Karl Marx – A Ideologia Alemã Teses sobre Feuerbach I O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente. Eis porque, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo, que, naturalmente, desconhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis - realmente distintos dos objetos do pensamento: mas não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, considera apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano, enquanto que a práxis só é apreciada e fixada em sua forma fenomênica judaica e suja. Eis porque não compreende a importância da atividade "revolucionária", "prático crítica". II A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento isolado da práxis - é uma questão puramente escolástica. III A doutrina materialista sobre a alteração das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são alteradas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. Ela deve, por isso, separar a sociedade em duas partes - uma das quais é colocada acima da sociedade. A coincidência da modificação das circunstâncias com a atividade humana ou alteração de si próprio só pode ser apreendida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária. IV Feuerbach parte do fato da autoalienação religiosa, da duplicação do mundo em religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno. Mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino autônomo, só pode ser explicado pelo autodilaceramento e pela autocontradição desse fundamento terreno, Este deve, pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada. V Feuerbach, não satisfeito com o pensamento abstrato, quer a intuição; mas não apreende a sensibilidade como atividade prática, humano-sensível. VI Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não empreende a crítica dessa essência real, é por isso forçado: 1. a abstrair o curso da história e a fixar o sentimento religioso como algo para si, e a pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado. 2. Por isso, a essência só pode ser apreendida como "gênero", como generalidade interna, muda, que liga de modo natural os múltiplos indivíduos. VII Por isso, Feuerbach não vê que o próprio "sentimento religioso" é um produto social e que o indivíduo abstrato por ele analisado pertence a uma forma determinada de sociedade. VIII Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis. IX O extremo a que chega o materialismo intuitivo, isto é, o materialismo que não apreende a sensibilidade como atividade prática, é a intuição dos indivíduos singulares e da sociedade civil. X O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade civil; o ponto de visto do novo é a sociedade humana ou a humanidade social. XI Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. KARL MARX - FRIEDRICH ENGELS - A IDEOLOGIA ALEMÃ Crítica da mais recente filosofia alemã representada por Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão representado por seus diferentes profetas. (I - FEUERBACH) PREFÁCIO Até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função de representações que faziam de Deus, do homem normal etc. Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações. Libertemo-los, pois, das quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais definham. Revoltemo-nos contra este predomínio dos pensamentos. Ensinemos os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência do homem, diz um, a comportar-se criticamente para com elas, diz outro; a expurgá-las do cérebro, diz um terceiro - e a realidade existente cairá por terra. Estas fantasias inocentes e pueris formam o núcleo da atual filosofia neo-hegeliana que, na Alemanha, não somente é acolhida pelo público com horror e veneração, mas apresentada pelos próprios heróis-filosóficos com a solene consciência de sua periculosidade revolucionária mundial e de sua brutalidade criminosa. O primeiro tomo da presente obra tem por finalidade desmascarar esses carneiros que se julgam lobos e que assim são considerados; propõe-se a mostrar como nada mais fazem do que balir filosoficamente as representações dos burgueses alemães e que as fanfarronices desses intérpretes filosóficos apenas refletem a derrisória pobreza da realidade alemã. Tem por finalidade colocar em evidência e desacreditar essa luta filosófica com as sombras da realidade, que convém ao sonhador e sonolento povo alemão. Certa vez, um bravo homem imaginou que, se os homens se afogavam, era unicamente porque estavam possuídos pela ideia da gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, declarando, por exemplo, que se tratava de uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam livres de todo perigo de afogamento. Durante toda sua vida, lutou contra essa ilusão da gravidade, cujas consequências perniciosas todas as estatísticas lhe mostravam, através de provas numerosas e repetidas. Esse bravo homem era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães. I FEUERBACH A OPOSIÇÃO ENTRE A CONCEPÇÃO MATERIALISTA E A IDEALISTA INTRODUÇÃO Como ideólogos alemães informam, a Alemanha teria sido, nos últimos anos, cenário de uma revolução sem precedentes. O processo de decomposição do sistema hegeliano, que começara com Strauss, conduziu a uma fermentação universal em que se envolveram todas as "potências do passado": Nesse caos geral, formaram-se poderosos impérios para logo soçobrarem; heróis efêmeros surgiram para serem, por sua vez, lançados às trevas por rivais mais audazes e poderosos. Foi uma revolução frente à qual a Revolução Francesa não foi senão brinquedo de crianças, uma luta mundial que fazia parecer mesquinhos os combates dos diádocos. Os princípios deslocaram-se; os heróis do pensamento lançaram-se uns contra os outros com inaudita precipitação, e em três anos - de 1842 a 1845 - removeu-se o solo da Alemanha mais do que antes em três séculos. Tudo isso teria ocorrido nos domínios do pensamento puro. Trata-se, certamente, de acontecimento pleno de interesse: o processo de decomposição do espírito absoluto. Desde que se extinguiu a última chama de vida, os vários elementos dessa cabeça morta entraram em decomposição, formando novas combinações e constituindo-se em novas substâncias. Os industriais da filosofia, que até então haviam vivido da exploração do espírito absoluto, lançaram-se então a novas combinações. Cada um se dedicava a explorar, com zelo inaudito, o negócio da parte que lhe coubera por sorte. Mas isto não poderia se dar sem concorrência. Inicialmente, tal concorrência foi conduzida de maneira burguesa e sólida. Depois, quando o mercado alemão encontrou-se abarrotado e, apesar dos esforços, a mercadoria não encontrava saída no mercado mundial, os negócios começaram a se deteriorar, como é comum na Alemanha, por força da produção fabril adulterada, da alteração da qualidade, da sofisticação da matéria-prima, da falsificação dos rótulos, das compras simuladas, dos cheques girando a descoberto e de um sistema de créditos carente de toda base real. Essa concorrência culminou numa luta encarniçada, que hoje nos é apresentada e exaltada como uma revolução histórico-mundial e como a produtora de conquistas e resultados prodigiosos. Mas, para apreciar em seu justo valor essa gritaria de filósofos-comerciantes que, mesmo no íntimo do honesto burguês alemão, desperta um agradável sentimento nacional; para dar uma ideia clara da pequenez, da limitação local, de todo este movimento neo-hegeliano e, especialmente, do contraste tragicômico entre as proezas reais de tais heróis e as ilusões suscitadas em torno delas - é necessário examinar, ao menos uma vez, todo esse espetáculo de um ponto de vista situado fora da Alemanha. A. A Ideologia em Geral, Especialmente a Alemã. Até em seus últimos esforços, a crítica alemã não abandonou o terreno da filosofia. Longe de examinar seus pressupostos filosóficos gerais, todas as suas questões brotaram de um sistema filosófico determinado, o sistema hegeliano. Não apenas em suas respostas, mas já nas próprias questões, havia uma mistificação. Essa dependência de Hegel é a razão pela qual nenhum desses novos críticos tentou uma crítica de conjunto do sistema hegeliano, embora cada um deles afirme ter ultrapassado Hegel. Suas polêmicas contra Hegel e entre eles a isto se limitam: cada qual isola um aspecto do sistema hegeliano, dirigindo-o, ao mesmo tempo, contra o sistema inteiro e contra os aspectos isolados pelos outros. Inicialmente, tomam-se categorias hegelianas puras, isentas de falsificação, tais como as de substância e autoconsciência; depois, profanam-se as categorias com nomes mais mundanos, tais como os de Gênero, o único, o Homem etc. Toda a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner limita-se à crítica das representações religiosas. Partia-se da religião real e da verdadeira teologia. Aquilo que se entendia por consciência religiosa, por representação religiosa, foi posteriormente determinado de diferentes formas. O progresso consistia em subsumir também à esfera das representações religiosas ou teológicas as representações metafísicas, políticas, jurídicas, morais e outras, consideradas predominantes; do mesmo modo, proclamava-se a consciência política, jurídica ou moral como consciência religiosa ou teológica, e o homem político, jurídico ou moral e, em última instância, "o Homem", como religioso. O domínio da religião foi pressuposto. E, aos poucos, declarou-se que toda relação dominante era uma relação religiosa e se a converteu em culto, culto do direito, culto do Estado etc. Por toda parte, tratava-se apenas de dogmas e da crença em dogmas. O mundo viu-se canonizado numa escala cada vez mais ampla até que o venerável São Max pôde canonizá-lo em bloco e liquidá-lo de uma vez por todas. Os velhos hegelianos haviam compreendido tudo, desde que tudo fora reduzido a uma categoria da lógica hegeliana. Os jovens hegelianos criticavam tudo, introduzindo sorrateiramente representações religiosas por baixo de tudo ou proclamando tudo como algo teológico. Jovens e velhos hegelianos concordavam na crença no domínio da religião, dos conceitos e do universal no mundo existente. A única diferença era que uns combatiam como usurpação o domínio que os outros aclamavam como legítimo. Desde que os jovens hegelianos consideravam as representações, os pensamentos, os conceitos - em uma palavra, os produtos da consciência por eles tornada autônoma - como os verdadeiros grilhões dos homens (exatamente da mesma maneira que os velhos hegelianos neles viam os autênticos laços da sociedade humana), é evidente que os jovens hegelianos têm que lutar apenas contra essas ilusões da consciência. Uma vez que, segundo suas fantasias, as relações humanas, toda a sua atividade, seus grilhões e seus limites são produtos de sua consciência, os jovens hegelianos, consequentemente, propõem aos homens este postulado moral: trocar sua consciência atual pela consciência humana, crítica ou egoísta, removendo com isso seus limites. Exigir, assim, a transformação da consciência vem a ser o mesmo que interpretar diferentemente o existente, isto é, reconhecê-la mediante outra interpretação. A despeito de suas frases que supostamente "abalam o mundo", os ideólogos da escola neo-hegeliana são Os maiores conservadores. Os mais jovens dentre eles descobriram a expressão exata para qualificar sua atividade quando afirmam que lutam unicamente contra fraseologias. Esquecem apenas que opõem a estas fraseologias nada mais do que fraseologias e que, ao combaterem as fraseologias deste mundo, não combatem de forma alguma o mundo real existente. Os únicos resultados aos quais pôde conduzir essa crítica filosófica foram alguns esclarecimentos histórico-religiosos - e assim mesmo de um ponto de vista parcial- sobre o cristianismo; todas as outras afirmações são apenas novas maneiras de embelezar suas pretensões de haver proporcionado descobertas de alcance histórico-mundial graças a estes esclarecimentos insignificantes. A nenhum destes filósofos ocorreu perguntar qual era a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a conexão entre a sua crítica e o seu próprio meio material. Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própria ação. Estes pressupostos são, pois, verificáveis por via puramente empírica. O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza. Não podemos, evidentemente, fazer aqui um estudo da constituição física dos homens, nem das condições naturais já encontradas pelos homens - geológicas, oro hidrográficas, climáticas e outras. Toda historiografia deve partir destes fundamentos naturais e de sua modificação no curso da historia pela ação dos homens. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem indiretamente sua própria vida material. O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vidados mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. Essa produção aparece inicialmente com o aumento da população. Ela própria pressupõe um intercâmbio dos indivíduos uns com os outros. A forma desse intercâmbio é, por sua vez, condicionada pela produção. As relações entre umas nações e outras dependem do estado de desenvolvimento em que se encontra cada uma delas no que concerne às forças produtivas, à divisão do trabalho e ao intercâmbio interno. Tal princípio é em geral reconhecido. Entretanto, não apenas a relação de uma nação com outras, mas também toda a estrutura interna desta mesma nação depende do grau de desenvolvimento de sua produção e de seu intercâmbio interno e externo. O quanto as forças produtivas de uma nação estão desenvolvidas é mostrado da maneira mais clara pelo grau de desenvolvimento atingido pela divisão do trabalho. Na medida em que não se trata de simples extensão quantitativa de forças produtivas já conhecidas (arroteamento de terras, por exemplo), cada nova torça produtiva tem como consequência um novo desenvolvimento da divisão do trabalho. A divisão do trabalho no interior de uma nação leva, inicialmente, à separação entre o trabalho industrial e comercial, de um lado, e o trabalho agrícola, de outro, e, com isso, a separação da cidade e do campo e a oposição de seus interesses. Seu desenvolvimento ulterior leva à separação entre o trabalho comercial e o trabalho industrial. Ao mesmo tempo, através da divisão do trabalho dentro destes diferentes ramos, desenvolvem-se diferentes subdivisões entre os indivíduos que cooperam em determinados trabalhos. A posição de tais subdivisões particulares umas em relação a outras é condicionada pelo modo pelo qual se exerce o trabalho agrícola, industrial e comercial (patriarcalismo, escravidão, estamentos e classes). Estas mesmas condições mostram-se ao se desenvolver o intercâmbio entre as diferentes nações. As diversas fases de desenvolvimento da divisão do trabalho representam outras tantas formas diferentes da propriedade: ou, em outras palavras, cada nova fase da divisão do trabalho determina igualmente as relações dos indivíduos entre si, no que se refere ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho. A primeira forma de propriedade é a propriedade tribal. Ela corresponde à fase não desenvolvida da produção, em que um povo se alimenta da caça e da pesca, da criação de gado ou, no máximo, da agricultura. Neste último caso, a propriedade tribal pressupõe grande quantidade de terras incultas. Nesta fase, a divisão do trabalho está ainda pouco desenvolvida e se limita a uma maior extensão da divisão natural no seio da família. A estrutura social limita-se, portanto, a uma extensão da família: os chefes patriarcais da tribo, abaixo deles os membros da tribo e finalmente os escravos. A escravidão latente na família desenvolve-se paulatinamente com o crescimento da população e das necessidades, e também com a extensão do intercâmbio externo, tanto da guerra como da troca. A segunda forma de propriedade é a propriedade comunal e estatal que se encontra na Antiguidade, que provém, sobretudo, da reunião de muitas tribos para formar uma cidade, por contrato ou por conquista, e na qual subsiste a escravidão. Ao lado da propriedade comunal, desenvolve-se já a propriedade móvel e, mais tarde, também a imóvel, mas como uma forma anormal subordinada à propriedade comunal. Os cidadãos possuem o poder sobre seus escravos trabalhadores apenas em sua coletividade, e já estão por isso ligados à forma de propriedade comunal. Esta é a propriedade privada coletiva dos cidadãos ativos que, em face dos escravos, são obrigados a permanecer neste modo de associação surgido naturalmente. Eis por que toda a estrutura social baseada nesta propriedade coletiva, e com ela o poder do povo no mesmo grau, decaem na medida em que se desenvolve a propriedade privada imóvel. A divisão do trabalho já é mais desenvolvida. Encontramos já a oposição entre a cidade e o campo, e mais tarde a oposição entre os Estados que representam o interesse das cidades e os que representam os interesses do campo; e encontramos no interior das próprias cidades a oposição entre o comércio marítimo e a indústria. As relações de classe entre cidadãos e escravos estão agora completamente desenvolvidas. O fato da conquista parece contradizer toda esta concepção da história. Até agora, considerou-se a violência, a guerra, o saque, o latrocínio etc., como a força propulsora da história. Aqui, ternos de nos limitar necessariamente aos aspectos principais, razão pela qual tomaremos o exemplo mais notável - a destruição de uma velha civilização por um povo bárbaro e, com isto, a formação desde o princípio de uma nova estrutura da sociedade. (Roma e os bárbaros, o feudalismo e as Gálias, o Império Romano do Oriente e os turcos.) Por parte do povo bárbaro conquistador, a guerra continua sendo, como já assinalamos anteriormente, uma forma regular de intercâmbio, explorada tanto mais zelosamente quanto mais o incremento da população, dentro do tosco modo de produção tradicional (o único possível para este povo), engendra a necessidade de novos meios de produção. Na Itália, ao contrário, em virtude da concentração da propriedade territorial (causada não apenas pela compra em massa e pelo endividamento, como também pela herança, desde que, em consequência da grande licenciosidade e da escassez de casamentos, as velhas linhagens iam-se extinguindo pouco a pouco e seus bens ficavam reunidos em poucas mãos) e da transformação das terras em pastos (provocada não apenas pelas causas econômicas normais vigentes ainda na atualidade, como também pela importação de cereais roubados e arrancados como tributos e pela consequente escassez de consumidores para os cereais italianos), quase desapareceu a população livre; os próprios escravos morriam com frequência e tinham que ser sempre substituídos por novos. A escravidão continuava sendo a base de toda a produção. Os plebeus, que ocupavam uma posição intermediária entre os livres e os escravos, nunca foram mais do que uma espécie de lumpemproletariado. Com efeito, Roma nunca foi mais do que uma cidade, e mantinha com as províncias uma relação quase exclusivamente política, a qual, como é natural, podia quebrar-se ou alterar-se novamente por acontecimentos políticos. Com o desenvolvimento da propriedade privada, começam a surgir pela primeira vez as mesmas relações que encontraremos, só que em escala mais ampla, na propriedade privada moderna; de um lado, a concentração da propriedade privada, que começou muito cedo em Roma, como o a testa a lei agrária de Licinius, e progrediu rapidamente a partir das guerras civis e, sobretudo, sob os imperadores; de outro lado, em correlação com estes fatos, a transformação dos pequenos camponeses plebeus em um proletariado, cuja situação intermediária entre os cidadãos possuidores e os escravos não levou a nenhum desenvolvimento autônomo. A terceira forma é a propriedade feudal ou estamental. Enquanto a Antiguidade partia da cidade e de seu pequeno território, a Idade Média partia: do campo. A população existente, dispersa e disseminada por uma vasta superfície a que os conquistadores não trouxeram grande incremento, condicionou essa mudança de ponto de partida. Ao contrário da Grécia e de Roma, o desenvolvimento feudal inicia-se, pois, em terreno muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão da agricultura e está, desde o começo, com elas relacionado. Os últimos séculos do Império Romano em declínio e as próprias conquistas dos bárbaros destruíram grande quantidade de forças produtivas: a agricultura declinara, a indústria estava em decadência pela falta de mercados, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido, a população, tanto a rural como a urbana, diminuíra. Essas condições preexistentes e o modo de organização da conquista por elas condicionado fizeram com que se desenvolvesse, sob a influência da organização militar germânica, a propriedade feudal. Como a propriedade tribal e a comunal, esta também repousa numa comunidade em face da qual não são mais os escravos - como no sistema antigo - mas os pequenos camponeses servos da gleba, que constituem a classe diretamente produtora. Tão logo o feudalismo se desenvolve completamente, aparece a oposição entre as cidades. A estrutura hierárquica da posse da terra e a vassalagem armada a ela conectada davam à nobreza o poder sobre os servos. Essa estrutura feudal, como toda a antiga propriedade comunal, era uma associação contra a classe produtora dominada; o que variava era a forma de associação e a relação com os produtores diretos, já que as condições de produção haviam mudado. A essa estrutura feudal da posse da terra correspondia, nas cidades, a propriedade corporativa, a organização feudal dos ofícios. Aqui, a propriedade consistia, principalmente, no trabalho de cada indivíduo. A necessidade de associação contra a nobreza rapace associada, a necessidade de locais de troca comuns numa época em que o industrial era ao mesmo tempo comerciante, a concorrência crescente dos servos que fugiam em massa para as cidades prósperas, a estrutura feudal de todo o país - deram origem às corporações; os pequenos capitais economizados pouco a pouco pelos artesãos isolados e o número estável destes numa população crescente desenvolveram a condição de oficial e de aprendiz, engendrando nas cidades uma hierarquia semelhante à do campo. Assim, a propriedade principal durante a época feudal consistia, de um lado, na propriedade territorial à qual estava ligado o trabalho dos servos e, de outro, no trabalho próprio com pequeno capital dominando o trabalho dos oficiais. A estrutura de cada uma dessas duas formas era condicionada pelas condições limitadas da produção, pelo escasso e tosco cultivo da terra e pela indústria de tipo artesanal. No apogeu do feudalismo, houve pequena divisão do trabalho. Cada país trazia em si a oposição entre a cidade e o campo; a estrutura estamental estava profundamente estabelecida, mas fora a separação em príncipes, nobreza, clero e campesinato, no campo, e em mestres, oficiais e aprendizes, e logo também a plebe de trabalhadores assalariados ocasionais, nas cidades, não se encontra nenhuma outra divisão importante. Na agricultura, a divisão do trabalho tornava-se mais difícil pelo cultivo parcelado, ao lado do qual surgiu a indústria doméstica dos próprios camponeses; na indústria, o trabalho era dividido dentro de cada ofício e muito pouco dividido entre os diferentes ofícios. A divisão entre o comércio e a indústria existia já nas cidades antigas, mas não se desenvolveu senão tardiamente nas cidades novas, ao se estabelecerem relações mútuas entre as cidades. A reunião de grandes territórios em reinos feudais era uma necessidade, tanto para a nobreza rural, como para as cidades. Por conseguinte, a organização da classe dominante, da nobreza, tinha em todas as partes um monarca à frente. O fato, portanto, é o seguinte: indivíduos determinados, que como produtores atuam de um modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observação empírica coloque necessariamente em relevo - empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação - a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas destes indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas tal e como realmente são, isto é, tal e como atuam e produzem materialmente e, portanto, tal e como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de sua vontade. A produção de ideias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico. Totalmente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, em outras palavras: não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. E mesmo as formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a elas correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. Na primeira maneira de considerar as coisas, parte-se da consciência como do próprio indivíduo vivo; na segunda, que é a que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais e vivos, e se considera a consciência unicamente como sua consciência. Esta maneira de considerar as coisas não é desprovida de pressupostos. Parte de pressupostos reais e não os abandona um só instante. Estes pressupostos são os homens, não em qualquer fixação ou isolamento fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, em condições determinadas, empiricamente visíveis. Desde que se apresente este processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas. Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases ocas sobre a consciência cessam, e um saber real deve tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer, quando muito, um resumo dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da consideração do desenvolvimento histórico dos homens. Estas abstrações, separadas da história real, não possuem valor algum. Podem servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sequência de suas camadas singulares. Mas de forma alguma dão, como a filosofia, uma receita ou um esquema onde as épocas podem ser enquadradas. A dificuldade começa, ao contrário, apenas quando se passa à consideração e à ordenação do material, seja de uma época passada ou do presente, quando se passa à exposição real. A remoção destas dificuldades depende de pressupostos impossíveis de desenvolver aqui, mas que resultam somente do estudo do processo de vida real e da ação dos indivíduos de cada época. Destacaremos aqui algumas destas abstrações, para contrapô-las à ideologia, ilustrando-as com alguns exemplos históricos. História Em relação aos alemães, situados à margem de qualquer pressuposto, somos forçados a começar constatando que o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder "fazer história". Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprida todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos. E ainda quando o mundo sensível se veja reduzido a um mínimo, a um bastão, como em São Bruno, ele pressupõe a atividade de produção deste bastão. A primeira coisa, portanto, em qualquer concepção histórica, é observar este fato fundamental em toda sua significação e em toda sua extensão e render-lhe toda justiça. Sabe-se bem que isto nunca foi feito pelos alemães, que, por isso, nunca tiveram uma base terrena para a história e, consequentemente, nunca tiveram um historiador. Embora não tenham percebido a conexão deste fato com a assim chamada história senão de maneira extremamente unilateral, sobretudo quando se mantinham presos à ideologia política, os franceses e os ingleses, mesmo assim, realizaram as primeiras tentativas para dar à historiografia uma base materialista, ao escreverem as primeiras histórias da sociedade civil, do comércio e da indústria. O segundo ponto é que, satisfeita esta primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades - e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico. Aqui se mostra, ao mesmo tempo, a descendência espiritual da grande sabedoria histórica dos alemães, os quais, quando lhes falta o material positivo e quando não adianta debater tolices teológicas, políticas ou literárias, nada nos oferecem em matéria de história, mas sim de "tempos pré-históricos"; de resto, porém, não nos explicam como se passa deste, absurdo da "pré-história" à história propriamente dita - embora, por outro lado, sua especulação histórica se lance em especial sobre esta "pré-história", porque acreditam estar a salvo da interferência dos "fatos crus" e também porque, ao mesmo tempo, podem dar rédea solta aos seus impulsos especulativos e propor e lançar por terra milhares de hipóteses. A terceira condição que já de início intervém no desenvolvimento histórico é que os homens, que diariamente renovam sua própria vida, começam a criar outros homens, a procriar: é a relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, a família. Esta família, que no início é a única relação social, torna-se depois, quando as necessidades ampliadas engendram novas relações sociais e o acréscimo de população engendra novas necessidades, uma relação secundária (exceto na Alemanha) e deve, portanto, ser tratada e desenvolvida segundo os dados empíricos existentes e não segundo o "conceito de família", como é hábito na Alemanha. Além do mais, não se deve considerar estes três aspectos da atividade social como três fases diferentes, mas simplesmente como três aspectos ou, para escrever de maneira clara aos alemães, como três "momentos", que coexistem desde os primórdios da história e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na história. A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, aparece agora como dupla relação: de um lado, como relação natural, de outro como relação social - social no sentido de que se entende por isso a cooperação de vários indivíduos, quaisquer que sejam as condições, o modo e a finalidade. Donde se segue que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão constantemente ligados a um determinado modo de cooperação e a uma fase social determinada, e que tal modo de cooperação é, ele próprio, uma "força produtiva"; segue-se igualmente que a soma de forças produtivas acessíveis aos homens condiciona o estado social e que, por conseguinte, a "história da humanidade" deve sempre ser estudada e elaborada em conexão com a história da indústria e das trocas. Mas é claro também que é impossível escrever tal história na Alemanha, pois faltam aos alemães não apenas a capacidade de concepção e o material, mas também a "certeza sensível"; e além do Reno não se pode ter nenhuma experiência sobre estas coisas, pois ali já não ocorre história alguma. Desde o início mostra-se, portanto, uma conexão materialista dos homens entre si, condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção, conexão esta que, é tão antiga quanto os próprios homens - e que toma, incessantemente, novas formas e apresenta, portanto, uma "história", sem que exista qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os homens unidos. Somente agora, depois de ter examinado quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, verificamos que o homem tem também "consciência". Mas, ainda assim, não se trata de consciência "pura". Desde o início pesa sobre "o espírito" a maldição de estar "contaminado" pela matéria, que se apresenta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência - a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim: o animal não se "relaciona" com nada, simplesmente não se relaciona. Para o animal, sua relação com outros não existe como relação. A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, naturalmente, antes de tudo, mera consciência do meio sensível mais próximo e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se torna consciente; é ao mesmo tempo consciência da natureza que, a princípio, aparece aos homens como um poder completamente estranho, onipotente, inexpugnável com o qual os homens se relacionam de maneira puramente animal e perante o qual se deixam impressionar como o gado; é, portanto, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural). Vê-se logo que essa religião natural, ou esta relação determinada com a natureza, é condicionada pela forma da sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda parte, a identidade entre o homem e a natureza aparece de modo a indicar que a relação limitada dos homens com a natureza condiciona a relação limitada dos homens entre si, e a relação limitada dos homens entre si condiciona a relação limitada dos homens com a natureza, exatamente porque a natureza ainda está pouco modificada pela história. E, por outro lado, a consciência da necessidade de estabelecer relações com os indivíduos que o circundam é o começo da consciência de que o homem vive em sociedade. Este começo é tão animal quanto à própria vida social nesta fase: trata-se de simples consciência gregária e o homem se distingue do carneiro unicamente pelo fato de que nele sua consciência toma o lugar do instinto ou de que seu instinto é consciente. Esta consciência de carneiro ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se ulteriormente em razão do crescimento da produtividade, do aumento das necessidades e do aumento da população, sendo este último a base dos dois primeiros. Com isto, desenvolve-se a divisão do trabalho, que originariamente nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual e, mais tarde, divisão do trabalho que se desenvolve por si própria "naturalmente", em virtude de disposições naturais (vigor físico, por exemplo), necessidades, acasos etc. A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a consciência pode realmente imaginar ser algo, diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc., "puras". Mas ainda que esta teoria, esta teologia, esta filosofia e esta moral etc. entrem em contradição com as relações existentes, isso só pode acontecer porque as relações sociais existentes se encontram em contradição com as forças de produção existentes; o que, além disso, também pode acontecer num determinado círculo nacional de relações, pelo fato de que a contradição se instala não neste âmbito nacional, mas entre esta consciência: nacional e a práxis de outras nações, isto é, entre a consciência nacional de uma nação e sua consciência universal (como atualmente na Alemanha). Além disso, é inteiramente indiferente o que a consciência sozinha empreenda; de toda esta porcaria conservamos apenas um resultado, a saber: que esses três momentos - a força de produção, o estado social e a consciência - podem e devem entrar em contradição entre si, porque, com a divisão do trabalho, fica dada a possibilidade, mais ainda, a realidade, de que a atividade espiritual e a material - a fruição e o trabalho, a produção e o consumo - caibam a indivíduos diferentes; e a possibilidade de não entrarem esses elementos em contradição reside unicamente no fato de que a divisão do trabalho seja novamente superada. É evidente por si mesmo que "espectros", "nexos", "ser mais elevado", "conceitos", "escrúpulos" são apenas a expressão espiritual idealista, a representação aparente do indivíduo isolado, a representação de grilhões e limites muito empíricos no interior dos quais se movem o modo de produção da vida e a forma de intercâmbio a ele conectada. Com a divisão do trabalho, na qual todas estas contradições estão dadas e que repousa, por sua vez, na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas umas às outras, dá-se ao mesmo tempo a distribuição, e com, efeito a distribuição desigual, tanto quantitativa como qualitativamente, do trabalho e de seus produtos; ou seja, a propriedade, que já tem seu núcleo, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do marido. A escravidão na família, embora ainda tosca e latente, é a primeira propriedade, que aqui, aliás, já corresponde perfeitamente à definição dos economistas modernos, segundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força de trabalho de outros. Além disso, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas: a primeira enuncia em relação à atividade, aquilo que se enuncia na segunda em relação ao produto da atividade. Além do mais, com a divisão do trabalho é dada ao mesmo tempo a contradição entre o interesse do indivíduo ou da família singulares e o interesse, coletivo de todos os indivíduos que se relacionam entre si; e, com efeito, este interesse coletivo não existe apenas na representação, como "interesse geral", mas se apresenta, antes de tudo, na realidade, como a dependência recíproca de indivíduos entre os quais o trabalho está dividido, Finalmente, a divisão do trabalho nos oferece, desde logo, o primeiro exemplo do seguinte fato: desde que os homens se encontram numa sociedade natural e também desde que há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, desde que, por conseguinte, a atividade está dividida não voluntariamente, mas de modo natural, a própria ação do homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado. Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e aí deve permanecer se não quiser perder seus meios de vida - ao passo que na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou critico. Esta fixação da atividade social - esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos - é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos. É justamente desta contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de uma coletividade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal - tais como, laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em maior escala e outros interesses - e sobretudo, como desenvolveremos mais adiante, baseada nas classes, já condicionadas pela divisão do trabalho, que se isolam em cada um destes conglomerados humanos e entre as quais há uma que domina todas as outras. Segue-se que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc., etc., são apenas as formas ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes (fato de que os teóricos alemães não têm a menor ideia, apesar de ter-se-lhes facilitado as orientações necessárias nos Anais Franco-Alemães e na Sagrada Família); segue-se, além disso, que toda classe que aspira à dominação, mesmo que essa dominação, como no caso do proletariado, exija a superação de toda a antiga forma de sociedade e de dominação em geral, deve conquistar primeiro o poder político, para apresentar seu interesse como interesse geral, ao que está obrigada no primeiro momento. Justamente porque os indivíduos procuram apenas seu interesse particular, que para eles não coincide com seu interesse coletivo (o geral é de fato a forma ilusória da coletividade), este interesse comum faz-se valer como um interesse "estranho" aos indivíduos, "independente" deles, como um interesse "geral" especial e peculiar; ou têm necessariamente de enfrentar-se com este conflito, tal como na democracia. Por outro lado, a luta prática destes interesses particulares, que constantemente e de modo real chocam-se com os interesses coletivos e ilusoriamente tidos como coletivos, torna necessário o controle e a intervenção prática através do ilusório interesse "geral" como Estado. O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, porque sua cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram, que não podem mais dominar e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige este querer e agir. Esta "alienação" - para usar um termo compreensível aos filósofos - pode ser superada, naturalmente, apenas sob dois pressupostos práticos. Para que ela se torne um poder "insuportável", isto é, um poder contra o qual se faz uma revolução, é necessário que tenha produzido a massa da humanidade como massa totalmente "destituída de propriedade"; e que se encontre, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de cultura existente de fato - coisas que pressupõem, em ambos os casos, um grande incremento da força produtiva, ou seja, um alto grau de seu desenvolvimento; por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (que contém simultaneamente uma verdadeira existência humana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, porque, sem ele, apenas generalizar-se-ia a escassez e, portanto, com a carência, recomeçaria novamente a luta pelo necessário e toda a imundície anterior seria restabelecida; além disso, porque apenas com este desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio universal dos homens, em virtude do qual, de um lado, o fenômeno da massa "destituída de propriedade" se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das revoluções dos outros; e, finalmente, coloca indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais. Sem isso, 1º) o comunismo não poderia existir a não ser como fenômeno local; 2.°) as próprias forças do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças universais, portanto insuportáveis, e permaneceriam "circunstâncias" domésticas e supersticiosas; e 3.°) toda ampliação do intercâmbio superaria o comunismo local. Empiricamente, o comunismo é apenas possível como ato dos povos dominantes "súbita" e simultaneamente, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial conectado com o comunismo. De outro modo, como poderia a propriedade, por exemplo, ter uma história, tomar diferentes figuras, e a propriedade territorial - segundo os diferentes pressupostos dados - passar, na França, do fracionamento à centralização nas mãos de uns poucos e, na Inglaterra, da centralização nas mãos de alguns ao fracionamento, como hoje realmente é o caso? Ou como ocorre que o comércio, que nada mais é do que a troca de produtos de indivíduos e países diferentes domine o mundo inteiro através da relação entre a oferta e a procura - relação que, segundo um economista inglês, paira sobre a terra como o destino dos antigos, repartindo com mão invisível a felicidade e a desgraça entre os homens, fundando e esmagando impérios, fazendo povos nascerem e desaparecerem - enquanto que com a superação da base, da propriedade privada, com a regulamentação comunista da produção (que determina a destruição da relação alienada entre os homens e os seus próprios produtos), o poder da relação entre a oferta e a procura dissolve-se no nada, os homens readquirem o poder sobre a troca, a produção e o modo de seu relacionamento mútuo? O comunismo não é para nós um estado que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade terá que se dirigir. Denominamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento resultam de pressupostos atualmente existentes. Além disso, a massa dos simples trabalhadores - força de trabalho excluída em massa do capital ou de qualquer outra satisfação limitada - pressupõe o mercado mundial; e, portanto, pressupõe também a perda, não mais temporária e resultante da concorrência, deste próprio trabalho como uma fonte segura de vida. O proletariado só pode, pois, existir mundial e historicamente, do mesmo modo que o comunismo, sua ação, só pode ter uma existência "histórico-mundial". Existência histórico-mundial de indivíduos, isto é, existência de indivíduos diretamente vinculada à história mundial. A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em todas as fases históricas anteriores e que, por sua vez, as condiciona, é a sociedade civil; esta última, como se depreende do anteriormente exposto, tem como pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, o que se costuma chamar de tribo, cujas determinações mais precisas foram dadas anteriormente. Vê-se, já aqui, que esta sociedade civil é a verdadeira, fonte, o verdadeiro cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que, negligenciando as relações reais, limitava-se às ações altissonantes dos príncipes e dos Estados. A sociedade civil abrange todo o intercâmbio material dos indivíduos, no interior de uma fase determinada de desenvolvimento das forças produtivas. Abrange toda a vida comercial e industrial de uma dada fase e, neste sentido, ultrapassa o Estado e a nação, se bem que, por outro lado, deve se fazer valer frente ao exterior como nacionalidade e organizar-se no interior como Estado. A expressão "sociedade civil" aparece no século XVIII, quando as relações de propriedade já se tinham desprendido da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, desenvolve-se apenas com a burguesia; entretanto, a organização Social que se desenvolve imediatamente a partir da produção e do intercâmbio e que forma em todas as épocas a base do Estado e do resto da superestrutura idealista, foi sempre designada, invariavelmente, com o mesmo nome. Sobre a produção da consciência Na história existente até aqui é certamente um fato empírico que os indivíduos singulares, com a extensão da atividade para uma atividade histórico-mundial, tornam-se cada vez mais submetidos a um poder que lhes é estranho (uma pressão que representavam como uma travessura do assim chamado espírito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última instância, como mercado mundial. Mas também está empiricamente fundamentado que, com a derrocada do estado da sociedade existente por obra da revolução comunista (de que falaremos mais adiante) e com a superação da propriedade privada, que é idêntica à referida revolução, este poder, que tanto confunde os teóricos alemães, será dissolvido; e então a libertação de cada indivíduo singular é alcançada na mesma medida em que a história transforma-se completamente em história mundial. Pelo que já foi exposto, é claro que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende da riqueza de suas relações reais. É apenas desta forma que os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contato prático com a produção (inclusive a espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de desfrute desta multiforme produção do mundo inteiro (as criações dos homens). A dependência multiforme, esta forma natural de cooperação histórico-mundial dos indivíduos, será transformada por essa revolução comunista no controle e domínio consciente destes poderes que, engendrados pela ação recíproca dos homens, impuseram-se a eles como poderes totalmente estranhos e que os dominaram. Ora, esta concepção pode ser expressa em termos especulativos e idealistas, isto é, fantásticos, tais como "autocriação do gênero" (a "sociedade como sujeito"), e com isto a série sucessiva de indivíduos relacionados entre si pode ser representada como um único indivíduo que realiza o mistério de criar-se a si próprio. Vê-se aqui que os indivíduos fazem-se uns aos outros, tanto física como espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos, nem na absurda concepção de São Bruno nem no sentido do "único", do homem "feito". Esta concepção da história consiste, pois, em expor o processo real de produção, partindo da produção material da vida imediata; e em conceber a forma de intercâmbio conectada a este modo de produção e por ele engendrada (ou seja, a sociedade civil em suas diferentes fases) como o fundamento de toda a história, apresentando-a em sua ação enquanto Estado e explicando a partir dela o conjunto dos diversos produtos teóricos e formas da consciência - religião, filosofia, moral etc. - assim como em seguir seu processo de nascimento a partir desses produtos; o que permite então, naturalmente, expor a coisa em sua totalidade (e também, por isso mesmo, examinar a ação recíproca entre estes diferentes aspectos). Não se trata, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer sempre sobre o solo da história real; não de explicar a práxis a partir da ideia, mas de explicar as formações ideológicas a partir da práxis material; chegando-se, por conseguinte, ao resultado de que todas as formas e todos os produtos da consciência não podem ser dissolvidos por força da crítica espiritual, pela dissolução na "autoconsciência" ou pela transformação em "fantasmas", "espectros", "visões" etc. - mas só podem ser dissolvidos pela derrocada prática das relações reais de onde emanam estas tapeações idealistas; não é a crítica, mas a revolução a força motriz da história, assim como da religião, da filosofia e de qualquer outro tipo de teoria. Tal concepção mostra que a história não termina dissolvendo-se na "autoconsciência", como "espírito do espírito", mas que em cada uma de suas fases encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos, que cada geração transmite à geração seguinte; uma massa de forças produtivas, de capitais e de condições que, embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter especial. Mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias. Esta soma de forças de produção, de capitais, de formas sociais de intercâmbio, que cada individuo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos representaram como "substância" e "essência do homem", aquilo que eles endeusaram e combateram; fundamento real que, em seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos homens, não é em nada perturbado pelo fato destes filósofos se rebelarem contra ele como "autoconsciência" e como o "Único". Estas condições de vida, que as diferentes gerações encontram já existentes, decidem também se as convulsões revolucionárias que periodicamente se repetem na história serão ou não o suficientemente fortes para subverter as bases de todo o existente. Os elementos materiais de uma subversão total são, de um lado, as forças produtivas existentes e, de outro; a formação de uma massa revolucionária que se revolte, não só contra as condições particulares da sociedade existente até então, mas também contra a própria "produção da vida" vigente, contra a "atividade total" sobre a qual se baseia. Se tais elementos materiais não existem, então, no que se refere ao desenvolvimento prático, é absolutamente indiferente que a ideia desta subversão tenha sido já proclamada uma centena de vezes, como o demonstra a história do comunismo. Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente esta base real da história, ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão com o curso da história. Isto faz com que a história deva sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. Consequentemente, tal concepção apenas vê na história as ações políticas dos príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada, especialmente, a compartilhar, em cada época histórica, a ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente "políticos" ou "religiosos", embora a "política" e a "religião" sejam apenas formas de seus motivos reais, então o historiador da época considerada aceita essa opinião. A "imaginação", a "representação", que esses homens determinados fizeram de sua práxis real transforma-se na única força determinante e ativa que domina e determina a práxis desses homens. Quando a forma tosca sob a qual se apresenta a divisão do trabalho entre os hindus e entre os egípcios suscita nesses povos um regime de castas próprio de seu Estado e de sua religião, o historiador crê que o regime de castas é a força que engendrou essa forma social tosca. Enquanto os franceses e os ingleses se atêm à ilusão política, que está certamente mais próxima da realidade, os alemães se movem na esfera do "espírito puro" e fazem da ilusão religiosa a força motriz da história. A filosofia hegeliana da história é a última consequência, levada à sua "expressão mais pura", de toda esta historiografia alemã, que não gira em torno de interesses reais, sequer de interesses políticos, mas em torno de pensamentos puros, os quais consequentemente devem aparecer a São Bruno como uma série de pensamentos que se devoram entre si e perecem, finalmente, na "autoconsciência"; e, de modo ainda mais consistente, ao sagrado Max Stirner, que nada sabe da história real, o curso da história aparece como um simples conto de "cavaleiros", bandidos e fantasmas, de cujas visões só consegue naturalmente se salvar pela "dessacralização". Tal concepção é verdadeiramente religiosa; ela postula o homem religioso como sendo o proto-homem do qual parte toda a história; e, em sua imaginação, coloca a produção religiosa de fantasias no lugar da produção real dos meios de vida e da própria vida. Toda esta concepção da história, inclusive sua dissolução, os escrúpulos e as dúvidas que dela resultam, não é mais do que um assunto puramente nacional dos alemães e apenas tem interesse local para os alemães, como, por exemplo, a importante questão, tratada já inúmeras vezes, a saber: como se passa realmente "do reino de Deus para o reino do homem" - como se esse "reino de Deus" tivesse sempre existido a não ser na imaginação e como se os eruditos senhores não tivessem vivido sempre, sem sabê-lo, no "reino dos homens", para o qual procuram agora o caminho; e como se esse divertimento científico (pois não passa disso) de explicar o que há .de curioso nessas formações teóricas nebulosas não residisse em demonstrar, ao contrário, que suas origens estão nas condições terrestres reais. Em geral, para estes alemães, trata-se simplesmente de dissolver o absurdo já existente em quaisquer outras extravagâncias, isto é, de pressupor que todo, este absurdo possui um sentido à parte que pode ser descoberto; enquanto se trata, apenas, de explicar esta fraseologia teórica a partir das relações reais existentes. A dissolução real, prática, desta fraseologia, a remoção destas representações da consciência dos homens, só será efetivada, como já dissemos, por circunstâncias alteradas e não por deduções teóricas. Para a massa dos homens, isto é, para o proletariado, tais representações não existem e não necessitam, portanto, ser dissolvidas, e embora esta massa ainda tenha representações teóricas desse tipo, tais como a religião etc., há muito tempo estas foram dissolvidas pelas circunstâncias. O caráter puramente nacional destas questões e de suas soluções manifesta-se, ainda, no fato de que esses teóricos creem seriamente que fantasias, tais como as de "homem-Deus", "o homem" etc., têm presidido as diferentes épocas da história (São Bruno chega mesmo a afirmar que "só a crítica e os críticos têm feito a história") - e quando eles próprios se entregam a construções históricas saltam com grande pressa por sobre todos os períodos anteriores, e da civilização mongol passam de imediato para a história propriamente "rica de conteúdo", isto é, para a história dos Hallische e dos Deutsche Jahrbucher, e passam para a dissolução da escola hegeliana numa briga geral. Todas as outras nações, todos os acontecimentos reais, são esquecidos; e o teatro do mundo limita-se à Feira de Livros de Leipzig e às disputas mútuas entre a "Crítica", o "Homem" e o "Único". E quando a teoria se decide a cuidar de temas verdadeiramente históricos - como o século XVIII, por exemplo - esses filósofos dão-nos apenas a história das representações, desligada dos fatos e dos desenvolvimentos práticos que lhes servem de base, e também isto com a intenção de apresentar a época em questão como a primeira etapa imperfeita, como a precursora ainda incipiente da verdadeira época histórica, isto é, da época da luta entre filósofos alemães de 1840 a 1844. Seu objetivo é, portanto, escrever uma história do passado para fazer brilhar a glória de um personagem não histórico e de suas fantasias, e de acordo com isso não mencionar todos os acontecimentos históricos reais, inclusive as ingerências realmente históricas da política na história, e oferecer, em compensação, uma narração não baseada em estudos mas em artifícios e tagarelices literárias - como faz São Bruno em sua já esquecida História do Século XVIII. Esses mascates do pensamento, cheios de pretensão e arrogância, que se creem infinitamente acima de preconceitos nacionais, são, na prática, muito mais nacionais do que os filisteus de cervejaria que sonham com a unidade alemã. Não reconhecem nenhum caráter histórico aos atos de outros povos; vivem na Alemanha, com a Alemanha e para a Alemanha, convertem a canção do Reno em hino religioso e conquistam a Alsácia-Lorena despojando a filosofia francesa ao invés de despojar o Estado francês, germanizando os pensamentos franceses em lugar das províncias francesas. O senhor Venedey figura como cosmopolita ao lado de São Bruno e São Max, os quais proclamam, no domínio mundial da teoria, o domínio mundial da Alemanha. Vê-se igualmente nesta discussão o quanto Feuerbach se engana (na Revista Trimestral de Wigand, 1845, tomo II) quando, por meio da qualificação de "homem comum", declara-se um comunista e transforma este último em predicado "do" homem, acreditando, assim, poder transformar em mera categoria a palavra comunista que, no mundo real, designa o adepto de determinado partido revolucionário. Toda a dedução de Feuerbach no que concerne às relações recíprocas entre os homens visa unicamente a provar que os homens têm necessidade uns dos outros, e sempre tiveram. Ele quer estabelecer a consciência sobre este fato, quer, portanto, como os outros teóricos, criar apenas uma consciência correta sobre um fato existente, ao passo que para o verdadeiro comunista o que importa é derrocar este existente. Reconhecemos plenamente que Feuerbach, em seus esforços por criar justamente a consciência desse fato, vai tão longe quanto pode chegar um teórico sem deixar de ser teórico e filósofo. É sintomático, entretanto, que São Bruno e São Max coloquem imediatamente a representação feuerbachiana do comunista em lugar do comunista real - o que fazem, em parte, para que também possam, como adversários da mesma estirpe, combater o comunismo como "espírito do espírito", como uma categoria filosófica e, no caso de São Bruno, além disso, por interesses pragmáticos. Como exemplo do reconhecimento e, ao mesmo tempo, do desconhecimento do existente, que Feuerbach continua compartilhando com nossos adversários, recordemos a passagem de sua Filosofia do Futuro onde desenvolve o ponto de vista de que o ser de uma coisa ou do homem é, simultaneamente, sua essência; de que as determinadas condições de existência, o modo de vida e a atividade de um indivíduo animal ou humano são aquilo em que sua "essência" se sente satisfeita. Toda exceção é aqui expressamente concebida como um acidente infeliz, como uma anormalidade que não pode ser modificada. Quando, portanto, milhões de proletários não se sentem de forma alguma satisfeitos com suas condições de vida, quando seu "ser" em nada corresponde à sua "essência", isto então seria, de acordo com a passagem citada, uma desgraça inevitável que se deveria suportar tranquilamente. Contudo, milhões de proletários ou de comunistas pensam de modo inteiramente diferente e provarão isto no devido tempo, quando puserem seu "ser" em harmonia com sua "essência" de uma maneira prática, através de uma revolução. É por isto que em casos dessa espécie Feuerbach jamais fala do mundo dos homens, mas refugia-se na natureza exterior, na natureza ainda não dominada pelos homens. Mas, com cada nova invenção, com cada progresso da indústria, uma nova parte é arrancada deste terreno e o solo sobre o qual crescem os exemplos de tais proposições feuerbachianas se restringe cada vez mais. A "essência" do peixe é seu "ser": a água - para retomar uma das proposições de Feuerbach. A "essência" do peixe de rio é a água do rio; contudo, esta água deixa de ser sua "essência" quando se torna um meio de existência que não mais lhe convém, tão logo o rio sofra a influência da indústria, tão logo seja poluído por colorantes e outros dejetos, tão logo navios a vapor naveguem pelo rio, tão logo suas águas sejam dirigidas para canais onde simples drenagens podem retirar do peixe seu meio de existência. Declarar que contradições deste gênero são anormalidades inevitáveis não difere, fundamentalmente, do consolo que São Max Stirner oferece aos insatisfeitos, ao afirmar que esta contradição é sua própria contradição e que esta má situação é sua própria má situação, na qual poderiam, ou acalmar-se, ou guardar sua própria indignação para si, ou rebelar-se contra isso de modo fantástico. Isto difere muito pouco da alegação de São Bruno de que estas circunstâncias infelizes seriam provenientes do fato de que os insatisfeitos se, detiveram no lixo da "substância", não progrediram para a "autoconsciência absoluta" e não reconheceram estas más condições de vida como espírito de seu espírito. Naturalmente, não nos daremos ao trabalho de explicar aos nossos sábios filósofos que a "libertação" do "homem" não deu sequer um passo adiante ao dissolverem a filosofia, a teologia, a substância e todo este lixo na "autoconsciência", ao libertarem o "homem" da dominação desta fraseologia, dominação sob a qual nunca esteve escravizado. Nem lhes explicaremos que somente é possível efetuar a libertação real no mundo real e através de meios reais; que não se pode superar a escravidão sem a máquina a vapor e a Mule-Jenny, nem a servidão sem melhorar a agricultura; e que não é possível libertar os homens enquanto não estiverem em condições de obter alimentação e bebida, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. A "libertação" é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é efetivada por condições históricas, pela situação da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio, e então, posteriormente, conforme suas diferentes fases de desenvolvimento, o absurdo da substância, do sujeito, da autoconsciência e da crítica pura, assim como o absurdo religioso e teológico, são novamente eliminados quando suficientemente desenvolvidos. Naturalmente, num país como a Alemanha, onde não ocorre senão um desenvolvimento histórico miserável, estes desenvolvimentos intelectuais, estas trivialidades glorificadas e ineficazes, servem naturalmente de substitutos para a ausência de desenvolvimento histórico: incrustam-se e têm que ser combatidos. Mas esta luta tem apenas importância local. Na realidade, para o materialista prático, isto é, para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo existente, de atacar e transformar, praticamente, o estado de coisas que ele encontrou. E se, por vezes, encontram-se em Feuerbach pontos de vista desse gênero, eles não são mais do que intuições isoladas e têm muito pouca influência sobre toda sua concepção geral para serem aqui considerados como algo mais do que embriões capazes de desenvolvimento. A "concepção" feuerbachiana do mundo sensível limita-se, de um lado, à simples contemplação deste último e, de outro lado, ao simples sentimento; ele diz "o homem" ao invés de dizer os "homens históricos reais". "O homem" é na realidade "o alemão". No primeiro caso; na contemplação do mundo sensível, ele se choca, necessariamente, com coisas que contradizem sua consciência e seu sentimento, que perturbam a harmonia por ele pressuposta entre todas as partes do mundo sensível e sobretudo entre homem e natureza. Para eliminar estas coisas, tem que se refugiar numa dupla concepção, oscilando entre uma concepção profana, que percebe apenas o que é "imediatamente palpável", e uma concepção mais elevada, filosófica, que contempla a "essência verdadeira" das coisas. Ele não percebe que o mundo sensível que o envolve não é algo dado imediatamente por toda a eternidade, uma coisa sempre igual a si mesma, mas sim o produto da indústria e do estado da sociedade; isto, na verdade, no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais se alçando aos ombros da precedente, desenvolvendo sua indústria e seu comércio, modificando a ordem social de acordo com as necessidades alteradas. Mesmo os objetos da mais simples "certeza sensível" são dados a Feuerbach apenas através do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial. Sabe-se que a cerejeira, como quase todas as árvores frutíferas, foi transplantada para nossas zonas pelo comércio, há alguns séculos apenas, e foi, portanto; tão somente através dessa ação de uma determinada sociedade em uma época determinada que foi dada à "certeza sensível" de Feuerbach. Aliás, nesta concepção que vê as coisas tais como são e aconteceram realmente, todo profundo problema filosófico resolve-se simplesmente num fato empírico, como adiante se verá de maneira ainda mais clara. Tomemos, por exemplo, a importante questão das relações entre o homem e a natureza (ou então, como Bruno nos mostra na pág. 110, "as oposições em natureza e história", como se as duas "coisas" fossem separadas uma da outra, como se o homem não se encontrasse sempre em face de uma natureza histórica e de uma história natural). Esta questão, donde surgiram todas as "obras de grandeza insondável" sobre a "substância" e a "autoconsciência", desaparece por si mesma perante a compreensão do fato de que a célebre "unidade do homem com a natureza" sempre existiu na indústria e se apresenta de maneira diferente, em cada época, segundo o desenvolvimento maior ou menor da indústria; e o mesmo no que se refere à "luta” do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e a troca das necessidades de vida, condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais, para serem, por sua vez, condicionadas por estas em seu modo de funcionamento. Eis porque Feuerbach, em Manchester por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde há cem anos atrás havia apenas rodas de fiar e teares manuais, ou por que, na Campagna di Roma, encontra apenas pastagens e pântanos onde, no tempo de Augusto, não teria encontrado mais do que as vinhas e quintas dos capitalistas romanos. Feuerbach fala em particular da concepção da ciência natural e menciona segredos que se revelam apenas aos olhos do físico e do químico; mas, o que seria da ciência natural sem o comércio e a indústria? Mesmo esta ciência natural "pura" adquire tanto sua finalidade como seu material graças apenas ao comércio e à indústria, à atividade sensível dos homens. E até tal ponto é esta atividade, este contínuo trabalhar e criar sensíveis, esta produção, a base de todo o mundo sensível tal e como agora existe, que, se fosse interrompida até mesmo por um ano apenas, Feuerbach não só encontraria enormes mudanças no mundo natural, mas logo sentiria falta de todo o mundo dos homens e de sua própria capacidade de percepção, e até mesmo de sua própria existência. Certamente, em tudo isto, a prioridade da natureza exterior subsiste, e tudo isto não pode ser aplicado aos homens primitivos produzidos por geração espontânea; mas esta diferenciação só tem sentido na medida em que o homem é considerado como distinto da natureza. De resto, a natureza, a natureza que precede a história humana, não é de forma alguma a natureza na qual vive Feuerbach, é natureza que hoje já não existe em parte alguma (exceto talvez em algumas ilhas de coral australianas de formação recente) e que, portanto, não existe para Feuerbach. É verdade que Feuerbach tem sobre os materialistas "puros" a grande vantagem de compreender que o homem é também um "objeto sensível". Mas, façamos abstração do fato de que ele concebe o homem apenas como "objeto sensível" e não como "atividade sensível", pois ainda permanece no reino da teoria e não concebe os homens em sua conexão social dada, em suas condições de vida existentes, que fizeram deles o que são; por isto mesmo, jamais chega até os homens ativos realmente existentes, mas se detém na abstração "o homem" e apenas consegue reconhecer sentimentalmente o "homem real, individual, corporal", isto é, não conhece outras "relações humanas" "entre o homem e o homem" senão as do amor e da amizade, sendo estas, além disso, idealizadas. Não nos oferece crítica alguma das condições de vida atuais. Não consegue nunca, portanto, conceber o mundo sensível como. a atividade sensível, viva e total, dos indivíduos que o constituem, razão pela qual é obrigado, ao ver, por exemplo, ao invés de homens sadios um bando de pobres-diabos, escrufulosos, esgotados e tísicos, a recorrer a uma "concepção superior" e à ideal "igualização no gênero"; ou seja, por conseguinte, a reincidir no idealismo precisamente ali onde o materialista comunista vê a necessidade e simultaneamente a condição de uma transformação, tanto da indústria como da estrutura social. Na medida em que Feuerbach é materialista, não aparece nele a história, e na medida em que toma a história em consideração, não é materialista. Materialismo e história aparecem completamente divorciados nele, fato que é explicado pelo que até aqui dissemos. A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado, prossegue em condições completamente diferentes a atividade precedente, enquanto, de outro lado, modifica as circunstâncias anteriores através de uma atividade totalmente diversa. O que pode ser especulativamente distorcido, na medida em que se converte a história posterior em finalidade da anterior, na medida em que, por exemplo, é atribuída à descoberta da América a finalidade de auxiliar a erupção da Revolução Francesa - com o que a historia recebe finalidades à parte, tornando-se uma "pessoa ao lado de outras pessoas" (tais como: "autoconsciência, crítica, o Único" etc.), enquanto que o que se designa com as palavras "destinação", "finalidade", "núcleo", "ideia", da história anterior nada mais é do que uma abstração da história posterior, uma abstração da influência ativa que a história anterior exerce sobre a posterior. Ora, quanto mais os círculos singulares que atuam uns sobre os outros se expandem no curso desse desenvolvimento, quanto mais o isolamento primitivo das diferentes nacionalidades é destruído pelo modo de produção desenvolvido, pelo intercâmbio e pela divisão do trabalho que surge de maneira natural entre as diferentes nações, tanto mais a história torna-se uma história mundial. Assim é que se inventa, por exemplo, na Inglaterra uma máquina que, na índia ou na China, rouba o pão a milhares de trabalhadores e subverte toda a forma de existência desses impérios, tal invento torna-se um fato histórico-mundial. E vemos também como o açúcar e o café demonstram sua importância histórico-mundial no século XIX, pelo fato de que a escassez desses produtos, resultante do sistema continental napoleônico, incitou a sublevação dos alemães contra Napoleão, estabelecendo-se com isso a base real das gloriosas guerras de libertação de 1813. Segue-se daí que essa transformação da história em história mundial não é, digamos, um simples fato abstrato da "autoconsciência", do espírito mundial ou de qualquer outro fantasma metafísico, mas sim uma ação puramente material, verificável de maneira empírica, uma ação para a qual cada indivíduo fornece a prova, na medida em que anda e para, come, bebe e se veste. As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época. Por exemplo, numa época e num país em que a aristocracia e a burguesia disputam a dominação e em que, portanto, a dominação está dividida, mostra-se como ideia dominante a doutrina da divisão dos poderes, enunciada então como "lei eterna". A divisão do trabalho, de que já tratamos acima como uma das forças principais da história até aqui, se expressa também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior desta classe, uma parte aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo principal de subsistência), enquanto que os outros relacionam-se com estas ideias e ilusões de maneira mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para produzir ideias e ilusões acerca de si próprios. No interior desta classe, essa cisão pode mesmo conduzir até a certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas esta hostilidade, entretanto, desaparece por si mesma logo que surge qualquer colisão prática capaz de colocar em perigo a própria classe, ocasião em que desaparece também a aparência de que as ideias dominantes não são as ideias da classe dominante e têm um poder diferente do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa determinada época já pressupõe a existência de uma classe revolucionária, sobre cujos pressupostos já dissemos anteriormente o necessário. Se, na concepção do decurso da história, separarmos as ideias da classe dominante da própria classe dominante e se as concebermos como autônomas, se nos limitarmos a dizer que em uma época estas ou aquelas ideias dominaram, sem nos preocuparmos com as condições de produção e com os produtores destas ideias, se, portanto, ignorarmos os indivíduos e as circunstâncias mundiais que são a base destas ideias, então podemos afirmar, por exemplo, que, na época em que a aristocracia dominou, os conceitos de honra, fidelidade etc. dominaram, ao passo que na época da dominação da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc. É o que, em média, imagina a própria classe dominante. Tal concepção da história, comum a todos os historiadores, especialmente desde o século XVIII, defrontar-se-á necessariamente com o fenômeno de que ideias cada vez mais abstratas dominam, isto é, ideias que tomam cada vez mais a forma de universalidade. Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes dela é obrigada, para alcançar os fins a que se propõe, a apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade, isto é, para expressar isso mesmo em termos Ideais: é obrigada a emprestar às suas ideias a forma de universalidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas universalmente válidas. A classe revolucionária surge, desde o início, não como classe, mas como representante de toda a sociedade, porque já se defronta com uma classe; aparece como a massa inteira da sociedade frente à única classe dominante. Ela consegue isso porque no início seu interesse realmente ainda está ligado ao interesse coletivo de todas as outras classes não dominantes e porque, sob a pressão das condições prévias, esse interesse ainda não pôde desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular. Sua vitória é útil, também, a muitos indivíduos de outras classes que não alcançaram uma posição dominante, mas apenas na medida em que coloque agora esses indivíduos em condições de elevar-se à classe dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia, permitiu que muitos proletários se elevassem acima do proletariado, mas unicamente na medida em que tornaram-se burgueses. Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma base mais extensa do que a da classe que até então dominava, ao passo que, mais tarde, a oposição entre a nova classe dominante e a não dominante se agrava e se aprofunda ainda mais. Ambas estas coisas condicionam o fato de que a luta a ser conduzida contra esta nova classe dominante propõe-se novamente a uma negação mais decisiva e radical das condições sociais anteriores, mais do que a que puderam fazer todas as classes precedentes que haviam aspirado à dominação. Toda esta aparência, a aparência de que a dominação de uma classe determinada é somente a dominação de certas ideias, desaparece naturalmente, por si mesma, tão logo a dominação de classe deixe de ser a forma da ordem social, tão logo não seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou "o geral" como dominante. Uma vez que as ideias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações que nascem de uma dada fase do modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que na história as ideias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas ideias "a ideia" etc. como o dominante na história e nesta medida conceber todos estes conceitos e ideias particulares como "autodeterminação" do conceito que se desenvolve na historia. É então também natural que todas as relações dos homens podem ser deduzidas do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, do homem. Assim procedeu a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa no final da Filosofia da História que "só considera o progresso do conceito" e que expõe na história a "verdadeira teodicéia". Agora pode-se voltar novamente aos produtores "do conceito", aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chega-se então ao resultado de que os filósofos, os pensadores como tal, dominaram sempre na história - um resultado que também Hegel já proclamara, como acabamos de ver. Todo truque que consiste em provar a supremacia do espírito na história (a hierarquia em Stirner) limita-se aos três esforços seguintes: 1º) Deve-se separar as ideias dos dominantes (que dominam por razões empíricas, sob condições empíricas e como indivíduos materiais) destes próprios dominantes, reconhecendo com isso a dominação das ideias ou ilusões na história. 2º) Deve-se introduzir uma ordem nesta dominação das ideias, estabelecer uma conexão mística entre as ideias sucessivamente dominantes, o que se consegue concebendo-as como "autodeterminações do conceito" (isto i possível porque, em virtude de sua base empírica, essas ideias estão realmente ligadas entre si e porque, concebidas como meras ideias, convertem-se em autodiferenciações, diferenças estabelecidas pelo pensamento). 3°) Para eliminar o aspecto místico deste "conceito que se autodetermina" transforma-se-o numa pessoa - "a autoconsciência" - ou a fim de aparecer exatamente como materialista, numa série de pessoas que representam "o conceito" na história, a saber, os "pensadores", os "filósofos", os ideólogos, concebidos como os fabricantes da história, como o "conselho dos guardiães", como os dominantes ". Desta forma, eliminam-se todos os elementos materialistas da história e pode-se então soltar, tranquilamente, as rédeas do corcel especulativo. Enquanto que na vida comum qualquer comerciante sabe perfeitamente distinguir entre o que alguém diz ser e o que realmente é, nossa historiografia não alcançou ainda este conhecimento trivial. Toma cada época por sua palavra e acredita no que ela diz e imagina a respeito de si mesma. Este método histórico, que reinou sobretudo na Alemanha, e com razão, deve ser explicado a partir da conexão com a ilusão dos ideólogos em geral - por exemplo, com as ilusões dos juristas, dos políticos (incluindo entre estes os estadistas práticos) - a partir dos devaneios dogmáticos e das distorções destes fulanos, o que se explica de forma muito simples a partir de sua posição prática na vida, de seus negócios e da divisão do trabalho. A Base Real da Ideologia Intercâmbio e Força Produtiva A maior divisão entre o trabalho material e o intelectual é a separação entre a cidade e o campo. A oposição entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie à civilização, da organização tribal ao Estado, da localidade à nação, e persiste através de toda a história da civilização até nossos dias. Com a cidade aparece, simultaneamente, a necessidade de administração, de polícia, de impostos etc., em uma palavra, a necessidade da organização comunal e, portanto, da política em geral. Aqui, manifesta-se pela primeira vez a divisão da população em duas grandes classes, divisão que repousa diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade já é o fato da concentração da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres e das necessidades, ao passo que o campo evidencia exatamente o fato oposto: o isolamento e a separação. A oposição entre a cidade e o campo só pode existir nos quadros da propriedade privada. É a expressão mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, a uma determinada atividade que lhe é imposta - subsunção que converte uns em limitados animais urbanos e outros em limitados animais rurais, reproduzindo diariamente a oposição entre os interesses de ambos. O trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder sobre os indivíduos, e enquanto existir esse poder deve existir a propriedade privada. A superação da oposição entre a cidade e o campo é uma das primeiras condições da coletividade, uma condição que depende, por sua vez, de uma massa de pressupostos materiais que não pode ser satisfeita por obra da simples vontade, como qualquer um pode perceber à primeira vista. (Estas condições têm ainda que ser enumeradas e desenvolvidas). A separação entre a cidade e o campo pode ser concebida também como a separação entre o capital e a propriedade da terra, como o começo de uma existência e de um desenvolvimento do capital independente da propriedade da terra, como o começo de uma propriedade que tem por base somente o trabalho e a troca. Nas cidades que, na Idade Média, não foram transmitidas já prontas pela história anterior, mas que se formaram mais recentemente a partir dos servos que se tornaram livres, o trabalho particular de cada um era sua única propriedade além do pequeno capital, que consistia quase unicamente nas ferramentas mais necessárias que trazia consigo. A concorrência dos servos fugitivos que não cessavam de afluir às cidades e, com isso, a necessidade de uma força militar urbana organizada, o vínculo da propriedade em comum com um determinado trabalho, a necessidade de edifícios comuns para a venda de mercadorias - numa época em que os artesãos eram também comerciantes - e a consequente exclusão de pessoas não qualificadas de tais estabelecimentos, a oposição de interesses entre os diferentes ofícios, a necessidade de proteger o trabalho aprendido a duras penas e a organização feudal de todo o país: estas foram as causas que levaram os trabalhadores de cada ofício a se unirem em corporações. Não vamos aprofundar, aqui, as múltiplas modificações do sistema de corporações, introduzidas por desenvolvimentos históricos ulteriores. A fuga dos servos para as cidades ocorreu ininterruptamente por toda a Idade Média. Esses servos, perseguidos no campo por seus senhores, chegavam isoladamente às cidades, onde encontravam uma comunidade organizada contra a qual eram impotentes e na qual deviam se submeter à posição que lhes designavam a procura por seu trabalho e o interesse de seus concorrentes urbanos já organizados. Esses trabalhadores, que chegavam isoladamente, jamais podiam chegar a ser uma força, já que, se seu trabalho fosse de tipo corporativo e tivesse que ser aprendido, os mestres da corporação os subjugavam e os organizavam de acordo com seus interesses; ou então, se seu trabalho não tivesse que ser aprendido e, portanto, não fosse de tipo corporativo, tornavam-se trabalhadores diaristas e jamais chegavam a formar uma organização, permanecendo como uma plebe desorganizada. A necessidade de trabalhadores diaristas nas cidades criou a plebe. Estas cidades eram verdadeiras "associações", criadas pela necessidade imediata, pela preocupação em defender a propriedade e aptas a multiplicar os meios de produção e os meios de defesa de seus membros individuais. A plebe destas cidades encontrava-se privada de todo poder, compunha-se de indivíduos estranhos uns aos outros, que chegavam isoladamente e que não possuíam organização frente a um poder organizado, equipado para a guerra, que os vigiava zelosamente. Oficiais e aprendizes estavam organizados em cada ofício conforme melhor correspondesse aos interesses dos mestres; a relação patriarcal existente entre eles e seus mestres conferia a estes últimos um duplo poder - de um lado, os mestres exerciam influência direta sobre toda a vida dos oficiais; de outro lado, porque, para os oficiais que trabalhavam com o mesmo mestre, havia um vínculo real que os mantinha unidos frente aos oficiais dos outros mestres e os separavam destes; por último, os oficiais estavam ligados à ordem existente pelo interesse que tinham em se tornarem também mestres. Por consequência, enquanto a plebe se lançava, ao menos, a sublevações contra toda a ordem urbana, sublevações que, pela sua impotência, eram completamente ineficazes, os oficiais não promoveram senão pequenos atos de insubordinação no interior de corporações isoladas, atos que pertencem à própria natureza do regime corporativo. As grandes sublevações da Idade Média partiram todas do campo, mas igualmente não tiveram o menor sucesso, em virtude da dispersão e da consequente rusticidade dos camponeses. Nas cidades, a divisão do trabalho entre as diferentes corporações era ainda inteiramente natural e, nas próprias corporações, ela não se estabelecia de forma alguma entre os diferentes trabalhadores. Cada trabalhador devia estar apto a executar todo um ciclo de trabalhos e preparado para fazer tudo o que pudesse produzir com suas ferramentas. O intercâmbio restrito e a frágil ligação entre as diversas cidades, a escassa densidade da população e as necessidades exíguas, não permitiam que a divisão do trabalho fosse mais extensa; e cada um que quisesse tornar-se mestre deveria dominar inteiramente seu ofício. Por isso encontra-se entre os artesãos medievais um interesse por seu trabalho especial e pela habilidade em exercê-lo, que podia chegar até certo sentido artístico limitado. Por isso também cada artesão medieval estava completamente absorvido por seu trabalho, com o qual mantinha uma agradável relação de servidão e ao qual estava muito mais subordinado do que o trabalhador moderno, para o qual seu trabalho é indiferente. O capital, nestas cidades, era um capital surgido naturalmente, que consistia em habitação, ferramentas e em uma clientela natural e hereditária; transmitia-se de pais para filhos como capital irrealizável, devido ao incipiente comércio e à escassa circulação. Este capital não era, como o moderno, um capital avaliável em dinheiro, que pode ser investido indiferentemente: mas era um capital diretamente ligado ao trabalho determinado do possuidor e dele inseparável; era, portanto, neste sentido, um capital corporativo. O passo seguinte no desenvolvimento da divisão do trabalho foi a separação entre a produção e o comércio, a formação de uma classe especial de comerciantes, uma separação que já era tradicional nas cidades transmitidas por um período anterior (com os judeus, entre outras coisas) e que logo surgiu nas cidades de formação recente. Com isto estava dada a possibilidade de um vínculo comercial que ultrapassava os círculos mais próximos, uma possibilidade cuja realização dependia dos meles de comunicação existentes, do estado da segurança pública atingido no país e condicionado pelas circunstâncias políticas (durante toda a Idade Média, como é bem conhecido, os comerciantes viajavam em caravanas armadas), e das necessidades das regiões acessíveis ao comércio, necessidades cujo grau de desenvolvimento determinava-se, em cada caso, pelo correspondente grau de cultura. Com a constituição de uma classe especial dedicada ao comércio, com a extensão do comércio através dos comerciantes para além das vizinhanças mais próximas da cidade, surgiu logo uma ação recíproca entre a produção e o comércio. As cidades entram em relação umas com outras, novas ferramentas são levadas de uma cidade para outra e a separação entre a produção e o comércio não tarda a suscitar uma nova divisão da produção entre as diversas cidades, cada uma das quais logo explorará predominantemente um ramo industrial. A limitação inicial à localidade começa, pouco a pouco, a desaparecer. Na Idade Média, os burgueses em cada cidade eram constrangidos a se unir contra a nobreza rural para salvar sua pele. A extensão do comércio e o estabelecimento de comunicações levaram cada cidade a conhecer outras cidades que haviam imposto os mesmos interesses na luta contra a mesma oposição. A partir das numerosas burguesias locais de diferentes cidades nasceu lentamente a classe burguesa. As condições de vida dos diferentes burgueses, em decorrência da oposição às relações sociais existentes e do tipo de trabalho que isto impunha, tornaram-se simultaneamente condições comuns a todos eles e independentes de cada indivíduo. Os burgueses criaram essas condições na medida em que se destacavam da associação feudal, e foram criados por essas condições na medida em que estavam determinados por sua oposição à feudalidade existente. Com o surgimento do vínculo entre as diferentes cidades, essas condições comuns se transformaram em condições de classe. As mesmas condições, a mesma oposição, os mesmos interesses tinham também, necessariamente, que engendrar em todas as partes os mesmos costumes. A própria burguesia só se desenvolve paulatinamente dentro de suas condições; ramifica-se, por sua vez, em diferentes frações, de acordo com a divisão do trabalho, e acaba por absorver em si todas as classes possuidoras preexistentes (ao mesmo tempo em que transforma numa nova classe - o proletariado - a maioria da classe não possuidora que existia anteriormente e uma parte das classes até então possuidoras), na medida em que toda a propriedade existente é transformada em capital comercial ou industrial. Os indivíduos isolados apenas formam uma classe na medida em que têm que manter uma luta comum contra outra classe; no restante, eles mesmos defrontam-se uns com outros na concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos encontram suas condições de vida preestabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e seu desenvolvimento pessoal determinados pela classe; tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos isolados à divisão do trabalho, e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se supera a propriedade privada e o próprio trabalho. Indicamos várias vezes como essa subsunção dos indivíduos à classe transforma-se, ao mesmo tempo, em sua subsunção a todo tipo de representações etc. Depende simplesmente da extensão do comércio se as forças produtivas alcançadas em uma localidade - especialmente as invenções - perdem-se ou não para o desenvolvimento ulterior. Quando ainda não existe comércio para além dos círculos mais próximos, cada invenção deve ser feita separadamente em cada localidade, e meros acasos, tais como irrupções de povos bárbaros, inclusive guerras habituais, são suficientes para fazer com que um país com forças produtivas e necessidades desenvolvidas tenha que recomeçar novamente. No início da história, todas as invenções tinham que ser refeitas diariamente e em cada localidade, de maneira independente. Quão pouco salvas de uma destruição total estão as forças produtivas desenvolvidas - mesmo no caso em que o comércio tenha logrado relativa extensão - é demonstrado pelos fenícios, cujas invenções na maior parte desapareceram por longo tempo pelo fato desta nação ter sido excluída do comércio pela conquista de Alexandre e pela sua consequente decadência. O mesmo ocorreu na Idade Média, por exemplo, com a pintura sobre vidro. A permanência das forças produtivas adquiridas só é assegurada quando o comércio torna-se comércio mundial e tem por base a grande indústria, quando todas as nações são levadas à luta da concorrência. A imediata consequência da divisão do trabalho entre as diferentes cidades foi o nascimento das manufaturas, ramos da produção que escapavam dos limites do sistema corporativo. O primeiro florescimento das manufaturas - na Itália e mais tarde em Flandres - teve como seu pressuposto histórico o comércio com nações estrangeiras. Em outros países - Inglaterra e França, por exemplo - as manufaturas limitaram-se, inicialmente, ao mercado interno. Além dos pressupostos já indicados, as manufaturas pressupõem ainda uma concentração bem avançada da população - sobretudo no campo - e do capital, que começa a acumular-se em poucas mãos, em parte nas corporações, apesar das leis corporativas, e em parte entre os comerciantes. Aquele trabalho que, desde o início, pressupunha a utilização de uma máquina, mesmo sob forma rudimentar, não tardou a revelar-se como o mais capaz de desenvolvimento. A tecelagem, que os camponeses praticavam até então como atividade acessória para obter as vestimentas necessárias, foi o primeiro trabalho que recebeu um impulso e um amplo desenvolvimento graças à extensão do comércio. A tecelagem foi a primeira e continuou sendo a mais importante manufatura. A crescente procura de tecidos para roupas, em consequência do aumento da população, o começo da acumulação e da mobilização do capital surgido naturalmente através da circulação acelerada, a necessidade de luxo disso resultante e favorecida, sobretudo, pela extensão progressiva do comércio, proporcionaram à tecelagem, quantitativa e qualitativamente, um impulso que a obrigou a abandonar a forma de produção anterior. Ao lado dos camponeses, que teciam para seu próprio uso - que continuaram a subsistir e continuam ainda hoje - apareceu nas cidades uma nova classe de tecelões, cuj os tecidos eram destinados ao conjunto do mercado interno e, frequentemente, também aos mercados externos. A tecelagem, trabalho que exige, na maioria dos casos, pouca habilidade e que não tardou a desdobrar-se em incontáveis ramos, resistia, por sua própria natureza, aos grilhões da corporação. Por isso, a tecelagem foi exercida principalmente em aldeias e povoações sem organização corporativa, as quais gradualmente tornaram-se cidades e, inclusive, as mais florescentes cidades de cada país. Com a manufatura livre da corporação, transformaram-se também as relações de propriedade. O primeiro passo para ultrapassar o capital surgido naturalmente foi dado pelo aparecimento de comerciantes cujo capital foi desde o início um capital móvel - isto é, um capital no sentido moderno, na medida em que se pode falar disso - dadas as circunstâncias de então, O segundo passo foi dado pela manufatura, que mobilizou novamente uma massa de capital surgido naturalmente e aumentou a massa do capital móvel em relação à do capital surgido naturalmente. Ao mesmo tempo, a manufatura tornou-se um refúgio dos camponeses contra as corporações que os excluíam ou os pagavam mal, da mesma maneira que anteriormente as cidades dominadas pelas corporações lhes tinham servido de refúgio contra a nobreza rural opressora. O começo das manufaturas trouxe consigo, simultaneamente, um período de vagabundagem causado pelo desaparecimento da vassalagem feudal, pela dispensa dos exércitos que haviam sido reunidos e servido aos reis contra os vassalos, pela melhoria da agricultura e pela transformação em pastagens de vastas zonas de cultivo. Isso já mostra como esta vagabundagem está estreitamente ligada à decomposição do feudalismo. Já no século XIII nos encontramos com épocas isoladas desse tipo, mas a vagabundagem só se estabelece de maneira permanente e generalizada em fins do século XV e começos do século XVI. Estes vagabundos - tão numerosos que o rei Henrique VIII da Inglaterra, entre outros, mandou enforcar cerca de 72 mil - foram obrigados a trabalhar com as maiores dificuldades, em meio à mais extrema miséria e somente após longas resistências. A rápida prosperidade das manufaturas, sobretudo na Inglaterra, absorveu-os paulatinamente. Com a manufatura, as diversas nações entraram numa relação de concorrência, empenhando-se em lutas comerciais por meio de guerras, direitos alfandegários protecionistas e proibições, ao passo que, antes, as nações, quando em contato, mantinham entre si trocas inofensivas. O comércio, a partir de então, tem significação política. Com o advento da manufatura, as relações entre trabalhador e empregador mudaram. Nas corporações subsistiam as relações patriarcais entre oficiais e mestres; na manufatura estas relações foram substituídas por relações monetárias entre o trabalhador e o capitalista, relações que permaneceram com vestígios de patriarcalismo no campo e nas pequenas cidades, mas que logo perderam quase todo o matiz patriarcal nas cidades maiores, verdadeiramente manufatureiras. A manufatura e em geral o movimento da produção receberam um enorme impulso através da extensão do comércio, em consequência da descoberta da América e da rota marítima das índias Orientais. Os novos produtos importados destas regiões, e principalmente as massas de ouro e prata que entraram em circulação, transformaram totalmente a situação recíproca das classes sociais e desfecharam um rude golpe na propriedade feudal da terra e nos trabalhadores. As expedições de aventureiros, a colonização e sobretudo a extensão dos mercados até a formação de um mercado mundial - que se tornara possível e se ampliava cada dia mais - provocaram, nova fase no desenvolvimento histórico, fase na qual, em geral, não nos deteremos aqui. Através da colonização dos países de descoberta recente, a luta comercial entre as nações recebeu novo alimento e, com isso, tornou-se mais extensa e encarniçada. A expansão do comércio e da manufatura acelerou a acumulação do capital móvel, enquanto que nas corporações - que nenhum estímulo recebiam para aumentar sua produção - o capital surgido naturalmente permanecia estável ou até diminuía. O comércio e a manufatura criaram a grande burguesia; nas corporações concentrava-se a pequena burguesia, que então já não dominava mais, com antes, nas cidades, mas devia curvar-se à dominação dos grandes comerciantes e manufatureiros. Daí a decadência das corporações, tão logo entraram em contato com a manufatura. As relações comerciais entre as nações assumiram duas formas diferentes no período a que nos temos referido. No começo, o escasso volume de ouro e de prata em circulação determinou a proibição da exportação desses metais; a indústria, na maior parte importada do estrangeiro e exigida pela necessidade de empregar a crescente população urbana, não podia dispensar os privilégios a ela concedidos, não só, naturalmente, contra a concorrência interna, mas sobretudo contra a concorrência externa. O privilégio corporativo local estendia-se, nessas proibições primitivas, a toda a nação. Os direitos alfandegários surgiram dos tributos que os senhores feudais impunham aos comerciantes que atravessavam seus territórios, como resgate da pilhagem; tais tributos foram, mais tarde, igualmente impostos pelas cidades e, com o aparecimento dos Estados modernos, constituíram o recurso mais ao alcance do fisco para obter dinheiro. O aparecimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, o desenvolvimento progressivo da indústria, a rápida expansão do comércio e a consequente prosperidade da burguesia não corporativa e do dinheiro deram a essas medidas um significado diferente. O Estado, que era cada dia menos capaz de dispensar dinheiro, mantinha a proibição da exportação de ouro e prata por razões de ordem fiscal; os burgueses, cujo objetivo principal agora era açambarcar as massas de dinheiro lançadas novamente no mercado, sentiam-se plenamente satisfeitos com isso; os antigos privilégios converteram-se em fonte de renda para o governo e foram vendidos por dinheiro; na legislação alfandegária surgiram tributos sobre a exportação, os quais, desde que apenas colocavam um obstáculo no caminho da indústria, tinham fins puramente fiscais. O segundo período começou em meados do século XVII e durou quase até fins do século XVIII. O comércio e a navegação tinham se desenvolvido mais rapidamente do que a manufatura, que desempenhava papel secundário; as colônias começavam a se tornar fortes consumidoras; as diferentes nações dividiam-se, através de longas lutas, no mercado mundial que se abria. Esse período começa com as leis sobre a navegação e os monopólios coloniais. A concorrência das nações entre si era eliminada, dentro do possível, por meio de tarifas, proibições e tratados; e, em última instância, as guerras (sobretudo as guerras marítimas) decidiam a luta da concorrência. A nação marítima mais poderosa, a Inglaterra, mantinha sua preponderância no plano comercial e na manufatura. Nota-se já aqui a concentração em um só país. A manufatura estava constantemente amparada pelos impostos alfandegários protecionistas no mercado interno, pelos monopólios no mercado colonial e, tanto quanto possível, pelos impostos alfandegários diferenciais no exterior. Favoreceu-se a elaboração da matéria-prima produzida no próprio país (lã e linho na Inglaterra, seda na França); proibiu-se a exportação da matéria-prima produzida no interior do país (lã na Inglaterra) e negligenciou-se ou reprimiu-se a elaboração da matéria-prima importada (algodão na Inglaterra). A nação predominante no comércio marítimo e como potência colonial assegurou-se também da maior expansão quantitativa e qualitativa da manufatura. Esta não podia de modo algum prescindir de proteção, já que a menor modificação ocorrida em outros países poderia levá-la a perder seus mercados e a arruinar-se; é fácil introduzi-la num país de condições até certo ponto favoráveis, mas isso também faz com que seja facilmente destruída. Ao mesmo tempo, segundo a maneira como é praticada no país, sobretudo no século XVIII, a manufatura está ligada tão intimamente às condições de vida de grandes massas de indivíduos que nenhum país pode aventurar-se a pôr em jogo sua existência, permitindo a livre concorrência. Na medida em que é levado a exportar, passa a depender, pois, inteiramente da extensão ou da limitação do comércio, e exerce sobre ele uma influência relativamente muito pequena. Daí sua importância secundária e também a influência dos comerciantes no século XVIII. Foram os comerciantes e particularmente os armadores que, mais do que os outros, insistiram na proteção do Estado e nos monopólios; os manufatureiros também exigiram e obtiveram proteção, mas estavam constantemente abaixo dos comerciantes em importância política. As cidades comerciais e particularmente as marítimas tornaram-se relativamente civilizadas e aburguesadas, enquanto que nas cidades fabris prevalecia a pequena burguesia. O século XVIII foi o século do comércio. Assim informa Pinto expressamente: "O comércio é a mania do século"; e: "Desde há algum tempo só se fala de comércio, de navegação e de marinha". O movimento do capital, embora consideravelmente acelerado, ainda permaneceu relativamente lento. A fragmentação do mercado mundial em diferentes partes, cada uma delas explorada por uma nação distinta, a exclusão da concorrência entre as nações, a imperícia na própria produção e o sistema monetário, que apenas começava a emergir de suas primeiras fases, inibiam bastante a circulação. Consequência disto era aquele sujo e mesquinho espírito de merceeiro que ainda permanecia aderido a todos os comerciantes e a todo o modo de atividade comercial. Em comparação com os manufatureiros e principalmente com os artesãos, eles eram, com efeito, grandes burgueses, mas em comparação com os comerciantes e industriais do período seguinte permaneceram pequeno burgueses. Esse período é também caracterizado pela abolição das proibições de exportação de ouro e prata, em virtude do surgimento do comércio de dinheiro, dos bancos, das dívidas de Estado, do papel-moeda, das especulações com ações, da agiotagem em todos os artigos e do desenvolvimento do sistema monetário em geral. O capital perdeu mais uma vez uma grande parte do caráter natural a que ainda estava preso. A concentração do comércio e da manufatura em um só país, a Inglaterra - concentração que se desenvolveu ininterruptamente no século XVII - criou progressivamente para este país um relativo mercado mundial e, com isso, uma procura dos produtos ingleses manufaturados, procura esta que as forças produtivas industriais anteriores não podiam mais satisfazer. Tal procura, que ultrapassava as forças de produção, foi a força motriz que, criando a grande indústria e com ela a utilização de forças elementares para fins industriais, a maquinaria e a mais extensa divisão do trabalho, deu nascimento ao terceiro período da propriedade privada desde a Idade Média. As outras condições desta nova fase, tais como a liberdade de concorrência no interior da nação, o desenvolvimento da mecânica teórica (a mecânica aperfeiçoada por Newton foi a ciência mais popular na França e na Inglaterra no século XVIII) etc. - já existiam na Inglaterra. (A livre concorrência no interior da própria nação teve que ser conquistada em toda parte por uma revolução - em 1640 e em 1688 na Inglaterra, em 1789 na França.) A concorrência logo obrigou todo país que quisesse conservar seu papel histórico a proteger suas manufaturas por meio de novas medidas alfandegárias (as antigas eram já insuficientes em face da grande indústria), e logo depois a introduzir a grande indústria sob tributos protecionistas. Apesar destas medidas protecionistas, a grande indústria universalizou a concorrência (ela é a liberdade prática de comércio e o tributo protecionista não passa de paliativo, de arma defensiva na liberdade de comércio); estabeleceu os meios de comunicação e o mercado mundial moderno, submeteu a si o comércio, transformou todo capital em capital industrial e engendrou, com isso, a rápida circulação (o desenvolvimento do sistema monetário) e a centralização dos capitais. Através da concorrência universal, obrigou todos os indivíduos ao mais intenso emprego de suas energias. Destruiu, onde foi possível, a ideologia, a religião, a moral etc., e onde não pôde fazê-lo converteu-as em mentiras palpáveis. Foi ela que engendrou a história mundial, na medida em que tornou cada nação civilizada e cada indivíduo membro dela dependentes do mundo inteiro para a satisfação de suas necessidades, e que destruiu o anterior caráter exclusivista e natural das diferentes nações. Subsumiu a ciência da natureza ao capital e retirou à divisão do trabalho sua última aparência de naturalidade. Destruiu em geral a naturalidade, tanto quanto isto é possível no interior do trabalho, e dissolveu todas as relações naturais em relações monetárias. No lugar das cidades surgidas naturalmente, criou as grandes cidades industriais modernas que nasceram da noite para o dia. Onde quer que penetrou, destruiu o artesanato e, em geral, todas as fases anteriores da indústria. Completou a vitória da cidade comercial sobre o campo. Seu primeiro pressuposto é o sistema automático. Seu desenvolvimento engendrou uma massa de forças produtivas, para a qual a propriedade privada tornou-se um entrave, tal como a corporação havia sido para a manufatura e o pequeno empreendimento agrícola para o progresso do artesanato. Essas forças produtivas, sob o regime da propriedade privada, experimentam apenas um desenvolvimento unilateral, convertem-se para a maioria em forças destrutivas e grande quantidade delas não encontram a menor utilização sob este regime. Em geral, a grande indústria engendrou em todas as partes as mesmas relações entre as classes da sociedade, destruindo com isso a peculiaridade das diferentes nacionalidades. Finalmente, enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda interesses nacionais particulares, a grande indústria criou uma classe cujos interesses são os mesmos em todas as nações e em que toda nacionalidade está já destruída; uma classe que, realmente, se desembaraçou do mundo antigo e que, ao mesmo tempo, com ele se defronta. Não é apenas a relação com o capitalista, mas é o próprio trabalho, que a grande indústria torna insuportável para o trabalhador. É evidente que a grande indústria não alcança o mesmo grau de desenvolvimento em todas as localidades de um mesmo país. Mas isso não detém o movimento de classe do proletariado, dado que os proletários engendrados pela grande indústria põem-se à testa desse movimento e arrastam consigo toda a massa, e dado também que os trabalhadores excluídos da grande indústria veem-se atirados por ela a uma situação ainda pior do que a dos trabalhadores da própria grande indústria. Do mesmo modo, os países em que se desenvolve uma grande indústria influem sobre os países mais ou menos não industriais, na medida em que estes últimos são compelidos pelo comércio mundial à luta universal da concorrência. A concorrência isola os indivíduos uns dos outros, não apenas os burgueses, mas ainda mais os proletários, apesar de aglutina-los. Por isso, decorre sempre um longo período antes que os indivíduos possam unir-se, abstração feita do fato de que, para esta união - quando não for puramente local - os meios necessários, as grandes cidades industriais e as comunicações rápidas e acessíveis, devem ser primeiro produzidos pela grande indústria; por isso, toda força organizada frente a estes indivíduos isolados, que vivem em condições que reproduzem diariamente o isolamento, só pode ser vencida após longas lutas. Exigir o contrário equivaleria a exigir que a concorrência não deve existir nessa época histórica determinada ou que os indivíduos devem expulsar de suas mentes relações sobre as quais não têm qualquer controle como indivíduos isolados. Essas diversas formas são outras tantas formas de organização do trabalho e, portanto, da propriedade. Em cada período, ocorreu uma união das forças produtivas existentes, na medida em que as necessidades assim o exigiram. A Relação do Estado e do Direito com a Propriedade Tanto no mundo antigo como na Idade Média, a primeira forma de propriedade é a propriedade tribal, condicionada entre os romanos principalmente pela guerra e entre os germanos pela pecuária. Entre os povos antigos, já que muitas tribos viviam juntas em uma mesma cidade, a propriedade tribal aparece como propriedade do Estado e o direito do indivíduo sobre ela como simples posse que, entretanto, limita-se, como a propriedade tribal em geral, apenas à propriedade da terra. A verdadeira propriedade privada começa, tanto entre os antigos como entre os povos modernos, com a propriedade mobiliaria. - (Escravidão e comunidade) (propriedade de acordo com a lei). Nos povos surgidos da Idade Média, a propriedade tribal desenvolve-se passando por várias etapas diferentes - propriedade feudal da terra, propriedade mobiliaria corporativa, capital manufatureiro - até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, isto é, até chegar à propriedade privada pura, que se despojou de toda aparência de comunidade e que excluiu toda influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. A esta propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, comprado paulatinamente pelos proprietários privados através dos impostos, cai completamente sob o controle destes pelo sistema da dívida pública, e cuja existência, como é revelado pela alta e baixa dos valores do Estado na bolsa, tornou-se completamente dependente do crédito comercial concedido pelos proprietários privados, os burgueses. A burguesia, por ser já uma classe e não mais um estamento, é obrigada a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, a dar uma forma geral a seu interesse médio. Através da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquire uma existência particular, ao lado e fora da sociedade civil; mas este Estado não é mais do que a forma de organização que os burgueses necessariamente adotam, tanto no interior como no exterior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus interesses. A autonomia do Estado ocorre hoje em dia apenas naqueles países onde os estamentos ainda não se desenvolveram totalmente até se transformarem em classes, onde ainda desempenham certo papel os estamentos já eliminados nos países mais avançados, onde existe certa mistura; países nos quais, por conseguinte, nenhuma parte da população pode chegar a dominar as outras. Este é particularmente o caso da Alemanha. O exemplo mais acabado do Estado moderno é a América do Norte. Os modernos escritores franceses, ingleses e americanos, sem exceção, consideram que o Estado só existe por causa da propriedade privada, de tal forma que isto também passou para a consciência comum. Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, mais ainda, na vontade destacada de sua base real - na vontade livre. Da mesma forma, o direito é reduzido novamente à lei. O direito privado desenvolve-se simultaneamente com a propriedade privada, a partir da desintegração da comunidade natural. Entre os romanos, o desenvolvimento da propriedade privada e do direito privado não teve nenhuma consequência industrial ou comercial porque todo o seu modo de produção continuou a ser o mesmo. Entre os povos modernos, onde a comunidade feudal foi dissolvida pela indústria e pelo comércio, o nascimento da propriedade privada e do direito privado marcou o começo de uma nova fase, capaz de ulterior desenvolvimento. Amalfi, a primeira cidade da Idade Média que teve um extenso comércio marítimo, foi também a primeira a elaborar o direito marítimo. Tão logo o comércio e a indústria desenvolveram a propriedade privada, primeiro na Itália e mais tarde em outros países, o altamente desenvolvido direito privado romano foi imediatamente adotado de novo e considerado como autoridade. Quando, mais tarde, a burguesia adquiriu poder suficiente para que os príncipes protegessem seus interesses com o fim de derrubar a nobreza feudal por meio da burguesia, o desenvolvimento propriamente dito do direito começou em todos os países - na França, no século XVI - e, em todos eles, à exceção da Inglaterra, teve por base o Código Romano. Mesmo na Inglaterra tiveram que ser introduzidos princípios do direito romano para o posterior desenvolvimento do direito privado (em particular no caso da propriedade mobiliaria). (Não se deve esquecer que tanto o direito como a religião não têm história própria.) No direito privado, as relações de propriedade existentes são declaradas como sendo resultado da vontade geral. O próprio direito de usar e de abusar exprime, de um lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se completamente independente da comunidade e, de outro lado, a ilusão de que a própria propriedade privada repousa unicamente na vontade privada, na disposição arbitrária da coisa. Na prática, o abusar tem limites econômicos muito bem determinados para o proprietário privado, se este não quer que sua propriedade, e com ela seu direito de abusar, passe para outras mãos, já que a coisa, considerada simplesmente em relação com a sua vontade, não é inteiramente uma coisa, mas apenas se torna uma coisa, uma verdadeira propriedade, no comércio e independentemente do direito (uma relação, a que os filósofos chamam de ideia). Esta ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, conduz necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de propriedade, ao resultado de que uma pessoa pode ter um título jurídico em relação a uma coisa sem realmente ter a coisa. Assim, por exemplo, se a renda de um lote de terra é suprimida pela concorrência, o proprietário do mesmo conserva, sem dúvida, seu título jurídico, bem como o direito de usar e de abusar. Mas nada poderá fazer com ele: nada possuirá enquanto proprietário de terra se não possuir também capital suficiente para cultivar seu lote. Esta ilusão dos juristas também explica o fato de que, para eles e para todos os códigos jurídicos, é algo fortuito que indivíduos estabeleçam relações entre si (por exemplo, contratos); explica porque consideram que essas relações podem ser estabelecidas de acordo ou não com a vontade, e que seu conteúdo descansa inteiramente sobre o arbítrio individual das partes contratantes. Cada vez que, através do desenvolvimento da indústria e do comércio, surgem novas formas de intercâmbio (por exemplo, companhias de seguros etc.), o direito tem sido sempre obrigado a admiti-las entre os modos de adquirir a propriedade. Formas de Propriedade e Instrumentos de Produção Naturais e Civilizados Do primeiro ponto resulta o pressuposto de uma divisão do trabalho bastante desenvolvida e de um comércio extenso; do segundo ponto, a localidade. No primeiro caso, os indivíduos devem estar reunidos; no segundo, encontram-se como instrumentos de produção ao lado do instrumento de produção dado. Manifesta-se aqui, portanto, a diferença entre os instrumentos de produção naturais e aqueles criados pela civilização. O campo (a água etc.) pode ser considerado como um instrumento de produção natural. No primeiro caso, quando se trata de um instrumento de produção natural, os indivíduos são subsumidos à natureza; no segundo caso, a um produto do trabalho. Por isto, no primeiro caso, a propriedade (propriedade territorial) aparece como dominação imediata e natural; no segundo, como dominação do trabalho, especialmente do trabalho acumulado, do capital. O primeiro caso pressupõe que os indivíduos estão unidos por um laço qualquer, por exemplo a família, a tribo, o próprio solo etc.; o segundo caso pressupõe que são independentes uns dos outros e que se mantém juntos apenas através da troca. No primeiro caso, a troca é essencialmente troca entre os homens e a natureza, uma troca na qual o trabalho dos primeiros é trocado pelos produtos da natureza; no segundo caso, é predominantemente uma trocados homens entre si. No primeiro caso, o senso comum é suficiente - a atividade corporal ainda não está de forma alguma separada da atividade espiritual; no segundo, a divisão entre trabalho corporal e espiritual já deve estar praticamente realizada. No primeiro caso, a dominação do proprietário sobre os não proprietários pode descansar nas relações pessoais, numa espécie de comunidade; no segundo caso, deve ter tomado uma forma reificada em uma terceira coisa, o dinheiro. No primeiro caso, existe a pequena indústria, mas subsumida à utilização do instrumento de produção natural e, portanto, sem distribuição do trabalho entre diferentes indivíduos; no segundo, a indústria existe apenas na e através da divisão do trabalho. Partimos, até aqui, dos instrumentos de produção e já aqui se mostra a necessidade da propriedade privada para certas fases industriais. Na indústria extrativista, a propriedade privada ainda coincide inteiramente com o trabalho; na pequena indústria e em toda a agricultura anterior, a propriedade é a consequência necessária dos instrumentos de produção existentes; na grande indústria, a contradição entre o instrumento de produção e a propriedade privada é o produto da grande indústria, que deve estar já bastante desenvolvida para criá-la. A superação da propriedade privada, portanto, só se torna possível com a grande indústria. Na grande indústria e na concorrência todo o conjunto de condições de existência, inclinações e limitações individuais está fundido em duas formas mais simples: propriedade privada e trabalho. Com o dinheiro, toda forma de intercâmbio e o próprio intercâmbio estão postos para os indivíduos como algo acidental. No próprio dinheiro já está implícito, portanto, que todo intercâmbio anterior, era apenas intercâmbio de indivíduos sob determinadas condições, e não de indivíduos enquanto indivíduos. Estas condições, agora, se reduzem a duas: trabalho acumulado ou propriedade privada e trabalho real. Se ambas ou uma delas desaparece, o intercâmbio se interrompe. Os próprios economistas modernos, por exemplo, Sismondi, Cherbuliez etc., opõem a associação dos indivíduos à associação dos capitais. Por outro lado, os próprios indivíduos estão inteiramente subsumidos à divisão do trabalho e, por isso mesmo, se veem na mais completa dependência de uns em face dos outros. Na medida em que, no interior do trabalho, a propriedade privada se defronta com o trabalho, ela se desenvolve partindo da necessidade da acumulação e, inicialmente, ainda apresenta bastante a forma da comunidade; mas, em seu desenvolvimento ulterior, aproxima-se cada vez mais da moderna forma da propriedade privada. Através da divisão do trabalho, já está dada desde o início a divisão das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais, e, com isso, a fragmentação do capital acumulado entre diferentes proprietários; e, com isso, a fragmentação entre capital e trabalho, bem como as diferentes formas da propriedade. Quanto mais a divisão do trabalho se desenvolve e a acumulação aumenta, mais se torna aguda essa fragmentação. O próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa fragmentação. Dois fatos, então, revelam-se aqui. Primeiro, as forças produtivas aparecem como inteiramente independentes e separadas dos indivíduos, como um mundo próprio ao lado destes, o que tem seu fundamento no fato de que os indivíduos, que são as forças daquele mundo, existem fragmentados e em oposição mútua, ao passo que, por outro lado, essas forças só são forças reais no intercâmbio e na relação desses indivíduos. De um lado, portanto, temos uma totalidade de forças produtivas que adquiriram como que uma forma objetiva e que, para os próprios indivíduos, não são mais suas próprias forças, mas as da propriedade privada e, por isso, são apenas as forças dos indivíduos enquanto proprietários privados. Em nenhum período precedente as forças produtivas tinham adquirido esta forma indiferente para o intercâmbio entre os indivíduos enquanto indivíduos, porque seu próprio intercâmbio era ainda limitado. De outro lado, enfrenta-se com estas forças produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais estas forças se destacaram e que, portanto, despojados de todo conteúdo real de vida, tornaram-se indivíduos abstratos; mas que, por isso mesmo, só então são colocados em condições de relacionar-se uns com os outros enquanto indivíduos. A única relação que os indivíduos ainda mantém com as forças produtivas e com sua própria existência - o trabalho - perdeu para eles toda aparência de autoatividade e só conserva sua vida atrofiando-a. Enquanto que, em períodos anteriores, a autoatividade e a produção da vida material estavam separadas pelo fato de recaírem sobre pessoas distintas, e enquanto que a produção da vida material, pela limitação dos próprios indivíduos, valia ainda como uma modalidade subordinada de autoatividade, agora estes dois aspectos se desmembram de tal forma que a vida material aparece como a finalidade, e o criador desta vida material, o trabalho (agora a única forma possível mas, como veremos, negativa, da autoatividade), aparece como meio. As coisas, portanto, foram tão longe que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não só para alcançar a autoatividade, mas tão somente para assegurar sua existência. Esta apropriação está condicionada, em primeiro lugar, pelo objeto a ser apropriado, isto é, pelas forças produtivas que se desenvolveram até formar uma totalidade e que existem apenas no interior de um intercâmbio universal. Sob este ângulo, portanto, tal apropriação deve necessariamente apresentar um caráter universal correspondente às forças produtivas e ao intercâmbio. A apropriação destas forças nada mais é do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, exatamente por isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos. Esta apropriação é, além disso, condicionada pelos indivíduos apropriadores. Apenas os proletários da época atual, inteiramente excluídos de toda autoatividade, estão em condições de impor sua autoatividade completa e não mais limitada, que consiste na apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvimento daí decorrente de uma totalidade de capacidades. Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade estava limitada por um instrumento de produção e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se deste limitado instrumento de produção e não alcançavam assim mais do que uma nova limitação. Seu instrumento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subsumidos à divisão do trabalho e a seu próprio instrumento de produção. Em todas as apropriações anteriores, uma massa de indivíduos permanecia subsumida a um único instrumento de produção; na apropriação por parte dos proletários, uma massa de instrumentos de produção deve ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade a todos. O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos senão quando for subsumido a todos. A apropriação é, além disso, condicionada pelo modo como deve ser realizada. Só pode ser realizada através de uma união que, dado o caráter do próprio proletariado, só pode ser uma união universal, e através de uma revolução que, de um lado, derrube o poder do modo de produção e de intercâmbio anterior e da estrutura social, e que desenvolva, de outro lado, o caráter universal e a energia do proletariado necessária para a realização da apropriação; e na qual, além disso, o proletariado despoja-se de tudo o que nele ainda resta de sua anterior posição na sociedade. Apenas nesta fase a autoatividade coincide com a vida material, o que corresponde à transformação dos indivíduos em indivíduos totais e ao despojamento de todo seu caráter natural. A transformação do trabalho em autoatividade corresponde à transformação do limitado intercâmbio anterior em intercâmbio entre indivíduos enquanto tais. Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos unidos, termina a propriedade privada. Enquanto na história anterior cada condição particular aparecia sempre como acidental, agora torna-se acidental o isolamento dos próprios indivíduos, a aquisição privada particular de cada um. Os indivíduos não mais subsumidos à divisão do trabalho foram representados pelos filósofos como um ideal sob o nome "o homem", e todo este processo que acabamos de expor foi concebido como sendo o processo de desenvolvimento "do homem", de tal modo que, em cada fase histórica, "o homem" foi introduzido sorrateiramente por sob os indivíduos anteriores e apresentado como a força motriz da história. Todo o processo foi então concebido como processo de autoalienação "do homem", e isto se deu essencialmente porque o indivíduo médio da fase posterior sempre foi introduzido sorrateiramente na anterior e a consciência da fase posterior nos indivíduos da fase anterior. Graças a esta inversão, que desde o início faz abstração das condições reais, foi possível transformar toda a história num processo de desenvolvimento da consciência. Finalmente, da concepção de história que acabamos de expor obtemos os seguintes resultados: 1º) No desenvolvimento das forças produtivas chega-se a uma fase onde surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no quadro das relações existentes, apenas causam estragos e não são mais forças produtivas, mas forças destrutivas (maquinaria e dinheiro); e, ligada a isto, surge uma classe que tem de suportar todos os encargos da sociedade sem usufruir de suas vantagens; que, expulsa da sociedade, é forçada a mais decidida oposição a todas as outras classes - uma classe que engloba a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, que pode se formar, naturalmente, também entre as outras classes, graças à percepção da situação dessa classe; 2º) As condições sob as quais determinadas forças produtivas podem ser utilizadas são as condições de dominação de determinada classe da sociedade, cujo poder social, decorrente de sua riqueza, encontra sua expressão prático-idealista na forma do Estado imperante em cada caso; eis por que toda luta revolucionária é dirigida contra uma classe, que até agora dominou; 3º) Em todas as revoluções anteriores o modo de atividade permanecia intacto, e tratava-se apenas de conseguir outra forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto que a revolução comunista é dirigida contra o modo anterior de atividade, suprime o trabalho e supera a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes, porque esta revolução é feita pela classe que não é mais considerada como uma classe na sociedade, não é mais reconhecida como tal, e que já é em si mesma a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as nacionalidades etc., no interior da sociedade atual; 4º) A transformação em larga escala dos homens torna-se necessária para a criação em massa desta consciência comunista, como também para o sucesso da própria causa. Ora, tal transformação só se pode operar por um movimento prático, por uma revolução; esta revolução é necessária, entretanto, não só por ser o único meio de derrubar a classe dominante, mas também porque apenas uma revolução permitirá à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do velho sistema e tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novas. Comunismo. A Produção da Própria Forma de Intercâmbio O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores pelo fato de que subverte os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio anteriores, e de que aborda pela primeira vez conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que nos precederam, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos unidos. Sua instituição é, portanto, essencialmente econômica, a produção material das condições dessa união; faz das condições existentes condições da união. O existente, que o comunismo está criando, é precisamente a base real para tornar impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos. Assim, os comunistas tratam, praticamente, as condições criadas pela produção e pelo intercâmbio anteriores como condições inorgânicas, mas sem imaginar que gerações precedentes tinham como plano ou como destino fornecer-lhes materiais, e sem crer que essas condições fossem inorgânicas para os indivíduos que as criavam. A diferença entre o indivíduo como pessoa e o indivíduo naquilo que tem de acidental não é uma diferença conceitual, mas um fato histórico. Tal distinção tem um sentido diverso em épocas diferentes - por exemplo, o estamento como algo acidental para o indivíduo do século XVIII e também, mais ou menos, a família. Não é uma distinção que tenhamos que estabelecer para cada época, mas que cada época estabelece por si mesma a partir dos diferentes elementos com que se encontra, não segundo qualquer teoria, mas obrigada por colisões materiais da vida. O que à época posterior aparece como acidental em oposição à anterior - e isso se aplica também aos elementos que da anterior a ela passaram - é uma forma de intercâmbio que correspondia a um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas. A relação entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio é a relação da forma de intercâmbio com a atuação ou atividade dos indivíduos. (A forma fundamental dessa atividade é, naturalmente, material, e dela dependem todas as outras formas: a espiritual, a política, a religiosa etc. A variada configuração da vida material depende em cada caso, naturalmente, das necessidades já desenvolvidas, e tanto a produção como a satisfação dessas necessidades é um processo histórico que não encontramos no caso de uma ovelha ou de um cão (recalcitrante argumento fundamental de Stirner contra o homem), se tem que ovelhas e cães, sob a forma atual, são também, apesar deles, produtos de um processo histórico.) As condições sob as quais os indivíduos mantêm intercâmbio entre si, enquanto a contradição não aparece, são condições inerentes à sua individualidade e não algo externo a eles; condições nas quais estes determinados indivíduos, existentes sob determinadas relações, podem produzir sua vida material e tudo o que com ela se relaciona; são, portanto, as condições de sua autoatividade, produzidas por esta autoatividade. A condição determinada sob a qual produzem corresponde, pois, enquanto a contradição não aparece, à sua existência unilateral, unilateralidade esta que se mostra apenas com o surgimento da contradição e que existe, portanto, para os que vêm depois. Assim, esta condição aparece como um entrave acidental, e a consciência de que é um entrave é também infiltrada na época anterior. Essas diferentes condições, que surgem primeiro como condições da autoatividade e, mais tarde, como entraves a ela, formam ao longo de todo o desenvolvimento histórico uma série concatenada de formas de intercambio, cuja concatenação consiste em que a forma anterior de intercâmbio, transformada num entrave, é substituída por outra nova que corresponde às forças produtivas mais desenvolvidas e, por isso mesmo, ao modo avançado da autoatividade dos indivíduos - uma forma que, por sua vez, torna-se um entrave e é então substituída por outra forma. Desde que, em cada fase, essas condições correspondem ao desenvolvimento simultâneo das forças produtivas, sua história é ao mesmo tempo a história das forças produtivas em desenvolvimento e herdadas por cada nova geração, e também, portanto, é a história do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos. Desde que esse desenvolvimento ocorre naturalmente, isto é, não está subordinado a um plano geral de indivíduos livremente associados, ele parte de diferentes localidades, tribos, nações, ramificações do trabalho etc., cada uma das quais começa por desenvolver-se independentemente das outras e só paulatinamente entra em relações com as outras. Além disso, esse processo ocorre muito lentamente; as diferentes fases e os diversos interesses jamais são completamente ultrapassados, mas apenas subordinados ao interesse vitorioso, e vão-se arrastando durante séculos ao lado deste. Disso resulta que, inclusive no interior de uma nação, os indivíduos têm desenvolvimentos diferentes, independentemente de suas condições pecuniárias, e que um interesse anterior, cuja forma peculiar de intercâmbio já foi desalojada por outra correspondente a um interesse posterior, pode manter-se durante muito tempo de posse de um poder tradicional na coletividade aparente e autônoma em face dos indivíduos (Estado, direito); um poder que, em última instância, só pode ser quebrado por uma revolução. Isto explica por que, em relação a certos pontos específicos que permitem um resumo mais geral, a consciência pode às vezes parecer mais avançada do que as relações empíricas contemporâneas, de tal forma que nas lutas de um período posterior possa-se apoiar nos teóricos anteriores como autoridades. Em contrapartida, em países como a América do Norte, que começam em um período histórico já avançado, esse processo de desenvolvimento ocorre com muita rapidez. Estes países não têm nenhum outro pressuposto natural senão os indivíduos, que ali se instalaram como colonos, movidos pela s formas de intercâmbio dos velhos países que já correspondem às suas necessidades. Tais países começam, pois, com os indivíduos mais avançados dos velhos países e, portanto, com a correspondente forma de intercâmbio mais desenvolvida, antes mesmo que essa forma de intercâmbio tenha podido impor-se nos países velhos. Tal é o caso de todas as colônias, quando não se trata de simples bases militares ou entrepostos comerciais. Cartago, as colônias gregas e a Islândia dos séculos XI e XII servem de exemplo. Situação análoga apresenta-se em caso de conquista, quando se transplanta diretamente ao país conquistado a forma de intercâmbio desenvolvida em outro solo; enquanto em seu país de origem esta forma estava ainda impregnada de relações procedentes de épocas anteriores, aqui, ao contrário, ela pode e deve implantar-se totalmente e sem obstáculos, ao menos para assegurar de modo estável o poder dos conquistadores. (A Inglaterra e Nápoles após a conquista normanda, quando receberam a forma mais acabada de organização feudal.) Nada mais usual do que a ideia de que na história até agora tudo tem consistido na ação de tomar. Os bárbaros tomam o Império Romano e com esse fato explica-se a transição de mundo antigo para o mundo feudal. Mas, nessa tomada pelos bárbaros, trata-se de saber se a nação conquistada tinha chegado a desenvolver forças produtivas industriais como ocorre entre os povos modernos, ou se suas forças produtivas repousavam no fundamental unicamente sobre sua união e sobre a comunidade. A ação de tomar está, além disso, condicionada pelo objeto que é tomado. A fortuna de um banqueiro, consistindo de papéis, não pode de modo algum ser tomada sem que aquele que a toma se submeta às condições de produção e de intercâmbio do país conquistado. O mesmo ocorre com todo o capital industrial de um país industrial moderno. Finalmente, a ação de tomar termina sempre rapidamente, e quando já não há mais nada a tomar é necessário que se comece a produzir. Dessa necessidade de produzir, que logo se manifesta, decorre que a forma de comunidade adotada pelos conquistadores instalados no país deve necessariamente corresponder à fase de desenvolvimento das forças produtivas ali encontradas; ou, quando não é esse o caso desde o início, deve a forma de comunidade transformar-se em função das forças produtivas. Isso explica, também, o fato que se pensou ver em todas as partes na época posterior às grandes invasões, a saber: que os vassalos transformaram-se em senhores e os conquistadores adotaram, sem demora, a língua, a cultura e os costumes dos conquistados. O feudalismo não foi levado pronto e acabado da Alemanha, mas teve sua origem, até no que diz respeito aos conquistadores, na organização militar que os exércitos foram adquirindo durante a própria conquista, e apenas se desenvolveu após a conquista - sob a ação das forças produtivas existentes nos países conquistados - até se converter no feudalismo propriamente dito. As fracassadas tentativas de impor outras formas nascidas de reminiscências da antiga Roma (Carlos Magno, por exemplo), mostram até que ponto a forma feudal estava condicionada pelas forças produtivas. Segundo nossa concepção, portanto, todas as colisões na história têm origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio. Aliás, não é necessário que esta contradição, para provocar colisões num pais, alcance seu limite extremo neste mesmo país. A concorrência com países industrialmente mais desenvolvidos, concorrência provocada pela expansão do intercâmbio Internacional, é suficiente para engendrar uma contradição semelhante também em países com indústria menos desenvolvida (por exemplo, o proletariado latente na Alemanha evidenciou-se devido à concorrência da indústria inglesa). Esta contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio, que, como vimos, ocorreu várias vezes na história anterior sem, contudo, ameaçar-lhe o fundamento, teve que irromper numa revolução, na qual a contradição tomou ao mesmo tempo diferentes formas acessórias, tais como totalidade de colisões, colisões entre diferentes classes, contradições da consciência, luta de ideias, luta política etc. De um limitado ponto de vista, pode-se isolar uma dessas formas acessórias e considerá-la como à base dessas revoluções, o que é tanto mais fácil porquanto os indivíduos que promoveram as revoluções tinham ilusões a respeito de sua própria atividade, segundo seu grau de cultura e o estágio de desenvolvimento histórico. A transformação, pela divisão do trabalho, de forças (relações) pessoais em forças objetivas, não pode ser superada arrancando-se da cabeça essa representação geral, mas apenas se os indivíduos subsumirem novamente essas forças objetivas a si mesmos e superarem a divisão do trabalho. Isto não é possível sem a coletividade. Apenas na coletividade de uns e outros é que cada indivíduo encontra os meios de desenvolver suas capacidades em todos os sentidos; somente na coletividade, portanto, torna-se possível a liberdade pessoal. Nos sucedâneos da coletividade existentes até aqui, no Estado etc., a liberdade pessoal tem existido apenas para os indivíduos desenvolvidos dentro das relações da classe dominante e apenas na medida em que eram indivíduos dessa classe. A coletividade aparente, em que se associaram até agora os indivíduos, sempre adquiriu uma existência autônoma em relação a eles e, ao mesmo tempo, por ser uma associação de uma classe contra outra classe, era, para a classe dominada, não só uma coletividade inteiramente ilusória, como também um novo entrave. Na coletividade real, os indivíduos adquirem sua liberdade na e através de sua associação. De toda a exposição anterior resulta que a relação coletiva em que entraram os indivíduos de uma classe, relação condicionada por seus interesses comuns frente a um terceiro, foi sempre uma coletividade à que pertenciam estes indivíduos apenas como indivíduos médios, apenas enquanto viviam dentro das condições de existência de sua classe - ou seja, uma relação na qual participavam não como indivíduos, mas como membros de uma classe. Por outro lado, com a coletividade dos proletários revolucionários, que tomam sob seu controle suas condições de existência e as de todos os membros da sociedade, acontece exatamente o contrário: nela os indivíduos participam como indivíduos. É exatamente esta união de indivíduos (pressupondo naturalmente as atuais forças produtivas desenvolvidas) que coloca sob seu controle as condições de livre desenvolvimento e de movimento dos indivíduos - condições que até agora se encontravam à mercê do acaso e tinham assumido uma existência autônoma frente aos diferentes indivíduos precisamente por sua separação como indivíduos, por sua união necessária determinada pela divisão do trabalho e por sua separação transformada num vínculo alheio a eles. A união anterior (de forma alguma arbitrária, como é apresentada, por exemplo, no Contrato Social, mas necessária) era simplesmente uma união com base nestas condições no interior das quais os indivíduos desfrutam o acaso (comparar, por exemplo, a formação do Estado da América do Norte e das repúblicas da América do Sul). Este direito de poder desfrutar imperturbavelmente, dentro de certas condições, o acaso, tem sido chamado até agora de liberdade pessoal. Estas condições de existência são apenas, naturalmente, as forças de produção e as formas de intercâmbio existentes em cada época. Se considerarmos filosoficamente este desenvolvimento dos indivíduos nas condições comuns de existência dos estamentos e das classes, que se sucedem historicamente, e nas representações gerais que lhes foram impostas, é certamente muito fácil imaginar que nestes indivíduos desenvolveu-se o gênero ou o homem, ou que eles desenvolveram o homem - uma imaginação através da qual são dados alguns fortes bofetões na história. Podemos conceber estes diferentes estamentos e classes como especificações da expressão geral, como variedades do gênero, como fases de desenvolvimento do homem. Esta subsunção dos indivíduos a determinadas classes não pode ser superada até que se forme uma classe que já não tenha qualquer interesse particular de classe a impor à classe dominante. Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, dentro de suas condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo "puro", no sentido dos ideólogos. Porém, no curso do desenvolvimento histórico e precisamente devido ao inevitável fato de que, no interior da divisão social do trabalho, as relações sociais adquirem uma existência autônoma, surge uma divisão na vida de cada indivíduo, na medida em que uma vida é pessoal e na medida em que está subsumida a um ramo qualquer do trabalho e às condições a ele correspondentes. (Não devemos entender isto no sentido de que, por exemplo, o que vive de rendas, o capitalista etc., deixem de ser pessoas, mas sim no sentido de que sua personalidade está condicionada e determinada por relações de classe bem definidas; a divisão surge apenas na oposição destes indivíduos a uma outra classe e, com relação a eles, apenas quando entram em bancarrota.) No estamento (e mais ainda na tribo) isto ainda é dissimulado: por exemplo, um nobre continua sendo sempre um nobre e um vilão sempre um vilão, independentemente das suas demais relações, por ser aquela uma qualidade inseparável de sua individualidade. A divisão entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de classe, a contingência das condições de vida para o indivíduo, aparecem apenas com a emergência da classe, que é, ela mesma, um produto da burguesia. Esta contingência apenas é engendrada e desenvolvida pela concorrência e pela luta dos indivíduos entre si. Assim, na imaginação, os indivíduos parecem ser mais livres sob a dominação da burguesia do que antes, porque suas condições de vida parecem acidentais; mas, na realidade, não são livres, pois estão mais submetidos ao poder das coisas. A diferença do estamento aparece particularmente na oposição da burguesia ao proletariado. Quando o estamento dos burgueses urbanos, as corporações etc., emergiu frente à nobreza rural, sua condição de existência - a propriedade mobiliária e o trabalho artesanal, que já existiam de forma latente antes de sua separação dos laços feudais - apareceu como algo positivo, que se fazia valer contra a propriedade feudal da terra; por isso, a seu modo, assumiu primeiramente uma forma feudal. É certo que os servos fugitivos consideravam sua servidão anterior como algo acidental para sua personalidade. Mas, assim, apenas faziam o que toda classe que se liberta de um entrave faz; além disso, não tinham se libertado como classe, mas isoladamente. Mais ainda: não saíam dos quadros do sistema de estamentos, mas apenas formavam um novo estamento, conservando seu anterior modo de trabalho em sua nova situação e até desenvolvendo-o ao libera-lo de seus entraves anteriores, que não mais correspondiam ao desenvolvimento já alcançado. Para os proletários, ao contrário, a condição de sua existência, o trabalho, e com ela todas as condições de existência que governam a sociedade moderna, tornaram-se algo acidental, algo que eles, como indivíduos isolados, não controlam e sobre o qual nenhuma organização social pode dar-lhes o controle. A contradição entre a personalidade de cada proletário isolado e a condição de vida a ele imposta, o trabalho, torna-se evidente para ele mesmo, pois ele é sacrificado desde a juventude e porque, no interior de sua própria classe, não tem chance de alcançar as condições que o coloquem na outra classe.