dos que o designaram, os quais podem limita-la como julgarem conveniente. Ao mesmo tempo se chegará á conclusão de que as leis que dita não são sagradas por si mesmas, e que tudo o que têm de sagradas, devem-no inteiramente à sanção moral, a qual, como temos comprovado, deriva das leis da vida humana, contanto que esta se desenvolva em meio das condições próprias á existência social. E eis aqui o corolário: quando estejam desprovidas desta sanção moral, nada têm de sagradas e podem, com direito, ser recusadas. A função do liberalismo, no passado, foi pôr limites ao poder dos reis. A função do verdadeiro liberalismo, no futuro, será limitar o poder dos Parlamentos. POST SCRIPTUM Devo esperar que esta doutrina seja acolhida favoravelmente? Quereria responder que sim; porém, infelizmente, diferentes razões me obrigam a pensar que, de momento, somente algum cidadão isolado poderá modificar seu credo político. Destas razões, uma delas engendra todas as demais. Esta razão essencial é que a restrição do poder governamental nos limites assinalados, convém somente ao tipo industrial de sociedade; e que, absolutamente, incompatível com o tipo militar da sociedade, o é parcialmente com o tipo semimilitar, semi-industrial, que caracteriza hoje as nações mais adiantadas. Em cada fase da evolução social deve existir uma harmonia completa entre as práticas e as crenças - aludo às crenças reais, não às nominais - A vida não pode seguir o seu curso mais do que pela concordância dos pensamentos e dos atos. Ou a conduta, obrigada pelas circunstâncias, modifica as crenças, de forma que haja conformidade entre elas, ou a transformação das crenças modifica, finalmente, a conduta. Portanto, se a preservação da vida social exige, sob determinado conjunto de condições, a extrema subordinação a um chefe e a mais completa confiança nele, estabelecer-se-á a doutrina de que a subordinação e a confiança são uteis e mesmo obrigatórias. Inversamente, se em outras condições não é necessária a submissão dos cidadãos ao Governo, para a preservação da existência nacional; se, ao contrário, a vida nacional ganha em intensidade e qualidade, á medida que os cidadãos adquirem maior liberdade de ação, operar-se-á na doutrina política uma modificação gradual, que terá como resultado minorar a fé na ação governamental, aumentando a tendência de pôr em dúvida a autoridade oficial, impelindo á resistência, em maior número de casos, contra o poder. Esta modificação trará, finalmente, o estabelecimento da limitação. Assim, pois, não se pode esperar que a opinião governamental seja, atualmente, modificada de uma forma considerável. Porém, examinemos a questão mais de perto. Evidentemente, o êxito de um exército depende, em grande parte, da confiança dos soldados em seu general; sé não creem em sua habilidade, isto bastará para detê-los na batalha, ao passo que uma absoluta confiança no chefe fará com que todos realizem sua tarefa com energia e valor. Se, como acontece em uma sociedade que se desenvolveu normalmente segundo o tipo militar, aquele que governa durante a paz é o mesmo que comanda durante a guerra, a confiança em sua superioridade no campo de batalha, engendrará a confiança em sua superioridade como homem de Estado; e a sociedade, identificada com o exército em muitos aspectos, aceita de bom grado os seus decretos como legislador. Mesmo onde o chefe civil, deixando de ser chefe militar, exerce seu generalato por meio de um representante, a fé tradicional permanece depositada nele. O mesmo acontece quanto á diligencia para obedecer. Em igualdade de condições, um exército de soldados indisciplinados é inferior a outro de soldados disciplinados. O que obedece prontamente e em tudo a seu chefe, tem, evidentemente, mais probabilidades de êxito na guerra, do que aquele que mal atende as ordens recebidas. E o que é certo a respeito dos exércitos, é, igualmente com referência às sociedades, consideradas em seu conjunto; necessariamente o êxito na guerra depende da submissão á vontade do governante que recruta os homens, fornece o dinheiro quando é preciso, e regula tudo segundo as necessidades do momento. Assim como nos combates sobrevivem os homens melhor dotados, o tipo militar tem por caraterística uma fé profunda no poder governamental, unida a adesão ao soberano, que deve ser obedecido em tudo. Estabelecer-se-á, pois, pelos teóricos políticos de uma sociedade militar, uma doutrina que formule as ideias e os princípios consequentes, o que afirme ao mesmo tempo, que o legislador, se não é de natureza divina, está, pelo menos, inspirado por Deus, e que a obediência absoluta que se lhe deve, é ordenada pelo próprio Deus. Uma mudança nas ideias e sentimentos característicos do tipo militar de organização, unicamente se pode dar onde as circunstancias favorecem o desenvolvimento do tipo industrial. Baseada na cooperação voluntária e não na cooperação forçada, a vida industrial, tal como a conhecemos atualmente, habitua os homens a agir com independência, os induz a fazer respeitar os seus direitos, ao mesmo tempo que respeitam os dos outros, fortalece neles a consciência dos direitos pessoais, e os impele a resistir os excessos da intervenção oficial. Mas, como as circunstancias que tornam menos frequente a guerra se produzem muito lentamente, e como as modificações de temperamento que produzem a transição da vida militar para a industrial, apenas se operam de forma insensível, acontece que as ideias e os sentimentos antigos somente são substituídos por outros pouco a pouco. Ha muitas razões pelas quais a transição é e deve ser gradual. Vejamos algumas. No homem primitivo e no pouco civilizado, não existe ainda o caráter requerido para uma cooperação voluntaria ampla. O fato de associar os próprios esforços voluntariamente, aos de outras pessoas, para obter uma vantagem comum, implica numa perseverança que, nem um, nem outro possui. Ademais, quando os benefícios esperados são remotos e pouco conhecidos, como acontece com muitos, é necessária grande força de imaginação entre os que se põem de acordo, imaginação, esta, que falta inteiramente aos homens não civilizados. Por outro lado, as poderosas associações particulares, cujo fim é a produção em larga escala, exigem uma subordinação hierárquica semelhante a produzida pela vida militar. Noutros termos, não se chega ao tipo industrial desenvolvido, tal como o conhecemos agora, senão passando pelo militar, o qual, pela disciplina, engendra a persistência nos esforços, o consentimento em agir sob uma direção - não imposta, mas, aceita por contrato e o habito de se organizar para alcançar grandes resultados. Consequentemente, durante longos períodos da evolução social, necessita-se, para administrar todos os assuntos, um poder governamental forte e extenso, que goze da confiança geral e que seja por todos obedecido: daqui o fato, mostrado pela lembrança das primeiras civilizações, e também pelo Oriente atual, de que as grandes empresas não podem ser executadas senão pelo Estado; daqui, também, o fato da cooperação voluntaria não poder substituir a forçada, e produzir, legitimamente, a diminuição na fé e capacidade do Governo. Sem embargo, esta fé se mantém sobretudo pela necessidade de conservar a aptidão para a guerra. É preciso que o Governo possa, com o auxílio dessa confiança, e da subordinação geral, dispor a vontade de todas as forças da sociedade, segundo as necessidades do ataque e da defesa: de onde resulta uma teoria política que justifica a fé e a obediência. Enquanto seus sentimentos e ideias sejam de natureza a pôr a paz em constante perigo, os homens estão obrigados a ter a suficiente confiança na autoridade do Governo para conceder-lhe o poder de coação necessário às empresas guerreiras; e essa confiança naquela autoridade dá ao Governo, inevitavelmente, um poder coercitivo sobre os indivíduos nas demais empresas. Portanto, como temos dito a princípio, a razão fundamental para crer que não contará com muitas adesões a doutrina exposta, é que, atualmente, só em parte temos relegado o regime militar, e só em parte, da mesma forma, temos adotado o industrial, ao qual se aplica, em realidade, esta doutrina. Tanto tempo quanto a religião do ódio prevaleça sobre a do amor, sobreviverá, por necessidade, a superstição política atualmente tão espalhada. Enquanto em toda a Europa a educação das classes dirigentes consistir em fazer com que os jovens admirem, durante seis dias da semana, os homens que realizaram grandes façanhas guerreiras, recordando-lhes somente ao domingo o mandamento de depor a espada; enquanto essas mesmas classes dirigentes estejam submetidas a uma disciplina moral, na qual os exemplos tornados do paganismo entram na proporção de seis por um, e os preceitos do cristianismo somente na de um por seis, não será possível que as relações internacionais se tornem de natureza a tornar exequível a diminuição do poder governamental, e a modificação correspondente da teoria política. Enquanto que, entre nós mesmos, a administração dos assuntos coloniais continue de tal modo que as tribos indígenas sejam castigadas por haver usado de represálias contra os ingleses, violadores de seus direitos, não seguindo seu próprio princípio selvagem de vida por vida, mas, de acordo com nosso princípio aperfeiçoado de matança em massa por um só assassinato, haverá poucas probabilidades de que seja aceita uma doutrina política fundada exclusivamente no respeito aos direitos do próximo. Enquanto a crença que se professa for interpretada de tal modo que, aquele que na Inglaterra pronuncia discursos nas reuniões de missionários, e tratar, no estrangeiro, de fomentar querelas com povos vizinhos com o fim de os submeter, não é verosímil que as relações de nossa sociedade com as outras se tornem próprias para a aplicação da doutrina da limitação das funções governamentais. Uma nação que, ocupada em disputas eclesiásticas referentes ás cerimonias do culto, cuida tão pouco desse culto, estará exposta a sofrer ataques internos de uns indivíduos contra os outros e do Estado contra os direitos dos indivíduos. É impossível obter os beneficies da justiça no próprio país, quando se pratica injustiça no estrangeiro. Naturalmente, perguntar-se-me-á: "Porque, pois, enunciar e sustentar uma teoria diferente da adaptada ao nosso estado atual? Além da resposta geral de que todo aquele que considerar uma doutrina como verdadeira e importante tem o dever de fazer o possível para difundi-la, sem se preocupar com os resultados, há outras muitas particulares e cada qual mais satisfatória. Em primeiro lugar, necessita-se sempre como guia, um ideal, por longínqua que pareça sua possível realização. Se, entre todos os compromissos que, pelas circunstancias dos tempos, são ou parecem ser indispensáveis, não existe concepção do melhor e do pior na organização social; se nada se vê além das exigências do momento, e adquire-se o habito de identificar o bem imediato com o bem definitivo, não pode haver verdadeiro progresso. Por remoto que esteja o fim, e por muitos que sejam os obstáculos interpostos que nos possam obrigar a desviar-nos do caminho que a ele conduz, é evidentemente indispensável saber onde ele se encontra. Em segundo lugar, se a atual sujeição dos indivíduos ao Estado, assim como a teoria política correspondente, pode ser indispensável ante as relações internacionais existentes, não é necessário de nenhum modo, aumentar e fortalecer a teoria a que se adapta. Em nossa época de filantropia ativa, muitas pessoas desejosas de melhorar a sorte de seus semelhantes menos afortunados pelos métodos mais rápidos, trabalham sem descanso para desenvolver medidas administrativas que são próprias a um tipo inferior de sociedade: propondo-se a avançar, retrocedem. As dificuldades normais com que tropeça o progresso, são suficientemente grandes por si mesmas, e é lamentável que ainda se as torne maiores. Por conseguinte, é muito útil mostrar aos filantropos que, em muitos casos preparam seguramente a desgraça futura da humanidade perseguindo com entusiasmo seu bem-estar atual. O principal, sem embargo, é inculcar a todo o mundo a grande verdade, pouco conhecida ainda, de que a política interior e a política exterior de uma sociedade estão ligadas entre si, e que não pode haver melhoramento essencial de uma, sem correspondente melhoramento de outra. Se queremos que a nossa organização interna esteja de acordo com os princípios de justiça mais elevados, é preciso que em nossas relações exteriores admitamos habitualmente esses mesmos princípios. Se pudesse ser difundida entre os povos civilizados a convicção de que existe uma dependência desta espécie, reprimir-se-ia em grande parte a conduta agressiva de uns para com os outros, e, como consequência, seria diminuída a coação em seus sistemas de governo, produzindo mudanças correspondentes nas teorias políticas. FIM