Auguste Comte – Catecismo Positivista ÍNDICE Prefácio Biblioteca positivista no século XIX Introdução Primeira Conferência - Teoria geral da religião Segunda Conferência - Teoria da humanidade PARTE PRIMEIRA - EXPLICAÇÃO DO CULTO Terceira Conferência - Conjunto do culto Quarta Conferência - Culto privado Quinta Conferência - Culto público PARTE SEGUNDA - EXPLICAÇÃO DO DOGMA Sexta Conferência - Conjunto do dogma Sétima Conferência - Ordem exterior - primeiro material, depois vital. Oitava Conferência - Ordem humana - primeiro social, depois moral. PARTE TERCEIRA - EXPLICAÇÃO DO REGIME Nona Conferência - Conjunto do regime Décima Conferência - Regime privado Undécima Conferência - Regime público CONCLUSÃO - HISTÓRIA GERAL DA RELIGIÃO Duodécima Conferência - Passado fetíchico e teocrático comum a todos os povos Décima Terceira Conferência - Transição peculiar ao Ocidente PREFÁCIO "EM NOME DO passado e do futuro, os servidores teóricos e os servidores práticos da humanidade vêm tomar dignamente a direção geral dos negócios terrestres, para construir, enfim, a verdadeira providência, moral, intelectual e material; excluindo irrevogavelmente da supremacia política todos os diversos escravos de Deus, católicos, protestantes ou deistas, como sendo, ao mesmo tempo, atrasados e perturbadores." Tal foi a declaração decisiva com que terminei, no Palais Cardinal, no domingo, 19 de outubro de 1851, após um resumo de cinco horas, meu terceiro Curso Filosófico sobre a História Geral da Humanidade. Depois desse memorável encerramento, a publicação do segundo tomo do meu Sistema de Política Positiva acaba de comprovar diretamente quanto convém semelhante destino social à filosofia capaz de inspirar a teoria mais sistemática da ordem humana. Vimos, pois, abertamente libertar o Ocidente de uma democracia anárquica e de uma aristocracia retrógrada, para constituirmos, tanto quanto possível, uma verdadeira sociocracia, que faça concorrer sabiamente para a regeneração comum todas as forças humanas, aplicadas sempre conforme a natureza de cada uma. Com efeito, nós, sociocratas, não somos nem democratas nem aristocratas. Aos nossos olhos, a massa respeitável destes dois partidos opostos representa empiricamente, de um lado, a solidariedade, do outro, a continuidade, entre as quais o positivismo estabelece profundamente uma subordinação necessária, que substitui enfim o antagonismo deplorável que as separava. Mas, conquanto nossa política se eleve igualmente acima destas duas tendências incompletas e incoerentes, estamos longe de aplicar hoje a mesma reprovação aos dois partidos correspondentes. Trinta anos há que dura minha carreira filosófica e social e sempre senti um profundo desprezo pelo que se tem chamado, sob nossos diversos regimes, a oposição, e uma secreta afinidade pelos construtores quaisquer. Aqueles mesmos que queriam construir com materiais evidentemente gastos pareceram-me sempre preferíveis aos meros demolidores, num século em que a reconstrução geral se torna por toda parte a principal necessidade. Apesar do atraso de nossos conservadores oficiais, nossos puros revolucionários se me afiguram ainda mais afastados do verdadeiro espírito de nosso tempo. Estes prolongam obcecadamente, pelo meio do século XIX, a direção negativa que só podia convir ao XVIII, sem resgatarem esta estagnação pelos sentimentos generosos de renovação universal que caracterizaram seus predecessores. Por isso, se bem que as inclinações populares permaneçam espontaneamente favoráveis a eles, o poder passa sempre às mãos de seus adversários, que, pelo menos, reconheceram a incompetência orgânica das doutrinas metafísicas, e procuram alhures princípios de reconstrução. Na maior parte destes, a retrogradação não é, no fundo, senão um último recurso provisório, em falta de coisa melhor, sem nenhuma convicção teológica verdadeira, contra uma anarquia iminente. Posto que todos os estadistas pareçam pertencer agora a esta escola, pode-se assegurar que ela apenas lhes fornece as fórmulas indispensáveis à coordenação de suas vistas empíricas, enquanto esperam pela concatenação mais real e mais estável dimanada de uma nova doutrina universal. Tal é certamente o único chefe temporal verdadeiramente eminente de que nosso século pode até aqui honrar-se, o nobre czar que, fazendo expandir-se seu império imenso tanto quanto sua situação atual comporta, preserva-o, com enérgica sabedoria, de uma vã fermentação. Seu judicioso empirismo compreendeu que o Ocidente era o único investido da gloriosa e difícil missão de fundar a regeneração humana, de que o Oriente deve em seguida, pacificamente, apropriar-se, à medida que ela surja. Ele me parece mesmo ter sentido que esta imensa elaboração se achava especialmente reservada para o grande centro ocidental, cuja espontaneidade necessariamente desordenada deve apenas ser sempre respeitada, como profundamente indispensável à solução comum. A agitação habitual de todo o restante do Ocidente, embora mais difícil de ser contida que a do Oriente, é, no fundo, quase tão nociva ao curso natural da reorganização final, de que ela tende a deslocar inutilmente o principal foco, quanto ao conjunto do passado fixado em França. Nossa situação ocidental exclui por tal modo o ponto de vista puramente revolucionário que ela reserva ao campo oposto a produção das máximas mais características. Sem embargo da memorável fórmula prática devida a um democrata, afortunadamente iletrado, foi entre os puros conservadores que surgiu a mais profunda sentença política do século XIX: Só se destrói o que se substitui. O autor desta admirável máxima, tão bem expressa quanto bem pensada, não oferece, entretanto, nada de eminente sob o aspecto intelectual. Ele só se recomenda verdadeiramente por uma rara combinação das três qualidades práticas, a energia, a prudência e a perseverança. Mas o ponto de vista orgânico tende hoje por tal forma a alargar as concepções, que ele basta, numa situação favorável, para inspirar a um espírito superficial um princípio realmente profundo, que o positivismo adota e desenvolve sistematicamente. Seja como for, a natureza retrógrada das doutrinas exaustas que os nossos conservadores empregam provisoriamente deve torná-las essencialmente impróprias para dirigir a política real no meio de uma anarquia que teve sua primeira origem na impotência final das antigas crenças. A razão ocidental não pode mais deixar-se guiar por opiniões evidentemente indemonstráveis, e até radicalmente quiméricas, como todas as que são inspiradas por uma teologia qualquer, ainda mesmo reduzida ao seu dogma fundamental (Deus). Todos reconhecem hoje que a nossa atividade prática deve cessar de consumir-se em hostilidades mútuas, para fomentar na paz o aproveitamento comum do planeta humano. Menos ainda podemos persistir neste estado de infância intelectual e moral em que a nossa conduta não assenta senão sobre motivos absurdos e degradantes. Sem nunca repetir o século XVIII, deve o século XIX continuá-lo sempre, realizando enfim o nobre voto de uma religião demonstrada dirigindo uma atividade pacífica. Desde que a situação afasta toda tendência puramente negativa, as únicas escolas filosóficas do último século que caíram em verdadeiro descrédito são as seitas inconsequentes, cujo predomínio não podia deixar de ser efêmero. Os demolidores incompletos, como Voltaire e Rousseau, que julgavam poder derrubar o altar conservando o trono, ou vice-versa, estão irrevogavelmente decaídos, depois de terem dominado, segundo o destino normal que lhe cabia, as duas gerações que prepararam e que levaram a termo a explosão revolucionária. Desde, porém, que a reconstrução está na ordem do dia, a atenção pública volta-se cada vez mais para a grande e imortal escola de Diderot e Hume, que há de realmente caracterizar o século XVIII, ligando-o ao anterior por Fontenelle e ao seguinte por Condorcet. Igualmente emancipados em religião e em política, esses poderosos pensadores tendiam necessariamente para uma reorganização total e direta, por mais confusa que devesse ser então a noção de semelhante reforma. Todos eles abraçariam hoje a única doutrina que, fundando o futuro sobre o passado, assenta, enfim, as bases inabaláveis da regeneração ocidental. É de tal escola que me honrarei sempre de descender imediatamente, por intermédio de meu precursor essencial, o eminente Condorcet. Pelo contrário, nunca esperei senão óbices, espontâneos ou propositais, por parte dos atrasados destroços das seitas superficiais e imorais oriundas de Volta ire e de Rousseau. Mas a essa grande estirpe histórica sempre referi o que os nossos últimos adversários, quer teológicos, quer metafísicos, ofereceram de realmente grande. Hume constitui meu principal precursor filosófico, Kant se acha a ele acessoriamente ligado; a concepção fundamental deste não foi verdadeiramente sistematizada e desenvolvida senão pelo positivismo. Do mesmo modo, sob o aspecto político, foi necessário que eu completasse Condorcet por De Maistre, de quem assimilei, logo no começo de minha carreira, todos os princípios essenciais, que não são mais agora apreciados senão na escola positiva. Tais são, com Bichat e Gall, como precursores científicos, os seis predecessores imediatos que hão de me religar sempre aos três pais sistemáticos da verdadeira filosofia moderna, Bacon, Descartes e Leibniz. Em virtude desta nobre filiação, a Idade Média, intelectualmente resumida por Santo Tomás de Aquino, Rogério Bacon e Danie, subordina-me diretamente ao príncipe eterno dos verdadeiros pensadores, o incomparável Aristóteles. Remontando até esta origem normal, sente-se profundamente que, desde a suficiente extensão do domínio romano, as populações de elite procuram em vão a religião universal. A experiência demonstrou cabalmente que este voto final não pode ser satisfeito por nenhuma crença sobrenatural. Dois monoteísmos incompatíveis aspiraram igualmente a essa universalidade necessária, sem a qual a humanidade não poderia seguir o seu destino natural. Mas os esforços opostos de um e outro apenas conseguiram neutralizar-se mutuamente, de modo que semelhante atributo ficou reservado às doutrinas demonstráveis e discutíveis. Há mais de cinco séculos que o islamismo desistiu de dominar o Ocidente e o catolicismo abandonou ao seu eterno antagonista o túmulo de seu pretenso fundador (São Paulo). Estas vãs aspirações espirituais nem sequer puderam abarcar todo o território do antigo domínio temporal, que ficou repartido quase igualmente entre os dois monoteísmos inconciliáveis. O Oriente e o Ocidente devem, pois, procurar, fora de toda teologia ou metafísica, as bases sistemáticas de sua comunhão intelectual e moral. Esta fusão tão esperada, e que deverá estender-se em seguida gradualmente à totalidade de nossa espécie, não pode evidentemente provir senão do positivismo, isto é, de uma doutrina caracterizada sempre pela combinação da realidade com a utilidade. Suas teorias, por muito tempo limitadas aos fenômenos mais simples, produziram aí as únicas convicções realmente universais que têm existido até hoje. Mas este privilégio natural dos métodos e das doutrinas positivas não podia ficar sempre circunscrito ao domínio matemático e físico. Desenvolvido primeiramente quanto à ordem material, ele abraçou em seguida a ordem vital, de onde acaba enfim de estender-se até a ordem humana, coletiva ou individual. Esta plenitude decisiva do espírito positivo desvanece agora todos os pretextos para a conservação factícia do espírito teológico, que se tornou, no Ocidente moderno, tão perturbador quanto o espírito metafísico, que dele se origina histórica e dogmaticamente. Por outro lado, havia muito, aliás, que a degradação moral e política do sacerdócio correspondente destruirá toda a esperança de atalhar, como na Idade Média, os vícios da doutrina pela sabedoria instintiva de seus melhores intérpretes. De hoje em diante, abandonada espontaneamente à sua corrupção natural, a crença monoteica, cristã ou muçulmana, merece cada vez mais a reprovação que seu advento inspirou, pelo espaço de três séculos, aos mais nobres práticos e teóricos do mundo romano. Não podendo, então, julgar o sistema senão pela doutrina, eles não hesitavam em repelir, como inimiga do gênero humano, uma religião provisória que fazia consistir a perfeição num isolamento celeste. O instinto moderno reprova ainda mais uma moral que proclama as inclinações benévolas como alheias à nossa natureza, que desconhece a dignidade do trabalho, a ponto de fazê-lo derivar de uma maldição divina, e que erige a mulher como fonte de todo mal. Tácito e Trajano não podiam prever que, durante alguns séculos, a sabedoria sacerdotal, auxiliada por uma situação favorável, haveria de conter suficientemente os vícios naturais de tais doutrinas para delas tirar, provisoriamente, admiráveis resultados sociais. Desde que o sacerdócio ocidental se tornou irremediavelmente retrógrado, sua crença, entregue a si mesma, tende a desenvolver sem peias o caráter imoral inerente à sua natureza antissocial. Ela só mereceu os resguardos dos conservadores prudentes enquanto foi impossível substituir-lhe uma concepção melhor do mundo e do homem, a qual só podia resultar de uma lenta ascensão do espírito positivo. Mas esta laboriosa iniciação estando agora terminada, o positivismo elimina irrevogavelmente o catolicismo, como qualquer outro teologismo, em virtude mesmo da admirável máxima social acima citada. Depois de ter plenamente satisfeito a inteligência e a atividade, a religião positiva, sempre impulsionada por sua realidade característica, estendeu-se convenientemente até o sentimento, que doravante forma seu domínio principal e se torna a base de sua unidade. Não receamos, pois, que os verdadeiros pensadores, teóricos ou práticos, possam hoje, como no começo do catolicismo, desconhecer a superioridade de uma fé real e completa, que, longe de ser fortuitamente social, se mostra tal por sua própria natureza. Compete, aliás, à conduta moral e política de seu sacerdócio nascente, e de todos os seus verdadeiros adeptos, o fazer apreciar empiricamente a excelência da nova fé, mesmo por aqueles que não puderem julgar diretamente os princípios dela. Uma doutrina que há de desenvolver sempre todas as virtudes humanas, pessoais, domésticas e cívicas será em breve respeitada por todos os seus adversários honestos, qualquer que seja a vã predileção destes por uma síntese absoluta e egoísta oposta à síntese relativa e altruísta. A fim de instituir, porém, esta concorrência decisiva, cumpria primeiro condensar assaz o positivismo para que ele se pudesse tornar verdadeiramente popular. Tal é o destino especial deste opúsculo excepcional, por cuja causa interrompo, durante algumas semanas, minha grande construção religiosa, da qual só está terminada até agora a primeira metade. A princípio julguei que este precioso episódio teria de ser adiado até o completo acabamento daquele imenso trabalho. Mas, depois de ter escrito, em janeiro de 1851, a teoria positiva da unidade humana, senti-me bastante adiantado para fazer suceder este intermédio ao volume cujo primeiro e principal capitulo consta dessa teoria. Crescendo cada vez mais, à medida que eu elaborava esse tomo decisivo, semelhante esperança tornou-se completa quando escrevi seu prefácio final. Realizo-a hoje, antes de começar a construção da sociologia dinâmica, que caracterizará, no ano próximo, o terceiro volume do meu Sistema de Política Positiva. Devido à maturidade inesperada de minhas concepções principais, esta resolução foi muito fortalecida pela crise feliz que acaba de abolir o regime parlamentar e de instituir a república ditatorial, duplo preâmbulo de toda verdadeira regeneração. Sem dúvida, esta ditadura não oferece ainda o caráter essencial explicado em meu curso positivista de 1847. Falta-lhe sobretudo conciliar-se suficientemente com uma plena liberdade de exposição, e mesmo de discussão, diretamente indispensável à reorganização espiritual, e que é, aliás, a garantia única contra toda tirania retrógrada. Mas este complemento necessário não tardará muito em realizar-se de um modo qualquer, que infelizmente me parece supor, como as fases precedentes, uma última crise violenta. Obtido que seja este complemento, seu advento empírico deverá determinar em breve a pacífica evolução do triunvirato sistemático que caracteriza a ditadura temporal, apresentada, no curso a que acima aludi, como peculiar à transição orgânica. Sem esperar, porém, por estas duas novas fases do empirismo revolucionário, a situação ditatorial permite já a propagação direta das meditações regeneradoras. A liberdade de exposição que ela proporciona espontaneamente a todos os verdadeiros construtores, quebrando, enfim, o vão domínio dos palradores, devia especialmente convidar-me a dirigir imediatamente os pensamentos femininos e proletários para a renovação fundamental. Este trabalho episódico fornecendo dignamente uma base sistemática à propagação ativa do positivismo, auxilia necessariamente minha construção principal, trazendo a nova religião para o seu verdadeiro meio social. Por mais sólidos que sejam os fundamentos lógicos e científicos da disciplina intelectual que a filosofia positiva institui, esse regime severo é demasiado antipático aos espíritos atuais para que ele possa prevalecer jamais sem o apoio irresistível das mulheres e dos proletários. A necessidade de tal regime não pode ser somente apreciada senão nesta dupla massa social, que, alheia a toda pretensão doutoral, é a única que pode impor a seus chefes sistemáticos as condições enciclopédicas exigidas pelo ofício social deles. Eis por que não receio popularizar aqui alguns termos filosóficos realmente indispensáveis, que o positivismo não inventou, mas cuja concepção foi por ele sistematizada, e cujo emprego ele desenvolveu. Tais são nomeadamente dois pares essenciais de fórmulas características: primeiro estático e dinâmico, em seguida objetivo e subjetivo, sem os quais minha exposição ficaria insuficiente. Quando estes termos são definidos com propriedade de uma vez por todas, sobretudo segundo uma acepção invariável, o judicioso emprego deles facilita muito as explicações filosóficas, em vez de as tornar menos inteligíveis. Não hesito em consagrar aqui expressões que a religião positiva deve fazer passar desde já na circulação universal, atenta à alta importância de seu uso intelectual e também moral. Levado, assim, a compor um verdadeiro catecismo para a religião da humanidade, tive, em primeiro lugar, que examinar sistematicamente a forma dialógica, sempre adotada em tais exposições. Não tardei em achar aí um novo exemplo do atilado instinto com que a sabedoria prática antecipa muitas vezes as sãs indicações da teoria. Tendo acabado de construir especialmente a teoria positiva da linguagem humana, senti logo que, devendo a expressão ter sempre por objeto final a comunicação, sua forma natural consiste no diálogo. E como, por outro lado, toda combinação, mesmo física, e sobretudo lógica, é binária, tal conversação não comporta, sob pena de ser confusa, senão um único interlocutor. O monólogo só pode realmente convir à concepção, cuja marcha ele se limita a formular, como se a pessoa pensasse em voz alta, sem cuidar de nenhum ouvinte. Quando o discurso não tem somente por fim assistir às investigações do raciocínio, mas dirigir a comunicação dos resultados deste, ele exige uma nova elaboração, especialmente adaptada a essa transmissão. É necessário, então, considerar o estado peculiar do ouvinte, e prever as modificações que semelhante exposição há de suscitar em sua marcha espontânea. Em uma palavra, a simples narrativa deve assim transformar-se numa verdadeira conversação. E nem as condições essenciais desta podem ser suficientemente preenchidas senão supondo um interlocutor único e claramente determinado. Se, porém, este tipo for bem escolhido, poderá ele, no uso ordinário do diálogo, representar suficientemente qualquer leitor; pois que, por outro lado, não é possível variar o modo de exposição segundo as diversas conveniências individuais, como no caso da verdadeira conversação. O discurso plenamente didático deveria, portanto, diferir essencialmente do simples discurso lógico, em que o pensador segue desimpedido sua própria marcha sem levar em nenhuma conta as condições naturais de uma comunicação qualquer. Todavia, a fim de evitar uma laboriosa refusão, limitamo-nos quase sempre a transmitir os pensamentos como eles foram a princípio concebidos, posto que este modo grosseiro de exposição muito contribua para a pouca eficácia da maior parte das leituras. A forma dialógica, peculiar a toda verdadeira comunicação, é reservada para explicar as concepções que são, ao mesmo tempo, assaz importantes e assaz amadurecidas. É por isso que o ensino religioso foi em todos os tempos efetuado por via de conversação e não de narrativa. Longe de denunciar uma incúria, que só seria desculpável nos casos secundários, esta forma, quando bem instituída, constitui, pelo contrário, o único modo de exposição verdadeiramente didático: convém igualmente a todas as inteligências. Mas as dificuldades próprias da nova elaboração que o dialogo exige fazem justamente que se desista dele nas comunicações ordinárias. Seria pueril procurar esta perfeição num ensino destituído de interesse fundamental. Por outro lado, esta transformação didática só é realizável em relação a doutrinas bastante elaboradas para permitir comparar nitidamente as diversas maneiras de expor o conjunto delas e prever com facilidade as objeções que elas hão de suscitar. Se eu houvesse de indicar aqui todos os princípios gerais que convêm à arte de comunicar, ainda caracterizaria o aperfeiçoamento relativo ao estilo. Dedicados sobretudo à expressão dos sentimentos, os poetas reconheceram sempre quanto os versos são para isso preferíveis à prosa, a fim de tornar mais estética a linguagem artificial, aproximando-a mais da linguagem natural. Ora, os mesmos motivos seriam também aplicáveis à comunicação dos pensamentos, se a esta se devesse ligar igual importância. A concisão do discurso e a assistência das imagens, duplo caráter essencial da verdadeira versificação, seriam tão adequados a aperfeiçoar a exposição como a efusão. Assim, a comunicação perfeita não exigiria tão somente a substituição do diálogo pelo monólogo, mas também a da prosa pelo verso. Todavia, este segundo melhoramento didático deve ainda ser mais excepcional que o primeiro, por causa dos novos cuidados que requer. Ele supõe, até, maior maturidade nas concepções correspondentes, não só no intérprete, mas também no auditório, tendo este de suprir logo, por um trabalho espontâneo, as lacunas da concisão poética. Por isso é que muitos poemas admiráveis ainda jazem escritos em prosa, apesar da imperfeição de semelhante forma, desculpável, então, por se tratar de um domínio muito pouco familiar. Um motivo análogo foi ainda maior impedimento para que se verificasse qualquer catecismo religioso. Mas a realidade e a espontaneidade que distinguem as crenças positivas permitirão um dia dotar sua exposição popular com este último aperfeiçoamento, quando elas começarem a se difundir assaz para comportarem uma concisão imaginosa. É só provisoriamente, portanto, que nos devemos limitar aí a substituir o monólogo pelo diálogo. Fundado nesta teoria especial da forma didática, fui levado não só a justificar o uso anterior, mas também a melhorá-lo no que se refere ao interlocutor. A indeterminação total do ouvinte tornava essencialmente vago o modo dialógico que assim até ficava quase ilusório. Tendo sistematizado a instituição empírica do diálogo, senti logo que ela ficaria incompleta, e, portanto, insuficiente, enquanto o interlocutor não fosse nele com clareza definido, ao menos para o autor. É só tendo em vista uma comunicação real, embora atualmente ideal, que se podem desenvolver bastante todas as vantagens essenciais de semelhante forma. Institui-se, então, uma verdadeira conversação, em vez de uma narrativa dialogada. Aplicando logo este princípio evidente, não podia eu deixar de espontaneamente escolher a angélica interlocutora que, após um único ano de influência objetiva, se acha, há mais de seis, subjetivamente associada a todos os meus pensamentos como a todos os meus sentimentos. Graças a ela tomei-me, enfim, para a humanidade um órgão verdadeiramente duplo, como todo aquele que experimentou de modo digno o ascendente feminino. Sem ela nunca eu teria podido fazer suceder ativamente a carreira de São Paulo à de Aristóteles, fundando a religião universal sobre a sã filosofia, depois de ter tirado esta da ciência real. A constante pureza de nosso laço excepcional e também a superioridade admirável do anjo menosprezado já são, aliás, assaz apreciadas pelas almas de elite. Quando, há quatro anos, por ocasião da publicação de meu Discurso sobre o Conjunto do Positivismo, revelei esta incomparável inspiração, ela não podia a princípio ser julgada senão pelos seus resultados intelectuais e morais, desde então manifestos aos corações simpáticos e aos espíritos sintéticos. Mas, no ano passado, o tríplice preâmbulo, que sempre distinguirá o primeiro tomo de meu Sistema de Política Positiva, fez com que cada um pudesse apreciar diretamente essa natureza egrégia. Por isso, em minha recente publicação do segundo volume desse mesmo tratado, pude já felicitar-me abertamente pela tocante unanimidade das simpatias decisivas que ambos os sexos sentem pela nova Beatriz. Estes três antecedentes públicos dissipam aqui qualquer hesitação acerca de minha santa interlocutora, bastante conhecida dos leitores dignamente preparados para que as nossas conferências possam na realidade lhes inspirar um interesse próprio e direto. Semelhante catecúmena preenche vantajosamente todas as condições essenciais do melhor tipo didático. Madame Clotilde de Vaux foi-me tão cedo arrebatada que, apesar de sua superioridade pessoal, ela não pôde ser bastante iniciada no positivismo, para o qual tendiam espontaneamente seus votos e seus esforços. Antes que a morte interrompesse de modo irrevogável esta afetuosa instrução, já a dor e os desgostos a haviam profundamente estorvado. Efetuando hoje subjetivamente a preparação sistemática que apenas pude esboçar objetivamente, a discípula angélica só me oferece, pois, as disposições essenciais que apresentam também a maioria das mulheres, e mesmo muitos proletários. Em todas essas almas que o positivismo ainda não atingiu, eu apenas suponho, como no caso de minha eterna companheira, um desejo profundo de conhecer a religião capaz de superar a anarquia moderna, e uma sincera veneração pelo seu sacerdote. Preferirei, até, os leitores que nenhuma cultura escolástica impeça de preencherem espontaneamente, no grau necessário, estas duas condições premas. Todos os que conhecem minha instituição geral dos verdadeiros anjos da guarda, já bastante explicada em minha Política Positiva, sabem, aliás, que o principal tipo feminino é aí habitualmente inseparável dos outros dois. Esta doce conexão aplica-se mesmo ao caso excepcional que me oferece reunidas, em minha casta companheira imortal, a mãe subjetiva que minha segunda vida pressupõe e a filha objetiva que estava destinada a embelezar minha existência temporária. Desde que a sua invariável reserva purificara suficientemente minha afeição até levantá-la ao nível da sua, eu não aspirava senão à união plenamente confessável que devia resultar de uma adoção legal, em harmonia com a desigualdade de nossas idades. Quando eu publicar nossa digna correspondência, minha última carta constatará diretamente este santo projeto, fora do qual nossas fatalidades respectivas nos teriam vedado o sossego e a felicidade. É pois, sem nenhum esforço, que vou aplicar neste catecismo os qualificativos pessoais impostos habitualmente pela instrução religiosa. O sacerdócio positivo exige, ainda mais do que o sacerdócio teológico, uma inteira maturidade, sobretudo em virtude de sua imensa preparação enciclopédica. Eis aí por que estabeleci a idade de quarenta e dois anos para a ordenação dos padres da humanidade, pois é então que finaliza todo o desenvolvimento corpóreo e cerebral, e termina, ao mesmo tempo, a primeira vida social. Os nomes pai e filha tomam-se, pois, especialmente apropriados entre o iniciador e a catecúmena, segundo a antiga etimologia do título sacerdotal. Empregando-os aqui, aproximo-me espontaneamente das relações pessoais em que eu teria vivido se não fosse nossa fatal catástrofe. Mas esta concentração da santa conferência no anjo preponderante não deve encobrir, nem ao leitor, nem a mim próprio, a constante participação tacitamente peculiar às minhas duas outras padroeiras. A venerável mãe e a nobre filha adotiva, cuja influência subjetiva e ação objetiva já fiz conhecer alhures, estarão aqui sempre presentes a meu coração quando meu espírito sofrer dignamente o impulso dominante. Inseparáveis daqui por diante, este três anjos se acham de tal modo ligados a mim que o concurso contínuo deles acaba de sugerir, ao eminente artista de que o positivismo se honra hoje, uma admirável inspiração estética que converteu um simples retrato num quadro profundo. Instituindo, assim, a conversação didática, facilito tanto meu trabalho como o do leitor. Porquanto semelhante exposição pública aproxima-se muito das explicações privadas que naturalmente me teria pedido a minha santa companheira, se nossa união objetiva se houvesse prolongado mais, como já o prova minha carta filosófica sobre o casamento. A própria estação do ano em que efetuo esta grata elaboração recorda-me especialmente os desejos espontâneos de iniciação metódica que ela manifestou no decurso do nosso ano incomparável. Basta, pois, transportar-me há sete anos para conceber objetivamente o que hoje devo desenvolver subjetivamente, atribuindo a 1852 minha situação de 1845. Mas esta transposição forçada proporciona-me a preciosa compensação de fazer apreciar melhor o ascendente angélico que não posso assaz caracterizar senão combinando dois admiráveis versos, respectivamente destinados a Beatriz e a Laura: Quella che'mparadisa la mia mente (Aquela que emparaísa minha mente) Ogni basso pensier dal cor m'avulse. (Que me arranca do coração todo pensamento baixo) Esta tardia realização de uma iniciação afetuosa torna-a, por outro lado, mais de acordo com as disposições paternais que finalmente prevaleceram em relação àquela que sempre me será associada como discípula e colega ao mesmo tempo. Sua idade tendo-se tornado fixa, segundo a lei geral da vida subjetiva, é excedida cada vez mais pela minha, a ponto de já não me permitir senão imagens filiais. Esta continuidade mais perfeita de nossa dupla existência aperfeiçoa também a harmonia total de minha própria natureza. Explicando assim a constituição positiva da unidade humana, eu desenvolvo e consolido a ligação fundamental entre minha vida privada e minha vida pública. A reação filosófica devida ao anjo inspirador torna-se então tão completa e tão direta quanto pode ser, e, por consequência, plenamente irrecusável aos olhos de todos. Ouso, portanto, esperar que, para testemunhar minha justa gratidão, a condigna assistência das almas seletas suprirá em breve a profunda inópia que sinto no meio de minhas melhores efusões cotidianas, como Dante em relação à sua suave padroeira: Non è l'affezion mia tanto profonda. Che basti a render voi grazia per grazia. (A minha afeição não é tão profunda / que baste para vos retribuir graça por graça) Este reconhecimento público, porém, deve aqui estender-se, tanto quanto o meu próprio, aos outros dois anjos que completam meu principal impulso feminino. Por mais remota que seja, infelizmente para mim, a imponente recordação do perfeito catolicismo que dominou minha nobre e terna mãe, ela me impulsionará sempre a fazer prevalecer, melhor do que na minha mocidade, a cultura contínua do sentimento sobre a da inteligência, e mesmo sobre a da atividade. Por outro lado, se a apreciação demasiado exclusiva dos fundamentos privados, que as verdadeiras virtudes públicas exigem, pudesse arrastar-me aqui a desconhecer a importância própria e direta da moralidade cívica, eu logo retificaria meu desvio, graças à admirável sociabilidade de minha terceira padroeira. Empreendo, pois, este trabalho excepcional sob a assistência especial de todos os meus anjos, embora a cooperação de dois deles tenha que permanecer muda, sem que isso altere seus títulos pessoais à veneração universal. Apreciada sob um aspecto mais geral, esta instituição didática tende diretamente a caracterizar de modo profundo a religião correspondente; porquanto ela faz sobressair espontaneamente a natureza fundamental do regime positivo, o qual, destinado sobretudo a disciplinar sistematicamente todas as forças humanas, baseia-se principalmente no concurso contínuo do sentimento com a razão para regular a atividade. Ora, esta série de conversações representa sempre o coração e o espírito concertando-se religiosamente a fim de moralizarem o poder material a que o mundo real se acha necessariamente submetido. A mulher e o sacerdote constituem, de fato, os dois elementos essenciais do verdadeiro poder moderador, ao mesmo tempo doméstico e cívico. Organizando esta santa coligação social, cada elemento procede aqui de acordo com a sua genuína natureza: o coração propõe as questões que o espírito resolve. Assim, a própria composição deste catecismo logo indica a principal concepção do positivismo: o homem pensando sob a inspiração da mulher, para fazer sempre concorrer a síntese com a simpatia, a fim de regularizar a sinergia. Em virtude de semelhante instituição do novo ensino religioso, dirige-se ele de preferência ao sexo afetivo. Esta predileção, já conforme ao verdadeiro espírito do regime final, convém sobretudo à transição extrema, em que todas as influências peculiares ao estado normal devem sempre funcionar com mais intensidade, porém menos regularmente. Posto que eu creia que este opúsculo decisivo há de ter em breve um grande acolhimento entre os dignos proletários, ele convém mais às mulheres, principalmente às mulheres iletradas. Só elas podem compreender assaz a preponderância que merece a cultura habitual do coração, tão comprimida pela grosseira atividade, teórica e prática, que domina o Ocidente moderno. E só no santuário da alma feminina que se pode hoje encontrar a digna submissão de espírito exigida por uma regeneração sistemática. Nestes últimos quatro anos, um deplorável exercício do sufrágio universal tem viciado profundamente a razão popular, até então preservada dos sofismas constitucionais e dos conluios parlamentares, concentrados nos ricos e nos letrados. Dando largas a um obcecado orgulho, nossos proletários acreditaram-se, assim, dispensados de todo estudo sério para decidir as mais elevadas questões sociais. Conquanto esta degeneração seja muito menor entre os ocidentais do Meio-Dia, que a resistência católica abrigou contra a metafísica protestante ou deísta, também começa a ser aí muito propagada por leituras negativas. Por toda parte vejo que só as mulheres podem oferecer-me, em virtude de sua salutar exclusão política, um ponto de apoio capaz de fazer prevalecer livremente os princípios que hão de habilitar, enfim, os proletários a colocar bem sua confiança teórica e prática. A profunda anarquia das inteligências motiva, por outro lado, este apelo especial da religião positiva ao sexo afetivo, pois que essa anarquia torna mais necessário do que nunca o predomínio do sentimento que atualmente é o único preservativo da sociedade ocidental contra uma completa e irremediável dissolução. Desde o fim da Idade Média, é só a intervenção feminina que secretamente refreia os estragos morais peculiares à alienação mental para a qual tem tendido cada vez mais o Ocidente, e sobretudo seu centro francês. Este delírio crônico tendo chegado ao seu auge, visto que nenhuma máxima social consegue superar uma discussão corrosiva, só os sentimentos é que sustentam a ordem ocidental. Mas estes mesmos já se acham muito alterados por causa das reações sofísticas, sempre favoráveis aos instintos pessoais, aliás mais enérgicos. Dos três pendores simpáticos que caracterizam nossa verdadeira constituição cerebral, os dois extremos estão muito enfraquecidos, e o médio quase extinto na maior parte dos homens que hoje tomam parte ativa na agitação ocidental. Quando se peneira no seio das famílias atuais é que se vê quanto o apego está debilitado nas relações que o devem desenvolver melhor. Quanto à bondade geral, tão preconizada hoje, ela indica mais o ódio contra os ricos do que o amor pelos pobres, porquanto a filantropia moderna exprime muitas vezes uma pretendida benevolência com as formas peculiares à sanha ou à inveja. Mas o mais usual dos três instintos sociais, por ser aquele que oferece a única base direta de toda verdadeira disciplina humana, a veneração, acha-se ainda mais alterado que os outros dois. Esta degeneração, sensível sobretudo entre os letrados e os ricos, lavra também entre os proletários, a menos que uma judiciosa indiferença não os afaste do movimento político. A veneração pode, entretanto, persistir no meio dos maiores extravios revolucionários, contra os quais ela ministra espontaneamente o melhor corretivo. Disso tive eu mesmo a prova outrora durante a fase profundamente negativa que devia preceder meu desenvolvimento sistemático. Nessa época eu só fui preservado de uma desmoralização sofística pelo entusiasmo, conquanto este me expusesse especialmente às seduções passageiras de um charlatão superficial e depravado. A veneração constitui hoje o sinal decisivo que caracteriza os revolucionários suscetíveis de uma verdadeira regeneração, por mais atrasada que ainda tenham a inteligência, sobretudo entre os comunistas iletrados. Mas, apesar de este precioso sintoma se verificar agora na imensa maioria dos negativistas, ele falta com certeza à maior parte dos seus chefes, no meio de uma anarquia que faz prevalecer temporariamente por toda parte as naturezas más. Apesar de seu pequeno número, estes homens verdadeiramente indisciplináveis exercem uma vasta influência, que predispõe à fermentação subversiva todos os cérebros desprovidos de convicções inabaláveis. Contra esta peste ocidental não pode existir agora outro recurso habitual senão o desprezo das populações ou a severidade dos governos. Mas à única doutrina que há de regularizar esta dupla garantia não é dado, no princípio, comportar outro apoio decisivo senão o sentimento feminino, em breve assistido pela razão proletária. Sem a digna intervenção do sexo afetivo, a disciplina positiva não conseguiria rechaçar para as últimas fileiras esses pretendidos pensadores que decidem peremptoriamente em sociologia conquanto ignorem a aritmética. De fato, o povo, partilhando ainda a muitos respeitos os vícios principais de tais chefes, conserva-se até agora incapaz de coadjuvar o novo sacerdócio contra esses faladores perigosos. Pelo menos, não posso esperar desde logo um concurso coletivo senão por parte dos proletários que se têm conservado alheios aos nossos debates políticos, posto que espontaneamente apegados, como as próprias mulheres, ao fito social da grande revolução. Tal é o duplo meio preparado para este catecismo. Afora os motivos gerais que devem aqui dirigir para as mulheres minha principal solicitude, há muito que fui levado a pensar que delas depende sobretudo o advento decisivo de solução ocidental indicada pelo conjunto do passado. Em primeiro lugar, seria absurdo pretender pôr termo sem elas à mais completa das revoluções humanas, quando é sabido que as mulheres contribuíram profundamente para todas as renovações anteriores. A repugnância instintiva que elas sentem pelo movimento moderno bastaria para torná-lo estéril, se realmente tal repulsão fosse invencível. É daí que decorre, no fundo, a singular e funesta anomalia que impõe chefes retrógrados a populações progressivas, como se ao idiotismo e à hipocrisia competisse subministrar as garantias oficiais da ordem ocidental. Só depois que houver assaz vencido estas resistências femininas é que a religião positiva poderá desenvolver suficientemente, contra os principais partidários das várias doutrinas atrasadas, a reprovação decisiva que merece a inferioridade mental e moral deles. Os que negam hoje a existência natural dos afetos desinteressados tornam-se justamente suspeitos de só repelir neste ponto as demonstrações da ciência moderna por causa da imperfeição radical de seus próprios sentimentos. Não perseguindo o mínimo bem senão sob o engodo de uma recompensa infinita, ou pelo temor de um suplício eterno, o seu coração mostra-se tão degradado quanto evidentemente está o seu espírito, visto o absurdo de suas crenças. Entretanto, a adesão tácita das mulheres confia ainda a direção oficial do Ocidente àqueles que por tais características serão avisadamente excluídos de toda função superior, quando o positivismo houver sistematizado condignamente a razão pública. A religião da humanidade, porém, privará em breve a retrogradação deste apoio augusto, que só um justo horror da anarquia lhe conserva. Com efeito, apesar de prevenções empíricas, as mulheres acham-se muito dispostas para bem apreciar a única doutrina que pode hoje conciliar radicalmente a ordem com o progresso. Elas hão de reconhecer sobretudo que esta síntese final, posto que abrangendo todas as faces de nossa existência, faz prevalecer melhor o sentimento do que a síntese provisória, que a ele sacrificava a inteligência e a atividade. Nossa filosofia torna-se plenamente conforme ao espírito feminino, rematando a escala enciclopédica com a moral, que, como ciência e como arte, constitui necessariamente o estudo mais importante e mais difícil, resumindo e dominando todos os outros. Desenvolvendo, enfim, o sentimento cavalheiresco, comprimido outrora pelos conflitos teológicos, o culto positivo erige o sexo afetivo como providência moral de nossa espécie. Cada digna mulher ministra habitualmente a esse culto a melhor representação do verdadeiro Grande Ser. Sistematizando a família, como base normal da sociedade, o regime correspondente faz dignamente prevalecer naquela a influência feminina, transformada, enfim, em supremo árbitro privado da educação universal. Por todos estes títulos, a verdadeira religião será plenamente apreciada pelas mulheres, logo que elas reconhecerem suficientemente os principais caracteres que a distinguem. Aquelas mesmo que a princípio deplorarem a perda de esperanças quiméricas não tardarão em sentir a superioridade moral de nossa imortalidade subjetiva, cuja natureza é profundamente altruísta, sobre a antiga imortalidade objetiva, que não podia deixar de ser radicalmente egoísta. A lei da viuvez eterna, que caracteriza o casamento positivista, bastaria para instituir a este respeito um contraste decisivo. A fim de incorporar melhor as mulheres à revolução ocidental, cumpre conceber a última fase desta como devendo oferecer-lhes um profundo interesse especial, diretamente relativo ao próprio destino delas. As quatro grandes classes que compõem o fundo da sociedade moderna tiveram que sofrer sucessivamente o abalo radical que a sua regeneração definitiva primeiro exigia. Esse abalo começou, no último século, pelo desenvolvimento intelectual, instituindo, enfim, uma insurreição decisiva contra o conjunto do regime teológico e militar. A explosão temporal que devia seguir-se surgiu em breve de uma burguesia que, desde muito, aspirava cada vez mais a substituir a nobreza. Mas a resistência europeia desta não pôde ser vencida senão chamando-se os proletários franceses em auxilio de seus novos chefes temporais. Assim introduzido na grande luta política, o proletário ocidental ergueu irresistíveis pretensões à sua justa incorporação na ordem moderna, quando a paz lhe permitiu uma suficiente manifestação de suas próprias aspirações. Todavia, este encadeamento revolucionário não abrange ainda o elemento mais fundamental do verdadeiro regime humano. A revolução feminina deve agora completar a revolução proletária, como esta consolidou a revolução burguesa, dimanada a princípio da revolução filosófica. Só então é que o abalo moderno terá verdadeiramente preparado todas as bases essenciais da regeneração final. Enquanto ele não se estender às mulheres, não conseguirá senão prolongar nossas deploráveis oscilações entre a retrogradação e a anarquia. Mas este complemento decisivo resulta mais naturalmente do conjunto das fases anteriores do que qualquer destas da precedente. Ele liga-se sobretudo à revolução popular, em virtude da evidente solidariedade que subordina a incorporação social do proletariado à digna isenção da mulher de todo trabalho exterior. Sem esta emancipação universal, complemento necessário da abolição da servidão, a família proletária não poderá ser realmente constituída, pois que a existência feminina fica, assim, habitualmente entregue a uma horrível alternativa entre a miséria e a prostituição. O melhor resumo prático de todo o programa moderno breve consistirá neste princípio incontestável: O homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu santo destino social. Espero que este catecismo faça apreciar a íntima conexão que existe entre esta condição e o conjunto da grande renovação considerada sob todos os seus aspectos: moral, mental e mesmo material. Sob a santa reação da revolução feminina, a revolução proletária purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que até aqui a têm neutralizado. O sexo afetivo, tendendo a fazer justamente prevalecer por toda parte a influência moral, reprova especialmente as brutalidades coletivas, e ainda suporta menos o jugo do número que o da riqueza. Mas seu latente impulso social produzirá em breve modificações não menos preciosas, posto que mais indiretas, relativamente às outras duas faces da revolução ocidental. Ele secundará o advento político do patriciado industrial e do sacerdócio positivo, dispondo-os a se desprenderem irrevogavelmente das classes heterogêneas e efêmeras que dirigirão a transição negativa. Por este modo completada e purificada, a revolução ocidental há de tender firme e sistematicamente para o seu pacífico termo, sob a direção geral dos verdadeiros servidores da humanidade. O impulso orgânico e progressivo afastará, onde quer que estejam, os retrógrados e anarquistas, tratando todo prolongamento do estado teológico ou metafísico como uma enfermidade cerebral que inabilita para o governo. Tais são as condições essenciais que representam a composição deste catecismo como cabalmente acomodada ao seu objeto principal, atual ou permanente. Quando a religião positiva houver suficientemente prevalecido, este opúsculo tornar-se-á o seu melhor resumo usual. Agora deve ele servir, a título de apanhado geral, para preparar o livre advento dela, por meio de uma propagação decisiva, que até hoje carecia de um guia sistemático. O conjunto desta construção episódica caracteriza, por sua própria forma e marcha, todos os grandes atributos, intelectuais e morais, da nova fé. Sempre há de sentir-se aqui uma digna subordinação da razão masculina ao sentimento feminino, a fim de que o coração aplique todas as forças do espírito ao ensino difícil e importante. A reação final deste opúsculo deve, pois, fazer respeitar, e até compartilhar, meu culto íntimo pelo anjo incomparável de onde procedem, ao mesmo tempo, as inspirações principais e a melhor exposição delas. Depois de tais serviços, minha santa interlocutora não tardará em tornar-se cara a todas as almas verdadeiramente regeneradas. Sua própria glorificação, doravante inseparável da minha, constituirá minha mais preciosa recompensa. Irrevogavelmente incorporada ao verdadeiro Ser supremo, sua terna imagem ministra-me, aos olhos de todos, a melhor personificação dele. Em cada uma das minhas três orações cotidianas, esta dupla adoração resume todos os meus votos de aperfeiçoamento íntimo no admirável anelo em que o mais sublime dos místicos preparava, a seu modo, a máxima moral do positivismo: Viver para outrem. Amem te plus quam me, nec me nisi propter te! (Ame-te a ti mais do que a mim, e não me ame a mim senão por amor de ti!) Auguste Comte Fundador da Religião da Humanidade Paris, 25 de Carlos Magno de 64 (domingo, 11 de julho de 1852). P. S. Para aumentar a utilidade deste catecismo, ajunto a seu prefácio uma edição melhorada do breve catálogo que publiquei em 8 de outubro de 1851, a fim de dirigir os bons espíritos populares na escolha de seus livros habituais. Semelhante ofício só podia dimanar hoje do sacerdócio positivo, em virtude de seu caráter enciclopédico, que assim se torna mais apreciável. Os estragos intelectuais e morais que por toda parte exercem as leituras desordenadas devem hoje indicar assaz a importância crescente deste trabalhinho sintético. Posto que tal coleção não tenha sido ainda formada, pode cada um reunir facilmente desde já, sob qualquer forma, os seus diversos elementos? BIBLIOTECA POSITIVISTA NO SÉCULO XIX CENTO E CINQUENTA VOLUMES 1º - POESIA (TRINTA VOLUMES) A Ilíada e a Odisseia, reunidas em um só volume, sem anotações. Ésquilo, seguido do Édipo Rei, de Sófocles, e Aristófanes, idem. Píndaro e Teócrito, seguidos de Dáfnis e Cloe, idem. Plauto e Terêncio, idem. Virgílio completo, Horácio escolhido e Lucano, idem. Ovídio, Tibulo, e Juvenal, idem. Os Fabliaux da Idade Média, coligidos por Legrand d'Aussy. Dante, Ariosto, Tasso e Petrarca escolhido, reunidos num único volume, em italiano. Os Teatros escolhidos de Metastásio e Alfieri, idem. Os Noivos, por Manzoni (um único volume, em italiano). O Dom Quixote e as Novelas de Cervantes (num mesmo volume em espanhol). O Teatro Espanhol escolhido, coleção editada por Dom José Segundo Flores (um volume em espanhol). O Romanceiro Espanhol escolhido, compreendendo o Poema do Cid (um volume em espanhol). O Teatro escolhido de Pierre Corneille. Molière completo. Os Teatros escolhidos de Racine e Voltaire (reunidos num só volume). As Fábulas de La Fontaine seguidas de algumas fábulas de Lamotte e Florian. Gil Blas, por Lesage. A Princesa de Clèves, Paulo e Virgínia, e o Ultimo Abencerrage (reunidos num só volume). Os Mártires, por Chateaubriand. O Teatro escolhido de Shakespeare. O Paraíso Perdido e as Poesias Líricas de Milton. Robinson Crusoé e O Vigário de Wakefield (reunidos num só volume). Tom Jones, por Fielding (em inglês, ou traduzido por Chéron). As sete obras-primas de Walter Seott: Ivanhoe, Waverley, A Formosa Donzela de Perth, O Oficial de Fortuna (Legenda de Montrose), Os Puritanos (Old Mortality), A Prisão de Edimburgo (Heari of Midlothian), O Antiquário. As obras escolhidas de Byron (suprimindo nomeadamente o Don Juan). As obras escolhidas de Goethe. As Mil e Uma Noites. 2° - CIÊNCIA (TRINTA VOLUMES) A Aritmética de Condorcet, a Álgebra e a Geometria de Clairaut, e mais a Trigonometria de Lacroix ou Legendre (num só volume). A Geometria Analítica de Auguste Comte, precedida da Geometria de Descartes. A Estática de Poinsot, seguida de todas as memórias do mesmo autor sobre mecânica. O Curso de Analise de Navier na Escola Politécnica, precedido das Reflexões sobre o Cálculo Infinitesimal, por Carnot. O Curso de Mecânica de Navier na Escola Politécnica, seguido do Ensaio sobre o Equilíbrio e o Movimento, por Carnot. A Teoria das Funções, por Lagrange. A Astronomia Popular de Auguste Comte, seguida dos Mundos de Fontenelle. A Física Mecânica de Fischer, traduzida e anotada por Biot. O Manual Alfabético de Filosofia Prática, por John Carr. A Química de Lavoisier. A Estática Química, por Berthollet. Os Elementos de Química, por Graham. O Manual de Anatomia, por Meckel. A Anatomia Geral de Bichat, precedida do seu Tratado sobre a Vida e a Morte. O primeiro (e único) volume de Blainville sobre a Organização dos Animais. A Fisiologia de Richerand, anotada por Bérard, O Ensaio Sistemático sobre a Biologia, por Segond, e o Tratado de Anatomia Geral do mesmo autor. Os Novos Elementos da Ciência do Homem, por Barthez (2a edição, 1806). A Filosofia Zoológica, por Lamarck. A História Natural de Duméril, O Tratado sobre a Natureza dos Rios, por Guglielmini (em italiano). Os Discursos sobre a Natureza dos Animais, por Buffon. A Arte de Prolongar a Vida Humana, por Hufeland, precedida do Tratado sobre os Ares, as Águas, e as Localidades, por Hipócrates, e seguida do livro de Cornaro Sobre a Sobriedade (reunidos num único volume). A História das Flegmasias Crônicas, por Broussais, precedida de suas Proposições de Medicina, e, em primeiro lugar, dos Aforismos de Hipócrates (em latim), sem nenhum comentário. Os Elogios dos Cientistas, por Fontenelle e Condorcet. 3° - HISTÓRIA (SESSENTA VOLUMES) O Resumo de Geografia Universal, por Malte-Brun. O Dicionário Geográfico de Rienzi. As Viagens de Cook e as de Chardin. A História da Revolução Francesa, por Mignet. O Manual da História Moderna, por Heeren. O Século de Luís XIV, por Volta ire. As Memórias de Madame de Motteville. O Testamento Político de Richelieu e a Vida de Cromwell (num só volume). A História das Guerras Civis de França, por Davila (em italiano). As Memórias de Benvenuto Cellini (em italiano). As Memórias de Comines. O Resumo da História de França, por Bossuet. As Revoluções de Itália, por Denina. Compêndio da História de Espanha, por Ascargota. A História de Carlos V de Robertson. A História de Inglaterra, por Hume. A Europa durante a Idade Média, por Hallam. A História Eclesiástica, por Fleury. A História da Decadência Romana, por Gibbon. O Manual da História Antiga, por Heeren. Tácito completo (traduzido por Dureau de La Malle). Heródoto e Tucídides (num só volume). As vidas de Plutarco (traduzidas por Dacier). Os Comentários de César e as Expedições de Alexandre, por Arriano (num só volume). A Viagem de Anacdrsis, por Barthélemy. A História da Arte entre os Antigos, por Winckelmann. O Tratado da Pintura, por Leonardo da Vinci (em italiano). As Memórias sobre a Música, por Grétry. Filosofia, Moral e Religião 4° - SÍNTESE (TRINTA VOLUMES) A Política e a Moral de Aristóteles (num só volume). A Bíblia completa. O Alcorão completo. A. Cidade de Deus, por Santo Agostinho. As Confissões do mesmo, seguidas do Tratado sobre o Amor de Deus, por São Bernardo. A Imitação de Jesus Cristo (o original latino com a tradução em versos de Corneille). O Catecismo de Montpellier, precedido da Exposição da Doutrina Católica, por Bossuet, e seguido do Comentário sobre o Sermão de Jesus Cristo, por Santo Agostinho. A História das Variações Protestantes, por Bossuet. O Discurso sobre o Método, por Descartes, precedido do Novum Organum, de Bacon, e seguido da Interpretação da Natureza, por Diderot. Os Pensamentos escolhidos de Cícero, Epicteto, Marco Aurélio, Pascal e Vauvenargues, seguidos dos Conselhos de uma Mãe, por Madame de Lambert, e das Considerações sobre os Costumes, por Duelos. O Discurso sobre a História Universal, por Bossuet, seguido do Bosquejo Histórico, por Condorcet. O Tratado do Papa, por De Maistre, precedido da Política Sagrada, por Bossuet. Os Ensaios Filosóficos de Hume, precedidos da dupla Dissertação sobre os Surdos e os Cegos, por Diderot, e seguidos do Ensaio sobre a História da Astronomia, por Adam Smith. A Teoria do Belo, por Barthez, precedida do Ensaio sobre o Belo, por Diderot. As Relações entre o Físico e o Moral do Homem, por Cabanis. O tratado sobre as Funções do Cérebro, por Gall, precedido das Cartas sobre os Animais, por Georges Leroy. O tratado sobre a Irritação e a Loucura, por Broussais (1 edição). A Filosofia Positiva de Auguste Comte (condensada por Miss Martineau), sua Política Positiva, seu Catecismo Positivista e sua Síntese Subjetiva. AUGUSTO COMTE (10, rua Monsieur-le-Prince) Paris, 24 de Guttemberg de 64 (sábado, 4 de setembro de 1852). INTRODUÇÃO PRIMEIRA CONFERÊNCIA TEORIA GERAL DA RELIGIÃO A MULHER - Muitas vezes tenho perguntado a mim mesma, meu caro pai, por que razão persistis em qualificar de religião vossa doutrina universal, conquanto ela rejeite toda crença sobrenatural. Refletindo, porém, sobre isso, considerei que esse título aplica-se em comum a muitos sistemas diferentes, e até incompatíveis, cada um dos quais o toma para si exclusivamente, sem que nenhum deles tenha nunca deixado de contar, na totalidade de nossa espécie, mais adversários do que adeptos. Isto me levou a pensar que esse termo fundamental deve ter uma acepção geral, que independa radicalmente de toda fé especial. Desde então, presumi que, atendo-vos a esse significado essencial, podíeis chamar assim ao positivismo, apesar de seu contraste mais profundo com as doutrinas anteriores, que proclamam suas dissidências mútuas como não menos graves que as suas concordâncias. Todavia, parecendo-me esta explicação ainda confusa, rogo-vos que comeceis vossa exposição por um esclarecimento direto e preciso acerca do sentido radical da palavra religião. O SACERDOTE - Este nome, minha querida filha, não apresenta, de fato, pela sua etimologia, nenhuma solidariedade necessária com as opiniões quaisquer que possam ser empregadas para atingir o fim que ele designa. Em si mesmo, este vocábulo indica o estado de completa unidade que distingue nossa existência, a um tempo pessoal e social, quando todas as suas partes, tanto morais como físicas, convergem habitualmente para um destino comum. Assim, este termo seria equivalente à palavra síntese, se esta não estivesse, não por sua própria estrutura, mas segundo um uso quase universal, limitada agora só ao domínio do espírito, ao passo que a outra compreende o conjunto dos atributos humanos. A religião consiste, pois, em regular cada natureza individual e em congregar todas as individualidades; o que constitui apenas dois casos distintos de um problema único. Porquanto todo homem difere sucessivamente de si mesmo tanto quanto difere simultaneamente dos outros; de maneira que a fixidez e a comunidade seguem leis idênticas. Não podendo semelhante harmonia, individual ou coletiva, realizar-se nunca plenamente em uma existência tão complicada como a nossa, esta definição da religião caracteriza, portanto, o tipo imutável para o qual tende cada vez mais o conjunto dos esforços humanos. Nossa felicidade e nosso mérito consistem sobretudo em nos aproximarmos tanto quanto possível dessa unidade, cujo surto gradual constitui a melhor medida do verdadeiro aperfeiçoamento, pessoal ou social. Quanto mais se desenvolvem os diversos atributos humanos, tanto mais importância adquire o concurso habitual deles; este, porém, se tornaria também mais difícil, se essa evolução não tendesse espontaneamente a tornar-nos mais disciplináveis, como breve vo-lo explicarei. O apreço que sempre se ligou a esse estado sintético devia concentrar a atenção sobre o modo de instituí-lo. Foi-se assim levado, tomando o meio pelo fim, a transferir o nome religião ao sistema qualquer das opiniões correspondentes. Por mais inconciliáveis, porém, que pareçam, à primeira vista, essas numerosas crenças, o positivismo as combina essencialmente, referindo cada uma ao seu destino temporário e local. Não existe, no fundo, senão uma única religião, ao mesmo tempo universal e definitiva, para a qual tenderam cada vez mais as sínteses parciais e provisórias, tanto quanto o comportavam as respectivas situações. A esses diversos esforços empíricos sucede agora o desenvolvimento sistemático da unidade humana, cuja constituição direta e completa tornou-se, enfim, possível graças ao conjunto de nossas preparações espontâneas. É assim que o positivismo dissipa naturalmente o antagonismo mútuo das diferentes religiões anteriores, formando seu domínio próprio do fundo comum a que todas se reportaram de modo instintivo. A sua doutrina não poderia tornar-se universal se, apesar de seus princípios antiteológicos, o seu espírito relativo não lhe ministrasse necessariamente afinidades essenciais com cada crença capaz de dirigir passageiramente uma porção qualquer da humanidade. A MULHER - Vossa definição da religião me satisfará de todo, meu pai, se vos for possível esclarecer suficientemente a grave dificuldade que me parece resultar de sua excessiva extensão. Porquanto, caracterizando nossa unidade, vós incluís nela tanto o físico como o moral. Com efeito, eles estão de tal maneira unidos que uma perfeita harmonia não pode nunca estabelecer-se quando se quer separá-los. Contudo, não poderia habituar-me a fazer entrar a saúde na religião, de modo a prolongar até a medicina o verdadeiro domínio da moral. O SACERDOTE - Entretanto, minha filha, o cisma arbitrário que desejais manter seria diretamente contrário à nossa unidade. Tal divórcio só é realmente devido à insuficiência da última religião provisória, que não pode disciplinar a alma senão abandonando aos profanos o domínio do corpo. Nas antigas teocracias, que constituíram o modo mais completo e mais duradouro do regime sobrenatural, esta vã divisão não existia; a arte higiênica e médica foi sempre aí um simples anexo do sacerdócio. Tal é, com efeito, a ordem natural, que o positivismo vem restabelecer e consolidar em virtude de sua plenitude característica. A arte humana e a ciência humana são respectivamente indivisíveis, como os diversos aspectos peculiares ao destino comum de ambas (o homem), no qual tudo se acha constantemente ligado. Não se pode mais tratar bem nem do corpo nem da alma, por isso mesmo que o médico e o padre estudam exclusivamente o físico ou o moral; sem falar do filósofo que, durante a anarquia moderna, arrebata ao sacerdócio o domínio do espírito, deixando-lhe o do coração. As moléstias cerebrais, e mesmo muitas outras, aí estão mostrando todos os dias a impotência de toda medicação restrita aos órgãos mais grosseiros. Não é menos fácil reconhecer a insuficiência de todo sacerdócio que quiser dirigir a alma desprezando sua subordinação ao corpo. Esta separação duas vezes anárquica deve, pois, cessar irrevogavelmente mediante uma sábia reintegração da medicina no domínio sacerdotal, quando o clero positivo houver preenchido suficientemente suas condições enciclopédicas. O ponto de vista moral é, com efeito, o único próprio para fazer prevalecer ativamente prescrições higiênicas, tanto privadas como públicas. Isto verifica-se facilmente pelo vãos esforços dos médicos ocidentais para regular nossa alimentação habitual, desde que ela não é mais dirigida pelos antigos preceitos religiosos. Nenhuma prática incômoda pode ser ordinariamente aceita em nome só da saúde pessoal, que deixa cada um juiz de si mesmo: porquanto amiúde os inconvenientes atuais e certos nos abalam mais do que as vantagens remotas e duvidosas. É necessário invocar uma autoridade superior a toda individualidade, para impor, mesmo nos casos mínimos, regras verdadeiramente eficazes, fundadas, então, sobre uma apreciação social que jamais comporta indecisões. A MULHER - Depois de ter assim reconhecido, em toda a sua plenitude, o domínio natural da religião, eu quisera saber, meu pai, em que consistem as condições gerais dela. Frequentes vezes ela se me tem representado como dependendo unicamente do coração. Sempre pensei, porém, que o espírito aí também concorre. Poderei compreender claramente as suas atribuições respectivas? O SACERDOTE - Essa apreciação resulta, minha filha, de um exame aprofundado da palavra religião, talvez o mais bem-composto de todos os termos humanos. Ele é construído de maneira a caracterizar uma dupla ligação, cuja noção exata basta para resumir toda a teoria abstrata de nossa unidade. Com efeito, a fim de constituir uma harmonia completa e duradoura, é preciso ligar o interior pelo amor e o religar ao exterior pela fé. Tais são, em geral, as participações necessárias do coração e do espírito nesse estado sintético, individual ou coletivo. A unidade supõe, antes de tudo, um sentimento ao qual se possam subordinar os nossos vários pendores. Porquanto as nossas ações e os nossos pensamentos sendo sempre dirigidos pelos nossos afetos, a harmonia humana ficaria impossível se estes não fossem coordenados sob um instinto preponderante. Mas esta condição interior da unidade não bastaria se a inteligência não nos fizesse reconhecer, fora de nós, uma potência superior a que a nossa existência deve sempre submeter-se, mesmo quando a modifica. É a fim de melhor sofrermos esse império supremo que a nossa harmonia moral, individual ou coletiva, se torna sobretudo indispensável. Reciprocamente, essa preponderância do exterior tende a regular o interior, favorecendo o ascendente do instinto mais conciliável com semelhante necessidade. Assim, as duas condições gerais da religião são naturalmente conexas, sobretudo quando a ordem exterior pode tornar-se o objeto do sentimento interior. A MULHER - Nesta teoria abstrata de nossa unidade, depara-se-me, meu pai, uma dificuldade radical no tocante à influência moral. Considerando a harmonia interior, parece-me que esqueceis que os nossos instintos pessoais são infelizmente mais enérgicos que os nossos pendores simpáticos. Ora, o predomínio dos primeiros, que parece dever erigi-los em centros naturais de toda a existência moral, tornaria, por outro lado, a unidade pessoal quase incompatível com a unidade social. Mas, como, apesar disto, estas duas harmonias foram conciliadas, necessito que um novo esclarecimento mas mostre, enfim, como plenamente compatíveis. O SACERDOTE - Propus estes assim diretamente, minha filha, o principal problema humano, que consiste, de fato, em fazer gradualmente prevalecer a sociabilidade sobre a personalidade, sem embargo de ser esta espontaneamente preponderante. Para que possais compreender melhor a possibilidade disso, é necessário, em primeiro lugar, que compareis os dois modos opostos que a unidade moral parece naturalmente comportar, conforme essa base interior seja egoísta ou altruísta. As expressões múltiplas que acabais de empregar, referindo-vos à personalidade, atestam involuntariamente a impotência radical do egoísmo para constituir qualquer harmonia real e duradoura, mesmo num ente isolado. Porque esta monstruosa unidade não exigiria somente a ausência de todo impulso simpático, mas também o predomínio de um único egoísmo. Ora, isso não existe senão nos últimos animais, onde tudo se refere ao instinto nutritivo, sobretudo quando os sexos não estão separados. Em todos os demais casos, porém, e principalmente em nossa espécie, a satisfação dessa necessidade fundamental deixa sucessivamente prevalecer vários outros pendores pessoais, cujas energias quase iguais anulariam as opostas pretensões de cada um dos mesmos a dominar o conjunto da existência moral. Se todos eles não se subordinassem a afetos exteriores, o coração estaria sem cessar agitado por conflitos íntimos entre os impulsos sensuais e os estímulos do orgulho ou da vaidade etc., quando a cobiça propriamente dita deixasse de reinar com as necessidades puramente corporais. A unidade moral é, pois, impossível, mesmo na existência solitária, em todo ente exclusivamente dominado por afeições pessoais, que o impedem de viver para outrem. Tais são muitos animais ferozes que vemos, salvo durante algumas aproximações passageiras, flutuar ordinariamente entre uma atividade desregrada e um ignóbil torpor, porque não encontram no exterior os móveis principais de sua conduta. A MULHER - Compreendo assim, meu pai, a coincidência natural entre as verdadeiras condições morais da harmonia individual e as da harmonia coletiva. Mas continuo a ter a mesma dificuldade em conceber a abnegação habitual dos instintos mais enérgicos. O SACERDOTE - Esta dificuldade, minha filha, será facilmente vencida quando notardes que a unidade altruísta não exige, como a unidade egoísta, o inteiro sacrifício dos pendores contrários ao seu princípio, mas apenas a criteriosa subordinação deles ao afeto preponderante. Condensando toda a sã moral na lei Viver para outrem, o positivismo consagra a justa satisfação permanente dos diversos instintos pessoais, enquanto indispensável à nossa existência material, sobre a qual assentam sempre nossos atributos superiores. Por conseguinte, ele condena, posto que inspiradas amiúde por motivos respeitáveis, as práticas demasiado austeras, que, diminuindo nossas forças, nos tornam menos aptos para o serviço de outrem. O destino social, em cujo nome ele recomenda os cuidados pessoais, deve ao mesmo tempo nobilitá-los e regularizá-los, evitando tanto uma preocupação exagerada como uma viciosa negligência. A MULHER - Mas, meu pai, esta mesma consagração dos pendores egoístas, constantemente excitados, aliás, pelas nossas necessidades corporais, parece-me ainda incompatível com um predomínio habitual dos nossos fracos afetos simpáticos. O SACERDOTE - E é por isso, minha filha, que esse aperfeiçoamento moral há de constituir sempre o principal objeto da arte humana, cujos esforços contínuos, individuais e coletivos, dele nos aproximam cada vez mais, sem que nunca possamos realizá-lo de modo completo. Esta solução crescente funda-se unicamente na existência social, em virtude da lei natural que desenvolve ou comprime nossas funções e nossos órgãos conforme são ou não exercitados. Com efeito, as relações domésticas e cívicas tendem a conter os instintos pessoais mediante os conflitos que suscitam entre os diversos indivíduos. Pelo contrário, elas favorecem o surto das inclinações benévolas, únicas suscetíveis, em todos, de um desenvolvimento simultâneo, naturalmente contínuo, por causa dessas excitações mútuas, posto que necessariamente limitado pelo conjunto de nossas condições materiais. Eis aí por que a verdadeira unidade moral não pode surgir assaz senão em nossa espécie, pois que o progresso social deve pertencer exclusivamente a mais bem organizada das raças sociáveis, a menos que outras não se lhe agreguem como livres auxiliares. Mas, sem que tal harmonia se possa desenvolver alhures, o seu princípio é facilmente apreciável em muitos animais superiores, que até forneceram as primeiras provas científicas da existência natural dos afetos desinteressados. Se esta grande noção, sempre pressentida pelo empirismo universal, não houvesse sido sistematizada tão tardiamente, ninguém tacharia hoje de afetação sentimental uma doutrina diretamente verificável entre tantas espécies inferiores à nossa. A MULHER - Esta explicação suficiente só me deixa a desejar, meu pai, um último esclarecimento geral, relativo à condição intelectual da religião. Através da incoerência das diversas crenças especiais, não compreendo claramente em que consiste o domínio fundamental da fé, que entretanto deve comportar uma apreciação comum a todos os sistemas. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, nossa fé nunca teve senão um mesmo objeto essencial: conceber a ordem universal que domina a existência humana, para determinar nossa relação geral para com ela. Quer se assinalassem suas causas fictícias, quer se estudassem suas leis reais, o que sempre se quis foi apreciar essa ordem independente de nós, a fim de sofrê-la melhor e de modificá-la mais. Toda doutrina religiosa repousa necessariamente sobre uma explicação qualquer do mundo e do homem, duplo objeto contínuo de nossos pensamentos teóricos e práticos. A fé positiva expõe diretamente as leis efetivas dos diversos fenômenos observáveis, tanto interiores como exteriores; isto é, suas relações constantes de sucessão e de semelhança, as quais nos permitem prever uns por meio dos outros. Ela afasta, como radicalmente inacessível e profundamente ociosa, toda pesquisa acerca das causas propriamente ditas, primeiras ou finais, de quaisquer acontecimento. Em suas concepções teóricas, ela explica sempre como e nunca por que. Quando, porém, indica os meios de dirigir nossa atividade, ela faz, pelo contrário, prevalecer constantemente a consideração do fim, já que, então, o efeito prático dimana com certeza de uma vontade inteligente. Todavia, a indagação das causas, posto que diretamente vã, foi a princípio tão indispensável quão inevitável, como especialmente vo-lo explicarei, para substituir e preparar o conhecimento das leis, que supõe um longo preâmbulo. Procurando o porquê, que não se podia achar, acabava-se então, por descobrir o como, cujo estudo não era instituído imediatamente. Só se deve realmente condenar a pueril persistência, tão comum em nossos letrados, em querer penetrar as causas quando as leis são conhecidas. Porquanto nossa conduta não se referindo nunca senão a estas, a pesquisa daquelas toma-se não menos inútil que quimérica. O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, na existência constatada de uma ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito contemplador. Leis físicas supõem, com efeito, leis lógicas, e reciprocamente. Se o nosso entendimento não seguisse espontaneamente regra alguma, não poderia ele nunca apreciar a harmonia exterior. Sendo o mundo mais simples e mais poderoso que o homem, a regularidade deste seria ainda menos conciliável com a desordem daquele. Toda fé positiva assenta, pois, nesta dupla harmonia entre o objeto e o sujeito. Semelhante ordem apenas pode ser constatada, e nunca explicada. Ela fornece, pelo contrário, a única fonte possível de toda explicação razoável, que consiste sempre em fazer entrar nas leis gerais cada evento particular, desde logo suscetível de uma previsão sistemática, único fim característico da verdadeira ciência. Por isso também a ordem universal foi durante muito tempo desconhecida, enquanto prevaleceram as vontades arbitrárias a que se teve primeiro que atribuir os principais fenômenos de toda sorte. Mas uma experiência, amiúde reiterada e nunca desmentida, fez enfim reconhecer essa ordem, apesar das opiniões contrárias, em relação aos acontecimentos mais simples, de onde a mesma apreciação estendeu-se gradualmente até os mais complexos. Foi só em nossos dias que esta extensão penetrou em seu domínio, representando também os fenômenos mais eminentes da inteligência e da sociabilidade como sujeitos sempre a leis invariáveis, que ainda negam muitos espíritos cultivados. O positivismo resultou diretamente desta descoberta final, que, completando nossa longa iniciação científica, terminou necessariamente o regime preliminar da razão humana. A MULHER - Meu pai, por este primeiro apanhado, julgo a fé positiva muito satisfatória para a inteligência, mas muito pouco favorável à atividade, que ela parece subordinar a inflexíveis destinos. Entretanto, pois que o espírito positivo, como o dizeis amiúde, surgiu por toda parte da existência prática, não pode ser-lhe contrário. Quisera conceber nitidamente seu acordo geral. O SACERDOTE - Para o conseguirdes, minha filha, bastará retificar a apreciação espontânea que vos faz considerar as leis reais como imodificáveis. Enquanto os fenômenos foram atribuídos a vontades arbitrárias, a concepção de uma fatalidade absoluta tomou-se o corretivo necessário de uma hipótese diretamente incompatível com toda ordem efetiva. A descoberta das leis naturais tendeu, em seguida, a manter esta disposição geral, porque a princípio tal descoberta dizia respeito aos acontecimentos celestes, inteiramente subtraídos à intervenção humana. À medida, porém, que o conhecimento da ordem real se desenvolveu, tem ela sido considerada como essencialmente modificável, mesmo por nós, e tanto mais quanto os fenômenos mais se complicam, como vo-lo explicarei daqui a pouco. Esta noção estende-se hoje até a ordem celeste, cuja simplicidade superior nos permite imaginar com mais facilidade seu melhoramento, a fim de corrigir um respeito cego, conquanto nossos fracos meios físicos não o possam jamais realizar. Quaisquer que sejam os fenômenos, sem excetuar os mais complexos, as suas condições fundamentais são sempre imutáveis; mas, por toda parte, também, inclusive nos casos mais simples, as disposições secundárias podem ser modificadas, e amiúde por nossa intervenção. Estas modificações em nada alteram a invariabilidade das leis reais, porque elas nunca se tornam arbitrárias. Sua natureza e extensão seguem sempre regras próprias, que completam nosso domínio científico. A imobilidade total seria por tal modo contrária à mesma noção de lei, que esta caracteriza, por toda parte, a constância percebida no meio da variedade. Assim, a ordem natural constitui sempre uma fatalidade modificável, que se torna a base necessária da ordem artificial. Nosso verdadeiro destino compõe-se, pois, de resignação e de atividade. Esta segunda condição, longe de ser incompatível com a primeira, repousa diretamente sobre ela. Uma judiciosa submissão às leis fundamentais é, com efeito, o único preservativo contra o vago e a instabilidade de nossos desígnios quaisquer, permitindo-nos instituir, segundo as regras secundárias, uma sábia intervenção. Eis aí como o dogma positivo consagra diretamente nossa atividade, que nenhuma síntese teológica podia abarcar. Este surto prático torna-se mesmo aí o principal regulador de nossos trabalhos teóricos relativos à ordem universal e suas diversas modificações. A MULHER - Após tal explicação, resta-me, meu pai, conceber a maneira por que a fé positiva se concilia plenamente com o sentimento, ao qual sua natureza parece-me ser radicalmente contrária. Compreendo, todavia, que seu dogma fundamental fornece duplamente uma forte base de disciplina moral, já subordinando nossos pendores pessoais a um poder exterior, já citando nossos instintos simpáticos para melhor sofrermos ou modificarmos a fatalidade comum. Apesar, porém, destes preciosos atributos, o positivismo não me oferece ainda um estímulo assaz direto dos santos afetos que parecem dever formar o principal domínio da religião. O SACERDOTE - Reconheço, minha filha, que o espírito positivo apresentou até aqui os dois inconvenientes morais peculiares à ciência, inchar e secar, desenvolvendo o orgulho e desviando do amor. Esta dupla tendência se conservará sempre nele o bastante para exigir habitualmente precauções sistemáticas de que vos hei de falar mais tarde. Contudo, vosso principal reproche resulta, a este respeito, de uma apreciação insuficiente do positivismo, que vós considerais apenas no estado incompleto em que ele ainda se mostra na maioria de seus adeptos. Estes se limitam à concepção filosófica dimanada da preparação científica, sem ir até a conclusão religiosa, resumo único do conjunto dessa filosofia. Mas, completando o estudo real da ordem universal, vê-se o dogma positivo concentrar-se finalmente em torno de uma concepção sintética, tão favorável ao coração como ao espírito. Os entes quiméricos que a religião empregou provisoriamente inspiraram diretamente vivos afetos humanos, que foram mesmo mais poderosos sob as ficções menos elaboradas. Essa preciosa aptidão devia por muito tempo parecer estranha ao positivismo, por efeito de seu imenso preâmbulo científico. Enquanto a iniciação filosófica abraçou apenas a ordem material, e mesmo a ordem vital, ela não pôde desvendar senão leis indispensáveis à nossa atividade, sem nos ministrar nenhum objeto direto de afeição permanente e comum. Mas já não é mais assim desde que essa preparação gradual se acha finalmente completada pelo estudo próprio da ordem humana, individual e coletiva. Esta apreciação final condensa o conjunto das concepções positivas na noção única de um ente imenso e eterno, a humanidade, cujos destinos sociológicos se desenvolvem sempre sob o predomínio necessário das fatalidades biológicas e cosmológicas. Em torno deste verdadeiro Grande Ser, motor imediato de cada existência individual ou coletiva, nossos afetos se concentram tão espontaneamente quanto nossos pensamentos e ações. A ideia só desse Ser supremo inspira diretamente a fórmula sagrada do positivismo: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Sempre fundada sobre um livre concurso de vontades independentes, a sua existência composta, que toda discórdia tende a dissolver, consagra logo a preponderância contínua do coração sobre o espírito, como a única base de nossa verdadeira unidade. É assim que a ordem universal se resume daqui por diante no ente que a estuda e aperfeiçoa sem cessar. A luta crescente da humanidade contra o conjunto das fatalidades que a dominam apresenta ao coração, como ao espírito, um espetáculo mais digno que a onipotência, necessariamente caprichosa, de seu precursor teológico. Mais acessível, tanto aos nossos sentimentos como às nossas concepções, em virtude de uma identidade de natureza que não obsta a sua superioridade sobre todos os seus servidores, semelhante Ser supremo excita profundamente uma atividade destinada a conservá-lo e melhorá-lo. A MULHER - Todavia, meu pai, o trabalho material imposto sem cessar por nossas necessidades corporais se me afigura diretamente contrário a essa tendência afetiva da religião positiva. Porque tal atividade me parece dever conservar sempre um caráter essencialmente egoísta, que se estende mesmo até os esforços teóricos por ela suscitados. Ora, isto bastaria para impedir a preponderância real do amor universal. O SACERDOTE - Espero, minha filha, fazer-vos reconhecer em breve que é possível transformar radicalmente essa personalidade primitiva dos trabalhos humanos. À medida que a atividade material se vai tornando mais coletiva, ela tende cada vez mais para o caráter altruísta, posto que o impulso egoísta tenha que ficar sempre indispensável a seu primeiro surto. Com efeito, trabalhando cada um habitualmente para outrem, semelhante existência desenvolve necessariamente os afetos simpáticos, quando é assaz apreciada. Não falta, pois, a esses laboriosos servidores da humanidade, senão um sentimento completo e familiar da existência real desses afetos. Ora, isto há de resultar naturalmente de uma extensão suficiente da educação positiva. Já poderíeis verificar esta tendência se a atividade pacífica, ainda destituída de toda disciplina sistemática, estivesse tão regulada quanto à vida guerreira, única organizada até aqui. Mas os grandes resultados morais obtidos outrora em relação a esta, e que ainda permanecem sensíveis sob sua degradação atual, assaz indicam os que a outra comporta. Devemos, mesmo, esperar do instinto construtor reações simpáticas mais diretas e mais completas que as do instinto destruidor. A MULHER - Por esta última indicação começo, meu pai, a compreender a harmonia geral do positivismo. Já concebo nele como é que a atividade, naturalmente subordinada à fé, pode também submeter-se ao amor, que ela parece a princípio repelir. Isto posto, julgo que essa doutrina preenche, enfim, todas as condições essenciais da religião tal como a definistes, pois que ela convém igualmente às três grandes partes de nossa existência, amar, pensar, agir, que nunca foram assim tão combinadas. O SACERDOTE - Quanto mais estudardes a síntese positiva tanto melhor sentireis, minha filha, quanto a sua realidade a toma mais completa e mais eficaz que qualquer outra. O predomínio habitual do altruísmo sobre o egoísmo, onde reside o grande problema humano, resulta aí diretamente de um concurso contínuo de todos os nossos trabalhos, teóricos e práticos, com as nossas melhores inclinações. Essa vida ativa, que o catolicismo figurava como oposta ao nosso íntimo aperfeiçoamento, torna-se, no positivismo, sua principal garantia. Concebeis agora semelhante contraste entre dois sistemas dos quais um admite e o outro nega a existência natural dos afetos desinteressados. As precisões corporais, que pareciam dever nos separar sempre, podem doravante tender a unir-nos mais do que se delas estivéssemos isentos. Porquanto o amor se desenvolve mais por atos que por votos; e, ademais, que poderíamos nós almejar para aqueles a quem nada faltasse? Pode-se também reconhecer que o tipo de existência real, peculiar aos positivistas, sobrepuja necessariamente, mesmo quanto ao sentimento, a vida quimérica prometida aos teologistas. A MULHER - A fim de completardes esta conferência preliminar, rogo-vos, meu pai, que me expliqueis sucintamente a divisão geral da religião, cujas diversas partes essenciais me exporeis em seguida. Pedindo-vos este esclarecimento, sinto que o amor sendo o princípio da unidade humana, a parte que a ele se refere tem de naturalmente prevalecer no sistema religioso, e que é por ela que deveis começar minha iniciação positivista. O SACERDOTE - Esta última reflexão, minha filha, prova ainda uma vez quanto a simpatia é favorável à síntese. Acabais, com efeito, de assinalar espontaneamente o traço mais característico da religião positiva, a precedência que ela dá ao culto sobre o dogma. Para o reconhecerdes, deveis notar que a decomposição a que aludis resulta de uma exata apreciação da existência total que à religião cabe dirigir. O culto, o dogma e o regime concernem respectivamente aos nossos sentimentos, pensamentos e atos. Excessiva deferência para com os meus predecessores católicos arrastou-me espontaneamente a colocar a princípio o dogma antes do culto, sem examinar se esta disposição seria tão conforme à nova síntese como à antiga. Uma solicitude exagerada pela racionalidade fez-me em seguida manter esta ordem, a fim de que o culto assentasse sobre uma base sistemática. A aplicação, porém, do arranjo primitivo demonstrou-me gradativamente que ele não é assaz sintético. Para resolver definitivamente este problema, basta distinguir as duas constituições, sintética e analítica, que a doutrina universal comporta. O culto repousa necessariamente sobre a primeira, a qual ele desenvolve, idealizando-a. Longe, porém, de exigir a segunda, é o culto que, pelo contrário, se torna indispensável ao estabelecimento da constituição analítica do dogma. De onde resulta, minha filha, que é necessário, antes de tudo, elevarmo-nos até a exata compreensão da humanidade. Depois cultivamos os sentimentos apropriados à existência que ela nos prescreve. Só então podemos efetuar a elaboração teórica destinada a fazer conhecer analiticamente a ordem fundamental e o Ente supremo que a modifica. Enfim, pelo regime, regulamos diretamente cada conduta humana. Eis aí como a religião positiva abraça ao mesmo tempo as nossas três grandes construções contínuas, a poesia, a filosofia e a política. A moral, porém, aí domina sempre, quer o surto de nossos sentimentos, quer o desenvolvimento de nossos conhecimentos, quer o curso de nossas ações, de modo a dirigir sem cessar nossa tríplice pesquisa do belo, do verdadeiro e do bom. SEGUNDA CONFERÊNCIA TEORIA DA HUMANIDADE A MULHER - Pelo que ouvi em nossa conferência preliminar, sinto-me atemorizada, meu pai, por minha profunda insuficiência para a elevada exposição que ides começar. Pois que a concepção da humanidade condensa o dogma da religião universal, o qual consiste na filosofia positiva, minha inteligência se me afigura demasiado fraca, ou, pelo menos, muito pouco preparada, para bem compreender essa explicação, por mais simples que vos seja dado fazê-la. Eu só trago aqui uma confiança plena, um respeito sincero e uma simpatia ativa para com a doutrina que parece, após tantas tentativas vãs, apropriada a superar, enfim, a anarquia moderna. Receio, porém, que estas disposições morais não bastem para que eu possa encetar com bom êxito um estudo tão difícil. O SACERDOTE - Vossos temores exigem, minha filha, algumas reflexões prévias que, espero, vos hão de tranquilizar logo. Não se trata aqui senão de efetuar, acerca da nova religião, uma exposição geral equivalente à que vos iniciou outrora no catolicismo. A natureza mais inteligível de uma doutrina sempre demonstrável deve, até, além da atual maturidade de vossa razão, tornar-vos este segundo trabalho mais fácil que o primeiro. Lembrai-vos, por outro lado, da admirável máxima que o nosso grande Molière fez proclamar pelo homem de gosto de sua última obra-prima: Consinto em que a mulher de tudo tenha luzes e notai também que o consinto de então se transformaria agora em convém. No fundo, o domínio intelectual do sacerdócio foi sempre o mesmo que o do público, salvo a diversidade de cultura, sistemática de um lado, puramente espontânea do outro. Esta identidade essencial, sem a qual não se conceberia nenhuma harmonia religiosa, torna-se ao mesmo tempo mais direta e mais completa no positivismo do que nunca o pôde ser sob o teologismo. O verdadeiro espírito filosófico consiste, de fato, como o simples bom senso, em conhecer o que é, para prever o que há de ser, a fim de aperfeiçoá-lo tanto quanto possível. Um dos melhores preceitos positivistas declara, até, viciosa, ou, pelo menos, prematura, toda sistematização que não for precedida e preparada por um suficiente surto espontâneo. Esta regra resulta logo do verso dogmático, com que o positivismo caracteriza o conjunto de nossa existência: Agir por afeição e pensar para agir. O primeiro hemistíquio corresponde à espontaneidade, e o segundo, à sistematização consecutiva. Quaisquer que sejam os inconvenientes que a atividade irrefletida suscite, só ela pode ordinariamente fornecer os primeiros materiais de uma meditação eficaz que permitirá agir melhor. Considerai, enfim, que nenhum espírito pode abster-se de uma opinião qualquer sobre a ordem universal, quer exterior, quer humana. Sabeis já agora que o dogma religioso teve sempre o mesmo objeto essencial, com esta única diferença geral que o conhecimento das leis substitui nele, daqui por diante, a indagação das causas. Ora, hipóteses quiméricas em relação a estas não podem parecer-vos mais inteligíveis do que noções reais sobre aquelas. As mulheres e os proletários, que esta exposição tem principalmente em vista, não podem nem devem converter-se em doutores, e nem eles o querem. Todos, porém, precisam compreender quanto baste o espírito e a marcha da doutrina universal, para imporem a seus chefes espirituais uma suficiente preparação científica e lógica, sobre a qual repousa necessariamente o ofício sistemático do sacerdócio. Ora, esta disciplina intelectual é hoje por tal forma contrária aos hábitos criados pela anarquia moderna, que ela nunca prevalecerá se o público de ambos os sexos não a impuser aos que pretendem dirigir suas opiniões. Esta condição social tornará sempre preciosa a propagação geral da instrução religiosa, além de seu destino próprio para guiar cada existência, individual ou coletiva. Mas semelhante serviço adquire agora uma importância capital, a fim de se pôr um paradeiro decisivo à anarquia ocidental, principalmente caracterizada pela revolta intelectual. Se este Catecismo pudesse convencer as mulheres e os proletários que seus pretensos guias espirituais são radicalmente incompetentes para as altas elaborações que cegamente lhes são confiadas, muito contribuiria para a pacificação do Ocidente. Ora, esta convicção unânime não pode resultar hoje senão de uma suficiente apreciação do dogma final, adequada a tornar incontestáveis as condições gerais de sua cultura sistemática. Quanto às dificuldades que temeis agora neste estudo indispensável, contais muito pouco, para superá-las, com as vossas excelentes disposições morais. Nenhuma academia atual hesitaria em proclamar doutoralmente que o espírito pensa sempre como se o coração não existisse. Mas as mulheres e os proletários nunca desconheceram a íntima reação do sentimento sobre a inteligência, explicada enfim pela filosofia positiva. Vosso sexo, sobretudo, cujo doce ministério involuntário nos transmitiu, tanto quanto possível, os admiráveis costumes da Idade Média através da anarquia moderna, julga diariamente a heresia metafísica que separa esses dois grandes atributos. Pois que, segundo a bela máxima de Vauvenargues (Os grandes pensamentos vêm do coração), o coração é necessário às principais inspirações do espírito, deve ele servir também para fazer compreender os resultados dessas inspirações. Esta poderosa assistência convém sobretudo às concepções morais e sociais, em relação às quais o instinto simpático pode secundar melhor o espírito sintético, cujos maiores esforços não venceriam, sem esse socorro, as dificuldades que tais concepções oferecem. Mas o mesmo auxílio se pode aplicar às teorias inferiores, em virtude da conexão necessária de todas as nossas especulações reais. Das duas condições fundamentais da religião, amor e fé, a primeira deve certamente prevalecer. Com efeito, ainda que a fé seja muito própria para consolidar o amor, a ação inversa é mais poderosa como mais direta. O sentimento não só preside às inspirações espontâneas que a princípio exige toda elaboração sistemática, mas, ainda, consagra e auxilia a esta quando lhe reconhece a importância. Não há mulher dotada de experiência que ignore a insuficiência demasiado frequente dos melhores afetos quando não são assistidos de convicções inabaláveis. Esta palavra convencer bastaria, atenta sua origem, para lembrar a aptidão das crenças profundas a consolidar o interior ligando-o ao exterior. A insuficiência teórica que vos atemoriza aqui assenta, enfim, sobre a confusão ordinária entre a instrução e a inteligência. Vossa admiração familiar pelo incomparável Molière não vos preservou a este respeito, do erro vulgar, cuidadosamente entretido pelos nossos Trissotinos de todas as profissões. Entretanto, devíamos corar por estarmos hoje menos adiantados que na Idade Média, em que todos sabiam apreciar o profundo mérito intelectual de personagens muitíssimo iletrados. Não tendes por vezes encontrado em tais espíritos uma aptidão mais real que na maioria dos doutores? Hoje, mais do que nunca, a instrução só é verdadeiramente indispensável para construir e devolver a ciência, cujo conjunto deve sempre ser instituído de maneira a tornar-se diretamente acessível a todas as inteligências sãs. Sem isto, nossas melhores doutrinas degenerariam logo em mistificações perigosas: este desvio peculiar aos teoristas quaisquer não pode ser neles assaz atalhado senão por meio de uma digna fiscalização de ambos os sexos. A MULHER - Animada pelo vosso preâmbulo, rogo-vos, meu pai, que passeis a uma explicação mais direta e mais completa do princípio universal de nossa religião, conforme mo anunciastes. Já compreendi que a vossa concepção do verdadeiro Grande Ser resume necessariamente o conjunto da ordem real, não só humana, mas também exterior. Eis por que sinto necessidade de uma determinação mais nítida e mais precisa acerca dessa unidade fundamental do positivismo. O SACERDOTE - Para o conseguirdes, deveis, minha filha, definir em primeiro lugar a humanidade como o conjunto dos seres humanos, passados, futuros e presentes. Esta palavra conjunto indica-vos bastante que não se deve compreender aí todos os homens, mas só aqueles que são realmente assimiláveis, por efeito de uma verdadeira cooperação na existência comum. Posto que todos nasçam necessariamente filhos da humanidade, nem todos se tornam seus servidores, e muitos permanecem no estado parasitário, que só foi desculpável durante a sua educação. Os tempos anárquicos fazem sobretudo pulular, e demasiadas vezes florescer, esses tristes fardos do verdadeiro Grande Ser. Mais de um de vós deve ter trazido à lembrança a admirável reprovação de Dante, esboçada já por Horácio e reproduzida por Ariosto: Che visser senza infamia e senza lodo. Cacciarli i ciel per non esser men belli, Nè lo profondo inferno li riceve, Ch'alcuna gloria i rei avrebber d'elli. Non ragioniam di lor, ma guarda e passa. (Que viveram sem infâmia nem louvor. O céu os expulsou para não ser menos belo, e nem o profundo inferno os recebe, porque os condenados tirariam deles alguma glória. Não falemos mais deles, olha e passa) Vedes assim que, a este como a qualquer outro respeito, a inspiração poética antecedeu muito a sistematização filosófica. Seja como for, se esses parasitas não fazem realmente parte da humanidade, uma justa compensação vos prescreve de agregardes ao novo Ente Supremo todos os seus dignos auxiliares animais. Toda útil cooperação habitual nos destinos humanos, quando exercida voluntariamente, erige o ser correspondente em elemento real dessa existência composta, com um grau de importância proporcional à dignidade da espécie e à eficácia do indivíduo. Para avaliar este complemento indispensável, basta imaginar que ele nos falta. Ninguém hesitará, então, em considerar tais cavalos, cães, bois etc., como mais estimáveis que certos homens. Nesta primeira concepção do concurso humano, a atenção volta-se naturalmente para a solidariedade, de preferência à continuidade. Mas, conquanto esta seja a princípio menos sentida, por exigir um exame mais profundo, é a noção dela que deve finalmente prevalecer, porquanto o surto social pouco tarda em depender mais do tempo que do espaço. Não é só hoje que cada homem, esforçando-se por apreciar o que deve aos outros, reconhece uma participação muito maior no conjunto de seus predecessores do que no de seus contemporâneos. Semelhante superioridade manifesta-se em menores proporções nas épocas mais remotas, como o indica o culto comovente que sempre nesses tempos se rendeu aos mortos, segundo a bela observação de Vico. Assim, a verdadeira sociabilidade consiste mais na continuidade sucessiva do que na solidariedade atual. Os vivos são sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos mortos: tal é a lei fundamental da ordem humana. Para se conceber melhor esta lei, cumpre distinguir, em cada verdadeiro servidor da humanidade, duas existências sucessivas: uma, temporária, mas direta, constitui a vida propriamente dita; a outra, indireta, mas permanente, só começa depois da morte. Sendo a primeira sempre corporal, pode ser qualificada de objetiva; sobretudo por contraste com a segunda, que, não deixando subsistir a cada um senão no coração e no espírito de outrem, merece o nome de subjetiva. Tal é a nobre imortalidade, necessariamente imaterial, que o positivismo reconhece à nossa alma, conservando este termo precioso para designar o conjunto das funções intelectuais e morais, sem nenhuma alusão à entidade correspondente. Em virtude desta elevada noção, a verdadeira população humana se compõe, pois, de duas massas sempre indispensáveis, cuja proporção varia sem cessar, tendendo a fazer com que os mortos prevaleçam mais sobre os vivos em cada operação real. Se a ação e o resultado dependem sobretudo do elemento objetivo, o impulso e a regra dimanam principalmente do elemento subjetivo. Liberalmente dotados pelos nossos predecessores, nós transmitimos de graça aos nossos sucessores o conjunto do domínio humano, com uma extensão cada vez mais fraca proporcionalmente ao que recebemos. Esta gratuidade necessária encontra sua digna recompensa na incorporação subjetiva que nos permitirá perpetuar nossos serviços, transformando-os. Se bem que semelhante teoria pareça constituir hoje o último esforço sistemático do espírito humano, as mais longínquas evoluções oferecem sempre o germe espontâneo dela, já sentido pelos mais antigos poetas. A mínima cabilda, e mesmo cada família um pouco considerável, julga-se logo como a estirpe essencial dessa existência composta e progressiva que não comporta, no espaço e no tempo, outros limites necessários que os do estado normal peculiar ao seu planeta. Posto que o Grande Ser não esteja ainda assaz formado, as colisões mais íntimas nunca ocultaram sua evolução gradual, que, sistematicamente apreciada, fornece hoje a única base possível de nossa unidade final. Mesmo sob o egoísmo cristão, que ditava ao duro São Pedro a máxima característica: Consideremo-nos sobre a Terra como estrangeiros ou exilados, vemos já o admirável São Paulo antecipar, pelo sentimento, a concepção da humanidade, nesta imagem tocante, mas contraditória: Nós somos todos membros uns dos outros. Só o princípio positivista devia revelar o tronco único ao qual necessariamente pertencem todos esses membros espontaneamente confusos. A MULHER - Não posso deixar de admitir, meu pai, esta concepção fundamental, por mais dificuldades que ela ainda me apresente. Amedronto-me, porém, de minha nulidade pessoal ante semelhante existência, cuja imensidade me abate mais do que outrora a majestade de um Deus, com o qual, embora mesquinha, me sentia em relação própria e direta. Depois de me haverdes subjugado pela preponderância crescente do novo Ente Supremo, careço, pois, que reanimes em mim o justo sentimento de minha individualidade. O SACERDOTE - Vai isso resultar, minha filha, de uma apreciação mais completa do dogma positivo. Basta reconhecer que, posto que o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo, ainda mais que perante o antigo. Com efeito, este não tinha realmente nenhuma necessidade de nossos serviços quaisquer, senão para vãos louvores, devendo, até, sua pueril avidez por eles degradá-los aos nossos olhos. Recordai-vos deste verso decisivo da Imitação: Eu te sou necessário, e tu de nada me serves. Poucos, sem dúvida, são os homens que se podem considerar como realmente indispensáveis à Humanidade: isto só quadra aos verdadeiros promotores de nossos principais progressos. Mas toda digna existência humana pode e deve sentir habitualmente a utilidade de sua cooperação pessoal nessa imensa evolução, que cessaria necessariamente logo que todos os seus mínimos elementos objetivos desaparecessem a um tempo. O desenvolvimento e mesmo a conservação do Grande Ser ficam, portanto, subordinados sempre aos livres serviços de seus diversos filhos, posto que a inação de cada um deles seja ordinário suscetível de uma suficiente compensação. Esta sumária exposição do dogma fundamental de nossa religião permite-me, minha filha, proceder agora à explicação, primeiro geral, depois especial, do culto positivista. Seu estudo vos fará sentir, assim o espero, que a aptidão poética do positivismo está verdadeiramente ao nível de seu poder filosófico, sem ter ainda podido produzir resultados tão decisivos. PARTE PRIMEIRA EXPLICAÇÃO DO CULTO TERCEIRA CONFERÊNCIA CONJUNTO DO CULTO A MULHER - As nossas duas conferências anteriores, respectivamente consagradas à teoria geral da religião e à exposição sintética do dogma da Humanidade, tiraram-me irrevogavelmente da situação contraditória em que eu flutuava entre o impulso católico e a tendência voltairiana. Considerando-me já como positivista, venho, pois, pedir-vos que doravante me ensineis diretamente a melhor amar para melhor servir a incomparável Deusa que me revelastes, e à qual espero merecer ser finalmente incorporada. Isto posto, minha atitude muda espontaneamente, e nossas conferências tomam um caráter mais pronunciado de verdadeiras conversações. Em vez de submeter-vos dúvidas essenciais, que exijam longas explicações, só vos interromperei a fim de esclarecerdes e desenvolverdes algumas indicações insuficientes. Espero, até, em relação ao culto, tornar-me bastante ativa para secundar-vos, antecipando certas explicações de modo a fazer vossa exposição mais rápida, sem que por isso fique menos completa. Entramos aqui no domínio do sentimento, onde a inspiração feminina, conquanto sempre empírica, pode verdadeiramente assistir a construção sacerdotal. O SACERDOTE - Conto muito, minha filha, com essa cooperação espontânea, para tornar esta parte de nosso Catecismo menos extensa que a seguinte. Mas, a fim de utilizar melhor vossa disposição atual, esta nova conferência, que só diz respeito ao conjunto do culto, deve começar sistematizando o plano geral da religião, posto que já vos seja ele familiar. Toda combinação, mesmo física, e sobretudo lógica, devendo ser sempre binária, como assaz o indica a etimologia da palavra, a mesma regra estende-se necessariamente a decomposições quaisquer. A divisão fundamental da religião satisfaz naturalmente a esta regra, repartindo o domínio religioso entre o amor e a fé. Em toda evolução normal, individual ou coletiva, o amor nos conduz primeiro à fé, enquanto o surto permanece espontâneo. Mas, quando este se torna sistemático, a fé é construída para regular o amor. Esta divisão principal equivale à verdadeira distinção geral entre a teoria e a prática. O domínio prático da religião decompõe-se necessariamente também em dois, segundo a distinção natural entre os sentimentos e os atos. A parte teórica não corresponde senão à inteligência, única base possível da fé. Mas a parte prática abrange todo o resto de nossa existência, tanto os nossos sentimentos como os nossos próprios atos. O uso universal e espontâneo, que constitui o melhor regulador da linguagem, consagra diretamente semelhante apreciação, qualificando de práticas religiosas os hábitos relativos ao culto, tanto, se não mais, que aqueles de que o regime é o objeto próprio. Esta confusão aparente assenta sobre uma sabedoria profunda, posto que empírica, a qual, desde muito cedo, ensinou ao público, sobretudo feminino, como ao sacerdócio, que o aperfeiçoamento de nossos sentimentos sobreleva, em importância e dificuldade, o melhoramento imediato de nossas ações. Como o nosso amor não se torna nunca místico, o culto positivo pertence normalmente ao domínio prático da verdadeira religião: nós amamos mais a fim de servir melhor. Mas, por outro lado, nossos atos comportam sempre no verdadeiro ponto de vista religioso, um caráter essencialmente altruísta; pois que a religião deve sobretudo dispor-nos e ensinar-nos a viver para outrem. Inspiradas pelo amor, nossas ações tendem, reciprocamente, a desenvolvê-lo. Diretamente evidente em relação ao aperfeiçoamento intelectual, quando bem dirigido, esta aptidão natural estende-se mesmo ao progresso material, se ele for convenientemente instituído. Eis aí por que o regime, apreciado religiosamente, pertence, tanto quanto o culto, ao domínio do amor. Este duplo princípio, que torna prático o nosso culto e afetivo o nosso regime, sem contudo confundi-los nunca, não podia surgir enquanto a religião permaneceu teológica. Então o culto e o regime eram radicalmente heterogêneos, endereçando-se um a Deus e o outro se referindo ao homem. O culto não dominava o regime senão pela subordinação necessária do segundo ente ao primeiro. Ambos tinham um caráter essencialmente egoísta, de acordo com a constituição, profundamente individual, de uma fé que foi sempre incompatível com a existência natural dos pendores benévolos, consagrada somente pelo positivismo. Então a divisão entre o regime e o culto era tão marcada como a que separa o culto do dogma, de modo a tomar ininteligível o plano geral da religião, em virtude de nossa justa repugnância pelas combinações ternárias. No estado final, as distinções religiosas tornam-se, pelo contrário, não menos favoráveis à razão que ao sentimento. O dogma difere aí do culto e do regime muito mais do que estes diferem entre si. É assim que a constituição usual da religião volta a ser ternária, mas segundo uma divisão sempre binária, completando a distinção principal por uma única subdivisão, que até então lhe era irracionalmente equiparada. O conjunto dessas três partes essenciais forma, finalmente, uma progressão normal, visto a homogeneidade natural de seus diversos elementos. Ela conduz, sem esforço, do amor à fé, ou vice-versa; conforme se seguir a via subjetiva ou a marcha objetiva, nas duas idades principais da iniciação religiosa, respectivamente dirigida pela mulher ou pelo padre. Mas nesses dois sentidos, igualmente usuais, o culto ocupa sempre o mesmo lugar, antes do dogma e do regime. Repousando, como já sabeis, sobre a constituição sintética da doutrina universal, ele se torna indispensável ao digno estabelecimento da instituição analítica desta, ou dogma propriamente dito, essencialmente destinada ao regime. Isto basta para explicar a aptidão cotidiana do culto a representar toda a religião. A MULHER - Um apressuramento muito natural em começar diretamente o estudo de nosso culto fazia-me a princípio transpor, meu pai, o preâmbulo geral que acabais de expor. Sinto agora quanto ele me era necessário para conceber com clareza o plano da religião, cujas três partes eu até então não havia coordenado bastante. Todavia, este precioso esclarecimento parece-me tão cabal que espero poder estudar imediatamente o conjunto do culto peculiar à nossa Deusa. O SACERDOTE - Nós não a adoramos, minha filha, como ao antigo Deus, para fazer-lhe cumprimentos, mas a fim de servi-la melhor, aperfeiçoando-nos. Importa lembrar aqui este destino normal do culto positivo, no intuito de prevenir ou corrigir a degeneração mística a que sempre ficamos expostos quando uma preocupação demasiado exclusiva dos sentimentos nos dispõe a desprezar, ou mesmo a esquecer, os atos que eles devem reger. O meu caráter mais sistemático me arrastaria mais do que a vós a semelhante abuso, cujos estragos práticos seriam logo apontados pela vossa criteriosidade espontânea, que poderia, até, compensá-los bastante por uma feliz inconsequência teórica. Cumpre-me, sobretudo, evitar este desvio na presente conversação, que sendo mais abstrata e mais geral, o toma por isso mais iminente e mais grave. Vossas retificações empíricas acabariam, sem dúvida, por trazer-me de novo ao verdadeiro ponto de vista, porém muitas vezes demasiado tarde, de modo a obrigar-me algumas vezes a laboriosas reparações. Sob esta contínua precaução, concebamos o conjunto do culto como destinado sistematicamente a ligar as outras duas partes da religião à concepção sintética do Grande Ser, idealizando a ambas. Idealizar o dogma a fim de idealizar o regime, tal foi sempre o destino próprio do culto, que assim se toma capaz de representar o conjunto da religião. Ele oferece-nos, com efeito, o tipo antecipado do dogma, porque ele desenvolve a concepção sintética que o resume e o institui, tomando-nos ao mesmo tempo mais familiar e mais imponente a noção da humanidade, mediante uma representação ideal. Mas, como tipo do regime, o culto deve tender diretamente a melhorar os nossos sentimentos, levando sempre em conta as modificações que lhes imprimem habitualmente os três graus da vida humana, pessoal, doméstica e social. Posto que estas duas maneiras gerais de conceber e de instituir o culto possam a princípio parecer inconciliáveis, a concordância natural delas resulta da aptidão necessária de uma digna idealização do Grande Ser para consolidar e desenvolver o amor, sobre o qual assenta toda a sua existência. Portanto, esse contraste primitivo não tende, de modo algum, a decompor o culto em dois domínios separáveis, dos quais um pertenceria exclusivamente à inteligência e o outro ao sentimento. Tal divisão seria tão impraticável ordinariamente quanto à distinção geral entre o cálculo algébrico e o cálculo aritmético, que não podem verdadeiramente ser isolados senão em casos muito simples, e, até, em sua maioria, artificiais, embora estes dois cálculos se misturem sempre, sem que nunca se confundam. Esta comparação dá uma ideia exata da íntima conexão que liga naturalmente os dois aspectos, intelectual e moral, ou teórico e prático, peculiares, já ao conjunto do culto positivo, já a cada uma de suas partes. Apesar, porém, da espontaneidade deste vínculo, devida à natureza do sistema religioso a que ambos os aspectos se referem, a criteriosa combinação deles suscita, de fato, a principal dificuldade que pode oferecer a instituição do nosso culto. Porquanto o culto está exposto, como o dogma, e até mais do que ele, a degenerar em misticismo ou em empirismo, conforme houver excesso ou falta de generalização e de abstração. Ora, este dois abusos contrários produzem moralmente estragos equivalentes, pois que a eficácia social dos sentimentos humanos tanto se altera quando eles se tornam muito sutis como quando se tornam muito grosseiros. A MULHER - Para melhor apreciar esta dificuldade geral, creio, meu pai, poder reduzi-la a bem instituir a vida subjetiva sobre a qual assenta necessariamente o conjunto do culto positivista, quer o consideremos intelectual ou moralmente. O nosso Grande Ser compõe-se primeiro muito mais de mortos, e depois de pessoas por nascer, do que de vivos, e destes mesmos a maior parte não são senão servidores, sem que possam atualmente ser seus órgãos. Muito poucos homens existem, e ainda menos mulheres, que sejam, a este respeito, plenamente julgáveis antes de terem terminado sua carreira objetiva. Durante a maior porção de sua vida direta, cada um de nós poderia ordinariamente compensar, e até exceder muito, o bem que fez pelo mal que faria. Assim, a população humana compõe-se sobretudo de duas sortes de elementos subjetivos, uns determinados, outros indeterminados, entre os quais só o elemento objetivo, embora cada vez menor, é que institui um liame imediato e completo. Compreendo então que, para nos representar o verdadeiro Grande Ser, o culto positivo deve desenvolver muito, em cada um de nós, a vida subjetiva: o que, aliás, o há de tornar, quer-me parecer, eminentemente poético. Ao mesmo tempo, tais exercícios, em que o pensamento se produz sobretudo com o auxílio de imagens, são muito adequados a cultivar diretamente os nossos melhores sentimentos. A condição intelectual e o fim moral afiguram-se-me, pois, plenamente conciliáveis, segundo o princípio que acabais de fornecer-me. Mas este meio necessário parece-me suscitar, por sua vez, uma nova dificuldade geral. Porque mal posso conceber como se poderá constituir, e sobretudo fazer unânime, este surto diário, tanto privado, como público, da vida subjetiva, cuja prática universal é, no entanto, indispensável à nossa religião. Sem dúvida, a regeneração total da educação humana há de ministrar, a este respeito, recursos imensos, que hoje dificilmente podemos avaliar. Sem embargo, receio que fiquem sempre insuficientes para vencer semelhante dificuldade, em relação à qual o passado não me parece oferecer, ao menos diretamente, nenhum motivo de esperança geral. O SACERDOTE - Pelo contrário, minha filha, espero dissipar em breve vossos temores, aliás muito naturais, mediante uma sã apreciação desse longo início, cujo termo decisivo a própria feitura deste Catecismo já comprova. Não se pode, com efeito, desconhecer a aptidão, natural e unânime, de nossa espécie para viver subjetivamente, quando vemos prevalecer nela, por espaço de quarenta séculos, sob diversas formas, semelhante existência. Os espíritos emancipados sabem hoje que durante essa imensa existência todos os cérebros humanos estiveram habitualmente dominados por entes puramente imaginários, posto que se lhes atribuísse uma realidade exterior. Mas os diversos teologistas estão quase tão convencidos disso, visto como cada fé julga assim todas as outras, cujos partidários reunidos formaram sempre uma grande maioria contrária, sobretudo depois da dispersão atual das crenças sobrenaturais. Cada qual só excetua da ilusão sua própria fábula. Nós somos de tal modo propensos à vida subjetiva que esta prevalece mais à medida que remontamos para a idade ingênua da plena espontaneidade, individual ou coletiva. A principal força de nossa razão consiste, pelo contrário, em subordinar suficientemente o subjetivo ao objetivo, para que as nossas operações interiores possam representar o mundo exterior com o predomínio imutável que a este pertence, tanto quanto o exigem as nossas relações, ativas e passivas. Este resultado normal só se obtém, no indivíduo como na espécie, no tempo da verdadeira madureza, vindo a ser o melhor sinal desta. Posto que semelhante transformação tenda agora a mudar radicalmente o regime do entendimento humano, ela não nos impedirá nunca de desenvolver a vida subjetiva além mesmo de todas as necessidades do culto positivo. Sempre havemos de precisar de certa disciplina para conter no grau conveniente nossa disposição espontânea a substituir exageradamente o interior ao exterior. Não deveis, portanto, abrigar, a este respeito, nenhum receio sério, a menos que não julgueis o homem futuro pela tendência atual das especialidades científicas a apagar a imaginação como a secar o coração, o que apenas constitui um dos sintomas naturais da anarquia moderna. A única diferença essencial entre a nova subjetividade e a antiga deve consistir em que aquela será plenamente sentida e confessada, sem que ninguém a confunda jamais com a objetividade. Nossas contemplações religiosas efetuar-se-ão cientemente no interior, ao passo que os nossos predecessores se esforçavam em vão por ver no exterior o que não existia senão neles mesmos, salvo o recurso de adiarem para a vida futura a realização final de suas visões. Podemos facilmente resumir este contraste geral mediante uma oposição decisiva entre os dois modos de conceber a principal subdivisão intelectual. Na existência normal, a contemplação, mesmo interior, é mais fácil e menos iminente que a meditação, pois que a nossa inteligência aí permanece quase passiva. Em uma palavra, nós contemplamos para meditar, porque os nossos estudos essenciais dizem sempre respeito ao exterior. Pelo contrário, a meditação devia parecer aos teologistas menos difícil e mais vulgar do que a contemplação, erigida então em principal esforço de nosso entendimento. Eles só meditavam a fim de poder contemplar entes que sem cessar lhes fugiam. Um sinal familiar indicará em breve esta distinção quanto à maior parte do culto privado. Com efeito, o positivista fecha os olhos durante as suas efusões secretas, a fim de ver melhor a imagem interior, ao passo que o teologista os abria para perceber no exterior um objeto quimérico. A MULHER - Posto que este esclarecimento decisivo dissipe já meus receios anteriores, persisto, meu pai, em considerar a instituição da vida subjetiva como a principal dificuldade do culto positivo. Apenas a nova subjetividade parece-me agora poder sempre conciliar-se assaz com a profunda realidade que distingue a nossa fé. Mas esta concordância afigura-se-me dever exigir incessantes esforços especiais. O SACERDOTE - Apanhastes convenientemente, minha filha, a condição essencial que devo preencher aqui. Porquanto o melhor contraste entre o culto e o regime consiste sobretudo em lhes assinalar para domínios respectivos a vida subjetiva e a vida objetiva. Embora cada um deles se refira simultaneamente a ambas, a primeira domina evidentemente no culto e a segunda no regime. Não há nada mais próprio para caracterizar a dignidade superior do culto comparado ao regime, em virtude da preponderância necessária da subjetividade sobre a objetividade no conjunto da existência humana, mesmo individual, e sobretudo coletiva. A MULHER - Esta sanção sistemática de minha inspiração espontânea leva-me, meu pai, a perguntar-vos agora em que consiste a verdadeira teoria da vida subjetiva. Posto que semelhante doutrina só possa ser aqui esboçada, o seu princípio fundamental parece-me diretamente indispensável. Nenhum positivista pode prescindir, sobre este assunto, de uma explicação geral, cujo uso quase diário será exigido por seu culto, público ou privado, a fim de prevenir aí qualquer degeneração mística ou empírica. O SACERDOTE - Para satisfazer o vosso justo desejo, concebei, minha filha, a lei fundamental da vida subjetiva como consistindo sempre em sua digna subordinação à vida objetiva. O exterior não cessa nunca de regular essencialmente o interior, ao passo que o alimenta e o excita; o que se deve entender tanto de nossa vida cerebral, como da corporal. Nossas concepções mais fantásticas trazem sempre o cunho apreciável desse império involuntário, se bem que ele se torne menos puro, e mesmo menos completo, à medida que é mais indireto. Tudo isso resulta necessariamente do princípio irrecusável que hei de vos expor quando vos explicar o dogma, e que dei para base ao conjunto de nossa teoria intelectual, tanto dinâmica como estática, assim reatada ao sistema fundamental das noções biológicas. A ordem artificial não podendo nunca consistir senão em aperfeiçoar a ordem natural, sobretudo desenvolvendo-a, sente-se aqui, como em qualquer outro assunto e mesmo mais, que a nossa verdadeira liberdade resulta essencialmente de uma digna submissão. Mas, para estender convenientemente à vida subjetiva esta regra geral da vida objetiva, cumpre examinar, em primeiro lugar, sob este novo aspecto, a constituição natural da ordem universal. Porquanto todas as leis que a compõem estão longe de convir igualmente à vida subjetiva. A fim de fixar melhor vossas ideias, só especificarei o caso mais simples, e também o mais usual, quando se aplica o culto subjetivo a fazer reviver dignamente um ente querido. Sem esta determinação precisa, em que o coração auxilia o espírito, facilmente nos transviaríamos no estudo de tal domínio. Mas todas as noções, assim construídas para o culto mais íntimo e mais apreciável, poderão estender-se sem dificuldade, com as convenientes modificações, aos outros casos sociolátricos. A MULHER - Agradeço-vos, meu pai, esta precaução que sinto ser indispensável para mim. Esta doutrina é tão nova quanto difícil, pois que esse grato problema nem sequer pôde ser proposto, enquanto prevaleceram as crenças sobrenaturais, que só nos permitiam representar-nos nossos mortos numa situação misteriosa, e comumente indeterminada. Tal estado não lhes consentia nenhuma analogia essencial conosco. Ainda mesmo que os nossos temores pela sua sorte final fossem dissipados, nem assim se poderia nunca instituir em relação a eles uma vida subjetiva que tornaria cada um de nós sacrílego, por desviar para a criatura o afeto devido ao Criador. Mas se esta comovente questão é necessariamente peculiar ao positivismo, sua solução geral não lhe pertence menos, porque só ele desvendou as verdadeiras leis de nossa inteligência, que vós já me fizestes entrever. Concebo, pois, ao mesmo tempo, a instituição geral do culto subjetivo e seu fundamento normal, que converte essa existência ideal em um simples prolongamento da existência real. Rogo-vos, porém, que me expliqueis diretamente as modificações que comporta semelhante extensão. O SACERDOTE - Elas consistem, minha filha, em suprimir, ou pelo menos, em pôr de lado, todas as leis inferiores, para deixar prevalecer melhor as leis superiores. Durante a vida objetiva, o domínio da ordem exterior sobre a ordem humana é tão direto quanto contínuo. Mas, na vida subjetiva, a ordem exterior torna-se puramente passiva, e só prevalece de modo indireto, como fonte primeira das imagens que queremos cultivar. Nossos mortos queridos não estão mais dominados pelas leis rigorosas da ordem material, nem mesmo da ordem vital. Pelo contrário, as leis peculiares à ordem humana, sobretudo moral, mas também social, regem, melhor do que durante a vida, a existência que cada um deles conserva em nossos cérebros. Essa existência, desde logo puramente intelectual e afetiva, consiste essencialmente em imagens, que reanimam ao mesmo tempo os sentimentos que inspira o ente que nos foi arrebatado e os pensamentos que ele suscitou. O objeto do culto subjetivo reduz-se, pois, a uma espécie de evocação interior, produzida gradualmente por um exercício cerebral dirigido segundo as leis correspondentes. A imagem conserva-se sempre menos nítida e menos viva que o objeto, segundo a lei fundamental de nossa inteligência. Mas, já que o inverso sucede amiúde nas moléstias cerebrais, uma feliz cultura pode aproximar o estado normal desse limite necessário muito além do que se acreditou até aqui, enquanto esse belo domínio permaneceu vago e tenebroso. A fim de precisar melhor aquela subordinação geral, notai que a evocação subjetiva do ente querido refere-se sempre às últimas impressões objetivas que ele nos deixou. Isto se torna sobretudo sensível em relação à idade, que a morte subtrai a todo aumento. Nossas perdas prematuras proporcionam assim uma eterna juventude aos objetos de nossas afeições. Do adorador primitivo, esta lei se estende necessariamente aos seus aderentes mais longínquos. Ninguém, segundo Dante, poderá nunca representar-se a sua suave Beatriz senão na idade de vinte e cinco anos. Embora possamos concebê-la mais jovem, não poderíamos imaginá-la mais idosa. O contraste fundamental entre a vida objetiva e a vida subjetiva consiste, pois, em que a primeira é diretamente dominada pelas leis físicas e a segunda pelas leis morais: as leis intelectuais convêm igualmente a ambas. Semelhante distinção torna-se menos marcada quando se reconhece que, nos dois casos, a ordem mais geral prevalece sempre sobre a mais especial. Porquanto a diferença reduz-se, então, ao modo de apreciar a generalidade, medida primeiro em relação aos fenômenos e depois quanto às nossas concepções, conforme será explicado no nosso estudo do dogma. Seja como for, esta preponderância necessária das leis morais na vida subjetiva é de tal modo conforme com a nossa natureza, que ela foi, não somente respeitada involuntariamente, mas cientemente apreciada, desde o primeiro surto da inteligência humana. Vós sabeis, com efeito, que o esboço empírico das grandes leis morais foi muito anterior a todo desenvolvimento decisivo das menores leis físicas. Ao passo que as nossas ficções poéticas violavam sem escrúpulo as condições gerais da ordem material, e até da ordem vital, elas conformavam-se, com admirável exatidão, às principais noções da ordem social e sobretudo da ordem moral. Admitiam-se facilmente heróis invulneráveis e deuses que se transformavam a seu bel-prazer. Mas o instinto do público, como o gênio do poeta, teria logo repelido toda incoerência moral, se, por exemplo, alguém tivesse ousado supor, em um avarento, ou em um covarde, uma conduta liberal, ou corajosa. A MULHER - À vista de vossas explicações, concebo, meu pai, que no culto subjetivo, nós possamos desprezar as leis físicas, para melhor apegar-nos às leis morais, cujo verdadeiro conhecimento há de aperfeiçoar tanto esta nova ordem de instituições. Nossa imaginação facilmente liberta-se das condições mais gerais, mesmo em relação ao espaço e ao tempo, contanto que as conveniências humanas sejam sempre respeitadas. Desejaria, porém, saber como devemos usar de semelhante liberdade, no intuito de facilitar mais o fim essencial do culto subjetivo, isto é, a evocação cerebral dos entes queridos. O SACERDOTE - Assim proposta, minha filha, vossa questão facilmente se resolve, mediante a observação evidente de que, para concentrar melhor nossas forças nesse santo destino, cumpre não distrair uma só parcela em modificações supérfluas da ordem vital, nem mesmo da ordem material. Conservai, pois, com cuidado todas as relações exteriores que foram habituais ao ente adorado. Empregai-as mesmo em melhor reanimar sua imagem. No Sistema de Política Positiva achareis, a este respeito, uma observação importante: "Nossas recordações íntimas se tornam mais nítidas e mais fixas quando se determina assaz o meio inerte antes de nele colocar a viva imagem". Aconselho-vos até, em geral, a decompor esta determinação exterior em suas três partes essenciais, procedendo sempre do exterior para o interior, segundo nosso princípio hierárquico. Esta regra de culto consiste sobretudo em precisar primeiro o lugar, depois a sede ou atitude e enfim o vestuário, peculiares a cada caso especial. Ainda que o coração possa a princípio impacientar-se com tal demora, ele breve reconhece a sua íntima eficácia, quando vê a imagem querida ir, assim, adquirindo gradualmente uma força e uma nitidez que antes pareciam impossíveis. Estas operações essencialmente estéticas concebem-se melhor quando cotejadas com as operações científicas, por causa da identidade necessária de suas leis principais. No fundo, a ciência, que nos indica de antemão um futuro amiúde longínquo, tenta um esforço ainda mais ousado que o da arte, que quer evocar uma lembrança querida. Nossos brilhantes triunfos no primeiro caso, em que o espírito é no entanto muito menos secundado pelo coração, autorizam-nos a esperar resultados mais satisfatórios em relação ao segundo, que é o único que sempre nos oferece a certeza de uma solução qualquer. Esta, na verdade, assenta inteiramente sobre o conhecimento das leis cerebrais, que são ainda tão confusamente apreciadas. Pelo contrário, as nossas previsões astronômicas dependem sobretudo das leis exteriores mais simples e mais bem conhecidas. Mas, posto que esta distinção baste para explicar a presente disparidade dos dois resultados, ela no-la mostra como puramente provisória. Quando as leis superiores forem bastante conhecidas, o sacerdócio positivo há de tirar delas resultados mais preciosos, e mesmo mais regulares, que os da melhor astronomia. Porquanto as previsões desta tornam-se incertas, e amiúde impossíveis, logo que os casos planetários se complicam muito, como vemos quase sempre em relação aos cometas. Sem que possa ser com justiça acoimada de uma presunção quimérica, a providência humana pode e deve aspirar a introduzir, na ordem que ela melhor modifica, mais regularidade do que a que pode comportar, em relação à maior parte dos acontecimentos, a ordem que só é governada por uma cega fatalidade. A complicação superior dos fenômenos cederá finalmente, no que se refere a esses casos sublimes, à sabedoria preponderante do agente modificador, quando a ordem humana for assaz conhecida. A MULHER - Sinto, meu pai, que a subordinação do subjetivo ao objetivo constitui ao mesmo tempo a obrigação constante e o principal recurso do culto positivo. Fizestes-me compreender assaz que, longe de nos subtrairmos a esse jugo necessário, devemos aceitá-lo voluntariamente, mesmo quando nos seja lícito abrir mão dele. Porquanto esta plena submissão facilita muito nossa vida subjetiva, ao passo que economiza melhor o conjunto de nossas forças mais preciosas. Mas então não vejo mais em que consiste a nossa própria atividade nessa existência interior, que me parece contudo dever tornar-se, a seu modo, ainda menos passiva que a existência exterior. O SACERDOTE - Ela consiste, minha filha, em idealizar quase sempre por subtração, e raramente por adição, mesmo quando se tomam todas as cautelas convenientes. A idealidade deve melhorar a realidade, sob pena de insuficiência moral: é a compensação normal de sua nitidez e vivacidade muito menores. Cumpre, porém, que a primeira se subordine sempre à segunda, sem o que a representação não seria mais bastante fiel e o culto se tornaria místico, ao passo que ficaria empírico se a realidade fosse servilmente respeitada. Nossa regra evita igualmente estes dois desvios opostos. Ela se acha naturalmente indicada pela nossa tendência a esquecermos os defeitos dos mortos para só nos lembrarmos de suas qualidades. Assim concebida, esta regra não é senão uma dedução especial do dogma da Humanidade. Portanto, se nossa Deusa não incorpora a si senão os mortos verdadeiramente dignos, ela afasta também, de cada um deles, as imperfeições que sempre lhes macularam a vida objetiva. Dante pressentira, a seu modo, essa lei, quando construiu sua bela ficção em que faz o homem preparar-se para a beatitude bebendo primeiro no rio do esquecimento e em seguida no Eunoé, (A onda que aqui vês não flui de veio, Que gelos alimentam liquefeitos, Quais rios, cujo curso abate ou cresce; Corre de fonte inexaurível, pura, A qual de duplo jorro o humor que verte Na Vontade divina tem origem: Com virtude desliza, de uma parte, De apagar a lembrança do passado, De outra, de memorar as ações boas. Este Eunoé se chama, aquele o Letes Mas de um o efeito só se prova Do outro bebido tendo antes a linfa). que só lhe restitui a lembrança do bem. Não ajunteis, pois, aos vossos tipos exteriores senão aperfeiçoamentos muito secundários, que não possam nunca alterar seu verdadeiro caráter, mesmo físico, e sobretudo moral. Mas desenvolvei muito, ainda que sempre com prudência, vossa disposição espontânea a purificá-los de seus vários defeitos. A MULHER - Assim, meu pai, a verdadeira teoria da vida subjetiva leva finalmente nosso culto a deixar a ordem exterior tal qual é, a fim de melhor concentrar na ordem humana nossos principais esforços de aperfeiçoamento íntimo. A nobre existência que nos perpetua em outrem se torna, então, o digno prolongamento daquela que nos fez merecer esta imortalidade; o progresso moral do indivíduo e da espécie constitui sempre o principal destino das duas vidas. Nossos mortos estão emancipados das necessidades materiais e vitais, e destas eles só nos deixam a lembrança para que possamos melhor figurá-los tais como os conhecemos. Mas eles não cessam de amar, e mesmo de pensar, em nós e por nós. A doce troca de sentimentos e ideias que entretínhamos com eles, durante sua objetividade, torna-se ao mesmo tempo mais íntima e mais contínua quando eles se acham desprendidos da existência corporal. Posto que a vida de cada um deles fique desde então profundamente misturada com a nossa, sua originalidade moral e mental não sofre por isso a mínima alteração, quando seu caráter tiver sido verdadeiramente distinto. Pode-se até dizer que as diferenças principais se tornam mais pronunciadas à medida que este comércio íntimo se vai desenvolvendo melhor. Esta concepção positiva da vida futura é certamente mais nobre que a dos teologistas quaisquer, e ao mesmo tempo a única verdadeira. Quando eu era católica, o meu maior fervor nunca me impediu de sentir-me profundamente chocada, estudando o pueril desenvolvimento da beatitude em um doutor tão recomendável, pelo coração e pelo espírito, como foi Santo Agostinho. Quase que me indignava vendo-o esperançado de ficar um dia isento da gravidade, e mesmo de toda necessidade nutritiva, se bem que, por uma contradição grosseira, ele se reservasse a faculdade de comer à vontade, sem receio, aliás, de engordar indefinidamente. Tais comparações servem muito para fazer sentir quanto positivismo aperfeiçoa a imortalidade, ao passo que a consolida, transformando-a de objetiva em subjetiva. Mas esta superioridade evidente não me impede de sentir a falta da grande instituição da prece, que tínhamos no antigo culto e que não me parece compatível com a nova fé. O SACERDOTE - Semelhante lacuna, minha filha, seria extremamente grave se fosse real, pois que o exercício regular da oração, privada ou pública, constitui a condição principal de um culto qualquer. Longe de ser deficiente neste ponto, o positivismo é aí mais satisfatório que o catolicismo, porque purifica esta instituição ao mesmo tempo em que a desenvolve. Vosso equívoco, a este respeito, resulta da noção grosseira que ainda todos formam da prece, quando a fazem consistir sobretudo em pedidos, materiais as mais das vezes, segundo a natureza profundamente egoísta de todo culto teológico. Para nós, ao contrário, a oração se toma o ideal da vida. Porque rezar é ao mesmo tempo amar, pensar, e mesmo agir, pois que a expressão constitui sempre uma verdadeira ação. Nunca os três aspectos da existência humana podem ser tão profundamente unidos como nessas admiráveis expansões de reconhecimento e de amor para com a nossa grande deusa ou seus dignos representantes e órgãos. A pureza de nossas efusões não é mais maculada por nenhum motivo interessado. Todavia, como a prática cotidiana destas efusões melhora muito nosso coração, e mesmo nosso espírito, podemos legitimamente ter nelas em vista esse precioso resultado, sem receio de que semelhante personalidade nos degrade jamais. Embora o positivista reze sobretudo para expandir os seus melhores afetos, ele pode também pedir, mas somente nobres progressos, assim quase assegurados. Desejar com fervor ficar mais temo, mais venerador, ou mesmo mais corajoso, já é realizar, até certo grau, o melhoramento desejado, ao menos por uma confissão sincera dos nossos defeitos atuais, primeira condição do próximo aperfeiçoamento. Esta santa reação pode, aliás, estender-se até a inteligência, ainda que não seja senão inspirando-nos novos esforços para pensar melhor. Pelo contrário, pedir um acréscimo de riqueza ou de poder constituiria, no nosso culto, uma prática tão absurda quanto ignóbil. Nós não invejamos aos teologistas o império ilimitado que eles assim esperam obter sobre a ordem exterior. Todos os nossos esforços objetivos limitam-se a aperfeiçoar tanto quanto possível a ordem humana, ao mesmo tempo mais nobre e mais modificável. Em uma palavra, a oração positivista apodera-se essencialmente do supremo domínio reservado outrora à graça sobrenatural. A nossa santificação sistematiza sobretudo aqueles progressos que até então foram concebidos como alheios a qualquer lei invariável, conquanto a sua preeminência fosse já sentida. A MULHER - De conformidade com essa explicação decisiva, rogo-vos, meu pai, que me indiqueis a marcha geral que convém à oração positivista. O SACERDOTE - Para isso, minha filha, cumpre distinguir nela duas partes sucessivas, uma passiva, outra ativa, que respectivamente concernem ao passado e ao futuro unidos pelo presente. O nosso culto exprime sempre um amor motivado e desenvolvido por um reconhecimento crescente. Cada prece, privada ou pública, deve, pois, preparar-nos à efusão pela comemoração: esta durará ordinariamente o dobro daquela. Quando uma feliz combinação de sinais e imagens consegue reavivar assaz nossos sentimentos para com o ente adorado, nós os expandimos com verdadeiro fervor, que logo tende a aumentá-los ainda, e, portanto, aproximar-nos mais da evocação final. A MULHER - Esta indicação podendo bastar-me, peço-vos, meu pai, que completeis vossa apreciação geral de nosso culto caracterizando diretamente as suas reações fundamentais sobre o nosso principal aperfeiçoamento. Conquanto eu as sinta profundamente, não poderia defini-las assaz de modo a fazer com que elas sejam convenientemente aquilatadas. Por isso peço-vos, sobre este ponto, uma explicação sistemática, que servirá para dirigir, primeiro, minha própria prática, e, em seguida, meu digno proselitismo. O SACERDOTE - Embora nosso culto aperfeiçoe ao mesmo tempo o coração e o espírito, importa, minha filha, apreciar separadamente sua reação moral e sua influência intelectual. A primeira resulta necessariamente da principal lei de animalidade. Porquanto o culto constitui sempre um verdadeiro exercido, e, até, mais normal que qualquer outro, como o indica a linguagem usual, quadro constantemente fiel da existência humana. Semelhante apreciação é incontestável quando a prece se toma completa, isto é, quando é oral e mental ao mesmo tempo. Com efeito, os músculos que empregamos para exprimir, quer por meio de sons, quer por meio de gestos ou atitudes, são os mesmos que os que empregamos quando queremos agir diretamente. Assim, toda digna expressão dos nossos sentimentos tende a fortalecê-los e desenvolvê-los, do mesmo modo que quando realizamos os atos que eles nos inspiram. Devo, entretanto, a este respeito, prevenir um exagero perigoso, invitando-vos a não confundir nunca estas duas grandes reações morais. Apesar da semelhança de suas leis essenciais, elas não podem ser consideradas, em caso algum, como equivalentes. Segundo a experiência universal, plenamente sancionada pela nossa teoria cerebral, as obras terão sempre maior peso que as efusões, não só nos resultados exteriores, mas também para o melhoramento interior. Não obstante, depois da prática das boas ações, nada há que tanto sirva para avigorar e desenvolver os nossos melhores sentimentos como a digna expansão deles, contanto que ela se tome bastante habitual. Ora, este meio geral de melhoramento é-nos ordinariamente mais acessível do que a mesma ação, a qual amiúde exige materiais ou circunstâncias fora do nosso alcance, de modo a reduzir-nos algumas vezes a desejos estéreis. É em virtude de tal disponibilidade que as práticas do culto se tornam, para o nosso progresso moral, um precioso suplemento da existência real, que aliás se concilia plenamente com elas, por efeito da perfeita homogeneidade da religião positiva. A MULHER - Tendo assim compreendido a reação moral de nosso culto, terei necessidade, meu pai, de explicações mais desenvolvidas em relação à sua influência intelectual, que é para mim muito menos sensível. O SACERDOTE - Distingui, aí, minha filha, dois casos essenciais, conforme a eficácia for estética ou científica. Sob o primeiro aspecto, o poder mental do culto positivo é direto e saliente, primeiro para com a arte em geral, e mesmo, em seguida, sobre as duas artes especiais do som ou da forma. A poesia constitui a alma do culto, como a ciência a do dogma e a indústria a do regime. Toda oração, quer privada, quer pública, torna-se positivismo uma verdadeira obra de arte, pois que exprime nossos melhores sentimentos. Como nada pode aí dispensar uma constante espontaneidade, cada positivista deve ser, a certos respeitos, uma espécie de poeta, ao menos para seu culto íntimo. Posto que as fórmulas devam tornar-se fixas, a fim de obtermos maior regularidade, é indispensável que elas sejam sempre originariamente compostas pela própria pessoa que as emprega, sob pena de não comportarem nenhuma grande eficácia. Por outro lado, esta fixidez nunca é completa, porque só diz respeito aos sinais artificiais, cuja uniformidade faz sobressair melhor as variações espontâneas da linguagem natural, quer musical, quer mímica, sempre mais estética que a outra. Esta originalidade poética se desenvolverá muito quando a educação regenerada houver assaz exercitado todos os positivistas nas apreciações, e mesmo nas composições, correspondentes, como vo-lo indicarei na terceira parte deste catecismo. Então a arte geral será sempre convenientemente assistida pelas artes especiais, pois que todos se terão familiarizado como o canto, base essencial da música, e com o desenho, fonte geral da tríplice arte da forma, pintada, escultura da ou construída. Enfim, cada elaboração do culto será, as mais das vezes, adornada com suplementos especiais avisadamente escolhidos no tesouro estético da humanidade. Ainda que este aditamento pareça limitado ao culto público, o culto privado admite uma aplicação útil e frequente dele, contanto que os empréstimos sejam feitos com discernimento e moderação. Os verdadeiros poetas tendo sempre exprimido os principais sentimentos de nossa imutável natureza, suas produções comportam amiúde uma suficiente analogia com as nossas próprias emoções. Quando esta coincidência, sem ser completa, muito se aproxima de o ser, tais empréstimos poéticos não nos oferecem só o mérito intelectual de uma expressão mais perfeita. Neles achamos sobretudo o encanto moral de uma simpatia pessoal. Quanto mais antigos são esses ornamentos, mais nos convêm, sancionando os nossos próprios afetos por essa harmonia espontânea em que nos sentimos, não só com o eminente autor, mas também com todas as gerações cujas efusões ele tem sucessivamente assistido. Mas este precioso auxílio só se torna de uma eficácia plena sob a condição de ficar sempre puramente acessório, embora a sua participação proporcional deva variar conforme os casos, como vo-lo indicarei daqui a pouco. A MULHER - Antes de me explicardes a influência científica do culto positivo, rogo-vos, meu pai, que esclareçais uma grave dificuldade, naturalmente suscitada pela exposição anterior. O culto e a poesia se me afiguram por tal modo confundidos em nossa religião que o surto comum daquele e desta parece exigir uma classe sacerdotal inteiramente distinta da que desenvolve e ensina o dogma. Sinto que esta separação seria em extremo perigosa, estabelecendo uma rivalidade intratável entre essas duas corporações, para decidir-se a qual delas pertenceria finalmente a direção do regime, que do mesmo modo poderia convir a ambas. Este conflito antolha-se-me tão grave que cumpre, de necessidade, desfazê-lo, sob pena de comprometer radicalmente a organização geral do nosso sacerdócio, que ficaria desde logo incapaz de presidir à vida privada, e sobretudo à vida pública. Mas, por outro lado, não compreendo como poderemos evitar suficientemente esta colisão, pois que a cultura poética e o estudo filosófico parecem exigir regimes inconciliáveis. O SACERDOTE - Este erro, que importa muito retificar, constitui, minha filha, um dos principais resultados da anarquia moderna, que tende por toda parte a dispersar nossas forças por meio de uma deplorável especialidade, não menos absurda que imoral. No estado normal só os trabalhos práticos são verdadeiramente especiais, pois que ninguém pode fazer tudo. Mas, cada qual devendo conceber tudo, a cultura teórica deve, pelo contrário, permanecer sempre indivisível. Sua decomposição fornece o primeiro sinal da anarquia. E assim que pensava a antiguidade teocrática, única sociedade plenamente organizada até hoje. Quando os poetas aí se separaram do sacerdócio, a decadência deste começou. Se bem que o gênio filosófico e o gênio poético não possam nunca achar simultaneamente altos destinos, a natureza intelectual de ambos é em tudo idêntica. Aristóteles teria sido um grande poeta e Dante um filósofo eminente se a situação histórica houvesse sido menos científica para um e menos estética para o outro. Todas estas distinções escolásticas foram imaginadas e sustentadas por pedantes que, não possuindo nenhuma espécie de gênio, nem sequer sabem apreciar o gênio alheio. A superioridade mental é sempre semelhante entre as diferentes carreiras humanas: a escolha de cada um é determinada pela sua situação, sobretudo histórica, porquanto a espécie domina sempre o indivíduo. A este respeito, a única diferença essencial que realmente existe é a que resulta da continuidade natural do serviço filosófico, em oposição à intermitência necessária do serviço poético. Os grandes poetas são os únicos eficazes, mesmo intelectualmente, e sobretudo moralmente; todos os outros fazem mais mal do que bem: ao passo que os menores filósofos podem ser verdadeiramente aproveitados, quando assaz honestos, sensatos e corajosos. A arte, devendo sobretudo fomentar em nós o sentimento da perfeição, não suporta nunca a mediocridade. O verdadeiro gosto supõe sempre uma grande suscetibilidade para sentir viva repulsão pelas produções inferiores. Desde Homero até Walter Scott, não existem no Ocidente senão treze poetas (Homero, Ésquilo, Dante, Tomás de Kémpis, Ariosto, Tasso, Cervantes, Shakespeare, Calderón, Corneille, Milton, Molière, Walter Scott) verdadeiramente grandes, dois antigos, onze modernos, incluindo mesmo neste número três prosadores. Entre os outros todos não se poderia citar mais de sete cuja leitura possa ou deva tornar-se diária. Quanto ao resto, será, sem dúvida, destruído quase inteiramente, por tão nocivo ao espírito como ao coração, quando a educação regenerada houver permitido extrair dele todos os documentos úteis, sobretudo históricos. Não há, pois, que constituir, na sociocracia ainda menos que na teocracia, uma classe fixa, exclusivamente ocupada da cultura poética. Mas os padres, habitualmente filósofos, se tornarão momentaneamente poetas quando a nossa Deusa precisar de novas efusões gerais, que bastem em seguida, durante muitos séculos, ao culto público e privado. As composições secundárias, naturalmente mais frequentes, ficarão, de ordinário, entregues à espontaneidade feminina ou proletária. Quanto às duas artes especiais, a aprendizagem prolongada que elas exigem, sobretudo em relação à forma, obrigará, sem dúvida, a consagrar-lhes alguns mestres escolhidos, que a educação positiva indicará espontaneamente ao sacerdócio diretor. Eles virão a ser verdadeiros membros deste ou permanecerão simples pensionistas, conforme a natureza deles for mais ou menos sintética. A MULHER - Semelhante esclarecimento permite-vos, meu pai, passar imediatamente à vossa última explicação geral sobre a eficácia de nosso culto. Sua aptidão estética parece-me evidente. Não vejo, porém, em que possa consistir sua influência científica. O SACERDOTE - Consiste, minha filha, em desenvolver melhor por toda parte a lógica universal, sempre fundada sobre um digno concurso dos sinais, das imagens e dos sentimentos, para assistir a elaboração mental. A lógica dos sentimentos é mais direta e mais enérgica que qualquer outra; porém os seus meios são demasiado vagos e inflexíveis. Eminentemente disponíveis e assaz multiplicados, os sinais artificiais compensam, por esta dupla propriedade, a menor eficácia lógica que resulta de sua fraca e indireta ligação com os nossos pensamentos. Mas as imagens devem completar este conjunto de recursos intelectuais, e mesmo só elas é que podem instituí-lo suficientemente, em virtude da natureza intermediária que lhes é própria. Ora, sobretudo em relação a este laço normal de nossa verdadeira lógica que o culto deve ser eficaz, conquanto ele também desenvolva os outros dois elementos. A este respeito, a criança que dignamente reza exercita melhor o seu aparelho meditativo do que o algebrista orgulhoso que, por falta de ternura e de imaginação, não cultiva, no fundo, senão o órgão da linguagem, mediante uma gíria especial, cujo bom emprego é muito limitado. Esta indicação faz assaz entrever o principal resultado científico do culto positivo. Vê-se, assim, que ele só diz respeito ao método propriamente dito e muito pouco à doutrina, salvo as noções morais, e mesmo intelectuais, que as nossas práticas religiosas espontaneamente proporcionam. O método, porém, terá sempre mais valor do que a doutrina, como os sentimentos em relação aos atos, e como a moral comparada com a política. A maior parte dos trabalhos teóricos até aqui acumulados quase que não têm senão um valor lógico: amiúde só nos ensinam noções ociosas, e algumas vezes nocivas. Se bem que este contraste provisório haja de diminuir muito, quando a disciplina enciclopédica nos houver libertado da mixórdia acadêmica, a verdadeira lógica não cessará nunca de prevalecer sobre a ciência propriamente dita, sobretudo para o público, e mesmo no sacerdócio. A MULHER - Só me resta perguntar-vos, meu pai, qual deve ser o destino especial das duas outras conferências que me prometestes acerca do culto positivo. Conquanto eu sinta bem que não exploramos bastante este belo domínio, não vejo nele o ponto para onde devemos dirigir ainda os nossos esforços. O SACERDOTE - Vós o compreendereis, minha filha, considerando que o nosso culto deve ser, sob pena de malogro radical, primeiro privado, depois público. Tais serão os objetos respectivos das duas conversações seguintes. Mas, antes de encetar a matéria, vossa atenção geral precisa apreciar diretamente esta grande subordinação, da qual depende, no fundo, a principal eficácia da religião positiva. A fim de apanhar melhor essa dependência, concebei estes dois cultos como endereçados respectivamente o primeiro à Mulher, o segundo à Humanidade. Sentireis, então, que a nossa Deusa não comporta como adoradores sinceros senão os que se prepararam para seu culto augusto por meio de uma prática condigna das secretas homenagens diariamente devidas aos seus melhores órgãos, sobretudo subjetivos, e mesmo objetivos. Em uma palavra, a verdadeira Igreja tem sempre por base primitiva a simples Família, ainda mais na ordem moral do que sob o mero aspecto social. O coração não pode evitar este primeiro início, conservado em seguida como estimulante habitual, do mesmo modo que o espírito não pode desprezar os menores graus enciclopédicos para subir aos mais elevados, que lhe fazem sentir sempre a necessidade de se retemperar na fonte de onde partiu. É sobretudo a prática assídua do culto privado que há de distinguir finalmente os verdadeiros positivistas dos falsos irmãos com que vamos ser obstruídos logo que a verdadeira religião prevalecer. Sem este sinal, uma fácil hipocrisia usurparia logo a consideração que só é devida aos adoradores sinceros da Humanidade. Entre esta e a Família cumprirá mesmo desenvolver o intermédio normal que resulta dos sentimentos naturais, hoje vagos e impotentes, que nos ligam de modo especial à Pátria propriamente dita. A impossibilidade de bem cultivar estes afetos intermediários senão em associações assaz restritas fornecerá sempre o melhor motivo para a redução, que mais tarde terei de vos explicar, dos grandes Estados atuais a simples cidades convenientemente escoltadas. QUARTA CONFERÊNCIA CULTO PRIVADO A MULHER - O culto privado parece-me, meu pai, que se deve compor, como a existência correspondente, de duas partes bem distintas, uma pessoal, outra doméstica, cuja separação afigura-se indispensável para que ele possa ser explicado. O SACERDOTE - Esta divisão natural, que eu não devia misturar com a principal decomposição do culto, determina, de fato, minha filha, o plano de nossa conferência atual. Duas grandes instituições sociolátricas, uma relativa aos verdadeiros anjos da guarda, outra aos nove sacramentos sociais, vão caracterizar aqui respectivamente em primeiro lugar o culto pessoal, depois o culto doméstico. Os motivos que fazem com que este dependa daquele são, em menor escala, essencialmente semelhantes aos que representam o conjunto do culto privado como a única base sólida do culto público. Mais íntimo que qualquer outro, o culto pessoal é o único que pode desenvolver assaz hábitos decisivos de uma adoração sincera, sem os quais nossas cerimônias domésticas e, com mais forte razão, nossas solenidades públicas careceriam de eficácia moral. A sociolatria institui assim, para cada coração, uma progressão natural, onde as efusões individuais preparam dignamente as celebrações coletivas, pelo intermédio normal das consagrações domésticas. A MULHER - Pois que o culto íntimo se torna, assim, a primeira base de todas as nossas práticas sagradas, rogo-vos, meu pai, que me expliqueis diretamente a verdadeira natureza dele. O SACERDOTE - Ele consiste, minha filha, na adoração cotidiana das melhores personificações que nos seja dado assinalar à Humanidade, à vista do conjunto de nossas relações privadas. Toda a existência do Ser supremo fundando-se no amor, único laço que reúne voluntariamente os seus elementos separáveis, o sexo afetivo constitui naturalmente o representante mais perfeito, e ao mesmo tempo o principal ministro do Grande Ser. A arte jamais poderá representar a Humanidade de modo condigno senão sob a forma feminina. Mas a providência moral de nossa Deusa não se exerce só pela ação coletiva do vosso sexo sobre o meu. Esse ofício fundamental resulta sobretudo da influência pessoal que cada digna mulher desenvolve sem cessar no seio de sua própria família. Do santuário doméstico dimana de contínuo esse santo impulso, único que nos pode preservar da corrupção moral a que sempre nos dispõe a existência prática ou teórica. Sem tais raízes privadas, a ação coletiva da mulher sobre o homem não comportaria, por outro lado, nenhuma eficácia permanente. É também na família que se realiza uma apreciação suficiente do sexo afetivo, do qual cada um de nós só pode conhecer de modo real os tipos com que vive intimamente. Eis aí como, no estado normal, cada homem acha em tomo de si verdadeiros anjos da guarda, ao mesmo tempo ministros e representantes do Grande Ser. A adoração secreta deles, consolidando e desenvolvendo a influência contínua que lhes cabe, tende diretamente a nos tornar sempre melhores e mais felizes, fazendo gradualmente prevalecer o altruísmo sobre o egoísmo, pela expansão de um e compreensão do outro. Nossa justa gratidão pelos benefícios já recebidos transforma-se, assim, em fonte natural de novos progressos. A feliz ambiguidade da palavra francesa patron: caracteriza assaz esta dupla eficácia do culto íntimo, no qual cada anjo deve ser igualmente invocado como protetor e como modelo. A MULHER - Este primeiro apanhado deixa-me, meu pai, muito indecisa sobre a natureza do tipo pessoal, que, parece-me, poderia dimanar, do mesmo modo, de qualquer uma das grandes relações domésticas. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, cumpre combinar dignamente três dessas relações para que o culto angélico comporte uma eficácia plena. Esta multiplicidade se acha dogmaticamente indicada pela de nossos instintos simpáticos, a cada um dos quais corresponde especialmente uma das principais influências femininas. A mãe, a esposa e a filha devem, em nosso culto, como na existência que ele idealiza, desenvolver respectivamente em nós a veneração, o apego e a bondade. Quanto à irmã, seu impulso próprio é muito pouco distinto, e pode sucessivamente prender-se a cada um dos três tipos essenciais. O conjunto deles nos representa os três modos naturais da continuidade humana, em relação ao passado, ao presente e ao futuro, como também os três graus da solidariedade que nos ligam aos superiores, aos iguais e aos inferiores. Mas a harmonia espontânea dos três tipos não pode ser assaz mantida senão mediante a subordinação natural deles, que deve fazer prevalecer habitualmente o anjo materno, sem que a sua doce presidência altere jamais os dois outros impulsos. Para o principal destino deste culto íntimo, que de ordinário se refere à idade madura de cada adorador, concorre o fato de ter um dos três tipos femininos já se tornado subjetivo na maioria dos casos, ao passo que um dos outros se conserva ainda objetivo. Esta mistura normal aumenta a eficácia de tais homenagens, onde a força e a nitidez das imagens ficam, assim, mais combinadas com a consistência e a pureza dos sentimentos. A MULHER - Conquanto esta explicação se me afigure muito satisfatória, sinto, meu pai, uma grande lacuna com relação ao meu próprio sexo, cujas necessidades morais me parecem ser aqui desprezadas. Nossa ternura especial não pode, contudo, nos dispensar dessa cultura habitual. O SACERDOTE - A pluralidade dos tipos angélicos fornece facilmente, minha filha, a solução normal desta grave dificuldade, que de outro modo seria insuperável. Com efeito, o anjo principal é o único que deve ser comum aos dois sexos, tomando cada um destes ao outro os dois anjos complementares. Porquanto a mãe tem para ambos os sexos igual preponderância, não só como fonte essencial de nossa existência, mesmo física, mas sobretudo em virtude de sua presidência normal no conjunto de nossa educação. A esta adoração comum, vosso sexo ajunta o culto do esposo e do filho, pelos motivos acima indicados para o meu quanto à esposa e à filha. Somente este contraste é quanto basta para corresponder às necessidades respectivas, que exigem um patrocínio adequado a desenvolver especialmente, de um lado a energia e do outro a ternura. A MULHER - Apesar do atrativo que já me inspira esta santa instituição, ainda encontro nela, meu pai, duas imperfeições gerais, quer por não utilizar todas as relações privadas, quer por não haver previsto assaz a insuficiência muito frequente dos tipos naturais. O SACERDOTE - Este duplo óbice desaparece, minha filha, tendo-se em conta os diversos tipos acessórios que se prendem espontaneamente a cada um dos nossos três tipos principais, segundo a conformidade dos sentimentos e a similitude dos laços. Em tomo da mãe agrupam-se naturalmente, em primeiro lugar, o pai, e algumas vezes a irmã, depois o mestre e o protetor, além das relações análogas que se podem multiplicar muito na família, e sobretudo fora dela. Estendendo a mesma apreciação aos outros tipos, instituímos uma série de adorações, gradativamente menos íntimas; porém cada vez mais gerais, de onde resulta uma transição quase insensível do culto privado para o culto público. Este desenvolvimento normal também permite preencher, tanto quanto possível, as lacunas excepcionais, substituindo, em caso de necessidade, um dos tipos essenciais pelo seu melhor adjunto. Pode-se, assim, renovar subjetivamente as famílias mal compostas. A MULHER - Á vista deste esclarecimento complementar, só me resta, meu pai, pedir-vos explicações mais precisas sobre a instituição geral das orações que correspondem a este culto fundamental. O SACERDOTE - O culto íntimo exige, minha filha, três orações cotidianas: ao levantarmo-nos, ao aproximar-se o sono e no meio das ocupações práticas ou teóricas. A primeira, mais extensa e mais eficaz que as outras duas, faz começar cada dia humano por uma digna invocação angélica, única capaz de nos dispor habitualmente ao bom emprego de nossas forças quaisquer. Na última exprime-se a gratidão devida a essa proteção cotidiana, de modo a prolongar sua eficácia durante o sono. A do meio do dia deve-nos libertar por alguns momentos dos impulsos teóricos e práticos, para melhor fazer penetrar neles a influência afetiva, de que eles tendem sempre a nos afastar. Semelhante destino logo indica as épocas respectivas das três preces positivistas, e mesmo os modos de sua realização. A primeira terá lugar, antes de qualquer ocupação, no altar doméstico, instituído de conformidade com as nossas melhores recordações, e na atitude da veneração. A última, porém, deve efetuar-se no leito e prolongar-se, tanto quanto possível, até a invasão do sono, a fim de assegurar melhor a calma cerebral, quando estamos menos garantidos contra as tendências viciosas. Posto que a hora da oração média não possa ser tão bem determinada, pois que deve variar segundo as conveniências individuais, importa que cada um lhe dê, pelo modo que puder, uma fixidez rigorosa, que facilitará as disposições que ela exige. A duração respectiva de nossas três orações cotidianas é analogamente indicada pelo destino próprio de cada uma delas. Em geral, convém que a da manhã dure duas vezes mais, a do meio duas vezes menos que a da noite. Quando o culto íntimo se acha plenamente desenvolvido, a oração principal absorve espontaneamente toda a primeira hora de cada dia. É isto devido sobretudo à decomposição de sua fase inicial em duas partes que duram tanto como a fase final, fazendo preceder a comemoração comum a todos os dias da semana pela que se torna peculiar a cada um deles. Daí resulta a divisão usual da reza da manhã em três tempos iguais, em que prevalecem, respectivamente, primeiro as imagens, depois os sinais, e por fim os sentimentos. As duas outras preces não comportam a mesma proporção entre a comemoração e a efusão. Ao passo que de manhã esta dura, ao todo, duas vezes menos que aquela, a relação torna-se inversa à noite e a igualdade distingue a do meio do dia. Facilmente explicareis estas diversidades secundárias. Convido-vos, porém, a notar que, à vista do conjunto destas indicações, a duração total de nosso culto cotidiano alcança somente duas horas, mesmo para aqueles que são levados a reproduzir à noite a oração do meio do dia. Cada positivista consagrará, portanto, ao seu íntimo aperfeiçoamento cotidiano menos tempo do que absorvem hoje as leituras viciosas e as diversões inúteis ou funestas. É só aí que se efetua o surto decisivo da vida subjetiva, em virtude de nossa identificação crescente com o ente adorado, cuja imagem gradualmente purificada se torna mais viva e mais nítida em cada novo ano de culto. Por estas práticas secretas, cada qual se prepara para receber dignamente a excitação simpática que resultará da publicidade peculiar aos outros ritos sagrados de nossa religião. Espero que as nossas regras sociolátricas, graças a tal conjunto de aptidões morais, poderão superar, na elite dos dois sexos, a grosseria atual dos costumes ocidentais. As almas vulgares e incultas consideram ainda como perdido todo o tempo que não é preenchido pelo trabalho material. Nas classes cultivadas já se reconhece o valor próprio do exercício meramente intelectual. Mas desde o fim da Idade Média, o homem tem esquecido por toda parte o valor direto e superior da cultura moral propriamente dita. E quase se envergonharia de lhe consagrar tanto tempo quanto lhe dedicava diariamente o grande Alfredo (Alfredo, o Grande, rei da Inglaterra. "Ele dividia habitualmente seu tempo em três porções iguais: uma era consagrada ao sono, às refeições e aos exercícios do corpo; outra, ao despacho dos negócios; a terceira, ao estudo e à devoção." (Hume, História da Inglaterra) - Alfredo ocupa no calendário concreto o primeiro domingo do mês de Carlos Magno), sem que isso alterasse de modo algum sua admirável atividade. Para completar esta teoria especial das orações cotidianas, devo assinalar-vos a este respeito a desigual participação dos ornamentos, sempre acessórios, tirados com critério do tesouro estético da humanidade. Eles são naturalmente mais próprios para secundar a efusão do que a comemoração. Por conseguinte, essa assistência convém mais à noite do que pela manhã. Mas este auxílio é sobretudo destinado a dispensar-nos da espontaneidade que de ordinário nos falta na prece média, onde a efusão final se pode efetuar quase inteiramente por meio de uma acertada escolha de trechos poéticos. Quando o canto e o desenho se tiverem tornado por toda parte tão familiares como a palavra e a escrita, esta contribuição exterior satisfará mais nossas necessidades interiores, durante esses langores demasiado frequentes de nossas melhores emoções. (É mister completar tudo quanto ficou explicado sobre a oração positivista com os seguintes trechos da Política Positiva (tomo IV, pp. 114-118): "Devo agora completar a exposição do culto pessoal explicando o conjunto de práticas cotidianas, únicas que podem proporcionar-lhe uma eficácia suficiente. Todas devem ser qualificadas de preces, reduzindo este termo necessário ao nobre sentido que as almas ternas apanharam cada vez mais através do egoísmo teológico. Então, ele designa sempre uma comemoração seguida de efusão. No culto íntimo, estas duas partes essenciais da prece positiva tomam, quase igualmente, um destino concreto, dirigido sobretudo ao principal patrocínio, a fim de concentrar melhor as emoções. Conquanto a fase ativa deva diretamente tornar-se mais decisiva do que a fase passiva, esta serve habitualmente de base àquela, que de outro modo não poderia comportar bastante profundeza. Por isso é que, na principal prece cotidiana, a efusão dura metade menos do que a comemoração. Porém, esta deve então decompor-se em duas fases iguais: a primeira, peculiar a cada dia da semana, segundo as recordações que a ele se referem; a segunda, comum a todos os dias, para aí lembrar sem cessar o conjunto das relações, contempladas conforme a verdadeira sucessão delas. O campo mais vasto da última não deve fazê-la durar mais, porque os sinais dominam nela, ao passo que a outra emprega sobretudo as imagens. Assim preparada pela contemplação mais completa sucedendo à mais intensa, a efusão, sempre sintética, tende diretamente para o destino geral do culto íntimo. Tal é a decomposição normal da prece pessoal em três fases de igual duração, cujo conjunto constitui uma progressão cerebral, onde a preponderância sucessiva das imagens, dos sinais e dos sentimentos, deve terminar na evocação subjetiva que caracteriza a eficácia da adoração. Este resultado decisivo do culto íntimo não pode nunca adquirir a nitidez nem a intensidade das impressões objetivas. Mas, como este limite ideal é atingido, e algumas vezes excedido, na exaltação mórbida, o estado normal permite que dele nos aproximemos cada vez mais, à medida que a assiduidade das adorações cotidianas vai desenvolvendo a eficácia cerebral delas. As almas dignas podem assim obter satisfações desconhecidas dos corações sem cultura, e mesmo dos que dirigem suas homenagens a entes heterogêneos. A fim de aumentar a energia destas práticas habituais, importa empregar nelas criteriosamente o concurso do sentido mais simpático com o mais sintético, aliando os sons às formas. Se bem que a prece oral pareça reservada às celebrações coletivas, sempre se reconheceu que ela pode também aperfeiçoar a adoração solitária, frequentes vezes qualificada de invocação. Todavia, ela convém mais à efusão do que à comemoração, cuja primeira fase sobretudo deve empregá-la pouco. O conjunto destas indicações basta para representar a prece cotidiana dos positivistas como uma obra de arte, cuja composição pertence a cada adorador, que é o único que pode fazer ali concorrer dignamente os sons e as formas, a fim de exprimir melhor seus sentimentos. Esta combinação espontânea dos dois modos estéticos adquire mais eficácia quando se completa a positividade pelo fetichismo, sem que vãos escrúpulos devam, jamais, demover-nos de animar ingenuamente todos os objetos assaz ligados à adoração. Conquanto nada aí possa dispensar-nos da originalidade das composições, estas podem ser aperfeiçoadas mediante aceitados empréstimos ao tesouro poético da Humanidade. Contanto que essas fórmulas gerais sejam assaz conformes com as nossas emoções, a assistência moderada delas deve aumentar o poder das emoções, ativas ou passivas, proporcionando-lhes, além da sanção de um órgão eminente, o concurso ideal de todas as almas que ele comoveu. Mas a plenitude estética da educação positiva permitirá que se complete este auxilio subordinando à arte fundamental seus dois auxiliares especiais, quando o canto e o desenho se tiverem tomado tão familiares quanto a palavra e a escrita. Serão aí sobretudo destinados a compensar a uniformidade necessária de cada prece, cujo fundo, uma vez instituído, não deve receber senão raros melhoramentos, em virtude de necessidades sentidas durante muito tempo, a fim de que o hábito facilite a expansão. Como toda variedade tem de limitar-se ao desenvolvimento, fônico ou mímico, das fórmulas consagradas, as duas artes especiais o tomarão mais completo e mais enérgico se a assistência deles não exigir esforços atuais. Quanto à pluralidade das preces cotidianas, cumpre reconhecer primeiro o predomínio normal da adoração que consagra a primeira hora de cada dia a colocar o conjunto deste sob o patrocínio das melhores personificações da Humanidade. É aí que todos os meios secundários devem mais concorrer para completar cada uma das três fases do culto pessoal. Mas, na proximidade do sono, uma prece conveniente, durando a metade do tempo, protegerá a harmonia cerebral contra as perturbações noturnas. Enfim, pelo meio do dia, a mais curta das adorações cotidianas suspenderá as ocupações, teóricas ou práticas, para recordar-nos afetivamente O destino fundamental que elas tendem a desprezar. Tais são as três preces cotidianas do verdadeiro positivista, que deverá saber proporcionar convenientemente nelas a comemoração e a efusão, assim como graduar com critério o uso dos meios acessórios, sem que seja necessário especificar aqui estas fáceis explicações. Porém, estas práticas cotidianas, que se devem concentrar na padroeira principal, exigem um complemento hebdomadário, no qual essa presidência contínua, assistida pelos dois outros tipos essenciais, permita o digno surto das homenagens pessoalmente devidas a todas as adjunções. As propriedades numéricas que dirigiram espontaneamente a instituição subjetiva desse período (a semana) devem introduzi-lo no culto intimo, posto que ele convenha melhor às celebrações públicas. Dando maior desenvolvimento a algumas destas solenidades hebdomadárias, cada qual construirá para si festas anuais, que completarão a adoração pessoal, em consequência de sua relação normal com o segundo elemento objetivo da coordenação dos tempos. Seria ordinariamente supérfluo instituir celebrações mensais, quando o uso universal do calendário positivista, explicado adiante, fará concordar as datas peculiares aos dois períodos artificiais. Cada um dos dois cultos extremos deve apenas oferecer três graus normais: cotidiano, hebdomadário, anual, em relação à adoração pessoal; hebdomadário, mensal, anual, nas solenidades públicas. Para manter a continuidade sociolátrica, a prece principal cotidiana exige uma precaução habitual destinada a prevenir a divergência proveniente de seu início variar conforme os dias da semana. A conexão estabelece-se mediante um preâmbulo uniforme, constituindo uma curta invocação, à qual preside uma das imagens secundárias que se referem à véspera. Se este dia não tiver deixado objetivamente senão uma única recordação, colher-se-ão em breve as outras nas impressões subjetivas que há de produzir espontaneamente o hábito do culto, cujas principais influências se transformarão em acontecimentos pessoais. Em segundo lugar, a faculdade de suspender voluntariamente a visão permite-nos proporcionar às imagens interiores um acréscimo de intensidade que os resultados da audição não comportam. Contudo, não convém subtrair os olhos ao espetáculo exterior a fim de vermos melhor em nós mesmos, quando a obscuridade for espontaneamente suficiente. Porquanto o esforço necessário para nos isolarmos assim desvia uma parte do poder cerebral, ao passo que o esforço exigido pela contemplação objetiva concorre para a evocação anterior, aproximando nossa situação da que primitivamente nos afetou. Cumpre também anotar, a respeito de todos os modos peculiares à adoração íntima, uma precaução suscitada pela sua natureza concreta, em consequência do estado subjetivo que ordinariamente apresenta a imagem preponderante e mesmo a maior parte das outras. Em relação a cada um desses entes objetivamente extintos, não devemos temer contemplar habitualmente a catástrofe que nos privou dele. O quadro de seus últimos momentos deve figurar dignamente em cada adoração, a fim de caracterizar melhor aí a inauguração natural da eternidade subjetiva que queremos, sob sua assistência, merecer com ele. Finalmente, devemos assinalar a inovação introduzida no culto íntimo por Henry Edger, e aceita pelo Mestre, que consiste em consagrar cada um dos dias da semana à repressão especial de um dos sete instintos egoístas - Lettres à Edger, pp. 24-25). A MULHER - Tendo assaz compreendido nosso culto pessoal, esforço-me, meu pai, por pressentir em que deverá consistir o culto doméstico propriamente dito. Mas não posso ainda formar espontaneamente uma ideia satisfatória. Vejo bem que, assim como o culto íntimo, pode o culto doméstico instituir uma adoração assídua dos tipos comuns a toda a família. Do mesmo modo pode ele reproduzir, para esta associação elementar, as invocações coletivas que o culto público endereça diretamente à humanidade. Estas duas ordens de práticas religiosas, sob o sacerdócio espontâneo do chefe da família, comportam, sem dúvida, uma alta eficácia moral. Todavia, isto não basta para imprimir ao nosso culto doméstico um caráter verdadeiramente distinto, que não o confunda com nenhum dos outros dois cultos, aos quais ele deve servir de intermediário. (O extrato seguinte da Política Positiva (tomo IV, pp. 120-121) completa o que ficou dito no texto sobre o culto doméstico: Tendo assaz explicado o culto fundamental, devo caracterizar agora o segundo elemento da sociolatria. À primeira vista parece não se distinguir dos outros dois senão pelo esboço doméstico da adoração concreta ou da efusão abstrata que lhes são respectivamente próprias. Conquanto esta dupla diferença não comporte instituições especiais, ela exige novas preces, adaptadas ao primeiro grau de associação (a família). Tornada assim coletiva, a adoração concreta estende-se mais, sobretudo quanto ao passado, quando o chefe da família invoca, como deuses, seus principais antepassados, cuja evocação subjetiva, assistida dos meios estéticos, deve reanimar os sentimentos comuns. O sacerdócio espontâneo, da mãe, em seu santuário normal, prepara o culto do Grande Ser, que ela aí personifica, mediante preces abstratas das quais meu prefácio geral já indicou uma feliz tentativa). O SACERDOTE - A instituição dos sacramentos sociais preenche, minha filha, esta condição necessária. É por eles que o culto doméstico se distingue profundamente dos outros dois, ao passo que lhes fornece uma transição natural. Consiste essa instituição em consagrar todas as fases sucessivas da existência privada, ligando cada uma delas à vida pública. Daí resultam os nossos nove sacramentos sociais: a apresentação, a iniciação, a admissão, a destinação, o casamento, a madureza, o retiro, a transformação e, enfim, a incorporação. A sucessão invariável destes sacramentos constitui uma série de preparações pelas quais, durante o conjunto da vida objetiva, cada digno servidor da Humanidade tende gradualmente para a eternidade subjetiva que deve erigi-lo, afinal, em órgão próprio da deusa. A MULHER - Posto que os limites normais deste catecismo vos vedem, meu pai, uma explicação verdadeiramente completa de todos os nossos sacramentos, espero que podereis suficientemente caracterizar aqui cada um deles. O SACERDOTE - Pelo primeiro, minha filha, a religião final consagra sistematicamente cada nascimento, como fizeram espontaneamente todas as religiões preliminares. A mãe e o pai do novo rebento da Humanidade vêm apresentá-lo ao sacerdócio, que recebe deles o compromisso solene de o prepararem convenientemente para o serviço da deusa. Esta garantia natural é completada por uma dupla instituição, cujo germe o positivismo se honra de ter tomado ao catolicismo, desenvolvendo-o sob a inspiração social. Um par artificial, por escolha dos pais, mas com a aprovação do sacerdócio, proporciona livremente ao futuro servidor do Grande Ser uma nova proteção, sobretudo espiritual, e, em caso de necessidade temporal, à qual se associam todas as testemunhas especiais. O apresentado recebe também, de suas duas famílias, dois patronos particulares, um teórico, outro prático, que ele próprio completará por ocasião de emancipar-se, impondo a si mesmo um terceiro prenome (É necessário adotarmos este termo (prenome) com a significação precisa que tem em francês. Nossa expressão - nome de batismo - só pode ser aplicada aos casos cristãos. V. nosso Discurso Consecratório da Apresentação, Rio, 1885. A apresentação deverá efetuar-se, tanto quanto possível, durante o primeiro ano, antes do fim do aleitamento (Lettres à Edger, p. 18); e o seu adiamento nunca deverá exceder o 14° ano), tirado igualmente dos representantes sagrados da Humanidade. (Os representantes sagrados da Humanidade são os tipos que figuram no calendário histórico. Cumpre, porém, atender à restrição estabelecida por Auguste Comte numa carta ao seu discípulo norte-americano Henry Edger: "Quanto ao prenome provisório que tomastes," devo recomendar-vos, para evitar um precedente vicioso, que circunscrevais doravante essas escolhas aos meses de São Paulo e de Carlos Magno, onde se encontram os únicos tipos femininos que comportam o patrocínio moral (excetuando, todavia, Isabel, a Católica, e Maria de Molina, no mês de Frederico). Todas as outras mulheres do calendário histórico, não representando senão o mérito intelectual, não podem servir de padroeiras, mesmo provisoriamente. Com mais forte razão cumpre assim julgar as escolhas masculinas, a menos que não sejam aplicadas a meninos, e neste caso o mês de César pode ser juntado aos outros dois). Na civilização antiga, este primeiro sacramento era amiúde recusado, sobretudo aos entes julgados incapazes da atividade destrutiva que então prevalecia. Mas a sociabilidade moderna utilizando cada vez mais todas as naturezas, a apresentação será quase sempre aceita pelo sacerdócio, salvo em casos tão excepcionais que não é necessário prevê-los. O segundo sacramento é qualificado de iniciação porque marca o primeiro surto da vida pública, quando o menino passa, aos catorze anos, da educação espontânea, que sua mãe dirigia, para a educação sistemática, ministrada pelo sacerdócio. Até então os conselhos do padre só se endereçavam aos pais naturais e artificiais, para lembrar-lhes os seus deveres essenciais durante a primeira infância. Mas aqui o novo ser recebe diretamente advertências religiosas, destinadas sobretudo a premunir-lhe o coração contra as reações viciosas muito amiúde inerentes à cultura teórica a que ele vai se submeter. Este segundo sacramento é suscetível de adiamento, e algumas vezes de recusa, ainda que raramente, se a educação doméstica não tiver dado resultado satisfatório. Sete anos depois, o jovem adepto, primeiro apresentado, em seguida iniciado, obtém, em virtude do conjunto de suas preparações, o sacramento da admissão, que o autoriza a servir livremente a Humanidade, da qual até então ele tudo recebeu sem lhe retribuir nada. Todas as legislações temporais têm reconhecido a necessidade de adiar, e de até recusar, semelhante emancipação aos entes que uma organização demasiado imperfeita, mal retificada pela educação, condena a uma infância eterna. Uma apreciação mais exata há de, com mais razão, conduzir o sacerdócio a severidades análogas, cujos resultados diretos se limitarão sempre ao domínio espiritual. Este terceiro sacramento erige o menino em servidor, mas sem que ele possa especificar ainda sua própria carreira, muitas vezes diferente daquela que se lhe supôs durante a aprendizagem prática que teve de coexistir com sua educação teórica. Só ele pode decidir convenientemente sobre este assunto, em virtude de ensaios livremente tentados e suficientemente prolongados. Daí resulta a instituição de um quarto sacramento social que vem, aos vinte e oito anos, salvo pedido ou prescrição de adiamento, consagrar a destinação assim escolhida. O culto antigo apenas oferecia um esboço deste sacramento quanto às mais elevadas funções, na ordenação dos padres e na sagração dos reis. Mas a religião positiva deve sempre instituir socialmente todas as profissões úteis, sem distinção de públicas ou privadas. Os mínimos servidores do Grande Ser virão, no seu templo, receber solenemente, do sacerdócio da Humanidade, a consagração inicial de suas cooperações quaisquer. É o único sacramento suscetível de verdadeira renovação, sempre excepcional. A MULHER - Compreendo, meu pai, esta série de consagrações anteriores ao casamento, que será seguido dos outros quatro sacramentos positivistas. Quanto a este sacramento principal, o único que completa o conjunto das preparações humanas, já conheço a doutrina essencial do positivismo. Sobretudo comove-me profundamente a grande instituição da viuvez eterna, há muito esperada por todos os corações verdadeiramente femininos. Além de sua importância doméstica, e mesmo cívica, só ela pode desenvolver assaz a vida subjetiva para elevar nossas almas até a representação familiar do Grande Ser, mediante uma digna personificação. Todas estas noções preciosas já me eram quase próprias, antes de ser vossa catecúmena. Sei, aliás, que voltareis ao assunto, sob outro aspecto, quando me explicardes o regime. Podemos, portanto, começar a última série de nossas consagrações. (Completar o que fica dito sobre a viuvez eterna e o sacramento respectivo com os seguintes extratos: Preâmbulo casto e viuvez eterna. "Sabe-se que a religião da Humanidade considera o estabelecimento da monogamia como o principal resultado da transição ocidental entre a teocracia e a sociocracia. Depois de ter-se aproximado gradualmente, durante estes trinta séculos, de sua plenitude normal, esta instituição decisiva atinge-a na regeneração positivista que faz prevalecer livremente a viuvez eterna, sem a qual a poligamia persiste subjetivamente. Resumo natural da verdadeira teoria do casamento, este complemento necessário toma-se o guia geral da quinta consagração. Para assegurar melhor a madureza de tal compromisso, a experiência da nova igreja já provou que ele não deve ser recebido senão três meses após a celebração cívica que permite ao novo par uma inteira intimidade. Um mês antes da cerimônia municipal os noivos prometem solenemente guardar uma castidade perfeita durante este preâmbulo trimestral da consagração religiosa. Sem semelhante prova, nenhum deles poderia garantir suficientemente sua própria resolução, nem contar assaz com a do outro. O laço conjugal fica dignamente inaugurado por este noviciado decisivo, que, apesar da liberdade legal, mostra os dois esposos preparando-se para o casamento subjetivo, fruindo, em toda a sua pureza, a fusão das almas. Assim dispostos a considerar o aperfeiçoamento mútuo como o verdadeiro destino de uma associação em que a procriação é apenas acessória, são eles admitidos, no nome do Grande Ser, a assinar, com todas as testemunhas, o compromisso solene de uma eterna união. Conquanto estas garantias devam ordinariamente tomar irrevogável essa livre obrigação, ela comporta, entretanto, dispensas excepcionais, cuja concessão pertence unicamente ao Sumo Pontífice da Humanidade, fundando-se num inquérito especial. Esta decisão pontifical oferece mais gravidade quanto ela estigmatiza naturalmente uma memória, a menos que o sobrevivente não se ache espontaneamente desligado do seu voto por um arrastamento verificado, que tais precauções tomam quase impossível. No caso normal, a promessa da viuvez eterna será solenemente renovada seis meses depois do ano de luto, sem que nunca mais possa comportar dispensa alguma. Mas o compromisso deve, mesmo então, permanecer puramente religioso, a fim de que sua dignidade não seja jamais alterada por prescrições legais, quaisquer que venham a ser as exigências da opinião universal, às quais o patriarcado saberá resistir sempre pelas instâncias do sacerdócio (Política Positiva, tomo IV, pp. 127-128). Casamento misto. Visto a próxima extensão do casamento positivista, devo resolver aqui uma dificuldade especial, sobre a qual tenho sido amiúde consultado, quanto às uniões mistas, que, finalmente estranhas ao estado normal, prevalecerão durante a transição orgânica. O positivismo é a única doutrina que as pode consagrar, sem inconsequência, em virtude de seu caráter relativo, que lhe permite encarar todas as crenças anteriores como outras tantas preparações para a fé demonstrável. Ele fará concorrer esses laços para a digna propagação do culto universal, tanto entre os politeístas, e mesmo entre os fetichistas, como entre os diversos monoteístas. Esta fusão exige duas condições gerais, a fim de não alterar nunca o justo ascendente da religião final por uma tentativa sem êxito, amiúde degenerada em luta permanente. Cumpre, antes de tudo, restringir a esperança da conversão ao sexo mais modificável, cujo apego aos antigos cultos merece o maior respeito, como determinado sobretudo pelas necessidades do coração, apesar das instigações do espírito. Conquanto o positivismo deva utilizar, melhor do que o catolicismo, a influência feminina, ele manterá mais a dignidade masculina, confiando somente ao esposo um ofício didático que não convém à esposa. A harmonia conjugal ficaria gravemente comprometida se a mulher esperasse do casamento a conversão que ela não tiver podido determinar previamente. Mas o homem deve de ordinário esperar trazer gradualmente à fé positiva uma companheira naturalmente disposta a receber dignamente a iniciação mental, e sobretudo a sentir convenientemente a superioridade moral da verdadeira religião. Assim concebido, o casamento misto é permitido a todo positivista assaz emancipado das religiões anteriores para tomar parte passivamente em suas cerimônias quaisquer, sem nenhuma adesão mentirosa. Muitas vezes tenho induzido verdadeiros parentes a dar livremente esse justo testemunho de deferência pessoal e de respeito cívico. Mas, em virtude dessa iniciativa do homem, a mulher deve sempre conceder uma reciprocidade suficiente, consentindo em contrair, no templo da Humanidade, o compromisso solene da viuvez positivista. Este grau de adesão à religião universal permite já a harmonia conjugal e deixa esperar para breve uma conversão decisiva, em que o coração auxiliará o espírito a sentir a indivisibilidade da verdadeira fé. Se a mulher recusar semelhante concessão, o sacerdócio não poderá conceder o casamento, e o homem deverá adiá-lo até que essa condição seja preenchida, a fim de não suscitar uma luta incerta, tão contrária à felicidade como à dignidade. Na situação ocidental, em que a antiga fé não pode realmente inspirar nenhum fanatismo, esta obstinação anunciaria a esperança de um vicioso domínio, mal dissimulado sob a impossibilidade de renunciar ao culto anterior. Ilusório para os monoteístas, dos quais certos antepassados tiveram que abandonar a religião de seus pais, este motivo só se toma verdadeiramente respeitável em mulheres politeístas ou fetichistas, entre as quais a viuvez positivista será sempre acolhida. Qualquer que seja o modo por que se efetue o casamento misto, ele não deve alterar nunca a regra positivista que confia à mãe a superintendência da educação dos filhos sem distinção. Uma crença atrasada não obsta a que a esposa seja, em virtude de sua preeminência moral, mais capaz do que o esposo para dirigir a iniciação doméstica, e mesmo para fiscalizar a instrução pública, a fim de subordinar O espírito ao coração. Todo verdadeiro positivista respeitará sempre esta atribuição, já por efeito de uma sã apreciação do verdadeiro ofício da inteligência na preparação humana, já porque sente assaz a superioridade de sua própria fé para esperar que ela acabe por prevalecer espontaneamente. Auguste Comte foi levado mais tarde a excluir do casamento misto as mulheres que não professassem religião alguma. Referindo-se ao caso particular que lhe inspirou semelhante exclusão, nosso Mestre escrevia a J. Fisher: Podemos verificar assim quanto é perigoso aliar-se a essas famílias, incuravelmente revolucionárias, cujo tipo permanece felizmente restrito à França, onde ele estende-se mesmo raramente às mulheres. Sob o impulso de um pai estupidamente rousseauniano, essa jovem senhora pensa e diz que a vida humana não precisa absolutamente ser sistematicamente regulada, e que o sentimento basta só para conduzir-nos. Por conseguinte, ela não professa senão um deísmo vago e estéril, ou, antes, perturbador, que de modo algum pode determinar o casamento misto, que de boa mente eu concederia a toda mulher católica, muçulmana, protestante ou mesmo judia. Daqui por diante saberei impedir, tanto quanto couber em mim, semelhantes uniões, recusando-me a casar, desde o preâmbulo, todo positivista cuja esposa for inteiramente destituída de qualquer religião. Todas as almas verdadeiramente religiosas devem, sob a nossa presidência, se concertar para repelir semelhantes famílias, que cumpre gradualmente reduzir a não se aliarem senão entre si só pelo laço municipal. Renovação do casamento. O positivismo também concede a sanção religiosa aos cônjuges convertidos posteriormente ao seu casamento, efetuado por outro rito, ou apenas civilmente. Ainda a propósito do caso particular do parágrafo anterior, Auguste Comte escrevia ao mesmo discípulo: A união religiosa desse par já não pode mais efetuar-se senão pelo modo peculiar aos casamentos renovados, do que já existem dois exemplos normais, exigindo, porém, pelo menos, três anos de vida em comum, para que a experiência tenha assaz manifestado a insuficiência dos laços ordinários, que primeiro foram julgados bastantes). O SACERDOTE - Todavia, minha filha, cumpre fixar, em primeiro lugar, a idade normal do principal sacramento social. Pois que o casamento deve seguir, e não preceder, a destinação especial, o homem não poderá receber o sacramento respectivo antes de ter completado vinte e oito anos. O sacerdócio aconselhará mesmo ao governo que estenda até trinta anos o veto legal do chefe de família, a fim de prevenir melhor toda precipitação no mais importante de todos os nossos atos privados. Quanto às mulheres, o sacramento da destinação coincide necessariamente com o da admissão, por causa da feliz uniformidade de sua vocação sempre conhecida. Elas ficam aptas para o casamento desde a idade de vinte e um anos, o que, aliás, garante melhor a harmonia conjugal. Estes limites inferiores não podem ser diminuídos, em um e outro sexo, senão por motivos muito excepcionais, maduramente apreciados pelo sacerdócio, sob sua responsabilidade moral. Mas não é necessário fixar, em geral, nenhum limite superior, se bem que as mulheres devam quase sempre casar-se antes dos vinte e oito anos e os homens antes dos trinta e cinco, quando a vida conjugal for dignamente instituída. (Contudo o sacerdócio não deverá permitir, sem graves motivos, o casamento além de trinta e cinco anos no homem e de vinte e oito na mulher). A MULHER - O primeiro dos sacramentos depois do casamento parece-me, meu pai, bastante explicado só pela sua definição. Vós já me tínheis feito notar a coincidência ordinária do pleno desenvolvimento orgânico do homem com a sua inteira preparação social na idade de quarenta e dois anos. Não tenho aqui em vista senão o vosso sexo, pois que o sacramento da madureza lhe pertence exclusivamente. A vocação feminina é ao mesmo tempo tão uniforme e tão fixa que não comporta nenhuma das duas consagrações entre as quais se acha compreendido o casamento. O SACERDOTE - Apesar de terdes apanhado espontaneamente, minha filha, a verdadeira natureza do nosso sexto sacramento, não poderíeis apreciar assaz a sua importância própria. Durante os vinte e um anos que o separam do sétimo, o homem desenvolve sua segunda vida objetiva, única decisiva para sua imortalidade subjetiva. Até então, a nossa existência, essencialmente preparatória, naturalmente suscitou desvios, algumas vezes graves, porém sempre reparáveis. Daí por diante, pelo contrário, as nossas novas faltas não comportam quase nunca uma compensação suficiente, seja exterior ou mesmo interior. Importa, pois, impor de um modo solene ao servidor da Humanidade a inflexível responsabilidade que vai começar para ele, tendo especialmente em vista sua função própria, já plenamente apreciável. A MULHER - Quanto ao sacramento seguinte, não lhe vejo, meu pai, outro destino senão marcar o termo normal da grande fase de atividade completa e direta, inaugurada pela sexta consagração. O SACERDOTE - O sacramento do retiro torna-se, pelo contrário, minha filha, um dos mais augustos e dos mais bem caracterizados, quando se considera o último ofício fundamental que preenche, então, cada verdadeiro servidor da Humanidade. Na ordem positiva, um funcionário qualquer, sobretudo temporal, designa sempre seu sucessor, sob a sanção de seu superior, salvo os casos excepcionais de indignidade ou incapacidade, como hei de explicar-vos logo mais. Desde já sentis que é o único meio de regularizar suficientemente a continuidade humana. Vindo livremente abdicar, aos sessenta e três anos, uma atividade exausta, para desenvolver daí por diante sua legítima influência consultiva, o cidadão exerce solenemente este último ato de elevada autoridade, desde então submetido publicamente à inspeção sacerdotal e popular, que poderá conduzir a que ele seja dignamente modificado. Nos ricos, esta transmissão do ofício completa-se naturalmente, segundo as mesmas regras, pela transferência da porção do capital humano que serve de instrumento ao funcionário, exceto o que ele precisa para suas provisões pessoais. A MULHER - Agora, meu pai, concebo todo o alcance social do nosso sétimo sacramento, no qual, a princípio, eu não via senão uma espécie de festa doméstica. Quanto ao seguinte, já estou bastante familiarizada com a verdadeira religião para compreender espontaneamente em que consiste. Ele deve substituir a horrível cerimônia em que o catolicismo, entregue sem freio ao seu caráter antissocial, arrancava abertamente o moribundo a todos os afetos humanos, para o transportar isolado ao tribunal celeste. Em nossa transformação, o sacerdócio, juntando os pêsames da sociedade às lágrimas da família, aprecia dignamente o conjunto da existência que termina. Depois de ter obtido as reparações possíveis, ele deixa esperar as mais das vezes a incorporação subjetiva, mas sem nunca comprometer um julgamento que ainda não está maduro. O SACERDOTE - Pois que caracterizastes convenientemente, minha filha, o último sacramento objetivo, devo explicar-vos agora a consagração final. Sete anos depois da morte, quando todas as paixões perturbadoras se acham assaz extintas, sem que se tenham já perdido os melhores documentos especiais, um juízo solene, cujo germe a sociocracia toma à teocracia, vem irrevogavelmente fixar a sorte de cada um. (Sete anos após a consagração extrema, o sacramento subjetivo completa a série de preparações objetivas, proclamando, ante o digno féretro, uma solene incorporação ao Grande Ser. Semelhante intervalo concilia a madureza do juízo sacerdotal e a conservação das diversas informações que ele exige. Para melhor admitir aí o exame público, uma decisão provisória, suscetível de retificação, deve, durante o quarto ano, preparar a sentença irrevogável. A sentença do sacerdócio sendo favorável ao morto, seguir-se-á o transporte dos restos sagrados para o cemitério religioso, e o mais que se lê no texto do Catecismo. "Na maior parte dos outros casos, a condenação, essencialmente negativa, limitar-se-á a tomar irrevogável a sepultura municipal, sempre independente do sacerdócio. Mas a completa infamação consiste em transportar convenientemente o funesto fardo ao deserto dos réprobos, entre os supliciados, os suicidas e os duelistas, se bem que não deva sofrer, como eles, a exploração anatômica”. O sacramento da incorporação não deverá, porém, ser aplicado senão mediante pedido prévio: Todavia, diz Auguste Comte, esta consagração final exige, mais do que qualquer outra, uma liberdade completa, a fim de obter uma eficácia plena. Ninguém deve ser submetido ao julgamento sacerdotal sem o ter especialmente pedido ao receber o sacramento da transformação. Este assentimento pessoal não será ainda suficiente, se não for, depois da morte, ratificado pela família. Evita-se assim a maioria dos casos de reprovação e obtém-se uma autoridade mais decisiva para os que se realizarem. A principal vantagem de semelhante prudência deve entretanto dizer respeito ao julgamento favorável, anulando de antemão os protestos que a vaidade das famílias há de levantar amiúde contra o grau de glorificação obtido. Aproveitamos este ensejo para lembrar também que, independentemente deste sacramento, que, como se acaba de ver, só tem lugar sete anos depois da morte, Auguste Comte estabeleceu uma comemoração fúnebre geral, no terceiro domingo após a inumação de cada finado. (V. o Volume Sagrado, p. 11 e 225). O sacerdócio, tendo pronunciado a incorporação, preside ao pomposo transporte dos restos santificados, que, depositados até então no campo cívico, vêm ocupar o seu jazigo eterno no bosque sagrado que rodeia o templo da Humanidade. Cada túmulo será aí ornado com uma simples inscrição, um busto ou uma estátua, conforme o grau da glorificação obtida. Quanto aos casos excepcionais de indignidade caracterizada, a condenação manifesta-se transportando-se convenientemente o funesto fardo ao deserto dos réprobos, entre os supliciados, os suicidas e os duelistas. A MULHER - Esta suficiente indicação dos nove sacramentos sociais deixa-me, meu pai, um pesar geral em relação ao meu sexo, que me parece não estar aí bastante apreciado. Todavia, eu não reclamo de modo algum contra a nossa exclusão natural de três dessas consagrações, pois que se funda em motivos honrosíssimos para as mulheres, cuja vida menos perturbada não exige tantos cuidados religiosos. Mas não posso conceber que o paraíso subjetivo não admita aquelas que a nossa religião proclama como mais aptas para o merecerem. Contudo, não vejo como partilharíamos, em geral, da incorporação pessoal, que, segundo me parece, não pode resultar senão de uma vida pública justamente vedada ao meu sexo, salvo casos muito excepcionais. O SACERDOTE - Preenchereis, minha filha, esta grave lacuna, considerando que a incorporação masculina deve abraçar também todos os dignos auxiliares de cada verdadeiro servidor da Humanidade, sem excetuar sequer os nossos adjuntos animais. (A propósito da incorporação dos animais: A objeção principal de vossa primeira carta merece mais atenção, posto que eu pense também que a mesma leitura (isto é, do 4° vol. da Política Positiva) vai em breve dissipá-la. Talvez, que ela me determine a pôr uma explicação especial sobre esse tópico, em caso de nova edição do Catecismo Positivista. Importa que o positivismo reerga os animais associáveis do desdém inspirado pelo monoteísmo, sobretudo ocidental; por quanto o islamismo acha-se, a este respeito, como a muitos outros, muito mais próximo do estado normal. Mas não creio que isso possa nunca fazer com que alguém receie qualquer assimilação degradante dos servidores diretos do Grande Ser aos seus auxiliares indiretos. Todas as honras merecidas por estes são ordinariamente privadas, mesmo em seus serviços. Contudo, eles podem excepcionalmente obter uma glorificação pública, em caso de devotamento eficacíssimo para com um digno servidor. Vossa respeitosa advertência faz-me ver a necessidade de não deixar implícito semelhante esclarecimento num opúsculo destinado naturalmente a leitores que, em sua maioria, não conhecerão o principal tratado). Como o principal ofício das mulheres consiste em formar e aperfeiçoar os homens, seria tão absurdo quanto injusto glorificar um bom cidadão, se se deixasse de honrar a mãe, a esposa etc., a quem foi devido sobretudo o sucesso dele. Em torno, e algumas vezes dentro de cada túmulo sagrado, o sacerdócio deverá, pois, reunir, em nome do Grande Ser, todas as personalidades que dignamente concorreram para os serviços que esse túmulo recompensa. Posto que vosso sexo, mais bem organizado que o meu, saboreie mais a pura felicidade que proporciona imediatamente o surto e o exercício dos bons sentimentos, ele não deve nunca renunciar aos justos elogios, nem sobretudo à imortalidade subjetiva que tão bem sabe apreciar. (Quanto às vossas observações sobre a glorificação feminina, também encontrarão suficiente resposta no meu volume final. Mas elas me levariam a algumas explicações especiais em caso de segunda edição do meu Catecismo. Destinadas a formar homens, as mulheres devem ser, como todos os autores, julgadas pelas suas obras. Entretanto, seria injusto torná-las responsáveis dos insucessos, e mesmo não honrar a árvore independentemente do fruto, se sua própria virtude puder ser verificada sem isso. O culto público poderá, pois, glorificar as mulheres cujos esposos ou filhos não merecerem nenhum louvor, quando elas houverem desenvolvido de modo certo grandes qualidades para uma cultura que entretanto não vingou, posto que o caso apresente graves dificuldades na apreciação de tais méritos, sempre excepcionais). A MULHER - À vista desta explicação complementar, só me resta, meu pai, perguntar-vos em que consiste a obrigação pessoal de receber os nossos diversos sacramentos. O SACERDOTE - Eles devem, minha filha, ficar sempre legalmente facultativos, sem que nunca imponham mais do que um simples dever moral, demonstrado na educação e sancionado pela opinião. Para que melhor conservem este caráter puramente espiritual, condição principal de sua eficácia, nossas consagrações devem mesmo ser acompanhadas de instituições paralelas, estabelecidas e mantidas pelo poder temporal, como as únicas exigíveis em cada caso. A apreciação mais grosseira e menos severa daquele dispensará dos ritos sagrados as naturezas que estes podem atemorizar, e cujos serviços sociais não devem, contudo, ficar perdidos ou comprometidos. Cumpre, por exemplo, não considerar como anárquica, apesar de sua origem revolucionária, a instituição do casamento civil como preâmbulo necessário do casamento religioso, que ele pode legalmente dispensar. O uso oposto provinha de uma usurpação católica que o positivismo nunca imitará. Aos que repugna aceitar a lei da viuvez, sem a qual entretanto nenhum casamento positivista se deverá efetuar, é necessário contrair uma união civil que os preserve do vício e garanta o estado legal de seus filhos. O mesmo direi, em grau menor, quanto à maioria dos outros sacramentos sociais, sobretudo a admissão e a destinação. O sacerdócio deverá, sendo preciso, solicitar, junto ao governo, a instituição das regras legais destinadas a temperar a justa severidade de nossas prescrições religiosas, cuja observância sempre livre não será jamais recompensada senão pela consciência e pela opinião. QUINTA CONFERÊNCIA CULTO PÚBLICO A MULHER - Encetando o estudo direto de nosso culto público, devo submeter-vos, meu pai, a resposta que já dei espontaneamente a algumas críticas, superficiais mas sinceras, dirigidas contra o conjunto desta solene adoração. Dizem que cada positivista se glorifica a si mesmo quando honra um ente necessariamente composto de seus próprios adoradores. Este reproche não pode, de forma alguma, aplicar-se ao nosso culto privado: refere-se unicamente à adoração direta da Humanidade, sobretudo mediante homenagens coletivas. Podemos, porém, repelir facilmente semelhante acusação fundados na verdadeira noção do Grande Ser, cuja composição é principalmente subjetiva. Os que lhe protestam sua gratidão não estão nada seguros, em geral, de ser a ele afinal incorporados. Eles apenas têm a esperança de tal recompensa porque contam merecê-la, por uma carreira digna, sempre apreciada pelos seus sucessores. O SACERDOTE - Esta retificação está plenamente de acordo, minha filha, com o verdadeiro espírito de nosso público, no qual o presente glorifica o passado para melhor preparar o futuro, apagando-se espontaneamente entre essas duas imensidades. Longe de exaltarem o nosso orgulho, essas efusões solenes tendem sem cessar a inspirar-nos uma sincera humildade. Porquanto elas nos fazem sentir profundamente quanto somos incapazes, apesar dos nossos melhores esforços coletivos, de nunca retribuir ao Grande Ser mais do que uma mínima parte do que recebemos dele. A MULHER - Antes de explicar-me o conjunto desta adoração pública, rogo-vos, meu pai, que caracterizeis suficientemente os templos em que ela se deverá efetuar. Quanto ao sacerdócio que a dirige, sinto que a sua constituição essencial será assaz indicada na exposição do regime. O SACERDOTE - Os nossos templos, minha filha, não podem ser agora plenamente apreciáveis, porque a arquitetura sendo a mais técnica e a menos estética de todas as belas-artes, cada nova síntese nela penetra mais tarde que em qualquer outra. Será mister que a nossa religião esteja não só muito desenvolvida, mas também muito espalhada, antes que as necessidades públicas possam apontar a verdadeira natureza dos edifícios que lhe convêm. Deveremos, portanto, servir-nos provisoriamente dos antigos templos, à medida que caírem em desuso, conquanto este preâmbulo necessário tenha de durar menos para nós do que para o catolicismo, reduzido, por espaço de muitos séculos, às construções politeístas. A única indicação geral que sobre isto possa agora ser proclamada diz respeito à situação e à direção, já determinadas pela natureza do culto positivo. Pois que a Humanidade se compõe essencialmente dos mortos dignos de sobreviver, seus templos devem ser colocados no meio dos túmulos de elite. Por outro lado, o principal atributo da religião positiva consiste em sua universalidade necessária. Cumpre, pois, que, em todas as partes do planeta humano, os templos do Grande Ser sejam dirigidos para a metrópole geral, que o conjunto do passado fixa, por muito tempo, em Paris. O positivismo utiliza assim o feliz esboço do islamismo acerca de uma preciosa instituição, a qual, pela comum atitude de todos os verdadeiros crentes, faz sobressair melhor a tocante solidariedade de suas livres homenagens. Eis tudo o que devo indicar-vos em relação aos nossos edifícios sagrados. Quanto à sua distribuição interior, por ora só devo assinalar a necessidade de reservar o principal santuário para mulheres convenientemente escolhidas, a fim de que os sacerdotes da Humanidade se achem aí sempre rodeados dos melhores representantes dela. (Quanto à distribuição interior dos templos positivistas, ela comporta apenas duas prescrições imediatas. Em primeiro lugar, o santuário, onde a estátua da Humanidade domina a cátedra sacerdotal, deve poder conter um sétimo do auditório, a fim de que o intérprete do Grande Ser fique aí rodeado das mulheres seletas que constituem sua melhor representação. Em segundo lugar, cada uma das sete capelas de cada lado conterá a estátua de um dos treze órgãos principais da iniciação humana, rodeada dos bustos dos seus quatro melhores adjuntos, reservando a capela décima quarta para o grupo dos tipos femininos. (Política Positiva, tomo IV, p. 156.) Entre os papéis de Auguste Comte achou-se o traçado de um grande templo da Humanidade. Incluímos aqui uma reprodução desse plano, tal como foi publicado na Revue Occidentale, número de janeiro de 1880. Auguste Comte tinha também chegado a conceber o altar da Humanidade. Sobre este assunto, ver o opúsculo do Dr. Audiffrent - Le Temple del’Humanité (1885) -, e a nota correspondente a esta, na 1ª edição de nossa tradução do Catecismo. É aqui oportuno lembrar outra indicação dada por Auguste Comte a um de seus discípulos. Vimos que os templos positivistas devem ser orientados na direção de Paris. Segundo o Mestre, esta adaptação do Kebla muçulmano "convirá também ao oratório privado que fará parte da habitação normal do mínimo positivista. Basta, porém, que o crente tome esta atitude durante as suas preces, o que pode ser realizado em qualquer lugar, mediante uma fácil determinação geográfica" (Lettres à Edger, p. 13). No mesmo tópico do Catecismo, referindo-se a Paris, Auguste Comte nos diz que por muito tempo a grande cidade será a metrópole geral. Esta restrição supõe que num futuro mais remoto outra cidade virá a ser a capital do mundo. Com efeito, o nosso Mestre profetizou a Constantinopla este glorioso destino, conforme se vê no seguinte trecho de uma carta, ainda inédita, endereçada ao Dr. Audiffrent, em 1856: A única concepção verdadeiramente nova que espero proclamar aí, e que já comuniquei à Sociedade Positivista, consiste em determinar a capital final do planeta humano. Paris não pode conservar a preeminência universal senão como centro da república Ocidental, enquanto esta vanguarda prevalecer sobre o resto de nossa espécie. Mas quando a homogeneidade positivista por suficientemente completa, o Ocidente apagar-se-á diante da Terra, e Paris não preencherá mais as diversas condições essenciais de um verdadeiro centro universal, transferindo sua sede da capital provisória para a verdadeira cidade eterna, que condensa todas as grandes recordações humanas. Alguns dias depois escrevia ao mesmo discípulo: Vossa retidão e profundeza habituais apanharam dignamente os principais motivos da determinação final da capital terrestre, segundo a qual Constantinopla deve eternamente obter o predomínio universal, gradualmente preparado, durante os trinta séculos de transição ocidental, ascendente sucessivo de Atenas, de Roma e de Paris, nas três fases, especulativa, ativa e afetiva, dessa iniciação). A MULHER - Esta última indicação leva-me, meu pai, a completar minha pergunta precedente, interrogando-vos sobre os símbolos de nossa deusa. A determinação desses símbolos referindo-se à pintura e à escultura deve ser desde já mais apreciável que a dos templos, em virtude da marcha mais rápida das duas primeiras artes da forma comparadas com a terceira. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, a natureza do Grande Ser não deixa agora nenhuma dúvida acerca de sua representação plástica. Figurada ou esculturada, nossa deusa terá sempre por símbolo uma mulher de trinta anos tendo seu filho nos braços. A preeminência religiosa do sexo afetivo caracterizará semelhante emblema, em que o sexo ativo deve ficar colocado sob a santa tutela daquele. Posto que grupos mais compostos pudessem fazer a representação mais completa, esta não seria então assaz sintética, de modo a se tornar verdadeiramente usual. (Segundo uma tradição constante em Paris, mas cuja autenticidade ainda não pudemos verificar, Auguste Comte indicara para representação provisória da Humanidade a Virgem, de Rafael, chamada de s. Sisto. Nosso Mestre esperava que, na idealização do futuro, os traços de Clotilde de Vaux ficassem consagrados definitivamente). Dos dois modos peculiares a esta simbolização normal, a escultura convém à imagem fixa colocada em cada templo, no meio das mulheres de elite, e por trás da tribuna sagrada. Mas a pintura deve prevalecer para os estandartes móveis, destinados a guiar nossas marchas solenes. Ao passo que sua face branca conterá a santa imagem, a fórmula sagrada do positivismo encherá a face verde, voltada para a procissão. A MULHER - Para terminar minhas perguntas preliminares, peço-vos, meu pai, que me expliqueis o sinal usual que poderia representar assaz essa fórmula característica. O SACERDOTE - Resulta ele, minha filha, da teoria cerebral, como terei o cuidado de vo-lo mostrar quando fizermos o estudo do dogma. Pode-se recitar nossa fórmula fundamental colocando sucessivamente a mão sobre os três principais órgãos do amor, da ordem e do progresso (bondade, a dedução e a perseverança). Os dois primeiros são contíguos e o último só se acha separado deles pelo da veneração, cimento natural de tal conjunto, de modo que o gesto se pode tornar contínuo. (Muita razão tivestes, escrevia Auguste Comte a H. Edger, em afastar espontaneamente o projeto irrefletido de vosso eminente amigo (J. Metcalf) sobre um sinal exterior. A cruz pertence ao catolicismo, como o crescente ao islamismo; nem um nem outro convêm ao positivismo. Quanto ao seu equivalente para a nossa fé, é isso uma solicitude ainda prematura, cuja final satisfação exige nosso advento social. Por enquanto, estamos suficientemente providos de divisas decisivas, e mesmo de sinais característicos. Conheceis aquele que consiste em recitar nossa fórmula fundamental, colocando sucessivamente a mão direita sobre os três órgãos cerebrais que correspondem ao amor, à ordem e ao progresso; ao passo que a mão esquerda colocada sobre o coração indica que para tudo isso é necessário sangue. Quanto a indícios exteriores e permanentes, podem eles duplamente derivar da bandeira positivista, descrita no discurso preliminar da minha obra principal. Em primeiro lugar, todos os positivistas podem, quando o julgarem oportuno, trazer ao meio do braço a fita verde com que cinjo o meu, quando em minhas funções sacerdotais, contanto que eles o ponham no braço esquerdo, reservando aos padres o braço direito, o que basta para prevenir a confusão. Todos podem também pendurar ao pescoço ou sobre o coração uma pequena reprodução da estatueta da Humanidade que encima a haste da bandeira positivista, sem se inquietarem pela sua semelhança com a imagem da Virgem-Mãe dos católicos; pois que o culto desta deve servir finalmente de transição para o de nossa deusa. Eis aqui a descrição da bandeira positivista, a que alude Auguste Comte: Para determinar a bandeira política cumpre conceber primeiro o estandarte religioso. Estendido em quadro, ele representa, na sua face branca, o símbolo da Humanidade, personificada por uma mulher de trinta anos, tendo seu filho nos braços. A outra face conterá a fórmula sagrada dos positivistas: O Amor por principio e a Ordem por base; o Progresso por fim, sobre um fundo verde, cor natural da esperança, peculiar aos emblemas do futuro. Esta mesma cor é a única que convém à bandeira política comum a todo o Ocidente. Devendo flutuar em pavilhão, não comporta pintura alguma, substituída neste caso pela estatueta da Humanidade, no vértice da haste. A fórmula fundamental aí se decompõe, sobre as duas faces verdes, nas duas divisas que caracterizam o positivismo: uma política e científica, Ordem e Progresso; e a outra moral e estética, Viver para Outrem. (Política Positiva, tomo I, p. 387.) A terceira divisa, Viver às claras, servirá especialmente para ser inscrita nas moedas, vindo assim completar o conjunto das outras duas, fornecendo o resumo prático do sistema, ao mesmo tempo moral e político, irrevogavelmente adotado. (lbid., tomo IV, p. 459.) Quanto à cor das letras de nossas divisas, devem elas ser brancas em fundo verde, e verdes em fundo branco. Ainda sobre a cor verde dos emblemas positivistas escrevia Auguste Comte ao seu discípulo J. Fisher: Esta nuança convém aos homens do futuro, porque caracteriza a esperança, em virtude do anúncio habitual fornecido por toda parte pela vegetação, ao mesmo tempo em que ela indica a paz; duplo título para simbolizar a atividade pacífica. Historicamente, esta cor inaugurou a Revolução Francesa, pois que os assediantes da Bastilha não tiveram, em sua maioria, outros topes senão folhas subitamente arrancadas às árvores do Palais Royal, em consequência da feliz exortação de Camille Desmoulins, embora os orleanistas tenham feito prevalecer, alguns dias mais tarde, sob diversos pretextos há muito esquecidos, a libré tricolor de sua dinastia. Além destes motivos, devia esforçar-me por evitar a adoção do vermelho que, no povo central, e mesmo entre outros ocidentais, designa especialmente, ainda hoje, a sanguinária atitude dos revolucionários mais atrasados. O verde é, portanto, apropriado para emblema dos verdadeiros regeneradores, quer em relação ao estado normal, quer mesmo para a transição. (Lettres à des Positivistes Anglais, p. 24.) Não será descabido reproduzir, em confirmação da prioridade da cor verde no inicio da Revolução, o seguinte trecho de uma carta do herói do dia, Camille Desmoulins, a seu pai, escrita em 16 de julho de 1879: Meu caríssimo pai. Posso agora escrever-vos, a carta chegará às vossas mãos. Eu próprio coloquei ontem uma sentinela numa agência do correio, não há mais gabinete secreto onde as cartas sejam violadas. Quão mudada está a face das coisas de três dias para cá! No domingo, Paris inteira achava-se consternada pela demissão de M. Necker; em vão procurei inflamar os ânimos, ninguém pegava em armas. Junto-me a eles; veem o meu zelo, rodeiam-me, instam para que eu suba sobre uma mesa: no mesmo instante, tenho em torno de mim seis mil pessoas. Cidadãos, disse eu então, sabeis que a nação tinha pedido a conservação de Necker, e que se lhe erguesse um monumento: ele foi expulso! Que desafio mais insolente poderia vos ser atirado? Depois deste golpe, eles vão ousar tudo, e meditam, para esta noite, preparam talvez, uma Saint-Barthélemy dos patriotas: Sentia-me sufocado sob uma multidão de ideias que me assediavam, falava desordenadamente. Às armas, gritei, às armas! Tomemos todos topes verdes, cor da esperança... Declarei que eu não queria ter nenhum comando e que apenas queria ser um soldado da pátria. Tomei uma fita verde e amarrei-a ao meu chapéu ... (Oeuvres de Camille Desmoulins, tomo II, pp. 91-92, edição da Bibliothêque Nationale.) Nessa mesma carta encontramos mais adiante indicado incidentemente um dos vários pretextos que, segundo nosso Mestre, serviram poucos dias depois para fazer adotar as cores da dinastia de Orléans. Descrevendo uma procissão cívica efetuada na véspera (15 de julho), Camille assim se exprime: À noite, a procissão foi mais bela ainda. Cento e cinquenta deputados da Assembleia Nacional, Clero, Nobreza e Comunas vinham nos coches do rei trazer a paz. Chegaram às três horas e meia à Praça Luiz XV, desceram dos carros e seguiram a pé, atravessando a rua Saint-Honoré até o paço municipal (Hôtel de Ville). Marcharam sob as bandeiras dos guardas franceses, que eles beijavam dizendo: Eis as bandeiras da nação, da liberdade e no meio de cem mil homens armados e de oitocentos com topes vermelhos e azuis. O vermelho, para mostrar que estavam prontos a derramar seu sangue, e o azul, para indicar que aspiravam a uma constituição celeste. Outro pretexto aventado foi o fato de o azul e o vermelho serem as cores da cidade de Paris, às quais se ajuntou o branco, cor da bandeira real, para significar a união da realeza com o povo. Outros finalmente diziam que as três cores representavam a fusão das três ordens: o vermelho, o clero; o branco, a nobreza; e o azul, o terceiro Estado). Quem uma vez adquiriu bem o hábito deste sinal não tarda em suprimir a recitação da fórmula, conservando apenas a expressão mímica. Enfim, como o lugar de ordem dos órgãos cerebrais caracteriza plenamente as funções deles, o sinal toma-se redutível, sendo necessário, à simples sucessão dos números correspondentes do quadro cerebral que vereis mais adiante. É assim que, sem nenhuma instituição arbitrária, o positivismo já se acha munido de sinais usuais mais expressivos que todos os do catolicismo e do islamismo. A MULHER - Agora, meu pai, não devo mais retardar vossa explicação direta do conjunto do culto público. O SACERDOTE - Vós o encontrareis, minha filha, plenamente caracterizado pelo quadro que aqui está. (vide o quadro, na página seguinte). O duplo objeto deste culto, como dos dois precedentes, consiste em fazer-nos compreender melhor e realizar melhor a existência correspondente. Devemos, pois, idealizar, em primeiro lugar, os laços fundamentais que a constituem, em seguida as preparações essenciais que ela exige, e, enfim, as funções normais de que ela se compõe. Tais são os destinos respectivos dos três sistemas de festas mensais que devem encher o ano positivista, que assim fica dividido em treze meses de quatro semanas, mais um dia complementar consagrado ao conjunto dos mortos. Quando estudarmos o dogma, conhecereis as quatro classes fundamentais, afetiva, especulativa, patrícia e plebeia, necessariamente peculiares à ordem normal. Quanto aos estados preparatórios, não é possível, sem risco de confusão, condensá-los mais, à vista das profundas diferenças, intelectuais e sociais, que sempre devem distinguir o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo, mesmo na iniciação espontânea de cada positivista. Relativamente aos laços essenciais, não se pode deixar de celebrar em primeiro lugar o mais universal, e glorificar em seguida cada um dos afetos privados que são os únicos que lhe podem dar uma verdadeira consistência. Ora, estas relações elementares são realmente em número de cinco: o casamento, a paternidade, a filiação, a fraternidade e a domesticidade, classificando-as, de acordo com o nosso princípio hierárquico, segundo a generalidade crescente e a intimidade decrescente. O número, na aparência paradoxal, dos meses positivistas torna-se, pois, sagrado quando se apreciam seus motivos religiosos. Muitas experiências já têm provado, aliás, que ele poderá facilmente prevalecer com a fé correspondente. É só também a religião universal que há de estabelecer a regularidade cronológica resultante de nossa exata decomposição de cada mês em quatro períodos hebdomadários. Quaisquer que sejam as vantagens práticas de semelhante instituição, elas não bastariam para fundá-la se as necessidades do culto não dissipassem a hesitação sempre inerente aos motivos materiais. A MULHER - Ao primeiro aspecto geral do quadro sociolátrico, apenas descubro nele, meu pai, uma única dificuldade grave, que diz respeito à domesticidade, cuja importância parece-me ter sido aí exagerada, colocando-a entre os seus laços fundamentais. O SACERDOTE - Tal objeção, minha filha, recorda-me que nascestes no norte, se bem que felizmente preservada do protestantismo. Porquanto os ocidentais do Meio-Dia conservam melhor, neste particular, os verdadeiros sentimentos humanos, tão nobremente desenvolvidos na Idade Média. Longe de dever desaparecer algum dia, a domesticidade há de ir sempre aumentando, purificando-se mais de toda servidão primitiva. Tornando-se plenamente voluntária, ela fornece a muitas famílias o melhor meio de servirem dignamente ao Grande Ser, prestando uma assistência indispensável aos verdadeiros servidores dele, teóricos ou práticos. Este concurso para o bem público, conquanto indireto, é mais completo e menos incerto que o da maioria dos cooperadores diretos. Ela pode também cultivar mais nossos melhores sentimentos. Limitar a domesticidade a certas classes é ter dela uma noção muito estreita. Em todas as categorias sociais, e sobretudo entre os proletários, cada cidadão passou por semelhante situação, enquanto durou sua iniciação prática. Cumpre, pois, idealizar a domesticidade como o complemento dos laços de família e o início das relações cívicas. A MULHER - Meu coração não precisava, meu pai, senão desta retificação sistemática para vencer os preconceitos anárquicos que me obstavam de fraternizar assaz com os dignos tipos, sobretudo femininos, que muitas vezes me deparou essa situação mal prezada. Este salutar esclarecimento não me deixa agora a desejar senão uma última explicação geral, relativamente à outra extremidade de nosso quadro sociolátrico. As posições respectivas do patriciado e do proletariado parecem-me aí invertidas. Pode a política assim classificá-los, segundo a ordem do poder material, mas a religião, que classifica segundo a dignidade moral, creio que devia dispô-los de outro modo. O SACERDOTE - Vós esqueceis, minha filha, que, na religião positiva, o culto e o regime devem sempre corresponder-se exatamente. Mas de boa mente desculpo vosso equívoco, atendendo ao nobre motivo que o inspirou. Também eu já pensei como vós, quando ligava exagerada importância à extrema imperfeição do patriciado atual, tão amiúde indigno de seu elevado destino social. A verdadeira superioridade cerebral, quer intelectual, quer sobretudo moral, acha-se hoje mais espalhada proporcionalmente entre as classes preservadas de uma educação e de uma autoridade degradantes. Todavia, posto que esta exceção incontestável deva ser cuidadosamente apreciada ao instituir a transição ocidental, cumpre saber afastá-la sistematicamente quando se constrói o culto abstrato da Humanidade, destinado principalmente ao estado normal. Contemplando demasiado o presente, e insuficientemente o futuro, seríamos levados, com certeza, a pôr o próprio sacerdócio abaixo do proletariado, visto como a sua imperfeição atual sobreleva muito a do patriciado, quer a apreciemos nos destroços teológicos ou entre os rudimentos meta físicos e científicos. No culto positivo, como na existência normal que ele idealiza, o digno patrício avantaja-se ordinariamente ao digno plebeu, tanto em verdadeira nobreza como em poder real. Ordenando as classes humanas segundo a aptidão de cada uma delas a representar o Grande Ser, a importância e a dificuldade dos serviços peculiares ao patriciado, como a educação que eles exigem e a responsabilidade que eles impõem, o colocarão sempre acima do proletariado. E em nome mesmo de semelhante classificação que a sabedoria sacerdotal, convenientemente assistida da sanção feminina e do apoio popular, deve chamar dignamente os patrícios, isolados ou reunidos, ao cumprimento de seus eternos deveres sociais, quando lhes sucede descurá-los gravemente. Mas estas advertências excepcionais errariam seu alvo principal se o culto normal não honrasse suficientemente os ministros necessários de nossa providência material. Colocando o proletariado no extremo inferior da escala social, o culto recordará que a aptidão característica dele para fiscalizar e retificar todos os poderes humanos resulta sobretudo de uma situação essencialmente passiva, que não desenvolve nenhuma tendência pronunciada. Nosso quadro sagrado, como o regime correspondente, deve, pois, inserir os dois grandes poderes, espiritual e temporal, entre as duas massas, feminina e popular, que incessantemente reagem sobre os sentimentos e a conduta deles. Se o patriciado fosse rebaixado, a harmonia positiva ficaria tão rota em sociolatria como em sociocracia. A MULHER - Como já estou assaz familiarizada com o conjunto do culto público, podeis, meu pai, explicar-me a decomposição hebdomadária das treze celebrações mensais. Este desenvolvimento final, que nunca deixará a nossa semana sem uma festa geral, deve concorrer profundamente para o fim moral da grande adoração, assim reproduzida sob aspectos muito variados, mas sempre convergentes. O SACERDOTE - Antes de começar esta explicação, devo, minha filha, indicar-vos a idealização final dos diferentes dias da semana. Ela dimana em primeiro lugar de seus nomes atuais, que cumpre conservar com todo cuidado, porque eles lembram o conjunto da iniciação humana, em virtude da instituição fetíchica, da consagração politéica e da adoção monotéica, que os caracterizam. Esta propriedade tem tanto mais valor quanto ela resulta de que a sucessão deles representa os diferentes astros realmente ligados ao planeta humano essencialmente independente de todos os outros. Mas esta concordância, histórica e dogmática, por demasiado abstrata, exige um complemento concreto, que deve provir da transição ocidental entre a teocracia e a sociocracia. Consiste ele, sem mudar esses preciosos nomes, em consagrar os sete dias à memória respectiva dos sete órgãos principais de tal movimento, Homero, Aristóteles, César, São Paulo, Carlos Magno, Dante e Descartes, cuja sucessão representa assaz o conjunto dessa evolução decisiva que, conquanto peculiar ao Ocidente, merecerá sempre ser familiarmente celebrada por toda parte, porque só ela permitiu a regeneração final. A semana comporta, além dessa, uma consagração abstrata, dedicando-se seus sete dias às sete ciências fundamentais, matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral. Este segundo modo, compatível com o primeiro e conforme ao espírito do culto público, tornará mais familiares a hierarquia enciclopédica e a concepção relativa da ordem universal. Em virtude do concurso destas duas consagrações, a festa que termina cada semana ficará caracterizada ao mesmo tempo pela ciência preponderante e pelo precursor direto da religião final. (As explicações que precedem sobre a consagração da semana foram tiradas textualmente da Política Positiva, tomo IV, pp. 135-136). Devo declarar-vos aqui que, antes de ter concebido a idealização da semana que acabo de vos resumir, fui levado a aceitar, por uma benevolência imerecida, a consagração dos diferentes dias da semana aos diversos laços fundamentais. Cumpre rejeitar este especioso projeto, que não deixará outro vestígio senão a comovente série de orações compostas nessa ocasião por um dos nossos jovens irmãos. Libertando-as de uma solidariedade viciosa, ele designará essas rezas segundo o objeto de cada uma, respeitando os nomes antigos da semana. (Aqui tivemos de alterar o texto do original. O Catecismo foi composto em 1852, e nessa época Auguste Comte havia aceitado o projeto de um de seus efêmeros discípulos, que lhe propuseram substituir os nomes atuais dos dias da semana por outros consagrados a cada um dos laços fundamentais, do seguinte modo: Lundi - ao Casamento - Maridi Mardi - à Paternidade - Patridi Mercredi - à Filiação - Filidi Jeudi - à Fraternidade - Fratridi Vendredi - à Domesticidade - Domidi Samedi - à Mulher ou ao Amor - Matridi Dimanche - à Humanidade – Humanidi Esta reforma foi depois abandonada por Auguste Comte, como se vê neste trecho de sua Política Positiva (tomo IV, p. 404): Cumpre rejeitar o especioso projeto que uma benevolência imerecida me dispôs demasiado a recomendar relativamente à consagração dos diferentes dias da semana aos diversos laços fundamentais. Além de que tal modo não pode convir ao estado normal em que este ofício pertence ao mês, seria ele inútil durante a transição naturalmente limitada às festas públicas, a adoração íntima e os sacramentos domésticos tendo já atingido seu estado definitivo. A tentativa malograda não deixará outro vestígio senão a comovente série de orações de que ela forneceu ensejo ao coração de um verdadeiro positivista, que, desligando-as de uma viciosa solidariedade, as designará pelo objeto de cada uma, respeitando os nomes antigos. Modificamos, portanto, o texto original de acordo com estas restrições, servindo-nos para isso, em grande parte, das próprias palavras do nosso Mestre. É mister, porém, resolver aqui uma dificuldade que a decisão definitiva de Auguste Comte oferece em relação à nossa língua. Os motivos em que o nosso Mestre se funda para conservar os nomes atuais dos dias da semana não seriam aplicáveis ao português, onde prevalecem, para os cinco primeiros dias, a denominação eclesiástica de feira: posto que, no princípio, como o atestam os documentos coevos, os portugueses usassem também nomes análogos aos que existem em espanhol: Lunes, Martes, Mércoles, Joves, Vérnes. Impõe-se, portanto, a necessidade de adotar em nossa língua novas denominações que correspondam suficientemente à idealização positivista da semana, tal como acaba de ser estabelecida pelo Fundador. Primeiro nos pareceu que o mais acertado seria restaurar os nomes antigos, semelhantes aos do espanhol, que acima reproduzimos. Mas reflexões subsequentes nos convenceram de que o melhor seria construir novos nomes pautados pelos correspondentes da língua italiana, a quem cabe a presidência ocidental. Eis aqui as novas denominações, comparadas com as suas análogas em italiano, francês e sua origem latina: Português – Italiano – Francês – Espanhol - Origem Latina Lunedia – Lunedi – Lundi – Lunes - Lunae dies Martedia – Martedi – Mardi – Martes - Martii dies Mercuridia – Mercoledi – Mercredi – Miércoles - Mercurii dies Jovedia – Giovedi – Jeudi – Jeves - Jovis dies Venerdia – Venerdi – Vendredi – Viernes - Veneris dies Sábado – Sabato – Samedi – Sábado - Sabbati dies Domingo – Domenica – Dimanche – Domingo - Dominica dies O primeiro dia, consagrado à Lua, lembra o fetichismo astrolátrico; o segundo, terceiro, quarto e quinto, respectivamente dedicados a Marte, Mercúrio, Júpiter ou Jove e Vênus, recordam o politeísmo; o sábado (dia do Sabat), o monoteísmo judaico; e o domingo (dia do Senhor), o monoteísmo católico. Em inglês e alemão os nomes dos dias da semana sofreram a intercorrência da mitologia teutônica. Ao passo que alguns recordam a fase astrolátrica, as outras denominações foram tiradas dos nomes dos deuses teu tônicos que correspondiam mais ou menos às divindades greco-romanas que forneceram às línguas neolatinas as denominações desses mesmos dias. Mas a uniformidade onomástica neste caso, em virtude das exigências do culto, há de forçosamente estender-se às línguas do norte). Para completar a regularidade de nosso culto, cumpria fazer com que cada dia de uma semana qualquer ocupasse no ano um lugar invariável. Obtém-se essa fixidez deixando de dar qualquer denominação hebdomadária, primeiro ao dia complementar que termina todo ano positivista, depois ao dia adicional que o segue se o ano for bissexto, segundo a regra usada no Ocidente. Cada um destes dois dias excepcionais se acha, com efeito, assaz designado pela festa correspondente. Isto posto, nosso calendário fica perpétuo; o que tanto importa ao regime como ao culto. A MULHER - Concebo, meu pai, toda a eficácia moral de semelhante fixidez, em virtude da qual qualquer dia de nosso ano poderia receber, como o dia final, uma designação puramente sagrada, o que o catolicismo nunca obteve senão por exceção. O SACERDOTE - Estabelecido este preâmbulo, posso começar diretamente, minha filha, a indicação sucessiva das solenidades peculiares aos dias sétimos de todas as nossas semanas. O quadro sociolátrico vos mostra a maneira por que cada celebração mensal se decompõe em quatro festas hebdomadárias. Só me resta, pois, motivar e caracterizar tal decomposição, mediante alguns esclarecimentos sumários. Nosso primeiro mês, consagrado à Humanidade, poucas explicações exige a este respeito. Depois de ter aberto o ano positivista pela mais augusta de todas as nossas solenidades, essa festa direta do Grande Ser fica completada pelas quatro celebrações hebdomadárias, em que são respectivamente apreciados os diversos graus essenciais do laço social. Eles aí se ordenam, segundo o decrescimento de extensão e o acréscimo de intimidade das relações coletivas. A primeira festa glorifica o laço religioso, único suscetível de universalidade: a segunda, a ligação de vida a antigas relações políticas que, embora extintas, deixam subsistir uma comunhão suficiente de língua e poesia. Na terceira, celebra-se diretamente a união ativa que resulta de um mesmo governo livremente aceito por todos. A quarta honra, a menos extensa, porém a mais completa das relações cívicas, aquela em que a coabitação familiar melhor nos aproxima da intimidade doméstica. Para desenvolver o mês do casamento, sua primeira solenidade glorifica a união conjugal em toda a sua plenitude, ao mesmo tempo exclusiva e indissolúvel, mesmo pela morte. O sacerdócio faz aí sentir profundamente, pelo coração e pelo espírito, o progresso geral desta admirável instituição, primeira base de toda a ordem humana, caracterizando cada uma de suas fases essenciais, desde a poligamia primitiva até o casamento positivista. Na festa seguinte, celebra-se a castidade voluntária, que graves motivos morais ou físicos podem eternamente prescrever a dignos esposos. O principal destino do casamento, o aperfeiçoamento mútuo dos dois sexos, torna-se aí mais bem apreciável, sem que esta união- excepcional obrigue, aliás, a renunciar aos afetos relativos ao futuro, sempre possíveis mediante uma acertada adoção. Far-se-á convenientemente sobressair, nessa ocasião, a tendência de semelhante união a regular, enfim, a procriação humana, posto que vícios hereditários não devam privar ninguém dos benefícios do casamento. A terceira semana deste mesmo mês termina pela celebração das uniões excepcionais em que uma desigualdade, amiúde desculpável, não impede a principal eficácia, sobretudo quando os costumes finais limitarem a discordância às idades. Enfim, a quarta festa honra a união póstuma que há de resultar frequentemente da constituição normal do casamento humano, cujas doçuras mais íntimas se consolidam e desenvolvem pela purificação e fixidez peculiares ao amor subjetivo. Nossos três meses seguintes podem ser explicados simultaneamente, em virtude da uniformidade espontânea de suas subdivisões hebdomadárias. Com relação ao principal dentre eles, sua primeira metade é consagrada à paternidade completa, primeiro involuntária, depois adotiva; e a segunda, à paternidade incompleta, que proporciona, em toda sociedade regular, a autoridade espiritual ou patrocínio temporal. Daí dimanam, decrescendo, os quatro graus normais da afeição paterna, respectivamente glorificados pelas quatro festas hebdomadárias do terceiro mês positivista. Ora, as mesmas distinções e gradações se reproduzem necessariamente a respeito da filiação e da fraternidade, o que dispensa aqui toda nova explicação para o quarto e quinto meses. Quanto ao sexto, ele honra, em primeiro lugar, a domesticidade permanente, que sempre há de distinguir uma classe muito numerosa, porém especial; depois, a situação análoga em que todo homem se acha de ordinário em sua iniciação prática. O primeiro caso exige nitidamente uma subdivisão importante, que é habitualmente indicada pela residência, conforme a domesticidade seja completa no criado propriamente dito, ou incompleta no caixeiro ou empregado, apenas incumbido de um ofício determinado. Quando os costumes normais tiverem assaz conciliado o serviço doméstico, sobretudo feminino, com o pleno surto das afeições de família, o culto positivo fará sentir profundamente a superioridade moral da primeira situação em que o devotamento se manifesta mais puro e mais intenso. A mesma distinção aplica-se, bem que de modo menos pronunciado, à domesticidade passageira, e também se acha neste caso indicado pelo domicílio. Daí resultam as duas outras festas do sexto mês, respectivamente consagradas aos pajens e aos aprendizes, conforme os patrões sejam ricos ou pobres. A MULHER - Todo este desenvolvimento especial dos diversos laços fundamentais não me oferece, meu pai, nenhuma dificuldade. Receio, porém, que minha insuficiência histórica me impeça de compreender satisfatoriamente a segunda série sociolátrica. Porquanto não conheço ainda o conjunto da preparação humana senão pela vossa primeira lei de evolução, chamada dos três estados, que eu por vezes tenho ouvido formular, e que se acha hoje tão divulgada. O SACERDOTE - Isso basta, minha filha, para fazer-vos já apreciar a sucessão geral dos três estados preliminares indicados no quadro sociolátrico. Quanto, porém, à decomposição hebdomadária de cada um deles, vós não podereis, com efeito, concebê-la bem senão depois das duas conferências históricas que terminarão este Catecismo. Limito-me, pois, à coordenação principal, encarregando-vos de a completar espontaneamente quando tiverdes adquirido as noções convenientes. A síntese fictícia, sempre fundada na indagação das causas, comporta dois modos diferentes, conforme as vontades a que os acontecimentos são atribuídos pertençam aos próprios corpos ou a entes exteriores, habitualmente inacessíveis a todos os nossos sentidos. Ora, o regime direto, mais espontâneo que qualquer outro, constitui o fetichismo inicial, ao passo que o indireto caracteriza o teologismo que o segue. Mas este último estado, menos puro e menos duradouro que o primeiro, apresenta sucessivamente duas constituições distintas, segundo os deuses permaneçam múltiplos ou se condensem em um só. O teologismo, que, no fundo, não institui senão uma imensa transição espontânea do fetichismo ao positivismo, dimana do primeiro pelo politeísmo e conduz ao segundo pelo monoteísmo. Quando esta sucessão intelectual é completada pela progressão social que lhe corresponde, o conjunto da iniciação humana fica assaz caracterizado, como o haveis de sentir daqui a pouco. Podereis, então, apreciar suficientemente a aptidão de nossa segunda série sociolátrica para dignamente glorificar todas as fases essenciais dessa longa preparação, desde o primeiro surto das cabildas mais insignificantes até o duplo desenvolvimento de transição moderna. Esta plena celebração do passado humano em doze festas hebdomadárias resulta do condensamento histórico que pela sua natureza o culto abstrato comporta. A MULHER - Podemos assim, meu pai, encetar a última série sociolátrica. O mês aí consagrado à providência moral não me apresenta nenhuma dificuldade, graças à distinção evidente que separa os tipos femininos peculiares às quatro festas hebdomadárias. Mas ainda não percebi a decomposição do mês sacerdotal. O SACERDOTE - Concebei-a, minha filha, segundo os diversos modos ou graus do sacerdócio positivo, classificados na ordem de sua plenitude crescente. Este grande ministério exige um raro concurso das qualidades morais, tanto ativas como afetivas, com os talentos intelectuais, estéticos e científicos. Se, pois, estes forem os únicos salientes, seus possuidores, após uma cultura conveniente, terão de permanecer, talvez para sempre, simples pensionistas do poder espiritual, sem aspirarem nunca a ser nele incorporados. Em tais casos, felizmente excepcionais, o maior gênio poético ou filosófico não pode dispensar de ternura e de energia um funcionário que deve estar habitualmente animado por simpatias íntimas e destinado amiúde a lutas difíceis. Este sacerdócio incompleto permite o digno cultivo de todos os verdadeiros talentos, sem comprometer nenhum serviço social. Quanto ao sacerdócio completo, ele exige, em primeiro lugar, um grau preparatório, que o aspirante não transporá se, apesar de sua vocação proclamada, não passar com bastante êxito pelo noviciado conveniente. Vencida essa prova decisiva, obtém ele, aos trinta e cinco anos, o sacerdócio direto e definitivo, mas exercendo-o durante sete anos no grau secundário, que caracteriza o vigário ou suplente. Depois de ter dignamente preenchido todas as fases de nosso ensino enciclopédico, e mesmo esboçado as outras funções sacerdotais, ele eleva-se, aos quarenta e dois anos, ao grau principal, tornando-se de modo irrevogável um sacerdote propriamente dito. Tais são as quatro classes teóricas que respectivamente celebram as festas hebdomadárias do undécimo mês. A MULHER - O mês seguinte, meu pai, não exige nenhuma explicação especial. Posto que a existência prática me seja pouco familiar, seu caráter nitidamente marcado permite-me compreender assaz a decomposição normal do patriciado em quatro classes essenciais, segundo a generalidade decrescente das funções e a multiplicidade crescente dos funcionários. Talvez mesmo que, em nossos tempos de anarquia, as mulheres sejam mais aptas que os proletários, e, sobretudo, mais que os seus doutores, para bem apreciar esta hierarquia natural, porque elas se acham mais preservadas das paixões perturbadoras e das vistas sofísticas. Felicito-me, pois, que as quatro festas hebdomadárias de nosso duodécimo mês venham honrar anualmente e, portanto, moralizar esses diversos modos necessários do poder material, sobre o que assenta toda a economia social. Mas não apanho tão bem a decomposição do mês final. O SACERDOTE - Esta resulta, minha filha, da generalidade espontânea que caracteriza o proletariado, no qual todos os grandes atributos humanos exigem uma idealização distinta. Esta imensa massa social, estirpe necessária de todas as classes especiais, se acha essencialmente votada à vida ativa, diretamente celebrada pela primeira festa hebdomadária do mês plebeu. Depois deste proletariado ativo, cumpre honrar em separado o proletariado afetivo que necessariamente o acompanha. Só esta glorificação especial das mulheres proletárias pode completar de modo digno a celebração geral dos tipos femininos, considerados, no décimo mês, sob o aspecto comum a todas as classes, mas apreciados aqui em seu surto popular. A terceira festa de nosso décimo terceiro mês deve caracterizar dignamente o proletariado contemplativo, sobretudo estético, ou mesmo científico, que, não tendo podido penetrar em um sacerdócio necessariamente circunscrito, sente-se contudo mais teorista que prático. Devemos algumas vezes lastimar esses tipos excepcionais, e sempre respeitá-los, a fim de utilizá-los tanto quanto seja possível, dirigindo com sabedoria suas tendências espontâneas. É principalmente deles que deve dimanar a fiscalização geral do proletariado em relação aos poderes especiais, conquanto o impulso correspondente exija naturezas mais ativas. Enfim, a última festa de nosso mês popular refere-se essencialmente à mendicidade, quer passageira, quer mesmo permanente. A melhor ordem humana não poderá nunca prevenir de todo esta consequência extrema das imperfeições peculiares à vida prática. Assim, a idealização de nossa sociabilidade ficaria incompleta se o sacerdócio não a terminasse por uma justa apreciação dessa existência excepcional. Quando plenamente motivada e dignamente exercida, ela pode merecer amiúde as simpatias, e algumas vezes os elogios, de todas as almas honradas. Mais móvel que qualquer outra, esta classe complementar liga-se de modo espontâneo a todas as categorias sociais, que alternativamente lhe devem tomar e fornecer indivíduos. Ela torna-se, assim, muito apropriada a desenvolver a reação geral do proletariado sobre todos os poderes humanos. Haveria, pois, tanta imprevidência quanto injustiça em não a favorecer com uma idealização distinta. A MULHER - Quanto ao dia complementar, compreendo, meu pai, por que o positivismo transporta para o fim do ano a celebração coletiva dos mortos, avisadamente introduzida pelo catolicismo. Esta tocante comemoração, que interposta teria perturbado a economia normal de nosso culto público, completa de modo digno o conjunto deste e prepara naturalmente a sua volta anual. Convinha que a festa própria do Grande Ser fosse precedida pela glorificação de seus órgãos quaisquer. O dia adicional dos anos bissextos não me oferece também nenhuma dificuldade. Meu sexo não podendo quase nunca merecer diretamente uma apoteose pessoal e pública, o culto abstrato devia, sem degenerar em celebração concreta, honrar, assim, o conjunto das mulheres dignas de celebração individual. Completa-se a idealização humana glorificando o bom emprego das diversas aptidões excepcionais que a natureza feminina comporta, quando seu principal caráter não recebe por causa disso nenhuma alteração. O SACERDOTE - Pois que espontaneamente acabastes, minha filha, a explicação suficiente de nosso culto público, a primeira parte deste Catecismo está inteiramente terminada. Devemos, pois, entrar agora no estudo do dogma. PARTE SEGUNDA EXPLICAÇÃO DO DOGMA SEXTA CONFERÊNCIA CONJUNTO DO DOGMA A MULHER - Iniciada, pela nossa segunda conferência, no conhecimento sintético da Humanidade, e, pelas três seguintes, no culto que lhe devemos, rogo-vos, meu pai, que me exponhais agora a coordenação sistemática do conjunto do dogma positivo em torno de tal unidade. O SACERDOTE - Para este fim, minha filha, deveis renunciar, em primeiro lugar, a toda pretensão de unidade absoluta, exterior, em uma palavra, objetiva; o que vos será mais fácil do que aos nossos doutores. Semelhante aspiração, compatível com a pesquisa das causas, torna-se contraditória com o estudo das leis, isto é, das relações constantes apanhadas no meio de uma diversidade imensa. Estas não comportam senão uma unidade puramente relativa, humana, em uma palavra, subjetiva. Com efeito, as leis são necessariamente múltiplas, em virtude da impossibilidade notória de fazer-se jamais entrar um no outro os dois elementos gerais de todas as nossas concepções reais, o mundo e o homem. Ainda mesmo que se chegasse a condensar cada um destes dois grandes estudos em torno de uma única lei natural, a unidade científica continuaria vedada por causa da inevitável separação desses dois estudos. Posto que o mundo, para ser conhecido, suponha o homem, aquele poderia existir sem este, como talvez aconteça em muitos astros inabitáveis. Do mesmo modo, o homem depende do mundo, porém não resulta dele. Todos os esforços dos materialistas para anular a espontaneidade vital, exagerando a preponderância dos meios inertes sobre os seres organizados, só têm conseguido desacreditar essa pesquisa, tão vã quanto ociosa, doravante abandonada aos espíritos anticientíficos. Mas, além disso, muito longe está de ser verdade que a unidade objetiva possa jamais estabelecer-se no domínio interior de cada elemento geral de semelhante dualismo. Os diversos ramos essenciais do estudo do mundo ou do homem desvendam-nos uma multidão crescente de leis diferentes, que hão de permanecer constantemente irredutíveis entre si, apesar das frívolas esperanças que no princípio inspirou nossa gravitação planetária. Conquanto a maior parte dessas leis seja ainda ignorada, muitas devendo, até, sê-lo sempre, já temos verificado um número bastante grande delas para tornar inabalável o princípio fundamental do dogma positivo, a sujeição de todos os fenômenos quaisquer a relações invariáveis. Dá-se à ordem que por toda parte resulta do conjunto das leis reais o título geral de destino ou de acaso, conforme essas leis nos são conhecidas ou desconhecidas. Esta distinção há de conservar sempre uma grande importância prática, pois que a ignorância dessas leis monta tanto, para a nossa conduta, como se não existissem, impedindo-nos toda previsão racional, e, portanto, toda intervenção regular. Pode-se contudo, esperar achar, para cada caso essencial, regras empíricas, que, apesar de sua insuficiência teórica, nos preservem assaz de uma atividade desordenada. No meio dessa diversidade crescente, o dogma da Humanidade fornece ao conjunto de nossas concepções reais a única unidade que elas comportam e o único laço de que tenhamos necessidade. A fim de conceber a natureza e a construção de tal unidade, cumpre primeiro distinguir três sortes de leis, físicas, intelectuais e morais. As primeiras pertencem espontaneamente ao sexo ativo, e as últimas ao sexo afetivo, ao passo que a ordem intermediária constitui o domínio próprio do sacerdócio, o qual, devendo sistematizar o concurso dos dois sexos, participa desigualmente na dupla vida de ambos. É por isso que os dois estudos extremos foram cultivados empiricamente desde os tempos mais remotos para as necessidades correspondentes, porém com êxito muito diferente. Com efeito, as leis físicas sendo, no fundo, independentes das leis morais, os homens puderam fundar nelas isoladamente convicções estáveis, se bem que incoerentes. Pelo contrário, as leis morais dependendo necessariamente das leis físicas, as mulheres não puderam construir naquele domínio nenhuma doutrina inabalável, e seus esforços apenas comportaram uma preciosa reação afetiva. A sã cultura teórica teve, pois, de surgir da ordem física, desligando-se assaz das especialidades ativas. Mas, como o termo necessário de nossas meditações reais reside na ordem moral, a unidade lógica e científica só podia estabelecer-se por meio de uma suficiente ligação desses dois domínios extremos. Ora, eles não podem ser reunidos senão pelo domínio intermediário, que se liga naturalmente a cada um deles. É assim que a construção de uma verdadeira unidade teórica depende, finalmente, de uma elaboração suficiente das leis próprias do entendimento. A MULHER - Conquanto esta conclusão pareça-me difícil de ser achada, sua admissão imediata não me apresenta, meu pai, nenhuma dificuldade. As minhas meditações morais frequentes vezes me têm feito sentir quão indispensável seria o conhecimento das leis intelectuais para a ativa consistência de tais meditações, pois que as regras próprias da função apreciadora se mesclam sempre às da função apreciada. Todavia, os homens devem sentir menos tal conexão relativamente às leis físicas, preocupação principal desse sexo. Podeis, portanto, encetar, sem mais preâmbulo, a exposição direta das leis mentais, das quais depende toda unidade sistemática. O SACERDOTE - Em primeiro lugar, minha filha, devo distingui-las, como em todos os demais casos, em estáticas e dinâmicas, conforme se referirem às disposições imutáveis ou variações essenciais do objeto correspondente. Estes dois termos conexos tornaram-se indispensáveis a toda exposição séria do positivismo, que em breve os há de popularizar. Contudo, eles nunca poderão inspirar ao vosso sexo o atrativo moral que já vos oferecem as qualificações objetiva e subjetiva, finalmente destinadas sobretudo a caracterizar as nuanças mais doces de nossas melhores emoções. Mas o seu uso puramente intelectual não deve privá-los do respeito que merece sua utilidade teórica. Estes dois pares de expressões filosóficas são, aliás, os únicos que sou forçado a fazer-vos aceitar. Pela definição anterior, facilmente concebeis que, a respeito de um domínio qualquer, o estudo estático precede necessariamente o estudo dinâmico, que nunca pode surgir sem tal preparação. Cumpre, com efeito, ter determinado as condições fundamentais de cada existência antes de apreciar seus diversos estados sucessivos. Os antigos, que viam por toda parte a imobilidade, foram profundamente alheios a toda concepção dinâmica, mesmo em matemática. Pelo contrário, o príncipe eterno dos verdadeiros filósofos, o incomparável Aristóteles, lançou já todas as bases essenciais dos mais elevados estudos estáticos sobre a vida, a inteligência e a sociedade. Mas, segundo esta marcha necessária, o complemento dinâmico torna-se indispensável onde quer que seja. Sem ele, a apreciação estática fica sempre provisória, de modo a não poder guiar bastante a prática, que seria por ela arrastada isoladamente a erros graves, sobretudo em relação aos casos principais. A lei estática de nosso entendimento torna-se, para o positivismo, uma simples aplicação do princípio fundamental que por toda parte subordina o homem ao mundo. Consiste ela, com efeito, na subordinação contínua de nossas construções subjetivas aos nossos materiais objetivos. O gênio de Aristóteles esboçou a noção geral de tal lei neste admirável apanhado: Nada há no entendimento que não proviesse primeiro da sensação. Tendo, porém, os modernos abusado amiúde de semelhante axioma para representar nossa inteligência como puramente passiva, o grande Leibniz foi obrigado a juntar-lhe uma restrição essencial, destinada a formular a espontaneidade de nossas disposições mentais. Esta explicação, que se limitava realmente a desenvolver melhor a máxima de Aristóteles, foi completada por Kant, com a sua imortal distinção entre as duas realidades, objetiva e subjetiva, de cada concepção humana. Contudo, este princípio só foi verdadeiramente sistematizado quando o positivismo o referiu, como convinha, à lei geral que, em todos os fenômenos vitais, coloca todo organismo sob a dependência contínua do meio correspondente. Para as nossas mais elevadas funções espirituais, como em relação aos nossos atos mais materiais, o mundo exterior serve-nos ao mesmo tempo de alimento, de estimulante e de regulador. Ao passo que a subordinação do subjetivo ao objetivo cessava, assim, de ser isolada, recebia também, da filosofia positiva, seu complemento indispensável, sem o qual o estudo estático da inteligência não poderia ser ligado suficientemente ao estudo dinâmico. Ele consiste em reconhecer que, no estado normal, as imagens subjetivas são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões objetivas de onde elas dimanam. Se assim não fosse, o exterior nunca poderia regular o interior. Em virtude deste duplo princípio estático, as nossas concepções quaisquer resultam necessariamente de um comércio contínuo entre o mundo, que lhes fornece a matéria, e o homem, que lhes determina a forma. Elas são profundamente relativas, ao mesmo tempo, ao sujeito e ao objeto, cujas variações respectivas necessariamente as modificam. Nosso principal mérito teórico consiste em aperfeiçoar assaz essa subordinação natural do homem ao mundo, para que o nosso cérebro se torne o fiel espelho da ordem exterior, cujos resultados futuros podem desde logo ser previstos mediante as nossas operações interiores. Esta representação, porém, não comporta nem exige uma exatidão absoluta. Seu grau de aproximação é regulado pelas nossas exigências práticas, que mede a precisão que convém às nossas previsões teóricas. Este limite necessário deixa ordinariamente à nossa inteligência certa liberdade especulativa, de que ela deve servir-se para satisfazer melhor às suas próprias inclinações, quer científicas, quer mesmo estéticas, tornando nossas concepções mais regulares, e mesmo mais belas, sem serem menos verdadeiras. Tal é, mentalmente, o positivismo, que, prosseguindo sempre o estudo das leis, caminha sem cessar entre duas sendas igualmente perigosas, o misticismo, que quer penetrar até as causas, e o empirismo, que se cinge aos fatos. A MULHER - Esta teoria estática de nossa inteligência deixa, segundo creio, meu pai, uma grave lacuna, porque parece só referir-se ao estado de razão propriamente dito, sem poder estender-se até a loucura, que, entretanto, ela deveria também explicar. A vida real oferece diariamente tantas nuanças intermediárias entre estas duas situações mentais que todos esses casos devem seguir as mesmas leis essenciais, com simples diferenças de grau, como em relação às nossas funções corporais. O SACERDOTE - Bastará, minha filha, que considereis mais atentamente a doutrina precedente para reconhecerdes que ela contém, com efeito, a verdadeira teoria da loucura e do idiotismo. Estes dois estados opostos constituem os dois extremos da proporção normal que o estado de razão exige entre os impulsos objetivos e as inspirações subjetivas. O idiotismo consiste no excesso de objetividade, quando o nosso cérebro se torna demasiado passivo; e a loucura propriamente dita, no excesso de subjetividade, devido à atividade desmedida desse aparelho. Mas o grau médio, que constitui a razão, segue ele próprio as variações regulares que experimenta toda a existência humana, tanto social como pessoal. A apreciação da loucura torna-se, assim, tanto mais delicada quanto cumpre aí levar em conta os tempos e os lugares, em geral as situações, como tão bem o faz sentir a admirável composição do grande Cervantes. É esse o caso em que se percebe melhor quanto o estudo estático da inteligência permanece insuficiente sem o seu complemento dinâmico. A MULHER - À vista desta reflexão admirável, quisera eu, meu pai, se o julgásseis conveniente, começar já essa apreciação complementar, pois só assim as minhas próprias meditações poderão conceber, enfim, o conjunto desse grande espetáculo. Já sei que as variações quaisquer das opiniões humanas nunca podem ser puramente arbitrárias. Mas preciso ainda de novos esclarecimentos para deslindar melhor a marcha geral que elas seguem. O SACERDOTE - Segundo o enunciado que conheceis, essa marcha consiste, minha filha, na passagem necessária de toda concepção teórica por três estados sucessivos: o primeiro, teológico, ou fictício; o segundo, metafísico, ou abstrato; o terceiro, positivo, ou real. O primeiro é sempre provisório, o segundo puramente transitório, e o terceiro o único definitivo. Este último difere, sobretudo, dos outros dois pela sua substituição característica do relativo ao absoluto, quando o estudo das leis toma, enfim, o lugar da pesquisa das causas. Entre os dois primeiros não existe, no fundo, outra diferença teórica a não ser a redução das divindades primitivas a simples entidades. Mas semelhante transformação, tirando das ficções sobrenaturais toda forte consistência, sobretudo social, e mesmo mental, a metafísica permanece sempre um puro dissolvente da teologia, sem nunca poder organizar seu próprio domínio. Por isso essa doutrina de revolta e de modificação não comporta, em nossa evolução original, individual ou coletiva, nenhuma outra eficácia senão o permitir a transição gradual do teologismo para o positivismo. Ela adapta-se tanto melhor a este ofício passageiro quanto as suas concepções equívocas podem alternativamente tornar-se ou representações abstratas dos agentes sobrenaturais ou qualificações gerais dos fenômenos correspondentes, conforme se está mais perto do estado fictício ou do estado real. A MULHER - Conquanto esta lei dinâmica já esteja bastante confirmada pela minha própria experiência, desejo, meu pai, apanhar, tanto quanto possível, o princípio intelectual de semelhante evolução. O SACERDOTE - Resulta ele, minha filha, da lei estática que nos obriga a tirar de nós mesmos os laços subjetivos de nossas impressões objetivas, as quais, sem isso, ficariam sempre incoerentes. As relações verdadeiras não podendo nunca ser percebidas senão mediante uma análise difícil e gradual, que vou explicar-vos, as nossas primeiras hipóteses foram puramente espontâneas, e, portanto, fictícias. Mas esta disposição geral, que hoje constituiria um excesso de subjetividade, achava-se no princípio de acordo com a nossa situação mental, em que a evolução só podia surgir de tal iniciativa. Só uma longa experiência, ainda hoje suficiente para os espíritos atrasados, nos havia de revelar a inanidade necessária da pesquisa das causas. Ora, este vão problema nos ofereceu durante muito tempo um atrativo invencível, ao mesmo tempo teórico e prático, prometendo-nos a possibilidade de procedermos sempre por dedução sem exigir nenhuma indução especial, e de modificarmos o mundo ao nosso talante. Assim, o duplo motivo que impulsionou os pensadores primitivos coincide essencialmente com aquele que há de dirigir sempre os nossos esforços intelectuais. O mesmo se dá, no fundo, com o princípio lógico desse regime inicial. Porquanto, toda a sã lógica é redutível a esta regra única: formar sempre a hipótese mais simples compatível com o conjunto dos dados obtidos. Ora, os pensadores teologistas, e mesmo fetichistas, aplicaram-na melhor que a maioria dos doutores modernos. Propondo-se a penetrar as causas, aqueles se limitaram a explicar o mundo pelo homem, única fonte possível de toda unidade teórica, atribuindo todos os fenômenos a vontades sobre-humanas, aliás interiores ou exteriores. Semelhante problema não comporta, pela sua natureza, senão esta solução, muito superior às tenebrosas ficções dos nossos ateus ou panteístas, cujo estado mental mais se aproxima da loucura do que da ingênua situação dos verdadeiros fetichistas. Essa superioridade manifesta-se sobretudo pelos resultados respectivos. Ao passo que a ontologia germânica retrograda hoje para o seu berço grego, sem inspirar nenhum pensamento real e perdurável, a teologia primitiva abriu ao espírito humano a única saída que a nossa situação inicial comportava. Posto que não pudesse nunca conduzir-nos à determinação das causas, o liame provisório que ela estabeleceu entre os fatos nos trouxe espontaneamente ao descobrimento das leis. Este único estudo, que no começo foi julgado puramente secundário, tendeu logo a tornar-se principal, sob o impulso prático que o representava como se adaptando melhor às previsões exigidas pela nossa atividade. No fundo, os bons espíritos nunca procuraram a causa senão enquanto não podiam achar a lei; e a conduta deles é, então, irrepreensível, como sendo mais própria do que qualquer torpor teórico para preparar essa aquisição final. Nossa inteligência tem, até, tal predileção pelas concepções positivas, por causa sobretudo da superioridade prática que as distingue, que amiúde se esforçou por substituí-las às ficções teológicas muito antes que as preparações convenientes estivessem assaz acabadas. O termo, pois, da evolução mental é ainda menos duvidoso do que o seu início. A MULHER - Esta explicação de vossa Lei dos três estados deixa-me, meu pai, muitas névoas acerca dos casos frequentes em que o espírito humano parece-me ao mesmo tempo teológico, metafísico e positivo, conforme as questões de que se ocupa. Se esta coexistência ficasse inexplicada, ela comprometeria diretamente vossa regra dinâmica, que entretanto creio ser incontestável. Tirai-me, rogo-vos, de semelhante perplexidade. O SACERDOTE - Ela desaparecerá, minha filha, quando notardes a ordem constante que preside à marcha simultânea de nossas várias concepções teóricas, segundo a generalidade decrescente e a complicação crescente dos fenômenos correspondentes. Daí resulta uma lei complementar, sem a qual o estudo dinâmico do entendimento humano ficaria obscuro, e mesmo quase inaplicável. Com facilidade compreendereis que, fenômenos mais gerais sendo necessariamente mais simples, as especulações correspondentes devem ser mais fáceis, e apresentar, portanto, um surto mais rápido. Esta gradação, que se verifica até nas diversas fases teológicas, convém sobretudo ao estado positivo, em virtude das preparações laboriosas que ele exige. Eis aí como certas teorias permanecem metafísicas, ao passo que outras mais simples já se tornaram positivas, posto que outras mais complicadas ainda se conservem teológicas. Nunca, porém, se observa o inverso; o que basta para dissipar cabalmente a objeção oriunda dessa diversidade simultânea. A ordem natural que acabo de indicar-vos entre as nossas diferentes concepções, e da qual vou tirar a verdadeira escala enciclopédica, é só o que permite compreender suficientemente a marcha geral dessas concepções. Ela funda a lógica positiva, desvendando o encadeamento segundo o qual os nossos diversos estudos teóricos devem suceder-se para que conduzam a construções duradouras. Posto que cada classe de fenômenos tenha sempre as suas leis próprias, as quais supõem induções especiais, estas quase nunca podem tornar-se eficazes sem as deduções fornecidas pelo conhecimento prévio das leis mais simples. Esta subordinação subjetiva resulta da dependência objetiva dos fenômenos menos gerais para com todos os que o são mais. Assim, a ordem contínua dos nossos estudos, elevando-se sempre do mundo ao homem, não é só motivada pela preparação lógica que as especulações mais simples comportam melhor; assenta também na dependência científica das teorias superiores em relação às inferiores, em virtude da subordinação dos respectivos fenômenos. A MULHER - Agora, meu pai, já me explicastes quanto basta as leis intelectuais, quer dinâmicas, quer estáticas; mas ainda não vejo dimanar delas a construção fundamental que a princípio eu esperava no tocante ao conjunto do dogma positivo. Preciso, pois, compreender diretamente como é que o princípio universal da Humanidade pode enfim instituir, mediante essas leis, uma verdadeira unidade especulativa, ligando as leis morais às leis físicas. O SACERDOTE - Essa legítima aspiração ficará satisfeita, minha filha, considerando sob um novo aspecto geral a lei complementar que acabo de assinalar ao movimento intelectual. Assim concebida, esta lei é sobretudo subjetiva, como o devia ser aquela que ela assiste. Mas vós sabeis também que esta classificação comporta diretamente uma significação objetiva, regulando a dependência geral dos diversos fenômenos. Nesta nova apreciação, seu destino toma-se sobretudo estático, para caracterizar não a coexistência dos nossos diferentes progressos teóricos, mas a ordem fundamental que domina o conjunto dos acontecimentos quaisquer. A lei da classificação fica então plenamente distinta da lei de filiação, conquanto a íntima conexão das duas explique assaz a simultaneidade de sua descoberta. Antes de vos expor esta grande hierarquia teórica, devo circunscrever suficientemente seu campo geral. Isto resulta, no fundo, da verdadeira distinção filosófica entre a especulação e a ação. Ao passo que a prática permanece necessariamente especial, a verdadeira teoria é sempre geral. Mas esta generalidade característica não se adquire jamais senão mediante uma abstração prévia, que altera mais ou menos a realidade das concepções correspondentes. Quaisquer que sejam os perigos práticos de semelhante alteração, cumpre que a eles nos resignemos, a fim de adquirir a coerência que só uma inteira universalidade das leis teóricas pode ministrar. A sabedoria vulgar proclama com razão que toda regra comporta exceções. Entretanto, nossa inteligência precisa achar enfim, por toda parte, regras que nunca falhem, a fim de evitar uma flutuação indefinida. Só se pode conseguir isto decompondo, tanto quanto possível, o estudo dos seres, único ordinariamente direto, nos estudos dos diversos acontecimentos gerais que compõem a existência de cada um deles. Obtemos, assim, leis abstratas cujas diferentes combinações explicam em seguida cada economia concreta. Conquanto já de si muito multiplicadas, estas leis irredutíveis, sobre as quais assenta toda a nossa sabedoria teórica, são muito menos numerosas que as regras particulares que elas dominam. Estas últimas, além de serem em grande número, resistirão sempre, em virtude de sua complicação natural, aos nossos melhores esforços, tanto indutivos como dedutivos. Mas também o conhecimento delas seria para nós essencialmente inútil, com exceção das raras influências que de fato afetam os nossos destinos. Para estes casos excepcionais, o gênio prático, único aí competente, pode sempre achar regras empíricas que bastem para a nossa conduta, auxiliando-se com critério das indicações gerais dimanadas do gênio teórico. Porquanto a regularidade dos acontecimentos compostos, se bem que menos apreciável que a de seus elementos gerais, resulta necessariamente desta, de modo a poder manifestar-se por uma observação especial bastante prolongada. Nós não conheceremos nunca, por exemplo, as leis gerais das variações peculiares à constituição normal da atmosfera terrestre. Todavia, os navegantes e os agricultores sabem tirar, de suas observações locais ou temporárias, regras particulares que, conquanto empíricas, nos dispensam essencialmente da pretendida meteorologia. O mesmo direi de todos os outros estudos concretos, geológicos, zoológicos e mesmo sociológicos. Tudo quanto não puder ser aí realmente abordado pelo gênio prático será sempre ocioso. A verdadeira ciência permanece, pois, necessariamente abstrata. Suas leis gerais acerca das categorias pouco numerosas que abrangem todos os fenômenos observáveis bastam para demonstrar sempre a existência das leis concretas, posto que a maioria destas não possa nem deva ser jamais conhecida, salvo os casos práticos. A MULHER - Entrevejo, meu pai, a profunda simplificação que há de experimentar vossa construção filosófica, em consequência desta análise fundamental que reduz o estudo dos seres ao estudo dos acontecimentos. Atemoriza-me, porém, a abstração habitual que semelhante regime científico exige, posto que eu esteja felizmente dispensada de tomar parte nele. Sua instituição parece-me, até, acima de nossas forças intelectuais, se todas as ordens de fenômenos houverem de ser estudadas diretamente no Grande Ser, que é o único que nos oferece o conjunto delas. O SACERDOTE - Para tranquilizar-vos, minha filha, basta que considereis sob um novo aspecto o princípio geral da hierarquia abstrata. Posto que ele só institua diretamente a subordinação dos acontecimentos, deve também conduzir indiretamente à dos seres. Porquanto os fenômenos são tanto mais gerais quanto maior é o número das existências a que eles pertencem. Os mais simples de todos, embora espalhados por toda parte, devem, pois, se encontrar em seres que não nos oferecem outros, e nos quais seu estudo próprio se torna, portanto, mais acessível. Na verdade, o segundo grau teórico estará sempre necessariamente reunido ao primeiro; é sobretudo isto, mais do que a própria natureza dos fenômenos, que constitui o acréscimo de complicação. Porém, quaisquer que sejam estas acumulações sucessivas, cada nova categoria de acontecimentos poderá ser estudada em seres independentes das seguintes, posto que submetidos às precedentes, cuja apreciação prévia permitirá concentrar a atenção na classe introduzida. Ainda mesmo que os seres deixassem um dia de ser distintos uns dos outros, o método positivo conservaria sua principal eficácia se eles apresentassem estados diferentes, o que nunca pode deixar de dar-se, em virtude da natureza de tal classificação. Assim, a hierarquia teórica que vou expor-vos, posto que destinada a princípio a fornecer apenas uma escala dos fenômenos, constitui necessariamente a verdadeira escala dos seres, ou pelo menos das existências. Ela é alternativamente abstrata ou concreta, conforme seu destino é subjetivo ou objetivo. É por isso que a subordinação enciclopédica das artes coincide essencialmente com a das ciências. A MULHER - Antes que enceteis, meu pai, essa exposição hierárquica, cujo princípio geral começo a perceber, rogo-vos que me expliqueis diretamente a marcha que cumpre aí seguir. Parece que, para cimentar a união fundamental entre o mundo e o homem, ela pode partir do mesmo modo de cada um deles tendendo para o outro. Seu uso habitual afigura-se-me exigir mesmo que ela possa, como qualquer outra escala, tornar-se indiretamente ascendente ou descendente. Ignoro, porém, se esta dupla via convém à sua construção. O SACERDOTE - O concurso normal desses dois métodos, um objetivo, o outro subjetivo, é tão necessário, minha filha, para a formação como para a aplicação da hierarquia teórica. A elaboração espontânea desta dependeu do primeiro método; mas sua instituição sistemática exigiu o segundo. Cada iniciação individual deve neste, como em qualquer outro caso importante, representar essencialmente a evolução coletiva, com a diferença de que daqui por diante far-se-á conscientemente o que outrora se fez às cegas. A combinação destas duas marchas é o único meio que permite reunir as vantagens de ambas, neutralizando seus perigos. Subir do mundo ao homem sem ter primeiro descido do homem ao mundo expõe a estender demasiado os estudos inferiores, perdendo de vista o verdadeiro destino teórico de tais estudos, de modo a consumir nossos esforços científicos em puerilidades acadêmicas, tão contrárias ao espírito como ao coração. A ligação e a dignidade são, então, sacrificadas à realidade e à nitidez. Entretanto, foi assim que teve de proceder a positividade abstrata durante o longo preâmbulo científico que se estende de Tales e Pitágoras até Bichat e Gall, a fim de elaborar os materiais sucessivos da sistematização final. As necessidades superiores de nossa inteligência só foram então satisfeitas imperfeitamente mediante a tutela heterogênea que ainda exercia o espírito teológico-metafísico. Hoje, porém, que o princípio universal da síntese definitiva se acha irrevogavelmente assentado, em virtude daquela imensa preparação, o método subjetivo, tornado enfim tão positivo quanto o método objetivo, deve assumir diretamente a iniciativa enciclopédica. Só ele pode instituir convenientemente a construção que o outro poderá, então, elaborar dignamente. Esta regra quadra tanto a cada grande pesquisa científica como o conjunto do sistema teórico. A MULHER - Eis-me, pois, pronta, meu pai, para bem acompanhar a consagração religiosa que o dogma da Humanidade confere sucessivamente a todas as partes essenciais da ciência abstrata, consolidando as mais eminentes e nobilitando as mais inferiores por essa conexão universal. O SACERDOTE - A fim de caracterizar melhor semelhante síntese, deveis recordar primeiro, minha filha, o fim contínuo da vida humana, a conservação e o aperfeiçoamento do Grande Ser, que cumpre ao mesmo tempo amar, conhecer e servir. Cada qual realiza espontaneamente este tríplice ofício que a religião sistematiza pelo culto, pelo dogma e pelo regime. A construção filosófica, conquanto indispensável, é apenas, no fundo, destinada a consolidar e desenvolver as outras duas. Em si mesmo, o estudo direto da humanidade pode degenerar tanto como as ciências inferiores, se esquecermos que não devemos conhecer o Grande Ser senão para amá-lo mais e servi-lo melhor. Quando a preocupação do meio faz desconhecer ou descurar o fim, o desenvolvimento sistemático se torna, no fundo, menos recomendável que a espontaneidade vulgar. Concebeis, assim, por que é que coloco no ápice da escala enciclopédica a Moral, ou a ciência do homem individual. Pois que o Grande Ser nunca funciona senão por intermédio de órgãos finalmente pessoais, é preciso primeiro estudar sobretudo estes, para que aquele seja convenientemente servido durante a existência objetiva deles, de onde dependerá a influência subjetiva de tais órgãos. É assim que o positivismo consolida irrevogavelmente o preceito fundamental da teocracia inicial: Conhece-te para melhorar-te. O princípio intelectual aí concorre com o motivo social. Com efeito, a mais útil de todas as ciências é também a mais completa, ou, antes, a única completa; visto como os seus fenômenos compreendem subjetivamente todos os outros, conquanto estejam por isso mesmo objetivamente subordinados a estes. O princípio fundamental da hierarquia teórica faz, portanto, prevalecer diretamente o ponto de vista moral, como o mais complicado e o mais especial. Aí cessa, porém, necessariamente a conformidade filosófica entre o positivismo e o teologismo. Este, preocupado sempre com causas, entregava imediatamente os estudos morais aos princípios sobrenaturais com que explicava tudo. Suscitando assim observações puramente interiores, consagrava a personalidade de uma existência que, ligando diretamente cada homem a um poder infinito, o isolava profundamente da humanidade. Pelo contrário, o positivismo não procurando jamais senão a lei para melhor dirigir a atividade, sempre essencialmente social, faz repousar a ciência moral sobre a observação dos outros, muito mais do que sobre a observação de si próprio, a fim de estabelecer noções ao mesmo tempo reais e úteis. Sente-se, então a impossibilidade de abordar convenientemente semelhante estudo sem ter apreciado primeiro a sociedade. A todos os respeitos, cada um de nós depende sem cessar da Humanidade, sobretudo quanto às nossas funções mais nobres, sempre subordinadas aos tempos e aos lugares em que vivemos, como vo-lo recordam estes belos versos de Zaíra: No Ganges me curvara escrava a falsos lares, Cristã fora em Paris, do Islão nestes lugares. Eis aí o modo por que a moral, concebida como a nossa principal ciência, institui, em primeiro lugar, a Sociologia, cujos fenômenos são ao mesmo tempo mais simples e mais gerais, de acordo com o espírito de toda a hierarquia positiva. A MULHER - Permiti, meu pai, que vos detenha um momento neste primeiro passo, a fim de resolverdes a contradição que ele me parece apresentar entre essas duas condições da vossa classificação, porque dir-se-ia que excepcionalmente a complicação cresce aqui com a generalidade. Eu sempre julguei o ponto de vista moral como mais simples que o ponto de vista social. O SACERDOTE - Isso é devido, minha filha, ao fato de terdes até agora procedido antes por inspiração do sentimento do que guiada pela razão; pois que a moral deve ser, para o vosso sexo, mais uma arte do que uma ciência. Se houvéssemos de comparar a multiplicidade dos casos, a multiplicidade dos indivíduos haveria de vos parecer superior à que notais entre os povos, e que tanto vos preocupa. Mas, limitando-nos à própria complicação, esqueceis que a ciência moral, além de todas as influências que a ciência social considera, tem também de apreciar impulsos que esta puser de lado como quase insensíveis. Refiro-me às reações íntimas que se exercem sempre, segundo leis muito pouco conhecidas ainda, entre o físico e o moral do homem. Apesar de sua grande eficácia pessoal, a sociologia não as toma em consideração especial, porque os resultados opostos dessas reações nos diversos indivíduos anulam-se essencialmente em relação aos povos. Pelo contrário, toda apreciação moral que as desprezasse expor-nos-ia aos mais graves enganos, fazendo-nos atribuir à alma o que provém do corpo, ou vice-versa, como o estais vendo todos os dias. A MULHER - Compreendo assim, meu pai, o que me fez suspender no começo vosso encadeamento hierárquico, que vos rogo continueis agora até o fim, sem receio de qualquer nova interrupção, que me impediria de apanhar suficientemente a filiação geral. O SACERDOTE - Vossa objeção, aliás muito natural, serve aqui, minha filha, para assinalar melhor nosso primeiro passo enciclopédico, tipo necessário de todos os outros, os quais daqui por diante se efetuarão com mais rapidez, como se dá a respeito de qualquer escala. Espero que descereis sem esforço de cada ciência à seguinte, sob o mesmo impulso que acaba de vos conduzir da moral à sociologia, consultando sempre a subordinação natural dos fenômenos correspondentes. Este principio fundamental vos faz sentir em primeiro lugar que o estudo sistemático da sociedade exige o conhecimento prévio das leis gerais da vida. Com efeito, os povos sendo seres eminentemente vivos, a ordem vital domina necessariamente a ordem social, cujo estado estático e surto dinâmico ficariam profundamente alterados se nossa constituição cerebral, ou mesmo corporal, mudasse de modo notável. Aqui, o duplo acréscimo de generalidade e simplicidade toma-se plenamente irrecusável. É assim que a sociologia, instituída primeiro pela moral, institui, por sua vez, a Biologia, que aliás também apresenta relações diretas com a ciência principal. Não devendo estudar a vida senão no que ela oferece de comum em todos os seres que dela gozam, os animais e os vegetais formam o domínio próprio desta ciência, se bem que ela seja finalmente destinada ao homem, cujo verdadeiro estudo ela apenas pode esboçar de modo grosseiro. Assim concebida, a biologia aprecia judiciosamente as funções corporais estudando as existências em que elas se acham espontaneamente isentas de toda complicação superior. Quando esta instituição lógica a expuser à degeneração acadêmica, insistindo demasiado sobre seres ou atos insignificantes, a disciplina filosófica deverá fazê-la voltar ao regime normal sem nunca estorvar uma marcha indispensável às pesquisas de tal ciência. Entre estas três primeiras ciências, existe uma conexão tal que o nome da média me serve para designar o conjunto delas no quadro enciclopédico que compus (o quadro B anexo) para facilitar-vos a apreciação geral da hierarquia teórica positiva. De fato, a sociologia pode facilmente ser concebida como absorvendo a biologia a título de preâmbulo, e a moral a título de conclusão. Quando a palavra Antropologia for mais e melhor usada, será preferível para este destino coletivo, pois que significa literalmente estudo do homem. Dever-se-á, porém, empregar por muito tempo o nome sociologia, a fim de caracterizar mais a principal superioridade do novo regime intelectual, que consiste sobretudo na introdução enciclopédica do ponto de vista social, essencialmente alheio à antiga síntese. Os seres vivos são necessariamente corpos, que, apesar da sua maior complicação, seguem sempre as leis mais gerais da ordem material, cuja preponderância imutável domina todos os fenômenos próprios deles, sem todavia anular nunca a espontaneidade dos mesmos. Um terceiro passo enciclopédico, plenamente análogo aos precedentes, subordina, pois, a biologia, e, por conseguinte, a sociologia com a moral, à grande ciência inorgânica que chamei Cosmologia. Seu verdadeiro domínio consiste no estudo geral do planeta humano, meio necessário de todas as funções superiores, vitais, sociais e morais. Ela ficaria, pois, mais bem qualificada pela palavra Geologia, que diretamente oferece tal significação. Mas a anarquia acadêmica desnaturou por tal forma esta expressão que o positivismo deve desistir de empregá-la, até a próxima eliminação da pretendida ciência decorada com esse título. Então se poderá seguir melhor as leis da linguagem, aplicando ao conjunto dos estudos inorgânicos uma denominação mais exata, e cuja natureza concreta deve, até, recordar com mais força a necessidade de apreciar cada existência no caso menos complicado. Eu terminaria aqui a operação enciclopédica, sem decompor de qualquer modo a cosmologia, se só tivesse em vista o estado final da razão humana, que deverá contrair as ciências inferiores e dilatar as superiores. Mas cumpre também prover agora às necessidades especiais da indicação ocidental, cujo equivalente essencial há de reproduzir-se sempre em cada evolução individual. Este duplo motivo obriga-me a distinguir, em cosmologia, duas ciências igualmente fundamentais, das quais uma, sob o nome geral de Física, estuda diretamente o conjunto da ordem material. A outra, mais simples e mais geral, com razão qualificada de Matemática, serve de base necessária àquela, e, portanto, a todo o edifício teórico, apreciando em primeiro lugar a existência mais universal, reduzida apenas aos fenômenos que se encontram por toda parte. Sem esta decomposição, não se conceberia o surto espontâneo da filosofia positiva, que só pode começar por semelhante estudo, cujo aperfeiçoamento mais rápido fez com que fosse considerada a princípio como a ciência única. Conquanto seu nome lembre muito mais do que era mister esse privilégio inicial, extinto há muito tempo, deverá ser conservado até que a superioridade natural deste tipo científico e lógico haja regulado assaz o surto popular das leis enciclopédicas. Então uma denominação menos vaga e mais bem construída poderá caracterizar seu verdadeiro domínio, a fim de refrear sistematicamente a obcecada ambição teórica de seus adeptos exclusivistas. Seja como for, deveis reconhecer a necessidade de descer até aí para dotar a escala enciclopédica de uma base espontânea, que possa erigir seu conjunto em prolongamento gradual da razão comum. Com efeito, a própria física, muito mais simples que as outras ciências, ainda não o é bastante. Suas induções particulares não podem ser sistematizadas senão graças a deduções mais gerais, como em qualquer outra parte; apenas esta necessidade lógica e científica faz-se sentir menos nela. É só em matemática que se pode induzir sem ter deduzido primeiro, por causa da extrema simplicidade de seu domínio, onde a indução passa amiúde despercebida, a ponto de os geômetras acadêmicos não verem aí senão deduções, que seriam assim ininteligíveis, por lhes faltar uma origem. As únicas convicções verdadeiramente inabaláveis que podem existir onde quer que seja são as que assentam finalmente sobre este fundamento imutável de toda a filosofia positiva. Tal será sempre o remate necessário do encadeamento subjetivo, segundo o qual todo espírito são, animado por um coração honesto, poderá instituir sempre, como acabo de fazê-lo, a série fundamental dos cinco principais graus enciclopédicos. A MULHER - Atribuo, meu pai, a essa reação do sentimento sobre a inteligência a facilidade que tenho em acompanhar semelhante operação, que a princípio me atemorizou tanto. Constantemente preocupado com a moral, única base sólida de sua justa influência, meu sexo terá sempre o maior empenho em proporcionar, enfim, a essa arte fundamentos sistemáticos, que possam resistir aos sofismas das más paixões. Hoje, sobretudo, achamo-nos alarmadas contemplando os estragos morais já produzidos pela anarquia intelectual, que ameaça dissolver em breve todos os laços humanos, se convicções irresistíveis não prevenirem, afinal, seu ascendente espontâneo. Os verdadeiros filósofos podem, pois, contar com o concurso tácito e o reconhecimento íntimo de todas as dignas mulheres, quando eles reconstruírem a moral sobre fundamentos positivos, a fim de substituir de modo irrevogável suas bases sobrenaturais, cuja decrepitude é demasiado evidente. As que sentirem, como eu o faço neste momento, a necessidade de descer para isso até as ciências mais abstratas, saberão apreciar convenientemente este socorro inesperado que a razão vem, enfim, prestar ao amor. Compreendo assim por que o quadro enciclopédico que vou estudar procede em sentido inverso da exposição que ele resume. Com efeito, é necessário sobretudo familiarizar-se com essa ordem ascendente, segundo a qual se desenvolveram sempre as diversas concepções positivas. Instituindo-a pelo modo por que acabais de o fazer, dissipastes a principal repugnância que naturalmente inspira às mulheres uma marcha demasiado abstrata, que até aqui elas viram conduzir, com tanta frequência, à secura e ao orgulho. Agora que posso sempre perceber e recordar o fim moral de toda a elaboração científica, e as condições próprias de cada uma de suas fases essenciais, eu não terei menos satisfação em subir do que em descer vossa escala enciclopédica. QUADRO DAS QUINZE LEIS DE FILOSOFIA PRIMEIRA OU PRINCÍPIOS UNIVERSAIS SOBRE OS QUAIS ASSENTA O DOGMA POSITIVO PRIMEIRO GRUPO, tanto objetivo como subjetivo. 1° Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar (I). 2° Conceber como imutáveis as leis quaisquer que regem os seres pelos acontecimentos, posto que só a ordem abstrata permite apreciá-los (II). 3° As modificações quaisquer da ordem universal limitam-se sempre à intensidade dos fenômenos, cujo arranjo permanece inalterável (III). SEGUNDO GRUPO, essencialmente subjetivo. 1ª Série: leis estáticas do entendimento. 1° Subordinar as construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibniz, Kant) (IV). 2° As imagens interiores são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V). 3° A imagem normal deve ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir (VI). 2ª Série: leis dinâmicas do entendimento. 1° Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII). 2° A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva, e enfim industrial (VIII). 3° A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica, e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos (IX). TERCEIRO GRUPO, sobretudo objetivo. 1ª Série: a mais objetiva da filosofia primeira. 1° Todo estado, estático ou dinâmico, tende a persistir espontaneamente sem nenhuma alteração, resistindo às perturbações exteriores (X). 2º Um sistema qualquer mantém sua constituição ativa ou passiva quando seus elementos experimentam mutações simultâneas, contanto que sejam exatamente comuns (XI). 3° Existe por toda parte uma equivalência necessária entre a reação e a ação, se a intensidade de ambas for medida conformemente a natureza de cada conflito (XII). 2ª Série: mais subjetiva que a precedente. 1° Subordinar por toda parte a teoria do movimento à da existência, concebendo todo o progresso como o desenvolvimento da ordem correspondente, cujas condições quaisquer regem as mutações que constituem a evolução (XIII). 2º Toda classificação positiva procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva (XIV). 3° Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos ruja ligação opera (XV). O SACERDOTE - Esta alternância vos será mais fácil, minha filha, se notardes que, em ambos os sentidos, o percurso teórico poderá seguir o mesmo princípio, procedendo sempre segundo o decrescimento de generalidade. Para isto basta referir a série fundamental, ora aos próprios fenômenos, ora às nossas próprias concepções conforme o uso dela for objetivo ou subjetivo. Com efeito, as noções morais compreendem necessariamente todas as outras, que nós tiramos das primeiras por abstrações sucessivas. É sobretudo nisto que consiste a complicação superior de tais noções. A ciência correspondente oferece, portanto, mais generalidade subjetiva do que todos os estudos inferiores. Pelo contrário, os fenômenos matemáticos são os mais gerais, só porque são os mais simples. O seu estudo apresenta, portanto, mais generalidade objetiva, porém menos generalidade subjetiva do que qualquer outro. Sendo o único que se pode aplicar a todas as existências apreciáveis, é também o que dá a conhecer menos os seres correspondentes, dos quais esse estudo apenas pode desvendar as leis mais grosseiras. Todos os casos intermediários oferecem, em graus menores, este duplo contraste entre a matemática e a moral. Mas, quer se suba ou se desça, o percurso enciclopédico apresenta sempre a moral como a ciência por excelência, pois que é ao mesmo tempo a mais útil e a mais completa. É nela que o espírito teórico, tendo gradualmente perdido sua abstração inicial, vem unir-se sistematicamente ao espírito prático, depois de ter acabado todas as preparações indispensáveis. Por isso a sabedoria pública, regularizada pelo positivismo, há de fazer respeitar sempre o admirável equívoco, tão deplorado pelos nossos pedantes, que, aí somente, confundem a arte e a ciência sob uma mesma denominação. Esta confusão aparente ministra à ciência moral um feliz equivalente da disciplina que, em todos os outros domínios, previne ou corrige as divagações teóricas peculiares à cultura ascendente. Com efeito, a regra geral consiste em restringir cada fase enciclopédica ao desenvolvimento necessário para preparar o grau seguinte, reservando, aliás, ao gênio prático os estudos mais detalhados que ele julgar especialmente convenientes. Apesar das declamações acadêmicas, sabe-se agora que semelhante disciplina consagra todas as teorias verdadeiramente interessantes, excluindo apenas as puerilidades científicas, cuja repressão é hoje prescrita pelas exigências combinadas do espírito e do coração. Ora, essa regra, tão preciosa onde quer que seja, falha necessariamente em relação à ciência colocada no ápice da escala enciclopédica. Se as teorias morais fossem tão cultivadas como o são as outras, sua complicação superior expô-las-ia, dada essa indisciplina especial, a divagações mais frequentes e mais nocivas. Mas o coração vem, então, guiar melhor o espírito, recordando com mais força a subordinação universal da teoria à prática, em virtude de um título felizmente ambíguo. Os filósofos devem, com efeito, estudar a moral com a mesma disposição com que as mulheres a estudam, a fim de haurir dela as regras de nossa conduta. Somente a ciência dedutiva deles proporciona às induções femininas uma generalidade e uma coerência que estas não poderiam adquirir por outro modo, e que entretanto se tornam quase sempre indispensáveis à eficácia pública, ou mesmo privada, dos preceitos morais. A MULHER - O verdadeiro regime teórico ficando assim constituído, rogo-vos, meu pai, que termineis esta longa e difícil conferência caracterizando as propriedades gerais de vossa série enciclopédica, considerada daqui por diante no sentido ascendente, que em breve me será familiar. Espontaneamente percebo os perigos intelectuais e morais peculiares a essa cultura objetiva, enquanto permaneceu desprovida da disciplina subjetiva que acabais de me explicar. Então a sucessão necessária das diversas fases enciclopédicas obrigou provisoriamente o gênio científico a seguir um regime de especialidade dispersiva, diretamente contrário à plena generalidade que deve caracterizar as vistas teóricas. Daí deviam resultar cada vez mais, nos cientistas sobretudo e, por conseguinte, no público também, de um lado, o materialismo e o ateísmo, do outro, o desdém pelas afeições ternas e o desuso em que caíram as belas-artes. Eu sei há muito tempo quanto, sob todos estes aspectos, o verdadeiro positivismo, longe de oferecer qualquer solidariedade real com seu preâmbulo científico, constitui, pelo contrário, o melhor corretivo dele. Mas sem vosso auxílio não poderei apanhar os atributos essenciais que devo agora apreciar no conjunto de vossa hierarquia teórica. O SACERDOTE - Reduzi, minha filha, esses atributos a dois principais, que correspondem ao duplo destino geral dessa hierarquia, tanto subjetivo como objetivo, ou melhor, aqui, lógico e científico, conforme se considere sobretudo o método ou a doutrina. Sob o primeiro aspecto, a série enciclopédica indica a um tempo a marcha necessária da educação teórica e o surto gradual do verdadeiro raciocínio. Principalmente dedutivo no seu berço matemático, onde as induções indispensáveis são quase sempre espontâneas, o método positivo torna-se cada vez mais indutivo, à medida que atinge especulações mais eminentes. Nesta longa elaboração, cumpre distinguir quatro graus essenciais, em que a complicação crescente dos fenômenos nos faz desenvolver sucessivamente a observação, a experiência, a comparação e a filiação histórica. Cada uma destas cinco fases lógicas, incluindo o exórdio matemático, absorve espontaneamente todas as que precedem, em virtude da subordinação natural dos fenômenos correspondentes. A sã lógica fica assim completa, e, portanto, sistemática, logo que o surto decisivo da sociologia faz surgir o método histórico, como a biologia havia instituído antes a arte comparativa, depois de a física ter suficientemente desenvolvido a observação e a experiência. Uma feliz ignorância dispensa hoje vosso sexo das demonstrações filosóficas pelas quais o positivismo se esforça por convencer os homens de que não se pode aprender a raciocinar senão raciocinando, com certeza e precisão, sobre casos nitidamente apreciáveis. Os que melhor sentem que toda arte deve ser aprendida pelo exercício ainda ouvem os sofistas que lhes ensinam a raciocinar, ou mesmo a falar, raciocinando ou falando unicamente sobre o raciocínio ou a palavra. Mas, posto que vos tenham ensinado a gramática, e talvez a retórica, pouparam-vos pelo menos a lógica, o mais ambicioso dos três estudos escolásticos. Graças a isso, vossa própria razão, felizmente cultivada sob o ensino do vosso querido Molière, pode logo aquilatar as duas outras puerilidades clássicas. Fortalecida agora por convicções sistemáticas, não hesitareis em rir-vos convenientemente dos Trissotinos que quiserem ensinar-vos a arte dedutiva, sem dela terem nunca feito eles próprios o mínimo uso matemático. Cada parte essencial do método positivo deverá sempre ser estudada sobretudo na doutrina científica que primeiro a fez surgir. A MULHER - Esta primeira apreciação não me apresentando afortunadamente nenhuma dificuldade, pois que não vejo aí senão bom senso, peço-vos, meu pai, que passeis já à segunda propriedade geral de vossa escala enciclopédica. O SACERDOTE - Consiste ela, minha filha, na concepção sistemática da ordem universal, como vo-lo indica o segundo título do nosso quadro. Desde a ordem material até a ordem moral, cada ordem se superpõe aí à precedente, segundo esta lei fundamental, consequência necessária do verdadeiro princípio hierárquico: Os fenômenos mais nobres estão por toda parte subordinados aos mais grosseiros. É a única regra verdadeiramente universal que o estudo objetivo do mundo e do homem possa desvendar-nos. Não podendo absolutamente esta regra dispensar outras leis menos extensas, ela não bastaria para constituir em tempo algum a estéril unidade exterior que em vão procuraram todos os filósofos, desde Tales até Descartes. Renunciando, porém, a este frívolo incentivo, substituído com muito mais vantagem pelo destino moral de todos os nossos esforços teóricos, folgamos de apanhar, entre todas as nossas doutrinas abstratas, um laço objetivo inseparável de sua coordenação subjetiva. A prática social deve sobretudo utilizar semelhante apreciação do conjunto das fatalidades reais. Nossa dependência e nossa dignidade tornando-se, assim, conexas, nós ficaremos mais bem dispostos a sentir o valor da submissão voluntária, principal condição de nosso aperfeiçoamento moral, e mesmo intelectual. Com efeito, para completar essa grande lei, notai que, sob o aspecto prático, ela representa a ordem real como sendo cada vez mais modificável à medida que rege fenômenos mais complicados. O aperfeiçoamento supõe sempre a imperfeição, que por toda parte aumenta com a complicação. Mas vedes também que a providência humana torna-se, então, mais eficaz, dispondo de agentes mais variados. Tal compensação é, sem dúvida, insuficiente; de sorte que a ordem menos complicada é de ordinário a mais perfeita, embora cegamente governada. Todavia, esta lei geral da modificabilidade erige, por um duplo motivo, a moral em arte principal, já pela sua importância superior, já também em virtude do campo mais vasto que ela oferece à nossa criteriosa atividade. A prática e a teoria concorrem, portanto, para justificar cada vez mais o predomínio sistemático que o positivismo concede à moral. A MULHER - Pois que já me explicastes sucintamente o conjunto do dogma positivo, quisera, meu pai, antes de vos deixar hoje, conhecer de antemão o objeto próprio das outras duas conferências que me prometestes sobre esta segunda parte de vosso Catecismo. Com efeito, não vejo o que ainda me falta saber sobre esta base sistemática da religião universal, para passar convenientemente ao estudo direto e especial do regime, com que, a par do culto, me devo sobretudo ocupar. O SACERDOTE - As noções precedentes, minha filha, por demasiado abstratas e gerais, não deixariam em vosso espírito suficientes vestígios se eu não as completasse com explicações menos universais e mais bem determinadas, de que hei de fazer, aliás, frequente uso. Sem deter-vos especialmente em cada fase enciclopédica, como na nova educação ocidental, limito-me a pedir-vos que aprecieis em separado as duas partes desiguais que compõem historicamente o conjunto da filosofia positiva. Esta divisão espontânea consiste em decompor a ordem universal em ordem exterior e ordem humana. A primeira, a que correspondem a cosmologia e a biologia, constituiu, sob o nome de filosofia natural, que se tornou vulgar na Inglaterra, o único domínio científico da Antiguidade, que não pode mesmo senão esboçá-lo sob o aspecto estático. Além de o verdadeiro espírito teórico não comportar, então, um surto mais completo, o regime social devia repelir uma extensão prematura, que por muito tempo só podia dar como resultado comprometer a ordem inicial sem assistir realmente o progresso final. Somente o gênio excepcional de Aristóteles, depois de ter sistematizado, tanto quanto possível, a filosofia natural, preparou a sã filosofia moral, esboçando suficientemente as duas partes essenciais da estática humana, primeiro coletiva e depois individual. Por isso também ele só foi verdadeiramente apreciado na Idade Média, quando a separação provisória dos dois poderes suscitou o surto direto de nossas principais especulações. Mas este precioso impulso social não podia dispensar o verdadeiro espírito filosófico do longo preâmbulo científico que ainda o separava de seu melhor domínio. Eis por que esta divisão provisória se prolongou até nossos dias. Ela deve, assim, presidir à última transição da razão ocidental, dirigida pelo positivismo. SÉTIMA CONFERÊNCIA ORDEM EXTERIOR - PRIMEIRO MATERIAL, DEPOIS VITAL. A MULHER - Estudando o quadro que resume nossa conversação fundamental sobre o dogma positivo, compreendo, meu pai, a necessidade das outras duas conferências que finalmente me prometestes acerca dele. Meu coração devia impelir-me primeiro a sentir a necessidade de cada fase enciclopédica para a sistematização moral, a que é sobretudo destinada essa imensa construção teórica. É mister, agora, que meu espírito reconheça como se sucedem os diversos andares desse edifício abstrato, desde a base até o vértice, sem todavia penetrar no seu interior. Esta ascensão sistemática torna-se o complemento indispensável da descida fundamental que me fizestes executar. Com efeito, se o espírito pode subir, segundo uma progressão quase insensível, das mínimas noções matemáticas até as mais sublimes concepções morais, será esse para mim o mais admirável dos espetáculos. Conquanto meu sexo não possa nunca acompanhar os detalhes de tal filiação, deve ele compreender hoje sua possibilidade geral, a fim de certificar-se de que a moral sistemática comporta, assim, fundamentos verdadeiramente inabaláveis. A opinião feminina voltará então à ignomínia, como desejais, os sofistas anárquicos que, após a irrevogável decadência da fé teológica, se opõem ao advento da fé positiva, para prolongarem indefinidamente um interregno religioso favorável à sua indignidade e incapacidade. Não receeis, pois, deter primeiramente minha atenção no grau matemático, onde reside, segundo vós, a única base sólida do conjunto das teorias reais. A aversão pronunciada que este estudo inspira a todos os nossos trapalhões metafísicos dispõe-me a pressentir a eficácia orgânica que vós lhe atribuís. (Augusto Comte, pela boca de subjetiva interlocutora, acaba de chamar a matemática: "a única base sólida do conjunto das teorias reais"; e mais algumas linhas abaixo, pela boca do sacerdote, "a base lógica e científica de todo o edifício abstrato". Isto deve ser entendido sem prejuízo da filosofia primeira, concepção posterior a este Catecismo, e que constitui o "preâmbulo sintético do dogma", como se viu no quadro da nota anterior. No Complemento a esta tradução, elaborado pelo Sr. Teixeira Mendes; encontrará o leitor as informações necessárias sobre este assunto. Aqui, nos limitamos a reproduzir o quadro das quinze leis universais que constituem essa filosofia primeira, tais como foram formuladas por Auguste Comte em sua Política Positiva, tomo IV, pp. 173-181. "As últimas concepções de Auguste Comte, ou Ensaio de um complemento ao Catecismo Positivista". Rio de Janeiro, 1878). O SACERDOTE - Para conceberdes com clareza essa base lógica e científica de todo o edifício abstrato, basta, minha filha, que aprecieis bem o domínio geral que lhe assinala nosso quadro enciclopédico. A matemática estuda diretamente a existência universal, reduzida aos seus fenômenos mais simples, e, por conseguinte, os mais grosseiros, sobre os quais assentam necessariamente todos os outros atributos reais. Estas propriedades fundamentais de um ser qualquer são o número, a extensão e o movimento. Tudo o que não comporta esta tríplice apreciação não pode existir senão no nosso entendimento. Mas a natureza manifesta-nos muitos seres em que não podemos conhecer outra coisa além desses atributos elementares. Tais são sobretudo os astros, que, não sendo acessíveis senão mediante uma longínqua exploração visual, só comportam de fato este estudo matemático, que aliás basta plenamente para regular convenientemente nossas verdadeiras relações para com eles. Por isso, a astronomia nos há de oferecer sempre a aplicação mais direta e mais completa da ciência matemática. Todavia, se as leis gerais do número, da extensão e do movimento só tivessem podido ser estudadas nesses casos celestes, elas nos teriam escapado sempre, apesar de sua extrema simplicidade. Porém, como elas se acham por toda parte, foi possível descobri-las mediante casos mais acessíveis, depois de se ter afastado, por abstrações espontâneas, os outros atributos materiais que então complicavam a apreciação de tais leis. Observai desde já como o nosso princípio hierárquico preside à verdadeira distribuição interior de cada grande ciência tão naturalmente como a coordenação geral das teorias reais. Porquanto, este três elementos irredutíveis da matemática, cálculo, geometria e mecânica, constituem uma progressão, ao mesmo tempo histórica e dogmática, essencialmente análoga àquelas que vos apresenta de modo mais sensível o conjunto do sistema abstrato. As ideias de número são certamente mais universais e mais simples que mesmo as de extensão, as quais, por sua vez, precedem, por motivos semelhantes, as ideias de movimento. Relativamente à maior parte dos astros, os nossos conhecimentos reais se reduzem, no fundo, a enumerações exatas, sem que possamos sequer verificar a figura e a grandeza deles, que, aliás, nos interessam pouco. Os números aplicam-se tanto aos fenômenos como aos seres. Esta apreciação, numérica, que confunde tudo, é, no fundo, a única plenamente universal, por ser a única que se estende até os nossos pensamentos quaisquer. Sua grosseria natural não a impede de comportar um digno emprego, para aperfeiçoar por toda parte a harmonia e a fixidez, cujos melhores tipos nos são originariamente fornecidos por ela. Por isso vedes as crianças começarem espontaneamente sua iniciação abstrata por simples especulações numéricas muito antes que cheguem a meditar sobre os atributos geométricos. Quanto ao movimento, sem dificuldade sentis o aumento de complicação e o decréscimo de generalidade que colocam seu estudo no ápice do domínio matemático. Foi por isso que os gregos, tão adiantados em geometria, só puderam esboçar a mecânica em alguns casos de equilíbrio, sem nunca entrever as leis elementares do movimento. Comparando estas três partes essenciais da matemática, reconhece-se que o cálculo, cujo principal surto é antes algébrico do que aritmético, tem sobretudo um destino lógico, além de sua utilidade própria e direta. Sua aptidão essencial consiste em desenvolver tanto quanto possível nosso poder dedutivo. O estudo da extensão e o do movimento adquirem, assim, uma generalidade e uma coerência que não poderiam obter sem a transformação de todos os seus problemas em simples questões de números. Porém, sob o aspecto científico, a matemática consiste sobretudo na geometria e na mecânica; só estas é que instituem diretamente a teoria da existência universal, primeiro passiva, depois ativa. A mecânica adquire, assim, muita importância enciclopédica como transição necessária entre a matemática e a física, cujos caracteres respectivos nela se combinam profundamente. Aqui, toda a instituição lógica não parece ser apenas dedutiva, como o faz supor, em geometria, a extrema facilidade das induções indispensáveis. Começa-se, então, a sentir distintamente a necessidade de uma base indutiva, já difícil de apanhar no meio de nossas observações concretas, para permitir o surto das concepções abstratas que deverão referir a essa base o problema geral da composição e da comunicação dos movimentos. Foi sobretudo por falta de tal fundamento exterior que a mecânica racional não pôde desenvolver-se senão no século XVII. Até então o espírito matemático não tinha feito sobressair senão leis subjetivas, únicas sensíveis na geometria e no cálculo, em pensadores que ainda não compreendiam a conexão necessária dessas leis com as leis objetivas. Estas, porém, ficaram distintamente apreciáveis em virtude da grande dificuldade que elas opuseram aos fundadores da mecânica. A importância e a universalidade dessas três leis fundamentais do movimento me obrigam a vo-las indicar aqui como os melhores tipos das verdadeiras leis naturais, simples fatos gerais que não comportam nenhuma explicação, e que, pelo contrário, servem de base a toda explicação razoável. Posto que o regime metafísico houvesse estorvado muito a descoberta de tais leis, esta foi sobretudo demorada por sua dificuldade própria. Porquanto, essa descoberta constitui o primeiro esforço capital do gênio indutivo, discernindo, enfim, no meio dos acontecimentos mais vulgares, relações gerais que até então haviam escapado a todas as meditações humanas. A primeira lei, descoberta por Kepler, consiste em que todo movimento é naturalmente retilíneo e uniforme. Assim, o movimento curvilíneo ou variado não pode nunca resultar senão de uma composição contínua de impulsos sucessivos, aliás ativos ou passivos. A segunda lei, devida a Galileu, proclama a independência dos movimentos relativos de muitos corpos quaisquer em relação a todo movimento comum ao conjunto deles. Mas é necessário que esta comunhão seja completa, tanto em velocidade como em direção. Só debaixo desta condição é que os corpos particulares permanecem no mesmo estado relativo de repouso ou de movimento como se seu conjunto estivesse imóvel. Por isso esta segunda lei não se aplica aos movimentos de rotação, donde surgiram, com efeito, as viciosas objeções que sofreu sua descoberta. Enfim, a terceira lei do movimento, a de Newton, consiste na igualdade constante entre a reação e a ação, em toda colisão mecânica, contanto que, ao medir cada alteração, se tome na devida conta tanto a massa como a velocidade. Esta lei é a base peculiar a todas as noções relativas à comunicação dos movimentos, assim como a lei de Galileu regula tudo o que diz respeito à composição dos mesmos, tendo a de Kepler determinado primeiro por toda parte a natureza de cada um deles. O conjunto destas três leis basta, pois, para que o problema geral da mecânica possa ser abordado dedutivamente, reduzindo gradualmente, por meio de artifícios matemáticos, cuja instituição especial torna-se amiúde difícil, os casos mais complicados aos mais simples. Estas leis gerais vos servirão diretamente para explicar uma multidão de fenômenos diários no meio dos quais viveis sem os compreender, e, até, sem os perceber. Elas são eminentemente próprias para fazer-vos sentir em que consiste o verdadeiro gênio científico. Deveis, enfim, notar nelas a maneira por que cada uma dessas leis se acha compreendida espontaneamente em uma lei comum a fenômenos quaisquer, tanto sociais e morais como puramente materiais. A primeira refere-se à lei de persistência que reina por toda parte; a segunda, àquela que reconhece a independência das ações parciais relativamente às condições comuns, e de onde resulta socialmente a conciliação do progresso com a ordem. Quanto à terceira, ela comporta diretamente uma aplicação universal, que nunca varia senão quanto à medida das influências respectivas. Este cotejo filosófico acaba de caracterizar a importância enciclopédica peculiar ao limite extremo do domínio matemático. A MULHER - Posto que a abstração e a novidade destas considerações devam impedir-me, meu pai, de compreendê-las bem hoje, sinto que uma suficiente reflexão me permitirá apreciá-las. Rogo-vos, portanto, que passeis imediatamente ao estudo direto da ordem material. O SACERDOTE - A plena instituição filosófica desse estudo obriga-me, minha filha, a exigir de vós um último esforço enciclopédico, pois que tenho que decompor a segunda ciência cosmológica, que coletivamente chamei de Física, em três grandes ciências verdadeiramente distintas. Mencionando-as na ordem ascendente, com a qual já vos ides familiarizando, são: primeiro a astronomia, depois a física propriamente dita, que conserva o nome comum, e enfim a química, como acessoriamente vo-lo indica nosso quadro. Assim, a hierarquia teórica deve finalmente oferecer-vos sete graus enciclopédicos, em vez dos cinco que já conheceis. Passa-se de um modo para o outro pelo simples desenvolvimento do segundo grau primitivo, como o puxar alonga o tubo de uma luneta portátil. Só a aplicação é que vos pode fazer sentir depois qual é aquele que deveis preferir em cada caso. Esta série fundamental comporta, com efeito, muitas constituições diferentes, conforme a contraímos ou dilatamos, a fim de melhor satisfazer nossas necessidades intelectuais, sem nunca inverter a sucessão dos diversos termos que a compõem. Sua máxima condensação e sua principal expansão acham-se igualmente bem indicadas em nosso quadro. Quando estiverdes mais adiantada, haveis de reduzir amiúde todo o feixe enciclopédico ao simples dualismo entre a cosmologia e a sociologia, o que no princípio vos exporia ao vago. Nunca, porém, aumentareis esta contração por causa da evidente impossibilidade de fazer entrar objetivamente um no outro dois grupos principais, que só podem ser unidos pela apreciação subjetiva, quando nos colocamos diretamente no verdadeiro ponto de vista religioso. Depois de vos ter indicado esta expansão enciclopédica, servindo-me para isso de termos muito usados, devo sobretudo motivá-la, caracterizando-a. A MULHER - A julgar pelo pouco que sei de ouvir dizer, a respeito das três ciências que acabais de introduzir, suspeito, meu pai, a razão por que as intercalais aqui. Com efeito, esta interposição antecipa um voto que eu vos teria em breve manifestado, quanto à continuidade enciclopédica. Comparando, sob este aspecto, as ciências inferiores e as ciências superiores, nossa escala primitiva de cinco graus oferecia-me uma grave incongruência. Concebo sem esforço, em virtude apenas da conexão dos fenômenos, como é que nos elevamos insensivelmente da biologia à sociologia, e desta à moral, se bem que eu careça conhecer, a este respeito, vossas explicações especiais, para melhor precisar minhas ideias. Pelo contrário, no princípio eu não podia bem compreender a transição da matemática para o estudo direto da ordem material, e ainda menos a passagem da cosmologia para a biologia. Isto podia provir, sem dúvida, de minha ignorância ser mais completa em relação às concepções inferiores. Mas eu sentia também que essa falta de harmonia devia resultar da própria constituição de nossa primeira escala, conquanto não pudesse, de modo algum, atinar com o remédio, nem mesmo saber se ele existia. Habituar-me-ei, pois, sem custo, aos sete graus enciclopédicos, se esta ligeira complicação me proporcionar uma satisfação suficiente desta necessidade de ordem. Todavia, reconheço que, se tivésseis procedido assim no princípio, eu teria experimentado muitíssima dificuldade em conceber o conjunto de vossa hierarquia abstrata. O SACERDOTE - Pois que penetrastes o motivo fundamental desta modificação final, só me resta, minha filha, completar vosso trabalho espontâneo indicando-vos sistematicamente a natureza e a destinação das três ciências introduzidas. A religião positiva define a astronomia como o estudo celeste do planeta humano; isto é, o conhecimento de nossas relações geométricas e mecânicas com os astros que podem afetar nossos destinos, modificando o estado da Terra. É, pois, em torno de nosso globo que condensamos subjetivamente todas as teorias astronômicas, afastando radicalmente as que, não se referindo à Terra, se tornam logo ociosas, ainda mesmo que fossem acessíveis. Daí resulta a eliminação final, não só da pretendida astronomia sideral, mas também dos estudos planetários que tenham por objeto astros invisíveis aos olhos desarmados, e, portanto, destituídos necessariamente de toda real influência terrestre. Nosso verdadeiro domínio astronômico se reduzirá, pois, como no começo, aos cinco planetas sempre conhecidos, com o Sol, centro de nossos movimentos como dos deles, e a Lua, nosso único cortejo celeste. Toda a diferença essencial entre nossa doutrina e a dos antigos consiste aqui, como alhures, em substituir, enfim, o relativo ao absoluto, tornando puramente subjetivo um centro que durante muito tempo foi objetivo. E por isso que a descoberta, ou, antes, a demonstração do duplo movimento da Terra constituiu a principal revolução científica peculiar ao regime preliminar da razão humana. Um dos precursores mais eminentes do positivismo, o sábio Fontenelle, fez admiravelmente sentir ao vosso sexo o alcance filosófico dessa revolução científica, tanto quanto então convinha, num opúsculo encantador, cuja frivolidade aparente não o privou de uma justa imortalidade. Com efeito, foi em virtude do movimento terrestre que o dogma positivo ficou diretamente incompatível com todo o dogma teológico, tornando profundamente relativas nossas mais vastas especulações, que até então podiam conservar um caráter absoluto. A descoberta de nossa gravitação planetária constitui em breve a continuação científica e o complemento filosófico daquele movimento. Posto que o empirismo acadêmico tenha estorvado muito a reação enciclopédica desta dupla teoria, o positivismo a erige finalmente em primeira base geral do estudo direto da ordem material, assim ligado imediatamente ao fundamento matemático do dogma total. Na astronomia, essa ordem é, com efeito, apreciada apenas sob o aspecto geométrico-mecânico, afastando as pesquisas, não menos absurdas do que ociosas, sobre a temperatura dos astros ou sua constituição interior. Passando, porém, da astronomia à física propriamente dita, o que se opera quase insensivelmente mediante a mecânica planetária, estuda-se a natureza inerte de modo mais aprofundado. Todavia, a fim de melhor caracterizar esta nova apreciação, cumpre primeiro conceber a mais alta ciência cosmo lógica, cujo caráter mais fortemente acentuado deve em seguida facilitar a compreensão do caráter da simples física, muito pouco pronunciado diretamente. Esta marcha vos permite notar um dos principais preceitos lógicos do positivismo, que prescreve por toda parte não conceber os casos intermediários senão em virtude dos dois extremos cuja ligação eles devem instituir. A química foi, com efeito, introduzida, como ciência distinta, tanto no Oriente como no Ocidente, muitos séculos antes que a física, fundada espontaneamente por Galileu a fim de estabelecer uma transição real entre a astronomia e a química, aproximadas até então de modo quimérico. Para encurtar e simplificar esta dupla explicação, considerai a química e a física como essencialmente sujeitas às mesmas influências gerais, que, no fundo, aí não diferem senão pelas modificações mais ou menos intensas que assim experimenta a constituição material. Mas esta única diversidade não dá margem a nenhum equívoco sobre a verdadeira natureza de cada caso, apesar da confusão acadêmica. Com uma intensidade plena, os estados de calor, de eletricidade e até de luz modificam assaz a constituição material a ponto de mudarem a íntima composição das substâncias. O acontecimento pertence, então, à química, isto é, ao estudo das leis gerais da combinação e da decomposição. Estas ações podem e devem ser concebidas sempre como puramente binárias. Raramente elas comportam mais de três complicações sucessivas, a união tornando-se mais difícil e menos duradoura à medida que se complica. Em grau menor, as mesmas influências modificadoras mudam, quando muito, o estado dos corpos, sem alterar-lhes nunca a substância. Neste caso; a ordem material é apenas estudada sob o aspecto físico propriamente dito. Apesar da igual universalidade destas duas ciências, o decréscimo de generalidade é tão sensível quanto o acréscimo de complicação, quando passamos de uma a outra. Porquanto, a física, estudando o conjunto das propriedades que constituem toda existência material, considera do mesmo modo todos os corpos, com simples diferença de grau. Seus diversos ramos devem, portanto, corresponder aos diversos sentidos que nos revelam o mundo exterior. Pelo contrário, a química considera todas as substâncias como essencialmente distintas; e seu principal objeto consiste em determinar essas diferenças radicais. Conquanto os fenômenos que ela estuda sejam sempre possíveis em um corpo qualquer, eles nunca se efetuam senão sob condições especiais, cujo concurso, raro e difícil, exige amiúde a intervenção humana. Destas duas ciências vizinhas, a física é mais importante sob o aspecto lógico e a química sob o aspecto científico, quando comparamos seu peso enciclopédico, depois de ter primeiro reconhecido a necessidade indispensável, teórica e prática, de cada uma delas. É sobretudo da física que dimana o surto decisivo do gênio indutivo, pelo desenvolvimento da observação, demasiado espontânea na astronomia; e em seguida da experimentação, muito equívoca em qualquer outro domínio. A química, porém, avantaja-se à física quanto à influência enciclopédica das noções que ministra. Sua extrema imperfeição teórica, que só pode cessar sob a disciplina positiva, não a impediu de exercer uma luminosa reação sobre o conjunto da razão ocidental. Esta preciosa eficácia resulta sobretudo da análise geral de nosso meio terrestre, gasoso, líquido e sólido, completada pela análise, não menos indispensável, das substâncias vegetais e animais. Pode-se, assim, conceber, enfim, a economia fundamental da natureza, até então ininteligível por não se ter ainda verificado, em todos os seres reais, tanto vivos como inertes, elementos materiais essencialmente idênticos. Concebeis, portanto, como é que só a química propriamente dita institui uma transição normal entre a cosmologia e a biologia, de acordo com vosso legítimo voto de continuidade total. Esta grande condição enciclopédica, tão favorável por fim ao coração como ao espírito, teria, ainda, para vós mais valor se eu vos indicasse a verdadeira distribuição da astronomia, da física e da química, como o fiz no começo em relação à matemática. Devemos, porém, reservar estes desenvolvimentos para conferências mais especiais, que não são religiosamente indispensáveis hoje. Aquele tipo inicial deve aqui bastar para vos fazer sentir a possibilidade geral de uma ascensão gradual da matemática até a moral, aplicando, com precisão e especialidade crescentes, nosso imutável princípio hierárquico. Completando esta apreciação subjetiva ou lógica por uma equivalente apreciação objetiva ou científica, a sucessão geral destes três estudos abstratos começa a manifestar-vos uma verdadeira escala concreta, se não dos seres, pelo menos das existências. Não observais, em astronomia, senão a simples existência matemática, que, até então quase ideal, realiza-se aí em corpos que não podemos explorar sob nenhum outro aspecto, e que, portanto, se tornam o melhor tipo de tal existência. Na física, porém, elevamo-nos a fenômenos menos grosseiros e mais íntimos, que tendem mais para o caso humano. Enfim, a química oferece-vos a mais nobre e mais profunda das existências materiais, sempre subordinada às precedentes, de acordo com a nossa lei universal. Conquanto a grande noção objetiva que resulta de tal progressão só deva desenvolver-se assaz em biologia, importa notar seu esboço cosmológico, a fim de fazer apanhar convenientemente o verdadeiro princípio da classificação dos seres quaisquer. A MULHER - Esta continuidade admirável dispõe-me, meu pai, a julgar melhor os ruidosos conflitos que se levantam algumas vezes entre os diversos departamentos científicos. A natural predileção de meu sexo pelas explicações morais arrastava-me a considerar esses debates teóricos como essencialmente devidos às paixões humanas. Agora vejo para eles uma origem mais legítima na incerteza profunda que, por falta de princípios enciclopédicos, as diferentes classes de cientistas tiveram amiúde de experimentar a respeito de suas atribuições normais, em virtude dessa sucessão quase insensível entre seus domínios respectivos. O SACERDOTE - Tal continuidade constitui, minha filha, o principal resultado filosófico do conjunto dos esforços peculiares à razão moderna. Porquanto, o verdadeiro gênio teórico consiste sobretudo em ligar, tanto quanto possível, todos os fenômenos e todos os seres. O gênio prático completa em seguida este resultado geral; pois que os nossos aperfeiçoamentos artificiais têm sempre por efeito consolidar e desenvolver as ligações naturais. Deveis, assim, começar a sentir que o espírito moderno não é puramente crítico, como disso o acusam, e que substitui construções duradouras aos destroços impotentes do dogma antigo. Ao mesmo tempo, já podeis reconhecer aqui a incompatibilidade necessária entre os dois regimes teológicos e positivo, pela impossibilidade de conciliar as leis reais com as vontades sobrenaturais. O que seria desta ordem admirável, que gradualmente vai ligando nossos mais nobres atributos morais aos mínimos fenômenos materiais, se fosse mister interpor nela um poder infinito, cujos caprichos, não comportando previsão alguma, a ameaçariam sempre de uma inteira subversão? A MULHER - Antes de apanhar diretamente essa continuidade geral, resta-me, meu pai, preencher uma grande lacuna a respeito da ordem vital, cuja apreciação sistemática deveis agora explicar-me. Já compreendi, durante nossa descida enciclopédica, sua ligação natural com a ordem humana. Mas ainda não pude compreender o modo por que se liga espontaneamente à ordem material: porquanto um abismo intransponível parece-me separar o domínio da vida e o domínio da morte. O SACERDOTE - Vosso embaraço, minha filha, acha-se de plena conformidade com a marcha histórica da iniciação humana. Apenas duas gerações são passadas depois que os verdadeiros pensadores puderam começar a conceber nitidamente este laço fundamental, onde reside o nó essencial de toda a filosofia natural. Os cosmologistas deviam, primeiro, pelo advento da química, levar o estudo da ordem material até os fenômenos mais nobres e mais complicados. Mas era necessário que em seguida os biologistas descessem convenientemente às funções vitais mais grosseiras e mais simples, únicas suscetíveis de se ligarem diretamente àquelas bases inorgânicas. Tal foi o resultado principal da admirável concepção devida ao verdadeiro fundador da filosofia biológica, o incomparável Bichat. Graças a uma profunda análise, as funções vitais mais nobres foram aí, enfim, representadas, mesmo no homem, como repousando sempre sobre as mais grosseiras, segundo a lei geral da ordem real. A animalidade se subordina por toda parte à vegetalidade, ou a vida de relação à vida de nutrição. Este princípio luminoso conduz a reconhecer que os únicos fenômenos verdadeiramente comuns a todos os seres vivos consistem nessa decomposição e recomposição que a substância deles experimenta sem cessar, em virtude do meio correspondente. O conjunto das funções vitais assenta, assim, sobre atos muito análogos aos efeitos químicos, dos quais aqueles só diferem essencialmente pela instabilidade das combinações, aliás mais complexas. Esta vida simples e fundamental é a única que se manifesta nos vegetais, onde encontramos seu mais intenso desenvolvimento, pois que ela aí transforma diretamente os materiais inorgânicos em substâncias orgânicas, o que nunca fazem os entes mais elevados. A definição geral da animalidade consiste, com efeito, na natureza viva dos alimentos correspondentes: de onde resultam, como condições necessárias, a aptidão para discerni-los e a faculdade de apreendê-los; por consequência, a sensibilidade e a contratilidade. O grande Bichat, para consolidar sua análise fundamental da vida, teve, logo depois, de construir uma concepção anatômica que pudesse oferecer o complemento e o resumo dessa análise. O tecido celular, único universal, constitui a sede própria da vida vegetativa; ao passo que a vida animal reside no tecido nervoso e no tecido muscular. Então o pensamento geral da biologia fica completo, de modo a tornar possível por toda parte uma suficiente harmonia entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica, a fim de passar convenientemente da função ao órgão, ou vice-versa. Segundo o princípio lógico que prescreve que os fenômenos quaisquer devem ser sobretudo estudados nos seres em que eles são ao mesmo tempo mais desenvolvidos e mais isentos de toda complicação superior, a teoria dos vegetais se torna a base normal da biologia. Ela estabelece diretamente as leis gerais da nutrição segundo o caso mais simples e mais intenso. É a única parte da biologia que poderia ser plenamente separada da sociologia, se a instituição subjetiva não devesse sempre dominar a cultura objetiva. Aí se opera imediatamente a transição natural entre a existência material e a existência vital. A MULHER - Por este modo concebo, meu pai, que a continuidade enciclopédica se possa estabelecer em relação à parte inferior da hierarquia teórica. Partindo, porém, de uma vitalidade tão grosseira como é essa simples vegetalidade, não vejo como se pode subir até o verdadeiro tipo humano, conquanto eu reconheça nossa própria sujeição às leis da nutrição, tanto quanto às da gravidade. O SACERDOTE - A dificuldade que experimentais, minha filha, corresponde, com efeito, ao principal artifício biológico, gradualmente elaborado, desde Aristóteles até Blainville, para instituir-se uma imensa escala, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, destinada a ligar o homem ao vegetal. Se só existissem estes dois termos extremos, suposição esta de modo algum contraditória, nossa unidade teórica se tornaria impossível, ou pelo menos muito imperfeita, por causa da lacuna brusca que assim sofreria a continuidade enciclopédica. Porém, a imensa variedade dos organismos animais nos permite estabelecer entre a vitalidade mais grosseira e a mais nobre uma transição tão gradual quanto nossa inteligência o deva exigir. Todavia, esta série concreta é necessariamente descontínua, em virtude da lei fundamental que mantém a perpetuidade essencial de cada espécie no meio de suas variações secundárias. O velho regime intelectual estorvou muito o surto desta grande construção, procurando em vão nela o resultado absoluto das relações objetivas. Mas a preponderância enciclopédica do método subjetivo desvanece, enfim, esses debates estéreis e sem saída, subordinando sempre a formação da série animal ao seu verdadeiro destino, antes lógico que científico. Não devendo nós estudar os animais senão para conhecer melhor o homem, ligando-o ao vegetal, estamos plenamente autorizados a banir de tal hierarquia todas as espécies que a perturbem. Um motivo análogo nos permite, ou, antes, nos prescreve, introduzir nela de modo conveniente algumas raças puramente ideais, especialmente imaginadas para aperfeiçoar as transições principais, sem nunca contrariarmos as leis estáticas e dinâmicas da animalidade. Os estudos mais desenvolvidos sobre certos animais pertencem realmente ao domínio prático, e dizem respeito às raras espécies com as quais a existência humana se acha, por diversos motivos, mais ou menos ligada. Todas as outras especialidades zoológicas só poderiam resultar de uma degeneração teórica, em uma ciência que, por sua complicação e imensidade, está mais exposta às puerilidades acadêmicas, já tão multiplicadas na matemática. Porém, o conjunto dos animais suscetíveis de formarem uma verdadeira série nos oferecerá sempre um profundo interesse abstrato, para esclarecermos o estudo geral de todas as nossas funções inferiores, acompanhando cada uma delas em sua simplificação e complicação graduais. A humanidade não constituindo, no fundo, senão o principal grau da animalidade, as mais elevadas noções da sociologia, e mesmo da moral, encontram necessariamente na biologia seu primeiro esboço, para os espíritos verdadeiramente filosóficos que sabem apanhá-las aí. Nossa concepção teórica mais sublime se torna, assim, mais apreciável, quando se considera cada espécie animal como um Grande Ser mais ou menos abortado, em virtude da inferioridade de sua própria organização e do surto do predomínio humano. Porque a existência coletiva constitui sempre a tendência necessária da vida de relação que caracteriza a animalidade. Mas este resultado geral não pode, sobre um mesmo planeta, desenvolver-se assaz senão em uma só das espécies sociais. A MULHER - Pelo conjunto destas explicações, compreendo, meu pai, como é que a biologia, filosoficamente cultivada, pode, enfim, preencher todas as graves lacunas enciclopédicas, instituindo uma transição gradual entre a ordem exterior e a ordem humana. Essa imensa progressão, tanto dos seres como dos fenômenos, sempre conforme ao princípio hierárquico do positivismo, liga-se, no seu termo inferior, à sucessão normal dos três modos essenciais da existência material. Concebo assim a plena realização da admirável continuidade que a princípio me parecia impossível. Antes, porém, de deixarmos a ordem vital propriamente dita, quisera conhecer, de modo mais distinto e preciso, as duas partes essenciais de seu domínio, vegetalidade e animalidade. O SACERDOTE - Vosso justo desejo, minha filha, será convenientemente satisfeito, concebendo as três grandes leis que regem cada uma delas. Cumpre considerar essas leis como outros tantos fatos gerais, subordinados entre si, mas completamente distintos, e cujo conjunto explica sempre, quer as funções contínuas da vida de nutrição, quer as funções intermitentes da vida de relação. A primeira lei de vegetalidade, base necessária de todos os estudos vitais, sem excetuar o caso humano, consiste na renovação material a que está constantemente sujeito todo ente vivo. A esta lei fundamental sucede a do desenvolvimento e declínio, terminando na morte, que, sem ser por si mesma a consequência necessária da vida, é sempre o resultado constante dela. Enfim, este primeiro sistema biológico se completa pela lei da reprodução, na qual a conservação da espécie compensa a destruição do indivíduo. A principal propriedade do conjunto dos seres vivos consiste na aptidão de cada um deles para reproduzir seu semelhante, como ele próprio proveio sempre de uma origem análoga. Não só nenhuma existência orgânica dimana jamais da natureza inorgânica, mas, além disso, uma espécie qualquer não pode resultar de outra, nem superior, nem inferior, salvo as variações muito limitadas, posto que muito pouco conhecidas ainda, que cada uma delas comporta. Existe, pois, um abismo verdadeiramente intransponível entre o mundo vivo e a natureza inerte, e mesmo, em grau menor, entre os diversos modos de vitalidade. Confirmando a impossibilidade de toda síntese puramente objetiva, esta apreciação não altera de modo algum a verdadeira síntese subjetiva, que por toda parte resulta de uma ascensão assaz gradual para o tipo humano. Quanto às leis de animalidade, a primeira consiste na necessidade alternativa de exercício e de repouso peculiar a toda a vida de relação, sem excetuar nossos mais nobres atributos. Esta intermitência característica das funções animais liga-se naturalmente à bela observação de Bichat sobre a simetria constante dos órgãos correspondentes, podendo cada metade ser ativa quando a outra permanece passiva. A segunda lei, que, como em todos os outros casos, supõe a precedente sem resultar dela, proclama a tendência de toda função intermitente a tornar-se habitual, isto é, a reproduzir-se espontaneamente após a cessação do seu impulso primitivo. Esta lei do hábito encontra seu complemento natural na lei da imitação, que verdadeiramente não se distingue dela. Segundo a profunda reflexão de Cabanis, a aptidão de imitar a outrem resulta, com efeito, da aptidão de cada um a imitar-se a si mesmo; pelo menos em toda espécie dotada de simpatia. Enfim, a terceira lei de animalidade, subordinada à do hábito, consiste no aperfeiçoamento, ao mesmo tempo estático e dinâmico, inerente a todos os fenômenos de relação. A respeito de cada um deles, o exercício pode fortalecer as funções e os órgãos, que o desuso prolongado tende a enfraquecer. Esta última lei, que assenta sobre as outras duas sem confundir-se com elas, resume o conjunto da teoria da animalidade, como o concebestes primeiro quanto à lei final da vegetalidade. Combinando estas duas grandes leis, institui-se uma sétima lei vital, a da hereditariedade, que merece cientificamente uma apreciação distinta, conquanto ela não seja logicamente senão uma consequência necessária das precedentes. Toda função ou estrutura animal sendo perfectível até certo grau, a aptidão de todo ente vivo para reproduzir o seu semelhante poderá, pois, fixar na espécie as modificações suficientemente profundas sobrevindas no indivíduo. Daí resulta o aperfeiçoamento, limitado mas contínuo, sobretudo dinâmico, e mesmo estático, de cada raça qualquer, por meio de regenerações sucessivas. Esta elevada faculdade, que espontaneamente resume o duplo sistema das leis biológicas, desenvolve-se tanto mais quanto mais elevada é a espécie, e, por conseguinte, mais modificável e também mais ativa, em virtude de sua própria complicação. Conquanto as leis gerais da transmissão hereditária sejam ainda muito pouco conhecidas, semelhante consideração indica sua alta eficácia para o melhoramento direto de nossa própria natureza, física, intelectual e sobretudo moral. De fato, é incontestável que a hereditariedade vital se aplica tanto, e mesmo mais, aos nossos atributos mais nobres como aos mais grosseiros. Porquanto, os fenômenos se tornam mais modificáveis, e, portanto, mais perfectíveis, à medida que a natureza deles é mais elevada e mais especial. Os preciosos resultados obtidos nas principais raças domésticas não devem dar senão uma fraca ideia dos melhoramentos reservados à espécie mais eminente, quando ela for sistematicamente dirigida sob sua própria providência. A MULHER - Esta conclusão geral do estudo da vitalidade acaba, meu pai, de me fazer compreender suficientemente seu alcance teórico e prático. Sinto-me, assim, preparada para o estudo direto da ordem humana, ao qual reservais a última conferência sobre o dogma positivo. O SACERDOTE - Podeis, minha filha, utilmente resumir, sob o principal aspecto filosófico, o conjunto desta conferência pelo simples contraste que deveis ter notado, em nosso quadro enciclopédico, entre as duas divisões, histórica e dogmática, da filosofia positiva. A primeira, que convém a toda iniciação teórica, individual ou coletiva, aproxima a biologia da cosmologia; a outra, que representa nosso estado final, a combina, pelo contrário, com a sociologia. Esta oposição faz sobressair nitidamente o principal caráter da ordem vital, como laço natural entre a ordem exterior e a ordem humana. OITAVA CONFERÊNCIA ORDEM HUMANA - PRIMEIRO SOCIAL, DEPOIS MORAL. A MULHER - Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo, meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que com frequência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim, estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo. O SACERDOTE - É fácil, minha filha, superar este embaraço preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade. Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da Terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a interposição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional. Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da Terra, ou doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas científicas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar, ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários. Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação, e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível os bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal. A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofístico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento. A MULHER - Este esclarecimento preliminar me permitirá, meu pai, repelir doravante sofismas ainda muito aceitos entre os espíritos mal cultivados. Peço-vos, pois, que me expliqueis diretamente a extensão do dogma positivo ao mundo social. O SACERDOTE - Primeiramente, minha filha, deveis conceber esta grande ciência como composta de duas partes essenciais: uma estática, que constrói a teoria da ordem; a outra, dinâmica, que desenvolve a doutrina do progresso. A instrução religiosa considera sobretudo a primeira, onde a natureza fundamental do verdadeiro Grande Ser é diretamente apreciada. Porém, a segunda deve completar esta determinação, explicando os destinos sucessivos da Humanidade, a fim de guiar convenientemente a prática social. Estas duas metades da sociologia se acham profundamente ligadas entre si em virtude de um princípio geral estabelecido pelo positivismo para religar por toda parte o estudo do movimento ao da existência: O progresso é o desenvolvimento da ordem. Já conveniente em matemática, semelhante lei aplica-se tanto melhor quanto mais os fenômenos se complicam; porque a distinção entre o estado estático e o estado dinâmico torna-se, então, mais pronunciada, ao passo que a simplificação proveniente desta ligação de estudos adquire também mais valor. A sociologia devia, portanto, oferecer a melhor aplicação deste grande princípio e a verdadeira fonte de sua sistematização. Aí ele convém mesmo tanto no sentido inverso como no sentido direto; porque os estados sucessivos da Humanidade devem assim manifestar cada vez mais a sua constituição fundamental, cujos germes essenciais estão todos necessariamente contidos em seu esboço inicial. Mas a eficácia teórica e prática da sociologia dinâmica ficará especialmente caracterizada pelas duas conferências finais deste Catecismo. Devo, pois, limitar-me agora a explicar-vos as principais noções da estática social. A MULHER - Esta redução convém, aliás, meu pai, à insuficiência de minha instrução histórica. Conquanto as concepções estáticas da sociologia devam ser mais abstratas que as suas vistas dinâmicas, eu poderei apanhá-las melhor, com a atenção que exigem sua importância e dificuldade. Aí, pelo menos, sentir-me-ei amparada contra minha ignorância pela certeza de achar em mim mesma a confirmação de uma doutrina diretamente emanada de nossa natureza. O SACERDOTE - Bastará, com efeito, minha filha, que vos examineis atentamente para reconhecerdes logo a constituição necessária da ordem social; porquanto, a fim de representar a existência geral da Humanidade, deve ela oferecer uma combinação decisiva de todos os nossos atributos essenciais. Posto que vossa própria existência vos mostre estes atributos de modo confuso, ela vo-los faz assaz sentir para que possais compreender melhor sua harmonia fundamental, quando órgãos coletivos permitem a cada um deles um surto plenamente característico. Concebei, pois, o Grande Ser como sendo dirigido, do mesmo modo que vós, porém em grau mais pronunciado, pelo sentimento, esclarecido pela inteligência e sustentado pela atividade. Daí resultam os três elementos essenciais da ordem social, o sexo afetivo, a classe contemplativa, isto é, o sacerdócio, e a força prática. São assim classificados segundo sua dignidade decrescente, mas também segundo sua independência crescente. O último constitui, portanto, a base necessária de toda a economia do Grande Ser, segundo a lei fundamental, já familiar para vós, que por toda parte subordina os mais nobres atributos aos mais grosseiros. Com efeito, as necessidades contínuas oriundas de nossa constituição corporal impõem à Humanidade uma atividade material que domina o conjunto de sua existência. Não podendo desenvolver-se senão por uma cooperação crescente, essa atividade, principal estimulante de nossa inteligência, fornece sobretudo à nossa sociabilidade sua mais poderosa excitação. Ela aí subordina cada vez mais a solidariedade à continuidade, onde reside o mais decisivo e o mais nobre de todos os atributos do Grande Ser. Porquanto OS resultados materiais da cooperação humana dependem mais do concurso das gerações sucessivas que do concurso das famílias coexistentes. Longe de ser radicalmente desfavorável ao surto intelectual e moral, este predomínio contínuo da vida prática deve, pois, fornecer a melhor garantia de nossa unidade, proporcionando ao espírito e ao coração uma direção determinada e um destino progressivo. Sem este impulso universal, nossas melhores disposições mentais, e mesmo morais, degenerariam breve em tendências vagas e incoerentes que não produziriam nenhum progresso, privado ou público. Todavia, a fonte, necessariamente pessoal, de semelhante atividade deve a princípio imprimir-lhe um caráter profundamente egoísta, que só a transformação gradual resultante do desenvolvimento coletivo pode tornar altruísta. Eis por que a constituição geral da ordem social não seria assaz apreciada se não se decompusesse a classe ativa em dois elementos sempre distintos e amiúde opostos. Eles devem especialmente desenvolver, um o impulso prático, com a personalidade que supõe sua principal energia, o outro a reação social que o nobilita cada vez mais. Para fazer esta decomposição indispensável, basta dividir a força ativa em concentrada e dispersa, conforme resulte da riqueza ou do número. Posto que a primeira não possa ser senão indireta, ela prevalece ordinariamente, e mesmo cada vez mais, porque representa a continuidade, ao passo que a segunda corresponde à solidariedade. Com efeito, os tesouros materiais que a Humanidade confia aos ricos provêm sobretudo de uma longa acumulação anterior, apesar da necessidade permanente da renovação parcial exigida pelo consumo necessário de tais tesouros. Todo forte impulso prático dimana, pois, do patriciado em que rendem esses poderosos reservatórios nutritivos, cuja principal eficácia social resulta de sua concentração pessoal. É assim que a propriedade material é diretamente consagrada pela religião positiva, como a condição fundamental de nossa atividade contínua, e, portanto, a base indireta de nossos mais eminentes progressos. O segundo elemento prático, sem o qual o primeiro se tornaria ilusório, consiste no proletariado, que constitui o fundo necessário de toda população. Não podendo adquirir influência social senão pela união, ele tende diretamente a desenvolver nossos melhores instintos. Sua própria situação solicita sem cessar sua atenção principal para as regras morais de uma economia cujas perturbações ele especialmente suporta. Naturalmente libertado da grave responsabilidade e das preocupações de espírito que são a consequência habitual de uma autoridade qualquer, teórica ou prática, ele torna-se muito próprio para chamar espontaneamente o sacerdócio e o patriciado ao destino social que estes devem preencher. A MULHER - Acredito, meu pai, que esta reação contínua da classe ativa não é menos indispensável para conter ou compensar, nas mulheres, exagero do sentimento. Alheio à vida prática, meu sexo amiúde propende a menosprezar ou a pôr de lado as condições grosseiras que essa vida impõe. Porém o sentimento que o domina pode sempre fazer-lhe aceitar dignamente tais condições, a fim de realizar o bem ao qual ele aspira naturalmente, quando esse impulso necessário nos conduz a apreciá-las assaz. O SACERDOTE - Acabastes assim, minha filha, de compreender espontaneamente o grande ofício social que caracteriza o proletariado. Porquanto, se a influência afetiva pode também esquecer seu verdadeiro destino, preocupando-se demasiado das necessidades que lhe são próprias, este perigo deve desenvolver-se mais no poder especulativo e no poder ativo, cuja atenção acha-se habitualmente absorvida por esforços especiais. A providência moral das mulheres, a providência intelectual do sacerdócio e a providência material do patriciado carecem, pois, de ser completadas pela providência geral oriunda do proletariado, para constituírem o admirável conjunto da providência humana. Todas as nossas forças podem, assim, tender sempre, cada qual segundo sua natureza, para a conservação e o aperfeiçoamento do Grande Ser. Esta concepção geral de nossa constituição social basta para caracterizar-lhe os três elementos necessários. Classificados segundo sua aptidão decrescente a representarem naturalmente a Humanidade, eles seguem a mesma ordem no predomínio sucessivo que lhes cabe em cada iniciação completa. A providência feminina, que deve sempre dominar nosso surto moral, dispõe-nos, primeiro, a sentir a continuidade e a solidariedade, dirigindo a educação espontânea que se realiza no seio da família. Em seguida, a providência sacerdotal faz-nos apreciar de modo sistemático a natureza e o destino do Grande Ser, revelando-nos gradualmente o conjunto da ordem real. Caímos, enfim, sob o predomínio direto e perpétuo da providência material, que nos inicia na vida prática, cujas reações afetivas e especulativas completam nossa preparação. Uma coincidência espontânea entre a plenitude de nosso desenvolvimento pessoal, tanto cerebral como corporal, e a terminação ordinária de nosso início social constitui assim nossa maturidade real. Começa, então, nossa segunda vida, essencialmente de ação, sucedendo ao conjunto das preparações que nos habilitam a bem servir o Grande Ser. Esta nova existência objetiva, posto que ordinariamente mais curta que a primeira, é a única decisiva para proporcionar a cada chefe de família a existência subjetiva que o incorporará convenientemente à Humanidade. A fim de compreender melhor a constituição social, é mister apreciar separadamente seus dois elementos, mais especiais, únicos que formam classes propriamente ditas, o sacerdócio que aconselha e o patriciado que comanda. É nestas classes que se conservam e aumentam respectivamente os tesouros espirituais e os tesouros materiais da Humanidade, a fim de serem convenientemente distribuídos, segundo as leis naturais deles, a todos os servidores dela. Da classe teórica dimana primeiro a educação sistemática e depois a influência consultativa sobre toda a vida real, a fim de chamar cada atividade parcial à harmonia geral, que aquela nos dispõe a desconhecer. A admirável instituição da linguagem humana, embora resulte sempre de uma cooperação universal, torna-se o patrimônio especial do sacerdócio, como depósito espontâneo da religião e principal instrumento de seu exercício. Naturalmente imperecíveis, os bens espirituais podem servir simultaneamente a todos, sem nunca se esgotarem; de sorte que a conservação deles não exige nenhuma partilha e constitui um simples anexo de cada existência sacerdotal. Eminentemente sintética e social, a linguagem consolida e desenvolve a subordinação natural da ordem humana à ordem exterior. Aumenta também nossa ligação mútua, sobretudo instituindo uma conexão íntima entre a sabedoria sistemática e a razão comum. O destino pessoal e a instabilidade natural dos produtos materiais impõem leis muito diferentes à sua conservação e uso. Além da solicitude coletiva do patriciado, assistida por uma fiscalização universal, eles exigem uma posse individual, sem a qual sua concentração normal se tornaria ilusória, ou antes, impossível. Esta apropriação pessoal, primeira base da providência material, não pode adquirir bastante consistência senão apoiando-se no solo, sede natural e fonte necessária de toda produção prática. É assim que se formam espontaneamente, através dos séculos, os reservatórios nutritivos da Humanidade, que devem sem interrupção reanimar por toda parte a existência material, ao passo que seus guardas dirigem os trabalhos exigidos pela renovação contínua desses reservatórios. Este ofício principal dos patrícios consiste em substituir, em cada órgão social, os materiais que ele consome sempre, como provisões para sua subsistência ou como instrumento para sua função. O salário nunca tem outra influência normal, qualquer que seja a classe a que se aplique. Com efeito, o trabalho humano, isto é, a reação útil do homem contra sua sorte, não pode ser senão gratuito, porque não comporta nem exige nenhum pagamento propriamente dito. Só entre os materiais do trabalho é que pode existir uma verdadeira equivalência, e não entre seus atributos essenciais. Sempre reconhecida relativamente ao sexo afetivo e à classe contemplativa, e mesmo em relação ao poder prático que selaria todos os outros, esta gratuidade necessária de todo ofício humano só é ainda duvidosa quanto ao proletariado, isto é, naqueles que menos recebem. Semelhante contradição assaz indica a origem histórica desta anomalia, essencialmente devida não à inferioridade das operações correspondentes, mas à prolongada servidão de seus órgãos. Só a religião positiva é que pode superar neste ponto a anarquia moderna, fazendo sentir por toda parte que cada serviço pessoal não comporta jamais outra recompensa senão a satisfação de efetuá-lo e o reconhecimento que proporciona. A MULHER - Conquanto as almas vulgares possam hoje acoimar de exagero sentimental semelhante apreciação, atrevo-me a prometer-vos, meu pai, que ela não tardará em ser acolhida dignamente entre as mulheres. Frequentes vezes tem-me chocado o egoísmo habitual que, mediante um salário insignificante, dispensa-se de toda gratidão por serviços importantes e difíceis, cujos autores comprometem a saúde, e algumas vezes a vida, em cada operação. Este princípio positivista ministra uma consistência sistemática a sentimentos universais que só carecem de ser formulados e coordenados para que prevaleçam gradualmente. Ele acaba de fazer-me compreender a possibilidade de imprimir, enfim, um caráter verdadeiramente altruísta ao conjunto de nossa existência, mesmo material. Com efeito, esta santa transformação exige apenas que cada um, sem ser habitualmente um entusiasta, sinta com profundidade sua participação geral e a de todos os outros na obra social. Ora, semelhante convicção pode certamente resultar de uma sábia educação universal, em que o coração disporá o espírito a apanhar sempre o conjunto da verdade. O SACERDOTE - Para completar a apreciação fundamental da ordem social, falta-me, minha filha, caracterizar os três modos ou graus que lhes são próprios. Todo organismo coletivo oferece necessariamente os diversos elementos essenciais que acabo de vos explicar. Mas eles se acham aí mais ou menos pronunciados, e, portanto, distintos, segundo a natureza e a extensão da sociedade correspondente. O predomínio respectivo de cada um deles conduz a reconhecer três associações diferentes, que cumpre classificar segundo a intimidade decrescente e a extensão crescente delas. A do meio assenta na precedente e serve de base à seguinte. Única fundada naturalmente no amor, a Família é a sociedade mais íntima e mais restrita, elemento necessário das outras duas. A atividade constitui em seguida a Cidade ou Pátria, em que o laço resulta sobretudo de uma cooperação habitual, que não poderia ser assaz sentida se esta associação política combinasse um número excessivo de associações domésticas. Vem, enfim, a Igreja, a qual, ligando-nos essencialmente pela fé, é a única que comporta uma verdadeira universalidade, que a religião positiva há de necessariamente realizar. Estas três sociedades humanas têm por centros respectivos a mulher, o patriciado e o sacerdócio. A família de que cada qual provém pertence a uma cidade qualquer, e mesmo a certa igreja. Mas este último laço sendo mais fraco comporta mais variações, se bem que não sejam nunca arbitrárias. Quando ele se torna bastante consistente, é o único que fornece o meio de reduzir convenientemente a cidade, em torno da qual as existências se concentram ordinariamente, em virtude do predomínio natural da atividade sobre a inteligência e mesmo sobre o sentimento. De fato, o estado social não pode ser verdadeiramente duradouro senão conciliando assaz a independência com o concurso, condições igualmente inerentes à verdadeira noção da Humanidade. Ora, este acordo necessário impõe às sociedades políticas limites de extensão muito inferiores aos que hoje prevalecem. Na Idade Média, a separação esboçada entre a associação religiosa e a associação civil já permitiu substituir a livre incorporação dos povos ocidentais à incorporação forçada que lhes proporcionara a princípio o domínio romano. O Ocidente ofereceu, assim, durante muitos séculos, o admirável espetáculo de uma união sempre voluntária, fundada unicamente numa fé comum e mantida por um mesmo sacerdócio, entre nações cujos diversos governos tinham toda a devida independência. Porém, esse grande resultado político não podia sobreviver à emancipação prematura de um poder que só à religião positiva compete convenientemente instituir e libertar irrevogavelmente. O declínio necessário do catolicismo restabeleceu a concentração temporal, que se tornou então indispensável para impedir a inteira deslocação política a que se era impelido pela dissolução crescente dos laços religiosos. É assim que, apesar dos costumes da Idade Média, cujos vestígios são ainda sensíveis, os ocidentais deixaram que por toda parte se formassem Estados vastos demais. Os motivos políticos dessa extensão exorbitante tendo já cessado suficientemente, começam-se a sentir, mesmo na França, os perigos radicais, e também o próximo termo, de semelhante anomalia. Mas a religião positiva reduzirá em breve estas monstruosas associações à extensão normal que dispensará o emprego da violência para manter a união temporal entre nações suscetíveis apenas de laços espirituais. Tal será a próxima aplicação do princípio estático que erige em órgão político do Grande Ser a simples cidade, completada pelas populações menos condensadas que a ela estiverem ligadas livremente. O sentimento patriótico, hoje tão vago e tão fraco por causa de sua difusão exagerada, poderá desde então desenvolver dignamente toda a energia que comporta esta concentração cívica. Mas a união habitual das grandes cidades se tornará mais real e eficaz tomando o caráter normal de um concurso voluntário. A fé positiva fará convenientemente sentir a solidariedade e também a continuidade, que devem finalmente reinar entre todas as regiões quaisquer do planeta humano. A MULHER - Graças ao conjunto de vossas indicações sobre a teoria da sociedade, sinto-me, meu pai, bastante preparada agora para pousar, enfim, no vértice do edifício enciclopédico, cujos andares fizestes-me apreciar sucessivamente. Posto que a ciência moral deva ser a mais difícil de todas, sua cultura empírica é tão familiar ao meu sexo que não lhe inspirará o mesmo receio que as outras. Folgo, portanto, de chegar convenientemente ao estudo sistemático do homem individual. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, só este remate necessário de toda a preparação enciclopédica é que pode encher tanto o espírito como o coração. A ciência moral é mais sintética do que qualquer outra, e sua conexão direta com a prática consolida este atributo natural. É só aí que todos os aspectos abstratos se reúnem espontaneamente para construir o guia geral da razão concreta. Desde Tales até Pascal, todo verdadeiro pensador cultivava ao mesmo tempo a geometria e a moral, por um secreto pressentimento da grande hierarquia que devia enfim combiná-las. O nome de mundo pequeno que os antigos davam ao homem já indicava quanto o estudo deste parecia próprio para condensar todos os outros. Tal estudo constitui naturalmente a única ciência que pode ser verdadeiramente completa, sem pôr de lado nenhum ponto de vista essencial, como necessariamente o faz cada uma das que lhe servem de base. Porquanto, considerando estas como determinando as leis correspondentes do homem, elas só conseguem isto desprezando de propósito todas as propriedades superiores aos seus domínios respectivos, onde elas apenas incorporam os atributos inferiores. Por estas abstrações decrescentes, o espírito teórico fica suficientemente preparado para abordar, enfim, o único estudo que não o obriga mais a nada abstrair de essencial no objeto comum de nossas diversas especulações reais. É somente assim que a meditação masculina se une irrevogavelmente à contemplação feminina, para constituir o estado final da razão humana. A cosmologia estabelece, em primeiro lugar, as leis da simples materialidade. Em seguida, a biologia constrói sobre essa base a teoria da vitalidade. Enfim, a sociologia subordina a este duplo fundamento o estudo próprio da existência coletiva. Mas, conquanto esta última ciência preliminar seja necessariamente mais completa que as precedentes, ela não abarca ainda tudo o que constitui a natureza humana, visto como os nossos principais atributos não se acham nela assaz apreciados. Ela considera essencialmente no homem a inteligência e a atividade combinadas com todas as nossas propriedades inferiores, mas sem estarem diretamente subordinadas aos sentimentos que as dominam. Este desenvolvimento coletivo faz sobretudo ressaltar nosso surto teórico e prático. Nossos sentimentos só figuram, em sociologia, mesmo estática, por causa dos impulsos que exercem sobre a vida comum ou das modificações que esta lhes imprime. As suas leis próprias não podem ser convenientemente estudadas senão pela moral, onde adquirem o predomínio que compete à sua dignidade superior no conjunto da natureza humana. É isso que dispõe amiúde os espíritos pouco sistemáticos a desconhecerem a plenitude sintética que caracteriza esta ciência final, que eles restringem demasiado a esse domínio principal, em torno do qual devem, enfim, concentrar-se todos os outros. A MULHER - O encadeamento teórico entre a sociologia e a moral oferece-me ainda algumas dúvidas, que, peço-vos, meu pai, dissipeis antes de expordes diretamente a concepção positiva da natureza humana. Não esqueci os motivos incontestáveis que, em nossa sexta conferência, me fizeram sentir a subordinação objetiva da moral à sociologia; pois que o homem é sempre dominado pela Humanidade. Por outro lado, porém, parece-me que a ciência social precisa continuamente das principais noções que a ciência moral deve ministrar a respeito de nossa verdadeira natureza. O SACERDOTE - Este embaraço muito legítimo desaparecerá, minha filha, atendendo aos conhecimentos espontâneos que por toda parte precedem e preparam os estudos sistemáticos. A ciência constitui sempre um simples prolongamento da sabedoria comum. Nunca ela cria realmente doutrina essencial alguma. As teorias limitam-se a generalizar e coordenar os apanhados empíricos da razão universal, a fim de lhes dar uma consistência e um desenvolvimento que por outro modo não poderiam obter. Semelhante conexão convém mais aos estudos morais que, embora só possam ser sistematizados em último lugar, por causa de sua complicação superior, forneceram sempre, em virtude de sua importância preponderante, o principal alimento das meditações comuns, sobretudo femininas. Desta cultura empírica surgiram em breve noções preciosas, apesar de sua incoerência, que só foram desprezadas até aqui pelo gênio sistemático, porque este não podia representá-las suficientemente em suas teorias teológicas ou metafísicas. Ao espírito positivo, único suscetível de abranger o ponto de vista social, é que estava reservado o generalizá-las e coordená-las, depois de ter fundado a última ciência preliminar. Mas sua aptidão para sistematizá-las lhe permitia apreciá-las dignamente. Apesar dos prejuízos filosóficos, pôde ele primeiro utilizá-las bastante para construir, enfim, a sociologia. Se examinardes o modo por que o conhecimento da natureza humana é habitualmente empregado em sociologia, haveis de reconhecer logo que, de fato, só se usa aí esse estudo espontâneo, muito mais real do que todas as especulações morais dos filósofos anteriores. Esse esboço empírico pode bastar, com efeito, às concepções relativas à existência coletiva, antes de ter ainda passado pela sistematização que só a ciência final lhe deve proporcionar. A MULHER - Semelhante explicação, meu pai, dissipa inteiramente a confusão teórica que acessoriamente me ofereciam os dois aspectos essenciais da ordem humana. Tendo minha ignorância me preservado dos dogmas clássicos acerca de nossa natureza, pude apreciar melhor a realidade das noções morais empregadas pela sociologia, e reconhecer a coincidência delas com os resultados espontâneos devidos à razão comum. O SACERDOTE - Para fundar diretamente a ciência final, basta, minha filha, sistematizar convenientemente a decomposição que essa sabedoria universal não tardou em perceber no conjunto da existência humana, distinguindo nesta o sentimento, a inteligência e a atividade. Esta análise fundamental, apreciável sob diversas formas, nos mais antigos poetas, acha-se neles completada empiricamente pela divisão geral de nossos pendores em pessoais e sociais. Conquanto as teorias teológicas, e sobretudo as metafísicas, fossem especialmente incapazes de representar esta última noção, sua evidência espontânea superou sempre os sofismas filosóficos nos espíritos incultos. Tal é o domínio natural cuja sistematização e desenvolvimento constituem o objeto essencial da ciência moral. As outras teorias reais também consistem sempre em determinar sobretudo as leis gerais dos fenômenos mais vulgares; como a química, por exemplo, relativamente à combustão e à fermentação. Se bem que a ciência moral não pudesse ser suficientemente abordada por teologia alguma, cumpre dignamente notar a tentativa inicial do verdadeiro fundador do catolicismo para satisfazer às necessidades sistemáticas oriundas do novo ensino religioso. O grande São Paulo, construindo a sua doutrina geral da luta permanente entre a natureza e a graça, esboçou realmente, a seu modo, o conjunto do problema moral, não só prático, mas também teórico. Porque esta preciosa ficção compensava provisoriamente a incompatibilidade radical do monoteísmo com a existência natural dos pendores benévolos, que movem todas as criaturas a se unirem mutuamente em vez de se voltarem isoladamente ao seu criador. Apesar de todos os vícios naturais de semelhante teoria, seu desenvolvimento da Idade Média constitui o único passo essencial que a ciência moral comportava desde seu antigo esboço teocrático até sua recente instituição positiva. Pelo menos, os resultados essenciais da sabedoria comum se achavam aí muito mais bem representados do que pela deplorável ontologia que dirigiu a dissolução gradual do catolicismo. Por isso os místicos do século XV, e principalmente o admirável autor da Imitação, são também os últimos pensadores em que se pode verdadeiramente apanhar, antes do positivismo, o conjunto da natureza humana, tão viciosamente concebida em todas as doutrinas metafísicas. Lembrando-vos um dogma moral que foi justamente caro à vossa juventude, não é meu único fito honrar um esforço muito mal prezado hoje. Além de ter substituído provisoriamente a teoria positiva da natureza humana, cujo preâmbulo objetivo tinha ainda de durar muito tempo, ele preparou-a espontaneamente, formulando seu domínio sistemático. Foi sob esta influência que, mesmo antes da fundação da sociologia, o verdadeiro gênio científico empreendeu, neste assunto, uma tentativa decisiva, embora insuficiente, logo que a filosofia biológica surgiu. Era mister instituir primeiro, neste supremo domínio teórico, uma harmonia geral entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica, assinalando a sede de nossas principais funções. Malgrado a confusão metafísica que queria reduzir tudo à inteligência, à qual se consagrava o conjunto do cérebro, a razão comum havia atravessado as trevas filosóficas, pelo menos quanto aos pendores, sobretudo pessoais, em virtude da energia espontânea deles. Os antigos pensadores consagraram a distinção, fazendo-os residir, ainda que vagamente, nas diferentes vísceras da vida de nutrição. Todavia, nenhum órgão fora designado para os instintos simpáticos, e a ciência, de acordo com a teologia, falou sempre das paixões como se só existissem as más. Por outro lado, a inteligência ficava indivisa e sua subordinação ao sentimento não podia ser teoricamente representada. Sem este preâmbulo histórico, não poderíeis apreciar bem o admirável esforço pelo qual o gênio de Gall fundou a teoria positiva da natureza humana, posto que não pudesse construí-la até o ponto de tomá-la verdadeiramente eficaz, o que supunha a sociologia. Esse poderoso impulso firmou dois princípios gerais, um dinâmico, outro estático, cuja conexão natural servirá sempre de base ao verdadeiro estudo da alma e do cérebro. Gall estabeleceu ao mesmo tempo a pluralidade de nossas funções superiores, assim mentais como morais, e a comum residência delas no aparelho cerebral, cujas diversas regiões deviam corresponder às distinções reais entre aquelas. Apesar dos vícios essenciais oriundos, sobretudo em relação à inteligência, de uma análise superficial e de uma localização empírica, ele conseguiu representar suficientemente a decomposição geral de nossa existência, e mesmo consagrar, enfim, os pendores benévolos. A luta fictícia entre a natureza e a graça foi desde então substituída pela oposição real entre a massa posterior do cérebro, sede dos instintos pessoais, e a região anterior, onde residem distintamente os impulsos simpáticos e as faculdades intelectuais. Tal é a base indestrutível sobre a qual o fundador da religião positiva construiu em seguida a teoria sistemática do cérebro e da alma, depois de ter instituído a sociologia, única fonte de onde podia emanar a inspiração conveniente. A MULHER - Entrevejo, meu pai, todo o alcance direto do duplo princípio estabelecido pelo último precursor do positivismo. As relações contínuas entre nossos sentimentos e pensamentos, como as relações naturais dos nossos vários instintos, não podiam ser bem representadas por causa da separação exorbitante das sedes que se lhes havia atribuído outrora. A teoria cerebral permitiu, enfim, conceber estas importantes relações, de modo a aperfeiçoar o conhecimento real das mesmas. No entanto, tirando aos órgãos nutritivos essa atribuição moral, que repugnava ao destino grosseiro deles, suscita-se, parece-me, uma grave lacuna geral a respeito das ligações incontestáveis desses órgãos com as nossas funções superiores. A influência recíproca entre o físico e o moral, exagerada pela antiga hipótese, afigura-se-me, pois, desprezada na nova concepção. O SACERDOTE - Esta censura não é aplicável, minha filha, senão ao esboço da teoria cerebral. Não cabe ao seu estado definitivo, em que essas grandes relações se acham plenamente sistematizadas. Conservando da antiga opinião as noções reais que por tanto tempo a abonaram, devemos primeiro restringir essas influências vegetativas aos pendores propriamente ditos sem conceder-lhes nenhuma ação direta sobre as funções intelectuais, nem mesmo sobre os impulsos práticos. As regiões especulativa e ativa do cérebro só têm comunicações nervosas com os sentidos e os músculos, a fim de perceberem e modificarem o mundo exterior. Pelo contrário, a região afetiva, que constitui a massa principal do cérebro, não tem laços diretos com o exterior, ao qual se liga indiretamente pelas suas relações próprias com a inteligência e com a atividade. Porém, afora estas ligações cerebrais, existem nervos especiais que a ligam profundamente aos principais órgãos da vida de nutrição, por efeito da subordinação necessária do conjunto dos instintos pessoais à existência vegetativa. Se esta correspondência geral puder ser assaz especificada, como devemos esperá-lo, ela fornecerá meios poderosos para aperfeiçoar mutuamente o físico e o moral do homem. A MULHER - Esta concepção positiva da natureza humana parece-me, meu pai, muito de acordo com a experiência universal, sobretudo porque funda diretamente nossa unidade sobre a subordinação contínua do espírito ao coração. Já me havíeis explicado que, dos dois modos próprios a este predomínio afetivo, o regime altruísta é o único que pode dar ao homem, mesmo individual, uma unidade completa e duradoura, conquanto mais difícil de constituir que a unidade egoísta. Mas semelhante teoria da harmonia humana ainda me oferece uma grave dificuldade, para conciliá-la com a primeira lei de animalidade, que proclama a intermitência de toda a vida de relação, sem poder excetuar as funções cerebrais, visto como a verdadeira unidade não pode ser descontínua. A inteligência e a atividade podem e devem descansar periodicamente, como os sentidos e os músculos correspondentes. Pelo contrário, a afeição não comporta nenhuma suspensão. Porventura poderíamos jamais deixar de amar em nós e fora de nós? O SACERDOTE - A ligação direta entre a vida afetiva e a vida vegetativa deve levar-nos, minha filha, a considerar a primeira como tão contínua como a segunda. Para conciliar esta continuidade necessária com a intermitência comum a toda a vida de relação, basta considerar a duplicidade cerebral. Todos os órgãos do cérebro são, como os sentidos e os músculos, compostos de duas metades simétricas, separadas ou contíguas, cada uma das quais pode funcionar durante o repouso da outra. Tal alternância permite que o sentimento não experimente nenhuma interrupção, apesar da intermitência cerebral. Algumas vezes a inteligência funciona assim durante o sono, se não mediante o aparelho contemplativo, diretamente ligado aos sentidos, pelo menos mediante o aparelho meditativo, que não depende imediatamente deles. Daí resultam os sonhos, estados passageiros de alienação mental, em que, como acontece na loucura, os impulsos subjetivos prevalecem involuntariamente. Esta persistência acidental das funções intelectuais durante o sono permite compreender, por analogia, a persistência normal das funções afetivas. Mas ela fornece, além disto, o testemunho indireto desta última, porque os sonhos trazem sempre o cunho dos instintos dominantes. Pois que o coração dirige o espírito durante a vigília, apesar das impressões exteriores, ele deve domina-lo mais quando estas se acham suspensas. Pode-se, pois, esperar que a teoria cerebral conduza finalmente a bem interpretar os sonhos, e mesmo a modificá-los, segundo o voto prematuro de toda a Antiguidade. A MULHER - Eu não poderia, meu pai, conceber suficientemente a teoria positiva da natureza humana, se, depois de me terdes explicado as relações gerais entre o coração, o espírito e o caráter, não me fizésseis conhecer a decomposição sistemática de cada um deles em funções verdadeiramente irredutíveis. O SACERDOTE - Esta decomposição resulta, minha filha, do quadro cerebral que aqui vos apresento (vide o quadro C anexo). Ele deverá tornar-se para vós tão familiar quanto o nosso quadro enciclopédico. Porém, embora mais extenso, não achareis nele tanta dificuldade. Qualquer pessoa, sobretudo de vosso sexo, que tiver vivido suficientemente, há de em breve sentir a realidade de semelhante análise, que, por sua natureza, não pode assentar senão sobre observações ao alcance de todos. Se para verificá-las fossem indispensáveis contemplações especiais e difíceis, ela seria necessariamente viciosa. Os grandes esforços que exigiu a construção deste quadro não podem afetar de modo algum seu uso, sobretudo nos espíritos preservados de nossa educação clássica; porque tais dificuldades resultaram menos da natureza do problema do que das falsas teorias que dominavam neste assunto. Este domínio, conquanto seja o mais antigo de nossa inteligência, é o último a que devia estender-se a concordância gradual entre a razão teórica e a razão prática. Mas este acordo fundamental fica, assim, aí afinal firmado, de modo a reproduzir nesse domínio, melhor do que alhures, os progressos que tal acordo sempre suscita. Esta classificação cerebral oferece-vos por toda parte uma nova aplicação do princípio universal da generalidade decrescente, sobre o qual já vistes repousar a hierarquia enciclopédica. Haveis de notar isto sobretudo em relação aos instintos que são ao mesmo tempo mais numerosos e mais salientes. Seu decréscimo de generalidade à medida que se tornam mais nobres e menos enérgicos verifica-se plenamente no conjunto da série animal. Os últimos graus não apresentam senão o instinto fundamental da conservação individual, até a inteira separação dos sexos. Então todos os outros instintos se vão sucessivamente ajuntando, primeiro os pessoais, depois os sociais, na ordem indicada pelo quadro cerebral, à medida que subimos para o homem. Esta comparação zoológica bastaria, pois, para demonstrar semelhante análise, cuja elaboração, se bem que sempre dirigida pela inspiração sociológica, foi mesmo frequentes vezes secundada por ela. A porção mais elevada da série animal, compreendendo os mamíferos e os pássaros, depara-nos certamente uma reunião completa de todas as nossas funções superiores, com simples diferenças de grau. Vede como o maior dos poetas pressentiu esta similitude fundamental, colocando em meio das sublimidades de seu paraíso este admirável quadro da existência moral de um pássaro: Come l'augello intra l'amate fronde Posato al nido de'suoi dolci nati, La notte che le cose ci nasconde, Che, per veder gli aspetti desiati, E per trovar lo cibo onde li pasca, In che i gravi labor gli son aggrati, Previene'l tempo in su l'aperta frasca, E con ardente affetto il sole aspetta Fiso guardando pur che l'alba nasça. (Dante, Paraíso, canto 23°: - Como o pássaro por entre as amadas folhas/ Da doce prole junto ao ninho queda,/ Enquanto a noite as coisas nos esconde,/ A bem de contemplar tão caros entes,/ E para encontrar o alimento que os nutra,/ Suave se lhe torna labor grave./ Dos ramos pela fresta antecipa o dia,/ E com ardente afeto o Sol aguarda,/ Vigiando atento que surja a aurora./) Nesta encantadora descrição, um animal muito afastado do homem oferece o mesmo concurso normal que se dá em nós entre o sentimento, a inteligência e a atividade. Tal fraternidade é ainda mais preciosa para o coração do que para o espírito, estendendo a simpatia além de nossa espécie, de modo a temperar nossos conflitos demasiado frequentes com as raças subordinadas. A MULHER - Conquanto eu goste muito, meu pai, de contemplar os animais, com o fim de achar neles também todos os nossos móveis essenciais, presumo que o quadro cerebral pode dispensar esta verificação, que não está ao alcance de todos os espíritos. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, as observações limitadas à nossa espécie bastam para desvanecer qualquer incerteza sobre cada parte desta teoria positiva da alma e do cérebro. A própria análise intelectual, mais delicada que as outras duas, por ser menos pronunciada, pode ser verificada mediante os fatos cotidianos. Basta comparar, assim, os dois sexos para se reconhecer a distinção principal entre o aparelho contemplativo e o aparelho meditativo; pois que a primeira função é mais desenvolvida na mulher e a segunda no homem. Semelhantemente separamos os dois órgãos meditativos, notando que vosso sexo é mais apto para aproximar os fatos e o meu para coordená-los. Se nossos doutores fossem tão sagazes como a maioria das mulheres, e igualmente desprendidos de opiniões viciosas, as comparações admiráveis que fornece a série zoológica seriam inúteis para os convencer a este respeito. A MULHER - Antes de estudar o quadro cerebral, eu quisera, meu pai, tirar a limpo algumas dúvidas nascidas de uma primeira inspeção. O conjunto dos instintos parece-me estar bem apreciado, salvo o instinto materno, que eu esperava ver figurar no altruísmo e não no egoísmo. O SACERDOTE - Vós o confundis, minha filha, com as reações simpáticas que ele comporta, mas que lhe não são inerentes, pois que frequentes vezes faltam. A observação zoológica não deixa nenhuma dúvida sobre esta distinção, mostrando a maternidade em animais tão inferiores que não podem oferecer os sentimentos elevados que em nossa espécie costumam acompanhá-la. Podeis, porém, dissipar toda incerteza sem sair de nossa espécie. Por mais precioso que seja o aperfeiçoamento que este instinto recebe da civilização, sobretudo da moderna, pela reação crescente da sociedade sobre a família, pode-se ainda descobrir diariamente sua genuína natureza nas mulheres pouco simpáticas, em que ele se isola melhor. Reconhece-se, então, que o filho constitui diretamente, para a mãe, tanto como para o pai, mais uma simples posse pessoal, objeto de domínio, e amiúde de cobiça, do que de uma afeição desinteressada. Somente as relações que resultam da maternidade podendo estimular muito os pendores benévolos, elas contribuem espontaneamente para desenvolver estes em todas as boas índoles, mas sem criar nunca as simpatias que essa reação supõe. Comparando os diversos estados sociais, simultâneos ou sucessivos, apanha-se o verdadeiro caráter de um instinto que, antes de ser elaborado pela providência humana, dispõe amiúde a vender os filhos, e mesmo a matá-los, por meros motivos pessoais. Ademais, olhai em torno de vós o modo por que se decide habitualmente das profissões ou dos casamentos; e perguntai-vos a vós mesma se o egoísmo dos pais não prevalece aí as mais das vezes, depois que a anarquia moderna enfraquece a reação doméstica da sociedade. O instinto sexual foi algumas vezes honrado com um equívoco semelhante, não pelo vosso sexo, que de ordinário sabe apreciar seu caráter pessoal, mas por alguns homens, que também o confundiram com as simpatias cujo desenvolvimento ele pode estimular quando bem dirigido. Todos os pendores pessoais, sem excetuar o instinto destruidor, comportam reações semelhantes, que não suscitam os mesmos enganos, porque elas são aí menos diretas e menos pronunciadas. Esta relação geral facilita muito o grande problema humano: subordinar o egoísmo ao altruísmo. Com efeito, a energia superior dos instintos pessoais pode assim servir para compensar a frouxidão natural dos instintos simpáticos, fornecendo um impulso inicial que estes não teriam espontaneamente. Uma vez despertada, a afeição benévola persiste e cresce pelo seu encanto incomparável, apesar da cessação desse grosseiro estimulante. A superioridade moral de vosso sexo dispensa-o amiúde de tal preparação, dispondo-o a amar logo que encontra objetos de amor, sem procurar neles nenhuma satisfação pessoal. Mas a grosseria masculina não pode quase nunca prescindir deste preâmbulo indireto, necessário sobretudo na vida pública, para nobilitar o orgulho ou a vaidade. A MULHER - Quanto às funções intelectuais, admiro-me, meu pai, de ver excluídas do quadro cerebral as faculdades clássicas: memória, juízo, imaginação etc. O SACERDOTE - Considerai-as, minha filha, como resultados do conjunto da organização mental, que durante muito tempo foram tomados por atributos especiais. A comparação dos indivíduos e dos sexos, completada, por mister, pela das espécies, prova diretamente a inanidade da antiga análise intelectual e a realidade da nova. Porquanto a observação mostra, assim, diferenças pronunciadas e permanentes, quanto à contemplação ou à meditação, sem nunca conduzir a resultados nítidos e fixos a respeito das faculdades escolásticas. O juízo mais insignificante exige um concurso habitual das cinco funções intelectuais, a fim de instituir, entre o interior e o exterior, essa coincidência durável e unânime que caracteriza a verdade. O mesmo digo, com mais forte razão, de cada esforço de memória ou de imaginação, que amiúde exige induções e deduções inteiramente análogas às operações científicas. Quanto à vontade, ela vem a ser o resultado direto de todo impulso afetivo, aprovado pela inteligência como devendo dirigir a conduta. A MULHER - Ao inverso de minha observação precedente, surpreende-me, meu pai, ver a linguagem figurar como função distinta no quadro cerebral, em vez de ser considerada um produto do conjunto das funções intelectuais. O SACERDOTE - Vosso erro, minha filha, resulta de confundirdes a aptidão especial para criar sinais artificiais com os resultados determinados pela digna subordinação dessa aptidão às outras forças mentais. Apesar da insuficiência ordinária de suas análises intelectuais, Gall não hesitou nunca em dotar a linguagem de um órgão distinto, sobre cuja existência a observação dos animais, dos homens e dos povos não podia deixar-lhe nenhuma dúvida. Quando fica entregue a si mesmo, sem nenhuma disciplina cerebral, como vemos amiúde nas moléstias, e algumas vezes no estado de saúde, sua atividade direta não produz senão uma pura verbiagem, que só a razão pode transformar num verdadeiro discurso. Em outros casos, pelo contrário, a atonia excepcional deste órgão impede a transmissão dos pensamentos mais bem elaborados. Ademais, cumpre não confundir, nos animais, a função própria da linguagem com seus instrumentos vocais, que nem sempre lhe correspondem. Cada espécie superior tem sua linguagem natural, entendida por toda a raça, e mesmo entre as espécies assaz vizinhas: porém, os meios físicos de comunicação permanecem com frequência muito imperfeitos. Quanto à linguagem atual das nações civilizadas, ela constitui, com efeito, um resultado complexíssimo do conjunto do desenvolvimento humano. Todavia, sua primeira origem reside também no órgão cerebral que dispõe a criar, por qualquer espécie de meios, sinais artificiais, sem nenhuma preocupação direta das comunicações mentais ou morais que por esse modo possam ser efetuadas. A MULHER - A fim de completardes esta importante apreciação, rogo-vos, meu pai, que me indiqueis o uso geral que deverei fazer do quadro cerebral quando o tiver suficientemente estudado. O SACERDOTE - Só podereis possuí-lo bem, minha filha, mediante uma aplicação contínua. As mulheres exercitam-se habitualmente em descobrir, em nossos atos e discursos, os sentimentos e os pensamentos que verdadeiramente os inspiram. Considerai, sobretudo, o quadro cerebral como um meio geral de aperfeiçoar muito este ofício feminino. Haveis de reconhecer amiúde que a alma humana não é impenetrável. O cérebro pode, assim, tornar-se um livro inalterável, que podereis ler apesar de todos os artifícios da dissimulação. Completando estas observações individuais pela comparação das nações bastante distintas, e até dos animais facilmente apreciáveis, tereis concluído vossa iniciação na teoria positiva da natureza humana. Porém, a fim de evitar ou corrigir enganos muito fáceis, cumpre sempre considerar que a maior parte dos resultados observáveis, tanto intelectuais como morais, provém do concurso de várias funções cerebrais. Raramente é que cada uma destas pode ser observada isolada. Assim, vossa exploração há de exigir as mais das vezes uma análise, cujos elementos vos serão sem cessar fornecidos pelo nosso quadro, elementos que haveis de combinar até que essa síntese represente assaz o caso correspondente. Por exemplo, a inveja resulta de uma combinação entre o instinto destruidor e qualquer um dos outros seis instintos egoístas sob o influxo de um secreto sentimento da inferioridade pessoal, tanto mental como moral. Existem, portanto, seis espécies de inveja, conforme seu segundo elemento consista na cobiça, ou na luxúria etc. O quadro cerebral resume tudo quanto há hoje de verdadeiramente demonstrado na teoria positiva da natureza humana. Eis por que só indiquei aí o número e a sede dos órgãos intelectuais e morais, sem nada precisar mesmo sobre a forma ou tamanho deles. Só um estudo objetivo, que ainda não está instituído convenientemente, é que pode completar esta teoria subjetiva do cérebro, determinando a constituição de cada um desses órgãos. Cumpre, porém, não ligar importância exagerada a este complemento, sem o qual a doutrina cerebral pode preencher assaz o seu principal destino, como o prova este Catecismo. A posição dos órgãos constitui, com efeito, a determinação mais importante e também a mais difícil. Ela logo indica as influências mútuas, que, sem nenhum intermédio nervoso, dependem da simples contiguidade. É assim que facilmente podemos explicar as relações, por outra forma ininteligíveis, e no entanto incontestáveis, entre o instinto sexual e o instinto destruidor. A ordem dos órgãos, sobretudo afetivos, mede sua energia respectiva de conformidade com a lei que vedes inscrita no quadro: Por exemplo, entre dois instintos consecutivos, vê-se assim que o pendor a destruir é naturalmente mais forte que o pendor a construir. Não se pode duvidar disso, notando-se a preferência que aquele obtém por toda parte, sem excetuar nossa espécie, quando o ente acredita ter a livre escolha dos meios. Mas o uso mais nobre do quadro cerebral consiste em assentar melhor o problema humano, o ascendente da sociabilidade sobre a personalidade, como já o sentistes tanto antes desta explicação direta. As três qualidades práticas são, em si mesmo, indiferentes ao bem e ao mal: diretamente, elas só aspiram à ação. Quanto às cinco funções intelectuais, seu verdadeiro destino consiste, evidentemente, em servir os três pendores sociais de preferência aos sete afetos pessoais: é o meio único de fazer com que o desenvolvimento próprio delas se torne vasto e duradouro. Todavia, a fraqueza intrínseca que as distingue as impede frequentemente de resistir à energia natural dos impulsos egoístas; e dali resulta a principal dificuldade. Se o espírito não atraiçoa sua santa missão, a personalidade, aliás incoerente, subordina-se facilmente a uma sociabilidade que não lhe recusa nunca as satisfações legítimas. A harmonia ficando assim firmada entre o sentimento e a inteligência, a atividade segue espontaneamente um impulso que lhe fornece um campo inesgotável. Portanto, tudo, afinal, depende de uma combinação profunda entre os dois órgãos contíguos que presidem respectivamente ao principal instinto simpático e ao espírito essencialmente sintético. Representando cada uma das três regiões cerebrais pelo seu órgão preponderante, a fórmula sagrada do positivismo acha-se naturalmente gravada em qualquer cérebro, pois que ela prescreve a harmonia habitual de três órgãos adjacentes. A MULHER - Pelo conjunto desta conferência e da precedente, reconheço, meu pai, que o dogma positivo basta agora para o governo espiritual da Humanidade, como já mo fizera pressentir nossa sexta conferência. Sua natureza profundamente relativa não lhe permite a imobilidade peculiar ao caráter absoluto do dogma teológico. Mas esta pretendida imutabilidade acaba realmente na morte, ao passo que as modificações graduais do positivismo são sintomas certos de uma vida tão duradoura quanto a de nossa espécie. Sem esperar pelos seus aperfeiçoamentos inesgotáveis, sinto-o assaz elaborado para dirigir hoje a reorganização ocidental. O SACERDOTE - Esta convicção final permite-me, minha filha, proceder agora à explicação, primeiro geral, depois especial, do regime, que constitui diretamente o objetivo final de toda a iniciação positiva, em que o dogma, e mesmo o culto, são apenas preparatórios. Depois de ter apreciado o positivismo como a verdadeira religião, primeiro do amor, em seguida da ordem, cumpre, enfim, reconhecer nele também a única religião plenamente conveniente ao conjunto do progresso humano, sobretudo moral. PARTE TERCEIRA EXPLICAÇÃO DO REGIME NONA CONFERÊNCIA CONJUNTO DO REGIME A MULHER - Neste estudo final, sinto, meu pai, que minha atitude deve continuar quase tão passiva como em relação ao dogma, posto que eu conte achar aqui menos dificuldades. O regime não me oferece um domínio essencialmente afetivo, como era o do culto, em que eu podia algumas vezes antecipar vossas explicações. Aqui o coração já não pode bastar mais para inspirar-me vistas que frequentes vezes supõem a mais completa experiência e a mais profunda reflexão, naturalmente vedadas ao sexo, cujas contemplações mal podem ultrapassar com êxito o círculo da vida privada. Com efeito, é mister, agora, construir diretamente as regras gerais que devem presidir aos atos humanos, sobretudo aos habituais, e mesmo aos excepcionais. Ora, esta determinação exige uma exata apreciação do conjunto de nossa existência, quer coletiva, quer individual, a fim de julgar os verdadeiros resultados próprios a cada sistema de conduta. As aberrações do sentimento devem ser neste caso evitadas com tanto maior cuidado quanto a influência delas seria aqui mais perniciosa, por afetar imediatamente a vida real e comum. O SACERDOTE - Esta digna reserva não deve dissimular-vos nunca, minha filha, o ofício fundamental que o conjunto do regime assinala ao vosso sexo. O culto é principalmente destinado a desenvolver os sentimentos que nos dispõem a viver para outrem. Todo o estudo do dogma positivo leva depois a concluir que a nossa verdadeira unidade consiste sobretudo nessa vida altruísta. Sobre este duplo fundamento, o regime deve agora fazer prevalecer diretamente, na existência prática, esse princípio único da harmonia universal. Ora, tal objetivo supõe necessariamente o concurso íntimo e contínuo dos dois sexos, porque ele depende tanto do coração como do espírito. Passando, assim, da moral teórica para a moral prática, só a inteligência é que pode determinar quais os hábitos que devem prevalecer, e mesmo quais os meios por que eles se estabelecem. Mas este duplo estudo abortaria quase sempre se o sentimento não impelisse a superar constantemente suas altas dificuldades. Daí resultam as partes respectivas que competem ao sacerdócio e ao sexo afetivo em nosso regime moral. Ao passo que o sacerdote atua sobre o coração pelo espírito apreciando cada conduta, a mulher deve agir sobre o espírito pelo coração, fazendo prevalecer espontaneamente a melhor disposição. Este concurso necessário convém do mesmo modo à idade preparatória e à existência real. A MULHER - Tranquilizada por este preâmbulo, devo, meu pai, perguntar-vos em primeiro lugar qual o verdadeiro campo desta terceira parte de nossa religião. Posto que o regime diga sempre respeito à vida ativa, como o dogma se refere à vida especulativa, e o culto, à vida afetiva, dificilmente poderia eu compreender que as prescrições religiosas do primeiro se estendessem a uma atividade qualquer. Entretanto, não percebo sobre que se fundaria a distinção correspondente. O SACERDOTE - O domínio prático da religião limita-se, minha filha, às disposições verdadeiramente universais, sem penetrar no preenchimento especial de cada ofício. Ela deve, contudo, apreciar exatamente as diversas funções sociais, mas só para lhes prescrever as regras adequadas a conservar e desenvolver a harmonia geral. Tudo o que se refere à execução particular pertence aos diferentes modos ou graus do governo propriamente dito, quer privado, quer público, e nunca ao sacerdócio. A fim de precisar melhor esta distinção fundamental, cumpre agora estender ao progresso a divisão geral que o estudo do dogma vos tomou familiar em relação à ordem. Pois que decompusemos primeiro a ordem universal em ordem exterior e ordem humana, devemos apreciar semelhantemente os aperfeiçoamentos que ela comporta. Distinguem-se, assim, duas espécies de progresso, um exterior, outro humano. Posto que ambos se refiram finalmente a nós mesmos, só o último diz respeito à nossa própria natureza, e o primeiro limita-se à nossa situação, que ele melhora reagindo sobre todas as existências capazes de afetar a nossa. É por isso que esse progresso exterior é habitualmente qualificado de material, se bem que se estenda à ordem vital propriamente dita, mas apenas em relação às espécies que nos servem de provisões ou de instrumentos. O ponto de vista do progresso sendo necessariamente mais subjetivo que o da ordem, a uniformidade da linguagem nem sempre corresponde, nele, à identidade das noções. Esta distinção basta para introduzir convenientemente a divisão fundamental entre os domínios práticos do governo e do sacerdócio. Concebendo todas as forças sociais como igualmente votadas ao aperfeiçoamento universal, é mister, assim, distingui-las conforme elas melhoram a ordem exterior ou a ordem humana. Tal é a melhor origem elementar da separação normal entre a ação temporal e a ação espiritual. A dignidade superior desta resulta, então, da preponderância natural do progresso correspondente. Assim, o domínio prático da religião consiste em aperfeiçoar a ordem humana, primeiro física, depois intelectual, enfim, e sobretudo moral. Apesar da diversidade destes três aspectos, eles devem sempre ficar inseparáveis, em virtude de sua íntima conexão, que cumpre respeitar ainda mais para a ação que para a especulação. Quanto à ordem exterior, seu melhoramento direto e especial não compete à religião: constitui o domínio próprio da política ou da indústria. Todavia, a religião acha aí indiretamente uma participação importante, porém geral, pela grande influência que o estado do agente humano exerce necessariamente sobre os resultados efetivos de sua ação qualquer. Em toda operação prática, o bom êxito exige em primeiro lugar que cada cooperador seja honesto, inteligente e corajoso. Mas é só neste sentido que a religião tem sempre uma parte na constituição fundamental de cada indústria especial. A MULHER - Assim, meu pai, considerada como uma arte, difere de todas as outras pela sua inteira generalidade. É a única que deverá ser universalmente aprendida, pois que todas as existências humanas têm igualmente necessidade contínua dela. Seu estudo espontâneo pertence, pois, a todos, proporcionalmente à aptidão natural e às luzes empíricas de cada um. Mas este estudo não pode ser sistematizado senão pelo sacerdócio, em virtude de suas relações necessárias com o conjunto das teorias reais. É assim que a moral parece-me constituir o domínio essencial da religião, primeiro como ciência e depois mesmo como arte. O SACERDOTE - Deveis completar, minha filha, semelhante apreciação considerando a ingerência especial que cabe ao sacerdócio positivo no conjunto de cada indústria, por ser ele o único que conhece todas as leis essenciais da ordem exterior. Conquanto essas noções teóricas nunca possam dispensar os estudos práticos, como o sonha amiúde o orgulho científico, elas deverão sempre servir-lhes de base, e até de guia. Tendo primitivamente aprendido com o sacerdócio as principais leis dos fenômenos a modificar, cada prático refere depois a elas todos os desenvolvimentos especiais provenientes de suas induções empíricas. Quando o surto de seus próprios trabalhos lhe fizer sentir a necessidade de novas noções gerais, é ainda ao sacerdócio que ele deverá pedi-las, em vez de perturbar sua marcha industrial por uma vã cultura científica. A MULHER - Graças ao conjunto dessa explicação, compreendo, meu pai, a separação fundamental entre o sacerdócio e o governo, como resultado sobretudo da divisão necessária entre a teoria e a prática. Mas a apreciação anterior não se refere essencialmente senão ao progresso, isto é, à atividade. Ora, para estabelecer solidamente um princípio tão capital, seria preciso ainda, parece-me, referi-lo diretamente à ordem propriamente dita, isto é, à conservação. Se, na harmonia social, o proletariado deve naturalmente ser sobretudo progressista, meu sexo, em virtude de sua situação passiva, aí funciona principalmente como conservador. O SACERDOTE - Para satisfazer-vos convenientemente, basta, minha filha, que consideremos estaticamente o regime humano. Estudai nele a existência em vez do movimento, e chegareis logo à divisão dos dois poderes, como base universal da ordem social, partindo unicamente do princípio da cooperação, sobre o qual Aristóteles fundou a verdadeira teoria da associação cívica oriunda do concurso das famílias. (O princípio da cooperação, atribuído por Auguste Comte a Aristóteles, consiste no seguinte: O caráter essencial de toda organização coletiva reside na separação dos ofícios e na convergência dos esforços. Não se encontra nas obras de Aristóteles a formulação de tal princípio. Auguste Comte extraiu-o como contido implicitamente nos trabalhos de filosofia política do grande pensador grego, e sua escrupulosa probidade científica levou-o a referir-lhe a autoria de tal descoberta). Com efeito, cada servidor da Humanidade deve sempre ser apreciado sob dois aspectos distintos, embora simultâneos, primeiro, em relação ao seu ofício especial, depois, quanto à harmonia geral. O primeiro dever de todo órgão social consiste, sem dúvida, em bem preencher sua própria função. Mas a boa ordem exige também que cada um assista, tanto quanto possível, à realização dos outros ofícios quaisquer. Semelhante atributo torna-se mesmo o caráter principal do organismo coletivo, em virtude da natureza inteligente e livre de todos os seus agentes. Ora, existe espontaneamente uma oposição cada vez mais pronunciada entre estes dois ofícios, um especial, outro geral, de cada funcionário humano. Porquanto, o primeiro, particularizando-se mais à medida que a cooperação se desenvolve, suscita disposições intelectuais, e mesmo tendências morais, que o afastam cada vez mais de uma apreciação de conjunto, que também se vai tornando cada vez mais difícil. Tal é o verdadeiro ponto de vista elementar da teoria geral do governo, primeiro temporal, depois espiritual. Como nenhuma função, mesmo vital, e sobretudo social, pode ser bem preenchida senão por meio de um órgão próprio, o mínimo concurso humano exige, pois, uma força especialmente destinada a chamar de novo às vistas e aos sentimentos de conjunto agentes que tendem sempre a desviar-se de tais condições. Ela deve sem cessar conter as suas divergências e desenvolver as suas convergências. Por outro lado, este poder indispensável surge naturalmente das desigualdades que sempre suscita a evolução humana. Apesar da íntima simpatia que constitui a simples associação doméstica, mesmo reduzida ao par fundamental, não está ela nunca isenta de semelhante necessidade. É aí que se pode apreciar melhor este grande axioma: Não existe sociedade sem governo. Na ordem cívica, cada concurso de famílias para um fim determinado faz em breve surgir um chefe prático, cuja autoridade se acha espontaneamente limitada pelo conjunto das operações que ele pode realmente dirigir, quer pela sua própria aptidão, quer, sobretudo, em virtude de seus capitais. É aí que reside o verdadeiro poder temporal, igualmente capaz de impulsionar e de reter, conforme as necessidades. Todo poder mais vasto dimana necessariamente de uma fonte espiritual. Os diferentes chefes práticos tendem, contudo, a se coordenar entre si, mediante uma hierarquia nascida das relações naturais de seus diversos trabalhos. Este concurso espontâneo institui, pois, uma espécie de governo mais geral, porém sempre reduzido ao seu poder material, mais adequado a resistir que a dirigir. Seus diferentes membros são ordinariamente incapazes de abarcar o conjunto correspondente, apesar da competência de cada um deles em relação a um dos sistemas parciais. A simples solidariedade bastaria, pois, quando um pouco extensa, para indicar a insuficiência do poder prático e a necessidade de uma autoridade teórica que, privando-se de toda ação especial, faça prevalecer constantemente a harmonia geral. A continuidade, porém, da qual depende cada vez mais a ordem humana, torna essa necessidade plenamente irrecusável. Esses poderes empíricos, aspirando a dirigir o presente, não conhecem o passado que o domina, nem o futuro que ele prepara. Por isso a intervenção deles permanece cega e amiúde perturbadora, quando não a subordinam aos conselhos teóricos. Ao mesmo tempo, a influência sacerdotal lhes é indispensável, como a única capaz de consagrar assaz seu ascendente material quase sempre exposto a invejosas contestações. Cada consagração consiste em representar o poder correspondente como o ministro de um poder superior geralmente respeitado: Deus sob o regime provisório, a Humanidade na ordem definitiva. Ora, isto supõe sempre, mas sobretudo em relação a este estado final, que o presente se prende dignamente ao passado e ao futuro. O sacerdócio, único que pode instituir esta dupla ligação, torna-se, assim, o consagrador necessário de todos os poderes humanos, sem precisar ele próprio de nenhuma consagração estranha, pois é o órgão direto da suprema autoridade. Eis aí de onde procede este segundo axioma: Nenhuma sociedade se pode desenvolver e conservar sem um sacerdócio qualquer. Semelhantemente indispensável a todos para a educação e para o conselho, só este poder teórico é capaz de consagrar os governantes e de proteger os governados. Ele constitui o moderador normal da vida pública, como a mulher o da vida privada, conquanto estas duas existências exijam, aliás, o concurso contínuo da influência moral com o poder intelectual. Podeis resumir o conjunto das atribuições sociais do sacerdócio qualificando-o de Juiz, segundo a expressão bíblica, porquanto seu tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador se efetua sempre julgando, isto é, mediante uma apreciação respeitada. A MULHER - Felizmente o catolicismo me tinha preparado, meu pai, para bem conceber este princípio fundamental, apesar do crédito obtido pelos sofismas protestantes e deístas, alvejando, com obcecado encarniçamento, a principal construção da Idade Média. Não compreendo, porém, suficientemente a razão por que o positivismo, consolidando e desenvolvendo esse grande esboço, conserva algumas expressões que parecem à primeira vista só se referir à sua origem teológica, posto que admitam um sentido puramente natural. Além do justo respeito que devia ter inspirado essa nomenclatura histórica, presumo que ela também assenta sobre motivos dogmáticos, conquanto eu não possa discerni-los. O SACERDOTE - Esses motivos resultam sobretudo, minha filha, da falta de homogeneidade que apresentam estas duas expressões, cujo contraste recorda, assim, os dois caracteres principais da grande divisão social, em vez de indicar apenas um só. Qualificando de espiritual o poder teórico, faz-se assaz sentir que o outro é puramente material. Por este modo fica indiretamente assinalada a melhor comparação social que esses dois poderes comportam, a qual consiste em considerá-los como disciplinando, um as vontades, e o outro os atos. Reciprocamente, qualificar de temporal o poder prático é recordar assaz a eternidade que caracteriza o poder teórico. Isto posto, podemos definir suficientemente seus domínios respectivos: de um lado o presente, do outro o passado e o futuro; um institui especialmente a solidariedade, o outro a continuidade; a um pertence sobretudo a vida objetiva, ao outro a vida subjetiva. Ora, estes dois atributos essenciais, simultaneamente indicados pela própria discordância dos nomes usados, concorrem para lembrar também a última oposição entre os dois poderes humanos, quanto à sua extensão respectiva. De fato, a potência teórica, já como espiritual, já como eterna, comporta espontaneamente uma inteira universalidade, ao passo que a autoridade prática, por ser material e temporal, permanece necessariamente local. Deste contraste final resulta a separação das duas, logo que ele se desenvolve assaz. A MULHER - Meus antigos hábitos católicos inclinam-me, meu pai, a condensar todas as atribuições essenciais do poder espiritual na direção sistemática da educação universal, onde sua competência exclusiva é incontestável. O SACERDOTE - Tal é, com efeito, minha filha, o ofício fundamental do sacerdócio, que, quando cumpre dignamente este principal dever, adquire necessariamente uma grande influência sobre o conjunto da vida humana. Suas outras funções sociais constituem apenas a continuação natural ou o complemento indispensável deste destino característico. A prédica torna-se em primeiro lugar um prolongamento necessário desse ofício fundamental, a fim de recordar convenientemente os princípios da harmonia universal, que a atividade especial nos arrasta amiúde a menosprezar. É também em virtude daquela base que o poder espiritual adquire sua aptidão para consagrar as funções e os órgãos, em nome de uma doutrina unanimemente considerada como devendo regular sempre a existência humana. Sobre o mesmo fundamento assenta a influência consultiva do sacerdócio acerca de todos os atos importantes da vida real, privada ou pública, em que cada qual sente amiúde a necessidade de recorrer livremente aos conselhos esclarecidos e benévolos dos sábios que dirigiram sua iniciação sistemática. Enfim, a educação permite que o sacerdócio se torne, por um comum assentimento, o regulador normal dos conflitos práticos, por causa da igual confiança que naturalmente inspira aos superiores e inferiores. A MULHER - Sou assim levada, meu pai, a perguntar-vos em que é que consiste, no regime positivo, essa função preponderante do poder religioso. Sinto já que a educação deve sobretudo dispor a viver para outrem, a fim de reviver em outrem por outrem, um ser espontaneamente inclinado a viver para si e em si. Esta grande transformação exige o concurso íntimo da mulher e do sacerdote, agindo convenientemente sobre o coração e o espírito. Mas necessito conceber com mais precisão seus ofícios respectivos. O SACERDOTE - Para isto, minha filha, considerai em primeiro lugar a educação propriamente dita como tendo seu termo natural na idade da emancipação, em que cada qual, depois de ter recebido o terceiro sacramento social, torna-se, enfim, um servidor direto da Humanidade, que até então teve de conservá-lo sob tutela. Decomponde em seguida esta preparação de vinte e um anos em duas partes essenciais, uma espontânea, outra sistemática, das quais a segunda dura duas vezes menos que a primeira. Distinguireis, assim, os domínios sucessivos do sexo afetivo e do poder teórico no conjunto da iniciação humana, começada pelo coração e completada pelo espírito, posto que ambos aí colaborem sempre. A primeira fase, que se estende até a puberdade, deve ser dividida em duas outras de igual duração, separadas pela dentição normal. Até este termo é só a mãe que dirige uma educação inteiramente espontânea, ao mesmo tempo física, intelectual e moral. Posto que o desenvolvimento corporal deva aqui prevalecer, o coração não tarda em tomar uma parte decisiva, que se fará sentir durante toda a existência. O surto das afeições domésticas nesta fase leva já a criança ao primeiro esboço do culto positivo, pela adoração de sua mãe, que lhe representa necessariamente a humanidade, cuja preponderância distinta se lhe torna, contudo, apreciável pela instituição da linguagem. Ao mesmo tempo, o espírito colhe empiricamente noções de todo gênero, que hão de fornecer em seguida os materiais da verdadeira sistematização. Se estes exercícios naturais dos sentidos e dos músculos forem suficientemente utilizados, sem que se lhes altere nunca a espontaneidade, a vida especulativa e a vida ativa ficarão auspiciosamente esboçadas, subordinando-se sempre à vida afetiva. Mas a mãe é a única que pode combinar dignamente estes três aspectos. Ela incitará a criança, sobretudo patrícia, a executar habitualmente algumas operações materiais, a fim de que aprecie melhor a dificuldade de levar qualquer trabalho até o seu destino usual, e para que simpatize mais com as classes correspondentes. Esses exercícios tornarão o espírito mais preciso e mais nítido, e o coração mais temo e mais humilde. Desde a dentição até a puberdade, a educação doméstica começa a sistematizar-se pela introdução gradual de uma série de estudos regulares. Contudo, continua sempre dirigida pela mãe, que facilmente poderá guiar trabalhos puramente estéticos, quando ela própria tiver convenientemente recebido a educação universal. Até então, deve ter-se vedado cuidadosamente à criança todo estudo propriamente dito, ainda mesmo de leitura ou de escrita, salvo as aquisições verdadeiramente espontâneas. Mas agora nasce o hábito do trabalho intelectual, pelo desenvolvimento regulado das faculdades de expressão, cuja cultura convém eminentemente a esta segunda infância. Semelhante estudo, essencialmente isento de preceitos quaisquer, consiste apenas em exercícios estéticos, em que as leituras poéticas são criteriosamente combinadas com o canto e o desenho. (Se bem que tal elaboração deva conservar-se essencialmente espontânea, a solicitude materna já prepara aí a disciplina normal, instituindo exercícios habituais, poéticos, fônicos e plásticos, mesmo antes da leitura e da escrita. (Política Positiva, tomo IV, p. 262.)). Ao passo que nesta fase o surto moral continua espontaneamente, o culto se desenvolve em breve, à medida que a criança adquire novos meios para exprimir melhor suas afeições. Com efeito, ela deve resumir o conjunto de seus exercícios por um canto e um retrato consagrados à sua mãe. (Uma prece, um canto, um desenho, em honra da mãe, caracterizarão, pelo seu aperfeiçoamento crescente, a aptidão gradual para formular as emoções reais, sob a assistência tirada do tesouro estético da Humanidade). Ao mesmo tempo, ela adquire sentimento mais completo da Humanidade, familiarizando-se com as principais obras-primas de todas as artes, contanto que nenhuma mistura de produções medíocres altere a um tempo seu gosto e sua moralidade. A MULHER - Estas duas idades da educação doméstica só me suscitam, meu pai, dificuldades sérias quanto à religião. Posto que então se possa, pelo coração, dispor muito a criança para a religião, não se pode tentar-lhe ensinar coisa alguma dogmaticamente, por lhe faltarem as bases científicas, reservadas à sua última preparação. Entretanto, não é possível evitar que ela se ocupe com este assunto e indague a respeito dele. O SACERDOTE - Lembrai-vos, minha filha, de que cada evolução individual deverá reproduzir espontaneamente todas as fases essenciais da iniciação coletiva. Concebereis, assim, que é mister, a este respeito, deixar a criança seguir livremente as leis gerais de nosso surto intelectual. Ele será naturalmente fetichista até a dentição e depois politeísta até a puberdade. (Corrigir isto de acordo com o seguinte trecho da Política Positiva (tomo IV, p. 263.): "Meu discurso preliminar assinala para a segunda idade uma síntese politéica, naturalmente oriunda da observação abstrata e plenamente conforme à cultura estética. Cumpre aqui restringir esta modificação aos três primeiros séculos do estado normal, cuja filiação histórica deve ficar, então, universalmente sentida. Quando a fusão da fetichismo na positividade determinar a inteira eliminação do teologísmo, a filosofia da primeira idade subsistirá durante a segunda, para incorporar-se, sob a terceira, ao estado final da razão humana. A cultura estética se tomará conciliável com este aperfeiçoamento da iniciação individual, desde logo dispensada de reproduzir servilmente a evolução coletiva. Sob o ascendente da língua universal, o surto da poesia fetíchica, em virtude de uma plena instituição dos meios subjetivos, fará surgir obras-primas mais bem adaptadas que as antigas ao conjunto do estado normal). Estes dois estados filosóficos dispô-la-ão, como a espécie, a melhor desenvolver primeiro o espírito de observação, em seguida as faculdades estéticas. Quanto às perguntas que ela poderá fazer a seus pais, se descobrir que estes pensam de modo diverso dela, o caráter profundamente relativo do positivismo lhes permitirá sempre responder sem hipocrisia. Bastará que declarem lealmente à criança que as opiniões atuais dela são as que convêm à sua idade, mas prevenindo-a de que em breve hão de mudar, segundo a lei a que eles próprios obedeceram outrora. Fazendo-lhe notar que ela já passou espontaneamente do fetichismo para o politeísmo, ela acreditará sem custo em novas transformações, que aliás não devem ser apressadas artificialmente. Seu espírito ficará, assim, afastado do absoluto, ao passo que seu coração simpatizará mais com as populações que representam esses estados preliminares. A MULHER - Este esclarecimento permite-me, meu pai, passar a apreciar a educação sistemática. Conquanto ela deva ser sempre dirigida pelo sacerdócio, o ascendente contínuo que o positivismo concede ao coração sobre o espírito anuncia-me já que ela não há de subtrair nunca o adolescente às suas relações de família. A reação diária destas relações torna-se até mais necessária para ele quando suas preocupações teóricas vão tender a secar-lhe o coração e a enchê-lo de orgulho. Conheço a profunda aversão que vos inspiram os nossos claustros escolásticos, em que a corrupção se desenvolve ainda mais que a estupidez. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, é sob a constante superintendência de sua mãe que o adolescente, após ter recebido o sacramento da iniciação, vai, cada semana, à escola anexa ao templo da Humanidade ouvir do sacerdote uma ou duas lições de dogma. O fruto principal deste ensino exterior depende, aliás, do trabalho interior correspondente; porquanto a verdadeira influência didática nos dispõe a melhor meditar, em vez de dispensar-nos disso. O plano geral deste estudo sistemático do dogma positivo é naturalmente indicado pela hierarquia enciclopédica que caracteriza a ordem universal. Aos seus sete graus fundamentais correspondem outros tantos anos de noviciado teórico, reservando-se a quarta parte de cada ano para os exames e o descanso. O número das lições anuais fica, assim, reduzido a quarenta, com uma única por semana, o que basta para o estudo filosófico de cada ciência. Somente, a extensão e a dificuldade especiais da iniciação matemática, cuja importância teórica há de sempre prevalecer, exigem duas aulas hebdomadárias durante os dois primeiros anos, em que a aprendizagem prática ocupa menos. É assim que, desde a geometria até a moral, cada adolescente deve efetuar sistematicamente, em sete anos, a ascensão objetiva que tantos séculos exigiu ao surto espontâneo da Humanidade. (Lembraremos, porém, que, como Auguste Comte depois o estabeleceu, o estudo do dogma deve começar pela filosofia primeira, cuja exposição preencherá as três primeiras semanas, sendo feita em comum aos dois sexos reunidos no templo, perante todo o presbitério, e na presença dos principais magistrados e das famílias catecúmenas). Durante esta elaboração teórica, um monoteísmo gradualmente simplificado oferece-lhe, como à espécie, uma transição geral para o positivismo final. A uniformidade normal do sacerdócio ocidental tornará tais estudos plenamente conciliáveis com as preciosas viagens de nossos proletários. Enquanto se realizam esses estudos, o prolongamento natural da cultura estética secundará a influência materna para prevenir ou reparar a degeneração moral deles. Limitadas no princípio às nossas línguas vivas, as leituras poéticas dos ocidentais abraçarão então as fontes greco-romanas de nosso surto intelectual e social, mas sempre sem nenhum mestre especial. Depois de ter desenvolvido seu culto íntimo, e sentido já o culto doméstico, o futuro cidadão começa diretamente a adoração sistemática do verdadeiro Grande Ser, cujos principais benefícios ele pode então apreciar dignamente. O conjunto destas preparações conduz o jovem positivista a merecer o sacramento da admissão, quando seu espírito pode, enfim, servir à Família, à Pátria e à Humanidade, sem que o coração cesse de amá-las. A MULHER - Durante esta última iniciação, a superintendência materna, parece-me, meu pai, que há de estar gravemente preocupada dos desvios a que as paixões expõem então o adolescente. Os discursos dos médicos por vezes me têm assustado a este respeito, fazendo-me temer que as leis naturais de nosso desenvolvimento corpóreo não tornem esses vícios ordinariamente inevitáveis. Necessito ser especialmente tranquilizada acerca de tal perigo, em que a perturbação moral pode, aliás, comprometer a evolução teórica. O SACERDOTE - Essas declamações doutorais vos afetariam muito menos se sentísseis suficientemente a incompetência de seus autores. Apesar da pretensão de estudarem o homem, os médicos, teóricos ou práticos, estão longe de poder conhecer nossa natureza, sobretudo entre os modernos, porquanto eles se limitam essencialmente ao que temos de comum com os outros animais; de modo que mereceriam antes o título de veterinários, se a cultura empírica não compensasse um pouco, nos melhores dentre eles, os vícios da instrução teórica. Pois que o homem é o mais indivisível dos seres vivos, quem não estudar nele a alma e o corpo simultaneamente não formará a respeito dele senão noções falsas ou superficiais. O materialismo acadêmico não pode, pois, prevalecer contra experiências numerosas e decisivas, plenamente explicadas pela verdadeira teoria da natureza humana. Essa pretendida fatalidade sexual foi comumente superada, durante o conjunto da Idade Média, por todos aqueles que sofreram assaz a disciplina católica e cavalheiresca. Mesmo no meio da anarquia moderna, muitos exemplos individuais confirmam, ainda, a possibilidade de se conservar até o casamento uma verdadeira pureza. Uma existência laboriosa e sobretudo o surto contínuo das afeições domésticas bastam de ordinário para prevenir tais perigos, que só se tornam realmente insuperáveis em alguns casos muito excepcionais, abusivamente erigidos em tipos por doutores alheios às lutas morais. Nossos jovens adeptos serão habituados, desde a infância, a considerar o triunfo da sociabilidade sobre a personalidade como o principal destino do homem. Preparar-se-ão a vencer um dia o instinto sexual lutando desde cedo contra o instinto nutritivo, que, aliás, se liga naturalmente àquele pela contiguidade dos órgãos respectivos. Sabeis, enfim, que uma ternura profunda constitui sempre o melhor preservativo contra a libertinagem. Assim, a mãe acabará de garantir seu filho contra os vícios que temeis, dispondo-o a colocar dignamente as afeições pessoais que deverão fixar em seguida o seu destino doméstico, em vez de esperar que elas surjam bruscamente de encontros fortuitos. A MULHER - Esta preciosa explicação não me deixa a desejar, meu pai, quanto ao conjunto da educação positiva, outro esclarecimento essencial senão acerca do que se refere especialmente ao meu sexo. Sinto já que, para que as mães possam dirigir a iniciação doméstica, elas próprias devem ter participado dignamente da instrução enciclopédica, de que ninguém deve ser excluído, salvo raras exceções individuais. Sem esta plena universalidade, a fé positiva não poderia obter o ascendente sistemático exigido pelo seu destino moral. Ademais, a mãe não poderia conservar assaz a superintendência moral da educação humana se sua própria ignorância a expusesse aos desdéns mal dissimulados de um filho amiúde cheio de orgulho teórico. Duvido, contudo, que as mulheres devam seguir os mesmos estudos que os homens, e sob os mesmos mestres, posto que com lições separadas. O SACERDOTE - O grande Molière vos responde de antemão, minha filha, prescrevendo ao vosso sexo clarezas a respeito de tudo; porquanto nossa instrução enciclopédica não tem, com efeito, outro fim. Ela é inteiramente desprendida do caráter especial que com razão vos repugna nos estudos atuais, tão pouco convenientes, de ordinário, aos homens como às mulheres. Desse fundo comum, cada prático ou teórico deve depois tirar espontaneamente, por si mesmo, os desenvolvimentos peculiares ao seu destino, sem ter habitualmente necessidade de nenhum ensino particular, a menos que tenha recebido mal a iniciação universal. Nosso plano geral do noviciado sistemático não comporta realmente, no tocante ao vosso sexo, outra redução a não ser a da duplicação hebdomadária que distingue os dois primeiros anos. Dispensadas da vida ativa, as mulheres devem limitar-se, em matemática, a um estudo antes lógico do que científico, para o qual basta uma lição por semana, como em todo o resto do curso setenário. Esta simplificação apenas exige mais esforços filosóficos por parte do professor. Quanto à diversidade dos funcionários, ela tenderia a desacreditar igualmente os mestres e os alunos. Seria, aliás, contrária à natureza profundamente sintética que deve caracterizar o sacerdócio positivo. A fim de excluir melhor as tendências dispersivas, importa que cada sacerdote ensine sucessivamente os sete graus enciclopédicos. Daí deve resultar, ainda, a preciosa vantagem social de desenvolver, durante esta longa iniciação, relações contínuas com os mesmos alunos, que serão, assim, devedores de toda a sua instrução teórica ao mesmo sacerdote. Tal permanência facilitará muito a ação ulterior de nosso sacerdócio sobre o conjunto da vida real. Ora, motivos semelhantes exigem também que os dois sexos bebam nas mesmas fontes sua iniciação sistemática. Se o Sumo Pontífice da Humanidade não mudar demasiado as residências sacerdotais, todos os conflitos domésticos serão mais facilmente apaziguados por efeito dessa subordinação pessoal dos diversos membros da família a mestres idênticos. Sacerdotes que só falassem a um dos sexos se tornariam socialmente insuficientes, além de que o seriam primeiro sob o aspecto intelectual. A MULHER - Agora, meu pai, concebo assaz a influência social que o sacerdócio positivo há de naturalmente ganhar com digno cumprimento do seu ofício fundamental. No entanto, não sei se esta única base poderá proporcionar-lhe uma autoridade suficiente. Peço-vos, pois, que caracterizeis diretamente os diversos meios gerais de que o sacerdócio dispõe para fazer prevalecer sempre, tanto quanto possível, a harmonia universal. O SACERDOTE - Todos esses meios devem resultar, minha filha, do conjunto da educação. A fim de apreciá-los melhor, cumpre considerar que o noviciado positivo se termina por um ano inteiramente consagrado à moral. Esta instrução final será sempre dividida em duas partes iguais, uma teórica e outra prática. Na primeira todas as leis essenciais de nossa natureza ficarão solidamente fundadas sobre o conjunto das noções relativas ao mundo, à vida e à sociedade. Esta base permitirá estabelecer de modo definitivo verdadeiras demonstrações para as regras de conduta peculiares a cada caso, pessoal, doméstico ou cívico. Aí serão especificados todos os deveres de cada um dos quatro poderes necessários à providência humana. Estas determinações finais, que resumem a educação positiva, comportam uma grande eficácia, em virtude da disposição moral dos iniciados, até então preservados dos desvios inerentes à vida ativa. O conjunto destas regras práticas oferece a cada um o duplo destino de dirigir sua própria conduta e de julgar a alheia. Esta segunda aplicação acha-se mais garantida do que a primeira contra as paixões perturbadoras, que raras vezes nos impedem de apreciar os erros dos outros, por maior que seja a cegueira que elas nos inspirem em relação aos nossos. Ninguém está menos disposto do que o egoísta a tolerar o egoísmo, que por toda parte lhe suscita concorrentes intratáveis. É mister, assim, distinguir dois modos gerais na disciplina espiritual, um direto, outro indireto. O sacerdócio esforça-se principalmente por modificar o culpado, agindo primeiro sobre seu coração, depois sobre seu espírito. Este modo é ao mesmo tempo o mais puro e o mais eficaz, embora o menos aparente. Será sempre o único plenamente conforme com a natureza do poder espiritual, que deve disciplinar constantemente as vontades pela persuasão e pela convicção, sem nenhuma influência coercitiva. Mas seu emprego prolongado com prudência é muitas vezes insuficiente. Então o sacerdote, não podendo retificar as tendências interiores, procede indiretamente contra elas, invocando a opinião exterior. Sem converter o culpado, ele o contém pelo juízo dos outros. Nunca se poderá contestar a plena legitimidade deste meio indireto, que assenta sempre sobre uma simples apreciação de cada conduta. Ninguém poderá impedir tal juízo, para o qual cada um concorre em relação aos outros, e que repousa sobre uma doutrina livremente aceita por todos. Entretanto, o culpado que não reconhece sua falta, ou cuja vontade não mudou, sofre assim a pressão de uma força verdadeiramente coercitiva. Não pode reclamar, porém, contra ela, porque tal força conserva-se puramente moral. Se os outros se abstivessem de julgar, seriam eles então os oprimidos, e sem o terem merecido por forma alguma. Todavia, apesar da evidente legitimidade deste modo indireto, só se deverá recorrer a ele depois de ter esgotado os meios diretos. Quando se torna indispensável, ele comporta sucessivamente três graus gerais. O sacerdócio emprega primeiro a simples admoestação doméstica, perante os parentes e amigos convocados especialmente; depois, a censura pública, proclamada no templo da Humanidade; enfim, a excomunhão social, temporária ou perpétua. Sem exorbitar de sua justa autoridade, o poder espiritual pode chegar, com efeito, até a pronunciar, em nome do Grande Ser, a indignidade radical de um falso servidor, incapaz, portanto, de partilhar dos deveres e dos benefícios da associação humana. Se, porém, o sacerdócio abusasse de semelhante atribuição, quer para satisfazer injustas animosidades, quer mesmo por um zelo obcecado e importuno, logo receberia o castigo. Com efeito, como toda a eficácia deste modo assenta na livre sanção do público, a neutralidade deste faria malograr o golpe, que tenderia, então, a desacreditar seus autores. Quando a opinião geral auxilia suficientemente a reprovação sacerdotal, esta disciplina espiritual comporta uma eficácia de que o passado não pode oferecer nenhuma medida, porque tal concurso ainda não pode ser instituído plenamente por falta de educação positiva. Então o culpado, por mais rico ou poderoso que seja, ver-se-á algumas vezes, sem experimentar nenhuma perda material, gradualmente abandonado pelos seus subordinados, pelos seus fâmulos, e até pelos seus parentes mais próximos. Apesar de sua fortuna, ele poderá, nos casos extremos, ficar reduzido a prover diretamente à sua própria subsistência, porque ninguém quererá servi-lo, Se bem que tenha a liberdade de expatriar-se, ele só escapará à reprovação do sacerdócio universal refugiando-se nas populações que ainda forem alheias à fé positiva, que há de estender-se finalmente a todo o planeta humano. Este desenvolvimento extremo da disciplina religiosa deve felizmente permanecer sempre excepcional. Porém, sua apreciação distinta é agora indispensável para nos indicar melhor a eficácia de semelhante regime. A MULHER - Por maior que seja esse poder moral, eu dificilmente conceberia, meu pai, que ele sempre dispensasse todo recurso à compreensão material, quer sobre os bens, quer sobre as pessoas. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, a legislação propriamente dita ficará sempre necessária, para suprir a insuficiência da simples moral quanto às necessidades sociais mais urgentes. A consciência e a opinião seriam amiúde impotentes contra as infrações diárias, se a força temporal não aplicasse repressões físicas aos casos mais grosseiros. Além destes desvios frequentes, porém leves, devidos sobretudo à inércia dos bons instintos, a mesma garantia convém ainda mais às graves aberrações que resultam diretamente do predomínio dos maus pendores. Existem, com efeito, em nossa espécie, como nas outras, individualidades radicalmente viciosas, que não comportam ou não merecem nenhuma verdadeira correção. Relativamente a estas organizações excepcionais, a defesa social não deixará nunca de ser levada até a destruição solene de cada órgão vicioso, quando a indignidade for suficientemente verificada por atos decisivos. Só uma falsa filantropia pode conduzir a prodigalizar aos malvados uma comiseração e uma solicitude que seriam mais bem empregadas em favor de tantas vítimas honestas de nossas imperfeições sociais. Mas, sem que a morte jurídica e, com mais forte razão, a confiscação total ou parcial possam nunca cessar inteiramente, seu emprego há de tornar-se cada vez menos frequente à medida que a Humanidade se desenvolver. O surto contínuo do sentimento, da inteligência e da atividade cada vez mais a fazer prevalecer a disciplina espiritual sobre a repressão temporal, embora esta se conserve sempre indispensável. A MULHER - Esta vista geral do regime humano parece-me, meu pai, não tomar em consideração os casos em que a prevaricação moral provier do próprio sacerdócio. O SACERDOTE - Então, minha filha, a disciplina espiritual segue uma marcha semelhante, se bem que com menos regularidade. Porquanto, a moral universal demonstra os deveres do sacerdócio tanto como os de qualquer classe, e até os faz sobressair mais, visto sua importância preponderante. A censura pública tende, aliás, a dirigir-se de preferência contra esses juízes universais, secretamente odiados pelos patrícios, friamente respeitados pelos proletários, e que de ordinário só despertam profundas simpatias entre as mulheres. Enfim, a natureza sempre discutível da fé positiva não lhe permite suscitar prestígios capazes de impedir uma crítica que se tenha tornado verdadeiramente indispensável. Por maior que seja a veneração que habitualmente circunde o sacerdócio da Humanidade, ela não poderá resultar nunca senão do suficiente cumprimento de um ofício bem definido. As condições intelectuais e morais que o poder espiritual impõe a todos em nome da fé comum podem ser, com a mesma razão, voltadas contra ele, quando as infringir. Se, segundo a hipótese mais frequente, a prevaricação for apenas parcial, a disciplina interior do sacerdócio bastará para acudir ao mal. Mas, em caso de negligência, a reparação pode sempre ser livremente provocada por um crente qualquer. A plenitude e a precisão que caracterizam a fé positiva permitem que qualquer um exerça espontaneamente, sob sua responsabilidade própria, esse sacerdócio irregular, que se torna eficaz quando a opinião o sanciona. Enfim, se a corrupção se tornasse geral entre os nossos padres, um novo clero não tardaria em surgir de acordo com os votos públicos, preenchendo melhor as condições impostas por uma doutrina inalterável, sempre superior aos seus órgãos quaisquer. A MULHER - Sou assim levada, meu pai, a pedir-vos que completeis esta apreciação geral indicando a constituição peculiar ao sacerdócio positivo. O SACERDOTE - Facilmente sentireis, minha filha, que o destino fundamental de nosso sacerdócio exige, como primeira condição, uma renúncia completa ao domínio temporal, e mesmo à simples riqueza. É o compromisso inicial que todo aspirante ao sacerdócio deve contrair solenemente ao receber, aos vinte e oito anos, o sacramento de destinação. Nossos padres não herdam nem de suas famílias, quer para se preservarem dos desvios temporais, quer para deixarem os capitais aos que podem utilizá-los. A classe contemplativa deve ser sempre coletivamente sustentada pela classe ativa; primeiro, mediante os livres subsídios dos crentes, depois por intermédio do tesouro público, quando a fé torna-se unânime. Ela não deve, pois, possuir coisa alguma em particular, nem terras, nem casas, nem mesmo rendimentos quaisquer: salvo seu orçamento anual, sempre fixado pelo poder temporal. As vistas gerais e os sentimentos generosos que devem sempre distinguir o sacerdócio são profundamente incompatíveis com as ideias de detalhe e com as disposições orgulhosas inerentes a todo domínio prático. Para que alguém se limite a aconselhar, é necessário que não possa nunca mandar, nem pela riqueza: de outro modo nossa miserável natureza fica disposta a substituir amiúde a força às demonstrações. Esta condição sacerdotal foi sentida até o mais sublime exagero pelo admirável santo que tentou em vão, no século XIII, regenerar o catolicismo exausto. (Refere-se a São Francisco de Assis (1182-1226). É oportuno observar aqui que a lei religiosa que obriga o sacerdote positivista a desistir de toda herança só será aplicável rigorosamente no estado normal, ou quando o subsídio positivista garantir plenamente a existência material do novo clero). Prescrevendo, porém, aos seus discípulos uma pobreza absoluta, que eles em breve iludiram, esqueceu ele que os distraía assim do seu ofício pelos cuidados diários de sua existência material. A fim de caracterizar melhor a proporção conveniente, creio dever indicar-vos os ordenados anuais que competem aos diversos graus do sacerdócio, adaptando-os à taxa atual das despesas usuais na população francesa, média, a este respeito, entre os diferentes povos ocidentais. Esta indicação sumária vos mostrará, por outro lado, a organização interior do clero positivo, já esboçada na explicação do culto. (Os dados estatísticos e numéricos apresentados adiante, e em outros lugares desta e de outras obras de Auguste Comte, têm apenas por fim, como ele próprio o declarou, "tornar as questões assaz precisas, embora esses dados não possam ainda ser exatamente determinados”). Nosso sacerdócio compõe-se, em geral; de três ordens sucessivas: os aspirantes, admitidos aos vinte e oito anos; os vigários ou suplentes, aos trinta e cinco; e os sacerdotes propriamente ditos, aos quarenta e dois. Conquanto OS primeiros, cujo número é naturalmente ilimitado, sejam já considerados como dotados de uma verdadeira vocação sacerdotal, eles não pertencem ainda ao poder espiritual, do qual não exercem nenhuma função. Por isso sua livre desistência de toda herança é puramente provisória, e do mesmo modo seu ordenado, que fixamos em três mil francos. Sem residência sacerdotal, eles são contudo regularmente vigiados em seus trabalhos e costumes. Os vigários pertencem irrevogavelmente ao sacerdócio, posto que não exerçam ainda senão as funções de ensino e prédica, salvo delegação especial em caso urgente. Além da renúncia definitiva aos bens temporais, sua admissão exige um digno casamento. Eles residem com as suas famílias, porém em separado dos sacerdotes, no presbitério filosófico adjacente a cada templo da Humanidade, paralelamente à escola positiva. A classe que dirige em todas as outras a reação do coração sobre o espírito deve fornecer por sua vez o melhor tipo masculino do surto moral, mediante um pleno desenvolvimento das afeições domésticas, sem as quais o amor universal se torna ilusório. Embora o casamento fique facultativo para os cidadãos ordinários, ele torna-se obrigatório para os padres, cujo ofício não pode ser dignamente preenchido sem a influência contínua, aliás objetiva ou subjetiva, da mulher sobre o homem. A fim de melhor experimentá-los a este respeito, a religião positiva impõe já esta condição aos simples vigários. Este segundo grau, que conduz sempre ao terceiro, salvo malogro excepcional, proporciona um ordenado anual de seis mil francos. Durante os sete anos que o separam do sacerdócio completo, cada vigário professou todos os graus enciclopédicos e exercitou suficientemente seus talentos de prédica. Torna-se, então um verdadeiro sacerdote, e pode preencher, nas famílias ou nas cidades, o tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador, que socialmente caracteriza o clero positivo. Neste estado definitivo, seu ordenado eleva-se a doze mil francos, além das indenizações pelas suas viagens de inspeção diocesana. Cada presbitério filosófico compõe-se de sete sacerdotes e três vigários, cujas residências podem sempre mudar, se bem que estas remoções nunca devam ter lugar senão por motivos verdadeiramente graves. O número destes colégios sacerdotais é de dois mil em todo o Ocidente: o que faz corresponder um funcionário espiritual para seis mil habitantes; de onde cem mil para a Terra inteira. Por mais fraca que pareça semelhante proporção, ela bastará realmente para todos os serviços, em virtude da natureza de uma doutrina que raramente exige explicações sistemáticas, quase sempre substituídas pela intervenção espontânea das mulheres e dos proletários. Importa restringir, tanto quanto possível, a corporação sacerdotal, quer a fim de evitar despesas supérfluas, quer, sobretudo, para que o clero seja mais bem composto. A MULHER - Em semelhante indicação não vejo, meu pai, a cabeça que deve reger esse vasto corpo. O SACERDOTE - Posto que sua doutrina e seu ofício tendam, minha filha, a dirigi-lo espontaneamente, sob a assistência da opinião pública, ele exige, com efeito, um chefe geral. Este poder supremo pertence ao Grande Sacerdote da Humanidade, que naturalmente há de residir na metrópole parisiense do Ocidente regenerado. (Não esquecer o que já ficou dito sobre a presidência provisória de Paris como capital religiosa). Seu ordenado pessoal é o quíntuplo do ordenado dos padres ordinários, além das despesas materiais que há de exigir seu imenso serviço. Ele governa por si todo o clero positivo, instituindo, removendo, e mesmo demitindo sob sua própria responsabilidade moral, os membros quaisquer do sacerdócio. Sua principal solicitude consiste em manter a integridade do caráter sacerdotal contra as diversas seduções temporais. Todo padre servil ou sedicioso, que pretender o domínio político lisonjeando o patriciado ou proletariado, será finalmente excluído do sacerdócio, a menos que não passe a figurar excepcionalmente entre os pensionistas, se tiver bastante mérito teórico. Para o conjunto de suas atribuições, o chefe supremo do positivismo ocidental é assistido por quatro superiores nacionais (Depois Auguste Comte estabeleceu sete superiores nacionais, em vez de quatro, dos quais três são destinados às expansões coloniais do Ocidente. "Mas este número ainda aumentará à medida que a religião positiva se for aproximando de sua universalidade normal. Este eminente sacerdócio oferecerá, pois, quarenta e nove membros quando a raça humana estiver completamente regenerada. Além de seu ofício habitual, eles deverão, após a morte ou o retiro do pontífice, controlar ou retificar a escolha que ele tiver livremente feito de seu sucessor, a respeito do qual consultarão, se for necessário, o conjunto dos decanos subordinados a cada um deles”), cujo ordenado é metade do seu. Regem eles respectivamente, sob sua direção, as quatro classes de igrejas, italianas, espanholas, britânicas e germânicas. Quanto à França, o Sumo Pontífice serve aí de superior nacional, se bem que ele possa provir de qualquer das cinco populações positivistas. Sua substituição normal efetua-se, como na ordem temporal, designando ele próprio seu sucessor; mas neste caso sua escolha deverá ser sancionada pelo assentimento unânime dos quatro chefes parciais, e, mesmo em caso de divergência, segundo o voto dos dois mil decanos presbiteriais. DÉCIMA CONFERÊNCIA REGIME PRIVADO A MULHER - Ao terminarmos, nossa última conversação, não vos perguntei, meu pai, qual seria o objeto próprio de cada uma das outras conferências sobre o regime. Eu sentia assaz que as duas metades do domínio prático de nossa religião haviam de oferecer as mesmas divisões essenciais, sempre tiradas da existência que elas devem respectivamente idealizar e guiar. O estudo do culto indicava-me, pois, o plano que convém ao do regime, primeiro privado, depois público. Em relação ao que hoje nos ocupa, também que ides aí distinguir semelhantemente a existência pessoal e da vida doméstica. O SACERDOTE - Quanto à primeira, que se toma a base normal de toda a conduta humana, a regeneração positiva consiste sobretudo, minha filha, em instituí-la socialmente. Esta transformação radical, sempre vedada ao teologismo, sobretudo monotéico, mas constantemente pressentida e reclamada cada vez mais pelo instinto público, não resulta agora de nenhum exagero sentimental. Ela assenta unicamente sobre uma exata apreciação da realidade, que, na ordem humana, mais sintética que qualquer outra, diz respeito ao conjunto primeiro do que às partes. Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes. Tudo em nós pertence, portanto, à Humanidade, porque tudo nos vem dela: vida, fortuna, talento, instrução, ternura, energia etc. Um poeta, que nunca foi suspeito de tendência subversiva, fez proclamar por Tito esta sentença decisiva, digna na verdade de semelhante órgão. Só che tutto e di tutti; e che nè pure Di nascer meritò chi d'esser nato Crede solo per se. (Metastásio, Clemência de Tito (drama), ato 2°., cena 10ª.: Sei que tudo é de todos; e que nem sequer foi digno de nascer quem acredita que nasceu só para si). Pressentimentos análogos poderiam ser encontrados nas mais antigas composições. Assim, o positivismo, reduzindo toda a moral humana a viver para outrem, limita-se realmente a sistematizar o instituto universal, depois de ter erguido o espírito teórico até o ponto de vista social, inacessível às sínteses teológicas ou metafísicas. O conjunto da educação positiva, tanto intelectual como afetiva, nos tornará profundamente familiar nossa inteira dependência para com a Humanidade, de maneira a fazer-nos dignamente sentir nosso necessário destino ao seu serviço contínuo. Na idade preparatória, incapaz de uma atividade útil, cada um de nós confessa sua própria impotência ante suas principais necessidades, cuja satisfação habitual reconhecemos que nos vem de alhures. Primeiro acreditamos que só devemos este auxílio à nossa família, que nos sustenta, cuida, instrui etc. Não tardamos, porém, em distinguir uma providência mais elevada, da qual nossa mãe é, em relação a cada um de nós, senão o ministro especial e o melhor representante. A instituição da linguagem bastaria por si só para revelar-nos essa providência. Porquanto, semelhante construção excede todo poder individual e resulta unicamente do concurso acumulado de todas as gerações humanas, apesar da diversidade dos idiomas. Por outro lado, o homem menos favorecido sente-se continuamente devedor à Humanidade de uma multidão de outros tesouros materiais, intelectuais, sociais e mesmo morais. Quando este sentimento é assaz nítido e vivo na idade preparatória, ele pode resistir depois aos sofismas apaixonados que suscita a vida real, teórica ou prática. Nossos esforços habituais tendem então a fazer-nos desconhecer a verdadeira providência, exagerando nosso valor pessoal. Mas a reflexão pode sempre dissipar esta ilusão ingrata naqueles que foram convenientemente educados. Porquanto a estes basta notar que o próprio bom êxito de seus trabalhos quaisquer depende sobretudo da imensa cooperação que seu obcecado orgulho esquece. O homem mais hábil e de melhor atividade não pode nunca retribuir senão uma porção mínima do que recebe. Ele continua, como na sua infância, a ser alimentado, protegido, desenvolvido etc. pela Humanidade. Somente os ministros desta mudaram de modo a não serem mais distintamente apreciáveis. Em vez de tudo receber dela por intermédio dos pais, ela transmite-lhe, então, seus benefícios por uma multidão de agentes indiretos, cuja maior parte ele nunca virá a conhecer. Viver para outrem se torna, pois, para cada um de nós, o dever contínuo que resulta rigorosamente deste fato irrecusável: viver por outrem. Tal é, sem nenhuma exaltação simpática, o resultado necessário de uma exata apreciação da realidade, filosoficamente apanhada em seu conjunto. A MULHER - Muito folgo, meu pai, de ver assim consagrada sistematicamente uma disposição que eu me exprobrei algumas vezes a mim própria, atribuindo-a ao exagero de meus sentimentos. Antes de ser positivista, eu costumava dizer: "Que prazeres podem exceder os da dedicação?" (Pensamento de Clotilde de Vaux, em sua novela Lucie, publicada primeiro no Nacional, em 20 e 21 de junho de 1845, e depois reproduzida pelo Mestre no 1º volume de sua Política Positiva). Agora saberei defender este santo princípio contra as zombarias dos egoístas, e talvez despertar-lhes emoções tais que os impossibilitem de duvidar dele. O SACERDOTE - Espontaneamente pressentistes, minha filha, o principal caráter do positivismo. Consiste ele em resumo, enfim, numa mesma fórmula, a lei do dever e a felicidade, até então proclamadas inconciliáveis por todas as doutrinas, embora o instinto público aspirasse sempre a combiná-las. A concordância necessária de ambas resulta diretamente da existência natural das inclinações benévolas, cientificamente demonstrada no século passado pelo conjunto dos animais, em que as partes respectivas do coração e do espírito são mais bem apreciáveis. Além de que nossa harmonia moral repousa exclusivamente sobre o altruísmo, só este pode proporcionar-nos também a maior intensidade de vida. Esses entes degradados, que hoje não aspiram senão a viver, teriam tentações de renunciar ao seu brutal egoísmo se uma só vez tivessem provado suficientemente o que vós tão bem chamais os prazeres da dedicação. Eles compreendem, então, que viver para outrem fornece o único meio de desenvolver livremente toda a existência humana, estendendo-a simultaneamente ao mais vasto presente, ao mais antigo passado, e mesmo ao mais remoto futuro. Os instintos simpáticos são os únicos que comportam um surto inalterável, porque cada indivíduo é aí secundado por todos os outros, que comprimem, pelo contrário, suas tendências pessoais. Eis aí como a felicidade coincidirá necessariamente com o dever. Sem dúvida, a bela definição da virtude, por um moralista do século XVIII, como um esforço sobre si mesmo em favor dos outros, não deixará nunca de ser aplicável. Nossa imperfeita natureza há de sempre precisar, de fato, de um verdadeiro esforço para subordinar à sociabilidade essa personalidade que nossas condições de existência excitam continuamente. Mas quando esse triunfo é assim obtido, ele tende espontaneamente, além da força do hábito, a consolidar-se e desenvolver-se, em virtude do encanto incomparável inerente às emoções e aos atos simpáticos. Sentimos, então, que a verdadeira felicidade resulta sobretudo de uma digna submissão, única base durável de uma nobre e vasta atividade. Longe de deplorar o conjunto das fatalidades que nos dominam, esforçamo-nos por corroborar a ordem correspondente, impondo-nos regras artificiais, que melhor combatam nosso egoísmo, fonte principal do infortúnio humano. Quando estas instituições são estabelecidas livremente, reconhece-se em breve, segundo o admirável preceito de Descartes, que elas merecem tanto respeito como as leis involuntárias, cuja eficácia moral não é tão grande. A MULHER - Semelhante apreciação da natureza humana faz-me compreender enfim, meu pai, a possibilidade de tornar essencialmente altruístas mesmo as regras relativas à existência pessoal, sempre motivadas até aqui por uma prudência egoísta. A sabedoria antiga resumiu a moral neste preceito: Tratar os outros como se desejaria ser por eles tratado. Por mais preciosa que então fosse esta prescrição geral, limitava-se ela a regular um cálculo puramente pessoal. Este caráter encontra-se também no fundo da grande fórmula católica: Amar seu próximo como a si mesmo. Não só o egoísmo é assim sancionado em vez de ser refreado, mas, ainda, é diretamente excitado pelo motivo em que se funda essa regra, pelo amor de Deus, sem nenhuma simpatia humana, além de que semelhante amor reduzia-se ordinariamente ao temor. Todavia, comparando este princípio ao anterior, reconhece-se nele um grande progresso. Porquanto o primeiro limitava-se aos atos, ao passo que o segundo penetra até os sentimentos que dirigem aqueles. No entanto, este aperfeiçoamento moral fica muito incompleto, enquanto o amor teológico conserva-lhe sua mácula egoísta. Só o positivismo é ao mesmo tempo digno e verdadeiro, quando nos convida a viver para outrem. Esta fórmula definitiva da moral humana não consagra diretamente senão os pendores benévolos, fonte comum da felicidade e do dever. Porém, ela sanciona implicitamente os instintos pessoais como condições necessárias de nossa existência, contanto que se subordinem aos primeiros. Sob esta única reserva, a satisfação contínua deles nos é até prescrita, a fim de bem adaptarmo-nos ao serviço real da Humanidade, à qual pertencemos inteiramente. Compreendo assim a profunda reprovação que vos vai lançar sempre contra o suicídio, que até então só me parecera condenado pelo catolicismo. Com efeito, devemos ainda menos dispor arbitrariamente de nossa vida do que de nossa fortuna ou de nossos talentos quaisquer; pois que ela é mais preciosa à Humanidade, de quem a recebemos. Porém, pelo mesmo princípio, a religião positiva condena também, se bem que amiúde provenha de motivos respeitáveis, essa espécie de suicídio crônico, pelo menos social, que o regime católico acoroçoou com demasiada frequência. Lembro-me de que o abuso diário da disciplina corporal tinha por tal forma anulado os solitários da Tebaida, que os seus abades viram-se afinal obrigados a permitir que eles rezassem sentados, ou mesmo deitados, por não poderem ficar muito tempo de joelhos. O SACERDOTE - Além de nobilitarmos a justa satisfação dos instintos pessoais, subordinando-os sempre ao seu destino social, notai, minha filha, que esta subordinação necessária torna-se aí a única base possível de prescrições verdadeiramente inabaláveis. Sem este princípio único, as regras mais insignificantes relativas à existência pessoal conservam-se necessariamente flutuantes, a menos de referi-las arbitrariamente aos decretos sobrenaturais, que não comportam senão uma validade temporária e parcial, doravante exausta. Quando nossa sobriedade apenas baseia-se na prudência pessoal, fica amiúde exposta aos sofismas da gula, que se tornam mesmo irrefutáveis em relação a muitos indivíduos, capazes de suportar por muito tempo as orgias com uma verdadeira impunidade corporal. Mas a apreciação social dissipa logo toda incerteza, prescrevendo a cada um uma alimentação quase sempre menos abundante do que a que poderia ser sem perigo material para ele. Com efeito, indo além da medida muito moderada que exige o nosso serviço da Família, da Pátria e da Humanidade, consumimos assim provisões que a equidade moral destinava a outros. Ao mesmo tempo, a reação cerebral de semelhante regime corporal tende necessariamente a degradar nossa fraca inteligência, científica, estética ou técnica. As imagens se tornam habitualmente mais confusas, a indução e a dedução mais difíceis e menos rápidas: tudo fica atenuado, inclusive os talentos de expressão. Mas a reação moral da mínima intemperança diária é que constitui seu principal perigo, por ser menos evitável e mais corruptora. Porquanto, estendendo assim o mais pessoal de todos os atos além do que exige nossa verdadeira conservação, nós cultivamos, tanto quanto possível, o egoísmo à custa do altruísmo; pois que vencemos até nossa simpatia involuntária por aqueles que então carecem de alimentos. Ademais, a íntima vizinhança cerebral dos diversos instintos egoístas propaga em breve a todos os outros a forte excitação, mesmo passageira, de qualquer um deles. O admirável pintor da natureza humana a quem devemos o incomparável poema da Imitação sentiu profundamente esta conexão normal, quando nos diz: Frena gulam, et omnem carnis inclinationem facilius frenabis (Imitação de Cristo, Livro I, capítulo XIX: "Refreia a gula e mais facilmente refrearás toda inclinação carnal"). Se relerdes cotidianamente esse tesouro inesgotável da verdadeira sabedoria, substituindo nele Deus pela Humanidade, não tardareis em sentir que esta transformação final muito consolida aí semelhante preceito, como a maior parte dos outros. A sua restrição do instinto nutritivo ainda está muito longe da extensão sistemática que gradualmente lhe há de proporcionar a religião positiva. Porquanto nossa sensualidade sofística continua a erigir em necessidades essenciais muitas excitações materiais que são antes nocivas que úteis. Tal é, sobretudo, o uso do vinho, cuja proibição muçulmana conservou-se sincera e geral durante os séculos em que o islamismo desenvolveu melhor o gênero de atividade temporal para o qual julgamos essa bebida especialmente indispensável. (Eis aqui os trechos proibitivos do Alcorão: "Eles te interrogarão sobre o vinho e o jogo. Dize-lhes: Em ambos existem mal e vantagens para os homens, porém o mal excede as vantagens que eles proporcionam". "Oh, crentes! o vinho, os jogos de azar, as estátuas e a sorte das flechas são uma abominação inventada por Satã; abstende-vos deles e sereis felizes,"). Perscrutando dignamente os admiráveis desígnios do grande Maomé, reconhece-se logo que ele quis assim aperfeiçoar radicalmente o conjunto da natureza humana, primeiro no indivíduo e depois na espécie, em virtude da lei da hereditariedade. Esta nobre tentativa não malogrou realmente, como também não abortaram todos os outros esforços peculiares ao monoteísmo da Idade Média, tanto do Oriente, como do Ocidente, em favor de nosso aperfeiçoamento essencial. Somente aquela, como estes, carece de ser sistematizada pelo positivismo, que a saberá consolidar e desenvolver, sem comprometer nosso surto industrial. Desde hoje, esta salutar abstinência, tão comum já em vosso sexo, pelo menos no sul, pode gradualmente estender-se a todos os órgãos avançados do progresso humano. À medida que o positivismo prevalecer, as mulheres e os sacerdotes renunciarão livremente, em todo o Ocidente, salvo os casos excepcionais, a esta excitação habitual, tanto mais funesta quanto ela conduz com frequência a muitos outros abusos. A MULHER - Compreendo, meu pai, por que tendes insistido tanto sobre a disciplina positiva do instinto nutritivo. Na verdade, além de seu predomínio direto e das suas reações indiretas, ela constitui aqui o tipo suficiente de todas as outras repressões normais dos apetites egoístas. O conjunto destas regras sistematiza, em ambos os sexos, a verdadeira pureza, primeira base de uma moralidade inabalável. Com efeito, esta preciosa expressão não deve ficar limitada aos dois órgãos contíguos que determinam a conservação da espécie e do indivíduo. Devemos também estendê-la ao conjunto dos sete instintos pessoais, que temos sempre que purificar suficientemente, mediante sua subordinação normal ao serviço contínuo da Humanidade. O SACERDOTE - Este grande princípio, minha filha, não cessará nunca de superar a este respeito todas as dúvidas sinceras, e de resolver mesmo os mais capciosos sofismas. O coração do verdadeiro positivista deve, no interior, repelir sempre as vontades arbitrárias, como seu espírito as afasta no exterior. Nossa humilde deusa está, com efeito, isenta dos vários caprichos peculiares ao seu precursor todo-poderoso. Seus atos quaisquer seguem leis apreciáveis, que o estudo positivo de sua natureza e de seu destino nos revela cada vez mais. Subordinando-nos tanto quanto possível a essas leis, faremos sem cessar progressos inexauríveis na conquista da paz, da felicidade e da dignidade. A MULHER - O conjunto destas indicações parece-me, meu pai, caracterizar assaz a constituição positiva do regime pessoal. De acordo com o quadro cerebral, poder-se-ia realizar, para cada um dos instintos egoístas, um estudo moral equivalente àquele de que acaba de ser o objeto principal deles, a fim de se determinarem as repressões convenientes. Quanto aos meios de desenvolver as diversas inclinações simpáticas, nosso culto já indica os que não resultam do exercício direto. Todas estas explicações especiais excederiam os limites da atual exposição, e até a desviariam de seu principal destino. Quando a fé positiva houver prevalecido, chegará o tempo de compor um novo Catecismo mais análogo ao dos católicos, para detalhar essas diferentes regras práticas, cujas bases gerais serão já familiares aos verdadeiros crentes. (Penso como vós a respeito da utilidade de um manual positivista mais popular e menos sistemático que o nosso Catecismo. Mas ele só pode dimanar de uma mulher. Já o teríamos se eu não tivesse sido objetivamente privado. há dez anos. da colega angélica que regenerou meu coração e por conseguinte completou o desenvolvimento de meu espírito. (Lettres à des Positivistes Anglais. p. 84.)). Mas este Catecismo inicial é, pelo contrário, destinado sobretudo a assentar esses fundamentos essenciais, não considerando as aplicações senão enquanto indispensáveis ao estabelecimento dos princípios. Rogo-vos, pois, que, sem insistirdes mais na moral pessoal, passeis agora à segunda parte do regime privado, caracterizando a regeneração positiva de existência doméstica. O SACERDOTE - Consiste ela essencialmente, minha filha, na constituição altruísta do casamento humano, instituído até aqui segundo um princípio puramente egoísta, como satisfação legítima dos apetites sexuais, tendente à reprodução da espécie. Esta brutal apreciação teve de prevalecer sistematicamente, enquanto as doutrinas dominantes desconheceram os pensadores benévolos. Mas o instinto público nunca cessou de protestar contra ela, e suscitou sempre impulsos empíricos cada vez mais fortes, de que resultaram os aperfeiçoamentos sucessivos da instituição conjugal. Só o positivismo vem estabelecer enfim, sob este aspecto fundamental, uma digna concordância entre a teoria e a prática, apoiando-se na principal descoberta da ciência moderna, quanto à existência natural dos instintos altruístas. Esta grande noção, cujo alcance é ainda tão pouco compreendido, conduz logo a regenerar o casamento humano, concebendo-o doravante como destinado sobretudo ao aperfeiçoamento mútuo dos dois sexos, abstraído de toda sensualidade. Ela demonstra diretamente a dupla preeminência afetiva da mulher, pela menor intensidade dos pendores pessoais, sobretudo dos mais grosseiros, e pela energia superior das inclinações simpáticas. Daí resulta a teoria positiva do casamento, em que vosso sexo melhora o meu, disciplinando o impulso carnal sem o qual a inferioridade moral do homem não lhe permitiria quase nunca uma suficiente ternura. Porém, esta relação fundamental é felizmente secundada por todos os outros contrastes cerebrais dos dois sexos. A superioridade masculina é incontestável em tudo o que diz respeito ao caráter propriamente dito, fonte principal do comando. Quanto à inteligência, ela oferece, no homem, mais força e extensão; na mulher, mais justeza e penetração. Tudo, pois, concorre para provar a eficácia mútua dessa união íntima, que constitui a mais perfeita das amizades embelezada por uma incomparável posse recíproca. Fora de semelhante laço, as rivalidades atuais ou possíveis impedem sempre a plenitude de confiança que só pode existir de um sexo em relação ao outro. Os apetites sexuais não têm aí outro destino senão produzir ou entreter, sobretudo no homem, os impulsos adequados a desenvolver a ternura. Mas para isso cumpre que as satisfações desses apetites permaneçam muito moderadas. De outra sorte, sua natureza profundamente egoísta, tende, pelo contrário, a estimular a personalidade, quase tanto como os excessos nutritivos, e amiúde mesmo com mais gravidade, porque a mulher é aí odiosamente sacrificada às brutalidades do homem. Quando meu sexo consegue ser bastante puro, como ordinariamente é o vosso, a ponto de a ternura poder surgir assaz nele sem essa excitação grosseira, a principal eficácia do casamento desenvolve-se muito melhor. Tal será o caso normal da casta união consagrada pelo nosso culto quanto aos casais incapazes de concorrerem dignamente para a propagação da espécie humana. Muitas moléstias se transmitem, e mesmo se agravam, pela hereditariedade; de sorte que milhares de crianças nascem fracas para pouco depois morrerem, sem que sua existência tenha nunca deixado de ser um fardo. Na civilização moderna, em que todos os nascimentos são igualmente protegidos, esses tristes resultados multiplicam-se mais do que entre os antigos, que destruíam a maior parte dos descendentes débeis. Se perscrutássemos suficientemente esta grande questão talvez achássemos que a quarta parte das populações ocidentais deveria sabiamente abster-se de toda procriação, para que tal função ficasse concentrada nos pares convenientemente dotados. Quando a propagação de nossa espécie merecer os mesmos cuidados que a das principais raças domésticas, há de se reconhecer a necessidade de assim regulá-la. Mas isso não pode resultar senão da livre instituição dos casamentos castos, de conformidade com a teoria positiva da união conjugal, em que as relações sexuais não são diretamente necessárias. Com efeito, a proibição legal do casamento, frequentes vezes invocada pelos médicos contra as moléstias hereditárias, ofereceria um remédio tão odioso quanto ilusório. Só a influência privada e pública da religião positiva é que pode determinar, a este respeito, resoluções que tanto carecem de eficácia como de dignidade quando não são plenamente voluntárias. Nestas uniões excepcionais, a verdadeira natureza do casamento se tomará mais bem apreciável quando as duas almas forem bem organizadas. Um amplo uso da adoção permitirá, mesmo neste caso, o surto dos outros afetos de família, aliviando, por outro lado, os casais especialmente votados à propagação. A MULHER - Esta teoria basta, meu pai, para caracterizar diretamente o casamento, abstraindo de seus resultados corporais, que nem sempre se realizam. O melhoramento moral do homem constitui, pois, a principal missão da mulher nessa incomparável união instituída para o aperfeiçoamento recíproco dos dois sexos. Quanto às funções da mãe, já vós as definistes como consistindo sobretudo em dirigir o conjunto da educação humana, a fim de que o coração aí prevaleça sempre sobre o espírito. Assim, em virtude da sucessão normal destes dois ofícios femininos, vosso sexo permanece sempre sob a providência afetiva do meu. Semelhante destino desde logo indica que o laço conjugal deve ser único e também indissolúvel, a fim de que as relações domésticas possam adquirir a plenitude e a fixidez que sua eficácia moral exige. Esta dupla condição é tão conforme a natureza humana que as uniões ilícitas tendem para ela espontaneamente. Acredito, porém, que o divórcio não deve ser inteiramente proibido. O SACERDOTE - Vós sabeis, minha filha, que Santo Agostinho, superando, pela sua própria razão, o gênio necessariamente absoluto de sua doutrina teológica, começa sua obra principal observando que o homicídio pode amiúde tomar-se desculpável, e algumas vezes louvável. O mesmo se pode dizer da mentira e de quase tudo o que merece uma reprovação geral. Estendendo, porém, esta exceção ao divórcio, cumpre não alterar a indissolubilidade fundamental do casamento. Verdadeiramente só existe um único caso em que a união conjugal deva ser legalmente dissolvida, e vem a ser quando um dos cônjuges é condenado a uma pena infamante qualquer, que o fere de morte social. Nas outras perturbações, a indignidade suficientemente prolongada pode somente determinar a ruptura moral do laço, o que produz uma separação pessoal, mas sem permitir um novo casamento. A religião positiva impõe ao inocente uma castidade compatível, aliás, com a mais profunda ternura. Ainda que esta condição lhe pareça rigorosa, deve ele aceitá-la, primeiro atendendo à ordem geral, e depois como uma justa consequência de seu primitivo erro. A MULHER - Já conheço, meu pai, a santa lei da viuvez eterna, pela qual o positivismo completa, enfim, a grande instituição do casamento. Meu sexo nunca objetará contra isso, e vós me ensinastes a refutar os diversos sofismas, mesmo científicos, que ainda poderiam dimanar do vosso. Sem tal complemento, a monogamia torna-se ilusória, pois que as novas núpcias produzem sempre uma poligamia subjetiva, a menos que a esposa anterior não seja esquecida, o que deve tranquilizar pouco a outra. Só o pensamento de tal mudança basta para alterar muito a união atual, em virtude de uma eventualidade sempre possível. É só pela segurança de uma inalterável perpetuidade que os laços íntimos podem adquirir a consistência e a plenitude indispensáveis à sua eficácia moral. A mais desprezível das seitas efêmeras geradas pela anarquia moderna parece-me ser aquela que quis erigir a inconstância em condição de felicidade, como a instabilidade das ocupações em meio de aperfeiçoamento. Li, na Política Positiva, uma observação que muito me impressionou este respeito: "Entre dois entes tão complexos e tão diversos como o homem e a mulher, a vida inteira não é demais para se conhecerem bem e se amarem dignamente". Longe de acoimar de ilusão a alta ideia que dois verdadeiros esposos formam amiúde um do outro, quase sempre tenho-a atribuído à apreciação mais profunda que só pode ser obtida por uma intimidade plena, que, aliás, desenvolve qualidades desconhecidas aos indiferentes. Deve-se mesmo considerar como muito honrosa para a nossa espécie essa grande estima que seus membros se inspiram mutuamente quando se estudam muito. Com efeito, só o ódio e a indiferença deveriam merecer a acusação de cegueira que uma apreciação superficial aplica ao amor. É necessário, portanto, julgar como plenamente conforme à natureza humana a instituição que prolonga além do túmulo a identificação de dois dignos esposos. Não há intimidade que possa ser comparada à deles; pois que, entre a mãe e o filho, a diferença de idade, e mesmo uma justa veneração, impedem sempre uma inteira harmonia. O SACERDOTE - Além disso, minha filha, a viuvez é o único meio de proporcionar à influência feminina sua principal eficácia. Porquanto, durante a vida objetiva, as relações sexuais alteram muito a reação simpática da esposa, mesclando a esse influxo uma grosseira personalidade. Eis aí por que a mãe permanece então nosso principal anjo da guarda. Os anjos não têm sexos, pois que são eternos. Mas, quando a existência subjetiva purificou a intimidade superior que distingue a esposa, esta se torna definitivamente nossa melhor providência moral. Um só ano de digno casamento basta para ministrar à vida mais longa uma fonte de felicidade e de aperfeiçoamento que o tempo desenvolve sem cessar, depurando-a sempre à medida que, esquecidas as imperfeições, as qualidades mais sobressaem. Assim, sem a união subjetiva que resulta da viuvez, suprimir-se-ia a ação moral da mulher sobre o homem justamente no momento em que devem surgir seus principais resultados, por efeito da plenitude e da pureza que tal influxo adquire pela morte. Quando este complemento do matrimônio for suficientemente apreciado, ele há de fornecer um dos melhores caracteres práticos da religião positiva, pela evidente incompatibilidade de semelhante instituição com o princípio teológico. A MULHER - Para acabar de compreender a constituição doméstica, falta-me, meu pai, conhecer suas condições materiais. O SACERDOTE - Elas resultam, minha filha, do destino moral e social dessa constituição doméstica. O duplo ofício fundamental da mulher, como mãe e como esposa, equivale, em relação à família, ao poder espiritual no Estado. Exige, portanto, a mesma isenção da vida ativa, e uma análoga desistência de todo comando. Esta dupla abstenção é ainda mais indispensável à mulher do que ao padre, a fim de conservar a preeminência afetiva onde reside seu verdadeiro mérito, menos suscetível que a superioridade mental de resistir aos impulsos práticos. Toda mulher deve, pois, ser cuidadosamente preservada do trabalho exterior, a fim de poder preencher dignamente sua santa missão. Voluntariamente encerrada no santuário doméstico, a mulher aí promove livremente o aperfeiçoamento moral de seu esposo e de seus filhos, cujas justas homenagens ela aí dignamente recebe. Semelhante constituição assenta materialmente sobre esta regra fundamental, que só o positivismo sistematizou, mas que sempre foi pressentida pelo instinto universal: O homem deve sustentar a mulher. Ela equivale à obrigação da classe ativa para com a classe contemplativa, salvo a diferença essencial quanto ao modo de execução. Para o sustento do sacerdócio, o dever fica puramente coletivo, e não pode tornar-se individual senão em casos muito excepcionais. É precisamente o inverso a respeito das mulheres, em virtude da diversidade das influências morais, domésticas num caso, e universais no outro. Sustentada primeiro pelo seu pai ou pelos seus irmãos, cada mulher é em seguida sustentada pelo seu esposo, ou pelos seus filhos. Na falta destes amparos especiais, a obrigação do sexo ativo para com o sexo afetivo torna-se geral, e o governo deve prover a isso, sob a inspiração do sacerdócio. Tal é a base material da verdadeira constituição doméstica. Porém, para o preenchimento desta condição necessita-se desde logo outra instituição, a renúncia das mulheres a toda herança. Esta livre deserdação é tão justificada quanto a dos padres já para prevenir uma influência corruptora, já a fim de concentrar os capitais humanos nas mãos dos que devem dirigir seu emprego. A riqueza é mesmo mais perigosa para vosso sexo do que para o sacerdócio, porque altera mais a preeminência moral do que a superioridade mental. Enfim, a deserdação feminina fornece o único meio de suprimir o uso dos dotes, tão pernicioso a tantas famílias, e diretamente contrário à verdadeira instituição do casamento. Então a união conjugal resultará de uma digna escolha, ampliada livremente a todas as classes, em virtude da uniformidade que a educação universal há de produzir entre elas, apesar das desigualdades necessárias do poder e da riqueza. Porém, a fim de que o conjunto destes motivos conserve toda a sua validade, é preciso que a deserdação feminina fique plenamente voluntária, sem nunca resultar de uma determinação legal. A MULHER - A religião positiva pouco custo terá, meu pai, em fazer prevalecer esta resolução entre as mulheres, quando a existência material delas estiver dignamente assegurada em virtude dos deveres privados garantidos pelas convicções públicas. Muitas vezes têm-se deplorado os caprichos que produz a riqueza ociosa nas que querem assim mandar em vez de amar. Mas a degradação moral tem-me parecido ainda maior quando a mulher se enriquece pelo seu próprio trabalho. A avidez contínua do lucro faz-lhe perder então aquela benevolência espontânea que o outro tipo conserva em meio de suas dissipações. Não podem existir piores chefes industriais do que as mulheres. O SACERDOTE - A fim de completar este apanhado geral da constituição doméstica peculiar ao positivismo, resta-me indicar-vos, minha filha, uma instituição indispensável para a inteira eficácia de semelhante renovação. Consiste ela no pleno desenvolvimento da faculdade de testar, agregando-se-lhe a livre adoção; mas sob a responsabilidade moral do chefe de família, sempre submetido ao digno exame do sacerdócio e do público. Na conferência seguinte vos assinalarei o alcance social desta dupla instituição, para remediar, tanto quanto possível, os principais inconvenientes que comporta a transmissão hereditária das propriedades materiais. Agora, porém, só deveis apreciar nela sua aptidão doméstica para purificar e consolidar todos os laços elementares, libertando-os dos ignóbeis votos que hoje os maculam. É o único meio de tornar o afeto dos filhos pelos pais, se não tão terno, ao mesmo tão nobre quanto o das mulheres pelos maridos. A amizade fraternal ficará, assim, mais bem garantida do que pela igualdade revolucionária das partilhas, ou mesmo do que segundo a subordinação feudal aos primogênitos. Entre os ricos, cada qual só esperará dos seus os auxílios materiais necessários à sua educação e à sua instalação social. Então todos se entregarão sem inquietação ao pleno desenvolvimento das melhores afeições. Se os pais não obtiverem filhos dignos, suprirão esta falta mediante criteriosas adoções. (Este quadro da família normal deve ser completado pelas seguintes indicações da Política Positiva (tomo IV, pp. 292-294): "Este preâmbulo permite explicar diretamente a sistematização da Família pela Pátria em nome da Humanidade, Devo começar esta exposição completando e retificando minhas indicações estáticas sobre o número normal dos elementos domésticos. Minha teoria da família os reduz a dois grupos, um formado do par fundamental, o outro do produto, ordinariamente tríplice, da união conjugal. Ora, esta constituição, suficiente, para a solidariedade, fica incompleta quanto à continuidade, que aí se limita a ligar o futuro ao presente, mas sem abarcar o passado. Para que este esteja também compreendido, a família positiva deve admitir outro par, composto dos pais do marido. Sem semelhante complemento, o estado normal ficaria, a este respeito, abaixo do modo em que a instituição dos anciãos colocou a existência preparatória. A família não ofereceria uma suficiente harmonia com a cidade, pois que o elemento feminino não manifesta aí senão o caráter moral do poder espiritual, cuja natureza intelectual só pode ser representada pela velhice. Estas duas fontes do ascendente religioso achando-se combinadas na mãe do esposo, ela se tomará a deusa da família positiva, quando o conjunto do regime final tiver dissipado por toda parte conflitos fundados sobre pretensões ilegítimas. Tão subjetiva como objetiva, a unidade doméstica assim constituída não consolidará menos os deveres materiais do que as condições morais, assegurando assaz a subsistência dos velhos para que eles renunciem livremente aos capitais que cessam de administrar. Semelhante complemento deve assinalar por toda parte sete membros à composição média da família positiva, assim formada de três elementos que representam respectivamente o passado, o presente e o futuro, desenvolvendo tanto a continuidade como a solidariedade. Mas esta constituição doméstica, que basta à massa popular, exige um novo suplemento nas classes dirigentes, sobretudo nas práticas, pela incorporação dos auxiliares completos e permanentes, instituídos no culto universal: Sejam quais forem as restrições reclamadas pelo luxo dos ricos, o serviço público ficaria gravemente comprometido se os patrícios, e mesmo os padres, se vissem tão obrigados como os proletários a satisfazer pelas suas próprias famílias os cuidados materiais de suas casas. A fonte invejosa das repugnâncias democráticas manifesta-se, a este respeito, pela sua inconsequência ordinária, que recusa aos ricos o que permite aos pobres, pois que os hábitos católicos consagraram os servidores do clero. Estas disposições anárquicas serão facilmente superadas pelo positivismo, que, sistematizando os costumes ocidentais, desenvolvidos nos povos preservados do protestantismo e do deísmo, santifica a domesticidade, de hoje em diante incorporada ao culto da Humanidade. À vista deste suplemento, as famílias serão ordinariamente compostas cada uma de dez membros, na dupla aristocracia que deve dirigir a existência normal; pois que a adjunção do elemento doméstico não seria digna e estável se o serviço obrigasse a renunciar aos laços principais. Quando a existência dos trabalhadores estiver assegurada por toda parte, nenhum rico poderá mais encontrar, salvo raras exceções, um auxiliar livremente separado de sua mulher e filho, tão apropriados, aliás, a assisti-lo em relação aos outros como a si mesmo. Entre as famílias patrícias, cumpre dobrar esta adjunção de três membros, que basta para o clero. Porquanto, além das exigências de uma ostentação muito ligada ao mando para que os costumes normais devam e possam extingui-la, um serviço mais vasto e mais complexo exige semelhante acréscimo, que aliás unirá mais o patriciado ao proletariado. Assim a família positiva, ordinariamente composta de sete membros, compreende dez ou treze entre os chefes teóricos ou práticos, sem que os costumes e as situações comportem habitualmente uma extensão superior). Tais são as famílias em cujo seio um sacerdócio livremente venerado por todos os seus membros se esforçará sem cessar por prevenir ou reparar os conflitos mútuos provenientes das más paixões. Ele fará sentir às mulheres o mérito da submissão, desenvolvendo esta admirável máxima de Aristóteles: A principal força da mulher consiste em superar a dificuldade de obedecer. (Em vão procuramos na obra de Aristóteles (traduções latinas e francesas) a frase textual atribuída aqui por Auguste Comte ao "príncipe eterno dos verdadeiros filósofos", O que encontramos de mais aproximado foi o seguinte trecho da Política, segundo a tradução de Barthélemy Saint-Hilaire: "Reconheçamos, portanto, que todos os indivíduos de que acabamos de falar têm seu quinhão de virtude moral, porém, que a sabedoria do homem não é a mesma que a da mulher; que sua coragem, sua equidade não são as mesmas, como pensava Sócrates, e que a força do primeiro é toda de comando, ao passo que a da segunda é toda de submissão", (Livro I, cap. 5, § 8.) Auguste Comte costumava citar de cor, e, por isso, conquanto essencialmente exatas, suas citações apartam-se às vezes da letra dos originais). A educação as terá preparado para compreenderem que todo domínio, longe de elevá-las realmente, degrada-as necessariamente, alterando o principal valor de seu sexo, por esperarem da força o prestígio que é só devido ao amor. Ao mesmo tempo, o sacerdócio as protegerá contra a tirania dos esposos e contra a ingratidão dos filhos, recordando com critério a uns e a outros os preceitos da religião positiva sobre a superioridade moral e o ofício social do sexo afetivo. E sobretudo pela reação preponderante da vida pública que a vida privada tem sido gradualmente melhorada até hoje. O regime final confia o desenvolvimento desta influência ao sacerdócio da Humanidade, pois só ele pode penetrar dignamente no seio das famílias, para nobilitar e consolidar todos os afetos domésticos, referindo-se sempre ao seu destino social. UNDÉCIMA CONFERÊNCIA REGIME PÚBLICO A MULHER - Ao encetarmos a parte superior da moral positiva, devo pedir-vos, meu pai, três esclarecimentos preliminares. O primeiro versa sobre a acusação metafísica que frequentes vezes se faz ao positivismo de não admitir nenhuma espécie de direitos. Se assim é, sinto-me mais propensa a felicitar-vos do que a queixar-me por isso; porquanto a intervenção do direito quase sempre me tem parecido destinada a dispensar de razão ou de afeição. Felizmente tal interferência é vedada às mulheres, que ainda ficam valendo mais por isso. Vós conheceis minha máxima favorita: Mais do que as outras, nossa espécie precisa de deveres para gerar sentimentos. (Outro pensamento de Clotilde de Vaux, numa de suas cartas a Auguste Comte (79ª da coleção publicada com o Testamento do Mestre)). O SACERDOTE - É verdade, minha filha, que o positivismo não reconhece a ninguém outro direito senão o de cumprir sempre o seu dever. Em termos mais corretos, nossa religião impõe a todos a obrigação de auxiliarem a cada um no preenchimento de sua função peculiar. A noção de direito deve desaparecer do domínio político, como a noção de causa do domínio filosófico; porque ambas se referem a vontades indiscutíveis. Assim, os direitos, quaisquer que eles sejam, supõem necessariamente uma origem sobrenatural, única que pode subtraí-los à discussão humana. Quando estiveram concentrados nos chefes, eles comportaram uma verdadeira eficácia social como garantias normais de uma indispensável obediência, enquanto durou o regime preliminar, fundado sobre o teologismo e a guerra. Mas depois que o declínio do monoteísmo dispersou os direitos pelos governados, em nome, mais ou menos distinto, do mesmo princípio divino, eles se tornaram tão anárquicos neste caso como retrógrados no outro. Desde então, só conduzem, de ambos os lados, a prolongar a confusão revolucionária; de sorte que eles devem desaparecer inteiramente por comum acordo dos homens honestos e sensatos de qualquer partido. O positivismo não admite nunca senão deveres de todos para com todos; pois que seu ponto de vista sempre social não pode comportar nenhuma noção de direito, constantemente fundada na individualidade. Nós nascemos carregados de obrigações de todo gênero para com os nossos predecessores, os nossos sucessores e os nossos contemporâneos. Elas não fazem depois senão desenvolver-se ou acumular-se antes que possamos prestar qualquer serviço. Sobre que fundamento humano poderia, pois, assentar a ideia de direito, que razoavelmente suporia uma eficácia prévia? Por maiores que possam ser nossos esforços, a mais longa vida bem empregada não nos permitirá jamais restituir senão uma parte imperceptível do que houvermos recebido. Entretanto, só depois de uma restituição completa é que ficaríamos dignamente autorizados a reclamar a reciprocidade dos novos serviços. Todo direito humano é, portanto, tão absurdo quanto moral. Pois que não existem mais direitos divinos, esta noção deve ser eliminada de todo, como puramente relativa ao regime preliminar e diretamente incompatível com o estado final, que não admite senão deveres, em virtude de funções. A MULHER - Agora, meu pai, eu quisera saber se, além da relação geral entre o regime público e o regime privado, este não suscita disposições que possam nos preparar pessoalmente para o outro. O SACERDOTE - As que resultam da existência individual consistem sobretudo, minha filha, no culto Íntimo que lhe corresponde. Este não é somente adequado a consolidar e desenvolver todas as virtudes privadas. Sua principal aplicação diz respeito à vida pública, na qual nosso tríplice anjo custódio deve a um tempo desviar-nos do mal e impulsionar-nos para o bem, mediante breves invocações especiais relativas aos diferentes casos essenciais. O poder de semelhante auxílio foi já dignamente sentido no nobre esboço de culto feminino tentado pela admirável cavalaria da Idade Média. Essas almas egrégias tinham harmonizados tão bem a vida privada e a vida pública que a imagem querida vinha amiúde animar e aformosear suas cenas guerreiras, deixado surgir as mais ternas emoções no meio mesmo da desolação ou do terror. Se, pois, as afeições brandas puderam combinar-se familiarmente com uma atividade destrutiva, um concurso análogo deve resultar com mais vantagem de trabalhos diretamente relativos à felicidade humana e puros de quaisquer consequências dolorosas para quem quer de seja. O santo cântico que termina o mais belo dos poemas convém mais ao novo culto do que ao antigo. Donna, se'tanto grande e tanto vali Che qual vuol grazia ed a te non ricorre Sua disianza vuol volar senz'ali. La tua benignità non pur soccorre A chi dimanda, ma molte fiate Liberamente ai dimandar precorre. In te misericordia, in te pietate, In te magnificenza, in te s'aduna Quantunque in creatura è di bontate. (Dante, Paraíso, canto último: Senhora, tão grande és, e tão potente / Que mercés implorar sem teu auxílio / Equivale a querer voar sem asas. / Tua Benignidade não sufraga / Somente a orações; mas, com frequência, / Com generosos dons as antecipa / Em ti misericórdia, em ti piedade, / Em ti munificência se coadunam / E quanto tem mais nobre a criatura). Mais do que qualquer outra classe, o sacerdócio da Humanidade deve utilizar semelhante assistência. Suas lutas sociais só servirão para melhor desenvolver-lhe a coragem, a perseverança e também a prudência. Porém elas hão de tender amiúde a perturbar sua pureza moral por seduções ambiciosas, tanto mais temíveis quanto parecerão dimanar de um santo zelo. Nossos padres sentirão, pois, frequente necessidade de retemperarem sua verdadeira dignidade em um nobre comércio, primeiro subjetivo, e depois mesmo objetivo, com o sexo amante. Quanto às disposições provenientes da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno. (É o nono círculo do Inferno, cujo pavimento é constituído por duríssimo gelo. Divide-se ele em quatro compartimentos concêntricos, respectivamente destinados aos que traem seus pais, sua pátria, seus amigos e seus benfeitores. No quarto, intitulado Judeca, por causa de Judas Iscariotes, acham-se Bruto e Cássio, assassinos do grande César. A descrição destes quatro compartimentos ocupa os quatro últimos cantos do Inferno). No meio mesmo da anarquia moderna, o melhor cantor da cavalaria proclamava dignamente a principal máxima de nossos heroicos antepassados: La fede unqua non deve esser corrotta, O data a un solo, o data insieme a mille; Senza giurare, o segno altro piú espresso, Basta una volta che s'abbia promessa. (Ariosto: Orlando Furioso, canto 21, 2ª estância: A fé nunca deve ser quebrada, ou dada a um só ou dada a mil ao mesmo tempo; Sem jurar, ou sem qualquer outro sinal expresso, basta ter prometido uma vez). Estes pressentimentos crescentes dos costumes sociocráticos são irrevogavelmente sistematizados pela religião positiva, que representa a mentira e a traição como diretamente incompatíveis com toda cooperação humana. A MULHER - Devo perguntar-vos enfim, meu pai, se o regime público não comporta uma divisão geral análoga à do regime privado, baseada na desigual extensão dos laços correspondentes. Nem o coração, nem mesmo o espírito, pode subir dignamente da Família à Humanidade sem o intermédio da Pátria. Isto posto, a vida pública parece-me oferecer necessariamente dois graus bem distintos, considerando nela primeiro as relações cívicas, depois as relações universais. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, esta distinção determina o plano geral da presente conferência. Antes, porém, de aplicá-la, cumpre dar-lhe bastante precisão e consistência, restringindo a santa noção de Pátria, hoje demasiado vaga, e por conseguinte quase estéril, entre os modernos, por causa da extensão exorbitante dos Estados ocidentais. Completando a indicação esboça da no estudo do dogma, deveis conceber aqui as futuras repúblicas como muito mais circunscritas do que o anunciam hoje os preconceitos revolucionários. A dissolução gradual do sistema colonial a partir da independência americana não é, no fundo, senão o começo de um deslocamento irrevogável de todos os domínios demasiado vastos que surgiram depois da ruptura do laço católico. Na ordem final, os Estados ocidentais não terão uma extensão superior à que nos apresentam agora a Toscana, a Bélgica, a Holanda e em breve a Sicília, a Sardenha etc. Uma população de um a três milhões de habitantes, na proporção ordinária de sessenta por quilômetro quadrado, constitui, com efeito, a extensão que convém aos Estados verdadeiramente livres: porque só devem ser assim qualificados aqueles cujas partes todas se acham reunidas, sem nenhuma violência, pelo sentimento espontâneo de uma solidariedade ativa. O prolongamento da paz ocidental, dissipando os temores sérios de invasão exterior e mesmo de coligação retrógrada, fará sentir em breve, por toda parte, a necessidade de dissolver pacificamente agregações factícias daqui por diante destituídas de verdadeiros motivos: Antes do fim do século XIX, a República Francesa achar-se-á livremente decomposta em dezessete repúblicas independentes, formadas cada uma de cinco departamentos atuais. A próxima separação da Irlanda deve em seguida conduzir à ruptura dos laços artificiais que hoje reúnem a Escócia, e mesmo o País de Gales, à Inglaterra propriamente dita. Operando-se uma decomposição semelhante em todos os Estados demasiado vastos, Portugal e Irlanda, se nenhuma divisão surgir nestes dois países, formarão, no começo do século seguinte, as maiores repúblicas do Ocidente. E a pátrias assim restritas que deve ser aqui aplicada a apreciação normal do regime público. Então o sentimento nacional torna-se um verdadeiro intermediário entre a afeição doméstica e o amor universal. A MULHER - Graças a esta preciosa simplificação da política positiva, espero não encontrar, meu pai, nenhuma dificuldade grave em vossa explicação direta de nosso regime público. O SACERDOTE - O regime público consiste todo ele, minha filha, em realizar dignamente esta dupla máxima: Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fracos pelos fortes. Nenhuma sociedade pode perdurar se os inferiores não respeitarem os superiores. Nada confirma melhor semelhante lei do que a degradação atual, em que, por falta de amor, cada um não obedece senão à força, se bem que o orgulho revolucionário deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, que sabiam amar seus chefes. A segunda parte da dupla condição social é, pois, comum a todos os tempos. Mas a primeira não foi realmente introduzida senão na Idade Média: pois que toda a Antiguidade, salvo felizes exceções pessoais, pensava de modo diverso, como o atesta seu aforismo predileto: Paucis nascitur humanum genus (O gênero humano vive para um pequeno número de homens). Assim, a harmonia pública repousa sobre a atividade combinada dos dois melhores instintos altruístas, respectivamente apropriados aos inferiores e aos superiores em suas mútuas relações. Todavia, este concurso só pode surgir e persistir nas almas assaz preparadas por um hábito suficiente da mais enérgica, conquanto a menos eminente, das três inclinações simpáticas mediante um justo surto dos afetos domésticos. Tal solução reside inteiramente na separação fundamental entre os dois poderes espiritual e temporal. Não é possível assegurar a dedicação dos fortes aos fracos senão pelo advento de uma classe de fortes que só possa obter ascendente social devotando-se aos fracos, em virtude da livre veneração destes. É assim que o sacerdócio se torna a alma da verdadeira sociocracia. Mas isto supõe que ele se cinja sempre a aconselhar, sem nunca poder mandar. Eis aí por que tanto insisti sobre sua desistência completa do poder, e até da riqueza. A fim de garantir melhor tal renúncia, é também necessário que os padres se abstenham de tirar algum proveito material de seus trabalhos quaisquer, livros ou lições, de modo a só subsistirem sempre de seus ordenados anuais. O orçamento central do sacerdócio proverá, salvo exceções, à impressão de todos os escritos dimanados de seus membros, com a única obrigação de serem assinados pelos seus autores, deixando a distribuição a cargo destes, que disso devem ser os melhores juízes, e que assim ficam constantemente responsáveis. Todo sacerdote que vendesse seus livros ou suas lições seria, portanto, castigado severamente, até perder seu ofício na terceira infração. A fim de completar a purificação do sacerdócio, cumpre também impedir que ele oprima qualquer doutrina contrária à sua. É por isso que o regime positivo exigirá sempre plena liberdade de exposição, e mesmo de discussão, como convém a dogmas constantemente demonstráveis. As únicas restrições normais dessa liberdade fundamental devem resultar da opinião pública, a qual, em virtude de uma sábia educação universal, repelirá espontaneamente as teses contrárias às suas convicções quaisquer. Já se pode fazer ideia disso pela disciplina involuntária que a fé positiva mantém, sem nenhuma coação material, quanto às principais noções da ciência moderna. Contanto que a contradita nunca seja legalmente proibida, ninguém se poderá queixar razoavelmente da repugnância que inspirar ao público. Semelhante conjunto de condições obrigará sempre o sacerdócio a persuadir ou convencer para exercer uma ação real sobre os grandes e os pequenos. A MULHER - Devendo a intervenção cívica do sacerdócio consistir sobretudo em regular dignamente as relações habituais entre a patriciado e o proletariado, rogo-vos, meu pai, que caracterizeis especialmente esse ofício fundamental. O SACERDOTE - Para isso, minha filha, devo em primeiro lugar especificar mais a constituição normal da indústria moderna. Assenta ela sobre duas condições gerais, já sensíveis no fim da Idade Média, e que desde então se foram sempre desenvolvendo: a divisão entre os empresários e os trabalhadores; e a hierarquia interna do patriciado, da qual resulta a do proletariado. A subordinação dos campos às cidades completa esta organização. Depois de abolida a servidão, a indústria cresceu assaz para prescindir de trabalhar por encomenda; ela começou a prover de antemão às necessidades públicas. Desde então, os empresários propriamente ditos não tardam em separar-se dos simples trabalhadores. Seu surto distinto determinou gradualmente, segundo a natureza de suas ocupações, a hierarquia normal que o nosso culto já vos indica. Eleva-se ela dos agricultores aos fabricantes, em seguida destes aos comerciantes, para subir enfim aos banqueiros, fundando cada classe sobre a precedente. Operações mais indiretas, confiadas a agentes mais escolhidos e menos numerosos, exigem, assim, concepções mais gerais e mais abstratas, como também uma responsabilidade mais vasta. Esta classificação espontânea, sistematizada pelo positivismo de acordo com o nosso princípio hierárquico, erige a coordenação normal da indústria em prolongamento natural das que são peculiares primeiro à ciência, depois à arte. A eficácia social desta hierarquia industrial supõe que o patriciado está assaz concentrado para que cada membro aí administre tudo o que ele puder realmente dirigir, a fim de diminuir o mais possível as despesas de gerência e assegurar melhor a responsabilidade. Aqui o verdadeiro interesse dos inferiores coincide plenamente com a tendência natural dos superiores, porque grandes deveres exigem grandes forças. O que sobretudo agrava nossas desordens atuais é a invejosa ambição da pequena burguesia e seu obcecado desdém pelas existências populares. Quando os costumes dela se regenerarem assaz, sob o impulso combinado das situações e das convicções, sua cabeça fundir-se-á no patriciado e sua massa no proletariado, de maneira a dissolver as classes médias propriamente ditas. A MULHER - Esta indispensável concentração das riquezas já é desejada, meu pai, pelos proletários de nossas grandes cidades, como um verdadeiro benefício social, embora nossos camponeses persistam demasiado em querer uma dispersão quase indefinida. Mas semelhante condensação deve depender muito da transmissão hereditária das propriedades. A indicação que esboçastes a este respeito quando me explicastes o culto parecendo-me insuficiente, rogo-vos que a completeis aqui. O SACERDOTE - Cumpre, minha filha, referi-lá ao princípio mais geral que regula a sucessão normal dos funcionários quaisquer. O modo eletivo não foi introduzido senão como um protesto, por muito tempo indispensável, contra o regime das castas, que afinal se havia tornado opressivo. Mas, em si mesma, toda escolha dos superiores pelos inferiores é profundamente anárquica: nunca serviu senão para dissolver gradualmente uma ordem viciosa. O estado final só deve, a este respeito, diferir do regime primitivo em substituir à hereditariedade teocrática, baseada unicamente no nascimento, a hereditariedade sociocrática, proveniente sempre de uma livre iniciativa de cada funcionário. Todas as complicações sociais inspiradas pela desconfiança não conduzem realmente senão à irresponsabilidade. Confiança inteira e plena responsabilidade, tal é o duplo caráter do regime positivo. O digno órgão de uma função qualquer é sempre o melhor juiz de seu sucessor, cuja designação deverá, contudo, ser submetida por ele ao seu próprio superior. É somente na ordem espiritual que todas as escolhas pertencem ao chefe supremo, a fim de se obter a suficiente concentração de um ofício tão difícil. Em relação às mais elevadas funções temporais, a inspeção do superior é naturalmente substituída pelo exame do sacerdócio e do público. É por isso que o chefe deve designar solenemente seu sucessor ao receber, como sabeis, o sacramento do retiro, numa idade em que sua escolha pode ainda ser livremente modificada de acordo com os avisos convenientes. Nos casos excepcionais o sacerdócio poderia, pois, recusando essa consagração, impedir suficientemente este derradeiro ato de um poder indigno ou incapaz. A riqueza sendo socialmente concebida como uma autoridade, sua transmissão deve seguir as mesmas regras gerais. Esta livre escolha do herdeiro, em virtude de uma plena faculdade de testar e de adotar, fornece o melhor remédio contra os abusos ordinários da posse. Com efeito, cada qual fica então responsável por uma sucessão indigna, que atualmente não lhe pode acarretar nenhuma censura. É pouco para temer que a herança caiba ordinariamente a um dos filhos, se todos forem verdadeiramente incapazes; porquanto a tendência dos chefes industriais a perpetuarem dignamente suas casas os dispõe amiúde a escolher seus sucessores fora da própria família, o que eles não podem fazer hoje senão sacrificando suas filhas. É assim que a hereditariedade sociocrática, longe de diminuir o poder dos ricos, favorece-o mais do que a hereditariedade teocrática, ao passo que aumenta muito sua responsabilidade moral. A MULHER - Tal explicação acaba, meu pai, de fazer-me conhecer assaz a constituição temporal do regime positivo. Podeis, portanto, apreciar diretamente a intervenção geral do sacerdócio da Humanidade nos principais conflitos cívicos. O SACERDOTE - A fim de caracterizar melhor essa atribuição decisiva, julgo, minha filha, dever indicar-vos primeiro a estatística normal do patriciado para o conjunto do Ocidente. Dois mil banqueiros, cem mil comerciantes, duzentos mil fabricantes e quatrocentos mil agricultores parecem-me fornecer chefes industriais em número suficiente para os cento e vinte milhões de habitantes que compõem a população ocidental. Nesse pequeno número de patrícios se acharão concentrados todos os capitais ocidentais, cuja ativa aplicação eles deverão dirigir livremente, sob sua constante responsabilidade moral, em proveito de um proletariado trinta e três vezes mais numeroso. Em cada república particular, o governo propriamente dito, isto é, o supremo poder temporal, pertencerá naturalmente aos três principais banqueiros, respectivamente consagrados de preferência às operações comerciais, manufatureiras e agrícolas. É, pois, sobretudo a esses duzentos triúnviros que o sacerdócio ocidental, dirigido pelo Sumo Pontífice da Humanidade, deverá submeter dignamente as reclamações legítimas de um imenso proletariado. A classe excepcional, que habitualmente contempla o futuro e o passado, aplica, então, ao presente todas as suas solicitudes, falando aos que vivem em nome dos que viveram e pelos que hão de viver. A MULHER - Essa linguagem, meu pai, parece-me basear-se sempre numa justa apreciação das diversas existências. Erigindo todos os cidadãos em funcionários sociais, em virtude da utilidade real de seus ofícios respectivos, o positivismo nobilita a obediência e consolida o comando. Em vez de ter um simples destino privado, cada atividade sente-se honrada pela sua digna participação no bem público. Ora, para obter esta salutar transformação, o sacerdócio nunca precisará suscitar um entusiasmo excepcional. Bastar-lhe-á sempre fazer prevalecer por toda parte uma exata apreciação das realidades habituais. O SACERDOTE - Nosso princípio fundamental sobre a gratuidade necessária do trabalho humano proporciona, minha filha, poderosos meios de desenvolver melhor os sentimentos e as convicções que convêm a cada classe social. Quando o salário não é mais concebido como pagando o valor do funcionário, mas apenas os materiais que ele consome, o mérito pessoal de cada um sobressai mais aos olhos de todos. O sacerdócio pode, pois, cumprir melhor o seu principal dever social, que consiste em sempre opor dignamente a classificação abstrata dos indivíduos, segundo a apreciação intelectual e moral deles, à classificação concreta que resulta da subordinação dos ofícios. Este contraste, convenientemente desenvolvido, inspirará aos superiores melhores disposições para com seus inferiores, quando reconhecerem que a sua própria elevação é mais devida à situação do que ao mérito. Posto que só a vida subjetiva possa fazer verdadeiramente prevalecer a classificação pessoal sem suscitar nenhuma tendência subversiva, essa contra posição religiosa fará com que a classificação oficial possa ser mais bem apreciada, conservando-lhe todavia um justo respeito. Porém, ao mesmo tempo, o sacerdócio fará sentir profundamente aos proletários as verdadeiras vantagens da condição social em que se acham. As almas preparadas por uma sábia educação, e constantemente penetradas de afetos domésticos, não lhes há de ser difícil demonstrar a realidade íntima desta admirável máxima do grande Corneille: "Com passo mais firme seguimos do que guiamos". A felicidade que resulta de uma digna submissão e de uma justa irresponsabilidade será sem cessar apreciada nesta classe, quando a vida de família houver surgido convenientemente no meio mais apropriado a saboreá-la melhor. Então o proletariado sentirá que o principal ofício do patriciado consiste em proporcionar a todos o sossegado surto dessas satisfações domésticas, nas quais reside sobretudo nossa verdadeira felicidade. Seu menor desenvolvimento nos chefes espirituais ou temporais, sempre preocupados de uma responsabilidade imensa, fará considerar geralmente como mais digna de pena do que de inveja uma elevação que não tem outra compensação sólida senão a de contribuir melhor para o bem público. Mas esta nobre recompensa só é assaz apreciada pelas almas de elite, sempre muito raras no patriciado, e mesmo no seio do sacerdócio. É necessário, pois, deixar um justo curso às satisfações vulgares do orgulho ou da vaidade, únicas de ordinário capazes de excitarem suficientemente o zelo que exigem o mando e o conselho. A MULHER - Eu quisera, meu pai, conhecer de modo mais preciso essa atribuição fundamental dos livres administradores do capital humano destinada a assegurar aos proletários um digno surto da existência doméstica, primeira garantia normal da ordem civil. O SACERDOTE - Limitai-vos, minha filha, a conceber cada homem primeiro como proprietário, depois como assalariado. Um proletário qualquer deve possuir todos os materiais de uso exclusivo e contínuo, quer seu, quer de sua família. Esta regra, evidentemente realizável, é o único meio de assegurar a ordem prática. Porém, longe estamos de seu digno preenchimento. Muitos homens estimáveis não gozam ainda da propriedade de seus móveis mais usuais; e alguns nem sequer têm a de seu vestuário. Quanto ao domicílio, vós sabeis que a maioria os proletários está antes acampada do que alojada em nossas cidades anárquicas. Entretanto, bastaria decompor em apartamentos (Em Paris, as casas são, em geral, subdivididas em appartements, que se alugam separadamente, morando assim várias famílias no mesmo prédio. O porteiro (concierge) representa o proprietário e serve de laço entre os diferentes inquilinos) a venda ordinária das casas, como se vê em algumas cidades, para que cada família popular, após um leve acréscimo de aluguel durante alguns anos, viesse a possuir irrevogavelmente sua habitação. (Posse normal do domicílio. A existência material dos plebeus deve assentar, tanto como a dos patrícios, sobre uma ligação especial à sede planetária da Humanidade. Sem semelhante base, as operações quaisquer carecem de consistência, a continuidade fica comprometida, e mesmo a solidariedade permanece incompleta. Por falta desta conexão, a mais antiga e a mais importante das revoluções temporais, a passagem da existência nômade para a vida sedentária, ainda não se acha terminada em parte alguma. Porquanto a indústria ocidental oferece amiúde o escândalo de ricos empresários que não possuem os edifícios em que se efetuam suas funções habituais. Mas a principal imperfeição deste laço diz respeito aos proletários, que raramente satisfazem à lei social estabelecida no meu segundo volume. Para instituir o estado normal, é necessário que cada família se tome proprietária de tudo quanto lhe serve exclusiva e continuamente. Em relação aos proletários, pode-se condensar este princípio da posse do domicílio, além da qual a tendência deles para a propriedade se tomaria tão contrária à sua felicidade como ao seu dever. Esta apreciação comporta dois modos, conforme ela se limita ao apartamento ou se estende à casa inteira; como respectivamente o exigem a concentração urbana e o isolamento rural. O primeiro, aliás mais praticável, oferecerá diversas vantagens sociais, quando os costumes normais houverem dissipado as origens dos conflitos que ele agora poderia suscitar. Ele consolida a homogeneidade do proletariado desenvolvendo-lhe as relações pessoais, e cimenta os laços mútuos entre os plebeus e os patrícios sempre proprietários, e algumas vezes habitantes, das casas assim decompostas em apartamentos vendidos isoladamente. Em cada uma dessas casas, a disposição mais frequente consistiria em três andares, habitando, cada um dos dois superiores, três famílias proletárias, reservando o resto para os locais industriais e a habitação principal. Um sétimo domicílio plebeu pertenceria à família encarregada de cuidar do conjunto do edifício, de manter nele a ordem comum e de facilitar as relações mútuas, representando a magistratura local do proprietário (Política Positiva, tomo IV, pp. 338-339.). A aquisição do domicílio deverá estar realizada normalmente quando o jovem agente receber o sacramento da destinação, ou, pelo menos, antes do casamento, a fim de prover à segurança da nova família. O melhor modo consiste em uma anuidade setenal, descontada sobre os salários, antes que as despesas atinjam sua taxa normal. Todavia, o novo trabalhador não poderia ordinariamente preencher semelhante condição sem a assistência paterna, cujo último ato deve ser habitualmente suscitado por esse motivo). O culto e o regime privados determinam suficientemente a extensão normal de semelhante domicílio, (Composição normal do domicílio. - É necessário completar estas determinações indicando, mas só quanto ao caso principal, a composição correspondente do domicílio doméstico. Confundindo as palavras família e casa na palavra menage, a linguagem indica uma apreciação universal da comunidade de habitação como resultado e condição de uma suficiente intimidade. É sobretudo assim que se pode circunscrever nitidamente a associação elementar, afastando os laços demasiado fracos para comportarem uma mesma residência. Segundo as indicações precedentes, cada um dos três elementos da família proletária exige uma parte distinta do apartamento comum, além da sala de reunião e de recepção, de ordinário independente daquela em que os alimentos são separados e consumidos. Apesar da profundeza das simpatias e da identidade de educação, a diversidade das idades e das situações impediria uma suficiente harmonia, se o par ativo e o par passivo não pudessem, à sua vontade, reunir-se ou separar-se, e bem assim afastar as crianças. A parte reservada a estas deve sempre ser subdividida, a fim de isolar cada sexo, mas sem distinção de número. Enfim, toda família precisa de um oratório, em que cada qual possa desenvolver dignamente o culto pessoal, e que sirva de santuário para a comum celebração do culto doméstico. Assim composto de sete peças desiguais, sem nada conter de inútil, o apartamento normal do trabalhador não pode parecer exagerado senão em virtude da anarquia que dispõe os patrícios a descurarem seus deveres e os plebeus a menosprezarem sua dignidade. Quando a religião positiva houver feito sentir assaz a importância universal da vida de família como a melhor garantia de ordem pública e a principal fonte da felicidade privada, todos os chefes reconhecerão a obrigação de a consolidar por toda parte. Então a determinação precedente, fundada em motivos irrecusáveis, será geralmente considerada como fornecendo uma justa medida dos deveres dos ricos e das reclamações dos pobres, em nome do Grande Ser, cujos ministros e agentes são. Se se observar que semelhante regra determina para o domicílio doméstico um número de peças igual ao dos membros da família, poder-se-á estendê-la com facilidade do caso principal a cada um dos outros dois. Deixo ao leitor o cuidado de reconhecer assim que o apartamento deverá compreender dez ou treze peças, conforme a família for sacerdotal ou patrícia. Esta lei permite apreciar nitidamente o verdadeiro luxo, a fim de que os costumes possam, estigmatizando o abuso, tolerar, sobretudo em relação ao patriciado, o grau que convém à imperfeição ordinária da natureza humana) e caracterizam a importância de sua fixidez, sem a qual se pode dizer que a primeira revolução humana, a passagem da vida nômade para o estado sedentário, fica inacabada. Tal fixidez deve mesmo reagir sobre a estabilidade material das relações industriais, suprimindo espontaneamente uma vagabundagem funesta. Se bem que consagre a plena liberdade do concurso humano, a religião positiva impõe a cada um o dever de nunca mudar sem graves motivos nem seus inferiores nem seus superiores. A própria mudança caprichosa dos fornecedores habituais toma-se censurável, pois que tende a perturbar a economia geral de suas operações, a qual supõe uma fixidez suficiente na clientela. (Reações da posse do domicilio. Além de sua eficácia direta e especial, a apropriação do domicílio comporta indiretamente uma reação geral sobre o coração e o espírito, aumentando a fixidez dos sentimentos e dos pensamentos pela fixidez dos hábitos. Ela consolida e desenvolve o dever, demasiado descurado por toda parte, de nunca mudar arbitrariamente as relações práticas, mesmo com os mínimos fornecedores, a fim de facilitar as previsões industriais. Conquanto imposta pela moral positiva, esta obrigação social seria amiúde iludida, sobretudo ente os proletários, aos quais convém seu principal exercício, se a fixidez de habitação não viesse refrear os caprichos espontâneos. Mas a instituição urbana do domicílio popular comporta uma reação religiosa, que o estado normal deve desenvolver muito entre os filhos do Grande Ser. Não só cada um deles liga assim todo o passado de sua família ao apartamento em que nasceu, mas a aderência dessa habitação ao conjunto do edifício representa-lhe a solidariedade cívica, e mesmo o laço universal: porquanto a partilha do domínio planetário entre os possuidores do solo é análoga à da habitação social entre os clientes do proprietário comum, que lhes oferece, salvo o caso de indignidade, a imagem local do ser ao qual tudo pertence). Quanto ao salário periódico, deve ele compor-se normalmente de duas partes desiguais, uma independente do trabalho efetivo e peculiar ao ofício correspondente, outra subordinada aos resultados diários. É o único meio de garantir os operários contra as chomagens (Não há outro remédio senão aportuguesarmos a palavra chomage, pois não temos em nossa língua seu equivalente preciso, no sentido que este vocábulo francês tem hoje na vida industrial) que não lhes forem imputáveis, sem deixar contudo de permitir aos chefes um justo surto dos diversos aperfeiçoamentos industriais, sobretudo mecânicos. A extensão das máquinas que reergue a dignidade moral do trabalhador humano e aumenta sua eficácia material poderá então efetuar-se livremente, ao abrigo de toda censura social. Mas a proporção entre a parte fixa e a parte móvel do salário dos operários deve variar nas diferentes indústrias, segundo leis que só o patriciado pode determinar. (Composição do salário. Seria supérfluo voltar aqui a ocupar-me do princípio de minha estática pessoal que prescreve a decomposição do salário normal em duas partes desiguais: uma fixa para cada operador, qualquer que seja o trabalho; outra proporcional ao produto da atividade. Esta lei é tão incontestável como a da gratuidade necessária do trabalho humano sobre a qual a primeira repousa, num regime em que tudo pertence ao Grande Ser, que confia seus tesouros aos seus ministros a fim de nutrir seus agentes. Devo, porém, completar agora essa lei ousando fixar a relação normal cuja determinação ulterior meu segundo volume havia deixado a cargo dos chefes práticos. Reconheci depois que este princípio não poderia ser assaz apreciado se a iniciativa religiosa não lhe desse uma precisão imediata, salvo retificação final, como a respeito de todos os apanhados numéricos do presente capítulo. Eis aí por que não hesito em propor, por cada um dos treze meses do ano positivista, para cada trabalhador, um ordenado de cem francos, sempre dimanado do empresário correspondente, urbano ou rural, enquanto durar o livre contrato mútuo. Nas cidades, que cumpre instituir primeiro, esta taxa parece-me dever formar ordinariamente a terça parte do salário total, cuja parte móvel regulo em sete francos por dia médio de trabalho efetivo. Deixando sempre aos costumes as prescrições relativas às festas quaisquer, e à folga hebdomadária, pode-se presumir que o culto será escrupulosamente praticado, sobretudo entre os proletários, aos quais é ele principalmente destinado. As taxas precedentes marcam, pois, nove francos para o sustento cotidiano de uma família operária, que as minhas explicações anteriores compõem normalmente de sete membros). A MULHER - Apesar da influência salutar dessa ordem normal, sinto, meu pai, que o instinto destruidor, solicitando os outros pendores egoístas, suscitará sempre conflitos quaisquer entre os ocidentais regenerados. Devo, portanto, perguntar-vos qual será a intervenção do sacerdócio nesses debates inevitáveis. O SACERDOTE - Ele esforçar-se-á primeiro, minha filha, por preveni-los tanto quanto for possível, mediante um criterioso emprego de sua disciplina espiritual. Esta difere sobretudo da regra temporal em excitar os bons pendores de preferência a combater os maus. Sua marcha é, pois, mais positiva do que negativa, corrigindo mais por comparação do que por compressão, recompensando os bons em vez de punir os maus; posto que também saiba proceder com rigor sendo necessário, como já vo-lo expliquei. O conjunto destes meios prevenirá amiúde, ou reparará com brevidade, os conflitos cívicos provenientes da atividade prática, sob a influência do jogo natural das paixões egoístas. Toda a religião positiva tende a fazer sentir que, repousando sempre a sociedade sobre um livre concurso, não existem transações duráveis e modificações legítimas senão as que resultam de um assentimento voluntário dos diversos cooperadores. A maior das revoluções sociais, a abolição gradual da escravidão ocidental, realizou-se, na Idade Média, sem uma única insurreição. Todavia, como nossa imperfeição cerebral não há de permitir ao sacerdócio o fazer sempre respeitar assaz as vontades humanas, ele deverá finalmente aplicar-se a moderar os conflitos que não puder impedir. Sua regra geral, conforme à natureza da civilização moderna, consiste em estigmatizar radicalmente, por tão anárquico como retrógrado, todo processo militar dos superiores ou dos inferiores. Na associação industrial, as lutas materiais, quando não puderem ser evitadas, deverão basear-se na riqueza, concentrada ou dispersa, e nunca na violência pessoal, que cumpre reservar contra os malfeitores propriamente ditos. De fato, não se deve reprimir pela força senão os atos unanimemente reprovados, inclusive pelos seus próprios autores. O instinto destruidor pode sempre admitir semelhante transformação, quase completa hoje relativamente às infrações crônicas, mesmo coletivas, e que só falta sistematizar, estendendo-as às perturbações agudas. Já as perseguições habituais, que outrora atentavam contra a vida, respeitam mesmo a liberdade, para se limitarem à fortuna, de maneira a se tornarem mais evitáveis e mais reparáveis: como, entre os criminosos, os roubos têm substituído os homicídios. Pode-se, pois, esperar que a religião positiva determinará os homens a liquidarem seus mais violentos debates sem nenhuma guerra propriamente dita, mesmo civil. A restrição normal das repúblicas parciais há de facilitar muito esta transformação final, aumentando ao mesmo tempo o poder do patriciado e a independência do proletariado. A MULHER - Por mais preciosa que seja semelhante conversão das lutas materiais, ela parece-me, meu pai, mais vantajosa para os superiores do que para os inferiores. Renunciando a todo emprego habitual da força propriamente dita, para se cingirem a conflitos pecuniários, os trabalhadores parecem-me fazer um grande ato de generosidade social, aliás plenamente motivado. Receio, porém, que, deixando assim transportar os debates para o domínio peculiar aos empresários, aqueles não sejam amiúde vítimas do egoísmo dos ricos, mesmo quando tiverem obtido por toda parte a justa autorização de se coligarem à sua vontade sem nenhuma violência. Com efeito, por maior que seja o poder cívico que os plebeus possam tirar de suas dignas recusas coletivas de cooperação industrial, os imensos capitais de nossos patrícios permitirão talvez a estes superarem finalmente as mais justas resistências. Posto que o sacerdócio deva dar muita força às coligações operárias quando ele as tiver sancionado, temo ainda a abusiva preponderância da riqueza. O SACERDOTE - A fim de tranquilizar-vos, minha filha, considerai em primeiro lugar a influência habitual do sacerdócio sobre o patriciado em virtude de íntimas relações pessoais. Segundo nosso apanhado estatístico, o número normal dos banqueiros é igual, no Ocidente, ao dos templos positivistas, achando-se cada um destes naturalmente colocado sob o protetorado temporal do banqueiro adjacente, encarregado, pelo triunvirato nacional, de transmitir todos os pagamentos sacerdotais. Daí resultarão frequentes relações entre os padres e os principais chefes industriais, de maneira a reanimar especialmente nestes a veneração nascida da própria educação que receberam e prolongada pela dos filhos. A MULHER - Consenti, meu pai, que vos interrompa um momento quanto a esta última influência. Como nossa instrução enciclopédica não deve nunca tornar-se obrigatória, os ricos talvez sejam levados, por um tolo orgulho, a não deixar que seus filhos participem desse ensino, e sobretudo suas filhas, embora tenham de renunciar aos sacramentos subsequentes, e mesmo às recomendações sociais que ele há de proporcionar. Isto posto, a influência pessoal que assinalais ficaria essencialmente reduzida à deferência involuntária que por toda parte obtêm o talento e a virtude. O SACERDOTE - Essa objeção incidente, minha filha, é mais forte do que cuidais; entretanto, afastá-la-ei sem custo. De fato, não será necessário ter frequentado nossas escolas positivistas para ser admitido a receber nossos sacramentos sociais, e mesmo para ser submetido aos nossos exames públicos, nos quais não se indagará nunca de quem provém a instrução, contanto que esta seja real e suficiente. Apenas, quando ela não dimanar do sacerdócio, nossos padres precisarão empregar mais esforços a fim de colher as informações morais que serão sempre tão indispensáveis como os julgamentos intelectuais. Apesar desta plena liberdade de ensino, que aliás aumentará o zelo dos professores, as escolas oficiais não serão nunca abandonadas pelos ricos, a menos que o sacerdócio degenere; porquanto eles não hão de querer que seus filhos fiquem abaixo da instrução popular, da qual, entretanto, não poderão proporcionar-lhes, mesmo com grandes despesas, um equivalente privado. Com efeito, o sacerdócio há de naturalmente absorver os melhores professores, que suas outras funções afastarão sempre do ensino particular, o qual, aliás, como sabeis, lhes será severamente proibido. Os mestres privados recrutar-se-ão, pois, entre os homens incapazes de se tornar padres ou mesmo vigários; de sorte que suas lições serão habitualmente desconceituadas. A MULHER - Esta explicação tranquiliza-me completamente, meu pai, a respeito das repugnâncias aristocráticas contra educação universal. Assim, rogo-vos que retomeis vossa importante apreciação das influências peculiares ao sacerdócio positivo para prevenir ou reparar, junto dos chefes industriais, os mais graves conflitos práticos. O SACERDOTE - Além de suas relações pessoais com a primeira classe patrícia, que tanto pode reagir sobre as outras, o sacerdócio achará por toda parte, minha filha, auxiliares especiais, mediante uma digna reorganização do protetorado voluntário. A instituição cavalheiresca não é de modo algum peculiar à existência militar, cujo brutal princípio devia, pelo contrário, ter dificultado muito seu admirável surto na Idade Média. Ela convém mais, sob melhores formas, ao regime positivo, em que a proteção, posto que tornada essencialmente pecuniária, suscitará amiúde devotamentos menos brilhantes, porém mais eficazes e, por outro lado, mais bem regularizados. Muitos chefes industriais, sobretudo entre os banqueiros, se filiarão, desde a mocidade, à livre associação que, dispondo de capitais imensos, exercerá espontaneamente, ou ao apelo do sacerdócio, uma generosa intervenção nos principais conflitos. Seu nobre patrocínio não se limitará aos proletários oprimidos: deverá também garantir os sacerdotes contra a tirania temporal. (Organização da cavalaria industrial. Cumpre ligar mais importância ao suplemento universal, ao mesmo tempo moral e político, proveniente do desenvolvimento sistemático da cavalaria, cujo germe feudal deve ser dignamente cultivado no estado industrial, salvo as modificações práticas. O protetorado voluntário devendo, como as ofensas que repara ou previne, referir-se mais aos bens que às pessoas, sua organização se tornará mais fácil e mais vasta. Sua principal consistência assentará sobre um núcleo central, formado de patrícios viúvos, solenemente votados a esse livre ofício, mas sem deixar de participar da vida prática, salvo retiros periódicos em edifícios especiais, a fim de retemperarem sua vocação junto ao sacerdócio. Em tomo deles se agremiarão, antes da maturidade, os que, providos de fortuna suficiente, aspiraram a fazer parte um dia da corporação protetora. Semelhante consagração fará compreender melhor quanto importa respeitar o livre emprego dos capitais, mesmo nos que, destituídos de um ofício determinado, podem excepcionalmente se tornar os mais úteis dos ricos, dirigindo bem sua disponibilidade especial. A cavalaria central há de habitualmente encontrar um segundo apoio entre os velhos do patriciado, que amiúde conservarão uma grande autoridade, mesmo depois de terem transmitido a sua principal riqueza. Enfim, ela se completará pela afiliação universal dos melhores proletários, cujo devotamento e energia compensarão a pobreza, para proporcionar à livre tutela uma aliança decisiva). A MULHER - Esta preciosa instituição parece-me completar, meu pai, o conjunto dos meios próprios ao sacerdócio da Humanidade para regular dignamente as relações cívicas. Podeis, portanto, explicar-me sua intervenção normal nas relações universais. O SACERDOTE - Cumpre, minha filha, distinguir nessas relações duas classes, conforme dizem respeito a populações positivistas ou a povos ainda alheios à verdadeira religião. O primeiro caso só exige de fato uma simples extensão das considerações precedentes; de modo que pode ser prontamente apreciado. Mesmo a influência sacerdotal torna-se aí há um tempo mais fácil e mais decisiva, porquanto, após a próxima decomposição dos Estados atuais, a grande República Ocidental ficará dividida em sessenta repúblicas independentes, que só terão de verdadeiramente comum seu regime espiritual. Aí nunca surgirá nenhuma autoridade temporal suscetível de mandar por toda parte, como o vão imperador da Idade Média, o qual não foi, em relação ao sistema católico, senão um destroço perturbador, empiricamente dimanado da ordem romana. Todas as operações coletivas, aliás puramente temporárias, serão sempre conduzidas na nova ordem mediante o concerto passageiro dos triunviratos correspondentes. Quanto às instituições práticas que se devem tornar verdadeiramente universais, seu próprio destino as reserva constantemente ao sacerdócio, único capaz de fazê-las livremente prevalecer por toda parte, apesar das rivalidades nacionais. Os governos especiais só devem intervir aí para facilitar a fundação delas, fazendo as despesas convenientes. É só por esta forma que as moedas, as medidas etc., podem adquirir, rápida e pacificamente, uma verdadeira universalidade. Assim, as sessenta repúblicas do Ocidente regenerado não se acharão habitualmente ligadas entre si senão por uma mesma educação, por costumes uniformes e por festas comuns. Em uma palavra, sua união será religiosa, e não política; salvo as relações históricas provenientes das agregações anteriores, e em breve obliteradas pelas novas aproximações, quando não se apoiarem na comunhão da linguagem. O Sumo Sacerdote da Humanidade constituirá, melhor do que nenhum papa da Idade Média, o único chefe verdadeiramente ocidental. Ele poderá, portanto, em caso de necessidade, concentrar toda a ação sacerdotal, a fim de reprimir cada triunvirato tirânico, invocando aliás os cavalheiros vizinhos, e mesmo a pacífica mediação dos governos imparciais. Se, contudo, as lutas industriais se tornarem inevitáveis, sua digna sanção poderá dar às coligações operárias uma extensão decisiva, fazendo com que nelas tomem parte todos os colaboradores ocidentais, mesmo fora da profissão comprometida. Mas reciprocamente, quando o sacerdócio censurar a conduta dos trabalhadores, ou somente recusar aprová-la, os empresários vencerão facilmente todas as reclamações viciosas. A MULHER - Agora, meu pai, só temos que determinar as relações sistemáticas da população positivista com as nações que ainda não tiverem abraçado a religião universal. O SACERDOTE - Em virtude da íntima conexão proveniente da iniciativa católico-feudal, sucedendo por toda parte a incorporação romana, vós concebeis, minha filha, que a nova fé há de prevalecer simultaneamente no conjunto do Ocidente europeu, compreendidos seus diversos apêndices coloniais, sobretudo americanos. As convergências devidas ao surto positivo, científico, estético e técnico sobrepujam, a muitos respeitos, as divergências oriundas da ruptura do laço católico e mesmo de uma viciosa nacionalidade. Mas esta vasta república espiritual mal compreende a quinta parte de toda a população humana. Importa, pois, apreciar, em geral, o modo por que o Ocidente regenerado deverá gradualmente reunir debaixo de sua fé os habitantes quaisquer do nosso planeta. Quando a reorganização ocidental se achar suficientemente assegurada, este digno proselitismo exterior se tornará a principal ocupação coletiva do sacerdócio positivo. Apesar das pretensões temporais, seu privilégio exclusivo para tal atribuição não pode ser contestado. Se o sacerdócio já é o único competente para regular dignamente as relações mútuas dos diversos povos ocidentais, com mais forte razão deve reger, sem concorrência alguma, as mais vastas relações sociais. Através dos domínios efêmeros e desastrosos, é aos aperfeiçoamentos científicos ou técnicos que são realmente devidas todas as comunicações úteis e duráveis do Ocidente com o resto do planeta humano. O gênio sempre relativo do positivismo o torna exclusivamente apto para comportar verdadeiras missões, capazes de agregar gradualmente as populações quaisquer à sua unidade característica, única digna de tudo abraçar. A MULHER - Essa imensa conversão, necessária à plena constituição do Grande Ser, deve seguir, meu pai, uma marcha natural, cujo caráter essencial eu quisera conhecer. O SACERDOTE - Este resulta, minha filha, das afinidades decrescentes do positivismo ocidental com as diversas populações estranhas, primeiro monoteístas, em seguida politeístas, e enfim fetichistas. Porém, os casos que parecem mais desfavoráveis, em virtude de uma menor preparação espontânea, comportam, pelo contrário, uma maior intervenção sistemática, quando se aplica dignamente a teoria geral das transições humanas. Toda a conversão pode ser suficientemente esboça da em três gerações uma para cada grau principal, deixando ao século seguinte o desenvolver as diferentes bases de uniformidade assentadas por um sacerdócio numeroso e zeloso, se este for convenientemente assistido. O primeiro caso diz respeito aos monoteístas orientais, primeiro cristãos depois muçulmanos ou à Rússia e à Turquia com a Pérsia. Tanto de um lado como do outro se podem erguer as populações ao nível final do Ocidente, sem lhes impor uma servil e perigosa imitação da marcha tempestuosa e difícil que a evolução original exigiu. Mesmo desde já, o positivismo fornecerá, pela sua teoria histórica, preciosas luzes aos nobres governos que se esforçam por dirigir esta ascensão necessária, preservando-a das perturbações ocidentais. A Rússia, que no século passado se guiava pela França, é agora levada a isolar-se dela sistematicamente. Esta mudança é muito criteriosa, pois que a antiga imitação exporia doravante as populações eslavas a perturbações imensas, sem lhes proporcionar nenhum progresso verdadeiro, intelectual ou social. Mas, quando Paris regenerado cessar de oferecer por toda parte um tipo insurrecional, poderá fornecer aos dignos czares noções e auxílios próprios para secundar sistematicamente seu admirável zelo espontâneo pelo pacífico melhoramento interior de seus vastos Estados. Em vez de invita-los a imitarem um passado que não comporta nenhuma reprodução, o positivismo exortá-los-á em breve a apreciar melhor suas próprias vantagens. Por exemplo, a decomposição das grandes fortunas feudais foi necessária na França para preparar o advento de um novo patriciado, sob o surto efêmero das classes médias. Na Rússia, pelo contrário, importa hoje manter a concentração de riqueza exigida pelo estado final, e que nós teremos aqui muito trabalho para reconstruir. Todo o esforço de um sábio autocrata deve, então, limitar-se à transformação industrial do caráter militar, baseada já na permanência, doravante inalterável, da paz universal. A MULHER - Semelhante influência dos conselhos positivistas parece-me, meu pai, limitada à Rússia, em virtude de sua analogia religiosa com o Ocidente. A Turquia, porém, e a Pérsia talvez não comportem senão uma intervenção muito menor, pois que nem sequer chegaram à monogamia. O SACERDOTE - A poligamia é hoje, minha filha, mais real amiúde em Paris do que em Constantinopla. Além de o islamismo ter passado pela mesma dissolução que o catolicismo, formamos em geral uma ideia exagerada da diversidade de costume e de opiniões entre os orientais e os ocidentais; como o atesta a tendência espontânea dos muçulmanos a nos tomarem por guias. Repelindo a divisão dos dois poderes, a fim de constituir melhor sua teocracia militar, o incomparável Maomé pressentiu que esse imenso aperfeiçoamento da ordem social era ainda prematuro, por ser incompatível com o princípio teológico. Ele teve, então, de considerar semelhante tentativa como peculiar ao Ocidente, onde o seu malogro final havia de suscitar durante muito tempo graves perigos. Se o islamismo privou os orientais dos admiráveis progressos realizados na Idade Média, sob o impulso católico, ele preservou-os mais tarde da transição anárquica que nos atormentou durante os cinco últimos séculos, e de onde resultam hoje tantos obstáculos. Graças ao seu regime, os muçulmanos estão essencialmente isentos de metafísicos e mesmo de legistas. O positivismo, demovendo-os de uma imitação desastrosa, lhes fará apreciar cordatamente esta vantagem capital, que muito pode secundar a regeneração final deles. A MULHER - Compreendo, meu pai, semelhante relação, cujo princípio tinha-me escapado, por não conhecer assaz vossa teoria histórica. Mas, quanto aos politeístas, que formam quase a metade da população humana, surpreender-me-ia muito que a nossa fé comportasse imediatamente uma eficácia equivalente, pois que a distância é aí demasiado grande. O SACERDOTE - Pelo contrário, minha filha, nós podemos vir a ser muito mais úteis aos politeístas do que aos monoteístas, poupando-lhes uma transição mais longa e difícil. Seu surto espontâneo talvez os fizesse passar primeiro por um monoteísmo qualquer, posto que eles pouco propendam para isso observando o descrédito total em que o monoteísmo tem caído, há um século pelo menos, no Ocidente e mesmo no Oriente. Mas a religião positiva os dispensará dessa marcha empírica, instituindo especialmente a transição direta deles para a fé final do homem. O monoteísmo só é verdadeiramente necessário na evolução original. Muitos dos nossos adolescentes deixarão espontaneamente de passar por essa fase durante seu noviciado enciclopédico. Com mais forte razão, o zelo sistemático do sacerdócio ocidental poderá preservar do monoteísmo os politeístas atuais, cujos principais dogmas são transformáveis em noções positivas cobertas apenas de uma espécie de iluminura divina, que não tardará em desvanecer-se. A MULHER - Quanto aos fetichistas, aliás pouco numerosos, seu estado parece-me, meu pai, por tal forma afastado do nosso que não concebo a possibilidade de os trazer rapidamente ao nível final do Ocidente. O SACERDOTE - Apesar de seu pequeno número, minha filha, eles ocupam, no centro da África, uma vasta região completamente inacessível ainda à nossa civilização, que não poderá penetrar aí senão sob o impulso prolongado do sacerdócio positivo. Nossos dignos missionários acharão aí o caso mais apropriado para estimular os esforços teóricos e o zelo prático, propondo-se estender diretamente a religião universal por essas ingênuas povoações, sem lhes impor nenhuma transição monotéica, nem mesmo politéica. A possibilidade de semelhante sucesso resulta da profunda afinidade do positivismo com o fetichismo, que não difere daquele, quanto ao dogma, senão em confundir a atividade com a vida, e, quanto ao culto, em adorar os materiais em vez dos produtos. Em toda iniciação humana, espontânea ou dirigida, o fetichismo constitui o único modo do regime fictício verdadeiramente inevitável, porque ele surge em uma época em que a espécie e o indivíduo são incapazes de reflexões quaisquer. Cada uma das duas fases preliminares pode ser poupada à evolução plenamente sistemática. Se tivéssemos empenho em preservar nossos filhos do politeísmo, poderíamos consegui-lo prolongando o estado fetíchico até que, por modificações graduais, ele fosse terminar no positivismo. Mas este esforço careceria, então, de oportunidade, sem falar de sua tendência a perturbar o surto natural da imaginação humana. O caso é muito diverso tratando-se da evolução coletiva da África central, onde tais transformações comportarão a mais salutar eficácia, tanto local como universal. A MULHER - Só tenho, meu pai, uma última observação a submeter-vos acerca dessas imensas transformações intelectuais e sociais, que dão tanto interesse às mais vastas relações humanas, sempre maculadas até aqui de egoísmo e de empirismo. Sem partilhar de modo algum dos bárbaros prejuízos dos brancos contra os pretos, ouso apenas esperar que a universalidade da fé positiva não seja indefinidamente estorvada pela diversidade das raças. O SACERDOTE - A verdadeira teoria biológica das raças humanas resulta, minha filha, da concepção de Blainville, que representa essas diferenças como variedades devidas ao meio, mas que se tornaram fixas, mesmo hereditariamente, logo que atingiram sua maior intensidade. Segundo este princípio, pode-se construir subjetivamente uma doutrina essencialmente de acordo com as únicas diversidades verificadas pela apreciação objetiva, que não admite realmente senão três raças distintas, branca, amarela e preta. Com efeito, as únicas diferenças essenciais e duráveis que se podem ter desenvolvido são as que se referem ao predomínio relativo das três partes fundamentais do aparelho cerebral, especulativa, ativa e afetiva. Tais são, portanto, as nossas três raças necessárias, das quais cada uma é superior às outras duas, ou em inteligência, ou em atividade, ou em sentimento, como o confirma o conjunto das sãs observações. Esta apreciação final deve demovê-las de todo desdém mútuo e fazer-lhes igualmente compreender a eficácia de seu concurso íntimo, para acabar de constituir o verdadeiro Grande Ser. Quando nossos trabalhos houverem saneado uniformemente o planeta humano, estas distinções orgânicas tenderão a desaparecer, em virtude mesmo de sua origem natural, e sobretudo mediante dignos casamentos. A combinação crescente dessas raças nos proporcionará, sob a direção sistemática do sacerdócio universal, o mais precioso de todos os aperfeiçoamentos, aquele que diz respeito ao conjunto de nossa constituição cerebral, assim tornada mais apta para pensar, agir e mesmo amar. CONCLUSÃO HISTÓRIA GERAL DA RELIGIÃO DUODÉCIMA CONFERÊNCIA PASSADO FETÍCHICO E TEOCRÁTICO COMUM A TODOS OS POVOS A MULHER - Estas conferências finais inspiram-me de antemão um vivo atrativo, meu caro pai, pela necessidade que frequentes vezes tenho sentido de semelhante complemento histórico durante a tríplice exposição que terminais. Já compreendi, em muitos casos, que o estado final regulado pela Religião da Humanidade tem de ser sempre precedido de uma longa e difícil iniciação, indispensável sobretudo a toda evolução original. Mas estas vistas parciais não fazem senão avivar, sem o satisfazer, meu desejo de conhecer sumariamente a teoria histórica que vos permite apreciar o passado de modo a determinar o futuro, para caracterizar o presente. O SACERDOTE - O principal fundamento dessa teoria consiste, minha cara filha, na dupla lei de evolução mental que vos é agora familiar. Já sabeis como dela resulta a decomposição geral da preparação humana, começada pelo fetichismo, desenvolvida segundo o politeísmo e completada sob o monoteísmo. Contudo, antes de irmos mais longe, deveis voltar a considerar rapidamente este princípio fundamental, a fim de julgardes indispensável a marcha que primeiro vos pareceu apenas inevitável. Apreciai sobretudo a necessidade intelectual de tal iniciação, porque essa necessidade é menos compreendida que outra qualquer. Se toda verdadeira teoria assenta necessariamente sobre fatos observados, não é menos certo que toda observação seguida exige uma teoria qualquer. O espírito humano não podia, pois, achar outra saída primitiva senão num método puramente subjetivo, tirando do interior os meios de ligação que o exterior só havia de fornecer após um longo estudo. Então o sentimento supre a impotência da inteligência, fornecendo-lhe o princípio de todas as explicações, pelos afetos correspondentes dos seres quaisquer, espontaneamente assimilados ao tipo humano. Mas esta filosofia inicial é necessariamente fictícia e, por conseguinte, apenas provisória. Ela institui, entre a teoria e a prática, um antagonismo contínuo, que, gradualmente modificado em virtude da reação crescente da atividade sobre a inteligência, prolonga-se durante toda a nossa preparação e só finaliza no estado positivo. Ao passo que a especulação atribuía tudo a vontades arbitrárias, a ação supunha sempre leis invariáveis, cujo conhecimento, cada vez menos empírico e mais extenso, acabou renovando o entendimento humano. A MULHER - Eu precisava, meu pai, de semelhante explicação para compreender o destino filosófico do regime inicial, conquanto já lhe tivesse sentido bastante a aptidão poética. Porém, sua necessidade moral não me parece exigir nenhum esclarecimento. Quem quer que tenha observado bem as crianças, ou mesmo apreciado os selvagens através das narrativas dos viajantes, deve considerar esse sustentáculo exterior como indispensável à nossa fraqueza primitiva. O regime fictício é ainda mais apropriado para desenvolver nossa ternura, à qual o estado positivo não pode fornecer um alimento equivalente senão quando atinge sua plena madurez. Conveniente assim à nossa tríplice natureza individual, a religião inicial deve igualmente aplicar-se à nossa existência social, que a princípio não podia achar nenhuma outra fonte de opiniões comuns nem de autoridades diretoras. O SACERDOTE - Para completar esta teoria fundamental da evolução humana, só me resta, minha filha, indicar-vos a lei que regula nossa marcha temporal. Ela oferece, como a marcha espiritual, e por motivos análogos, a sucessão necessária de três estados distintos: o primeiro puramente provisório, o segundo simplesmente transitório e o terceiro único definitivo, conforme os diversos modos de nossa atividade. Com efeito, a existência humana começa por ser essencialmente militar, para se tornar enfim completamente industrial, passando por uma situação intermediária em que a conquista se transforma em defesa. Tais são, evidentemente, os caracteres respectivos da civilização antiga, da sociabilidade moderna e da transição peculiar à Idade Média. Esta marcha da atividade resulta, como a da inteligência, da impossibilidade de qualquer outra saída primitiva. O estado social não pode, sem dúvida, consolidar-se e desenvolver-se senão pelo trabalho. Mas, por outro lado, o surto do trabalho supõe tanto a preexistência da sociedade quanto o da observação exige o impulso teórico. O desfecho de semelhante perplexidade opera-se, pois, ainda mediante uma evolução espontânea, que dispensa toda preparação complicada. Ora, a atividade guerreira é a única que preenche esta condição, por causa do predomínio natural do instinto destruidor sobre o instinto construtor. Não comportando eficácia senão mediante um exercício coletivo, ela é eminentemente própria para suscitar associações consistentes e duráveis, em que a simpatia se torna muito intensa, embora muito restrita, por efeito de uma profunda solidariedade. Enfim, só ela pode determinar a formação dos grandes Estados segundo uma incorporação gradual, que comprime a turbulência militar por toda parte, exceto no povo dominador, onde seu caráter eleva-se, graças a um nobre destino. Não existe outro meio geral de superar a repugnância que no princípio inspira ao homem todo trabalho regular. Quando este domínio guerreiro adquire bastante extensão, o regime primitivo tende a transformar-se espontaneamente, porque a defesa se torna mais importante do que a conquista. Passa-se, então, ao modo intermediário, durante o qual a preponderância militar prepara a existência industrial, que não tarda em ser a única suscetível de um surto contínuo. A MULHER - A evolução da atividade parece-me, meu pai, mais fácil de apanhar que a da inteligência. Surpreende-me, porém, que julgueis sua combinação suficiente para fundar a teoria histórica. É verdade que elas se correspondem espontaneamente; porquanto a síntese fictícia adapta-se à guerra como a religião positiva ao trabalho: sente-se mesmo que o espírito metafísico devia ter prevalecido enquanto a atividade militar foi essencialmente defensiva. Contudo, esta concepção dinâmica da humanidade não me parece assaz conforme a noção estática de nossa natureza, na qual o sentimento domina ao mesmo tempo a inteligência e a atividade. Depois da dupla lei da evolução espiritual, e da que regula a marcha temporal, eu esperava uma apreciação equivalente acerca da vida afetiva, sem a qual não compreendo nem o movimento nem a existência. O SACERDOTE - Vós esqueceis, minha filha, que a principal região do cérebro não tem, como as outras duas, comunicações diretas com o exterior, que não pode, portanto, modificar o sentimento senão por intermédio da inteligência ou da atividade. Verdade é que os órgãos afetivos se acham imediatamente ligados às vísceras vegetativas. Mas a influência moral destas, aliás submetida a leis pouco conhecidas, só se torna considerável na existência pessoal. Fica omissível em relação ao estado social, em virtude da neutralização espontânea que ela aí experimenta entre os diversos casos, simultâneos ou sucessivos. Nossas opiniões e nossas situações constituem, portanto, as únicas fontes normais das variações por que passam nossos sentimentos nas diferentes fases da evolução humana, sobretudo coletiva. Porém, a marcha geral destas mudanças indiretas é, aliás, conforme com a das mutações diretas de que dependem. Porquanto, se se pode resumir a evolução especulativa e a evolução ativa considerando-as como tendendo a tornar-nos mais sintéticos e mais sinérgicos, reconhece-se igualmente que a nossa evolução afetiva consiste sobretudo em tornar-nos mais simpáticos. Nossa existência sendo principalmente caracterizada pela unidade, nosso surto deve essencialmente desenvolver a harmonia humana. Assim, toda a história da Humanidade condensa-se necessariamente na história da religião. A lei geral do movimento humano consiste, sob qualquer aspecto, em que o homem se torne cada vez mais religioso. Tal é o resultado final do conjunto das apreciações dinâmicas, desde logo plenamente acordes com as noções estáticas: a educação da espécie, como a do indivíduo, prepara-nos gradualmente a viver para outrem. A MULHER - À vista deste último esclarecimento, não encontro agora, meu pai, nenhuma grave dificuldade na teoria da evolução que serve de base à verdadeira filosofia da História. Podeis, por conseguinte, proceder imediatamente à sumária explicação das principais fases da Humanidade. O SACERDOTE - A fim de vos facilitar este estudo, convido-vos, minha filha, a consultar amiúde o quadro aqui anexo (vide o quadro D), extraído da quarta edição do Sistema Geral de Comemoração Pública Peculiar à Transição Orgânica da República Ocidental. (Reproduzimos o Calendário Concreto segundo a edição dada pelo Dr. Robinet no seu livro biográfico sobre Auguste Comte, porque nela foram contempladas as indicações manuscritas deixadas, sobre este assunto, pelo Mestre. A propósito do calendário, lembraremos que a era positivista provisória, atualmente usada por nós, é referida a 1° de janeiro de 1789, ano em que o povo parisiense iniciou a Revolução Francesa derrocando a Bastilha. A era supra deverá ser conservada até o fim: da transição orgânica, "porque importa que todos os ocidentais possam medir habitualmente o curso da crise final. Mas o estado normal não pode conservar uma era que lembra uma explosão anárquica seguida logo de uma longa retrogradação. Entretanto, não se poderia ligar assaz o futuro ao passado sem tomar no século excepcional o ponto de partida da cronologia final. Para conciliar estas duas condições, basta colocar a era positiva no inicio da transição orgânica, reservada à última das três gerações compreendidas entre a extinção do teologismo e o estabelecimento do positivismo. Fixado cronologicamente no ano de 1855, este ponto de partida se acha aí sociologicamente caracterizado pela coincidência decisiva de uma irrevogável ditadura com a inteira construção da Religião da Humanidade. As duas eras, provisória e definitiva, do calendário positivista devem, portanto, diferir de dois terços de século; o que facilita a comparação habitual entre o presente e o futuro ou o passado." (Política Positiva, tomo N, pp. 399-400)). Haveis logo de notar neste quadro a ausência total de indicações relativas ao fetichismo, que constitui entretanto nosso estado primordial, e que ainda subsiste em numerosas populações. Mas esta lacuna inevitável só é devida à natureza concreta deste quadro, incapaz de abraçar uma fase histórica que não fez surgir nenhum nome duradouro. O fetichismo não pode ser dignamente celebrado senão no nosso culto abstrato, onde sabeis quanto o honraremos. A eficácia mental do fetichismo consiste sobretudo em fundar espontaneamente o método subjetivo, que, absoluto a princípio, dirigiu o conjunto da preparação humana, e que, tornado relativo, presidirá cada vez mais ao nosso estado normal. A verdadeira lógica, em que os sentimentos dominam as imagens e os sinais, tem, pois, uma origem fetíchica. Quando uma paixão qualquer nos impele a procurar as causas dos fenômenos cujas leis ignoramos, a fim de modificá-los depois de os ter previsto, nós atribuímos diretamente aos seres correspondentes afeições humanas, em vez de os sujeitar a vontades exteriores. O fetichismo é, pois, mais natural que o politeísmo. Não se pode contestar sua aptidão moral, à vista de sua tendência a fazer prevalecer espontaneamente por toda parte o tipo humano. Ele torna-nos profundamente simpáticos em relação a todas as existências, mesmo as mais inertes, apresentando-no-las sempre como essencialmente análogas à nossa. Por isso também este primeiro estado da Humanidade desperta mais saudades do que qualquer outro naqueles que são a ele subtraídos bruscamente; como o atesta a experiência cotidiana dos infelizes africanos transportados para longínquas terras pela barbárie ocidental. Mesmo sob o aspecto social, menos favorável ao fetichismo, devem-se-lhe importantes serviços, que o culto positivo dignamente glorificará. Enquanto a existência permanece nômade, ele modera, pela sua tendência à adoração material, as imensas destruições, aliás necessárias, embora cegas, que os povos caçadores ou pastores exercem, então, sobre os animais ou vegetais, para preparar o teatro humano. Porém, o seu principal benefício consiste em dirigir espontaneamente a primeira das revoluções sociais, aquela que serve de base a todas as outras, a passagem para o estado sedentário. Esta grande transformação, cuja dificuldade é tão mal aquilatada quanto à sua importância, pertence certamente ao fetichismo, em virtude do profundo apego que ele nos inspira pelo solo natal. A principal imperfeição deste regime espontâneo consiste em não deixar surgir senão muito tardiamente um sacerdócio qualquer, capaz de regular em seguida o surto humano. Porquanto este culto, apesar de muito desenvolvido, não exige no princípio nenhum sacerdote, visto sua natureza essencialmente privada, que permite a cada um adorar sem intermediário seres quase sempre acessíveis. Todavia, o sacerdócio acaba por surgir aí, quando os astros, por longo tempo desdenhados, se tornam os principais fetiches, desde logo comuns a vastas populações. A natureza inacessível deles sendo assaz reconhecida, suscita uma classe especial, destinada a transmitir as homenagens e a comentar as vontades. Mas, neste estado final, o fetichismo confina com o politeísmo, que por toda parte proveio da astrolatria, como ainda o indicam os nomes dos grandes deuses, sempre tirados dos astros mais adequados a perpetuarem a síntese fictícia. A MULHER - Conquanto essa passagem se tenha realizado sem esforço, ela parece-me constituir, meu pai, a mais difícil das revoluções preliminares de nossa inteligência; porquanto ternos, então, que substituir bruscamente a atividade pela inércia em nossa concepção geral da matéria, para motivar a influência divina. O SACERDOTE - Todavia, minha filha, os agentes exteriores introduzem-se espontaneamente quando o espírito humano, atingindo sua segunda infância, eleva-se da contemplação dos seres à dos acontecimentos, única base possível das meditações científicas. Prolongando o método inicial, os fenômenos, considerados simultaneamente em muitos corpos, são então atribuídos a vontades mais gerais, necessariamente dimanadas do exterior. Esta transformação intelectual deveria ser-nos familiar à vista dos frequentes exemplos que dela podemos observar na idade correspondente da evolução individual. Seja como for, é principalmente do politeísmo que depende o conjunto da preparação humana, sobretudo social e mesmo mental. Em primeiro lugar, só ele é que completa a filosofia inicial, estendendo-a às nossas mais elevadas funções, que em breve suscitam a ocupação favorita dos deuses. Com efeito, o fetichismo, essencialmente relativo ao mundo material, não podia abarcar de modo distinto nossa existência intelectual e moral, da qual procediam, pelo contrário, todas as suas explicações físicas. Introduzindo, porém, seres sobrenaturais, pode-se adaptá-los a este novo destino, que não tarda em prevalecer. Ao mesmo tempo, o politeísmo suscita necessariamente um sacerdócio propriamente dito, ou antes, consolida e desenvolve aquele que a astrolatria fundou. No meio das variedades que apresenta o regime correspondente, notam-se duas instituições conexas, que são comuns a todos os seus modos: a confusão radical dos dois poderes, espiritual e temporal; a escravidão da população laboriosa. Todos os motivos, mesmo intelectuais, e sobretudo sociais, concorrem espontaneamente para a explicação da primeira. Em primeiro lugar, ninguém pode limitar-se a aconselhar quando fala em nome de uma autoridade sem limites, cujas inspirações todas se transformam naturalmente em comandos absolutos. Em segundo lugar, nosso regime preliminar devia sobretudo desenvolver as diversas forças humanas, reservando à ordem final a sábia regularização delas, baseada no conjunto de tal aprendizagem. Todos os poderes deviam, portanto, achar-se nesse regime profundamente combinados, a fim de superarem assaz a indisciplina natural do homem primitivo. A divisão dos dois poderes humanos teria radicalmente entravado o destino ativo desse regime, opondo-se ao surto das conquistas. Enfim, a íntima discordância entre as concepções teóricas e as noções práticas exigia, então, que estas duas ordens de pensamentos ocupassem igualmente cada cérebro, a fim de que os seus vícios respectivos pudessem ser aí bastante neutralizados. Por outro lado, esta indispensável concentração realiza-se espontaneamente, como o atesta a impossibilidade de conceber-se então uma verdadeira separação entre o conselho e o comando, mesmo pelos filósofos mais bem preparados. Ponderação semelhante aplica-se à escravidão antiga, que sempre foi julgada necessária à ordem social, até os tempos vizinhos de uma irrevogável emancipação. O escravo, como ainda o lembra a etimologia latina (Segundo a etimologia até aqui mais aceita, servos deriva-se de servare, conservar, salvar, preservar), foi a princípio um prisioneiro de guerra, poupado para o trabalho, em vez de ser destruído ou devorado. Em virtude da natureza conciliante do politeísmo, ele podia conservar seu próprio culto, subordinando-o à religião do vencedor, tornado seu chefe espiritual e temporal. Esta condição social, de que ninguém estava inteiramente isento, visto as vicissitudes da guerra, era então bastante natural para ser amiúde aceita independentemente de sua fonte militar, que contudo prevaleceu sempre. A instituição da escravidão formou duplamente a base da civilização antiga, primeiro por ser indispensável ao desenvolvimento das conquistas, segundo, a fim de habituar o homem ao trabalho, que se tornou assim o único meio de melhoramento pessoal, depois de ter sido o penhor da vida. Sob todos estes aspectos não se pode, de modo nenhum, compará-la à efêmera monstruosidade suscitada pela colonização moderna. A MULHER - Depois deste apanhado geral do regime politéico, precisaria, meu pai, conhecer sumariamente seus principais modos. O SACERDOTE - O mais fundamental consiste, minha filha, na teocracia propriamente dita. Este politeísmo conservador constitui a única ordem verdadeiramente completa que comporta o conjunto da preparação humana, da qual todas as outras fases não oferecem senão modificações dissolventes desse regime primitivo, única fonte da consistência parcial dessas fases. Ele assenta sobre duas instituições conexas, a hereditariedade das profissões quaisquer e o universal predomínio da casa sacerdotal. A primeira fornece o único meio de conservar os progressos realizados, e de permitir lentamente modificações secundárias, enquanto a educação operou-se antes por imitação do que por ensino, visto não existir separação entre a teoria e a prática. Mas este regime necessário decomporia a população em castas profundamente independentes, se a uniforme preponderância do sacerdócio não viesse constituir nele o Estado, fornecendo todos um laço venerado, que espontaneamente comporta uma vasta extensão. Esta constituição inicial é por tal modo natural que ainda subsiste nas mais populosas nações de hoje, apesar de imensas perturbações. Posto que tivesse surgido por toda parte, ela não pôde prevalecer a esse ponto senão nos lugares em que a inteligência e o trabalho- se desenvolveram antes da atividade militar. Com efeito, esta se torna sempre o dissolvente espontâneo de semelhante regime, tendendo a fazer prevalecer os guerreiros sobre os padres. Apesar dos imensos esforços da política sacerdotal tendentes a desviar o ardor belicoso para longínquas expedições, sempre seguidas de irrevogáveis colonizações, a teocracia terminou por toda parte no domínio do patriciado militar, mas conservando os costumes antigos. Esta última atitude, irrecusável confirmação da tenacidade de tal regime, permite hoje estudá-lo diretamente, embora muito alterado, mesmo na China (Toda a filosofia da civilização chinesa, condensou-a depois Auguste Comte nestas poucas linhas: Um concurso especial de influências sobretudo sociais dispôs a civilização chinesa a desenvolver o fetichismo além de tudo quanto foi possível alhures. Mais bem sistematizado que em nenhum outro caso, ele aí prevaleceu sobre o teologismo, e preservou a terça parte de nossa espécie do regime das castas, apesar da hereditariedade das profissões. Superou aí todos os contatos heterogêneos, e conservou seu ascendente nacional no meio das misturas, mais toleradas do que consagradas, do politeísmo exterior, sem acolher jamais o monoteísmo. O culto aí consiste sobretudo na adoração da Terra e do Céu ... Segundo o caráter concreto da sociabilidade chinesa, cuja principal imperfeição resulta da falta de desenvolvimento abstrato, o Espaço aí se confunde com o conjunto dos corpos celestes, sob o impulso astrolátrico. Expurgada pela relatividade, esta instituição será facilmente subordinada à Humanidade em um povo onde a destinação social prevalece sempre." (Síntese Subjetiva. Introdução, pp. 22-23.) O Sr. Laffitte, num interessante opúsculo, se encarregou de demonstrar em seu conjunto, em suas partes, o teorema sociológico constituído pelo admirável trecho que acabamos de citar) e na Índia, a fim de compreender melhor o vetusto Egito, venerável mãe de toda a civilização ocidental. Pode-se então apreciar, numa grande escala, o ofício social do sacerdócio, ao mesmo tempo conselheiro, consagrador, regulador e finalmente juiz. Mas vê-se também aí quanto esta atribuição fundamental achava-se profundamente comprometida pelo comando e pela riqueza que necessariamente macularam a intervenção inicial da inteligência no domínio do sentimento e da atividade. Deve causar-vos surpresa que semelhante regime esteja tão pouco representado no quadro que vos propus. Isto é devido sobretudo, como no caso do fetichismo, à natureza concreta dessa composição histórica, mais estética do que científica. Todavia, tratando-se de um regime que deixa tantos monumentos de todo gênero, tal explicação geral precisa de um desenvolvimento especial. Consiste em notar um dos mais nobres caracteres da verdadeira teocracia, no qual o governo humano reside em corporações imensas e perpétuas, sem que os serviços prestados possam quase nunca ligar-se a nomes particulares. Se semelhante tendência para a absorção dos indivíduos não existisse então, os diversos colégios sacerdotais teriam sido amiúde perturbados pelas rivalidades naturais das divindades politéicas. É somente quando a teocracia, segundo uma exceção felizmente única, se funda no monoteísmo, que uma extrema concentração faz aí sobressair os nomes supremos. Por isso a natureza concreta do nosso quadro forçou a escolher Moisés como tipo pessoal do regime inicial, conquanto ele represente de modo muito imperfeito uma constituição essencialmente peculiar ao politeísmo. A MULHER - Esta admiração refletida pela teocracia faz-me apreciar melhor, meu pai, a profunda injustiça das obcecadas imputações de que ela é ainda objeto por parte da maioria dos homens que se creem adiantados. A julgar por essas críticas, pareceria que o regime de onde tudo dimana, e que durou mais do que qualquer outro, foi sempre opressivo e degradante; de modo que não se compreenderia mais de onde puderam surgir os progressos realizados. O SACERDOTE - Todas essas críticas da teocracia devem ser consideradas, minha filha, como tão frívolas quanto às acusações de Santo Agostinho contra o conjunto do politeísmo e as recriminações de Voltaire contra o catolicismo. Nenhum regime pode merecer tais censuras senão durante sua decadência. Nunca teria surgido nem prevalecido se a maior parte de seu domínio não houvesse sido suficientemente conforme com a nossa natureza, e mesmo assaz favorável aos nossos progressos. As tendências opressivas para a imobilidade não se desenvolvem realmente senão na última fase da teocracia. Elas provêm aí da inevitável degradação do caráter sacerdotal pelo comando e pela riqueza. Mas, por outro lado, tem-se exagerado muito a imutabilidade teocrática, por causa do contraste que resulta da rapidez superior que distingue a marcha ocidental. Independentemente de toda perturbação estranha, indícios decisivos e multiplicados manifestam, há muito tempo, o movimento espontâneo de semelhante civilização. Por exemplo, o budismo, conquanto comprimido no seu centro, produziu em breve no Tibete profundas modificações, desenvolvidas na China pela instituição dos exames. Quando o positivismo tiver de penetrar nessas imensas populações, será chegado o tempo de estudar com cuidado a progressão natural que as teria levado ulteriormente por si mesmas ao nível final do Ocidente, segundo uma marcha distinta mas equivalente; porque é a essas tendências espontâneas que se deverá sabiamente reatar a aceleração sistemática, afastando todas as perturbações violentas introduzidas pelo monoteísmo, primeiro muçulmano, depois cristão. No entanto, guardando para depois esta importante apreciação, devemos agora concentrar nossos estudos históricos nos antepassados imediatos da civilização ocidental. Somos, assim, levados a fazer predominar o exame das populações em que o estabelecimento teocrático foi previamente evitado por um desenvolvimento precoce da atividade militar. Mas este politeísmo progressivo apresenta dois modos, muito diferentes, um essencialmente intelectual, o outro eminentemente social. O primeiro dá-se quando as circunstâncias locais e políticas não permitem que a atividade militar, embora muito desenvolvida, institua um verdadeiro sistema de conquistas. Neste caso a reação latente dessa atividade impele todos os homens superiores para a cultura mental, transformada também em principal objeto da atenção pública, e desprendida, assim, da disciplina sacerdotal. Quando, pelo contrário, a guerra pode tender livremente para o domínio universal, a inteligência subordina-se à atividade, e todos os cidadãos são ordinariamente absorvidos pelas solicitudes sociais, tanto no interior como no exterior. Estes dois modos do politeísmo progressivo foram igualmente necessários, cada um segundo sua natureza e em sua época, ao grande movimento ocidental que se seguiu à ruptura espontânea do jugo teocrático. Nenhuma teocracia escapa finalmente ao ascendente social dos guerreiros sobre os padres. A própria teocracia da Judéia, apesar de sua concentração excepcional, passou também por esta revolução, quando os reis sucederam aos juízes, seis séculos depois de fundada. Importa, porém, distinguir entre os casos em que esta mudança não se efetua senão quando os costumes teocráticos já adquiriram uma plena consistência e aqueles em que o rápido advento de tal mudança precede semelhante constituição, por conseguinte essencialmente abordada. Nossa evolução ocidental dependeu sobretudo deste último impulso, que todavia nunca teria bastado sem os germes acertadamente tomados às puras teocracias. Os tempos cantados por Homero marcam nitidamente o começo de semelhante série. Com efeito, duas gerações haviam então passado, quando muito, desde que os guerreiros começaram a dominar os sacerdotes entre nossos antepassados helênicos. A teocracia primitiva se manifesta ainda aí pelos oráculos numerosos e respeitados, embora dispersos, que persistiram na Grécia mais do que alhures. A MULHER - A partir desta era ocidental, vós me anunciastes, meu pai, que a evolução humana constitui realmente uma imensa transição, sem comportar nenhum verdadeiro regime. Sente-se quanto é exata semelhante apreciação quando se opõe a curta duração dos diversos estados sociais que desde então se sucedem, quer à persistência anterior da teocracia precedida do fetichismo, quer ao incomparável porvir da ordem positiva. Mas eu quisera conceber agora a marcha geral dessa transição necessária. O SACERDOTE - Semelhante preparação, exatamente representada pelo nosso quadro concreto, refere-se, minha filha, como o conjunto da natureza humana, primeiro à inteligência, depois à atividade, para terminar, enfim no sentimento. A teocracia inicial cultivava simultaneamente estas três faces da nossa existência, submetida assim a regras completas, conquanto demasiado desfavoráveis aos nossos progressos contínuos. Mas, tanto esta disciplina era a única que se adaptava ao teologismo, que nunca foi possível substituir-lhe nada de durável enquanto prevaleceu a síntese fictícia. Só se acelerou a marcha quebrando semelhante harmonia, para desenvolver sucessivamente cada parte da existência humana à custa das outras duas. Este caráter profundamente incompleto distingue de modo nítido, primeiro a elaboração grega, em seguida a preparação romana, enfim a iniciação católico-feudal. A ordem destas três evoluções parciais resulta desde logo de seu destino comum. Porquanto cumpria, então, sobretudo desenvolver as forças humanas, sem aspirar ainda a discipliná-las, a não ser pelo seu antagonismo espontâneo. Todo esforço prematuro para regular o conjunto de nossa existência tendia a restabelecer uma teocracia sempre iminente, e tornara-se contrário ao surto especial que se queria secundar. Eis aí por que o sentimento, principal fonte de disciplina, teve de ser por longo tempo desprezado, de modo a não prevalecer senão quando o desenvolvimento teórico e prático estivesse bastante adiantado. A própria expansão de nossas forças exigia que a inteligência precedesse a atividade; porque, a marcha ativa tendendo então a reunir todos os politeístas progressivos sob um mesmo domínio, se teria tornado incompatível com a plena liberdade que exige a evolução especulativa, se esta não se houvesse efetuado previamente. DÉCIMA TERCEIRA CONFERÊNCIA TRANSIÇÃO PECULIAR AO OCIDENTE A MULHER - Graças às explicações finais da conferência anterior, eu concebo, meu pai, a natureza e a sucessão das três grandes fases peculiares à transição necessária que nos separa dos tempos homéricos. Preciso, porém, compreender melhor sua marcha e encadeamento, começando pela evolução grega. O SACERDOTE - O brilho imortal desta não deve impedir-vos, minha filha, de deplorardes seu contraste geral com a evolução romana, quanto à influência respectiva delas sobre as populações correspondentes. Em Roma, trata-se de uma construção coletiva, em que todos os homens livres devem sempre participar ativamente, sob pena de malogro radical. Na Grécia, a população permanece essencialmente passiva e forma uma espécie de pedestal a alguns pensadores verdadeiramente eminentes, cujo número total, na arte, na filosofia e na ciência, não excede a cem, desde Homero e Hesíodo até Ptolomeu e Galeno. De um lado, a elevada atividade comum proporciona à nação uma nobreza universal, cujos vestígios são ainda apreciáveis. Porém, no outro caso, a monstruosa preponderância concedida à especulação sobre a ação conduziu ao aviltamento, demasiado sensível hoje, de uma população sacrificada que acabou por colocar acima de tudo os talentos de expressão. As cidades gregas só foram preservadas de cair cada uma sob a vil tirania de algum retórico pela conquista romana. Essas tribos por demais gabadas não comportaram verdadeiramente senão uma bela fase social, que apenas se prolongou por dois séculos, e ainda assim interrompida amiúde pelas suas miseráveis contestações. Essa fase resultou da admirável luta, primeiro defensiva, depois ofensiva, que sustentaram contra a violenta opressão com que a teocracia persa ameaçava esse precioso núcleo de livres-pensadores, encarregado então dos destinos intelectuais da Humanidade. Mas aí mesmo os sucessos principais foram devidos sobretudo a alguns cidadãos incomparáveis: porque cada população se mostra amiúde disposta a sacrificar a defesa comum às rivalidades mútuas. Nesta longa elaboração mental, cumpre distinguir três fases desiguais fielmente caracterizadas no quadro concreto. O movimento começa pela arte de que Homero é o eterno representante. Forçoso era que a poesia, ao mesmo tempo mais independente e mais constrangida, fosse a primeira a desprender-se do tronco teocrático, de modo a começar a emancipação ocidental. Ela prepara o advento da filosofia que, a princípio esboçada por Tales e Pitágoras, personifica-se enfim no incomparável Aristóteles, por tal forma superior ao seu tempo que só pôde ser apreciado na Idade Média. Sob a presidência de sua eterna elaboração, este segundo surto fica assaz caracterizado a ponto de fazer sentir em breve aos verdadeiros pensadores a impossibilidade de ultrapassá-lo sem um longo preâmbulo científico que pudesse desenvolver suficientemente sua primordial base positiva. Então a ciência real, admiravelmente representada por Arquimedes, tornou-se, por sua vez, o objeto principal do gênio grego, cuja aptidão estética e força filosófica se achavam irrevogavelmente exaustas. A MULHER - Quanto à preparação romana, sempre a achei, meu pai, muito mais bem apreciável, em virtude do caráter homogêneo e saliente que distingue essa admirável ascensão gradativa para o domínio universal. A principal obra de Bossuet contém, a esse respeito, eminentes apanhados, que há muito tempo conheço. Esse sistema político é por tal modo compreensível, que pode ser assaz definido por uns quantos versos incomparáveis, que me foram explicados outrora. Se bem que apenas indiquem o destino exterior, tais versos fazem sentir quanto à constituição inferior estava intimamente ligada àquele. O SACERDOTE - Só resta, minha filha, completar semelhante conjunto distinguindo suas duas fases essenciais. Enquanto a incorporação romana não abraçou a maior parte do Ocidente, a atividade guerreira teve de ser dirigida pela casta senatorial forte de seu ascendente teocrático, graças ao qual o surto comum continha suficientemente os ciúmes plebeus. Porém, esta constituição militar houve de mudar quando o domínio se tornou assaz extenso e consolidado para não mais absorver a solicitude do povo, do qual os imperadores se tornaram os verdadeiros representantes contra a tirania patrícia. Virgílio caracterizou a política romana, personificada no incomparável César, no tempo mesmo em que este sistema experimentava, sem que o terno poeta tivesse disso consciência, essa transformação decisiva, primeiro sintoma de seu declínio necessário. Essas duas fases quase iguais, uma eminentemente progressiva, a outra essencialmente conservadora, tiveram cada uma delas muita eficácia social para o conjunto da preparação ocidental. Se devemos a primeira o salutar domínio que comprimiu por toda parte guerras estéreis, e no entanto contínuas, devemos à outra os benefícios civis dessa incorporação política, em virtude da uniforme propagação da evolução grega. Conquistando a Grécia, Roma rendeu-lhe sempre digno preito e consagrou sua própria influência a derramar resultados estéticos, filosóficos e científicos, cujo principal destino exigia semelhante disseminação. Quando os últimos movimentos, um intelectual, outro social, peculiares à Antiguidade, ficaram assim combinados irrevogavelmente, a preparação humana tendeu logo para sua última fase necessária. O desenvolvimento, teórico e prático, de nossas principais forças não tardou em fazer sentir profundamente a necessidade de as regular; porquanto a disciplina espontânea que resultava de um destino temporário ficou radicalmente dissolvida logo que esse objetivo foi alcançado. Então o espírito e o coração se entregaram a desregramentos sem exemplos, em que todos os nossos tesouros intelectuais e materiais eram dissipados em ignóbeis satisfações de um egoísmo infrene. Ao mesmo tempo em que a regeneração se tornava indispensável, o conjunto dos antecedentes greco-romanos parecia fornecer-lhe uma base sistemática, em virtude da preponderância intelectual do monoteísmo, combinada com a tendência social para uma religião universal. O catolicismo surgiu, assim, para satisfazer a essa imensa urgência de disciplina completa, sob o impulso demasiado menosprezado do incomparável São Paulo, cuja sublime abnegação pessoal facilitou o progresso da unidade nascente, deixando prevalecer um falso fundador. Mas a natureza profundamente contraditória de semelhante construção indicava já esta última transição como mais rápida e menos extensa que as preparações precedentes. Com efeito, o alvo principal não podia ser aí atingido senão pela separação radical dos dois poderes humanos, aliás espontaneamente nascida de uma situação em que o monoteísmo crescia lentamente sob o domínio político do politeísmo. No entanto, semelhante divisão permanecia sempre incompatível com o gênio necessariamente absoluto do teologismo, que, sobretudo em sua concentração monotéica, não permite que o sacerdócio se limite ao conselho senão enquanto não se pode apoderar do comando. Esta contradição necessária caracteriza-se sobretudo por dois contrastes gerais, um social, outro intelectual. Não é possível, então fundar a disciplina humana senão sobre a vida futura, à qual o novo sacerdócio confere uma importância até então desconhecida, mesmo na Judéia, a fim de fazer dela um domínio exclusivo para si. Mas semelhante modo tornava-se impróprio para regular a existência real, porque apartava da sociedade para impelir cada crente ao ascetismo solitário. Por outro lado, a íntima discordância entre a teoria e a prática, que se achava dissimulada, e mesmo compensada, enquanto os dois poderes permaneciam confundidos, manifestou-se completamente por efeito de sua separação. A concentração monotéica desenvolveu sobretudo o contraste necessário entre as vontades arbitrárias e as leis imutáveis; porquanto a engenhosa conciliação que Aristóteles havia preparado não era destinada senão à fase ulterior em que o espírito positivo havia de tender primeiro para seu ascendente final sob a tutela teológica. À vista do conjunto destes contrastes, não é para estranhar que o movimento católico tivesse sido repelido durante tanto tempo, como uma verdadeira retrogradação, pelos melhores tipos, teóricos ou práticos, do Império Romano. Esses chefes eminentes achavam-se gradualmente inclinados, desde Cipião e César, ao advento direto do reino da Humanidade, sob o predomínio simultâneo do espírito positivo e da vida industrial. Eles não tinham, porém, percebido a necessidade de uma verdadeira preparação social, essencialmente relativa ao sentimento, para produzir o regime final pela dupla emancipação das mulheres e dos trabalhadores, reservada à Idade Média. A MULHER - Este grande resultado parece-me, meu pai, que só é aqui referido primeiro ao catolicismo a fim de caracterizar melhor sua filiação histórica, representando-o como podendo provir do regime antigo sob o novo impulso religioso. Ele foi, porém, secundado profundamente, e mesmo muito acelerado, pela influência feudal. O catolicismo, que outrora possuiu minha fé, conservará sempre minha veneração. Contudo, nunca pude deixar de lhe preferir no meu íntimo a cavalaria, cujo nobre resumo ainda ouço repercutir no século XVI: Faze o que deves, suceda o que suceder. O SACERDOTE - Só tenho, minha filha, que completar vossa justa apreciação fazendo-vos ver que o estado feudal, atribuído indevidamente às invasões germânicas, foi também uma consequência necessária do regime romano, que no fim tendeu para aí espontaneamente. De fato, a extensão do império transformou dentro de pouco a conquista em defesa. Ora, os outros dois caracteres políticos da Idade Média resultam necessariamente dessa transformação principal. De um lado, ela mudou gradualmente a escravidão em servidão, depois de ter naturalmente restringido o tráfico ao interior do mundo romano. Ao mesmo tempo, ela decompôs cada vez mais o domínio central em autoridades locais, encarregadas cada uma de uma defesa parcial, e cuja subordinação hierárquica constituiu a feudalidade propriamente dita. O catolicismo não fez senão sancionar espontaneamente esta tríplice tendência política, recomendando a, paz, a emancipação e a submissão. Mas foi ele, então, o digno órgão dos sentimentos inspirados pela situação ocidental, os quais não devem ser atribuídos à sua doutrina, que amiúde serviu depois para consagrar disposições inteiramente opostas em virtude de seu caráter vago e mesmo antissocial. Ele contribuiu muito menos que o feudalismo, quer para a abolição, primeiro urbana, depois rural, da escravidão ocidental, quer para a emancipação feminina, onde só lhe devemos a pureza prévia, mas de modo algum a ternura final, sempre cavalheiresca. Em toda a Igreja grega, ele ainda consagra a reclusão das mulheres, a servidão dos trabalhadores, que só os czares vão modificando dignamente. A MULHER - Assaz preparada, meu pai, para esta apreciação geral da Idade Média, só me resta conhecer a principal divisão dessa última transição orgânica. O SACERDOTE - Ela resulta, minha filha, do duplo sistema de guerras defensivas em que o Ocidente teve, então, de absorver sua atividade coletiva, enquanto nele se consumava gradualmente a grande revolução social que acabo de caracterizar. Uma primeira fase, começando no princípio do século V e terminando com o VII, é preenchida pelo estabelecimento fundamental, em que surgem, sob as invasões suscetíveis de êxito durável, todos os caracteres próprios da Idade Média, salvo a língua. Então a independência prevalece sobre o concurso. Numa segunda fase de igual duração, a necessidade de concentração torna-se dominante, a fim de reprimir as invasões perturbadoras das populações suscetíveis de serem incorporadas ao Ocidente, graças à sua fácil conversão ao catolicismo. Esta atividade coletiva do Ocidente foi sobretudo dirigida pela ditadura do incomparável Carlos Magno, dignamente completada pelos seus sucessores germânicos. Assim funda-se a República Ocidental, em que a antiga comunhão, devida à incorporação forçada, transforma-se numa associação voluntária de Estados independentes, apenas diretamente ligados por um mesmo regime espiritual, condensado no papado. Esta mudança tende já, apesar das influências eclesiásticas e das recordações políticas, a deslocar o centro social do sistema, transportando-o de Roma para Paris, onde ele se achava irrevogavelmente fixado, desde o fim da Idade Média, como mais adequado às relações locais. Mas, durante esta segunda fase, o Oriente sofreu um vasto abalo que não tardou em reagir profundamente sobre o conjunto do Ocidente, primeiro prolongando neste o regime católico-feudal, e depois dando começo à sua irreparável dissolução. A necessidade de uma religião verdadeiramente universal era sentida havia muito tempo, na maior parte da raça branca, incluindo mesmo a porção que, embora adjacente ao Império Romano, tinha evitado seu domínio. Ora, essa universalidade, cuja invocação caracteriza há um tempo o principal mérito da melhor crítica do catolicismo, não pode de modo algum pertencer ao teologismo, e está exclusivamente reservada ao positivismo. No entanto, o monoteísmo se aproxima mais dela do que o politeísmo. Este foi sempre uma religião essencialmente nacional, porém muito conciliável com a incorporação militar. Pelo contrário, o monoteísmo pode agremiar povos verdadeiramente independentes, conquanto esta aptidão não se tenha realizado assaz senão no Ocidente, na Idade Média. O Oriente devia, pois, tender também para uma fé monotéica, mas profundamente incompatível com a crença ocidental, em virtude da diversidade dos destinos sociais. Com efeito, o islamismo dirigia sobretudo o surto militar de uma outra nobre parte da raça branca, aspirando por sua vez a se tornar o principal núcleo do verdadeiro Grande Ser. Por isso a antiga confusão dos dois poderes foi aí necessariamente conservada e mesmo desenvolvida, em virtude da concentração monotéica. Tornado assim mais conforme ao gênio natural do teologismo, o monoteísmo podia, e mesmo devia, adquirir, no Oriente, uma simplicidade dogmática que ele não comportava no Ocidente. Porquanto, entre nós, a separação factícia das duas potências havia forçado o verdadeiro fundador do catolicismo a complicar o dogma completando a revelação, indispensável a todo monoteísmo, pela divinização do suposto fundador. Daí resultaram outras complicações secundárias, que o islamismo se honrou de afastar também para assegurar melhor o predomínio do caráter militar contra a degeneração sacerdotal do chefe supremo. A independência do clero forneceu, com efeito, o motivo essencial dessas sutilezas católicas, que merecem historicamente a veneração dos filósofos, por maior que seja a repugnância que devam inspirar à nossa razão. Desde o começo dessa luta entre dois monoteísmos inconciliáveis, um livre-pensador poderia ter previsto que ela conduziria breve a desacreditá-los igualmente, mostrando a inanidade radical de suas comuns pretensões à universalidade. Esse imenso conflito enche a última fase da Idade Média, começando com o século XI e terminando no fim do século XIII. Então se estabelece em primeiro lugar o feudalismo propriamente dito, onde a independência e o concurso, que alternada mente prevaleceram, se achavam enfim dignamente combinados, de modo a fazer já pressentir a sociocracia final. Essa admirável instituição tornou-se no século XII a base geral dessas heroicas expedições em que a República Ocidental, consolidada e desenvolvida pela atividade coletiva, dissipou finalmente todos os receios de invasão muçulmana. A partir do século seguinte, as cruzadas, essencialmente destituídas de destino social, não tardaram em adulterar-se e desacreditar-se. O conjunto do mundo romano ficou dividido, desde então, entre dois monoteísmos incompatíveis, tendendo logo cada um deles para o seu irrevogável declínio, que só foi retardado, de um lado e de outro, pela dificuldade de substituir-lhes um novo regime. A MULHER - Esta teoria geral da Idade Média deixa-me, meu pai, enfim compreender o conjunto do catolicismo, intelectual e social: concebo seu advento necessário, sua missão temporária e sua irreparável decadência. Porém, tal apreciação indica melhor quanto o catolicismo foi injusto para com a elaboração grega e a incorporação romana, cuja combinação espontânea havia determinado sua formação. Depois de ter amaldiçoado seus pais, ele foi, por sua vez, amaldiçoado por seus filhos. Conquanto o primeiro erro não desculpe o segundo, explica-o, manifestando a ruptura da continuidade humana. O SACERDOTE - Com efeito, minha filha, essa continuidade havia sido respeitada nas revoluções precedentes. O politeísmo substituíra primeiro o fetichismo de um modo quase insensível, incorporando-o a si espontaneamente. Quando o regime militar veio suceder à teocracia inicial, foi ainda sem romper seus antecedentes sociais que continuaram sempre a ser acatados. O mesmo dá-se quando Roma absorve a Grécia, glorificando-se de prolongar sua evolução. Mas o advento do catolicismo oferece, pelo contrário, um caráter anárquico. O futuro e o presente são nele concebidos e dirigidos como se o passado greco-romano nunca houvesse existido. A injustiça cristã estende-se mesmo até os antecedentes judaicos, apesar da viciosa importância que lhes era atribuída. Esta brutal descontinuidade, que o islamismo se esforçou por evitar, alterou muito o sentimento geral do progresso social, cujo primeiro esboço o catolicismo fez surgir espontaneamente, em virtude da superioridade real de seu regime sobre o precedente. Importa apreciar bem semelhante ruptura dos laços históricos. Ela explica, em primeiro lugar, a íntima contradição, intelectual e moral, em que breve ficou colocada uma doutrina que, nascida da discussão, quis depois proibi-la, e que exigiu de seus filhos o respeito que ela negava aos seus pais. Mas cumpre, sobretudo, apanhar aí a verdadeira origem da mais grave disposição peculiar à anarquia moderna. O sentimento e o espírito anti-históricos, cujo predomínio constitui hoje o principal obstáculo à reorganização ocidental, datam assim do advento do catolicismo. Esta imensa dificuldade não pode ser superada senão pelo positivismo, porque só ele é capaz de igualmente fazer justiça a todas as fases, sociais ou mentais, da evolução humana. Todavia, cumpre reconhecer aqui, como por toda parte alhures, que a eminente sabedoria do sacerdócio católico neutralizou, durante muito tempo, os principais vícios de sua deplorável doutrina. Apropriando-se da língua de Roma quando ela cessou de prevalecer, ele conservou espontaneamente todos os tesouros intelectuais da Antiguidade inclusive na sua bela teologia. A comovente lenda, tão dignamente imortalizada por Dante, acerca da feliz intercessão de um santo papa em favor de Trajano bastará para indicar quanto as nobres almas católicas lastimavam que sua cega doutrina as impedisse de honrar seus melhores antepassados. Mas o respeito geral dos antecedentes gregos e romanos foi desenvolvido sobretudo pelos chefes temporais, apesar de sua frequente ignorância. Por toda parte encontramos um contraste semelhante. Uma admirável disciplina estabelece-se então no conjunto dos sentimentos humanos, posto que ela assente sobre um imenso egoísmo, cuja preponderância era o único meio de dominar no princípio a personalidade vulgar. A ternura cavalheiresca é preparada e sancionada pela fé mais antifeminina que jamais reinou. Em virtude da instituição do celibato eclesiástico, que destrói toda hereditariedade sacerdotal, o golpe mais decisivo vibrado no Ocidente contra o regime das castas emana de uma doutrina naturalmente favorável à teocracia, objeto final do papado degenerado. O monoteísmo, que se torna, enfim, hostil a todos os progressos intelectuais, preparou o surto geral deles, acabando de elaborar a lógica humana. Fundada pelo fetichismo sobre os sentimentos, deveu esta ao politeísmo o emprego das imagens. Mas sua evolução espontânea não se completou senão sob o monoteísmo, mediante a assistência usual dos sinais. Este resultado, essencialmente comum ao islamismo e ao catolicismo, pertence mais a este, por causa da discussão habitual que aí suscitava, em todas as classes, a divisão dos dois poderes. Todas estas antinomias devem aumentar muito a admiração e o respeito dos verdadeiros filósofos por essas belas naturezas pontificais que, durante alguns séculos, tiraram tanta eficácia de uma fé radicalmente viciosa, conquanto a única adaptada a essa transição. Contudo, não esqueçamos nunca que os progressos quaisquer da Idade Média foram sempre devidos ao concurso necessário entre os dois elementos heterogêneos que cumpre sem cessar combinar aí, o catolicismo e a feudalidade. Além de seus serviços imediatos, essa admirável transição fez irrevogavelmente surgir todos os germes essenciais do regime final. Ela esboçou mesmo, sob cada grande aspecto, a verdadeira ordem humana, ao mesmo tempo temporal e espiritual, tanto quanto o permitiam então a doutrina e a situação. Por isso, ao positivismo só resta agora retomar o conjunto do programa da Idade Média, para realizá-lo dignamente, mediante uma fé melhor, combinada com uma atividade mais favorável. Porém, a influência feudal, que não tem hoje defensores especiais, é injustamente sacrificada, nestas apreciações históricas, à participação católica, única estudada pela escola retrógrada. Um exame aprofundado mostra, entretanto, a reação cavalheiresca até nas modificações demasiado menosprezadas que então experimenta a última fé provisória. Depois de ter admiravelmente esboçado o culto da Mulher, prelúdio necessário da Religião da Humanidade, o sentimento feudal determinou realmente, no século das cruzadas, a alteração que sofreu o monoteísmo ocidental, quando a Virgem tendeu a tomar o lugar de Deus. Referindo-se, porém, os resultados da Idade Média aos seus verdadeiros autores, sente-se melhor a natureza profundamente precária do regime católico-feudal, derradeiro modo do sistema teológico-militar. Se o sacerdócio foi o único a compensar a imperfeição da sua doutrina, esta aptidão não podia durar senão enquanto seu destino moral e social lhe conservava um caráter progressivo. Ora, o preenchimento mesmo de semelhante missão impeliu o Ocidente para progressos incompatíveis com a fé católica e contrários à constituição final de seu clero, tornado retrógrado, como o mostra a admirável tentativa de regeneração malograda no século XIII. Em uma palavra, todos os resultados da Idade Média necessitaram de um regime novo, desde que o islamismo e o catolicismo se neutralizaram irrevogavelmente. Por exemplo, a emancipação teológica, por muito tempo circunscrita a alguns tipos individuais, difundiu-se muito por efeito das cruzadas, sob o impulso dos Templários, mais bem expostos aos contatos muçulmanos. O despontar do século XIV abre, assim, a imensa revolução ocidental que o positivismo vem hoje terminar. Então o conjunto do movimento humano torna-se profundamente hostil à ordem anterior, conquanto o novo regime não possa ainda ser, de modo algum, percebido. Porquanto, depois do catolicismo, não havia organização teológica possível; como também o sistema militar não podia mais modificar-se além de sua constituição feudal. O Ocidente começava a realizar os pressentimentos demasiado precoces de César e Trajano a respeito de sua tendência a fazer irrevogavelmente prevalecer uma fé positiva e uma atividade pacífica. Porém, este objetivo ainda exigia que a ciência, a indústria, e mesmo a arte, passassem por uma longa elaboração, que teve de ser essencialmente especial e dispersiva, de modo a dissimular a sua tendência social. Daí resulta esse duplo caráter da última transição humana, cada vez mais anárquica quanto ao conjunto, embora também cada vez mais orgânica quanto aos elementos. A MULHER - Pois que é assim, meu pai, que o presente se ata diretamente ao passado, preciso conhecer a marcha geral deste movimento, para nele acompanhar suficientemente os progressos simultâneos da anarquia moderna e da renovação. O SACERDOTE - Na progressão negativa, mais bem caracterizada do que a outra, cumpre, minha filha, distinguir sobretudo duas fases necessárias, conforme a decomposição permanece puramente espontânea ou se torna cada vez mais sistemática. A primeira compreende os séculos XIV e XV, e a segunda os três seguintes. Estes dois períodos apresentam as mesmas diferenças relativamente ao movimento positivo, se bem que de um modo menos pronunciado. Todo o Ocidente participa da decomposição espontânea; mas a negação sistemática não prevalece senão no norte. O movimento revolucionário foi sempre dirigido, desde o seu início, por duas classes conexas, oriundas a princípio dos antigos poderes, e em breve rivais destes. Foram elas os metafísicos e os legistas, que constituem o elemento espiritual e o elemento temporal deste regime negativo, caracterizado, sobretudo na França, nas universidades e nos parlamentos. Mas a segunda classe merece mais estima que a primeira, porque nela o espírito comum a ambas se modificou sob o favorável impulso das aplicações sociais. Ao passo que os metafísicos não foram nunca, em relação à teologia, senão inconsequentes demolidores, os legistas, e sobretudo os juízes, além dos seus serviços temporários ou especiais, tenderam sempre a construir, segundo as pegadas romanas, uma moral puramente humana. Durante a primeira fase moderna, todo o regime da Idade Média fica radicalmente decomposto, em virtude dos conflitos íntimos de seus diversos elementos, embora suas doutrinas permaneçam intatas. A luta principal devia ser a das duas potências, espiritual e temporal, cuja harmonia precária flutuara sempre entre a teocracia e o império. Aos vãos esforços dos papas do século XIII para estabelecerem um domínio absoluto sucedeu por toda parte, sobretudo na França, a feliz resistência dos reis, que, no decurso do século seguinte, anularam irrevogavelmente o poder ocidental do papado. Esta revolução decisiva foi completada no século pela subordinação de cada clero nacional à autoridade temporal, deixando apenas uma influência ilusória ao chefe central, que desde então degenera em príncipe italiano. Perdendo sua independência, o sacerdócio perde também sua moralidade, primeiro pública, e depois mesmo privada. Para conservar sua existência material, ele põe suas doutrinas a serviço de todos os fortes. Ao mesmo tempo desenvolve-se a luta, começada na Idade Média, entre o elemento local e o elemento central da constituição temporal. Por toda parte o poder que a princípio foi inferior acaba por triunfar, graças à assistência espontânea das classes surgidas da abolição da servidão. No caso normal, a realeza prevalece sobre a aristocracia. A solução inversa deve ser considerada como uma exceção cujo primeiro tipo nos é oferecido por Veneza, desenvolvido sobretudo na Inglaterra. Sob um ou outro modo, a combinação desta concentração política com o abatimento do sacerdócio institui em cada nação ocidental uma verdadeira ditadura, único meio de conter a anarquia material trazida pela desorganização espiritual. O melhor tipo desta magistratura excepcional foi eminente Luís XI, o único que sentiu dignamente e dirigiu sabiamente o conjunto do movimento moderno. Quanto à progressão positiva, seu principal aspecto, durante esta primeira fase, consiste no surto industrial. Preparado pela dupla organização das classes laboriosas da Idade Média, ele desenvolve-se então mediante três impulsos decisivos, cujo advento nada oferece de fortuito. Primeiro, a invenção da pólvora vem completar a instituição transitória dos exércitos permanentes, dispensando os ocidentais de uma educação militar contrária à sua nova atividade. Em seguida, a imprensa reata a ciência à indústria, permitindo satisfazer o ardor teórico que prevalece por toda parte. Enfim, a descoberta da América e de um caminho marítimo para a Índia fornece um vasto campo à extensão decisiva das relações industriais, de modo a caracterizar e consolidar a nova vida ocidental. O movimento; intelectual só se torna então eminente na poesia, abrindo o século XIV com uma incomparável epopeia, e produzindo, no XV, uma admirável composição mística. Mas o desenvolvimento científico se prepara mediante úteis materiais de todo gênero. Este progresso simultâneo da inteligência e da atividade faz sobressair melhor o deplorável abandono do aperfeiçoamento moral, que constituía em todas as classes o principal mérito da Idade Média. O duplo ardor que então prevalece no Ocidente baseia-se essencialmente na expansão universal e desordenada do orgulho e da vaidade, ligada amiúde ao mais ignóbil egoísmo. Verdade é que o desenvolvimento estético, apesar de sua tendência revolucionária, alimenta espontaneamente melhores sentimentos. Mas a cultura moral concentra-se cada vez mais no sexo afetivo, o qual, preservado do arrastamento teórico e prático, é o único que transmite, através da anarquia moderna, os principais resultados da Idade Média, malgrado a aversão crescente que eles inspiram. Esta santa providência não pode, entretanto, impedir que a alteração gradual do verdadeiro princípio de toda disciplina humana deixe de coincidir com o desenvolvimento especial das novas forças, espirituais e temporais, peculiares ao estado final do Ocidente. A MULHER - A fase inicial do duplo movimento moderno ficando assaz caracterizada, rogo-vos, meu pai, que aprecieis semelhantemente seu período sistemático. O SACERDOTE - As doutrinas do regime antigo, que antes se haviam conservado intatas, foram então, minha filha, diretamente atacadas por princípios puramente negativos. Esta extensão da anarquia foi tão indispensável quanto inevitável, a fim de que ficasse manifesta a necessidade de uma verdadeira organização, dissimulada sob a aparência de vida que conservava um sistema cujas bases sociais se achavam todas irrevogavelmente destruídas. Porém, para apreciar assaz o seu destino, cumpre dividir tal período em duas fases, das quais a primeira, começando com o século XVI, termina na retrogradação da realeza francesa, coincidindo com o triunfo da aristocracia inglesa. A segunda conduz, um século depois, ao advento direto da crise revolucionária de que o Ocidente ainda sofre, após duas gerações, as deploráveis vicissitudes. Esta distinção necessária resulta sobretudo da sistematização crescente que experimenta a doutrina negativa, que a princípio parece compatível com as condições fundamentais do regime teológico, ao passo que se lhes torna depois evidentemente contrária. Estes dois graus sucessivos do movimento negativo devem ser caracterizados pelas qualificações respectivas de protestante e deísta. Apesar da infinita diversidade das seitas protestantes, sua comum adesão à revelação cristã basta para separá-las todas da emancipação mais adiantada que caracteriza o deísmo. Desde o início da segunda fase moderna, a doutrina negativa firma diretamente seu princípio anárquico, proclamado o individualismo absoluto, e por isso mesmo ela atribui a cada um, sem nenhuma condição de competência, a decisão de todas as questões. Então toda autoridade espiritual extingue-se radicalmente. Os vivos insurgem-se completamente contra os mortos; como o atesta uma cega reprovação do conjunto da Idade Média, mal compensada por uma irracional admiração pela Antiguidade. Assim agrava-se sob o impulso protestante, a fatal ruptura que o catolicismo introduzira na continuidade humana. A MULHER - Permiti, meu pai, que eu vos interrompa um momento para manifestar-vos a profunda repugnância que sempre me inspirou o protestantismo, que pretendeu reformar o monoteísmo ocidental despojando-o de suas melhores instituições. É assim que ele suprime o dogma do purgatório, o culto da Virgem e dos santos, o regime da confissão, e desnatura o misterioso sacramento que fornecia aos corações ocidentais um sublime resumo de toda a sua religião. Por isso meu sexo, que outrora secundara tanto o surto católico, permaneceu essencialmente passivo em relação a uma reforma na qual sua ternura repelida não encontrava outra compensação senão a faculdade de comentar alguns livros ininteligíveis e perigosos. O protestantismo teria alterado profundamente a instituição do casamento ocidental pelo restabelecimento do divórcio, se os costumes modernos não houvessem sempre rechaçado espontaneamente semelhante retrogradação, nos próprios países onde esta prevaleceu oficialmente. O SACERDOTE - Vossas justas repugnâncias explicam espontaneamente, minha filha, a última discordância do Ocidente em relação a uma doutrina puramente negativa, que em breve dividiu as nações, as cidades e até as famílias. Seu sucesso parcial deve, entretanto, ter satisfeito então importantes necessidades, intelectuais e sociais. Apesar de seu caráter anárquico, o princípio protestante secundou no começo a evolução científica e o desenvolvimento industrial, estimulando os esforços pessoais e quebrando regras opressivas. Devemos-lhe duas revoluções preliminares dirigidas, na Holanda, contra a tirania exterior e, na Inglaterra, em prol da regeneração interior. Conquanto a segunda, demasiado prematura, houvesse de abortar finalmente, ela indicou já, sob a admirável ditadura de Cromwell, a tendência necessária do movimento ocidental. Então as necessidades, igualmente imperiosas, da ordem e do progresso tornaram-se profundamente inconciliáveis, e os ocidentais dividiam-se, conforme sentiam mais umas ou outras. A opressão geral ficaria iminente se o protestantismo não houvesse podido prevalecer algures, porque um clero retrógrado excitava por toda parte a solicitude dos antigos poderes contra um movimento cuja tendência não era mais equívoca. Devemos, porém, felicitar-nos ainda mais de que a maior parte do Ocidente tenha sido preservada do ascendente protestante. Com efeito, a universalidade deste, que houvera sido geralmente considerada como a solução normal da comum revolução, teria dissimulado profundamente por toda parte as condições essenciais da regeneração humana, proclamando a eterna confusão dos dois poderes. Esta dupla apreciação leva-nos a simpatizar também com as grandes almas que lutaram dignamente nesse imenso conflito, preâmbulo necessário de uma verdadeira renovação. Apesar dos óbices provenientes da agitação protestante, a segunda fase moderna completou a ditadura temporal dimanada da primeira. Seu surto coincide com a formação das grandes nacionalidades, que provisoriamente resultaram da ruptura do laço peculiar à Idade Média. Porém, esta anomalia política só oferece uma alta eficácia social, aliás necessariamente passageira, em relação à população central. Cada vez mais investida, desde Carlos Magno, da direção geral do movimento ocidental, a França precisava constituir uma potência muito compacta, assaz extensa para imprimir um impulso decisivo e superar toda agressão retrógrada. Nos demais países, semelhante concentração não foi senão uma cega e perigosa imitação dessa política excepcional. Nesta segunda fase, a progressão positiva desenvolveu sobretudo seu caráter científico e sua tendência filosófica. A cosmologia toma um surto decisivo estabelecendo a doutrina do movimento da Terra, logo depois completada pela sistematização da geometria celeste e a fundação da mecânica celeste. Então o espírito científico torna-se radicalmente inconciliável com todo espírito teológico ou metafísico. A tendência direta para uma filosofia plenamente positiva caracteriza-se abertamente, sob o duplo impulso de Bacon e Descartes, assinalando já a preparação exigida por semelhante síntese. Durante este movimento decisivo, arte geral e as artes especiais prosseguem dignamente a evolução que a fase anterior deveu à Idade Média. Apesar da ausência de direção filosófica e de destino social, a poesia ocidental produziu em cinco séculos mais obras-primas verdadeiras do que forneceu toda a Antiguidade. Quanto ao surto industrial, sua extensão torna-se então o objeto crescente das solicitudes públicas, embora o subordinem ainda a intensos guerreiros. Mas ele manifesta já a tendência dos empresários a se separarem dos trabalhadores, para se agregarem à aristocracia degenerada. A MULHER - Eu quisera, meu pai, conceber agora o caráter e o destino da última fase moderna. O SACERDOTE - Ela se tornou necessária, minha filha, pelo resultado geral da precedente. Renunciando a todo predomínio universal, o protestantismo e o catolicismo dividiam irrevogavelmente o Ocidente, como o conjunto do mundo romano partiu-se outrora entre o Alcorão e a Bíblia. Nos casos principais, esta partilha ocidental coincide naturalmente com a distinção, desde então mais pronunciada, entre os dois modos, aristocráticos e monárquicos, peculiares à ditadura temporal proveniente por toda parte da fase anterior. Os dois regimes tinham-se tornado igualmente hostis à emancipação radical que do mesmo modo ameaçava a ambos. Progressiva enquanto teve de vencer fortes resistências, a realeza, sobretudo a francesa, manifestou suas tendências retrógradas logo que não receou mais nenhuma luta. Desde a segunda metade do reinado de Luís XIV, ela congregou gradualmente todos os destroços da ordem antiga, para conter, de combinação com eles, um movimento social que ela devia julgar puramente anárquico. Mas a ditadura aristocrática e protestante tornou-se então, sobretudo na Inglaterra, mais perigosamente hostil ao movimento ocidental do que a ditadura monárquica e católica, porque ela foi mais bem secundada pela população. O protestantismo, que, enquanto teve de lutar, favoreceu a liberdade, esforçou-se por cumprir a emancipação logo que prevaleceu oficialmente, segundo a tendência de toda doutrina que repele a divisão dos dois poderes humanos. Ele estabeleceu, na Inglaterra, um sistema universal de hipocrisia, mais hábil e mais nocivo do que o que ele exprobrava ao jesuitismo, último modo do catolicismo expirante. Mas a principal corrupção proveniente de semelhante regime consistiu no pleno desenvolvimento do sistema do egoísmo nacional que Veneza apenas pudera esboçar e que, adotado em excesso por toda a população britânica, tendeu a isolá-la do Ocidente. Semelhante situação tornou tão indispensável quanto inevitável a explosão negativa que caracteriza o século XVIII, e sem a qual não era possível elaborar, nem mesmo conceber, uma verdadeira reorganização. Os dogmas críticos, surgidos primeiramente de seu princípio fundamental sob as duas revoluções protestantes, estavam já suficientemente coordenados pelos sucessores metafísicos de Bacon e Descartes. Foram então propagados universalmente pelos esforços assíduos de uma classe anteriormente subalterna, os literatos propriamente ditos, sucedendo, assim, aos doutores na direção do movimento revolucionário, onde os advogados não tardaram em substituir os juízes. Duas gerações esgotaram o ascendente prévio dessas escolas inconsequentes, que quiseram destruir o altar conservando o trono, ou vice-versa. Mas o século XVIII nunca será representado filosoficamente por puros demolidores, como Voltaire e Rousseau, quase esquecidos hoje. Sua grande escola, a de Diderot e de Hume, que Fontenelle prepara e Condorcet completa, não abraça o conjunto da destruição senão para conceber tanto quanto possível a regeneração final, de que o grande Frederico foi o precursor prático. Com efeito, desde então, só os espíritos acanhados podiam esperar satisfazer as necessidades da renovação moderna por meio de modificações quaisquer do regime antigo. Durante esta fase final, o movimento positivo completou a cosmologia fundando a química. Este progresso decisivo termina os serviços do espírito analítico e do regime acadêmico, cuja cega preponderância tornou-se logo um obstáculo crescente a trabalhos que deviam ser essencialmente sintéticos. Na progressão industrial, vê-se então a classe dos banqueiros tender diretamente para o seu ascendente natural, único meio de sistematizar a atividade material. Ao mesmo tempo, a guerra põe-se a serviço do trabalho, por ocasião das lutas coloniais. A extensão decisiva das máquinas acaba de caracterizar a indústria moderna. Mas ela desenvolve também a deplorável deserção dos empresários quanto às condições sociais peculiares aos trabalhadores, cada vez mais explorados em vez de governados. Concebe-se assim o caráter necessariamente tempestuoso da imensa crise que terminou o conjunto dos cinco séculos que nos separam da Idade Média. Ele resulta de uma fatal discordância entre as duas progressões que compõem o movimento ocidental, onde o surto positivo era incapaz de satisfazer às exigências orgânicas provenientes do surto negativo. Ao passo que este destruía todas as vistas de conjunto, aquele só podia pôr em seu lugar concepções de detalhe. A presidência da regeneração moderna, no momento de sua principal dificuldade, coube à classe mais incapaz, a dos puros escritores, que só aspiravam à pedantocracia metafísica sonhada pelos seus mestres gregos, com o fito de concentrarem em si todos os poderes. A MULHER - Conquanto esta indicação me explique assaz o conjunto da crise revolucionária, eu quisera, meu pai, conhecer sumariamente sua marcha geral, a fim de bem apreciar seu estado atual, objeto final desta última conferência. O SACERDOTE - Cumpre primeiro assinalar nela, minha filha, a abolição necessária da realeza francesa na qual se condensava todo o regime decomposto. Os funerais de Luís XIV já permitiam prevê-la se desde então uma verdadeira teoria histórica os tivesse assaz interpretado como anunciando a um tempo a irrevogável degeneração do governo e a antipatia radical do povo. Após alguns anos de hesitação metafísica, um abalo decisivo derrubou para sempre essa instituição retrógrada, último vestígio do regime das castas, segundo a consagração teocrática que lhe foi conferida pelo servilismo do clero moderno. Mas a gloriosa assembleia, única popular na França, que devia preludiar assim a regeneração social, não podia suprir as lacunas intelectuais do movimento ocidental. Destituída de toda doutrina verdadeiramente orgânica, ela não pôde, dirigindo heroicamente a defesa republicana, senão formular, de modo vago, o programa moderno, através de uma metafísica sempre incapaz de construir qualquer coisa. As tendências profundamente subversivas que necessariamente manifestou o triunfo político dessa doutrina negativa determinaram em breve uma reação retrógrada. Iniciada com o efêmero ascendente de um deísmo sanguinário, ela desenvolveu-se sobretudo pela ressurreição oficial do catolicismo, sob a tirania militar. Mas as tendências fundamentais da civilização moderna repeliram igualmente o teologismo e a guerra. A estimulação sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado, cuja adoção universal anuncia a próxima abolição dos exércitos, substituídos por forças de polícia. Todos os artifícios retrógrados introduzidos depois para impedir semelhante resultado foram tão impotentes para reanimar o cadáver da guerra como o do teologismo, mesmo sob pretexto de progresso, e apesar da ausência das convicções públicas que deviam estigmatizar essa conduta. Em relação ao mais imoral desses expedientes, ouso proclamar aqui os votos solenes que faço, em nome dos verdadeiros positivistas, para que os árabes expulsem energicamente os franceses da Argélia, se estes não a souberem dignamente restituir àqueles. Ufanar-me-ei sempre de ter, na minha infância, desejado ardentemente o sucesso da heroica defesa dos espanhóis. (O fato deu-se no Liceu de Montpellier, onde nosso Mestre fez seus estudos preparatórios, como aluno interno. Foi em plena aula que o futuro reformador ousou emitir o voto de que os espanhóis conseguissem expulsar os exércitos de Bonaparte. Teria ele então dez para onze anos de idade). Esta retrogradação, a que só a guerra havia proporcionado uma consistência aparente, ficou radicalmente malograda em virtude do advento irrevogável da paz ocidental. Mas a ausência prolongada de toda doutrina orgânica conduziu então o empirismo metafísico a tentar erigir finalmente em solução universal uma vã imitação do regime parlamentar peculiar à transição inglesa. Seu domínio oficial durante uma única geração só serviu realmente para regularizar uma deplorável série de oscilações entre a anarquia e a retrogradação, em que o único mérito de cada partido consistia em livrar-nos do seu rival. Durante esta longa flutuação, que cada vez mais comprovava a igual impotência de todas as doutrinas em circulação, a desordem espiritual chegou ao seu cúmulo, por efeito do comum abatimento das convicções anteriores, tanto revolucionárias como retrógradas. Nenhuma disciplina parcial pode ser real e durável. Ora, o único princípio da disciplina universal, a preponderância contínua do coração sobre o espírito, achava-se mais e mais desacreditado desde o fim da Idade Média, apesar da santa resistência das mulheres, cada vez menos respeitadas pelo delírio ocidental. Por isso é que, mesmo na evolução científica, a ordem provisória que Bacon e Descartes haviam tentado estabelecer desapareceu em breve sob o surto empírico das especialidades dispersivas, que repeliam cegamente toda regra filosófica. Em vez de reduzir cada fase enciclopédica ao que exigia o advento da seguinte, esforçaram-se por desenvolvê-las indefinidamente, isolando-as mais e mais de um conjunto cada vez menos percebido. Esta tendência tornou-se tão retrógrada quanto anárquica, ameaçando destruir até os principais resultados dos trabalhos anteriores, sob o domínio crescente das mediocridades acadêmicas. Mas a anarquia e a retrogradação são ainda mais completas na arte, cuja natureza eminentemente sintética rechaçava com mais força o empirismo analítico. Em relação à própria poesia, a degradação tornou-se tal que os letrados nada podem apreciar além do estilo, a ponto de colocarem amiúde verdadeiras obras-primas abaixo de composições tão medíocres quanto imorais. A MULHER - Nesse doloroso quadro, cuja exatidão não posso contestar, não vejo, meu pai, de onde pode provir a solução final explicada por este Catecismo. O SACERDOTE - Ela surge, minha filha, de uma suficiente realização do imenso prelúdio objetivo que, começando em Tales e em Pitágoras, continuou durante toda a Idade Média, e não cessou de progredir através da anarquia moderna. No início da explosão francesa, ela só era satisfatória em cosmologia, graças ao recente advento da química. Mas o surto decisivo da biologia, fundada por Bichat e completada por Gall, forneceu em breve uma base científica para a renovação total do espírito filosófico. O conjunto do movimento positivo tem, então, como resultado o advento da sociologia, já anunciado pela tentativa, imortal posto que malograda, em que Condorcet tentou subordinar cientificamente o futuro ao passado, no meio das disposições mais anti-históricas. Sob a universal preponderância do ponto de vista humano, uma síntese subjetiva pode assim construir, enfim, uma filosofia verdadeiramente inabalável, que levou a fundar a religião final, logo que o surto moral completou a renovação mental. Desde então se admirou a Idade Média, sem deixar de apreciar melhor a Antiguidade. A cultura do sentimento foi radicalmente conciliada com a da inteligência e da atividade. Todos os nobres corações e todos os grandes espíritos, sempre convergentes daqui por diante, concebem assim terminada a longa e difícil iniciação por que a Humanidade teve de passar, sob o império constantemente decrescente do teologismo e da guerra. O movimento moderno cessa de ser radicalmente antinômico. Sua progressão positiva mostra-se, enfim, capaz de satisfazer a todas as exigências, intelectuais e sociais provenientes de sua progressão negativa, não só quanto ao futuro, mas também quanto ao presente, do qual eu não tinha de ocupar-me aqui. Por toda parte o relativo sucede irrevogavelmente ao absoluto, e o altruísmo tende a dominar o egoísmo, ao passo que uma marcha sistemática substitui uma evolução espontânea. Em uma palavra, a Humanidade substitui-se definitivamente a Deus, sem esquecer jamais seus serviços provisórios. Eis aí, minha caríssima filha, a última explicação que eu vos devia sobre o advento decisivo da religião universal, a que aspiram, há tantos séculos, o Ocidente e o Oriente. Apesar de tal advento ainda se achar muito entravado, sobretudo no seu centro, pelos prejuízos e pelas paixões que, sob diversas formas, repelem toda verdadeira disciplina, a sua eficácia será sentida em breve pelas mulheres e pelos proletários, principalmente no sul. Mas sua melhor recomendação há de resultar da aptidão exclusiva do sacerdócio positivo para agremiar por toda parte as almas honestas e sensatas, pela digna aceitação do conjunto da sucessão humana.