Immanuel Kant – Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático ÍNDICE Prefácio PRIMEIRA PARTE DIDÁTICA ANTROPOLÓGICA Da maneira de conhecer tanto o interior quanto o exterior do ser humano LIVRO PRIMEIRO - Da faculdade de conhecer Da consciência de si mesmo Do egoísmo Nota. Sobre a formalidade da linguagem egoísta Da consciência voluntária das próprias representações Da observação de si mesmo Das representações que temos sem delas ser conscientes Da distinção e indistinção na consciência das próprias representações Da sensibilidade em oposição ao entendimento Apologia da sensibilidade Defesa da sensibilidade contra a primeira acusação Defesa da sensibilidade contra a segunda acusação Defesa da sensibilidade contra a terceira acusação Do poder-fazer em relação à faculdade de conhecer em geral Do jogo artificial com a aparência sensível Da aparência moral permitida Dos cinco sentidos Do tato Da audição Da visão Do paladar e do olfato Nota geral sobre os sentidos externos Questões Do sentido interno Das causas do aumento ou diminuição das impressões sensíveis quanto ao grau O contraste A novidade A troca O desenvolvimento até a perfeição Da inibição, enfraquecimento e perda total da faculdade de sentir Da imaginação Da faculdade imaginativa sensível segundo suas distintas espécies Da faculdade imaginativa sensível plástica Da faculdade imaginativa sensível associativa A faculdade imaginativa sensível da afinidade Da faculdade de tomar presente o passado e o futuro por meio da imaginação Da memória Da faculdade de previsão (Praevisio) Do dom divinatório (Facultas divinatrix) Da ficção involuntária no estado saudável, isto é, do sonho Da faculdade de designar (Facultas signatrix) Apêndice Da faculdade de conhecer enquanto fundada no entendimento Divisão Comparação antropológica das três faculdades de conhecer superiores entre si Das fraquezas e enfermidades da alma em relação a sua faculdade de conhecer Divisão geral Das fraquezas da mente na faculdade de conhecer Das enfermidades da mente Notas esparsas Dos talentos na faculdade de conhecer Da diferença específica entre o engenho comparativo e o engenho argucioso Do engenho produtivo Da sagacidade ou do dom da investigação Da originalidade da faculdade de conhecer ou do gênio LIVRO SEGUNDO - O sentimento de prazer e desprazer Divisão Do prazer sensível Do sentimento do agradável ou do prazer sensível na sensação de um objeto Elucidação mediante exemplos Do tédio e do passatempo Do sentimento do belo, isto é, do prazer em parte sensível e em parte intelectual na intuição reflexiva, ou do gosto. O gosto contém uma tendência a incentivar externamente a moralidade Observações antropológicas sobre o gosto Do gosto da moda Do gosto artístico Do luxo LIVRO TERCEIRO - Da faculdade de desejar Das afecções, confrontadas com a paixão. Das afecções em particular Do governo da alma em relação às afecções Das diversas afecções mesmas Da timidez e da bravura Das afecções que enfraquecem a si mesmas no que concerne a seus fins (Impotentes animi motus) Das afecções pelas quais mecanicamente a natureza faz bem a saúde Nota geral Das paixões Divisão das paixões Da inclinação à liberdade como paixão Do desejo de vingança como paixão Da inclinação ao poder de ter influência sobre outros seres humanos em geral A ambição Desejo de dominação A cobiça Da inclinação à ilusão como paixão Do sumo bem físico Do sumo bem físico-moral SEGUNDA PARTE A CARACTERÍSTICA ANTROPOLÓGICA Da maneira de conhecer o interior do homem pelo exterior Divisão O caráter da pessoa Do natural Do temperamento Temperamento do sentimento O temperamento sanguíneo do homem de sangue leve O temperamento melancólico do homem de sangue pesado Temperamentos da atividade O temperamento colérico do homem de sangue quente O temperamento fleumático do homem de sangue frio Do caráter como índole moral Das qualidades que se seguem meramente de que o ser humano tenha um caráter ou seja sem caráter Da fisiognomonia Da direção da natureza para a fisiognomonia Divisão da fisiognomonia Da fisionomia Do característico nas feições do rosto Do característico das expressões faciais Notas esparsas O caráter do sexo Notas esparsas Consequências pragmáticas O caráter do povo O caráter da raça O caráter da espécie Linhas fundamentais da descrição do caráter da espécie humana PREFÁCIO Todos os progressos na civilização, pelos quais o homem se educa, têm como fim que os conhecimentos e habilidades adquiridos sirvam para o uso do mundo, mas no mundo o objeto mais importante ao qual o homem pode aplicá-los é o ser humano, porque ele é seu próprio fim último. - Conhecer, pois, o ser humano segundo sua espécie, como ser terreno dotado de razão, merece particularmente ser chamado de conhecimento do mundo, ainda que só constitua uma parte das criaturas terrenas. Uma doutrina do conhecimento do ser humano sistematicamente composta (antropologia) pode ser tal do ponto de vista fisiológico ou pragmático. - O conhecimento fisiológico do ser humano trata de investigar o que a natureza faz do homem; o pragmático, o que ele faz de si mesmo, ou pode e deve fazer como ser que age livremente. - Quem medita sobre as causas naturais em que, por exemplo, a faculdade de recordar pode se basear, pode argumentar com sutilezas (seguindo Descartes) sobre os traços deixados no cérebro pelas impressões das sensações sofridas, mas tem de confessar que é mero espectador nesse jogo de suas representações, e que tem de deixar a natureza agir, porque não conhece as fibras e nervos cefálicos, nem sabe manejá-los para seu propósito, ou seja, tem de confessar que nada se ganha com todo raciocínio teórico sobre esse assunto. - Mas se para ampliar a memória ou tomá-la ágil, ele utiliza as percepções sobre o que considerou prejudicial ou favorável a ela, e para tanto precisa do conhecimento do ser humano, isso constitui uma parte da antropologia de um ponto de vista pragmático, e precisamente desta nos ocupamos aqui. Tal antropologia, considerada como conhecimento do mundo que deve seguir à escola, não é ainda propriamente denominada pragmática se contém um amplo conhecimento das coisas no mundo, por exemplo, os animais, as plantas e os minerais dos diversos países e climas, mas se contém um conhecimento do ser humano como cidadão do mundo. - Por conseguinte, mesmo o conhecimento das raças humanas, como produtos que fazem parte do jogo da natureza, ainda não entra no conhecimento pragmático do mundo, mas apenas no conhecimento teórico dele. Também as expressões "conhecer o mundo" e "possuir o mundo" diferem bastante uma da outra em sua significação, pois enquanto um indivíduo só entende o jogo a que assistiu, o outro tomou parte dele. - Mas para julgar aquilo que se chama de alta sociedade, o estamento dos nobres, o antropólogo encontra-se numa posição muito desfavorável, porque aqueles estão muito próximos uns dos outros, mas bem distantes dos demais. Viajar, ainda que seja apenas pela leitura de relatos de viagens, é um dos meios de ampliar o âmbito da antropologia. Mas para ampliá-la numa dimensão maior é preciso ter primeiro adquirido conhecimento do ser humano em sua própria terra, por meio das relações com os conterrâneos da cidade ou do campo, (Uma grande cidade, centro de um reino no qual se encontram os órgãos estatais do governo, que tem uma universidade (para o cultivo das ciências) e uma situação propícia ao comércio marítimo, que por meio dos rios favorece tanto um trânsito do interior do país quanto para países vizinhos e distantes de diversas línguas e costumes, - tal cidade, como é Königsberg, às margens do rio Pregel, já pode ser considerada um lugar adequado para a ampliação, tanto do conhecimento do ser humano, quanto do conhecimento do mundo, onde este pode ser adquirido mesmo sem se viajar. Nota do Autor.) se se quer saber o que se deve buscar fora. Sem tal plano (que já supõe o conhecimento do ser humano), a antropologia do cidadão do mundo fica sempre muito limitada. Aqui os conhecimentos gerais sempre precedem os conhecimentos locais, caso tal antropologia deva ser ordenada e dirigida pela filosofia, sem a qual todos os conhecimentos adquiridos não podem proporcionar senão um tatear fragmentário, e não ciência. Mas a todas as tentativas de obter tal ciência com profundidade estão opostas consideráveis dificuldades intrínsecas à própria natureza humana. 1. O ser humano que percebe que está sendo observado e que procuram examiná-lo, parecerá embaraçado (constrangido) e não pode se mostrar como é, ou finge e não quer ser conhecido como é. 2. Mesmo quando só quer investigar a si mesmo, ele se encontra numa situação crítica, principalmente quando é tomado por uma afecção, estado que habitualmente não admite fingimento, a saber, quando os móbiles da ação estão atuando, ele não se observa, e quando se observa, os móbiles estão em repouso. 3. Quando permanecem constantes, o lugar e as circunstâncias temporais geram hábitos que são, como se diz, outra natureza e dificultam o juízo do homem acerca de si mesmo e de quem considera que é, porém mais ainda acerca de que conceito deve ter a respeito do outro com o qual mantém relação, pois quando muda a situação em que o ser humano é colocado por seu destino, ou em que se coloca a si mesmo quando se aventura, essa mudança dificulta muito a antropologia a se elevar à condição de uma ciência propriamente dita. Por fim, não são precisamente fontes, mas meios auxiliares da antropologia: a história mundial, as biografias e até peças de teatro e romances. Pois ainda que a estes últimos não se atribua propriamente experiência e verdade, mas só ficção, e ainda que seja permitido exagerar os caracteres e as situações em que se colocam os homens, tal como aparecem em imagens de sonho, ainda, portanto, que aqueles nada pareçam ensinar para o conhecimento do ser humano, ainda assim os caracteres esboçados por um Richardson ou por um Moliére devem ter sido tirados, em seus traços fundamentais, da observação do que os homens realmente fazem ou deixam de fazer, porque são de fato exagerados em grau, mas, quanto à qualidade, precisam estar de acordo com a natureza humana. Uma antropologia sistematicamente delineada e, todavia, popular (pela referência a exemplos que todo leitor possa por si mesmo encontrar), composta desde um ponto de vista pragmático, traz ao público leitor a vantagem de que, esgotando todas as rubricas sob as quais se pode colocar esta ou aquela qualidade humana, observada na prática, lhe são dadas numerosas ocasiões e lhe são dirigidas numerosas exortações para tratar, como um tema próprio, cada qualidade particular, inserindo a num item específico: com isso, na antropologia os trabalhos se dividem por si mesmos entre os amantes desse estudo e serão posteriormente reunidos num todo pela unidade do plano, promovendo-se e acelerando-se então o crescimento de uma ciência de utilidade geral. (Em minhas atividades de filosofia pura, empreendidas inicialmente de maneira livre e mais tarde a mim atribuídas como ensino, tenho ministrado ao longo de uns trinta anos dois cursos referentes ao conhecimento do mundo, a saber: antropologia (no semestre de inverno) e geografia física (no de verão), aos quais, como lições populares, pessoas de outros estamentos também acharam oportuno assistir. Do primeiro curso procede o presente manual; mas publicar, do segundo, um outro igual, a partir do manuscrito usado por mim como texto, e ilegível para qualquer outro além de mim, dificilmente me seria possível agora, dada a minha idade. Nota do Autor) Antropologia PRIMEIRA PARTE DIDÁTICA ANTROPOLÓGICA Da maneira de conhecer tanto o interior quanto o exterior do ser humano LIVRO PRIMEIRO DA FACULDADE DE CONHECER Da consciência de si mesmo Que o ser humano possa ter o eu em sua representação, eleva-o infinitamente acima de todos os demais seres que vivem na terra. É por isso que ele é uma pessoa, e uma e mesma pessoa em virtude da unidade da consciência em todas as modificações que lhe possam suceder, ou seja, ele é, por sua posição e dignidade, um ser totalmente distinto das coisas, tais como os animais irracionais, aos quais se pode mandar à vontade, porque sempre tem o eu no pensamento, mesmo quando ainda não possa expressá-lo, assim como todas as línguas têm de pensá-lo quando falam na primeira pessoa, ainda que não exprimam esse eu por meio de uma palavra especial. Pois essa faculdade (a saber, a de pensar) é o entendimento. Mas é notável que a criança que já sabe falar suficientemente bem comece no entanto bastante tarde a falar por meio do eu (talvez bem depois de um ano), tendo até então falado de si na terceira pessoa (Carlos quer comer, andar etc.), e uma luz parece se acender para ela, quando começa a falar por meio do eu: a partir desse dia nunca mais volta a falar daquela outra maneira. - Antes simplesmente sentia a si mesma, agora pensa em si mesma. - A explicação desse fenômeno poderá custar bastante ao antropólogo. A observação de que uma criança não dá demonstração nem de choro, nem de riso antes do quarto mês após o nascimento, parece se basear igualmente no desenvolvimento de certas representações de afronta e injustiça, que remetem à razão. - Que nesse espaço de tempo comece a seguir com os olhos objetos brilhantes a ela apresentados é o começo ainda rudimentar do avanço das percepções (apreensão da representação sensorial), que serão ampliadas em conhecimento dos objetos dos sentidos, isto é, da experiência. Além disso, quando a criança tenta falar, o modo como arranha as palavras é deveras amável para as mães e amas, tomando-as propensas a acariciá-la e beijá-la, e também a mimá-la como a um pequeno tirano, realizando cada desejo e vontade dela: a amabilidade dessa criatura, no espaço de tempo em que se desenvolve até chegar à plena humanidade, deve ser atribuída, por um lado, à sua inocência e à franqueza de todas as suas expressões ainda incorretas, onde ainda não há dissimulação nem malícia alguma, mas, por outro lado, à propensão natural das amas em fazer bem a uma criatura cativante, que se entrega totalmente ao arbítrio de outro, pois se lhe concede um período para brincar, o mais feliz de todos, no qual o educador goza outra vez desse conforto ao fazer, por assim dizer, de si mesmo uma criança. A lembrança dos anos da infância não chega, porém, nem de longe a essa época, porque não foi a época das experiências, mas simplesmente a época de percepções dispersas ou ainda não reunidas sob o conceito do objeto. Do egoísmo A partir do dia em que começa a falar por meio do eu, o ser humano, onde pode, faz esse seu querido eu aparecer, e o egoísmo progride irresistivelmente, se não de maneira manifesta (pois lhe repugna o egoísmo de outros), ao menos de maneira encoberta, a fim de se dar tanto mais seguramente, pela aparente abnegação e pretensa modéstia, um valor superior no juízo de outros. O egoísmo pode conter três espécies de presunção: a do entendimento, a do gosto e a do interesse prático, isto é, pode ser lógico, estético ou prático. O egoísta lógico tem por desnecessário examinar seu juízo também pelo entendimento de outros, como se não necessitasse de forma alguma dessa pedra de toque (criterium veritatis externum). É porém, é tão seguro que não podemos prescindir desse meio de nos assegurar da verdade de nosso juízo, que talvez seja esta a razão mais importante por que a classe erudita clame com tanta insistência pela liberdade de expressão, porque, se esta é recusada, nos é simultaneamente subtraído um grande meio de examinar a retidão de nossos próprios juízos, e seremos abandonados ao erro. Que não se diga que ao menos a matemática é privilegiada por decidir por conta própria, pois ela mesma não teria se livrado do receio de cair em erro em algum ponto, se não tivesse havido antes a percepção da total concordância entre os juízos do matemático e os juízos de todos os outros que se dedicaram a essa disciplina com talento e aplicação. - Também há muitos casos em que nem mesmo confiamos unicamente no juízo de nossos próprios sentidos, por exemplo, se o som dos sinos badalando ocorre meramente em nossos ouvidos ou estamos ouvindo realmente o repicar deles, mas achamos necessário perguntar ainda a outros se também assim não lhes parece. E ainda que ao filosofar não possamos exatamente recorrer a outros juízos para a confirmação do nosso, tal como os juristas recorrem aos juízos dos especialistas em direito, ainda assim todo escritor que não encontrasse adeptos cairia em suspeita de erro por sua opinião declarada publicamente, a qual, todavia, é importante. Precisamente por isso é um atrevimento fazer em público uma afirmação contra a opinião geral, mesmo dos entendidos. Tal manifestação do egoísmo se chama paradoxo. Não é uma ousadia que arrisca afirmar algo correndo o perigo de que não seja verdadeiro, mas de que seja aceito somente por poucos. - A predileção pelo paradoxo é a obstinação lógica de não querer ser imitador dos outros, mas de aparecer como um homem raro, ainda que com frequência alguém assim apenas se faça passar por extravagante. No entanto, porque cada um precisa ter e afirmar sua própria opinião (Si omnes patres sic, at ego non sic. Abelardo), a acusação de paradoxo, se não está fundada na vaidade de querer meramente se diferenciar, não tem um significado negativo. - Ao paradoxo se opõe aquilo que é corriqueiro, que tem a opinião geral a seu lado. Mas neste há tão pouca segurança, se não menos ainda que naquele, porque o que é corriqueiro é entorpecedor, ao passo que o paradoxo desperta o espírito para a atenção e a indagação, que frequentemente levam a descobertas. O egoísta estético é aquele ao qual o próprio gosto basta, ainda que outros possam achar ruins, censurar ou até ridicularizar seus versos, quadros, música etc. Ele priva a si mesmo do progresso para o melhor, se se isola com seu juízo, aplaude a si mesmo e só em si mesmo busca a pedra de toque do belo da arte. Finalmente, o egoísta moral é aquele que reduz todos os fins a si mesmo, que não vê utilidade senão naquilo que lhe serve, e também como eudemonista coloca simplesmente na utilidade e na própria felicidade, e não na representação do dever, o fundamento de determinação supremo de sua vontade. Pois como cada ser humano forma conceitos diferentes sobre aquilo que considera fazer parte da felicidade, é precisamente o egoísmo que leva a não ter pedra de toque alguma do genuíno conceito do dever, que, como tal, tem de ser inteiramente um princípio de validade universal. - Todos os eudemonistas são, por isso, egoístas práticos. Ao egoísmo pode ser oposto apenas o pluralismo, isto é, o modo de pensar que consiste em não se considerar nem em proceder como se o mundo inteiro estivesse encerrado no próprio eu, mas como um simples cidadão do mundo. - É o que cabe à antropologia. Pois, no que se refere a essa diferença segundo conceitos metafísicos, ela fica totalmente fora do campo da ciência a ser tratada aqui. É que se a questão fosse meramente saber se eu, como ser pensante, tenho razão para admitir, fora da minha existência, a existência de um conjunto de outros seres estando em comunidade comigo (conjunto denominado mundo), esta não seria uma questão antropológica, mas simplesmente metafísica. Nota Sobre a formalidade da linguagem egoísta A linguagem do chefe de Estado para falar ao povo é, em nossos tempos, habitualmente pluralista (Nós etc., pela graça de Deus etc.). A questão é se o sentido aqui não é, ao contrário, egoísta, isto é, se não indica a própria autoridade, e se não deveria significar exatamente o mesmo que o que o rei da Espanha diz com seu Io, el Rei (eu, o rei). Parece, todavia, que essa formalidade da autoridade suprema deveria indicar originalmente uma condescendência (Nós, o rei e seu conselho, ou os estamentos). - Mas como aconteceu que o tratamento recíproco, expresso nas antigas línguas clássicas pelo singular tu, passou a ser indicado pelo plural vós em diversos povos, principalmente germânicos? Para que fim ainda os alemães inventaram duas expressões que indicam uma maior distinção da pessoa com a qual se fala, a saber, o Er e o Sie (como se não fossem forma de tratamento, mas forma de narração sobre um ou alguns indivíduos ausentes)? Depois disso, enfim, para completar todos os absurdos da pretensa humilhação perante aquele a quem se dirige a palavra e da exaltação do outro sobre si, entrou em uso, no lugar da pessoa, o abstrato que qualifica a condição daquele a quem a palavra é dirigi da (Vossa Alteza, Vossa Senhoria, Vossa Excelência etc.). - Tudo presumivelmente devido ao feudalismo, que cuidou para que não faltasse o grau de respeito que cabe ao nobre - começando pela dignidade real e passando por todos os níveis, até chegar ali onde a dignidade humana acaba e resta somente o ser humano, isto é, a condição do servo, único a ser tratado por tu por seu superior, ou a de uma criança, que ainda não pode ter vontade própria. Da consciência voluntária das próprias representações O esforço para chegar a ser consciente das próprias representações é ou atenção (attentio) ou abstração de uma representação de que sou consciente (abstractio). - Esta última não é uma mera omissão e descuido da primeira (pois isso seria distração (distractio)); mas um ato real da faculdade de conhecer para afastar, numa consciência, uma representação, de que sou consciente, da ligação com outras. - Não se diz, por isso, abstrair (separar) algo, mas abstrair de algo, isto é, de uma determinação do objeto da minha representação, pelo que esta obtém a universalidade de um conceito e é assim apreendida no entendimento. Poder abstrair de uma representação, mesmo quando se impõe ao ser humano pelo sentido, é uma faculdade bem mais ampla que a de prestar atenção: porque demonstra uma liberdade da faculdade de pensar e o poder próprio do espírito, de ter em seu poder o estado de suas representações (animus sui compos). - Ora, nesse aspecto a faculdade de abstrair é muito mais difícil, mas também mais importante que a de prestar atenção, se concerne às representações dos sentidos. Muitas pessoas são infelizes porque não podem abstrair. O noivo poderia fazer um bom casamento, se pudesse deixar de lado uma verruga no rosto ou uma falha nos dentes da amada. Mas é um costume especialmente ruim de nossa faculdade de atenção fixá-la, mesmo sem intenção, justo no que há de defeituoso nos outros, voltando os olhos para a visível falta de um botão no casaco, para falhas nos dentes ou para um habitual erro de linguagem, o que desconcerta o outro, mas também estraga o próprio prazer que se poderia ter no convívio com ele. - Quando o principal é bom, não é apenas justo, mas também prudente desviar os olhos daquilo que é ruim nos outros, e até em nosso próprio estado de felicidade; essa faculdade de abstrair é, porém, uma força do espírito que só pode ser adquirida por meio de exercício. Da observação de si mesmo O animadversão (animadvertere) não é ainda uma observação (observare) de si mesmo. Esta última é uma combinação metódica das percepções feitas em nós mesmos, que fornece a matéria para o diário de um observador de si mesmo e leva facilmente ao desvario e à loucura. É de fato necessário prestar atenção (attentio) a si mesmo, quando se tem de lidar com seres humanos, mas isso não precisa ser visível nas relações, porque torna o indivíduo incomodado (embaraçado) ou afetado (inatural). O contrário de ambos é o desembaraço (o air dégagé): uma confiança em si mesmo de que a própria dignidade não será julgada desfavoravelmente pelos outros. Aquele que se põe diante do espelho como se quisesse julgar a si mesmo pelo que ali vê, ou que fala como se ouvisse falar a si mesmo (e não meramente como se outro o ouvisse), é uma espécie de ator. Ele quer representar e forja uma aparência de sua própria pessoa; por isso, se se percebe esse seu esforço, ele perde prestígio nos juízos dos demais, porque suscita a suspeita de ter intenção de enganar. - A sinceridade na maneira de se mostrar exteriormente, que não dá motivo a nenhuma suspeita semelhante, é o que se denomina comportamento natural (que, no entanto, não exclui por isso toda bela arte e formação do gosto) e agrada pela mera veracidade de sua manifestação. Mas onde simultaneamente se entrevê, na fala, franqueza provindo de simplicidade, isto é, de ausência de uma arte da dissimulação já convertida em regra, aí ela significa ingenuidade. A maneira franca de se expressar, numa moça que se aproxima da puberdade ou num camponês que desconhece os modos urbanos, desperta, por sua inocência e simplicidade (ou ignorância na arte da aparência), um sorriso alegre naqueles que já são exercitados e muito hábeis nessa arte. Não uma risada de desprezo, pois se honra, de coração, a integridade e sinceridade, mas uma risada benévola e amistosa pela inexperiência na maligna arte da aparência, que está fundada em nossa natureza humana já corrompida, e que antes mais se deveria lamentar do que dela rir, quando comparada com a ideia de uma natureza ainda não corrompida. É uma alegria momentânea, como a que se produz num céu nublado que deixa um raio de sol passar por Uma brecha, mas que logo de novo se fecha para poupar os estúpidos olhos de topeira do egoísmo. Mas com respeito ao verdadeiro propósito deste parágrafo, a saber, a advertência anterior de não se ocupar coma investigação e como que estudada redação de uma história interna do curso involuntário dos próprios pensamentos e sentimentos, ela ocorre porque este é o caminho direto para cair na confusão mental de supostas inspirações mais elevadas e de forças que influem sobre nós, sabe-se lá de onde, sem nossa intervenção; ela é o caminho direto para que se entre na Ordem dos Iluminados" ou no terrorismo. Pois, sem notá-lo, fazemos supostas descobertas daquilo que nós mesmos introduzimos em nós, como fez uma Bourignon com ideias lisonjeiras ou um Pascal com ideias assustadoras e angustiantes, e este também foi o caso de um intelecto, no mais notável, Albrecht Haller: no diário que escreveu durante muito tempo, mas também muitas vezes interrompido, sobre o estado de sua alma, ele diz que chegou, por fim, a perguntar a um célebre teólogo, o Dr. Less, antigo colega universitário seu, se no grande tesouro de sabedoria divina deste não poderia encontrar consolo para sua alma inquieta. Observar em mim os diferentes atos da faculdade de representação, quando eu os provoco, é algo digno de reflexão, e necessário e proveitoso para lógica e a metafísica. - Mas querer espreitar como vêm por si próprios ao espírito, mesmo sem ser evocados (isso ocorre pelo jogo da imaginação poética involuntária), é uma inversão da ordem natural da faculdade de conhecer, porque então os princípios do pensar não vêm antes (como devem), mas depois, e isso, ou já é uma enfermidade do espírito (melancolia), ou conduz a ela e ao hospício. Em sua viagem de descobrimento e busca de si mesmo, quem muito sabe narrar sobre experiências internas (graças, tentações) pode atracar sempre apenas em Antícira. Pois com essas experiências internas não se dá o mesmo que com as externas dos objetos no espaço, nas quais os objetos aparecem uns ao lado dos outros e são retidos como permanecendo nele. O sentido interno vê as relações de suas determinações somente no tempo, portanto, no fluxo, onde não há continuidade da observação, o que, porém, é necessário para a experiência. (Se representamos a ação interna (espontaneidade) pela qual um conceito (um pensamento) se torna possível - reflexão -, e a susceptibilidade (receptividade) por meio da qual se torna possível uma percepção (perceptio), isto é, a intuição empírica - apreensão -, ambos atos, porém, com consciência, a consciência de si mesmo (apperceptio) pode ser dividida na consciência da reflexão e na da apreensão. A primeira é uma consciência do entendimento, a segunda, do sentido interno; aquela é a apercepção pura, esta, a empírica, aquela sendo erroneamente chamada de sentido interno. - Em psicologia investigamos a nós mesmos segundo nossas representações do sentido interno; mas na lógica, segundo o que a consciência intelectual nos oferece. - Ora, aqui o eu nos parece ser duplo (o que seria contraditório): 1) o eu como sujeito do pensar (na lógica), que significa a apercepção pura (o mero eu reflexionante) e do qual não há absolutamente nada mais a dizer, senão que é uma representação inteiramente simples; 2) o eu como objeto da percepção, portanto, do sentido interno, que contém uma multiplicidade de determinações que tornam possível a experiência interna. A questão de saber se em diversas modificações internas do espírito (de sua memória ou dos princípios aceitos por ela) o ser humano, quando é consciente dessas modificações, pode dizer ainda que é exatamente o mesmo (segundo a alma), é uma questão absurda; pois só pode ser consciente dessas modificações representando a si próprio nos vários estados como um e mesmo sujeito, e o eu do ser humano é, sem dúvida, duplo pela forma (pela maneira de representar), mas não pela matéria (pelo conteúdo). Nota do Autor.) Das representações que temos sem delas sermos conscientes Ter representações, e contudo, não ser consciente delas, nisso parece haver uma contradição, pois, como podemos saber que as temos se delas não somos conscientes? Essa objeção já a fez Locke, que também por isso rejeitou a existência de semelhante espécie de representações. - No entanto, podemos ser mediatamente conscientes de ter uma representação, mesmo que não sejamos imediatamente conscientes dela. - Tais representações se chamam então obscuras, as restantes são claras, e se a sua claridade se estende às representações parciais de um todo delas e à sua ligação, são representações distintas, do pensar ou da intuição. Se estou consciente de estar vendo, distante de mim, um ser humano num prado, mesmo não estando consciente de ver-lhe os olhos, nariz, boca etc., concluo de fato apenas que essa coisa é um ser humano, pois se quisesse afirmar que não tenho absolutamente a representação dessas partes da cabeça (e assim também das partes restantes desse ser humano) porque não sou consciente de percebê-las, então também não poderia dizer que vejo um ser humano: pois a representação total (da cabeça ou do ser humano) é composta dessas representações parciais. Que seja imenso o campo das nossas sensações e intuições sensíveis, isto é, das representações obscuras no ser humano (e também nos animais), de que não somos conscientes, ainda que possamos concluir indubitavelmente que as temos; que, ao contrário, as representações claras contenham apenas infinitamente poucos pontos acessíveis à consciência; que, por assim dizer, no grande mapa de nosso espírito só haja poucos lugares iluminados, isso pode nos causar espanto com relação a nosso próprio ser; pois bastaria apenas que um poder superior exclamasse "faça-se a luz!", que, mesmo sem o acréscimo de quase nada (por exemplo, se tomamos um literato com tudo o que tem em sua memória), meio mundo, por assim dizer, se abriria diante de nós. Tudo o que o olho armado descobre por meio do telescópio (por exemplo, na lua) ou do microscópio (em animálculos em infusão) é visto por nossos meros olhos, pois aqueles meios ópticos não trazem mais raios de luz e, com eles, imagens produzidas no olho, do que as que se pintariam na retina sem aqueles instrumentos artificiais, que apenas as ampliam para nos tornar conscientes delas. - Precisamente o mesmo vale para as sensações auditivas: quando um músico toca com dez dedos e ambos os pés uma fantasia ao órgão, e ainda fala com alguém que se encontra a seu lado, um grande número de representações é em poucos instantes despertado na alma, representações que exigiriam, para a escolha de cada uma elas, um juízo particular sobre sua adequação, porque um só movimento de dedo destoando da harmonia seria imediatamente percebido como dissonância; e no entanto o todo produz tal resultado, que o músico, improvisando livremente, desejaria com frequência conservar, em notação musical, algumas das peças executadas com êxito por ele, peças que, por mais que se aplique, talvez não tenha esperança de realizar de novo tão bem. Assim, o campo das representações obscuras é o maior no ser humano. - Mas como só deixa perceber o ser humano em sua parte passiva, como jogo das sensações, a teoria dessas representações pertence apenas à antropologia fisiológica, não à pragmática; que é a propriamente visada aqui. É que frequentemente jogamos com representações obscuras e temos interesse em ocultar à imaginação objetos desejados ou indesejados; com mais frequência, porém, somos nós mesmos um jogo das representações obscuras, e nosso entendimento não pode se salvar dos absurdos em que é posto pela influência delas, ainda que as reconheça como engano. É o que ocorre com o amor sexual, tão logo não tencione propriamente o bem-querer, mas, ao contrário, o gozo de seu objeto. Quanto engenho não se despendeu desde sempre para colocar uma fina flor sobre aquilo que é, de fato, amado, mas que faz ver o ser humano num tão estreito parentesco com o gênero animal comum, que por isso se exorta ao pudor e aquilo que se diz não pode ser expresso sem floreios na sociedade refinada, ainda que com transparência suficiente para fazer sorrir. - Aqui a imaginação se compraz em passear no escuro, e é preciso empregar uma arte incomum, se, para evitar o cinismo, não se quer correr o perigo de cair no purismo ridículo. Por outro lado, com bastante frequência somos também o jogo de representações obscuras que não querem desaparecer, mesmo que o entendimento as ilumine. Estabelecer se o próprio jazigo deve ficar num jardim ou à sombra de uma árvore, no campo ou em terreno seco, é com frequência uma questão importante para um moribundo, embora, no primeiro caso, não tenha motivo para esperar desfrutar a bela vista, nem tenha, no segundo, motivo para se preocupar com uma constipação devido à umidade. Que o hábito faz o monge, isso também vale em certa medida para aquele que tem entendimento. O provérbio russo diz: "Recebe-se o hóspede conforme o traje dele, e se lhe faz companhia de acordo com seu entendimento"; o entendimento, porém, não pode evitar a impressão de representações obscuras, a impressão de certa importância causada por uma pessoa bem vestida, mas, quando muito, pode ter somente o propósito de corrigir posteriormente o juízo que provisoriamente fez a respeito dela. Para simular penetração e profundidade usa-se, muitas vezes com o resultado desejado, até mesmo uma obscuridade estudada, assim como, no crepúsculo ou através de uma névoa, os objetos são vistos sempre maiores do que são. (Pelo contrário, visto à luz do dia, aquilo que é mais claro que os objetos circundantes também parece ser maior; por exemplo, meias brancas tomam as panturrilhas mais grossas que as pretas, à noite um fogo aceso sobre uma alta montanha parece ser maior do que quando é medido. - Daí talvez se possa explicar o maior tamanho aparente da lua e também a aparentemente maior distância entre as estrelas, quando estão próximas no horizonte; pois em ambos Os casos se nos apresentam objetos brilhantes que, pela proximidade no horizonte, são vistos através de uma camada de ar mais obscurecedora do que quando estão no alto do céu, e o que é escuro se julga também mais pequeno por obra da luz circundante. No tiro ao alvo seria, por fim, mais favorável ao acerto um disco negro com um círculo branco ao meio, que o inverso. Nota do Autor.) O skotíson (torna obscuro!) é a palavra de ordem de todos os místicos para, mediante uma obscuridade artificial, simular atraentes tesouros da sabedoria. - Mas em geral certo teor enigmático numa obra não é desagradável ao leitor, porque com isso se lhe tomará sensível a própria sagacidade para resolver o que é obscuro em conceitos claros. Da distinção e indistinção na consciência das próprias representações A consciência das próprias representações que basta para diferenciar um objeto de outro é a clareza. Aquela, porém, pela qual se toma clara também a composição das representações, se chama distinção. Esta última é a única que faz de uma soma de representações um conhecimento; neste, porque toda composição acompanhada de consciência pressupõe a unidade desta, por conseguinte, uma regra da composição, é pensada uma ordem no diverso. - À representação distinta não pode se opor a confusa (perceptio confusa), mas tem de se opor meramente a indistinta (mere clara). Aquilo que é confuso tem de ser composto; pois no simples não há nem ordem, nem confusão. Esta última é, pois, a causa da indistinção, não a definição dela. - Em toda representação de conteúdo múltiplo (perceptio complexa), como é cada conhecimento (porque para ele sempre se exigem intuição e conceito), a nitidez está na ordem segundo a qual são compostas as representações parciais, que então dão ensejo, ou a uma mera divisão lógica (respectivamente à mera forma) em superiores e inferiores (perceptio primaria et secundaria), ou a uma divisão real em representações principais e acessórias (perceptio principalis et adhaerens); ordem mediante a qual o conhecimento se toma distinto. - Bem se vê que se a faculdade de conhecer deve ser denominada em geral entendimento (na significação mais geral da palavra), este tem de conter a faculdade de apreensão (attentio) das representações dadas para produzir a intuição; a faculdade de abstração (abstractio) do que é comum a várias representações para produzir o conceito; e a faculdade de reflexão (reflexio), para produzir conhecimento do objeto. Denomina-se um crânio aquele que possui essas faculdades em grau elevado; aquele a quem são dadas em medida muito escassa, um simplório (porque sempre precisa ser conduzido pelos demais); aquele, porém, que tem em si até mesmo originalidade no uso dessas faculdades (em virtude da qual produz, de si mesmo, aquilo que habitualmente precisa ser aprendido sob a direção alheia), um gênio. Aquele que nada aprendeu - é preciso no entanto ter sido instruído para saber disso - se chama um ignorante, caso deva saber aquilo para passar por um homem instruído; pois, sem essa pretensão, pode ser um grande gênio. Aquele que não é capaz de pensar por si mesmo, ainda que muito possa aprender, é chamado uma mente limitada (estreita). - Pode-se ser alguém de vasta erudição (máquina de instruir os outros como se foi instruído) e, no entanto, ser bastante limitado no que diz respeito ao uso racional de seu saber histórico. - Pedante é aquele que, ao lidar em público com o que aprendeu, revela coerção escolar (ou seja, falta de liberdade no pensar por si mesmo), seja ele erudito, soldado ou até homem da corte. Dentre estes, o pedante erudito é o mais suportável, porque com ele se pode aprender; nos últimos, ao contrário, o escrúpulo com formalidades (o pedantismo) não é apenas inútil, mas além disso ridículo também devido ao orgulho, que inevitavelmente acompanha o pedante, já que é o orgulho de um ignorante. No entanto, a arte ou, antes, a habilidade de falar num tom sociável e se mostrar em geral na moda, que, principalmente se se refere à ciência, é erroneamente denominada popularidade, quando, ao contrário, deveria se chamar superficialidade ornamentada, encobre muita pobreza da mente estreita. Mas somente as crianças se deixam enganar por isso. "Teu tambor (diz, em Addison, o quacre ao loquaz oficial que viaja a seu lado na carruagem) é um símbolo teu: ele soa porque está vazio". Para julgar os seres humanos segundo sua faculdade de conhecer (o entendimento em geral), eles são divididos entre aqueles aos quais se deve conceder senso comum (sensus communis), que com certeza não é vulgar (sensus vulgaris), e os homens de ciência. Os primeiros são os que conhecem as regras em casos de aplicação (in concreto), os outros, os que as conhecem por si mesmos e antes de sua aplicação (in abstrato). - O entendimento que pertence à primeira faculdade de conhecer se denomina entendimento humano sadio (bon sens); o que pertence à segunda, uma mente inteligente (ingenium perspicax). - É notável que o primeiro, que habitualmente é considerado apenas uma faculdade de conhecer prática, seja representado não só como um entendimento que pode prescindir da cultura, mas como tal ao qual esta é até mesmo prejudicial, se não é levada suficientemente adiante; daí ser exaltado até o desvario e representado como uma mina de tesouros escondidos nas profundezas da mente, e também por vezes sua sentença é declarada como um oráculo (o gênio de Sócrates) mais confiável do que tudo quanto uma estudada ciência possa trazer à praça do mercado. - O certo é que, se a solução de uma questão se baseia nas regras universais e inatas do entendimento (cuja posse é denominada agudeza natural), é mais inseguro buscar princípios estudados e artificialmente estabelecidos (agudeza escolar) e tirar sua conclusão de acordo com eles, do que deixar a decisão aos fundamentos de determinação do juízo que se encontram em massa na obscuridade da mente, a que se poderia chamar de tato lógico, onde a reflexão se toma representável o objeto por muitos lados e obtém um resultado correto, sem se tomar consciente dos atos que ocorrem no interior da mente. O entendimento sadio só pode, no entanto, provar essa sua superioridade no que diz respeito a um objeto da experiência, não só para crescer em conhecimento por meio desta, mas para ampliá-la (a experiência), porém não do ponto de vista especulativo e sim meramente do empírico-prático. Pois naquele se necessita de princípios científicos a priori, mas neste também pode haver experiências, isto é, juízos continuamente comprovados por meio de tentativa e erro. Da sensibilidade em oposição ao entendimento No que respeita o estado das representações, minha mente é ativa e demonstra poder (facultas), ou é passiva e consiste em receptividade (receptivitas). Um conhecimento contém ambas ligadas, e a possibilidade de ter tal conhecimento tira o seu nome, de faculdade de conhecer, da parte mais nobre, a saber, da atividade da mente de ligar ou separar representações. Representações com respeito às quais o espírito se comporta passivamente, pelas quais, portanto, o sujeito é afetado (podendo afetar a si mesmo ou ser afetado por um objeto), pertencem à faculdade de conhecimento sensível, mas as que contêm um mero agir (o pensar) pertencem à faculdade de conhecimento intelectual. Aquela é denominada também faculdade inferior de conhecimento, esta, porém, faculdade superior. (Pôr a sensibilidade meramente na indistinção das representações, a intelectualidade, pelo contrário, na distinção, estabelecendo desse modo uma divisão meramente formal (lógica) da consciência, em lugar da real (psicológica), que não concerne simplesmente à forma de pensar, mas também a seu conteúdo, foi um grande erro da escola leibniz-wolffiana, isto é, colocar a sensibilidade meramente numa falta (de clareza das representações parciais), por conseguinte, na indistinção, a natureza da representação intelectual, porém, na distinção, apesar de aquela ser algo muito positivo e um ingrediente indispensável à última para produzir um conhecimento. - Mas Leibniz foi propriamente o culpado. Pois, pertencendo à escola de Platão, admitiu a existência de intuições intelectuais puras, inatas, chamadas Ideias, que se encontrariam na mente humana, embora agora estejam obscurecidas, e a cuja decomposição e iluminação pela atenção devemos exclusivamente o conhecimento dos objetos como são em si mesmos. Nota do Autor.) Aquela tem o caráter da passividade das sensações do sentido interno, esta, o da espontaneidade da apercepção, isto é, da pura consciência da ação que constitui o pensar e pertence à lógica (um sistema de regras do entendimento), assim como aquela pertence à psicologia (um conjunto de todas as percepções internas sob leis naturais) e funda a experiência interna. Nota. O objeto da representação que contém apenas o modo como sou por ele afetado, só pode ser por mim conhecido como me aparece, e toda experiência (conhecimento empírico), interna não menos que externa, é apenas conhecimento dos objetos como eles nos aparecem, não como são (considerados por si sós). Pois de que espécie será a intuição sensível a que se segue o pensar do objeto (o conceito dele), isso não depende meramente da índole do objeto da representação, mas da do sujeito e de sua receptividade. - Mas a índole formal dessa receptividade não pode, por seu turno, ser tomada de empréstimo aos sentidos, mas precisa ser dada a priori (como intuição), isto é, precisa ser uma intuição sensível que subsista ainda que todo o empírico (contendo a sensação dos sentidos) seja suprimido, e esse formal da intuição é, na experiência interna, o tempo. Porque experiência é conhecimento empírico, mas para o conhecimento (já que repousa em juízos) se exige reflexão (reflexio), portanto, consciência da atividade na composição do diverso da representação segundo uma regra de unidade dele, isto é, conceito e pensar em geral (que é diferente do intuir), a consciência é dividida em discursiva (que, como lógica, porque dá a regra, tem de preceder) e intuitiva; a primeira (a pura apercepção da ação de sua mente) é simples. O eu da reflexão não contém em si diverso algum e é em todos os juízos sempre um e o mesmo, porque é simplesmente esse formal da consciência; em contrapartida, a experiência interna contém o material dela e um diverso da intuição empírica interna, o eu da apreensão (por conseguinte, uma apercepção empírica). Eu, como ser pensante, sou de fato um mesmo sujeito comigo, como ser sensível, mas como objeto da intuição empírica interna, isto é, enquanto sou afetado internamente por sensações no tempo, simultâneas ou sucessivas, só me conheço como apareço a mim mesmo, não como coisa em si mesma. Pois isso depende da condição do tempo, que não é um conceito do entendimento (portanto, não mera espontaneidade); por conseguinte, de uma condição com respeito à qual minha faculdade de representação é passiva (e pertence à receptividade). - Por isso sempre me conheço, mediante a experiência interna, somente como apareço a mim mesmo, proposição que é frequentemente deturpada de um modo maldoso, como se quisesse dizer: apenas me parece (mihi videri) que tenho certas representações e sensações, que em geral eu existo. - A aparência é o fundamento de um juízo errôneo por razões subjetivas falsamente consideradas objetivas; o fenômeno, porém, não é um juízo, mas mera intuição empírica, que, por meio da reflexão e do conceito do entendimento que dela nasce, se torna experiência interna e, com isso, verdade. A causa desses erros é que as palavras sentido interno e apercepção são geralmente tomadas como sinônimos pelos psicólogos, apesar de que somente a primeira deve indicar uma consciência psicológica (aplicada), e a segunda meramente uma consciência lógica (pura). Mas a afirmação de que pelo sentido interno só podemos nos conhecer como aparecemos a nós mesmos se torna clara porque a apreensão (apprehensio) das impressões do sentido interno pressupõe uma condição formal da intuição interna do sujeito, a saber, o tempo, que não é um conceito do entendimento e, portanto, vale simplesmente como condição subjetiva de como nos são dadas sensações internas segundo a índole da alma humana, por conseguinte, ela não nos dá a conhecer como o objeto é em si. Esta nota não pertence propriamente à antropologia. Nesta, fenômenos unificados segundo leis do entendimento são experiências, e então não se pergunta por aquele modo de representar as coisas no qual são consideradas mesmo sem sua relação com os sentidos (ou seja, em si mesmas); pois essa investigação pertence à metafísica, que tem a ver com a possibilidade do conhecimento a priori. Mas foi necessário recuar até esse ponto para impedir os equívocos da mente especulativa relativos a essa questão. - Como aliás o conhecimento do ser humano por meio da experiência interna é de grande importância, porque em grande parte ele também julga os outros de acordo com ela, mas ao mesmo tempo de uma dificuldade talvez maior que o julgamento correto dos outros, pois o investigador de seu íntimo, em vez de simplesmente observar, facilmente introduz muita coisa na autoconsciência, por tudo isso é aconselhável e até necessário começar pelos fenômenos observados em si mesmo, e somente então passar à afirmação de certas proposições que concernem à natureza do ser humano, isto é, à experiência interna. Apologia da sensibilidade Todos demonstram total respeito para com o entendimento, como também já o mostra sua denominação de faculdade superior de conhecimento; aquele que quisesse louvá-lo seria despachado com o escárnio daquele orador que faz o elogio da virtude (stulte! quis unquam vituperavit). A sensibilidade, porém, tem má fama. Fala-se muito mal dela, por exemplo: 1) que confunde a faculdade de representação; 2) que é presunçosa, teimosa e difícil de dominar como senhora, quando só devia ser servidora do entendimento; 3) que até mesmo engana, e com ela toda cautela é pouca. - Mas, por outro lado, não lhe faltam encomiastas, principalmente entre poetas e pessoas de gosto, que não apenas enaltecem, como sendo um mérito, a sensibilização dos conceitos do entendimento, mas também colocam justamente nisso, e em que os conceitos não sejam decompostos com tão meticuloso cuidado em suas partes integrantes, a expressividade (a abundância de pensamento) ou a ênfase (reiteração) da linguagem e a luminosidade (claridade na consciência) das representações, e declaram precisamente a simplicidade do entendimento como indigência. (Como aqui só se fala da faculdade de conhecer e, portanto, de representação (não do sentimento de prazer ou desprazer), a sensação não significa nada mais que a representação dos sentidos (intuição empírica), em sua diferença tanto dos conceitos (o pensar), quanto também da intuição pura (espaço e representação do tempo). Nota do Autor.) Não necessitamos aqui de um panegirista, mas apenas de um advogado que refute o acusador. O que há de passivo na sensibilidade, que no entanto não podemos pôr de lado, é propriamente a causa de todo mal que a ela se atribui. A perfeição interna do ser humano consiste nisto: ter o uso de todas as suas faculdades em seu poder, para submetê-lo ao seu livre-arbítrio. Mas para isso se exige que o entendimento domine sem, contudo, debilitar a sensibilidade (que é em si plebe, porque não pensa), porque sem ela não haveria matéria que pudesse ser elaborada para uso do entendimento legislador. Defesa da sensibilidade contra a primeira acusação Os sentidos não confundem. Daquele que apreendeu um diverso dado, mas ainda não o ordenou, não se pode dizer que o confunde. As percepções dos sentidos (representações empíricas com consciência) só podem ser denominadas fenômenos internos. Somente o entendimento, que vem em acréscimo a elas e as une sob uma regra do pensar (introduz ordem no diverso), faz delas um conhecimento empírico, isto é, experiência. - A responsabilidade é, portanto, do entendimento, que descuida de sua incumbência, se julga arriscadamente sem ter antes ordenado as representações sensíveis segundo conceitos, e depois se queixa da confusão delas, imputada à conformação sensível da natureza do homem. Essa censura se refere tanto às queixas infundadas sobre a confusão das representações externas, quanto sobre a confusão das representações internas provocada pela sensibilidade. As representações sensíveis precedem certamente as representações do entendimento e se apresentam em massa. Tanto mais rico, porém, é o produto quando o entendimento entra com sua ordenação e sua forma intelectual, e traz, por exemplo, à consciência expressões concisas para o conceito, enfáticas para o sentimento e representações interessantes para a determinação da vontade. - A riqueza que os produtos do espírito apresentam de uma só vez (em massa) ao entendimento na oratória e na poesia, com frequência o coloca em embaraço em virtude de seu uso racional, e ele cai frequentemente em confusão quando deve tomar distintos e separar todos os atos da reflexão que, embora obscuramente, realmente emprega aqui. Mas nisso a sensibilidade está isenta de culpa, ao contrário, é mérito dela ter oferecido ao entendimento rico material diante do qual os conceitos abstratos deste são frequentemente apenas brilhantes ninharias. Defesa da sensibilidade contra a segunda acusação Os sentidos não governam o entendimento. Ao contrário, apenas se oferecem ao entendimento, para que disponha de seus serviços. O fato de não quererem ver ignorada a sua importância, que lhes é devida principalmente naquilo que se denomina senso comum do homem (sensus communis), não pode ser imputado à pretensão deles de querer dominar o entendimento. Há realmente juízos que não são formalmente apresentados perante o tribunal do entendimento, para que sejam por ele julgados: parecem, por isso, ser imediatamente ditados pelo sentido. Tais juízos se encontram nos chamados provérbios ou nas inspirações oraculares (como aqueles cuja sentença Sócrates atribuía a seu gênio). Nestes se pressupõe que o primeiro juízo que se formula sobre o que é justo e sábio fazer em determinado caso também é geralmente o correto, e muita ponderação só o poria a perder. Na verdade, esses juízos não procedem dos sentidos, mas de reflexões efetivas, ainda que obscuras, do entendimento. - Os sentidos não têm essa pretensão e são como o povo comum, que, quando não é plebe (ignobile vulgus), se submete de bom grado a seu soberano, o entendimento, mas quer ser ouvido. Ora, admitir que certos juízos e conhecimentos procedem imediatamente do sentido interno (sem o intermédio do entendimento), e considerar este como comandando por si e as sensações como valendo por juízos, é um puro desvario, que está em parentesco próximo com a perturbação dos sentidos. Defesa da sensibilidade contra a terceira acusação Os sentidos não enganam. Essa proposição é rejeição da censura mais importante, mas também, ponderando as coisas com rigor, a mais nula que se faz aos sentidos; e isso não porque os sentidos julgam sempre corretamente, mas porque não julgam de modo algum; por isso, o erro sempre recai somente sobre o entendimento. - Mas para o entendimento a aparência sensível (species, apparentia) basta, se não como justificação, ao menos como desculpa, daí porque ocorre com muita frequência de o ser humano tomar o subjetivo de seu modo de representação pelo objetivo (a torre distante, em que ele não vê lados, como sendo redonda; o mar, cuja parte distante lhe chega aos olhos por meio de raios de luz mais elevados, como sendo mais alto que a margem (altum mare); a lua cheia, que vê nascer no horizonte através de uma névoa, ainda que a apreenda pelo mesmo ângulo visual, como sendo mais distante, portanto, também maior, do que quando aparece no alto do céu) e, assim, a tomar o fenômeno pela experiência; mas por isso ocorre com muita frequência de cair em erro, mas num erro do entendimento, não num erro dos sentidos. Uma censura que a lógica lança contra a sensibilidade é a seguinte: reprova-se o conhecimento proporcionado pela superficialidade (individualidade, restrição ao singular), ao passo que o entendimento, que se dirige ao universal, mas, por isso mesmo, tem de se acomodar com abstrações, é censurado por sua aridez. Mas modo de consideração estético, cujo primeiro requisito é popularidade, segue um caminho pelo qual se pode contornar ambos os erros. Do poder-fazer em relação à faculdade de conhecer em geral O parágrafo anterior, que tratou do poder da aparência naquilo em que nenhum ser humano é capaz de fazer, nos leva à discussão dos conceitos de leve e pesado (leve et grave), que ao pé da letra significam em alemão propriedades e forças dos corpos, mas que por certa analogia devem significar, como em latim, o factível (facile) e o comparativamente infactivel (difficile); pois aquilo que quase não é factível em certas condições e situações é sempre considerado como subjetivamente infactivel por um sujeito que duvida que sua capacidade esteja à altura de realizá-lo. A facilidade em fazer algo (promptitudo) não deve ser confundida com a habilidade (Fertigkeit) em tais ações (habitus). A primeira significa certo grau de capacidade mecânica: "posso, se quero", e designa a possibilidade subjetiva; a segunda, a necessidade subjetivo-prática, isto é, o hábito, portanto, um certo grau de vontade adquirido pelo uso frequentemente repetido de sua faculdade: "quero porque o dever manda". Não se pode, por isso, explicar a virtude assim: ela é a habilidade nas ações justas e livres, pois então seria um mero mecanismo de aplicação de força; mas virtude é a força moral no cumprimento do seu dever, que jamais se tomará hábito, devendo provir, sempre de forma inteiramente nova e original, da maneira de pensar. O fácil se opõe ao difícil, mas com frequência também ao incômodo. Fácil é para um sujeito aquilo para o qual nele se pode encontrar grande, sobra de capacidade no emprego da força necessária para um ato. O que é mais fácil de praticar que as formalidades das visitas, felicitações e pêsames? O que é, contudo, mais penoso para um homem atarefado? Elas são vexações amistosas (maçadas), de que cada um deseja de coração ficar livre, mas hesita em ir contra o costume. Que vexações não existem em todo aquele ritual que se considera fazer parte da religião, mas que na realidade foi incorporado à forma da igreja, onde o mérito da devoção reside precisamente no fato de que todo o ritual de nada serve, e na mera submissão dos crentes, que devem se deixar importunar pacientemente pelas cerimônias e regras, penitências e castigos (quanto mais, melhor); apesar de tais trabalhos servis serem mecanicamente fáceis (porque neles não se precisa sacrificar nenhuma inclinação viciosa), para o indivíduo sensato, no entanto, eles têm de ser moralmente muito incômodos e pesados. - Por isso, quando o grande educador moral do povo disse: "Meus mandamentos não são difíceis", não quis dizer que necessitavam apenas de pequeno dispêndio de força para cumpri-los, pois de fato são os mais difíceis, como aqueles que requerem sentimentos puros do coração, mas, para um indivíduo sensato, infinitamente mais fáceis que os mandamentos de um atarefado não fazer nada (gratis anhelare, multa agendo nihil agere), como foram aqueles que fundaram o judaísmo, pois o homem sensato sente o que é mecanicamente fácil como muito mais pesado, quando vê que o esforço aplicado não serve para nada. Tornar fácil algo difícil é mérito; pintá-lo como fácil, embora não se possa fazê-lo, é embuste. Fazer o que é fácil carece de mérito. Os métodos e as máquinas e, com estes, a divisão dos trabalhos entre diferentes artesãos (trabalho fabril), tomam fácil muita coisa que seria difícil fazer com as próprias mãos sem outros instrumentos. Indicar as dificuldades antes de dar a instrução para o empreendimento (como, por exemplo, em muitas investigações da metafísica), pode sem dúvida intimidar, mas é sempre melhor que ocultá-las. Aquele que tem por fácil tudo o que empreende é leviano. Aquele que se sai facilmente em tudo quanto faz é hábil, assim como aquele cujos atos revelam esforço é pesado. - A conversa sociável (conversação) é um simples jogo onde tudo deve ser fácil e leve. Por isso, nela a cerimônia (a rigidez), por exemplo, a despedida solene após um banquete, é abolida como antiquada. A disposição de espírito do homem ao empreender um negócio varia conforme a diferença de temperamento. Alguns começam com dificuldades e preocupações (os melancólicos), em outros a esperança e a suposta facilidade de realização é o que lhes vem primeiro ao pensamento (os sanguíneos). Mas que pensar da célebre sentença dos homens de gênio, que não está meramente fundada no temperamento: "O que o homem quer, ele pode"? Ela não passa de uma sonora tautologia, pois o que ele quer por ordem de sua razão moral-imperativa, ele deve fazer, e por conseguinte, também pode fazer (pois a razão não lhe ordenará o impossível). Há alguns anos, porém, existiram uns convencidos que arrogavam isso para si também no sentido físico e se anunciavam como assediadores do mundo, mas sua raça se extinguiu há tempos. Por último, quando algo se torna usual (consuetudo), ou seja, quando sensações exatamente da mesma espécie desviam a atenção dos sentidos por sua prolongada duração sem alteração, e quase já não se é conscientes delas, isso torna fácil suportar o mal (o que então é erroneamente honrado com o nome de uma virtude, a saber, a paciência), mas também torna mais difíceis a consciência e a lembrança do bem recebido, o que conduz comumente à ingratidão (um verdadeiro vício). O hábito (assuetudo) é, todavia, uma necessidade física interna de continuar procedendo do mesmo modo que até agora se procedeu. O hábito retira o valor moral das boas ações precisamente porque prejudica a liberdade do espírito e leva, além disso, à repetição irrefletida do mesmo ato (monotonia), tomado-se com isso ridículo. - As ênfases habituais (frases para o mero preenchimento do vazio do pensamento) tomam o ouvinte ininterruptamente ansioso por escutar novamente a frasezinha de efeito e o orador, uma máquina falante. A causa da repugnância que o hábito de outro suscita em nós é que aqui o animal sobressai em demasia no ser humano, que é guiado instintivamente pela regra do hábito como outra natureza (não humana) e então corre perigo de cair na mesma categoria das bestas. - Certos hábitos podem, contudo, ser propositais e aceitos quando a natureza recusa sua ajuda ao livre-arbítrio, por exemplo, o ancião se habitua à hora de comer e beber, à qualidade ou quantidade de comida e bebida ou também de sono, hábitos que então se tornam gradualmente mecânicos; mas isso só vale excepcionalmente e em caso de necessidade. Em regra, todo hábito é reprovável. Do jogo artificial com a aparência sensível O engano provocado no entendimento pelas representações dos sentidos (praestigiae) pode ser natural ou também artificial, e é ilusão (illusio) ou fraude (fraus). - O engano pelo qual se é obrigado a tomar algo como real com base no testemunho que é dado pela visão, ainda que o mesmo sujeito, mediante seu entendimento, o declare impossível, se chama ilusão de óptica (praestigiae). A ilusão é aquele engano que permanece, ainda que se saiba que o objeto suposto não é real. - Esse jogo da mente com a aparência sensível é muito agradável e divertido como, por exemplo, o desenho em perspectiva do interior de um templo ou como disse Raphael Mengs sobre a pintura Escola dos Peripatéticos (parece-me que de Correggio): "quando a gente olha essas figuras por muito tempo, parece que estão andando", ou como a escada pintada na prefeitura de Amsterdã, com uma porta semiaberta, que induz todos a subir por ela etc. O engano dos sentidos ocorre, porém, quando a aparência cessa imediatamente, tão logo se saiba o que se passa com o objeto. Tais são as artes dos prestidigitadores de toda espécie. - Um vestido cuja cor se destaca vantajosamente para a vista é ilusão; mas maquiagem é engano. Pela primeira se é seduzido, pelo segundo, burlado. - Por isso também as estátuas de figuras humanas ou animais pintadas com cores naturais não podem ser admitidas: pois se é levado a considerá-las vivas toda vez que se mostrem inesperadamente à vista. A fascinação (fascinatio) num estado de ânimo normalmente saudável é um engano dos sentidos, do qual se diz que não condiz com as coisas naturais, pois se um juízo que afirma a existência de um objeto (ou de uma qualidade dele) alterna irresistivelmente, quando se presta atenção nele, com o juízo segundo o qual ele não existe (ou que é de outra maneira) - o sentido parece contradizer a si mesmo, como um pássaro que adeja diante do espelho no qual vê a si mesmo, e ora o tem por um pássaro real, ora não. Esse jogo em que os seres humanos não confiam nos próprios sentidos ocorre principalmente com aqueles que são fortemente acometidos de paixão. Para o enamorado que (segundo Helvetius) a viu nos braços de outro, a amada pode simplesmente negar o fato e dizer: "Infiel, você não me ama mais, você crê mais no que vê que do que naquilo que lhe digo". - Mais grosseiro, ou ao menos mais nocivo, era o engano perpetrado por ventríloquos, gassnerianos; mesmerianos e pelos supostos necromantes. Antigamente eram chamadas de bruxas as mulheres pobres e ignorantes que pretendiam poder fazer algo sobrenatural e, todavia, neste século não se extinguiu por completo a crença nisso. (Interrogado como testemunha pelo juiz sobre um desses casos, um padre protestante da Escócia disse ainda neste século: "Meu senhor, eu lhe asseguro por minha honra de sacerdote que essa mulher é uma bruxa", ao que replicou o juiz: "E eu lhe asseguro por minha honra de juiz que o senhor não é um bruxo". A palavra Hexe [bruxa], agora germanizada, vem das palavras iniciais da fórmula que se diz na consagração da hóstia, que o crente vê com os olhos do corpo como um pequeno disco de pão, mas que, depois de pronunciada aquela fórmula, está obrigado a ver, com os olhos do espírito, como o corpo de um homem. Pois as palavras hoc est primeiro atraíram a palavra corpus, onde dizer hoc est corpus foi modificado em fazer hocuspocus, provavelmente por um piedoso temor de denominar e profanar o nome correto, como costumam fazer os supersticiosos em questões sobrenaturais, para não cometer nenhuma violação. Nota do Autor.) Parece que o sentimento de surpresa perante o inaudito tem em si mesmo algo de muito atraente para o homem fraco: não só porque se lhe abrem novas perspectivas, mas porque com isso é induzido a se livrar do uso da razão, para ele tão incômodo, e a pôr os outros no mesmo estado de ignorância que o seu. Da aparência moral permitida Feitas as contas, quanto mais os seres humanos se tomam civilizados, tanto maior é o número de atores; eles aparentam simpatia, respeito pelos outros, recato, altruísmo, sem enganar ninguém com isso, porque cada um dos demais está de acordo que não se está sendo exatamente sincero, e também é muito bom que as coisas sejam assim no mundo. Pois, porque os homens representam esse papel, as virtudes, cuja aparência apenas afetam por um longo espaço de tempo, são por fim pouco a pouco realmente despertadas e passam a fazer parte do caráter. - Enganar, porém, o enganador que há em nós mesmos, enganar a inclinação é, por sua vez, voltar a obedecer à lei da virtude, não engano, mas inocente ilusão de nós mesmos. Assim, o fastio com a própria existência, o vazio mental provocado pela falta de sensações a que se anseia sem cessar, o tédio em que se sente ao mesmo tempo o peso da indolência, isto é, do enfado com qualquer ocupação que poderia se chamar de trabalho e que poderia acabar com aquele fastio porque está ligada a fadigas, é um sentimento sumamente repugnante, cuja causa não é outra que a inclinação natural à comodidade (repouso não precedido de esforço). - Mas essa inclinação é enganosa, mesmo em vista dos fins que a razão dá como lei para que o ser humano fique satisfeito consigo mesmo, quando ele não faz absolutamente nada (vegeta sem finalidade), porque não faz nada de mal. Portanto, enganá-la novamente (o que pode ocorrer por meio do jogo com as belas-artes, mas na maioria das vezes por meio da conversa social) se chama passar o tempo (tempus fallere), expressão que já indica a intenção de enganar a própria inclinação para o descanso ocioso, quando as belas-artes entretêm ludicamente a mente, ou quando apenas o mero jogo sem finalidade numa peleja amistosa produz ao menos o cultivo da mente; em caso contrário, se chama matar o tempo. - Com violência nada se conseguiu contra a sensibilidade nas inclinações; é preciso ludibriá-las e, como diz Swift, dar um tonel para a baleia brincar, a fim de salvar o navio. A natureza implantou sabiamente no homem a propensão a se deixar de bom grado enganar, quer para salvar a virtude, quer para conduzi-lo a ela. A boa e honrosa decência é uma aparência exterior que infunde respeito aos outros (não se fazer vulgar). Sem dúvida, a mulher não ficaria satisfeita se o sexo masculino não parecesse prestar homenagem a seus encantos. Mas a pudicícia (pudicitia), uma autocoerção que oculta a paixão, é, como ilusão, muito salutar para produzir entre um e outro sexo a distância necessária para não rebaixar um a mero instrumento do gozo do outro. - Em geral, tudo o que se denomina decoro (decorum) é da mesma índole, a saber, nada mais que bela aparência. A cortesia (polidez) é uma aparência de condescendência que infunde amor. As reverências (saudações) e todo galanteio cortês, junto com os mais calorosos protestos verbais de amizade, nem sempre são precisamente verdades ("Meus queridos amigos, não existe amigo!" Aristóteles), mas tampouco enganam, porque cada um sabe pelo que os deve tomar, e principalmente porque esses símbolos, inicialmente vazios, de benevolência e de respeito conduzem pouco a pouco a verdadeiros caracteres de tal espécie. Toda virtude humana nas relações é moeda de pouco valor; é uma criança quem a toma por ouro puro. - Mas é sempre melhor ter em circulação moeda de pouco valor que carecer de um meio como este, e poder finalmente, embora com uma perda considerável, trocá-las por ouro verdadeiro. Fazer com que passem por meras fichas de jogo sem nenhum valor e dizer com o sarcástico Swift: "A honra é um par de sapatos gastos na sujeira” etc.; ou caluniar até mesmo um Sócrates, como o pregador Hofstede em seu ataque ao Belisário de Marmontel, e impedir que qualquer pessoa creia na virtude, é alta traição à humanidade. Mesmo a aparência do bem em outros tem de ser estimável para nós, porque esse jogo com dissimulações, que granjeiam respeito sem talvez o merecer, pode por fim se tomar sério. - Somente a aparência do bem em nós mesmos precisa ser eliminada sem clemência, e rasgado o véu com que o amor-próprio encobre nossos defeitos morais, porque a aparência engana onde o indivíduo, recorrendo a algo sem nenhum conteúdo moral, encena para si mesmo a anulação de sua própria culpa ou até, dispensando esse expediente, se convence de não ser culpado de nada, por exemplo, quando no fim da vida se pinta o arrependimento pelas más ações como verdadeira correção ou a transgressão deliberada, como fraqueza humana. Dos cinco sentidos Na faculdade de conhecer (faculdade das representações na intuição), a sensibilidade contém duas partes: o sentido e a imaginação. - O primeiro é a faculdade de intuição na presença do objeto; a segunda, também sem a presença deste. - Os sentidos, porém, são divididos por sua vez em sentido externo e interno (sensus internus); o primeiro é aquele em que o corpo humano é afetado pelas coisas corporais, o segundo, aquele em que é afetado pela mente, onde se deve notar que o último, como mera faculdade de percepção (da intuição empírica), é considerado distinto do sentimento de prazer e desprazer, isto é, da receptividade que o sujeito tem de ser determinado por certas representações para a manutenção ou rejeição do estado dessas representações, o que se poderia denominar sentido interior (sensus interior). - Uma representação pelo sentido, de que se é consciente como sendo tal, chama-se sensação “Sensation” especialmente quando o sentimento desperta simultaneamente a atenção para o estado do sujeito. Antes de qualquer coisa, os sentidos da sensação corporal podem ser divididos em sentidos da sensação vital (sensus vagus) e da sensação do órgão (sensus fixus), e porque todos eles só são encontrados onde há nervos, podem ser divididos entre aqueles que afetam o sistema nervoso inteiro e aqueles que só afetam o nervo pertencente a certo membro do corpo. - A sensação de calor e frio, mesmo aquela que é suscitada pela mente (por exemplo, pela esperança ou temor que aumentam rapidamente), pertence ao sentido vital. O calafrio “Schauer” que percorre o próprio ser humano à representação do sublime, e o terror com que já tarde da noite histórias da carochinha fazem as crianças fugir para a cama, são dessa última espécie; eles penetram o corpo, onde nele haja vida. Se se referem à sensação externa, os órgãos dos sentidos, porém, não podem ser, com boa razão, nem mais nem menos que em número de cinco. Mas três deles são mais objetivos que subjetivos, isto é, como intuição empírica contribuem mais para o conhecimento do objeto externo do que estimulam a consciência do órgão afetado; - dois, no entanto, são mais subjetivos que objetivos, isto é, a representação que se tem por meio deles é mais de fruição que de conhecimento do objeto externo; por isso, sobre os primeiros se pode facilmente entrar em acordo com as outras pessoas, em relação aos últimos, porém, ainda que a intuição empírica externa seja uma só e a denominação do objeto a mesma, a maneira como o sujeito se sente afetado pelo objeto pode ser de todo diferente. Os sentidos da primeira classe são: 1) tato (tactus), 2) visão (visus), 3) audição (auditus). - Os da segunda: a) paladar (gustus), b) olfato (olfactus); todos eles sentidos puros da sensação orgânica, como que muitas vias externas de acesso, que a natureza preparou para que o animal possa diferenciar os objetos. Do tato O sentido do tato está nas pontas dos dedos e nas saliências nervosas (papillae) deles para que, ao contato com a superfície de um corpo sólido, investigue sua forma. - A natureza parece ter destinado esse órgão unicamente ao ser humano para que, tocando um corpo por todos os lados, pudesse ter um conceito “Begriff” da forma dele, pois as antenas dos insetos parecem ter em vista apenas a presença, não a investigação da forma do corpo. - Esse sentido é também o único de percepção externa imediata, e precisamente por isso também o mais importante e o que instrui de modo mais seguro, embora não obstante o mais grosseiro: porque a matéria, a partir de cuja superfície devemos nos instruir, por contato, sobre a forma, tem de ser sólida. (Quando se fala aqui da sensação vital, não entra em questão se a superfície deve ser sentida como suave ou não, e menos ainda se é quente ou fria). - Sem esse sentido do órgão não poderíamos ter nenhuma noção de uma forma corporal, a cuja percepção, portanto, temos de referir originariamente os dois outros sentidos da primeira classe, para proporcionar conhecimento da experiência. Da audição O sentido da audição é um dos sentidos de percepção meramente mediata. - Através do ar que nos circunda e por meio dele se reconhece em grande medida um objeto distante, e justamente por esse meio, posto em movimento pelo órgão da voz, a boca, os homens podem entrar, mais fácil e integralmente, em comunidade de pensamentos e sentimentos com os outros, principalmente quando os sons que cada qual faz o outro ouvir são articulados e em sua ligação segundo leis constituem uma linguagem pelo entendimento. - A forma do objeto não é dada pela audição, e os sons da linguagem não levam diretamente à representação dele, mas exatamente por isso e porque em si nada significam, ou ao menos não significam nenhum objeto e, quando muito, apenas sentimentos internos, eles são os meios mais adequados para a designação dos conceitos, e os surdos de nascimento, que precisamente por isso também devem ficar mudos (sem linguagem), nunca podem chegar a algo mais que a um análogo da razão. Ele, porém, no que diz respeito ao sentido vital, não só é movido de um modo indescritivelmente vivo e variado, mas também fortalecido pela música, como um jogo regular de sensações auditivas, que é como que uma linguagem de meras sensações (sem nenhum conceito). Os sons aqui são tons, são para o ouvido o que as cores são para a visão: uma comunicação dos sentimentos à distância, num espaço circundante, comunicação a todos os que nele se encontram, e uma fruição social que não é diminuída pelo fato de muitos dela participarem. Da visão Também a visão é um sentido da sensação mediata, produzida por meio de uma matéria móvel sentida apenas por certo órgão (os olhos), a luz, a qual não é meramente, como o som, um movimento ondulatório de um elemento fluido, que se propaga em todas as direções do espaço ao redor, mas uma corrente pela qual é determinado um ponto para o objeto no espaço, e por meio da qual o universo se nos toma conhecido numa extensão tão imensa que, sobretudo quando comparamos, a partir de nossas escalas terrestres, as distâncias dos corpos celestes dotados de luz própria em relação à terra, nos cansamos com a série de números e, nesse caso, quase temos mais motivo para admirar a delicada sensibilidade desse órgão, no que se refere à percepção de impressões tão fracas, do que a grandeza do objeto (o universo), principalmente quando se considera o mundo em escala menor, como quando é posto diante dos olhos por meio do microscópio, por exemplo, nos animálculos em infusão. - Se não é mais indispensável que o ouvido, a visão é seguramente o sentido mais nobre, porque é, dentre todos, o que mais se distancia do tato, como condição mais limitada das percepções, e não só contém a maior esfera delas no espaço, mas também sente seu órgão menos afetado (porque, do contrário, não seria mera visão), e, com isso, se aproxima, portanto, de uma intuição pura (a representação imediata do objeto dado sem que nela se note mistura de sensação). Esses três sentidos externos conduzem o sujeito, por reflexão, ao conhecimento do objeto como uma coisa fora de nós. - Mas quando a sensação se toma tão forte que a consciência do movimento do órgão se toma mais intensa que a referência a um objeto exterior, então as representações externas se convertem em internas. - Notar o liso ou o áspero no tangível é algo totalmente diferente que reconhecer com isso a figura do corpo exterior. Do mesmo modo, uma voz esganiçada pode tomar alguém surdo por alguns instantes, se a fala do outro é tão forte que, como se diz, doem os ouvidos, ou então alguém pode ficar cego por alguns instantes, se sai de um aposento escuro para a luz do sol e pisca os olhos, isto é, nenhum dos dois pode chegar ao conceito do objeto devido a veemência da sensação, a atenção deles estando meramente fixada na representação subjetiva, a saber, na modificação do órgão. Do paladar e do olfato Os sentidos do paladar e do olfato são, ambos, mais subjetivos que objetivos, o primeiro, pelo contato do objeto externo com o órgão da língua, da garganta e do céu da boca; o segundo, pela aspiração de aromas que se mesclam ao ar, onde o corpo que as emite pode inclusive estar distante do órgão. Ambos são bastante aparentados, e aquele a quem falta o olfato tem sempre apenas um paladar embotado. - Pode-se dizer que ambos são afetados por sais (fixos e voláteis), dos quais um precisa ser dissolvido pelo líquido na boca, o outro, através do ar, sais que têm de se infiltrar no órgão para fazer chegar a este a sensação específica deles. Nota geral sobre os sentidos externos As sensações dos sentidos externos podem ser divididas nas de influxo mecânico e nas de influxo químico. Às que influem mecanicamente pertencem os três sentidos superiores; às de influxo químico, os dois sentidos inferiores. Aqueles são sentidos da percepção (superficial); estes, da fruição (ingestão no mais íntimo). - A náusea, estímulo de se libertar do ingerido pelo caminho mais curto do esôfago (vomitar), foi dada ao homem como uma sensação vital muito forte, porque a ingestão pode ser perigosa ao animal. Mas assim como existe também uma fruição espiritual, que consiste na comunicação dos pensamentos, fruição que, no entanto, a mente acha repugnante quando nos é imposta e não nos é saudável como alimento espiritual (como, por exemplo, a repetição sempre das mesmas ideias pretensamente espirituosas ou divertidas não pode nos ser saudável justamente por essa monotonia), assim também o instinto natural de se livrar dele se chama igualmente, por analogia, náusea, ainda que pertença ao sentido interno. O olfato é como que um paladar à distância, que força os demais a compartilhar a fruição de algo querendo ou não, e por isso esse sentido, contrário à liberdade, é menos sociável que o paladar, onde dentre muitos pratos ou bebidas o convidado pode escolher um de seu agrado, sem obrigar os demais a compartilhar a fruição dele. - A imundície parece despertar náusea não tanto pela repugnância para olho e língua, quanto pela suposta fetidez. Pois a ingestão pelo olfato (nos pulmões) é ainda mais íntima que pelos vasos de absorção da boca ou garganta. Quanto mais intensamente os sentidos se sentem afetados, ainda que o grau de influxo exercido sobre eles permaneça o mesmo, tanto menos eles ensinam. Ou inversamente: para que ensinem muito, precisam ser moderadamente afetados. Quando a luz é mais intensa, nada se vê (distingue), e uma voz de estentor ensurdece (abafa o pensamento). Quanto mais o sentido vital é receptivo a impressões (quanto mais delicado e sensível), tanto mais infeliz é o ser humano; quanto mais receptivo ao sentido orgânico (mais sensitivo) e, inversamente, quanto mais duro para o sentido vital, tanto mais feliz ele é - digo mais feliz, não exatamente melhor moralmente -, pois ele tem mais em seu poder o sentimento de seu bem-estar. A faculdade de sentir pela força do sujeito (sensibilitas sthenica) pode se chamar sensibilidade fina; a faculdade de sentir pela debilidade do sujeito em não poder resistir suficientemente à invasão dos influxos dos sentidos na consciência, isto é, em lhes prestar atenção contra a vontade, pode se chamar suscetibilidade delicada (sensibilitas asthenica). Questões Que órgão de sentido é o mais ingrato e parece ser também o mais dispensável? O do olfato. Não compensa cultivá-la ou sequer refiná-la para fruir dele, pois pode proporcionar mais objetos de asco (principalmente em lugares de muita aglomeração) que de agrado e, para causar prazer, a fruição por meio desse sentido também só pode ser sempre fugaz e passageira. - Mas como condição negativa do bem-estar, para que não se respire um ar nocivo (o vapor dos fornos, a fetidez dos pântanos e cadáveres), ou também não se usem coisas estragadas como alimento, esse sentido não é sem importância. - Exatamente essa mesma importância tem também o segundo sentido de fruição, a saber, o sentido do paladar, mas com a vantagem particular de que fomenta a sociabilidade na fruição, o que o anterior não faz, além de também julgar se os alimentos são proveitosos já na porta de entrada do canal intestinal; pois nessa fruição o proveito está ligado ao agrado como uma predição bastante segura desse último, contanto que a opulência e a gulodice não tenham posto a perder o sentido. - Onde falta apetite aos doentes, isso costuma ser em geral para eles proveitoso tal qual um remédio. - O cheiro das comidas é como que um antegosto, e o faminto é convidado à fruição pelo cheiro dos pratos prediletos, assim como dela se afasta aquele que está satisfeito. Existe um substituto dos sentidos, isto é, um uso de um sentido para substituir outro? Por meio de gestos, isto é, da visão se pode fazer um surdo falar da maneira habitual, desde que tenha podido ouvir um dia; a isso também pertence à observação do movimento de seus lábios, e o mesmo pode Ocorrer pelo sentido do tato, tocando-se os lábios em movimento no escuro. Mas se é surdo de nascença, então o sentido da visão, partindo do movimento dos órgãos da linguagem, precisa converter os sons que se conseguiu obter dele por aprendizado num sentimento do movimento próprio dos músculos da fala, ainda que com isso ele nunca chegue a verdadeiros conceitos, porque os signos de que necessita para isso não são próprios para a universalidade. - A falta de ouvido musical, ainda que o ouvido meramente físico permaneça intacto, porque o ouvido pode ouvir sons, porém não tons, ou seja, um ser humano que possa falar mas não cantar, é uma atrofia difícil de explicar, assim como existem pessoas que podem ver muito bem, mas não distinguir cores, pessoas para as quais todos os objetos aparecem como numa gravura em cobre. A falta ou perda de qual sentido é mais grave, a da audição ou a da visão? - A primeira, se é de nascença, é dentre todas a menos reparável; mas se só ocorre mais tarde, depois que já se cultivou o uso da visão, quer para observar a gesticulação, quer ainda indiretamente pela leitura de uma obra escrita, " então uma tal perda pode ser mal e mal reparada por meio da visão, principalmente num indivíduo abastado. Mas alguém que se tornou surdo na velhice em muito sentirá a falta desse meio de relacionamento, e assim como se veem muitos cegos que são expansivos, sociais e alegres à mesa, assim também alguém que perdeu a audição dificilmente se mostrará em sociedade a não ser como um aborrecido, desconfiado e insatisfeito. Ele vê na fisionomia de seus companheiros de mesa muitas expressões de afeto, ou ao menos de interesse, e se esfalfa sem êxito para adivinhar a sua significação, estando, pois, condenado à solidão mesmo em meio à sociedade. Dos dois últimos sentidos (que são mais subjetivos que objetivos) ainda faz parte uma receptividade para certos objetos de sensações externas de um tipo especial, que são meramente subjetivos e atuam sobre os órgãos do olfato e do paladar por meio de um estímulo que não é nem cheiro nem sabor, mas é sentido como a influência como desopilantes específicos de certos sais fixos que estimulam os órgãos; por isso, tais objetos não serão propriamente fruídos nem recebidos intimamente nos órgãos, mas devem apenas tocá-los e ser retirados em seguida, porém, exatamente por isso, poderão ser usados sem saciedade durante o dia inteiro (excetuadas as horas de comer e dormir). - O material mais comum dessa receptividade é o tabaco, inalado ou colocado entre as laterais e o céu da boca, como estímulo à expectoração, ou fumado com cachimbo, como a mulher espanhola de Lima o faz com um cigarro aceso. Em vez de tabaco, os mal aios se servem, no último caso, da noz da areca enrolada numa folha de bétele (areca de bétele), que produz exatamente o mesmo efeito. - Abstraindo-se da utilidade ou do dano medicinal que a secreção de líquido pode causar em ambos os órgãos, essa avidez (pica), como mera excitação do sentimento sensível em geral, é como que um impulso frequentemente repetido para recobrar a atenção sobre o próprio estado de pensamento, que, do contrário, se entorpeceria ou se aborreceria com a uniformidade e monotonia, enquanto aqueles meios sempre os despertam como que aos solavancos. Essa espécie de entretenimento do ser humano consigo mesmo substitui uma companhia, pois preenche, no lugar da conversa, o vazio do tempo com sensações sempre novas e com excitações fugazes, mas sempre renovadas. Do sentido interno O sentido interno não é a pura apercepção, uma consciência do que o ser humano faz, pois esta pertence à faculdade de pensar, mas do que ele sofre quando é afetado pelo jogo de seus próprios pensamentos. Seu fundamento está na intuição interna, por conseguinte, na relação das representações no tempo (tais que nele sejam simultâneas ou sucessivas). As suas percepções e a experiência interna (verdadeira ou aparente) composta pela ligação entre elas não são meramente antropológicas, a saber, onde se desconsidera se o homem tem ou não uma alma (como substância incorpórea particular), mas psicológicas, onde se acredita perceber em si tal alma, e a mente, representada como mera faculdade de sentir e de pensar, é considerada como substância particular que habita o ser humano. - Há então somente um sentido interno, porque não são diversos os órgãos por meio dos quais o ser humano sente interiormente a si mesmo, e poder-se-ia dizer que a alma é o órgão do sentido interno, do qual se afirma que está sujeito também a ilusões, que consistem em que o ser humano toma os fenômenos desse sentido por fenômenos externos, isto é, ficções por sensações ou as tem até mesmo por inspirações de que outro ser é a causa, ser, porém, que não é objeto do sentido externo: então a ilusão é desvario ou também sonho de visionário, e ambos, engano do sentido interno. Em ambos os casos a enfermidade do espírito é a propensão a tomar o jogo das representações do sentido interno por um conhecimento empírico, quando é só uma ficção, e também a se entreter frequentemente com um estado de ânimo artificial, talvez porque seja considerado saudável e elevado acima da baixeza das representações sensíveis, e a enganar a si mesmo com intuições forjadas conforme aquele estado (sonhar acordado). - Pois pouco a pouco o homem toma aquilo que ele mesmo introduziu de propósito na mente por algo que já fora posto antes nela, e crê ter apenas descoberto nas profundezas de sua alma o que ele mesmo havia se imposto. Foi assim com as exaltadas e excitantes sensações internas de uma Bourignon, ou as exaltadas e assustadoras de um Pascal. Essa perturbação da mente não pode ser convenientemente eliminada por representações racionais (pois que podem estas contra supostas intuições?). A propensão ao ensimesmamento, junto com as ilusões do sentido interno que dela decorrem, só pode ser corrigida se o ser humano é reconduzido ao mundo exterior e, com isso, à ordem das coisas que se apresentam aos sentidos externos. Das causas do aumento ou diminuição das impressões sensíveis quanto ao grau As sensações são ampliadas quanto ao grau pelo: I) contraste, 2) novidade, 3) mudança, 4) desenvolvimento. Contraste Contrastar (contraste) é a justaposição, sob um mesmo conceito, de representações sensíveis que se repugnam mutuamente, justaposição esta que desperta a atenção. É algo diferente da contradição, que consiste na ligação de conceitos que conflitam um com o outro. - Um terreno bem cultivado num deserto faz ressaltar a representação do primeiro pelo mero contraste, como as supostas paragens paradisíacas nos arredores de Damasco, na Síria. - Ver o tumulto e o brilho de uma corte ou mesmo apenas de uma grande cidade, ao lado da vida silenciosa, simples e sempre satisfeita do camponês; encontrar, sob um teto de palha, uma casa com aposentos confortáveis e cheios de gosto: isso aviva a representação e nela nos detemos com prazer, porque com isso os sentidos são fortalecidos. - Ao contrário, a pobreza e a altivez, os adereços ostentosos de uma dama que cintila de tantos brilhantes, mas cuja roupa é suja; ou, como outrora na casa de um magnata polonês, mesas fartas e numerosos serviçais, mas com sapatos de ráfia, são coisas que não estão em contraste, mas em contradição, e uma representação sensível anula ou enfraquece a outra, porque quer unir sob um mesmo conceito aquilo que é oposto, o que é impossível. - Pode-se, porém, estabelecer comicamente um contraste e expor uma contradição aparente em tom de verdade ou algo manifestamente desprezível na linguagem do elogio, para tornar mais sensível ainda o absurdo, como Fielding em seu fonathan Wild, o Grande, ou Blummauer em seu Virgílio travestido; ou, por exemplo, parodiar alegremente e com utilidade um romance que aflige o coração, como Clarissa, e assim fortalecer os sentidos, porque se libertam do conflito em que são enredados por conceitos falsos e nocivos. Novidade A atenção é vivificada por aquilo que é novo, de que também faz parte o raro e o que estava oculto. Pois o novo é uma aquisição; logo, a representação sensível ganha com ele mais intensidade. O costumeiro ou o habitual a apaga. Não se deve, porém, entender por novo a descoberta, contato ou exposição pública de uma peça da antiguidade, onde se apresenta algo que, pelo curso natural das coisas, se deveria supor a muito destruído pelo poder do tempo. Sentar-se numa parte dos muros de um teatro romano antigo (em Verona ou em Nimes); ter nas mãos um utensílio daquele povo, proveniente da velha Herculano descoberta sob a lava depois de muitos séculos; poder mostrar uma moeda dos reis da Macedônia ou um camafeu da escultura antiga etc., desperta a maior atenção nos sentidos do conhecedor. A propensão a adquirir um conhecimento meramente por sua novidade, raridade ou ocultamento se chama curiosidade. Jogando apenas com representações e sem interesse em seu objeto, essa inclinação não é censurável, desde que não tenha a intenção de espiar o que só interessa propriamente a outros. - No que se refere à mera impressão sensível, cada manhã torna, simplesmente pela novidade de suas sensações, todas as representações dos sentidos (se estes não estão enfermos) mais claras e vivas do que costumam ser à noite. A troca A monotonia (completa uniformidade nas sensações) causa por fim a atonia delas (extenuação da atenção sobre seu estado), e a sensação é enfraquecida. A variação a refresca, assim como um sermão lido num mesmo tom, aos gritos ou em voz moderada, mas uniforme, faz dormir a comunidade inteira. - O trabalho e o descanso, a vida da cidade e a do campo; nas relações, a conversa e o jogo; na solidão, a distração ora com a história ora com a poesia, ora com a filosofia ora com a matemática, fortalecem o espírito. - É exatamente a mesma força vital que excita a consciência das sensações, mas os diversos órgãos dela se revezam em sua atividade. Assim, é mais fácil conversar um longo tempo ao caminhar, porque um músculo (da perna) alterna com o outro no repouso, do que permanecer rigidamente num mesmo local, onde um músculo tem de atuar sem descanso por certo tempo. - Por isso viajar é tão atraente, sendo apenas lamentável que nas pessoas ociosas deixe um vazio (a atonia), como consequência da monotonia da vida doméstica. A natureza mesma ordenou que a dor se introduza inopinadamente entre sensações agradáveis e que entretêm o sentido, e, assim, torne a vida interessante. Mas é despropósito introduzir intencionalmente nela a dor em vista da variação e se ferir; é despropósito deixar-se despertar para realmente sentir o renovado adormecer ou fazer como um editor do romance de Fielding (As aventuras de Tom fones), que, depois da morte do autor, inseriu ainda uma última parte nele a fim de introduzir, para efeito de variação, também ciúme no casamento (com o qual se encerrava a história), porque o agravamento de um estado não é o aumento do interesse que os sentidos têm por ele, nem mesmo numa tragédia. Pois conclusão não é variação. Desenvolvimento até a perfeição Uma série contínua de representações sensíveis sucessivas e diferentes segundo o grau tem, se a seguinte é sempre mais forte que a anterior, um extremo de tensão (intensio): aproximar-se dele é estimulante, ultrapassá-lo, relaxante (remissio). No ponto, porém, que separa ambos estados está a acabamento (maximum) da sensação, que tem por consequência a insensibilidade, portanto, a falta de vida. Se se quer manter viva a faculdade de sentir, não se deve começar pelas sensações fortes (pois estas nos fazem insensíveis para as seguintes), mas de preferência privar-se delas no início e administrá-las com parcimônia para poder ascender cada vez mais alto. O pregador começa, na introdução, com uma fria instrução do entendimento, que induz a tomar em consideração o conceito de um dever; insere então um interesse moral nas divisões de seu texto e termina, na aplicação, movendo todos os móbiles da alma humana mediante as sensações que podem dar ênfase àquele interesse. Jovem homem! Evita a saciedade (da diversão, do excesso, do amor e semelhantes), se não com o propósito estoico de se abster completamente dela, ao menos com o fino propósito epicurista de ter a perspectiva de uma fruição sempre crescente. Essa parcimônia com o pecúlio de teu sentimento vital te fará realmente mais rico pelo retardamento do prazer, ainda quando no fim de tua vida devas ter renunciado em grande parte ao uso dele. A consciência de ter a fruição em seu poder é, como tudo o que é ideal, mais fecunda e muito mais ampla que toda satisfação dos sentidos porque esta é ao mesmo tempo consumida e, assim, subtraída à massa do todo. Da inibição, enfraquecimento e perda total da faculdade de sentir. A faculdade de sentir pode se enfraquecer, inibir ou suprimir totalmente. Daí os estados da embriaguez, do sono, do desmaio, da morte aparente (asfixia) e da morte real. A embriaguez é o estado antinatural de incapacidade de ordenar suas representações sensíveis conforme as leis da experiência, se é efeito de uma bebida ingerida em excesso. O sono é, pela definição da palavra, o estado de incapacidade, em um ser humano saudável, de poder se tornar consciente das representações pelos sentidos externos. Encontrar a definição real dele cabe aos fisiologistas - aos quais compete esclarecer, se puderem, esse relaxamento que é ao mesmo tempo uma recuperação de forças para a renovação da sensação externa (mediante o qual o homem se vê no mundo igual a um recém-nascido e durante o qual transcorre, inconscientemente e sem pesar, um terço de nosso tempo de vida). O estado antinatural de atordoamento dos órgãos dos sentidos que tenha por consequência um grau menor de atenção sobre si mesmo que no estado natural, é um análogo da embriaguez: por isso, se chama de entorpecido a alguém que é despertado rapidamente de um sono profundo. - Ele ainda não está em sua plena consciência. - Mas também em vigília a súbita dificuldade de alguém em ter clareza sobre o que deve fazer num caso imprevisto, produz, como inibição do uso regular e habitual de sua faculdade de refletir, uma paralisação no jogo das representações sensíveis, como quando se diz: ele perdeu a calma, está fora de si (de prazer ou de medo), está perplexo, estupefato, desconcertado, perdeu o tramontana etc.; (Tramontano ou Tramontana se denomina a Estrela do Norte, e perdere la tramontana, perder o norte (como estrela-guia dos navegantes), significa perder a calma, não saber se encontrar. Nota do Autor) e esse estado deve ser considerado como um sono momentâneo, onde se necessita recobrar suas sensações. No afeto violento, súbito (de terror, de ira, mas também de alegria) o ser humano está, como se diz, fora de si (num êxtase, se crê estar às voltas com uma intuição que não é a dos sentidos), não é dono de si e está por alguns instantes como que tolhido do uso dos sentidos externos. O desfalecimento que costuma seguir uma vertigem (mudança de muitas sensações heterogêneas, que gira como um turbilhão e sobrepuja a capacidade de apreensão) é um prelúdio da morte. A inibição total dessas sensações em geral é a asfixia ou morte aparente, que, até onde se pode perceber exteriormente, só pode se distinguir da morte verdadeira pelo resultado (como nos afogados, nos enforcados e nos que se asfixiam com fumaça). Nenhum ser humano pode experimentar morrer em si mesmo (pois para fazer uma experiência é necessário a vida), mas só pode perceber isso em outros. Que morrer seja doloroso, isso não se pode julgar pela agonia ou convulsões do moribundo; antes parece ser uma mera reação mecânica da força vital e talvez uma suave sensação de se tornar pouco a pouco livre de toda dor. - O medo natural de todos os homens à morte, mesmo dos mais infelizes e também do mais sábio, não é, portanto, um horror à morte, e sim, como diz corretamente Montaigne, medo à ideia de ter morrido (isto é, de estar morto); medo que, por conseguinte, o candidato à morte supõe ter mesmo depois de morrer, pois pensa o cadáver, que não mais é ele mesmo, como sendo ele mesmo numa cova escura ou em outra parte qualquer. - Essa ilusão não pode ser destruída, pois está na natureza do pensamento, como uma fala de si para si mesmo. O pensamento: eu não sou, não pode existir; pois se não sou, tampouco posso me tornar consciente de que não sou. Posso certamente dizer que não sou saudável e pensar semelhantes predicados negando-os acerca de mim mesmo (como ocorre em todos os verbos); mas, falando em primeira pessoa, negar o sujeito mesmo, pelo que então este aniquila a si mesmo, é uma contradição. Da imaginação A imaginação (facultas imaginandi), como faculdade de intuições mesmo sem a presença do objeto, é ou produtiva, isto é, uma faculdade de exposição original do objeto (exhibitio originaria), que, por conseguinte, antecede a experiência, ou reprodutiva, uma faculdade de exposição derivada (exhibitio derivativa) que traz de volta ao espírito uma intuição empírica que já se possuía anteriormente. - As intuições puras do espaço e do tempo pertencem à primeira exposição, todas as restantes supõem uma intuição empírica, que, quando se une ao conceito do objeto e se torna, pois, conhecimento empírico, se chama experiência. - A imaginação, quando produz involuntariamente ficções, se chama fantasia. Aquele que está habituado a tomar essas ficções por experiências (internas ou externas) é um fantasista. - Ser, no sono (num estado saudável), um jogo involuntário de suas ficções, se chama sonhar. A imaginação é (noutras palavras) ou poética (produtiva), ou meramente evocativa (reprodutiva). No entanto, precisamente por isso a imaginação produtiva não é criadora, pois não é capaz de produzir uma representação sensível que nunca foi dada a nossa faculdade de sentir, mas sempre se pode mostrar qual é a sua matéria. Jamais se poderá tornar a sensação do vermelho apreensível a quem nunca o viu entre as sete cores, mas nenhuma das demais poderá ser apreensível ao cego de nascença, nem sequer a cor intermediária produzida pela mistura de outras duas, por exemplo, o verde. Amarelo e azul misturados dão o verde, mas a imaginação não produziria a menor representação dessa cor sem tê-los visto misturados. O mesmo acontece com cada um dos demais cinco sentidos, a saber, que as sensações não podem resultar da composição que a imaginação faz a partir deles, mas têm de ser retiradas originariamente da faculdade de sentir. Houve pessoas que não tinham em sua faculdade de ver maior provisão para a representação da luz que branco ou preto, e para elas, ainda que pudessem ver bem, o mundo visível aparecia apenas como uma gravura em cobre. Do mesmo modo existem mais pessoas do que se acredita dotadas de bom ouvido, e mesmo de ouvido extremamente fino, mas pura e simplesmente não musical, e cujo sentido é totalmente insensível para os tons, não meramente para reproduzi-l os (para cantar), mas também apenas para diferenciá-los do simples ruído. - O mesmo se passa com as representações do paladar e do olfato, a saber, que para várias sensações específicas dessas matérias de fruição falta o sentido, e um crê entender o outro sobre isso, enquanto as sensações de um não são diferentes das do outro apenas em grau, mas especificamente diferentes. - Existem pessoas a quem falta totalmente o sentido do olfato, as quais tomam por odor a sensação de ar puro entrando pelas narinas, e por isso não podem entender nada de todas as descrições feitas a respeito desse modo de sentir; onde porém falta o olfato, há também muita falta de paladar, e é trabalho vão ensiná-lo e transmiti-lo onde ele não existe. Mas a fome e sua satisfação (a saciedade) são totalmente distintas do paladar. Assim, ainda que seja uma tão grande artista, e mesmo mágica, a imaginação não é criadora, mas precisa retirar dos sentidos a matéria para suas criações. Estas, porém, não são, segundo as considerações que acabam de ser feitas, tão universalmente comunicáveis quanto os conceitos do entendimento. Às vezes, a receptividade a representações da imaginação na comunicação também é chamada (ainda que só impropriamente) de senso, e se diz: esse homem não tem senso para isso, ainda que não seja uma incapacidade do sentido, mas em parte uma incapacidade do entendimento em apreender as representações comunicadas e uni-las no pensamento. Ele não pensa nada ao dizer isso e os outros, por isso, também não o compreendem. Ele diz contrassenso (nonsense), erro distinto da falta de sentido, onde se juntam ideias de tal modo que outro não sabe o que deve fazer com elas. - Que a palavra "sentido" (mas só no singular) seja com frequência usada no lugar de pensamento, e deva inclusive designar ainda um nível mais alto que o do pensar; que se diga de uma sentença: nela há um sentido mais rico ou mais profundo (daí a palavra Sinnspruch “máxima”), e que o entendimento humano sadio também seja chamado de senso comum e seja alçado ao mais alto, ainda que essa última expressão só designe propriamente o nível mais baixo da faculdade de conhecer, isso se baseia no seguinte: a imaginação, que fornece a matéria ao entendimento para proporcionar a seus conceitos um conteúdo (para o conhecimento), parece lhes proporcionar realidade em virtude da analogia entre suas intuições (fictícias) e as percepções reais. Existe um meio físico de excitar ou abrandar a imaginação, (Passo por alto aqui o que é não meio para um propósito, mas consequência natural da situação em que alguém vem a se encontrar e em virtude da qual sua mera imaginação o faz perder o próprio domínio. A esta classe pertencem a vertigem que se sente ao olhar da borda de um alto declive (em rigor basta uma ponte estreita sem parapeito) e o enjoo do mar. - A tábua que a pessoa que se sente frágil pisa não lhe infundiria nenhum temor se estivesse em terra; mas se está colocada como passarela sobre um abismo profundo, o pensamento da mera possibilidade de pisar em falso é tão forte que o homem corre realmente perigo em seu intento. - O enjoo do mar (do qual eu mesmo tive uma experiência numa viagem de Pillau a Kônigsberg, se é que se pode mesmo denominar esta uma viagem marítima), me veio, segundo creio ter observado, com sua ânsia de vômito, meramente pela visão: pois, com a oscilação do navio, ao olhar do camarote me vinha aos olhos ora a enseada, ora o topo do Balga, e o baixar e subir alternados estimulou, por meio da imaginação, um movimento antiperistáltico das vísceras através dos músculos do abdome. Nota do Autor.) que é o uso de estimulantes, dos quais alguns, como venenos, debilitam a força vital (certos cogumelos, o porsch, o acanto selvagem, o chica dos peruanos, o ava dos índios do Pacífico, o ópio); outros a fortificam ou, ao menos, elevam o sentimento dela (como as bebidas fermentadas, o vinho e a cerveja ou a essência espiritual delas, a aguardente), mas todas são artificiais e antinaturais. Aquele que os ingere em demasia e se toma um longo tempo incapaz de ordenar as representações sensíveis conforme as leis da experiência, se chama bêbado ou embriagado; e colocar-se voluntária ou intencionalmente nesse estado, se chama embriagar-se. Todos esses meios devem servir para fazer o homem esquecer o peso que originalmente parece estar contido na vida em geral. - Essa inclinação muito propagada e sua influência sobre o uso do entendimento merecem ser tomadas em consideração, principalmente numa antropologia pragmática. Toda embriaguez silenciosa, isto é, aquela que não vivifica a sociabilidade e a comunicação mútua de pensamentos, tem em si algo de abjeto; tal é a embriaguez do ópio e a da aguardente. Vinho e cerveja, dos quais o primeiro é meramente excitante, a segunda mais nutritiva e saciadora como uma refeição, servem à embriaguez sociável, com a diferença, todavia, de que as bebedeiras de cerveja são mais sonhadoras e fechadas, frequentemente também rudes, mas as de vinho, alegres, ruidosas, falantes e entre meadas de gracejos. O descomedimento, quando se bebe socialmente, até a ofuscação dos sentidos é certamente um mau costume do homem não apenas com respeito aos companheiros com que se entretém, mas também com respeito à autoestima, quando o deixa cambaleando, com passo inseguro ou apenas balbuciando. Entretanto, também se pode alegar muita coisa para amenizar o juízo sobre tal descuido, porque se pode facilmente não ver e ultrapassar a linha-limite do autodomínio, já que o anfitrião, por um gesto de sociabilidade, quer que o convidado vá para casa plenamente satisfeito (ut conviva satur). A despreocupação e, com ela, a imprudência provocadas pela embriaguez são um sentimento ilusório de aumento da força vital; o embriagado não sente os obstáculos da vida, em cuja superação a natureza se ocupa permanentemente (no que consiste a saúde), e é feliz em sua debilidade, pois a natureza realmente nele se esforça para restabelecer gradualmente a sua vida mediante um aumento sucessivo de suas forças. - As mulheres, os eclesiásticos e os judeus habitualmente não se embriagam, ao menos evitam cuidadosamente toda aparência de embriaguez, porque são fracos em sua cidadania e têm necessidade de compostura (para o qual se exige inteiramente sobriedade). Pois seu valor externo consiste meramente na crença dos outros em sua castidade, devoção e legitimidade separatista. Pois, no que se refere ao último aspecto, como homens especiais e presumivelmente escolhidos, todos os separatistas, isto é, aqueles que não se submetem apenas à lei pública de um país, mas a uma lei especial (de uma seita), estão particularmente expostos à atenção da coletividade e ao rigor da crítica; também não podem, portanto, afrouxar a atenção sobre si mesmos, e por isso a embriaguez, que suprime esse cuidado, é para eles um escândalo. De Catão disse seu admirador estoico: "Sua virtude se robustecia com o vinho (virtus eius incaluit mero)"; e dos alemães antigos disse um moderno: "Faziam suas deliberações (para decidir sobre uma guerra) bebendo, para não perder a severidade, e refletiam sóbrios sobre elas, para não perder o entendimento". A bebida solta a língua (in vino disertus). - Mas ela também abre o coração e é o veículo material de uma qualidade moral, a saber, a franqueza. - Conter os próprios pensamentos é, para um coração puro, um estado opressivo, e bebedores alegres também não toleram facilmente que alguém seja muito moderado num banquete: porque ele representa um observador que repara nos erros dos demais, mas resguarda os seus próprios. Também Hume diz: "É desagradável o companheiro que não esquece; as tolices de um dia devem ser esquecidas para dar lugar às do outro". Nessa permissão que o homem tem para a alegria social, para transgredir um pouco e por curto tempo a linha-limite da sobriedade, se pressupõe uma boa índole; a política em voga há meio século, quando as cortes nórdicas enviavam embaixadores que podiam beber muito sem se embriagar, mas embriagavam os outros para investigá-los ou persuadi-los, era uma política insidiosa, mas desapareceu junto com a rudeza dos costumes daquele tempo antigo, e uma epístola alertando contra esse vício pode ser agora supérflua no que concerne aos estamentos cultivados. Pode-se investigar o temperamento do homem que se embriaga ou seu caráter enquanto bebe? Não o creio. Um novo líquido é misturado aos humores que circulam nas veias e um novo estímulo aos nervos, que não faz descobrir mais nitidamente a temperatura natural, mas introduz outra. - Por isso, entre os que se embriagam um se tornará enamorado, outro fanfarrão, o terceiro embirrento, o quarto (principalmente com a cerveja) se mostrará meigo ou devoto, ou absolutamente mudo; mas, quando a embriaguez passar e se lhes lembrarem os seus discursos da noite anterior, todos rirão dessa estranha disposição ou indisposição de seus sentidos. A originalidade (produção não imitada) da imaginação, se concorda com os conceitos, chama-se gênio; se não concorda, desvario. - É digno de nota que não possamos pensar como adequada para um ser racional outra figura que a de um ser humano. Qualquer outra seria, no máximo, um símbolo de certa característica do ser humano - por exemplo, a serpente como imagem da astúcia maliciosa -, mas não representaria o ser racional mesmo. Assim, povoamos todos os demais corpos celestes em nossa imaginação com puras formas humanas, ainda que provavelmente eles, segundo a diversidade do solo que os sustenta e nutre e dos elementos de que estão compostos, possam ser constituídos de formas muito diferentes. Todas as demais figuras que queiramos lhes dar são caricaturas. (Daí que a Santíssima Trindade, um velho, um jovem e uma ave (a pomba), tenham de ser representados, não como figuras reais, semelhantes a seus objetos, mas apenas como símbolos. As expressões figuradas "Queda" e "Subida aos Céus" significam exatamente isso. Para emprestar uma intuição a nossos conceitos de entes racionais, não podemos proceder de outro modo a não ser antropomorfizando-os; mas é um infortúnio ou uma ingenuidade, se a representação simbólica se eleva a conceito de coisa em si mesma. Nota do Autor.) Quando a falta de um sentido (por exemplo, a visão) é de nascença, o indivíduo dele privado cultiva, segundo a possibilidade, outro sentido, que se torna vicário daquele, e exercita em grande medida a imaginação produtiva, pois procura apreender as formas dos corpos exteriores pelo tato ou, se este não é suficiente devido ao tamanho do objeto (por exemplo, de uma casa), procura apreender a sua amplitude por meio de outro sentido, por exemplo, da audição, a saber, pela ressonância da voz num cômodo; mas, por fim, se uma operação bem sucedida desimpede o órgão para a sensação, ele tem primeiro de aprender a ver e a ouvir, isto é, procurar subsumir suas percepções aos conceitos de tal espécie de objetos. Conceitos de objetos induzem com frequência a atribuir-lhes involuntariamente uma imagem criada espontaneamente (por meio da imaginação produtiva). Quando se lê ou se deixa relatar a vida, as ações de um grande homem reconhecido por seu talento, mérito ou posição, incorre-se comumente no erro de atribuir a ele, na imaginação, uma estatura considerável e, em contrapartida, a outro, de caráter fino e suave segundo a descrição, uma figura pequena e dócil. Não apenas o camponês, mas também um conhecedor suficiente do mundo sente estranheza se o herói que ele imaginava segundo as ações relatadas se revela um homenzinho, ou se, ao contrário, lhe dizem que o fino e suave Hume é um homem atarracado. - Não se deve, por isso, levar muito longe a expectativa sobre algo, porque a imaginação é naturalmente inclinada a aumentar ao extremo as coisas; pois a realidade é sempre mais limitada que a ideia que serve de modelo a sua construção. - Não é aconselhável fazer muitos elogios antecipados a uma pessoa que se queira introduzir pela primeira vez numa sociedade; isso, pelo contrário, pode ser frequentemente uma peçazinha maliciosa de que o folgazão se serve para ridicularizá-la. Pois a imaginação eleva tão alto a representação do que é esperado, que, em comparação com a ideia prévia, a referida pessoa não pode sair senão perdendo. Precisamente isso ocorre quando se anuncia com elogio exagerado uma obra, um drama ou algo que faça parte do refinamento social, pois, quando for apresentado, só terá a decair. Ao assistir a uma representação teatral, a impressão se enfraquece se já se leu a obra, mesmo se tratando de uma boa peça. - Mas se o que se elogiou antes é o contrário exato daquilo que ansiosamente se espera, o objeto exibido, se não é nocivo, provoca as maiores gargalhadas. Figuras cambiantes postas em movimento, que não tenham por si propriamente significado que possa chamar a atenção - tais como o bruxuleio da fumaça de uma chaminé ou os diversos rodopios e o borbulhamento de um riacho correndo sobre pedras -, entretêm a imaginação com uma porção de representações de espécie totalmente diferente (que as da visão), o que a faz jogar em espírito e afundar-se em reflexão. Mesmo a música pode colocar um poeta ou um filósofo, se não a ouve como entendido, numa disposição na qual pode apreender ou mesmo ter em seu poder ideias sobre os objetos de sua ocupação ou dileção que não teria captado com tanto êxito se tivesse se fechado sozinho em seu aposento. A causa desse fenômeno parece estar nisto: quando o sentido é distraído de sua atenção a um objeto qualquer mais fortemente perceptível por um diverso que por si só não pode chamar a atenção, isso não somente alivia, mas também vivifica o pensamento, porque ele necessita de uma imaginação persistente e esforçada que forneça matéria para suas representações do entendimento. - O Espectador inglês conta que um advogado se habituara em suas defesas a retirar da bolsa uma linha de costura que incessantemente enrolava e desenrolava em volta do dedo; quando certa feita seu adversário astuto a retirou secretamente da bolsa, ele ficou totalmente em apuros e proferiu tão somente palavras sem sentido, e por isso se dizia: ele perdeu o fio de seu discurso. - O sentido, fixado numa sensação, não deixa (por causa do hábito) que se dê atenção a outras sensações estranhas, portanto, ele não se distrai; mas a imaginação pode manter-se tanto melhor com isso num curso regular. Da faculdade imaginativa sensível segundo suas distintas espécies Existem três espécies distintas de faculdade imaginativa sensível. Elas são a plástica da intuição no espaço (imaginatio plastica), a associativa da intuição no tempo (imaginatio associans) e a da afinidade, com as representações descendendo umas das outras de uma origem comum (affinitas). Da faculdade imaginativa sensível plástica Antes de o artista poder constituir uma figura corpórea (como que palpável) ele precisa tê-la construído em sua imaginação, e essa figura é então uma ficção que, quando involuntária (como no sonho), se chama fantasia e não pertence ao artista; mas quando regi da pelo arbítrio é denominada composição, invenção. Se o artista trabalha com imagens semelhantes às obras da natureza, seus produtos se chamam naturais; mas se constrói segundo imagens que não podem se apresentar na experiência, então os objetos assim formados (como os do príncipe Pai agonia na Sicília) são denominados excêntricos, antinaturais, figuras monstruosas, e tais achados são como imagens de sonho de alguém acordado (velut aegri somnia vanae finguntur species). - Jogamos frequente e prazerosamente com a imaginação, mas a imaginação (como fantasia) também joga tão frequente e às vezes muito inoportunamente conosco. O jogo que a fantasia joga com o homem dormindo é o sonho, e também se dá em estado saudável; revela, ao contrário, um estado doentio se ocorre quando está acordado. - O sono, como relaxamento de toda faculdade de percepção externa e principalmente de movimentos voluntários, parece necessário a todos os animais, mesmo as plantas (segundo a analogia destas últimas com os primeiros), para recobrar as forças utilizadas quando se está acordado; mas isso mesmo parece ser também o que ocorre com os sonhos, de modo que, se no sono a força vital não fosse mantida ativa por sonhos, ela teria de se extinguir e o sono mais profundo implicaria simultaneamente morte. - Quando se diz ter tido um sono pesado, sem sonhos, isso nada mais é que não se recordar destes ao despertar; o que pode ocorrer também a alguém acordado, caso as imagens mudem rapidamente, a saber, quando está distraído e, à pergunta sobre o que está pensando agora com o olhar momentaneamente fixo num mesmo ponto, ele responde: "eu não estava pensando em nada". Não sei se não presumiríamos viver em dois mundos distintos se ao despertar não houvesse muitas lacunas em nossas lembranças (representações intermediárias de ligação que são passadas por alto por falta de atenção), se começássemos a sonhar novamente na noite seguinte a partir de onde deixamos de sonhar na noite anterior. - Sonhar é uma sábia disposição da natureza para estímulo da força vital, mediante afetos que são relativos a acontecimentos involuntariamente imaginados, quando os movimentos do corpo baseado no arbítrio, a saber, os movimentos dos músculos, estão suspensos. - Apenas não se devem considerar as histórias do sonho como revelações de um mundo invisível. Da faculdade imaginativa sensível associativa A lei de associação é: representações empíricas que sucederam frequentemente umas às outras provocam no espírito um hábito de fazer com que, tão logo uma seja produzida, surja também a outra. - É inútil exigir uma explicação fisiológica para isso; também se pode fazer uso de qualquer hipótese que se queira para explicá-lo (hipótese que, por sua vez, é ela mesma uma ficção), como a de Descartes sobre as chamadas ideias materiais no cérebro. Uma explicação dessa espécie ao menos não é pragmática, isto é, não se pode usá-la para o exercício da arte, porque não temos conhecimento do cérebro e dos lugares nele onde os vestígios das impressões de representações possam entrar simpateticamente em harmonia uns com os outros, ao se afetarem, por assim dizer, (ao menos indiretamente) uns aos outros. Várias vezes essa vizinhança é muito grande, e frequentemente a imaginação passa do centésimo ao milésimo tão rapidamente, que parece que certos elos intermediários da cadeia de representações teriam sido pulados, embora só não se tenha tido consciência deles, tanto que muitas vezes é preciso perguntar a si mesmo: onde eu estava, de onde havia partido em minha conversa e como cheguei a esse ponto final? (Por isso, quem começa um discurso social deve iniciar pelo que lhe está próximo e presente e conduzir paulatinamente ao que está mais longe, à medida que possa interessar. O mau tempo é nisso uma boa e habitual ajuda para quem chega da rua a uma reunião social de entretenimento recíproco. Pois começar, por exemplo, pelas notícias da Turquia que estão nos jornais, quando se entra no recinto, faz violência à imaginação dos demais, que não veem o que levou a fazer menção a elas. O espírito requer em toda comunicação dos pensamentos certa ordem, onde são muito importantes as ideias introdutórias e o começo, tanto no discurso quanto numa prédica. Nota do Autor.) A faculdade imaginativa sensível da afinidade Entendo por afinidade a unificação que faz o diverso derivar de um fundamento. - Numa conversa social, ir de um tema a outro totalmente heterogêneo, para o qual se é induzido pela associação empírica das representações, cujo fundamento é meramente subjetivo (isto é, em um as representações são associadas de maneira diferente das do outro), é uma espécie de desatino segundo a forma, que interrompe e destrói toda conversação. - Só quando um tema foi esgotado e sobrevém uma pequena pausa, alguém pode iniciar outro que seja interessante. A imaginação vagando desregradamente confunde a mente pela alternância das representações, que a nada estão objetivamente ligadas, de maneira que quem sai de uma companhia dessa espécie se sentirá como se tivesse sonhado. - É preciso que sempre haja um tema, tanto quanto se pensa em silêncio quanto na comunicação dos pensamentos, ao qual se prende o diverso, portanto, também o entendimento precisa ser ativo nisso; mas o jogo da imaginação segue aqui as leis da sensibilidade, que proporciona a matéria a ele, e sua associação se faz sem consciência das regras e, todavia, conforme a elas, logo, conforme o entendimento, se bem que não como derivada do entendimento. A palavra afinidade (affinitas) faz lembrar aqui uma ação recíproca tirada da química, análoga a esse vínculo intelectual, de duas matérias especificamente diferentes, corpóreas, interagindo intimamente entre si e tentando alcançar uma unidade, onde essa união causa um terceiro, que tem propriedades que só podem ser produzidas pela união das duas substâncias heterogêneas. Em sua heterogeneidade, entendimento e sensibilidade se irmanam por si mesmos para a realização de nosso conhecimento, como se um tivesse sua origem no outro, ou ambos em um tronco comum, embora isso não possa ser assim, ao menos é para nós inconcebível como o heterogêneo pode nascer de uma e mesma raiz. (As duas primeiras espécies de composição das representações poderiam ser denominadas matemáticas (da amplificação); mas a terceira, dinâmica (da produção), por meio da qual surge uma coisa inteiramente nova (algo como o sal amargo na química). O jogo das forças, tanto na natureza inerte quanto na viva, tanto na alma quanto no corpo, repousa em decomposições e combinações de heterogêneos. Chegamos, sem dúvida, ao conhecimento deles pela experiência de seus efeitos; mas a causa suprema e os elementos simples em que sua matéria pode ser dissolvida são inacessíveis para nós. - O que, com efeito, pode ser a causa de que todos os seres orgânicos que conhecemos reproduzam sua espécie tão só mediante a união de dois sexos (que se denominam então masculino e feminino)? Não se pode admitir que o Criador tenha como que apenas jogado com extravagância e só para produzir em nosso globo terrestre um arranjo que lhe agradasse; parece, ao contrário, ser impossível a reprodução de criaturas orgânicas da matéria de nossa terra, sem o estabelecimento de dois sexos para isso. - - Em que obscuridade não se perde a razão humana, ao intentar descobrir aqui a origem ou tão- só adivinhá-la? Nota do Autor.) A imaginação não é, entretanto, tão criadora quanto se afirma. Não podemos pensar como adequada para um ser racional outra figura que a de um ser humano. Por isso, o escultor ou o pintor sempre faz um ser humano quando elabora um anjo ou Deus. Qualquer outra figura lhe parece conter partes que, segundo sua ideia, não se deixam unir com a constituição de um ser racional (como asas, garras ou patas). O tamanho, ao contrário, pode ser imaginado por ele com bem entender. A ilusão causada pela força da imaginação do ser humano vai frequentemente tão longe, que acredita ver e sentir fora de si o que só tem no próprio cérebro. Daí a vertigem que acomete a quem olha um abismo, ainda que tenha em torno de si uma superfície suficientemente ampla para não cair ou esteja junto a um parapeito seguro. - Estranho é o temor de alguns doentes mentais quando são tomados de um ímpeto interior de saltar voluntariamente no vazio. - Ver outros fruindo coisas repugnantes (por exemplo, quando os tungues chupam e ingerem a um só tempo o muco das narinas de seus filhos) leva o espectador ao vômito, como se a ele mesmo tivesse sido imposta tal fruição. A saudade dos suíços (e como fiquei sabendo por um general experiente também dos vestefalenses e dos pomerânios de algumas regiões), de que são acometidos quando deslocados a outros países, é o efeito de uma nostalgia suscitada pela evocação de imagens de despreocupação e proximidade social em seus anos de juventude, nostalgia dos lugares em que gozaram as alegrias simples da vida, ao passo que, em visitas posteriores, se acham bem frustrados em suas expectativas e também curados, sem dúvida pensando que tudo se modificou muito, mas de fato porque não podem passar novamente sua juventude ali; nisso é sempre digno de nota que essa saudade acomete mais as pessoas de uma província pobre, mas unida pela irmandade e parentesco, que aqueles que se ocupam em ganhar dinheiro e têm por lema patria ubi bene. Quando anteriormente se ouviu que este ou aquele é má pessoa, se crê poder ler a maldade em seu rosto, e a imaginação, principalmente se acrescida de afeto e paixão, se mistura com a experiência numa só sensação. Segundo Helvetius, uma dama viu através de um telescópio a sombra de dois enamorados na lua; o pároco, que observou por ele em seguida, disse: "Não, senhora, são dois campanários de uma catedral". Pode-se ainda somar a tudo isso os efeitos devidos à simpatia da imaginação. Ver um homem tendo ataques convulsivos ou epilépticos estimula a movimentos espasmódicos semelhantes, assim como o bocejo de outro estimula a que se boceje com ele, e o médico, Sr. Michaelis, menciona que quando no exército na América do Norte um homem entrava numa fúria violenta, dois ou três presentes, ao vê-I o, também se punham subitamente furiosos, mesmo que o ataque fosse apenas passageiro; por isso não é aconselhável que os fracos dos nervos (hipocondríacos) visitem por curiosidade os manicômios. A maior parte deles também os evita por conta própria, pois temem pela própria sanidade mental. - Também se descobrirá que pessoas vivazes, quando alguém lhes conta ter sentido uma afecção, principalmente de ira, fazem caretas ao prestar toda a atenção e entram involuntariamente no jogo das expressões faciais que convêm àquela afecção. - Também se pretende ter observado que cônjuges que se dão bem vão pouco a pouco adquirindo uma semelhança nas feições e explica-se que a causa disso é que se casaram devido a essa semelhança (similis simili gaudet); o que, contudo, é falso. Pois no instinto a natureza impele mais para a diversidade dos sujeitos que devem se apaixonar um pelo outro, a fim de que com isso se desenvolva toda a multiplicidade que colocou em seus germes; mas a intimidade e afeição com que eles, colados um no outro, se olham frequente e longamente nos olhos durante suas conversas privadas, produz fisionomias simpatéticas semelhantes que, quando fixadas, se tornam finalmente traços faciais permanentes. Por último, pode-se incluir nesse jogo involuntário da imaginação produtiva, que então pode ser chamada de fantasia, também a propensão a mentiras ingênuas, que é encontrada sempre em crianças, mas de quando em quando também em adultos de boa índole, por vezes quase como doença hereditária, onde o relato dos acontecimentos e pretensas aventuras nasce da imaginação e cresce como uma bola de neve, sem que se queira tirar outra vantagem a não ser simplesmente se fazer interessante; como o cavalheiro John Falstaff em Shakespeare, que antes de terminar seu relato transforma em cinco pessoas dois homens vestindo roupas de lã. Porque a imaginação é mais rica e fecunda em representações que os sentidos, ela se vivificará mais pela ausência que pela presença do objeto, se sobrevier alguma paixão, se algo ocorrer que reevoque na mente sua representação, a qual durante algum tempo parecia anulada por distorções. - Assim, um príncipe alemão, aliás um guerreiro rude mas homem nobre, para esquecer sua paixão por uma pessoa burguesa que habitava na residência de seu governo, empreendeu uma viagem à Itália, mas em seu regresso, ao ver pela primeira vez a casa dela, sua imaginação foi mais fortemente despertada que se tivesse mantido contato constante, tanto que cedeu sem hesitar à decisão, a qual também correspondeu felizmente à expectativa. - Essa doença, como efeito de uma imaginação poética, é incurável: salvo por meio do casamento. Pois este é verdade (eripitur persona, manet res. Lucret.). A imaginação poética funda uma espécie de convivência com nós mesmos, embora meramente como fenômenos do sentido interno, mas segundo uma analogia com o externo. À noite a vivifica e eleva acima de seu conteúdo real, assim como a lua à noite faz no céu uma grande figura, ela que com o dia claro só é visível como uma insignificante nuvenzinha. Ela se exalta naquele que lucubra no silêncio da noite ou se zanga com o adversário imaginário ou constrói castelos no ar, dando voltas em seu quarto. Mas tudo o que ali lhe parece ser importante, perde toda a importância na manhã seguinte; e com o tempo ele sente as forças da mente diminuírem por esse mau hábito. Por isso, moderar a imaginação deitando-se cedo para poder se levantar cedo novamente é uma regra muito útil da dieta psicológica; mas as jovens e os hipocondríacos (habitualmente o mal deles provém justo disto) preferem a conduta oposta. - Por que tarde da noite ainda se escutam histórias de fantasmas, as quais de manhã logo ao acordar todos consideram insípidas e totalmente inadequadas para o entretenimento, quando ao contrário se pergunta: que há de novo em casa ou na comunidade, ou se prossegue o trabalho do dia anterior? A causa é: o que em si é simples jogo, é adequado ao relaxamento das forças esgotadas durante o dia, mas o que são ocupações é adequado ao ser humano fortificado e como que recém-nascido pelo descanso noturno. Os vícios (vitia) da imaginação são suas ficções simplesmente desenfreadas ou absolutamente desregradas (effrenis aut perversa). Este último erro é o pior. As primeiras ficções bem poderiam encontrar seu lugar num mundo possível (da fábula), as últimas, em absolutamente nenhum, porque se contradizem. - Que as figuras de homens e de animais talhadas em pedra frequentemente encontradas no deserto líbio de Ras-Sem sejam vistas com horror pelos árabes, porque as têm por homens petrificados em virtude de maldição, isso pertence às ficções do primeiro gênero, quer dizer, à imaginação desenfreada. - Mas é uma contradição que as estátuas de animais, segundo a opinião dos mesmos árabes, no dia da ressurreição universal se queixarão com o artista e o repreenderão por tê-las feito sem lhes ter dado uma alma. - A fantasia desenfreada sempre pode se curvar (como a do poeta a quem o cardeal Este perguntou na entrega do livro dedicado a ele: "Mestre Ariosto, de onde, carrasco, retirou todas estas coisas?"); essa fantasia é exuberante por sua riqueza. Mas a desregrada se aproxima da loucura, onde a fantasia joga totalmente com o ser humano, e o infeliz não tem de modo algum em seu poder o curso de suas representações. Aliás, um artista político pode, tão bem quanto um artista estético, reger e dirigir o mundo (mundus vult decipi) por ficções, com as quais ele simula a realidade, por exemplo, a da liberdade do povo (como no Parlamento inglês), ou a da dignidade e a da igualdade (como na Convenção francesa), que consistem em meras fórmulas, mas é melhor estar de posse desse bem enobrecedor da humanidade, mesmo que a título de aparência, do que se sentir manifestamente privado dele. Da faculdade de tornar presente o passado e o futuro por meio da imaginação A faculdade de tornar propositadamente presente o passado é a faculdade de recordar, e a faculdade de representar algo como futuro, a faculdade de prever. Ambas se fundam, enquanto são sensíveis, na associação, com o presente, das representações do estado passado e futuro do sujeito e, embora não sejam percepções elas mesmas, servem para a ligação das percepções no tempo, isto é, para ligar o que já não é com o que ainda não é, através do que é presente, numa experiência concatenada. Chamam-se faculdade de recordar e de adivinhar, de se voltar para trás “Respizienz” e de prever “Prospizienz” (se são permitidas essas expressões), porque se é consciente das próprias representações como seriam encontradas no estado passado ou futuro. Da memória A memória se diferencia da imaginação meramente reprodutiva porque, sendo ela capaz de reproduzir voluntariamente a representação passada, a mente não é um mero jogo desta. A fantasia, isto é, a imaginação criadora, não deve se imiscuir nisso, pois então a memória se tornaria infiel. - Captar logo algo na memória, lembrar-se depois facilmente dele e retê-lo por muito tempo são as perfeições formais da memória. Essas qualidades, porém, raramente estão juntas. Quando alguém acredita ter algo na memória, mas não pode trazê-lo à consciência, diz então que não pôde recordá-lo (mas não se recordar, isso significa tanto quanto perder o sentido). O esforço aqui, quando se empenha em recordar algo, exige muito da mente e é melhor se distrair um momento com outros pensamentos e de tempos em tempos voltar a lançar apenas um olhar ligeiro sobre o objeto; então em geral se apanha de surpresa uma das representações associadas, que o traz de volta. Apreender algo metodicamente na memória (memoriae mandare) se chama memorizar (não estudar, como o homem comum diz do capelão que apenas decora o sermão que deve pronunciar futuramente). - Essa memorização pode ser mecânica, engenhosa ou também judiciosa. A primeira consiste meramente na repetição literal e frequente, por exemplo, no aprendizado da tabuada, onde o aprendiz tem de passar pela série inteira das palavras em sua ordem habitual para chegar àquilo que é procurado; se se pergunta, por exemplo, ao aprendiz: quanto é três vezes sete? Ele chegará, partindo de três vezes três, a vinte e um; mas se se lhe pergunta: quanto é sete vezes três? Não poderá se lembrar logo, mas precisará inverter os números, para colocá-los na ordem habitual. Se o aprendido é uma fórmula solene, no qual nenhuma expressão pode ser alterada, mas, como se diz, deve ser recitada, mesmo as pessoas de melhor memória têm medo de confiar nela (pois o próprio temor poderia induzi-las a erro) e, por isso, consideram necessário lê-la, como fazem também os capelães mais experimentados, porque a menor modificação das palavras seria ridícula. A memorização engenhosa é um método para gravar na memória certas representações pela associação delas com representações secundárias que em si (para o entendimento) não têm parentesco umas com as outras, por exemplo, os sons de uma língua com imagens totalmente heterogêneas que devem corresponder a eles: para apreender algo mais facilmente na memória, o que se faz aí é molestá-la ainda com mais representações secundárias; por conseguinte, este é um método desatinado, como procedimento desregrado da imaginação ao emparelhar, sob um único e mesmo conceito, coisas que não podem estar juntas, e ao mesmo tempo é contradição entre meio e fim, porque se busca facilitar o trabalho da memória, mas de fato ele é dificultado pela associação, que se impinge desnecessariamente a ela, de representações muito díspares. (Assim, uma cartilha ou Bíblia ilustrada ou até uma doutrina das Pandectas representada em imagens é uma caixa óptica de um professor pueril para tornar seus discípulos mais pueris do que eram. Da última pode servir como exemplo um título das Pandectas confiado desta sorte à memória: de herebidus suis et legitimis. A primeira palavra foi tornada sensível por meio de uma caixa com cadeados; a segunda, por meio de uma porca “Sal”, a terceira, por meio das duas tábuas de Moisés. Nota do Autor.) Que pessoas engenhosas raramente tenham uma memória confiável (ingeniosis non admodum fida est memoria), é uma observação esclarecedora desse fenômeno. A memorização judiciosa não é outra coisa que memorizar uma tabela de divisão de um sistema (por exemplo, o de Lineu) em ideias: nela, caso se tenha esquecido algo, é possível se orientar de novo pela enumeração dos elementos que foram preservados; ou também a memorização das seções de um todo tornado visível (por exemplo, as províncias de um país espalhadas ao norte, oeste etc. de um mapa), porque para isso também se necessita do entendimento, e este ajuda, reciprocamente, a imaginação. A memorização judiciosa é sobretudo a tópica, uma divisória para conceitos gerais, denominados lugares-comuns, que facilita a lembrança por meio da divisão em classes, como quando se repartem pelas estantes de uma biblioteca os livros com diferentes etiquetas. Uma arte mnemônica (ars mnemonica) não existe como doutrina geral. Dos artifícios especiais para ela fazem parte as sentenças em verso (versus memoriales), porque o ritmo contém uma cadência silábica regular que é de muito proveito para o mecanismo da memória. - Dos homens de memória prodigiosa, um Pico de Mirandola, Scaligero, Angelus Politanus, Magliabecchi etc., dos polímatas que carregam em suas cabeças, como materiais para as ciências, uma carga de livros para cem camelos, não há que falar desdenhosamente porque talvez não possuam o juízo condizente com o uso adequado da capacidade de selecionar entre todos esses conhecimentos, pois já é mérito suficiente deles ter acumulado bastante matéria bruta, ainda que outras inteligências tenham de vir em seguida para elaborá-la com juízo (tantum scimus, quantum memoria tenemuss). Um dos antigos disse: "A arte de escrever arruinou a memória (em parte a tornou dispensável)". Há algo de verdade nessa frase, pois o homem simples tem geralmente mais presteza em ordenar e rememorar a diversidade que lhe é dada justamente porque aqui a memória é mecânica e nela não se imiscui nenhum raciocínio, enquanto que para o erudito, pela cabeça do qual passam muitas ideias paralelas, escapam por distração muitos de seus encargos ou assuntos domésticos, porque não os considera com suficiente atenção. Mas estar seguro, com o caderno de notas no bolso, de encontrar novamente com toda a exatidão e sem esforço tudo o que se pôs na cabeça para ser aí conservado, é uma grande comodidade, e a arte de escrever permanece sempre uma arte magnífica porque, ainda que não seja usada para comunicar seu saber aos outros, substitui a memória mais extensa e mais fiel, cuja falta pode suprir. Tanto pior, ao contrário, é o mal da falta de memória (obliviositas), em que a cabeça, por mais vezes que se encha, permanece sempre vazia como um barril cheio de furos. Por vezes não se tem culpa nele, como nas pessoas idosas, que podem recordar muito bem os acontecimentos de seus anos de juventude, mas sempre perdem do pensamento o passado próximo. Contudo, frequentemente é também o efeito de uma distração habitual, que costuma afetar principalmente as leitoras de romances. Pois como nessas leituras o propósito é apenas se entreter no momento, porque se sabe que são meras ficções, a leitora tem aqui completa liberdade para, ao ler, criar segundo o curso de sua imaginação, o que naturalmente distrai e torna habitual a distração mental (falta de atenção ao presente): com isso, a memória tem inevitavelmente de se enfraquecer. - Exercitar-se na arte de matar o tempo e tornar-se inútil para o mundo, para depois lamentar a brevidade da vida, é, abstraindo-se da disposição fantasiosa da mente que a produz, um dos ataques mais hostis à memória. Da faculdade de previsão Interessa possuir esta faculdade mais que qualquer outra, porque é a condição de toda prática possível e dos fins, aos quais o homem relaciona o emprego de suas forças. Todo desejo contém uma previsão (duvidosa ou segura) a respeito daquilo que é possível por meio dela. Voltar os olhos para o passado (lembrar) só ocorre com a intenção de tornar possível a previsão do futuro: olhamos à nossa volta de um ponto de vista do presente em geral para decidir algo ou tomar uma resolução. A previsão empírica é a expectativa de casos semelhantes (expectatio casuum similium) e não necessita do conhecimento racional de causas e efeitos, mas apenas da lembrança como os acontecimentos observados se sucedem comumente, e as experiências repetidas produzem nisso uma habilidade. Como estarão o vento e o tempo interessa muito ao navegante e ao camponês. Todavia, com isso nossas previsões não vão além do chamado "calendário do camponês", cujas previsões são elogiadas quando por acaso acerta, mas quando não, são esquecidas, e assim permanecem sempre em algum crédito. - Quase se deveria crer que a Providência entrelaçou intencionalmente as mudanças climáticas de uma maneira impenetrável, para que não fosse tão fácil aos seres humanos tomar as medidas necessárias a cada situação climática, mas que fossem obrigados a usar o entendimento para estar preparados em todos os casos. Viver despreocupadamente (sem cautela nem receio) não é, por certo, muito honroso ao entendimento do ser humano; como se passa com o caraíba, que pela manhã vende sua rede e à tarde fica perplexo por não saber como dormirá à noite. Mas se não se peca contra a moral idade, pode-se considerar que aquele que é insensível em relação a tudo o que possa acontecer é mais feliz do que aquele que sempre estraga o prazer de viver tão somente com perspectivas lúgubres. Todavia, dentre todas as perspectivas do ser humano a mais consoladora é quando, em seu presente estado moral, tem razão para ter no horizonte a continuidade e o progresso ulterior até o melhor. Em compensação, quando toma corajosamente a resolução de começar uma vida nova e melhor, mas tem de dizer a si mesmo "isso não dará em nada, porque com frequência você se faz essa promessa (por procrastinação), mas a tem quebrado sempre sob o pretexto de uma exceção desta única vez": então esta é uma situação desconsoladora de expectativa de que ocorram casos semelhantes. Mas onde se trata do destino que possa pairar sobre nós, e não do uso de nosso livre-arbítrio, a perspectiva para o futuro é ou pressentimento, isto é, previsão (praesensio), (Quis-se fazer novamente uma diferença entre Ahnen e Ahnden; contudo a primeira não é palavra alemã e só resta a última. - Pressentir «ahnden» significa tanto quanto lembrar «gedenken», Tenho o receio de que «es ahndetmich» significa: algo paira obscuramente à lembrança; vingar «anhden» algo significa relembrar com rancor a ação cometida por alguém (isto é, castigá-la). É sempre o mesmo conceito, mas outro o uso. Nota do Autor.) ou presságio (praesagitio). O primeiro indica, por assim dizer, um sentido oculto para o que ainda não está presente; o segundo, uma consciência do futuro produzida por reflexão sobre a lei da série dos acontecimentos sucessivos (a lei de causalidade). Vê-se facilmente que todo pressentimento “Ahndung” é uma quimera, pois, como se pode sentir o que ainda não existe? Mas se são juízos oriundos de conceitos obscuros de uma relação causal, então não se trata de pressentimentos, mas se podem desenvolver os conceitos que levam àquilo, e esclarecer o que ocorre com o juízo em questão. - Pressentimentos provêm, em sua maior parte, de temor; o receio, que tem suas causas físicas, precede, sem que se determine qual é o objeto do temor. Mas há também os pressentimentos alegres e ousados dos exaltados, que farejam a revelação próxima de um segredo para o qual o homem não tem a receptividade dos sentidos, e que creem ver desvendado em breve o pressentimento daquilo que, como epoptas, esperam em intuição mística. - Também faz parte dessa classe de encantamentos a visão dos escoceses das montanhas, pela qual, ao entrar no porto distante, alguns deles afirmam já saber da notícia da morte de alguém, por crerem tê-lo visto preso ao mastro. Do dom divinatório (Facultas divinatrix) Prever, adivinhar e predizer são diferentes nisto: o primeiro é um prever segundo as leis da experiência (portanto naturalmente), o segundo é um prever contra as leis conhecidas da experiência (antinatural), mas o terceiro é uma inspiração de uma causa distinta da natureza (sobrenatural), ou considerada como tal, cuja faculdade, porque parece proceder da influência de um deus, também é denominada propriamente faculdade de divinatória (pois toda suposição perspicaz sobre o futuro também é chamada, impropriamente, de divinação). Quando se diz de alguém: ele adivinha este ou aquele destino, isso pode indicar uma habilidade inteiramente natural. Mas daquele que afirma ter aqui um conhecimento sobrenatural, tem-se de dizer: ele prognostica, como os ciganos de origem hindu que denominam a quiromancia de "ler os planetas", ou os astrólogos e caçadores de tesouros, aos quais se associam também os alquimistas, dentre todos os quais se sobressai, na Antiguidade grega, a Pítia e, em nosso tempo, o esfarrapado xamã siberiano. As predições dos auspicies e arúpices dos romanos não tinham por intenção descobrir o que ficou oculto no curso dos acontecimentos do mundo, mas a vontade dos deuses, à qual tinham de se submeter conforme a sua religião. - Mas como os poetas chegaram a se considerar também entusiastas (ou possessos) e adivinhos (vates) e a se gabar de ter inspirações em seus impulsos poéticos (furor poeticus), isso só pode se explicar assim: o poeta não executa com ócio o trabalho encomendado, como o orador em prosa, mas tem de se apegar ao momento favorável em que surge para ele a disposição interna dos sentidos, no qual lhe afluem espontaneamente imagens e sentimentos vivazes e enérgicos, e ele se comporta como que apenas passivamente; pois é também uma observação antiga de que ao gênio está mesclada certa dose de loucura. Nisso se funda também a crença nas sentenças oraculares que se supunha existir em passagens, escolhidas às cegas, dos poetas famosos (movidos como que por inspiração) (sortes virgilianae); nisso se funda também aquele meio de descobrir a vontade do céu semelhante ao cofrezinho dos novos devotos, ou a exegese dos livros sibilinos, que deveriam ter previsto aos romanos o destino de seu Estado e que infelizmente eles em parte puseram a perder por sovinice exagerada. Todas as profecias que anunciam com antecedência o destino inevitável de um povo, o qual, todavia, é culpado dele, destino, pois, que deve ser produzido por seu livre-arbítrio, não implicam apenas que o saber prévio lhe é inútil, porque não pode fugir dele, mas também o absurdo de que nessa fatalidade incondicional (decretum absolutum) é pensado um mecanismo da liberdade cujo conceito contradiz a si mesmo. O máximo do absurdo ou do engano na adivinhação ocorria quando um louco era considerado um vidente (de coisas invisíveis), como se por ele falasse um espírito que ocupasse o lugar da alma, separada a muito tempo de sua morada corporal, e o pobre doente mental (ou apenas epiléptico) passava por um energúmeno (possuído) e, quando o demônio que possuía fosse considerado um espírito bom, ele era chamado entre os gregos um mante, e seu intérprete, profeta. - Inventaram-se todas as formas de loucura para nos pôr de posse do futuro, cuja previsão tanto nos interessa, saltando por cima de todos os degraus que, com a mediação do entendimento e através da experiência, poderiam levar a ele. O, curas hominum! Não há, aliás, ciência divinatória tão segura e, todavia, tão amplamente extensa quanto à astronomia, que anuncia antecipadamente, ao infinito, as revoluções dos corpos celestes. Isso, porém, não impediu que a ela logo se tenha associado uma mística, que não quis fazer os números das épocas do universo depender dos acontecimentos, como o exige a razão, mas o inverso, quis fazer os acontecimentos depender de certos números sagrados, e assim transformou a própria cronologia, condição tão necessária de toda a história, numa fábula. Da ficção involuntária no estado saudável, isto é, do sonho. Pesquisar o que seja a constituição natural do sono, do sonho e do sonambulismo (do qual também faz parte falar em voz alta durante o sono) está fora do campo de uma antropologia pragmática, pois não se podem extrair desse fenômeno regras de conduta durante o estado onírico, já que estas só valem para quem está acordado e não sonhando ou dormindo sem pensamentos. E o juízo daquele imperador grego, que condenou à morte um homem-que contou a seus amigos um sonho em que teria matado o imperador, sob o pretexto de que "ele não teria sonhado, se não tivesse pensado nisso acordado", é contrário à experiência e cruel. "Quando estamos acordados, temos um mundo em comum; mas se dormimos, cada um tem o seu próprio". - Sonhar parece fazer tão necessariamente parte do dormir, que dormir e morrer seriam o mesmo se não aparecesse o sonho como uma agitação natural, ainda que involuntária, dos órgãos internos vitais por meio da imaginação. Eu me lembro muito bem que, quando menino, se me punha a dormir cansado de brincar, era subitamente despertado, no momento de adormecer, por um sonho em que era como se eu tivesse caído na água e, próximo de afundar, girava em círculo, para logo adormecer novamente mais calmo, provavelmente porque a atividade dos músculos do peito na inspiração, a qual depende inteiramente do arbítrio, relaxa, e assim, com a falta da inspiração, o movimento do coração é tolhido, mas a imaginação onírica posta de novo em jogo. - É aí que entra também o efeito benéfico do sonho no chamado pesadelo (incubus). Pois sem essa pavorosa imaginação de um fantasma que nos oprime, e sem o empenho de toda força muscular para se colocar em outra situação, a paralisação do sangue poria rapidamente um fim à vida. Exatamente por isso a natureza parece ter disposto as coisas de tal modo que a grande maioria dos sonhos contém incômodos e circunstâncias muito perigosas: porque semelhantes representações estimulam as forças da alma mais que quando tudo caminha segundo o desejo e a vontade. Sonha-se frequentemente que não se pode ficar de pé ou que se está perdido, que se perdeu o fio num sermão ou que, por esquecimento, se vai a uma grande reunião vestindo uma touca de dormir em vez da peruca, ou também que se pode flutuar à vontade para lá e para cá, ou se desperta sorrindo alegremente sem saber por quê. - Permanecerá sempre inexplicado como ocorre que, em sonho, sejamos frequentemente transportados para uma época remota do passado, falemos com quem já faleceu há muito, sejamos tentados a tomar isso mesmo por um sonho, mas nos vejamos forçados a tomar tal imaginação por realidade. Pode-se, entretanto, ter seguro que não pode haver sono sem sonho, e quem presume não ter sonhado, somente esqueceu o seu sonho. Da faculdade de designar (Facultas signatrix) A faculdade de conhecer o presente como meio de ligação da representação do que se prevê com a representação do passado, é a faculdade de designar “Bezeichnungsvermögen”. - A ação do espírito que realiza essa ligação é a designação (signatio), que também se chama assinalar, cujo grau superior se denomina distinguir. As formas das coisas (intuições), conquanto se limitem a servir de meios à representação por conceitos, são símbolos, e o conhecimento por meio destes se chama simbólico ou figurado (speciosa). - Os caracteres ainda não são símbolos, pois podem também ser sinais meramente mediatos (indiretos), que em si nada significam, mas só por associação levam às intuições e, por meio destas, aos conceitos; por isso, o conhecimento simbólico não tem de ser oposto ao intuitivo, mas ao discursivo, no qual o sinal (character) acompanha o conceito apenas como guardião (custos) para reproduzi-lo oportunamente. O conhecimento simbólico não é, portanto, oposto ao intuitivo (pela intuição sensível), mas ao intelectual (mediante conceitos). Símbolos são meros meios do entendimento, mas só indiretamente, por uma analogia com certas intuições, às quais o conceito pode ser aplicado para lhe proporcionar significação mediante a exposição de um objeto. Quem sempre pode se expressar apenas simbolicamente, tem ainda poucos conceitos do entendimento, e a tão frequente e admirada vivacidade de exposição que os selvagens (às vezes também os supostos sábios num povo ainda rude) deixam ouvir em seus discursos não é nada mais que pobreza de conceitos e, por isso, também de palavras para exprimi-los; por exemplo, quando o selvagem americano diz "queremos enterrar o machado de guerra", isso quer dizer tanto quanto: queremos fazer a paz; e de fato os antigos cantos, desde Homero até Ossian ou de um Orfeu até os profetas, devem o brilho de sua apresentação meramente à falta de meios para expressar os seus conceitos. Considerar os fenômenos reais do mundo, presentes aos sentidos, como meros símbolos de um mundo inteligível escondido por detrás deles (como Swedenborg), é desvario. Mas nas exposições dos conceitos (denominados ideias) pertinentes à moral idade, que constitui a essência de toda religião, e portanto à razão pura, distinguir o simbólico do intelectual (o culto da religião), distinguir o invólucro, necessário e útil por algum tempo, da coisa mesma, é esclarecimento , porque senão se troca um ideal (da razão prática pura) por um ídolo, e não se atinge o fim-último. - É indiscutível que todos os povos da terra começaram com essa troca e que, quando se trata de saber o que seus próprios mestres realmente pensaram ao redigir seus livros sagrados, não se deve interpretá-los simbolicamente, mas literalmente, pois seria desonesto torcer suas palavras. Todavia, se não se trata meramente da veracidade do mestre, mas também, e sem dúvida essencialmente, da verdade da doutrina, então se pode e deve interpretá-las como simples modo de representação simbólico, para acompanhar aquelas ideias práticas com cerimônias e rituais, porque senão se perderia o sentido intelectual que constitui o fim-último. Podem-se dividir os sinais em arbitrários (artificiais), naturais e maravilhosos. A. Dos primeiros fazem parte: 1. Os sinais gestuais (mímicos, que em parte são também naturais); 2. Os sinais gráficos (letras, que são sinais para os sons); 3. Os sinais sonoros (notas); 4. Os sinais meramente visuais convencionados entre indivíduos (cifras); 5. Os sinais nobilitários de homens livres, honrados com prerrogativas hereditárias (brasões); 6. Os sinais de serviçais em trajes legais (uniformes e librés); os símbolos honoríficos por serviços prestados (insígnias de ordens); os sinais de desonra (estigmas e semelhantes). - Deles fazem parte, nos escritos, os sinais gráficos de pausa, de interrogação ou de afeto, de exclamação (as pontuações). Toda língua é designação de pensamentos e, inversamente, a forma mais primorosa de designar pensamentos é pela língua, esse meio máximo de entender a si mesmo e aos outros. Pensar é falar consigo mesmo (os índios de Otaheite chamam o pensar de linguagem do ventre), por conseguinte, também se ouvir interiormente (por meio da imaginação reprodutiva). Para o surdo de nascimento seu falar é um sentimento do jogo de seus lábios, língua e maxilar, e quase não é possível pensar que em sua fala ele faça algo mais que jogar com sentimentos corporais, sem ter conceitos próprios nem pensar. - Mas eis por que também os que podem falar e ouvir nem sempre se entendem a si mesmos ou aos demais, e à deficiência da faculdade de designar ou ao uso incorreto dela (porque se tomam os símbolos por coisas e vice-versa) se deve que, principalmente nas coisas da razão, os seres humanos, concordes na linguagem, se afastem enormemente uns dos outros nos conceitos, o que só se revela casualmente quando cada qual atua conforme o seu. B. Segundo: no que diz respeito aos sinais naturais, a relação dos signos para com as coisas designadas é, de acordo com o tempo, demonstrativa, rememorativa ou prognóstica. A pulsação indica ao médico o atual estado febril do paciente, como a fumaça indica o fogo. Os reagentes descobrem para o químico as substâncias que se encontram ocultas na água, assim como o catavento, o vento etc. Mas nos momentos em que o rubor ocorre, não se pode saber ao certo se ele denuncia a consciência da culpa ou, antes, um delicado sentimento de honra por se ter de aguentar também uma impertinência com relação a algo de que se teria de ter vergonha. Túmulos e mausoléus são sinais de recordação dos mortos; do mesmo modo, ou mesmo para perpetuar a memória do antigo poderio de um rei, as pirâmides. - As camadas de conchas em regiões muito distantes do mar, ou os buracos dos fólades nos altos Alpes, ou restos vulcânicos onde agora não jorra fogo algum da terra, nos indicam o antigo estado do mundo e fundam uma arqueologia da natureza, certamente não tão visível quanto às cicatrizes de um guerreiro. - As ruínas de Pai mira, Babilônia e Persépolis são monumentos loquazes da situação da arte nos Estados antigos, e tristes marcas da mudança de todas as coisas. Os sinais prognósticos são os mais interessantes de todos, porque na série das mudanças o presente é só um momento, e o fundamento de determinação da faculdade de desejar o toma em consideração apenas em vista de consequências futuras (ob futura consequentia), e chama a atenção principalmente para estas. - A prognose mais segura com respeito aos futuros acontecimentos do universo se encontra na astronomia, mas ela é pueril e fantástica se as constelações, ligações e distintas posições dos planetas, são representadas como sinais alegóricos, escritos no céu, dos futuros destinos dos seres humanos (na Astrologia iudiciaria). Os sinais naturais que prognosticam uma enfermidade, restabelecimento ou (como afacies hippocratica) morte próximos, são fenômenos que, fundados em larga e frequente experiência, também servem para orientar o médico na cura, caso conheça a conexão de causa e efeito que entre eles exista; assim são os dias críticos. Mas os augúrios e aruspícios instituídos pela habilidade política dos romanos eram uma superstição consagrada pelo Estado para governar o povo em conjunturas perigosas. C. No que diz respeito aos sinais maravilhosos (acontecimentos nos quais a natureza das coisas se revolve), exceto aqueles que agora não têm nenhuma importância (as deformidades entre os seres humanos e entre os animais de criação), os sinais e milagres no céu, os cometas, os globos de luz cruzando as alturas, as auroras boreais no norte, mesmo os eclipses do sol e da lua, principalmente quando se reúnem vários símbolos semelhantes e são acompanhados de guerra, peste e coisa semelhante, são coisas que à grande massa assustada parecem anunciar que o Juízo Final e o fim do mundo já não estão distantes. Apêndice Vale a pena observar ainda aqui um estranho jogo da imaginação com o ser humano na confusão dos signos com as coisas, em que se coloca naqueles uma realidade interior como se estas tivessem que se guiar por eles. - Como o curso da lua em suas quatro fases (lua nova, quarto crescente, lua cheia e quarto minguante) não se divide, em números inteiros, mais exatamente que em 28 dias (e por isso o zodíaco é dividido pelos árabes nas 28 casas da lua), dos quais uma quarta parte perfaz sete dias, o número 7 obteve uma importância mística, tanto que a criação do mundo também teve de ser regida por ele, principalmente porque (segundo o sistema de Ptolomeu) deveria haver sete planetas, como sete notas na escala musical, sete cores simples no arco-íris e sete metais. - Daí surgiram também os anos climatéricos (7 x 7 e, porque 9 entre os indianos também é um número místico, 7 x 9, igualmente 9 x 9), em cujo desfecho a vida humana deve estar em grande perigo, e as setenta semanas-ano (490 anos) não apenas constituem, na cronologia judaico-cristã, os períodos das mudanças mais importantes (entre Abraão sendo chamado por Deus e o nascimento de Cristo), mas determinam também com toda a exatidão e, por assim dizer, a priori os limites dela, como se a cronologia não tivesse de se regular pela história, e sim o inverso, a história pela cronologia. Mas também em outros casos é habitual tomar as coisas dependentes de números. Quando um paciente manda um empregado levar uma gratificação a seu médico, e este, ao abrir o papel, encontra onze ducados, suspeitará que o empregado lhe roubou um, pois por que não haveria uma dúzia inteira deles? Quem compra louça de porcelana de mesma fabricação num leilão, dará um lance menor se não houver uma dúzia inteira, e se houver treze pratos, só dará valor ao décimo terceiro por se assegurar de que, com isso, ainda terá aquele número completo mesmo que um prato se quebre. Como, porém, não se convidam convivas por dúzias, que interesse pode haver em dar preferência a esse número par? Um homem deixou em testamento onze colheres de prata a seu primo, e acrescentou: "Ele mesmo sabe melhor que ninguém porque não lhe deixei a décima segunda colher" (o jovem larápio teria colocado furtivamente em seu bolso uma colher da mesa do primo, que percebeu o acontecido, mas então não quis envergonhá-lo). Quando o testamento foi aberto, pôde-se facilmente adivinhar qual era a intenção do testador, mas só pelo preconceito aceite de que apenas a dúzia é um número completo. - Também os doze signos do zodíaco (número por analogia com o qual parecem ser admitidos os doze juizes na Inglaterra) receberam uma significação mística semelhante. Na Itália, Alemanha e talvez também em outra parte, considera-se mau sinal uma mesa com treze convivas, porque se crê que um deles, qualquer que seja, morrerá naquele ano: assim como, numa mesa de doze juízes, o décimo terceiro entre eles não poderia ser outro que o delinquente que deve ser julgado. (Eu mesmo me encontrei uma vez a uma mesa semelhante, onde a dona da casa observou, ao sentar-se, esse suposto inconveniente, e dissimuladamente mandou o filho, que se encontrava entre nós, levantar-se e comer em outro cômodo, para que a alegre atmosfera não fosse perturbada). - Mas também a mera grandeza dos números, quando se tem o bastante das coisas que designam, causa admiração simplesmente porque, ao serem contadas, não preenchem uma divisão conforme o sistema decimal (por conseguinte, em si, arbitrária). Assim, o imperador da China deve ter uma frota de 9.999 navios, e as pessoas se perguntam secretamente diante desse número: por que não mais um?, ainda que a resposta possa ser "porque esse número de navios é suficiente para o uso dele"; no fundo, a pergunta não é feita em vista do uso, e sim meramente de uma espécie de mística dos números. - Pior, todavia, se bem que não seja algo incomum, é alguém que chegou, pela mesquinhez e logro, a uma riqueza de 90.000 táleres e não descansa até completar os 100.000 sem necessitar deles, e se não ganha a forca por isso, talvez ao menos a mereça. A que infantilidades não desce o homem, mesmo em idade adulta, quando se deixa levar pela trela da sensibilidade! Vamos ver agora quanto ele faz de melhor, ou pior, quando segue seu caminho à luz do entendimento. Da faculdade de conhecer enquanto fundada no entendimento Divisão O entendimento, como faculdade de pensar (de representar algo por meio de conceitos), também é denominado faculdade de conhecer superior (por diferença com a sensibilidade, como faculdade inferior), porque a faculdade das intuições (puras ou empíricas) só contém o singular nos objetos, enquanto a faculdade dos conceitos contém o universal das representações deles, a regra, à qual o diverso das intuições sensíveis tem de ser subordinado para produzir unidade do conhecimento do objeto. - Portanto, o entendimento é, sem dúvida, mais nobre que a sensibilidade, da qual os animais desprovidos de entendimento podem se valer em caso necessário, seguindo os instintos neles implantados, assim como um povo sem governante, ao passo que um governante sem povo (o entendimento sem a sensibilidade) não é capaz de absolutamente nada. Por isso, entre ambos não há conflito de hierarquia, se bem que um é intitulado superior e o outro, inferior. Mas também se toma a palavra entendimento em significação particular, a saber, porque ele, como membro de uma classificação, é subordinado,junto com os dois outros membros desta, ao entendimento em significação geral, e porque a faculdade de conhecer superior (materialmente considerada, isto é, não por si só, mas em referência ao conhecimento dos objetos) consiste de entendimento juízo e razão.- Deixai-nos fazer agora observações sobre o ser humano, como um se diferencia do outro nesses dons da mente ou no uso ou abuso habitual deles, primeiramente numa alma saudável, mas logo também no caso de doença mental. Comparação antropológica das três faculdades de conhecer superiores entre si Um entendimento correto não é tanto aquele que brilha pela variedade de seus conceitos quanto aquele que contém a faculdade e a habilidade de conhecer o objeto, portanto, de apreender a verdade pela adequação deles. Alguns seres humanos têm na mente muitos conceitos que, no conjunto, redundam numa semelhança com aquilo que se pretende saber do objeto, mas não coincidem com ele, nem com a determinação dele. Eles podem ter conceitos de grande extensão, que também são conceitos flexíveis. O entendimento correto que basta para os conceitos do conhecimento comum se chama bom senso (suficiente para o uso caseiro). Ele diz, como o guarda em Juvenal: Quod sapio, satis est mihi, non ego curo - esse quod Arcesilas aerumnosique Solenes Compreende-se que os dons naturais de um entendimento exato e correto se limitam em relação à extensão do saber que se atribui a ele, e o dele dotado procede modestamente. Se com a palavra entendimento se quer dizer a faculdade de conhecimento das regras em geral (e isso por conceitos), de modo que compreenda em si toda a faculdade de conhecer superior, então não se tem de entender por ela aquelas regras segundo as quais a natureza guia o ser humano em seu procedimento, como ocorre nos animais impelidos pelo instinto natural, mas só as que ele mesmo faz. O que ele meramente aprende e confia à memória é executado apenas mecanicamente (conforme as leis da imaginação reprodutiva) e sem o entendimento. Um criado que tem de fazer simplesmente um cumprimento segundo uma determinada fórmula, não precisa do entendimento, isto é, não necessita pensar por si mesmo, mas dele precisa quando, na ausência do seu senhor, tem de cuidar dos afazeres domésticos deste, onde são necessárias várias regras de conduta que não podem ser literalmente prescritas. Um entendimento correto, um juízo exercitado e uma razão profunda constituem a inteira extensão da faculdade de conhecimento intelectual, principalmente quando esta é julgada também como habilidade para a promoção do prático, isto é, para fins. Entendimento correto é bom senso, conquanto contenha a adequação dos conceitos aos fins de seus usos. Assim como a suficiência (sufficientia) e a precisão (praecisio) reunidas constituem a adequação, isto é, a índole do conceito para não conter nem mais nem menos do que requer o objeto (conceptus rem adaequans), assim também um entendimento correto é, entre as faculdades intelectuais, a primeira e a mais nobre, porque satisfaz seu fim com um mínimo de meios. Considera-se que a artimanha, a mente voltada para intriga, é frequentemente um grande entendimento, ainda que mal empregado; mas ela é exatamente apenas a maneira de pensar de homens muito limitados, e bem diferente da inteligência, cuja aparência ela comporta. O crédulo só pode ser enganado uma vez, o que a seguir será muito prejudicial à própria intenção do astuto. Aquele que, servindo a um particular ou ao Estado, deve obedecer a ordens rigorosas, precisa ter apenas entendimento; o oficial, a quem se prescreve tão somente a regra geral para que cumpra a incumbência que lhe é dada, e a quem se deixa que determine por si mesmo o que é preciso fazer no caso em questão, necessita de juízo; o general, que deve considerar os casos possíveis e imaginar as próprias regras para eles, precisa possuir razão. - Os talentos requeridos para esses diferentes empregos são muito diversos. "Alguns, que brilham no segundo nível, não são visíveis no nível superior" (Tel brille au second rang, qui s'eclipse au premier). Argumentar com sutilezas não é ter entendimento, e ostentar máximas, como Cristina da Suécia, com as quais sua ação está em contradição, não significa ser sensato. - Aqui se passa o mesmo que com a resposta que o conde de Rochester deu ao rei Carlos II da Inglaterra, quando este o encontrou em profunda meditação e lhe perguntou: "Em que meditais tão profundamente?" - Resposta: "Estou fazendo o epitáfio de Vossa Majestade" - Pergunta: "O que estará escrito nele?" - Resposta: "Aqui jaz o rei Carlos II, que em vida disse muitas coisas inteligentes, e nunca fez nada daquilo”. Ficar calado em sociedade e só de quando em quando emitir um juízo totalmente comum, é parecer ser razoável, assim como certo grau de rudeza passa por honestidade (a velha honestidade alemã). Mediante instrução, o entendimento natural pode ser ainda enriquecido de muitos conceitos e dotado de regras; porém a segunda faculdade intelectual, a saber, a de discernir se algo é um caso da regra ou não, o juízo (iudicium), não pode ser ensinada mas só exercitada; daí seu crescimento se chamar maturidade, entendimento que só vem com os anos. Também é fácil de compreender que isso não poderia ser diferente; pois a instrução ocorre por transmissão de regras. Por conseguinte, se tivessem de existir ensinamentos para a faculdade de julgar, então teriam de existir regras gerais segundo as quais se pudesse diferenciar se algo é ou não um caso da regra, o que é um regresso ao infinito. Este é, pois, o entendimento do qual se diz que vem com os anos, que está fundado em longa experiência própria, e cujo juízo a república francesa busca na câmara dos chamados anciãos. Essa faculdade, que só se dirige ao factível, ao que é adequado e ao que convém (para o juízo técnico, estético e prático) não é tão brilhante como aquela outra que é ampliadora; pois apenas se coloca junto ao bom-senso e faz a ligação entre este e a razão. Se o entendimento é a faculdade das regras, e o juízo, a faculdade de descobrir o particular como um caso dessas regras, então a razão é a faculdade de deduzir, do universal, o particular e de representar este último como necessário e segundo princípios. - Pode-se, portanto, explicá-la também mediante a faculdade de julgar e (em sentido prático) de agir segundo princípios. Para todos os juízos morais (por conseguinte, também para a religião) o ser humano necessita da razão e não pode se basear nos dogmas e hábitos introduzidos. - Ideias são conceitos da razão, aos quais não pode ser dado adequadamente nenhum objeto na experiência. Não são nem intuições (como as do espaço e do tempo) nem sentimentos (como os busca a doutrina da felicidade), pois que ambos pertencem à sensibilidade, mas conceitos de uma perfeição de que sempre se pode aproximar, mas nunca alcançar completamente. Argumentar com argúcias (sem razão saudável) é um emprego da razão que passa ao largo do fim-último, em parte por incapacidade, em parte por erro do ponto de vista. Enfurecer-se com razão quer dizer proceder segundo princípios quanto à forma dos seus pensamentos, mas empregar justamente os meios opostos a eles quanto à matéria ou ao fim. Os subordinados não necessitam argumentar com argúcias (arrazoar “räsonnieren”), porque o princípio conforme o qual se deve agir tem frequentemente de lhes ser ocultado, ou ao menos pode lhes permanecer desconhecido; mas aquele que manda (um general) precisa ter razão, porque não podem lhe dar instruções a cada caso. Dado, entretanto, que a religião tem de ser estimada como moral, é injusto exigir que o chamado leigo (laicus) em questões religiosas não se sirva de sua própria razão, mas deva seguir o sacerdote constituído (clericus), ou seja, uma razão estranha: porque na moral cada um tem de responder por si mesmo por suas ações e omissões, e o sacerdote não assumirá nem pode assumir, com risco próprio, a responsabilidade por elas. Nesses casos, porém, os seres humanos se inclinam a garantir mais segurança para sua pessoa renunciando a todo uso próprio da razão e submetendo-se passiva e obedientemente aos dogmas introduzidos por homens santos. Mas não o fazem tanto por sentimento de sua incapacidade no conhecimento (pois a essência de toda religião é a moral, que logo aparece a todo ser humano como evidente por si mesma) quanto por artimanha, em parte para poder atribuir a culpa aos outros, caso possa haver algo errado, em parte e principalmente para escapar habilmente àquilo que é essencial (a modificação do coração), que é muito mais difícil que o culto. Exigir sabedoria, como ideia do uso prático, legal e perfeito da razão, é por certo exigir muito do ser humano; mas nem mesmo num grau mínimo outro pode infundir sabedoria nele, já que tem de retirá-la de si mesmo. A prescrição de alcançar esse fim contém três máximas que conduzem a ele: 1. Pensar por si mesmo, 2. Colocar-se no lugar do outro (na comunicação com seres humanos), 3. Pensar sempre em concordância consigo mesmo. A idade em que o homem chega ao pleno uso de sua razão poderá ser fixada, em vista de sua habilidade «Geschicklichkeit» (a faculdade de atuar com arte em qualquer propósito), por volta dos vinte anos; em vista da prudência “Klugheit” (de utilizar outros homens para os seus fins), dos quarenta; finalmente, em vista da sabedoria por volta dos sessenta; nesta última época, porém, ela é mais negativa, para compreender todas as tolices das duas primeiras, quando se pode dizer: "É pena ter de morrer quando enfim se aprendeu como se poderia viver bem", e mesmo então esse juízo ainda é raro, pois que a inclinação pela vida se torna tanto mais forte, quanto menos valor ela tem, tanto na ação quanto no prazer. Assim como a faculdade de descobrir o particular para o universal (a regra) é a faculdade de julgar, assim também a de excogitar o universal para o particular é o engenho (ingenium). A primeira diz respeito à observação das diferenças no diverso, em parte idêntico; a segunda, à identidade do diverso, em parte distante. - O talento mais primoroso em ambas está em observar inclusive as menores semelhanças ou dessemelhanças. A faculdade para isso é a agudeza (acumen), e as observações desse tipo chamam-se sutilezas, as quais, quando não levam adiante o conhecimento, chamam-se cavilações vazias ou sutilezas vãs (vanae argutationes) e; se bem que não incorram num emprego falso, incorrem num emprego inútil do entendimento em geral. - Por conseguinte, a agudeza não vem ligada meramente ao juízo, mas compete também ao engenho; só que no primeiro caso se reconhece seu mérito mais pela exatidão (cognitio exacta), no segundo, mais pela riqueza da boa inteligência: por isso o espírito também é chamado de florescente; e como nas flores a natureza parece mais jogar um jogo, enquanto que nos frutos ela exerce um afazer, o talento encontrado neste último será julgado (segundo os fins da razão) menor em dignidade do que o que cabe ao primeiro. - O entendimento comum, o bom senso não tem pretensão nem ao engenho nem à agudeza: estes são uma espécie de luxo da inteligência, enquanto aquele se limita àquilo de que verdadeiramente necessita. Das fraquezas e enfermidades da alma em relação a sua faculdade de conhecer A Divisão geral Os defeitos da faculdade de conhecer são fraquezas ou enfermidades da mente. As enfermidades da alma relativas à faculdade de conhecer podem ser inseridas em dois gêneros principais. Um é a atrabílis (hipocondria) e o outro é a perturbação mental (mania). Na primeira, o enfermo é consciente de que o curso de seus pensamentos não vai bem: sua razão não tem poder suficiente sobre si mesma para dirigir, deter ou impulsionar o andamento deles. Alegrias e preocupações fora de hora, portanto, caprichos, alternam nele, como o clima que se tem de aceitar tal qual é. - A segunda é um curso arbitrário de seus pensamentos, que tem sua regra própria (subjetiva), a qual, porém, é contrária às regras (objetivas) que concordam com as leis da experiência. Com respeito à representação sensível, a perturbação mental é amência ou demência. Como perversão do juízo e da razão chama-se insânia ou vesânia «Aberwitz>, Quem em suas imaginações deixa de fazer a comparação com as leis da experiência habitual (sonha acordado) é um fantasista (atrabiliário); se o é com afecção , é denominado entusiasta. Os acessos inesperados do fantasista chamam-se assaltos da fantasia (raptus). O simplório, o imprudente, o estúpido, o janota, o tolo e o bobo não se diferenciam do perturbado meramente em grau, mas na qualidade diversa de seu desarranjo mental, e não devem ir para o manicômio por causa de seus achaques, isto é, para um lugar onde, a despeito da maturidade e força da idade, seres humanos têm de ser mantidos sob a disciplina de uma razão alheia naquilo que se refere às questões mais comezinhas da vida. - Demência com afecção é loucura, que pode frequentemente ser original, mas seus ataques são involuntários, e então, como o entusiasmo poético (furor poeticus), se avizinha do gênio; mas quando é a razão a atingida por um fluxo fácil, porém desordenado, de ideias, tal acesso é chamado de desvario. Cismar com uma única e mesma ideia sem que esta tenha uma finalidade possível, por exemplo, com a perda do cônjuge que não pode ser chamado de volta à vida, para buscar repouso na própria dor, é loucura silenciosa. - A superstição se compara mais com a demência, e o fanatismo mais com a insânia. O doente mental acometido dessa última também é com frequência chamado (em expressão suavizada) de exaltado, e mesmo de cabeça excêntrica. O delírio febril ou o ataque de fúria, semelhante à epilepsia, que às vezes é causado simpateticamente pela imaginação forte ao mero olhar fixo de um furioso (por isso não é aconselhável que as pessoas de nervos muito instáveis estendam sua curiosidade até as celas desses infelizes), devem ser tidos por passageiros e não por loucura. - Mas aquilo que se denomina um fátuo (que não é uma enfermidade do espírito, pois por ele habitualmente se entende uma melancólica excentricidade do sentido interno) é na maior parte uma altivez do ser humano que beira a demência, cuja pretensão de que os demais desprezem a si mesmos em comparação a ele é diretamente contrária à sua própria intenção (como a de um louco), pois justamente com isso ele os estimula a causar de todas as maneiras danos à sua presunção, a importuná-lo, tornando-se objeto de caçoada por sua tolice ofensiva. - Mais suave é a expressão de um capricho (marotte) que alguém alimenta em si: tal ou qual princípio deve ganhar popularidade, ainda que em nenhuma parte encontre aprovação entre as pessoas prudentes, por exemplo, o dom de pressentir ou certas inspirações semelhantes ao gênio de Sócrates, certas influências fundadas na experiência, embora inexplicáveis, como a simpatia, a antipatia, a idiossincrasia (qualitates ocultae), que lhe cricrilam na cabeça como um grilo e que, todavia, ninguém mais pode ouvir. - A mais leve de todas as transgressões dos limites do bom senso é o hobby, que é como que um ócio atarefado, uma paixão em se entreter cuidadosamente com objetos da imaginação, com os quais o entendimento simplesmente brinca por distração, como se fossem um negócio. Para pessoas idosas e abastadas que buscam repouso, essa disposição do espírito, de se recolher como que de novo na infância despreocupada, não é apenas proveitosa à saúde como agitação constante da força vital, mas também amável, ainda que também ridícula; de tal maneira que aquele que é objeto do riso, pode, benevolamente, rir junto. - Essa cavalgada num cavalinho de pau, porém, serve também de distração para jovens e pessoas atarefadas, e os sabichões que com pedante seriedade censuram essas tolices tão pequenas e inocentes merecem a repreensão de Sterne: "Deixa cada um subir e descer as ruas da cidade montado em seu cavalo de pau, mas apenas quando ele não te obrigue a sentar atrás". B Das fraquezas da mente na faculdade de conhecer Aquele ao qual falta engenho é uma inteligência embotada (obtusum caput). No mais, se se trata de entendimento e razão, ele pode ser uma cabeça muito boa, só não se pode pretender que faça às vezes de poeta: como Clavius, a quem o mestre-escola queria logo enviar, como aprendiz, ao ferreiro pela simples razão de que não sabia fazer versos, e no entanto se tornou um grande matemático quando teve nas mãos um livro de matemática. - Uma inteligência de compreensão lenta não é por isso uma inteligência fraca, assim como a de conceitos rápidos nem sempre é uma inteligência profunda, porém, frequentemente muito superficial. Falta de juízo sem engenho é estupidez (stupiditas). Mas a mesma falta, com engenho, é necedade - Quem mostra ter juízo nos negócios é cauteloso. Se, além disso, tem ao mesmo tempo engenho, é esperto. - Aquele que meramente afeta uma dessas qualidades, o engenhoso tanto quanto o espertalhão, é um sujeito repugnante. - A pessoa fica escaldada depois de levar prejuízo; mas quem foi tão longe nessa escola a ponto de escaldar os demais com o prejuízo que lhes causa é velhaco. - Ignorância não é estupidez, como supôs certa dama que, à pergunta de um acadêmico "Os cavalos comem também a noite"?, retrucou: "Como pode um homem sábio ser tão estúpido?". Aliás, é prova de bom entendimento se o ser humano sabe ao menos como deve fazer bem uma pergunta (para ser instruído pela natureza, ou por outro ser humano). Simplório é o que não pode apreender muito com seu entendimento; mas não é estúpido, se não apreende às avessas. "Leal, mas estúpido" (como alguns descrevem injustamente os criados pomerânios) é um dito falso e sumamente censurável. É falso porque a lealdade (observância do dever por princípios) é razão prática. É sumamente censurável porque supõe que qualquer um enganaria só por se sentir hábil para tanto, e se não engana, isso se deve meramente à incapacidade dele. - Por isso os ditados "ele não inventou a pólvora", "ele não trairá a pátria", "ele não é um bruxo", revelam princípios misantrópicos, a saber, não pode haver certeza de que os seres humanos que conhecemos enganem, se se pressupõe uma vontade boa neles, mas somente se neles se pressupõe a incapacidade para enganar. - Assim, diz Hume, o grande sultão não confia seu harém à virtude daqueles que devem vigiá-lo, mas à impotência deles (como eunucos). - Ser muito limitado (tapado) em relação à amplitude dos seus conceitos, ainda não chega a ser estupidez, mas depende da índole deles (os princípios). - Que pessoas se deixem enganar por caçadores de tesouros, alquimistas e vendedores de loterias, não se deve atribuir isso à estupidez deles, mas à vontade má de se tornarem ricos à custa dos outros sem esforço proporcional por parte de si mesmo. A astúcia, manha e malícia (versutia, astutia), é a habilidade de enganar os outros. A questão agora é saber se o enganador precisa ser mais inteligente que aquele que é facilmente enganado e se este último é o estúpido. Por ser uma presa fácil de malandros, o cândido “Treuherzige”, que facilmente confia (crê, dá crédito) também é às vezes chamado, ainda que muito injustamente, de tolo, como no ditado "quando os tolos vão ao mercado, os vendedores se alegram". É justo e prudente que eu nunca mais confie em quem me enganou uma vez, pois ele está corrompido em seus princípios. Mas não confiar em nenhum outro homem porque um deles me enganou, é misantropia. - O enganador é propriamente o enganado. - Mas e se ele, por meio de um grande engodo, conseguiu se colocar de uma vez para sempre em condição de não mais precisar de nenhum outro, nem da confiança deste? Neste caso pode bem mudar o caráter sob o qual ele aparece, mas somente até certo ponto: enquanto o enganador enganado é ridicularizado, o enganador com sorte é vilipendiado, o que também não é nenhuma vantagem duradoura. (No que diz respeito à sua grande maioria, os palestinos que vivem entre nós desde seu exílio têm tido, por seu espírito usurário, a não infundada fama de ser fraudadores. Parece certamente estranho imaginar uma nação de fraudadores, mas é igualmente estranho imaginar uma nação composta unicamente de comerciantes, cuja ampla maioria, unida por uma velha superstição reconhecida pelo Estado em que vivem, não busca honras civis, mas quer compensar a perda dessas honras pelas vantagens que obtém burlando o povo sob o qual encontra proteção. Ora, numa nação inteira composta tão somente de comerciantes, como membros não produtivos da sociedade (por exemplo, os judeus na Polônia), isso também não pode ser de outro modo; por conseguinte, ainda que ao lidar conosco façam do ditado "Comprador, abra os olhos!" o princípio supremo de sua moral, sua constituição, sancionada por antigas leis e reconhecida por nós, em meio aos quais vivem (nós que temos com eles alguns livros sagrados em comum), não pode ser abolida sem inconsequência. - Ao invés de traçar planos inúteis para moralizar esse povo no que diz respeito ao engano e à honra, prefiro indicar minha hipótese sobre a origem dessa singular constituição (a saber, a de um povo composto unicamente de comerciantes). - Nos tempos mais antigos, o comércio com a Índia levou a riqueza, por terra, até as costas ocidentais do Mediterrâneo e portos da Fenícia (à qual pertence também a Palestina). - Certamente ele poderia tomar o caminho por muitos outros lugares, por exemplo, Palmira e em tempos mais antigos, Tiro, Sídon ou, com uma pequena saída pelo mar, por Asiongaber e Elat, ou também pela costa árabe até Grande Tebas e, pelo Egito, para as costas sírias; mas a Palestina, cuja capital era Jerusalém, também se encontrava numa posição privilegiada para o comércio de caravanas. Provavelmente o fenômeno da riqueza de Salomão é efeito disso, e até a época dos romanos o país vivia cheio de comerciantes, os quais, depois da destruição daquela cidade, por já terem estado antes em amplo contato com outros mercadores da mesma língua e crença, se espalharam pouco a pouco, com ambas, por países muito distantes (na Europa), mas permaneceram coesos e puderam encontrar proteção nos Estados aos quais se dirigiram graças às vantagens de seu comércio; - de modo que sua dispersão por todo o mundo, com a manutenção da unidade de sua crença e de sua língua, não deve ser imputada a uma maldição que se abateu sobre esse povo, mas tem, ao contrário, de ser considerada como uma benção, tanto mais que a riqueza deles, estimada pelo número dos indivíduos, supera agora provavelmente a de qualquer outro povo com o mesmo número de pessoas. Nota do Autor) A distração (distractio) é o estado em que se desvia a atenção (abstractio) de certas representações dominantes por se dividir essa atenção com outras representações heterogêneas. Se é premeditada, chama-se dissipação; a involuntária é ausência (absentia) de si próprio. Uma das fraquezas da mente é estar atada pela imaginação reprodutiva a uma representação a que se aplica grande atenção, ou uma atenção detida, e dela não poder se afastar, isto é, não poder tomar novamente livre o curso da imaginação. Se esse mal se toma habitual e se dirige a um único e mesmo objeto, pode resultar em demência. Estar distraído em sociedade é descortês, frequentemente também ridículo. Habitualmente a mulher não está sujeita a esse comportamento; para tanto, elas teriam de se ocupar com assuntos referentes à erudição. Um criado que em seu serviço à mesa está distraído, tem em geral algo grave em mente, algo que, ou tenciona fazer, ou com as consequências do qual tem motivos de preocupação. Mas distrair-se, isto é, divertir-se com sua imaginação reprodutiva involuntária, por exemplo, quando, terminado o sermão que sabia de cor, o padre deseja evitar que ele continue rumorejando em sua mente, é um procedimento preventivo para a saúde do seu espírito, necessário e em parte também artificial. Refletir continuadamente sobre um único e mesmo objeto deixa como que uma ressonância (exatamente como a música para uma dança: se ela se prolonga muito, persegue com seu zumbido o que regressa da festa; ou como as crianças que repetem incessantemente um mesmo bon mot do seu agrado, sobretudo se soa ritmicamente) - ressonância a qual, digo, incomoda a mente e só pode ser eliminada por distração e aplicação da atenção a outros objetos, por exemplo, a leitura de jornais.- Recobrar suas energias (collectio animi) a fim de estar disposto para qualquer nova ocupação, é um restabelecimento do equilíbrio das forças da alma que contribui para a saúde da mente. Para esse fim, o meio mais saudável é a conversa em sociedade, abundante - como um jogo - em temas diferentes, mas que não precisa ficar saltando de uma matéria a outra contra a afinidade natural das ideias, pois senão, como no estado da mente distraída, a sociedade se dispersa, uma vez que se confunde um assunto com outro e se perde totalmente a unidade da conversa e, em consequência, o espírito se encontra confuso e necessita de uma nova distração para se livrar daquela. Daí se vê que há para os ocupados uma arte (não comum) de se distrair, a fim de recobrar forças, que faz parte da dietética da mente. - Aquele, entretanto, que já juntou suas ideias, isto é, as preparou para utilizá-las não importa para qual fim, se se aferra zelosamente a elas numa ocasião inadequada ou numa relação comercial com outros, já não pode ser chamado de distraído, mas apenas repreendido por sua ausência de espírito, o que em sociedade é com certeza algo inconveniente. - Não é, portanto, uma arte comum a de se distrair sem jamais ser distraído; e a última, quando se toma habitual, dá ao homem sujeito a esse maio aspecto de um sonhador e o toma inútil para a sociedade, pois ele segue cegamente, no livre jogo dela, sua imaginação não ordenada pela razão. - A leitura de romances, além das muitas outras alterações na mente, também tem por consequência tomar a distração habitual. Pois ainda que a pintura dos caracteres, que podem ser encontrados realmente entre os seres humanos (mesmo que com algum exagero), dê aos pensamentos uma conexão como numa história verdadeira, cuja exposição de certo modo sempre tem de. ser sistemática, ainda assim ela permite ao mesmo tempo que a mente intercale divagações durante a leitura (a saber, outros acontecimentos como invenções), e o curso dos pensamentos se torna fragmentário, de modo que deixam as representações de um mesmo objeto atuar de forma esparsa (sparsim) na mente, não ligadas (conjunctim) segundo a unidade do entendimento. O professor falando do púlpito ou a um auditório universitário, ou também o promotor de justiça ou advogado, quando devem demonstrar domínio da mente ao fazer livremente (de improviso) a sua exposição, ou mesmo também a sua narração, tem de prestar atenção em três coisas: primeiro, tem de olhar para o que está dizendo agora, a fim de o representar com clareza; segundo, tem de voltar o olhar para o que já tenha dito; e em terceiro, tem de prever o que quer dizer de agora em diante. Pois se não presta atenção em um desses três pontos, a saber, se deixa de reuni-los nessa ordem, ele distrai a si mesmo e a seus ouvintes ou leitores, e uma inteligência em geral boa não tem então como evitar ser chamada de confusa. Um entendimento em si saudável (sem deficiências mentais) pode todavia ser acompanhado em seu desempenho de deficiências que tomem necessários, ou um adiamento para que a pessoa se desenvolva até a devida maturidade, ou que outra pessoa assuma a responsabilidade por ela no que se refere às questões de natureza civil. Se uma pessoa, saudável sob todos os outros aspectos, é incapaz (natural ou legalmente) de fazer um uso próprio de seu entendimento nas atividades civis, então se diz que ela não é emancipada; se isso está fundado na pouca idade, se chama imaturidade (menoridade); mas se está fundado em disposições legais a respeito de questões civis, então pode ser denominada incapacidade legal ou civil. As crianças são naturalmente incapazes, e os pais são os tutores naturais delas. A mulher é declarada civilmente incapaz em qualquer idade; o marido é seu curador natural. Contudo, quando vive com ele em regime de separação de bens, outro é esse curador. - Pois ainda que, no tocante à fala, a mulher tenha pela natureza de seu sexo saliva suficiente para defender a si mesma e a seu marido diante de um tribunal (no que diz respeito àquilo que lhes pertence), e, portanto, possa ser declarada literalmente mais que capaz de falar por si própria, ainda assim as mulheres não defendem pessoalmente os seus direitos, nem exercem por si mesmas seus deveres civico-estatais, mas somente mediante um responsável, assim como tampouco convém a seu sexo ir à guerra, e essa menoridade legal no que se refere ao debate público a toma tanto mais poderosa no que se refere ao bem-estar doméstico: porque aqui entra o direito do mais fraco, que o sexo masculino, já por sua natureza, se sente convocado a defender. Mas tornar incapaz a si mesmo, por degradante que isso possa ser, é no entanto muito cômodo, e naturalmente não faltarão dirigentes que se utilizarão dessa docilidade da multidão (porque ela dificilmente se une por si mesma) e saberão apresentar como muito grande, como mortal, o perigo de se servir do próprio entendimento sem a guia de um outro. Os chefes de Estado se autodenominam pais do povo, porque sabem, melhor do que seus súditos, como se deve fazer para que eles sejam felizes; para o seu próprio bem, no entanto, o povo está condenado a uma constante menoridade, e quando Adam Smith diz, injustamente, sobre aqueles primeiros, que "eles são mesmo, sem exceção, os maiores pródigos dentre todos", ele é refutado energicamente pelas (sábias!) leis orçamentárias de muitos países. O clero mantém, rigorosa e constantemente, o leigo em estado de menoridade. O povo não tem voz nem juízo sobre o caminho que há de tomar para alcançar o reino dos céus. Não é preciso os próprios olhos humanos para chegar até lá: o povo será guiado, e se as escrituras sagradas lhe caírem nas mãos para ser examinadas com os próprios olhos, será imediatamente advertido por seus guias a "não encontrar nelas nada além daquilo que asseguram encontrar ali", e em geral fazer com que os seres humanos sigam mecanicamente a direção de outros é o meio mais seguro para o cumprimento de uma ordem legal. No que diz respeito aos assuntos domésticos, os doutos comumente gostam de ser mantidos no estado de menoridade por suas mulheres. Enterrado em seus livros, um douto respondeu aos gritos de um criado de que havia fogo num aposento: "Você sabe que tais coisas cabem a minha mulher". - Finalmente, em função do Estado também a emancipação de um pródigo pode acarretar uma recaída na incapacidade civil, caso ele, depois de entrar legalmente na maioridade, apresente alguma deficiência intelectual ao administrar seus bens que o faça aparecer como uma criança ou como um idiota; o juízo a esse repeito, entretanto, fica fora do campo da antropologia. Semelhante a uma faca ou um machado sem corte, simplório (hebes) é aquele a quem não se pode ensinar nada, que é incapaz de aprender. Aquele que só é hábil para imitar se denomina um tapado; crânio, ao contrário, é aquele que pode ser autor de um produto do espírito ou da arte. Totalmente distinta é a simplicidade (em oposição à artificialidade), da qual se diz "arte perfeita se torna novamente natureza", e à qual só se chega mais tarde: uma faculdade de atingir exatamente o mesmo fim com economia dos meios - isto é, sem rodeios -. Aquele que possui esse dom (o sábio) não é de forma alguma simplório em sua simplicidade. Chama-se estúpido principalmente aquele que não pode ser utilizado para funções, porque não possui juízo. Tolo é aquele que sacrifica o que tem valor a fins que não têm valor algum, por exemplo a felicidade doméstica ao brilho fora de sua casa. A tolice, se é ultrajante, chama-se tontice. - Pode-se chamar alguém de tolo sem o ofender, ele mesmo pode confessar de si próprio que foi tolo; mas ser usado por espertalhões (segundo Pope), ser chamado de tonto, ninguém pode ouvir impassivelmente. (Quando se replica aos gracejos de alguém: "você não está sendo prudente", esta é uma expressão um tanto quanto trivial para "você está brincando" ou "não está sendo sensato". - Um homem sensato é um homem que julga de um modo certo e prático, mas sem arte. A experiência pode tornar prudente um homem sensato, isto é, hábil na arte de empregar o entendimento, mas só a natureza pode fazê-lo sensato. Nota do Autor) Altivez é uma tontice, pois primeiramente é tolo pretender que os outros se menosprezem em respeito a mim, e é assim que sempre me causarão contratempos que frustrarão meus propósitos. Isso, porém, só pode provocar derrisão. Mas naquela presunção também se esconde uma ofensa, e esta causa um merecido ódio. A palavra tonta, empregada para uma mulher, não tem o seu significado forte, porque um homem não crê poder ser ofendido pela fútil arrogância dela. E assim a tontice parece estar meramente ligada ao conceito de altivez de um homem. - Quando se chama àquele que prejudica a si mesmo (passageira ou eternamente) um tonto e, portanto, se mistura ódio ao desprezo mesmo que não nos tenha ofendido, tem-se de concebê-lo como ofensa praticada contra a humanidade em geral, consequentemente como praticada contra outro. Quem age diretamente contra sua própria vantagem legal é também às vezes chamado de tonto, ainda que só prejudique a si mesmo. Arouet, o pai de Voltaire, disse a alguém que o felicitou por ter filhos tão vantajosamente conhecidos: "Tenho dois tontos como filhos: um é um tonto em prosa, o outro, em verso" (um havia se lançado no jansenismo e fora perseguido; o outro teve de pagar por seus poemas satíricos na Bastilha). Em geral, o tolo coloca nas coisas um valor maior do que racionalmente deveria fazer, o tonto, em si mesmo. Dar a um homem o título de pateta ou de presumido tem por base também a ideia de que sua imprudência é tontice. O primeiro é um tonto jovem, o segundo, um tonto velho, ambos enganados por espertalhões ou malandros, onde o primeiro ainda atrai sobre si a compaixão, mas o outro apenas um amargo sorriso de escárnio. Um espirituoso filósofo e poeta alemão tornou compreensíveis as designações de fat e sot (sob o nome comum de fou) mediante um exemplo: "O primeiro, disse ele, é um jovem alemão que vai viver em Paris; o segundo é ele mesmo, depois de voltar de Paris". A total fraqueza mental, onde não se é sequer capaz do uso animal da força vital (como nos cretinos da região valesiana), ou também apenas da mera imitação mecânica de ações externas possíveis aos animais (cortar, cavar etc.), denomina-se idiotice e não pode ser intitulada uma enfermidade mental, mas deve antes ser chamada de desalento “Seelenlosigkeit”. C Das enfermidades da mente A divisão superior é, como foi observado anteriormente, a divisão entre atrabílis (hipocondria) e perturbação mental (mania). A denominação da primeira provém da analogia com a atenção que se presta ao cricri de um grilo (grilo-caseiro) no silêncio da noite, o qual perturba a tranquilidade de que a mente necessita para dormir. A enfermidade do hipocondríaco consiste então nisto, que certas sensações corporais internas não descobrem tanto um verdadeiro mal existente no corpo, quanto, ao contrário, só trazem apreensão a seu respeito, e a natureza humana tem a característica singular (que o animal não possui) de acentuar ou mesmo de tomar persistente o sentimento de certas impressões locais pela atenção que se presta a elas, enquanto uma abstração premeditada ou causada por outras ocupações que distraem faz diminuir essas impressões e, se tal abstração se toma habitual, ela as faz desaparecer completamente. (Em outra obra observei que desviar a atenção de certas sensações dolorosas e forçá-la a se voltar para qualquer outro objeto arbitrariamente concebido no pensamento, é suficiente para impedir que elas possam redundar em enfermidade. Nota do Autor) Deste modo, a hipocondria ou atrabílis vem a ser a causa de se imaginar males corporais dos quais o paciente é consciente de que são ficções, sem que no entanto possa de tempos em tempos abster-se de tê-las por algo real, ou o inverso, de transformar um mal corporal efetivo (como o da opressão após a refeição por se terem ingerido comidas que provocam gases) em ficções sobre toda sorte de acontecimentos exteriores graves e em preocupações sobre os próprios negócios, as quais desaparecem tão logo a flatulência cessa, com o término da digestão. - O hipocondríaco é um atrabiliário (fantasista) da espécie mais lastimável: teimoso, não se deixa despersuadir-se de suas ficções e não larga do pé do médico, que passa apuros com ele e também não pode tranquilizá-lo de forma diferente da que faz como a uma criança (dando-lhe pílulas de miolos de pão em vez de medicamentos); e quando esse paciente, que por estar constantemente adoentado nunca pode ficar doente, consulta livros de medicina, então se torna completamente insuportável, porque crê sentir no corpo todos os males que lê no livro. - São sinais característicos dessa doença da imaginação a extraordinária alegria, a vivacidade de engenho e o sorriso satisfeito a que esse enfermo se sente às vezes entregue, e assim ele é o jogo sempre inconstante de seus humores. O que alimenta essa enfermidade é o medo da morte, que o assusta de modo infantil. Mas aquele que não despreza esse pensamento com máscula coragem, nunca estará verdadeiramente contente com a vida. Ainda aquém dos limites da perturbação mental está a súbita mudança de humor (raptus): um salto imprevisível de um tema a outro inteiramente diferente, pelo qual ninguém esperava. Às vezes ela precede aquela perturbação, à qual ela anuncia, mas frequentemente a cabeça já está tão desconcertada, que esses ataques de desregramento se tomam regra. - O suicídio é, com frequência, meramente o efeito de um arroubo. Pois aquele que corta a garganta no ardor da paixão, logo depois se deixa pacientemente operar. A melancolia (melancholia) pode ser também uma mera ilusão de miséria criada para si mesmo pelo tristonho que gosta de se flagelar (é inclinado ao sofrimento). Sem dúvida, ela mesma não é perturbação mental, mas pode muito bem levar a ela. - A propósito, é uma expressão equivocada, mas que se emprega com frequência, falar de um matemático pensativo (por exemplo, o Professor Hausen), quando se quer dizer meramente que é um pensador profundo. O delírio (delirium), em estado febril, daquele que está desperto é uma doença corporal e necessita de providências médicas. Só o delirante no qual o médico não percebe tais crises chama-se louco, para quem a palavra perturbado é só uma expressão atenuada. Assim, se alguém causou premeditadamente uma desgraça, e a questão é se e que culpa recai sobre ele por isso e, portanto, primeiro é preciso decidir se ele no momento estava louco ou não, a justiça (devido à incompetência do tribunal) não pode remetê-lo à faculdade de medicina, mas tem de remetê-lo à de filosofia. Pois a questão sobre se o acusado, ao cometer o crime, estava de posse de sua faculdade natural de entender e julgar, é inteiramente psicológica; e ainda que por vezes uma disfunção corporal dos órgãos do sentido possa ser talvez a causa de uma transgressão inatural da lei do dever (inerente a todo homem), ainda assim os médicos e fisiólogos estão em geral ainda longe de compreender a fundo a essência da máquina humana para poder explicar, a partir dela, o ataque que levou a semelhante atrocidade, ou prevê-la com antecedência (sem anatomia do corpo); e uma medicina judicial (medicinaforensis) é - quando se trata da questão de saber se o estado mental do autor era de loucura ou se foi uma decisão tomada com o entendimento saudável - ingerência em assunto alheio, de que o juiz nada entende, tendo no mínimo de confiá-la a outra faculdade como não afeta ao seu foro. (Foi assim que, no caso de uma pessoa que, por estar condenada à prisão, matou de desespero um filho, certo juiz a declarou louca e, portanto, livre da pena de morte. - Pois dizia ele: quem de falsas premissas infere conclusões verdadeiras, está louco. Ora, aquela pessoa admitia como princípio que a pena de prisão é uma desonra indelével, pior que a morte (o que entretanto é falso), chegando daí à conclusão de que merecia a morte. - Por conseguinte, estava louca e, como tal, a pena de morte deveria ser anulada. - Com base nesse argumento seria bem fácil declarar loucos todos os criminosos, de quem se deveria ter pena e a quem se deveria curar, mas não castigar. (Nota do Autor.) É difícil introduzir uma divisão sistemática naquilo que é desordem essencial e insanável. Também há pouca utilidade em se ocupar disso, porque, como as forças do sujeito não cooperam (como é o caso nas doenças corporais), e somente mediante o uso do próprio entendimento esse fim poderá ser alcançado, todos os métodos de cura para esse propósito têm de dar resultados infrutíferos. Entretanto exige a antropologia, ainda que aqui ela possa ser apenas indiretamente pragmática, isto é, ainda que só possa estipular aquilo que se deve deixar de fazer, que ao menos se tente um esboço geral desta que, embora proveniente da natureza, é a mais profunda degradação da humanidade. Pode-se dividir a loucura em geral em tumultuosa, metódica e sistemática. l. Amência (amentia) é a incapacidade de colocar suas representações tão somente na conexão necessária para a possibilidade da experiência. Nos manicômios, o sexo feminino é, devido a sua loquacidade, o mais sujeito a essa enfermidade, a saber, as mulheres intercalam tanta coisa de sua viva imaginação naquilo que estão contando, que ninguém compreende o que querem verdadeiramente dizer. Essa primeira loucura é a tumultuosa. 2. Demência (dementia) é aquela perturbação mental em que tudo o que o louco conta está realmente conforme às leis formais do pensamento para a possibilidade de uma experiência, mas em que representações criadas pela falsa imaginação poética são consideradas percepções. Dessa espécie são aqueles que creem ter inimigos por toda parte; que consideram todos os gestos, palavras ou demais ações indiferentes dos outros como referidas a eles e como armadilhas contra eles. - Em sua infeliz ilusão são frequentemente tão sagazes em fazer com que as ações executadas despreocupadamente por outros sejam interpretadas como se fossem praticadas contra eles, que, se os dados fossem verdadeiros, seria preciso fazer toda a justiça a seu entendimento. - Nunca vi alguém que tenha sido curado dessa enfermidade (pois é uma disposição especial desatinar com razão). Não se deve, porém, considerá-los loucos de hospício, porque, preocupados apenas consigo mesmos, limitam-se a dirigir sua suposta astúcia apenas para a própria conservação, sem colocar outros em perigo, não necessitando pois serem isolados por segurança. Essa segunda loucura é a metódica. 3. lnsânia (insania) é uma perturbação do juízo: este entretém a mente com analogias que se confundem com conceitos de coisas semelhantes entre si, e assim a imaginação simula um jogo, semelhante ao do entendimento, da ligação de coisas díspares como sendo o universal no qual estavam contidas essas últimas representações. Os doentes psíquicos dessa espécie são na maioria das vezes muito satisfeitos, inventam de um modo absurdo e se comprazem com a riqueza produzida por tão extensa afinidade entre conceitos que tão bem casam entre si, segundo a opinião deles. - O demente dessa espécie é incurável, porque é criador, como a poesia em geral, e entretém pela diversidade. - Essa terceira loucura é, com efeito, metódica, mas apenas de maneira fragmentária. 4. Vesânia (vesania) é a doença de uma razão perturbada. - O doente psíquico sobrevoa a série inteira da experiência, busca princípios que possam dispensar totalmente a pedra de toque da experiência e presume conceber o inconcebível. - A descoberta da quadratura do círculo, do perpetuum mobile, a revelação das forças suprassensíveis da natureza e a compreensão do mistério da Trindade estão em seu poder. Ele é o mais pacífico dentre todos os internados e o mais distante dos surtos por causa de sua especulação fechada em si mesma, porque com sua plena autossuficiência deixa de ver todas as dificuldades da investigação. - Essa quarta espécie de loucura poderia ser chamada de sistemática. Pois nessa última espécie de perturbação mental não há mera desordem e desvio da regra do uso da razão, mas também desrazão positiva, isto é, outra regra, um ponto de vista inteiramente diverso, ao qual, por assim dizer, a alma foi transportada e desde o qual vê de outro modo todos os objetos; e se acha transportada (daí a palavra distúrbio mental “Yerruckung” para um lugar distante do sensorio communi, que é requerido para a unidade da vida (do animal), assim como uma paisagem de montanhas, desenhada em perspectiva aérea, proporciona um juízo inteiramente outro sobre a região do que se fosse contemplada da superfície. É certo que a alma não se sente nem se vê noutro lugar (pois não pode perceber a si mesma segundo seu lugar no espaço sem cometer uma contradição, porque senão se intuiria como objeto de seu sentido externo, quando só pode ser para si mesmo objeto do sentido interno); mas com isso se esclarece, tanto quanto é possível fazê-lo, o chamado distúrbio mental. - É, todavia, admirável que as forças da mente arruinada se coordenem sempre num sistema e que a natureza se esforce para introduzir mesmo na desrazão um princípio de ligação dessas forças, a fim de que a faculdade de pensar não fique ociosa, mesmo que não seja objetivamente para o verdadeiro conhecimento das coisas, mas apenas subjetivamente em vista da vida animal. Em contrapartida, a tentativa de observar a si mesmo, fazendo uso de meios físicos, num estado próximo à loucura, estado em que a pessoa se põe voluntariamente para, também por meio dessa observação, compreender melhor o estado de loucura involuntário, demonstra razão suficiente para que se investiguem as causas dos fenômenos. Mas é perigoso fazer experimentos com a mente, colocando-a enferma até um grau em que se possa observá-la, e estudar sua natureza mediante os fenômenos que possam então ocorrer. - É assim que Helmont afirma ter percebido, depois de ingerir certa dose de napelo (uma raiz venenosa), uma sensação como se pensasse com o estômago. Outro médico foi aumentando pouco a pouco a dose de cânfora, até que lhe pareceu como se tudo na rua fosse um grande tumulto. Vários experimentaram por tanto tempo o ópio que caíram em fraqueza mental quando deixaram de seguir empregando esse meio de avivar os pensamentos. - Uma demência artificial poderia facilmente se tomar uma demência verdadeira. Notas esparsas Com o desenvolvimento do embrião até a reprodução, desenvolve-se simultaneamente o germe da loucura, que também é hereditária. É perigoso contrair matrimônio em família, mesmo que haja apenas um indivíduo em semelhante situação. Pois, por muitos que sejam os filhos de um casamento preservados dessa herança ruim, porque em geral saem, por exemplo, ao pai, aos avós e bisavós, se na família da mãe já tiver havido um filho louco (ainda que ela mesma esteja livre desse mal), poderá um dia aparecer nesse casamento um filho que puxa a família materna (como se pode observar também pela semelhança física) e que herdou a perturbação mental. Com frequência há quem pretenda saber indicar a causa acidental dessa enfermidade, de tal modo que não se apresente como hereditária, mas como sendo adquirida, como se o vitimado por ela fosse culpado disso. "Ficou louco de amor", se diz de um, e de outro que "enlouqueceu de orgulho", e de um terceiro até mesmo que "estudou demais". - Enamorar-se de uma pessoa de condição, com quem ter esperanças de se casar é a maior tolice, não é causa e sim efeito da loucura, e, no que se refere ao orgulho, a pretensão de um homem insignificante a que os outros se dobrem diante dele e se ostentem perante ele, pressupõe uma loucura sem a qual não teria tido semelhante comportamento. Mas não é certamente necessário prevenir as pessoas jovens quanto a estudar em demasia. (Que comerciantes negociem em demasia e se percam em planos superiores a suas forças, é um fenômeno habitual. Que jovens exagerem em sua aplicação (desde que tenham uma cabeça saudável), quanto a isso pais preocupados nada têm a temer. A natureza já previne por si mesma tal sobrecarga de saber, fazendo simplesmente com que ao estudante repugnem as coisas sobre as quais quebrou a cabeça em vão. Nota do Autor.) Aqui a juventude precisa mais de esporas que de rédeas. O mais violento e persistente esforço nessa matéria pode fatigar a mente, a ponto de o ser humano poder até passar a ter ojeriza da ciência, mas não pode perturbar a mente onde antes já não era desajustada e, por isso, tinha gosto por livros místicos e revelações que se elevam acima do bom senso. Também entra aí a propensão a dedicar-se totalmente à leitura de livros que obtiveram uma certa unção sagrada, apenas pela sua letra, sem consideração do conteúdo moral deles, para o que um certo autor inventou a expressão: "ele é louco pela escrita". Tenho dúvida se há diferença entre loucura geral (delirium generale) e loucura que se prende a um objeto determinado (delirium circa obiectum). A desrazão (que é algo positivo, não mera falta de razão) é, tanto quanto a razão, uma simples forma à qual os objetos podem se adaptar, e ambas se referem ao universal. Ora, aquilo que durante a erupção do distúrbio mental (que em geral ocorre de repente) vem primeiro à mente (a matéria que casualmente perturba e sobre a qual se alucinará depois), é sobre isso que desde então o louco preferentemente desvaira, porque pela novidade da impressão persiste mais fortemente nele que tudo o mais. Também se diz de alguém a quem escapou alguma coisa: "Ele cruzou a linha", como se um homem que ultrapassou pela primeira vez a linha da zona equatorial corresse perigo de perder o entendimento. Mas isso é só um mal-entendido. O que se quer dizer é que o finório que espera pescar ouro sem muito esforço numa viagem à Índia, traça já aqui seu plano como um louco, mas durante sua execução aumenta a recente loucura e ao seu regresso, ainda que a fortuna lhe tenha sido favorável, ela se mostra desenvolvida por completo. A suspeita de que a cabeça de alguém não vai bem recai já sobre aquele que fala alto consigo mesmo ou é surpreendido gesticulando sozinho no quarto. - Tal suspeita é tanto maior quando crê ser agraciado com inspirações, ou visitado por elas, e crê manter conversas e contato com seres superiores, porém não exatamente quando aceita que outros homens santos sejam talvez capazes de ter tais intuições suprassensíveis, mas ele mesmo não se julga eleito para isso, confessa que nem sequer o deseja e, assim, se exclui disso. O único sinal universal da loucura é a perda do senso comum (sensus communis) e a substituição dele pelo senso lógico privado (sensus privatus), por exemplo, quando em dia claro um indivíduo vê sobre sua mesa uma luz bem forte que outro ali presente não vê, ou quando ouve uma voz que nenhum outro ouve. Pois é uma pedra de toque subjetivamente necessária da retidão de nossos juízos em geral e, portanto, também da saúde de nosso entendimento, que o confrontemos com o entendimento de outros, e não nos isolemos com o nosso e julguemos como que publicamente com nossa representação privada. Por isso, a proibição dos livros que dependem apenas de pensamentos teóricos (principalmente se não têm influência alguma sobre as ações e omissões legais) é uma ofensa à humanidade. Pois com isso se nos retira, se não o único, ao menos o meio maior e mais útil de corrigir nossos próprios pensamentos, o que ocorre quando os expomos publicamente para ver se também se coadunam com o entendimento dos outros, porque, caso contrário, algo simplesmente subjetivo (por exemplo, o hábito ou a inclinação) seria facilmente tomado por objetivo, e nisso consiste precisamente a aparência, da qual se diz que engana, ou melhor, pela qual se é induzido a se enganar a si mesmo na aplicação de uma regra. - Aquele que absolutamente não se volta para essa pedra de toque, mas põe na cabeça que reconhece a validade do senso privado sem ou mesmo contra o senso comum, está entregue a um jogo mental no qual não procede nem julga num mundo em comum com outros, mas (como nos sonhos) se vê em seu próprio mundo. - Às vezes o problema pode estar meramente nas expressões com que um indivíduo, que no mais pensa com clareza, quer comunicar suas percepções exteriores aos demais: estas não querem concordar com o princípio do senso comum, e ele persevera no seu. Foi assim que o brilhante autor de Oceana, Harrington, teve a ideia fantasiosa de que seus etlúvios (effluvia) saltavam de sua pele na forma de moscas. Mas estes podem ter sido efeitos elétricos num corpo sobrecarregado dessa matéria, efeitos de que aliás também se pretende ter tido experiência, e ele talvez tenha apenas desejado indicar uma semelhança de seu sentimento com tal emanação, mas não que tenha visto moscas. O distúrbio mental com furor (rabies), uma afecção de cólera (contra um objeto verdadeiro ou fictício), que torna insensível a todas as impressões do exterior, é apenas uma variedade da perturbação, que frequentemente parece mais assustadora do que é em suas consequências, variedade que, como o paroxismo numa doença febril, não radica tanto na alma quanto é excitada por causas materiais, e poderá com frequência ser eliminada pelo médico com uma única dose de medicamento. Dos talentos na faculdade de conhecer Por talento (dom natural) entende-se aquela excelência da faculdade de conhecer que não depende da instrução, mas da disposição natural do sujeito. Eles são o engenho produtivo (ingenium strictius s. materialiter dictum), a sagacidade e a originalidade no pensar (o gênio). O engenho é, ou engenho comparativo (ingenium comparans), ou engenho argucioso (ingenium argutans). O engenho junta (assimila) representações heterogêneas que, pela lei da imaginação (da associação), frequentemente estão muito distantes umas das outras, e é uma faculdade própria de assemelhação, que pertence ao entendimento (como faculdade de conhecimento do universal), quando este subsume os objetos sob gêneros. Depois, ele necessita do juízo para determinar o particular sob o universal e aplicar a faculdade de pensar para o conhecimento. - Não se pode aprender a ser engenhoso (ao falar ou escrever) por meio do mecanismo da escola e sua coação, mas, como um talento especial, isso faz parte da liberalidade do modo de sentir na comunicação recíproca de pensamentos (veniam damus petimusque vicissim), uma qualidade do entendimento em geral difícil de explicar - como que sua amabilidade - que contrasta com o rigor do juízo (iudicium discretivum) na aplicação do universal ao particular (dos conceitos dos gêneros aos das espécies), que, como tal, limita tanto a faculdade de assimilação quanto a propensão para ela. Da diferença específica entre engenho comparativo e engenho argucioso A Do engenho produtivo É algo agradável, apreciado e estimulante encontrar semelhanças entre coisas heterogêneas e, assim, dar ao entendimento, o que o engenho faz, matéria para tomar universais os seus conceitos. Em compensação, o juízo, que limita os conceitos e contribui mais para a correção que para a ampliação deles, é realmente aclamado e recomendado com todas as honras, mas sério, rigoroso e restritivo no que diz respeito à liberdade de pensar, porém, precisamente por isso, pouco estimado. Que o engenho comparativo aja ou deixe de agir, isso é mais jogo; para o juízo, mais uma incumbência. - Aquele é antes uma flor da juventude; este, mais um fruto maduro da idade. - Quem, num produto do espírito, combina ambas as coisas num grau superior, é rico de sentido (perspicax). O engenho vai atrás de achados; o juízo se empenha por ideias. A circunspecção é uma virtude de burgomestre (administrar e proteger a cidade sob o comando supremo do burgo, conforme leis dadas). Decidir, ao contrário, de um modo audaz (hardi), desconsiderando as ponderações do juízo, tal foi o mérito creditado por seus compatriotas ao grande autor do sistema da natureza, Buffon, ainda que tal lance de ousadia se pareça bastante com imodéstia (frivolidade). - O engenho tende mais para o caldo; o juízo, para o alimento substancioso. A caça de ditos espirituosos (bons mots), tal como ocorre em abundância no abade Trublet, e que atormenta, mas deixa o engenho insatisfeito, toma as inteligências insulsas ou repugna diretamente as profundas. O engenho é inventivo em modas, isto é, em regras de comportamento adotadas que só agradam pela novidade, e antes de se tomar costume, terão de ser trocadas por outras formas igualmente passageiras. Engenho em jogos de palavras é insípido; mas minuciosidade vazia (micrologia) do juízo é pedante. Chama-se engenho humorístico aquele que resulta da disposição da mente para o paradoxo, onde o galhofeiro (malicioso), por detrás do tom leal da simplicidade, o espreita para expor alguém (ou também sua opinião) ao ridículo, ao mesmo tempo em que o contrário daquilo que é digno de aplauso é exaltado com elogios aparentes (zombaria), por exemplo, "a arte de Swift de rastejar na poesia"," ou o Hudibras de Butler: um engenho como este, que por meio do contraste toma o que é desprezível ainda mais desprezível, é bem estimulante, dada a surpresa causada pelo inesperado, mas é sempre apenas um jogo e um engenho leve (como o de Voltaire); em contrapartida, o que apresenta princípios verdadeiros e importantes de forma ornamentada (como Young em suas sátiras), pode ser denominado um engenho muito pesado, porque é um afazer e suscita mais admiração que regozijo. Um provérbio (proverbium) não é um dito espirituoso (bon mot), pois é uma fórmula vulgarizada que expressa um pensamento difundido por imitação, e na boca do primeiro pode ter sido um dito espirituoso. Falar por meio de provérbios é, por conseguinte, a linguagem da plebe e prova a total falta de engenho no contato com a sociedade mais fina. Profundidade não é, sem dúvida, questão de engenho, mas assim que este, por meio das imagens que anexa aos pensamentos, possa ser um veículo ou um invólucro para a razão e para o manejo de suas ideias morais práticas, é possível pensar um engenho profundo (à diferença do superficial). Entre as sentenças tidas como admiráveis de Samuel Johnson sobre as mulheres, cita-se esta, da vida de Waller: "Sem dúvida ele elogiou muitas com as quais teria receio de se casar, e talvez tenha casado com uma que teria tido vergonha de elogiar". Tudo o que é admirável aqui provém do jogo da antítese; a razão nada ganha com ele. - Onde, porém, se tratava de questões controversas para a razão, seu amigo Boswell, por mais que incessantemente procurasse, não pôde trazer à tona nenhuma sentença oracular que revelasse o menor engenho, mas tudo o que ele proferiu sobre os céticos em matéria de religião, sobre a justiça de um governo ou mesmo apenas sobre a liberdade humana em geral, redundou, dado seu natural despotismo denegatório, ainda fortalecido pela bajulação dos aduladores, em pesada grosseria, que seus admiradores têm por bem chamar de aspereza, a qual, porém, demonstrou sua grande incapacidade de unificar, num mesmo pensamento, engenho e profundidade. - O seu talento parece ter sido apreciado por homens influentes, que não deram ouvidos aos amigos dele quando o recomendaram como alguém excepcionalmente apto para ser membro do Parlamento. - Pois o engenho que basta para compor o dicionário de uma língua, não é por isso suficiente para despertar e vivificar as ideias da razão necessárias para o conhecimento em assuntos importantes. - A modéstia penetra por si mesmo na mente daquele que se vê convocado para algo dessa natureza, e a desconfiança de seus talentos, a desconfiança de que não podia decidir sozinho, mas de que devia levar em conta também os juízos dos outros (se preciso fosse, despercebidamente), era uma qualidade que Johnson nunca possuiu. B Da sagacidade ou do dom da investigação Descobrir algo (que está oculto em nós mesmos ou em outra parte) requer em muitos casos um talento especial, o de saber como procurar bem: um dom natural de Julgar provisoriamente (iudicii praevii) onde se possa encontrar a verdade, de farejar as coisas e de aproveitar os menores traços de afinidade para descobrir ou inventar o que se busca. A lógica das escolas não nos ensina nada sobre isso. Mas Baco de Verulamo deu em seu Órganon um brilhante exemplo do método de como se pode descobrir, diante experimentos, a constituição secreta das coisas naturais. Entretanto, mesmo esse exemplo não basta para ensinar conforme regras determinadas como se deve investigar com êxito, pois aqui primeiramente se precisa sempre pressupor algo (começar por uma hipótese) de onde se quer iniciar seu caminho, e isso tem de ocorrer de acordo com princípios conformes a certos indícios, e o problema é justamente como se pode descobri-los. Pois é uma conduta ruim para a investigação tentá-lo às cegas, ao acaso, como quem tropeça numa pedra e encontra uma mina e até um veio de minério. Há, contudo, pessoas que têm um talento de seguir, por assim dizer, a pista dos tesouros do conhecimento com uma varinha mágica na mão, sem que o tenham aprendido, o que também não ensinam a outros, mas só podem executar diante deles, porque é um dom da natureza. C Da originalidade da faculdade de conhecer ou do gênio Inventar algo é inteiramente diferente de descobrir algo. Pois a coisa que se descobre é suposta já antes existente, só que ainda não era conhecida, por exemplo, a América antes de Colombo; mas o que se inventa, por exemplo, a pólvora, não era conhecido antes de o artista tê-lo criado. (A pólvora já tinha sido usada muito tempo antes da época do monge Schwarz, durante o sítio de Ageciras, e sua invenção parece caber aos chineses. No entanto, pode ser também que, tendo a pólvora nas mãos, aquele alemão fez ensaios de análises dela (por exemplo, separando o salitre nela contido, retirando o carbono e queimando o enxofre) e, assim, a descobriu mas não a inventou. Nota do Autor.) Ambas as coisas podem ser um mérito. Mas pode-se achar algo que de modo algum se busca (como o alquimista, o fósforo), e isso também não é absolutamente um mérito. - Ora, o talento de inventar se chama gênio. Esse nome é atribuído apenas a um artista, portanto, àquele que sabe fazer algo, não àquele que meramente conhece e sabe muita coisa, e tampouco ao mero artista imitador, mas àquele que tem disposição para produzir suas obras de maneira original; enfim, também a este último apenas quando seu produto é modelar, isto é, quando merece ser imitado como exemplo (exemplar). - Assim, o gênio de um homem é "a originalidade exemplar de seu talento" (em relação a esta ou aquela espécie de produtos artísticos). Todavia, também se denomina um gênio a alguém que tem disposição para isso, porque tal palavra não deve significar meramente o dom natural de uma pessoa, mas também a própria pessoa. - Ser gênio em muitas especialidades é ser um gênio vasto (como Leonardo da Vinci). O campo próprio para o gênio é o da imaginação, porque esta é criadora e está menos sob pressão das regras que outras faculdades, e por isso é tanto mais capaz de originalidade. - O mecanismo da instrução, porque sempre coage o aluno à imitação, é certamente prejudicial à germinação de um gênio, a saber, no que diz respeito à sua originalidade. Toda arte necessita, porém, de certas regras mecânicas fundamentais, a saber, da adequação do produto à ideia que lhe serve de base, isto é, de verdade na exposição do objeto que é pensado. Isso tem de ser aprendido com rigor escolar e é certamente um efeito da imitação. Mas libertar a imaginação também dessa coação e deixar, até mesmo contra a natureza, o próprio talento proceder sem regra e desvairar, resultaria talvez em loucura original, que porém não seria modelar e, portanto, também não poderia ser considerada como gênio. Espírito é o princípio vivificador no ser humano. Na língua francesa, espírito «Geist» e engenho têm um mesmo nome, esprit. Em alemão é diferente. Diz-se que um discurso, um escrito, uma dama em sociedade etc. são belos, mas sem espírito. O provimento que se tem de engenho não é de valia aqui, pois também se pode tomá-lo enfadonho, já que seu efeito não deixa nada de duradouro. Para que possam ser chamadas de espirituosas, todas as coisas e pessoas assim consideradas precisam despertar um interesse, e despertá-lo por meio de ideias. Pois isso põe a imaginação em movimento, a qual vê diante de si um grande espaço de jogo para semelhantes conceitos. Como seria, pois, se expressássemos a palavra francesa génie mediante o alemão eigentumlicher Geist [espírito pessoal]? Pois nossa nação se deixa persuadir que os franceses têm uma palavra para isso procedente de sua própria língua, palavra que não possuiríamos na nossa, mas a teríamos tomado de empréstimo a eles, quando na verdade eles mesmos a tomaram emprestado ao latim (genius), onde não significa outra coisa senão um espírito pessoal. Mas a causa pela qual a originalidade modelar do talento é denominada com esse nome místico é que quem tem esse talento não pode explicar para si mesmo os arroubos dele, nem tampouco tomar compreensível para si mesmo como chega a uma arte que não pôde aprender. Pois invisibilidade (da causa de um efeito) é um conceito acessório de espírito (de um genius que se associou ao talentoso já no seu nascimento), cuja inspiração ele como que apenas segue. As forças mentais têm, no entanto, de ser harmoniosamente movidas pela imaginação, porque do contrário não se vivificariam mas se perturbariam mutuamente, e isso precisa ocorrer por meio da natureza do sujeito: pode-se por isso denominar gênio também o talento "por meio do qual a natureza dá regra à arte". Pode-se deixar em aberto a questão de saber se no conjunto o mundo é assistido especialmente por grandes gênios, porque frequentemente traçam novos caminhos e abrem novas perspectivas, ou se não são as inteligências mecânicas, ainda que não marquem época, as que mais têm contribuído para o desenvolvimento das artes e ciências, com seu entendimento trivial progredindo lentamente apoiado na experiência (pois, se bem que não tenham suscitado a admiração, também não provocaram nenhuma desordem). - Mas há uma classe daqueles, os chamados homens de gênio (melhor, macaqueadores do gênio), que se amontoa debaixo daquela insígnia e fala a língua de inteligências extraordinariamente favorecidas pela natureza, declara que aprender e investigar laboriosamente é próprio de embotados, e sustenta ter apreendido de um só golpe o espírito de toda ciência, administrando-o, porém, em pequenas doses concentradas e fortes. Como os charlatães e impostores, essa classe de gente é muito prejudicial aos progressos da formação científica e moral quando emite sua opinião sobre religião, questões de Estado e moral no tom peremptório de um iniciado ou detentor da cátedra da sabedoria, e sabe, assim, encobrir a miséria do seu espírito. Que outra coisa cabe fazer contra isso além de sorrir e prosseguir pacientemente seu caminho com aplicação, ordem e clareza, sem levar esses prestidigitadores em consideração? O gênio parece possuir em si também diferentes germes originais, tendo-os desenvolvido diversamente segundo o diferente cunho nacional e a terra em que nasceu. Nos alemães ele está mais na raiz; nos italianos, na copa; nos franceses, na flor e entre os ingleses, no fruto. A inteligência universal (que compreende todas as mais diferentes ciências) é ainda diferente do gênio, como gênio inventivo. A primeira pode estar naquilo que se pode aprender, quer dizer, naquele que possui o conhecimento histórico daquilo que até agora se fez em relação a todas as ciências (polímata), como Júlio César Scaligero. O segundo é o ser humano, não tanto pela grande abrangência do espírito quanto pela grandeza intensiva dele, de marcar época em tudo aquilo que empreende (como Newton, Leibniz). O gênio arquitetônico, que conhece metodicamente a conexão de todas as ciências e como se apoiam umas às outras, é um gênio apenas subalterno, mas não comum. - Também há no entanto uma erudição gigantesca, que frequentemente é ciclópica, a saber, falta-lhe um olho, o da verdadeira filosofia, para que a razão possa empregar essa grande quantidade de saber histórico, que equivale à carga de cem camelos, de uma maneira adequada a seus fins. Em muitos casos, os meros naturalistas da inteligência (élêves de la nature, autodidacti) também podem passar por gênios, porque descobriram por si mesmos muito do que sabem, embora pudessem ter aprendido com outros, e são gênios naquilo que em si não é coisa de gênio: assim, no que diz respeito às artes mecânicas, há na Suíça muitos que são inventores nessas artes; mas um menino prodígio (ingenium praecox) de existência efêmera, como Heinecke de Lubeck ou Baratier de Halle, são desvios que a natureza fez de sua regra, raridades para o gabinete do naturalista, que causam admiração pela prematuridade, mas no fundo também frequentemente arrependimento naqueles que os incentivaram. Como por fim, para a sua própria promoção, mesmo no conhecimento teórico, o uso total da faculdade de conhecer necessita da razão, que dá a regra somente conforme a qual se pode promovê-la, pode-se resumir o que a razão exige dela em três perguntas, que são colocadas segundo suas três faculdades: o que eu quero? (pergunta o entendimento); (O querer é entendido aqui meramente em sentido teórico: que quero afirmar como verdadeiro? Nota do Autor.) de que se trata? (pergunta o juízo); o que resulta disso? (pergunta a razão). As mentes são muito diferentes em sua capacidade de responder a essas três perguntas. - A primeira requer apenas uma mente clara para entender a si mesma, e esse dom natural é, com alguma cultura, bastante comum, principalmente se se chama a atenção para isso. - Responder acertadamente a segunda é muito mais raro, pois se oferecem muitas formas de determinação do presente conceito e de resolução aparente do problema: qual é a única exatamente adequada a ele (por exemplo, nos processos ou nos inícios de certos planos de ação para o mesmo fim)? Para isso há um talento em escolher o precisamente justo num certo caso (iudicium discretivum), talento bastante desejável mas também muito raro. O advogado que se reveste de muitas razões para corroborar sua defesa, dificulta muito a sentença do juiz, porque ele mesmo só tateia; mas se depois de explicar o que quer ele sabe encontrar o ponto que importa (pois é um só), então a contenda é rapidamente liquidada, e a sentença da razão sai por si só. O entendimento é positivo e expulsa as trevas da ignorância - o juízo é mais negativo e previne dos erros provenientes da luz crepuscular em que os objetos aparecem.- A razão fecha as fontes dos erros (os preconceitos) e com isso garante o entendimento mediante a universalidade dos princípios. - A erudição livresca aumenta realmente os conhecimentos, mas, onde não é acrescida de razão, não amplia o conceito nem o conhecimento. Contudo, a razão ainda deve ser diferenciada da argumentação, do jogo de meras tentativas no uso da razão sem uma lei dela. Se a questão é se devo acreditar nos fantasmas, posso argumentar de todas as formas sobre a possibilidade deles, mas a razão proíbe a admissão da possibilidade desse fenômeno supersticiosamente, isto é, sem um princípio de explicação dele segundo as leis da experiência. Pela grande diferença no modo como as mentes consideram exatamente os mesmos objetos e se consideram mutuamente, pelo contato e pela união delas, tanto quanto por sua separação, a natureza produz um espetáculo digno de ser visto no palco de observadores e pensadores infinitamente distintos em sua espécie. Para a categoria dos pensadores as máximas seguintes (já mencionadas acima como conduzindo à sabedoria) podem se tomar mandamentos imutáveis: l. Pensar por si. 2. Pôr-se (na comunicação com seres humanos) no lugar do outro. 3. Pensar sempre de acordo consigo mesmo. O primeiro princípio é negativo (nullius addictus iurare in verba Magistri), é o princípio do modo de pensar livre de coação; o segundo é positivo, é o princípio do modo liberal de pensar, que se acomoda aos conceitos dos outros; o terceiro, o principio do modo consequente (coerente) de pensar; a antropologia pode dar exemplos de cada um deles, e mais ainda de seus contrários. A mais importante revolução no interior do ser humano é "a saída deste do estado de menoridade em que se encontra por sua própria culpa". Enquanto até aqui outros pensaram por ele, e ele simplesmente imitou ou precisou de andadeiras, agora, vacilante ainda, ele ousa avançar com os próprios pés no chão da experiência. LIVRO SEGUNDO O SENTIMENTO DE PRAZER E DESPRAZER Divisão 1. Prazer sensível. 2. Prazer intelectual. O primeiro ou A) por meio do sentido (o contentamento físico), ou B) por meio da imaginação (o gosto); o segundo (a saber, o intelectual) ou a) por meio de conceitos que podem ser expostos, ou b) por meio de ideias - e assim é representado também o contrário, o desprazer. Do prazer sensível A Do sentimento do agradável ou do prazer sensível na sensação de um objeto Contentamento é um prazer sensorial, e o que dá prazer ao sentido é agradável. Dor é desprazer por meio do sentido e o que a produz é desagradável. - Não estão um para o outro como ganho e falta (+ e 0), mas como ganho e perda (+ e -), isto é, um não é oposto ao outro meramente como contraditório (contradictorie s. logice oppositum), mas também como contrário (contrarie s. realiter oppositum). - - As expressões do que apraz ou desapraz e do que está no meio deles, o indiferente, estão muito distantes, pois podem chegar também ao plano intelectual, onde não coincidiriam com contentamento e dor. Esses sentimentos também podem ser explicados pelo efeito que a sensação de nosso estado causa na mente. O que me impele imediatamente (pelo sentido) a abandonar meu estado (a sair dele) me é desagradável - me é doloroso; do mesmo modo, o que me impele a conservá-lo (a permanecer nele) me é agradável, me contenta. Somos, porém, incessantemente levados pelo fluxo do tempo e pela mudança de sensações a ele ligada. Se bem que abandonar um momento e entrar em outro seja um mesmo ato (de mudança), ainda assim em nosso pensamento e na consciência desta mudança há uma sucessão temporal, conforme a relação de causa e efeito. - Pergunta-se então se o que desperta em nós a sensação de contentamento é a consciência de abandonar o estado presente ou a perspectiva de entrar no estado futuro. No primeiro caso, o contentamento não é outra coisa que a supressão de uma dor e algo negativo; no segundo, seria o pressentimento de algo agradável, logo aumento do estado de prazer, portanto, algo positivo. Mas também já se pode de antemão adivinhar que só o primeiro ocorrerá, pois o tempo nos arrasta do estado presente ao futuro (não o inverso) e que primeiro sejamos forçados a sair do estado presente, sem saber determinadamente em qual entraremos, mas apenas que é um outro, somente isso pode ser a causa do sentimento agradável. Contentamento é o sentimento de promoção da vida; dor, o de um impedimento dela. Todavia, a vida (do animal) é, como também já observam os médicos, um jogo contínuo do antagonismo entre ambos. Assim antes de todo contentamento tem de preceder a dor; a dor é sempre o primeiro. Pois que outra coisa se seguiria de uma contínua promoção da força vital, que não se deixa elevar acima de certo grau, senão uma rápida morte de júbilo? Um contentamento tampouco pode seguir imediatamente a outro, mas, entre um e outro, tem de se encontrar a dor. São pequenos obstáculos à força vital, mesclados com incrementos dela, que constituem o estado de saúde, o qual erroneamente consideramos como sendo o sentimento de um contínuo bem-estar; porque consiste unicamente de sentimentos agradáveis que se sucedem com intervalos (sempre com a dor se intercalando entre eles). A dor é o aguilhão da atividade e somente nesta sentimos nossa vida, sem esta ocorreria a ausência da vida. As dores que passam lentamente (como a gradual convalescença de uma doença ou a lenta reaquisição de um capital perdido) não têm por resultado um vivo contentamento, porque a transição é imperceptível. - Subscrevo com plena convicção essas proposições do conde Veri. Elucidação mediante exemplos Por que o jogo (principalmente por dinheiro) é tão atraente e por que, quando não se volta em demasia para os próprios interesses, é a melhor distração e descanso após um longo esforço do pensamento, já que não fazer nada só lentamente proporciona descanso? Porque ele é o estado em que temor e esperança incessantemente se alternam. Depois dele, o jantar é saboroso e também melhor a digestão. - Por que espetáculos teatrais (tragédia ou comédia) são tão cativantes? Porque em todos eles há certas dificuldades - inquietação e hesitação em meio a esperança e alegria - e assim o jogo de afecções contrárias é, ao término da peça, estímulo à vida do espectador, pois o comoveu interiormente. - Por que um romance de amor termina com o casamento e por que razão um volume suplementar (como em Fielding), que a mão de um inepto prolonga até a vida conjugal, é repugnante e insípido? Porque o ciúme, como a dor dos namorados entre suas alegrias e esperanças, é, antes do casamento, um tempero picante para o leitor, mas no casamento, um veneno; pois, para falar na língua dos romances, "o fim das dores de amor é, ao mesmo tempo, o fim do amor" (entenda-se com paixão). - Por que o trabalho é a melhor maneira de gozar a vida? Porque é uma ocupação penosa (em si desagradável e só satisfatória por seu resultado) e o repouso pelo mero desaparecimento de uma longa fadiga se transforma em prazer sensível, em satisfação; porque do contrário não seria nada apetecível. - O tabaco (fumado ou aspirado) está primeiro ligado a uma sensação desagradável. Mas justamente porque a natureza elimina momentaneamente essa dor (por uma secreção de mucosidade da boca ou do nariz), o tabaco (sobretudo o primeiro) se toma uma espécie de companhia pelo entretenimento que produz, desperta sempre novas sensações e até pensamentos, embora aqui estes apenas passeiem ao léu. - Por fim, ao menos uma dor negativa afetará frequentemente aquele que uma dor positiva não incita à atividade, o tédio, como vazio de sensação, que o homem habituado à mudança desta percebe em si quando se esforça em preencher com ela seu impulso vital, e o afetará em tal medida, que se sentirá impelido a fazer antes algo que o prejudique, a não fazer absolutamente nada. Do tédio e do passatempo Sentir sua vida, sentir contentamento não é, pois, nada mais que se sentir continuamente impelido a sair do estado presente (que, portanto, tem de ser uma dor que retoma com tanta frequência quanto este). Daí se explica o peso opressivo, angustiante, do tédio para todos os que dedicam atenção à própria vida e ao tempo (os seres humanos cultivados). (O caraíba está livre desse peso por sua inata falta de vida. Pode ficar sentado horas a fio com sua vara de pescar, sem nada pegar; a ausência de pensamentos é uma falta de estímulo para a atividade, que sempre implica uma dor da qual ele está isento. - Graças a obras efêmeras, nosso público leitor de gosto refinado nunca perde o apetite, tem uma fome insaciável de leitura (uma forma de não fazer nada), não para se cultivar, mas para fruir, tanto que as cabeças ficam sempre vazias e não há que temer uma saturação, ao mesmo tempo que dão à sua atarefada ociosidade a aparência de um trabalho e simulam nela um digno emprego de tempo, o qual, todavia, não é em nada melhor do que aquele que proporciona ao público o Jornal do Luxo e das Modas. Nota do Autor.) Essa pressão ou impulso que se sente, de abandonar todo momento em que nos encontramos e passar ao seguinte, é acelerada e pode chegar à resolução de pôr fim à própria vida, porque o homem voluptuoso tentou prazeres de toda espécie e nenhum mais é novo para ele; como se dizia do lorde Mordaunt em Paris: "Os ingleses se enforcam para passar o tempo". - O vazio de sensações que se percebe em si provoca horror (horror vacui) e é como que o pressentimento de uma morte lenta, considerada mais penosa que aquela em que o destino corta repentinamente o fio da vida. Daí se explica também porque os passatempos são identificados com o contentamento: porque, quanto mais rápido passamos pelo tempo, tanto mais reanimados nos sentimos, tal como num grupo que, durante uma viagem de passeio, se entretém no carro conversando durante três horas, e ao descer um deles olha o relógio e diz alegremente: "Como o tempo voou!" ou "Como o tempo passou rápido!". Porque, ao contrário, se a atenção que prestamos ao tempo não fosse atenção a uma dor da qual nos esforçamos por estar livres, mas a um contentamento, toda perda de tempo seria, com razão, lamentada. - As conversas que contêm pouca mudança de representações são tediosas e, por isso mesmo, também fatigantes, e um homem divertido, mesmo não sendo considerado um homem importante, é no entanto considerado um homem agradável, que enche de alegria o rosto de todos os convidados tão logo adentra a sala, tal como o contentamento que se sente ao se livrar de um peso. Mas como explicar o fenômeno de um homem que durante a maior parte da vida se afligiu com o tédio, de tal modo que para ele cada dia foi longo, mas no fim da vida se queixa da brevidade dela? A causa disso deve ser procurada em analogia com uma observação afim: de onde vem que as milhas alemãs (não medidas ou assinaladas com marcos como as verstas russas) tomam-se tanto menores quanto mais próximas da capital (por exemplo, Berlim), e tanto maiores, quanto mais distantes dela (na Pomerânia)? A abundância de objetos vistos (aldeias e casas de campo) ocasiona na memória a inferência ilusória de que se percorreu um grande espaço e, por conseguinte, também a inferência de um tempo mais longo exigido para isso; mas, no segundo caso, o vazio ocasiona menos lembrança de coisas vistas, logo a inferência de um caminho mais curto e, consequentemente, de um tempo mais curto que o marcado pelo relógio. - Do mesmo modo, a quantidade de divisões que marca a última quadra da vida com múltiplos e variados afazeres, fará um idoso imaginar ter percorrido um tempo de vida mais longo do que teria acreditado pelo número dos anos; e preencher o tempo com ocupações que progridem segundo um plano, tendo como resultado um grande fim proposto (vitam extendere factis), é o único meio seguro de se tomar feliz com a própria vida e, ao mesmo tempo, também saciado dela. "Quanto mais você pensou, quanto mais você fez, tanto mais longamente você viveu (mesmo em tua própria imaginação)". - Tal desfecho da vida ocorre então com aquiescência. Mas que se passa com a aquiescência (acquiescentia) durante a vida? - Ela é inatingível para o ser humano tanto em sentido moral (estar satisfeito consigo mesmo quanto à sua boa conduta), quanto em sentido pragmático (estar tranquilo com seu bem-estar, que ele pensa proporcionar a si mesmo mediante habilidade e prudência). A natureza pôs a dor no ser humano como um aguilhão para a atividade, ao qual não pode escapar se quer progredir sempre até o melhor, e mesmo no último instante da vida a quietude em relação à última quadra dela deve ser assim denominada apenas comparativamente (em parte porque nos comparamos com o destino de outros, em parte com nós mesmos), mas ela nunca é pura e completa. - Estar (absolutamente) saciado na vida seria repouso inerte e suspensão dos estímulos, ou embotamento das sensações e da atividade a elas ligada. Mas um estado semelhante não pode coexistir com a vida intelectual do homem, tão pouco quanto a parada do coração num corpo animal, à qual se segue inevitavelmente a morte caso não ocorra um novo estímulo (pela dor). Nota. - Nesta parte se deveria tratar também das afecções, como sentimentos de prazer e de desprazer que ultrapassam os limites da liberdade interior do ser humano. Contudo, porque costumam frequentemente ser confundidas com as paixões, que se encontram em outra parte, a saber, na faculdade de desejar, e no entanto também têm próximo parentesco com elas, empreenderei a discussão delas por ocasião desta terceira parte. Estar habitualmente disposto à alegria é, sem dúvida, em sua maior parte, uma qualidade do temperamento, mas também com frequência pode ser um efeito dos princípios, como o assim chamado e por isso denegrido princípio de voluptuosidade de Epicuro, que deveria significar propriamente o coração sempre alegre do sábio. - Equânime é aquele que nem se rejubila nem se entristece, e difere bastante daquele que é indiferente diante dos acasos da vida, isto é, do sentimento embotado. - Da equanimidade se diferencia a índole humorosa (presumivelmente esta no início era chamada de lunática), que é uma disposição do sujeito a explosões de alegria ou de tristeza, sem que ele mesmo possa indicar qual a razão delas, e que afeta principalmente os hipocondríacos. Ela é totalmente diferente do talento humorístico (de um Butler ou de um Sterne), que com jocosa simplicidade proporciona ao ouvinte ou ao leitor o contentamento de colocar novamente na posição correta aqueles objetos que uma mente engenhosa colocou propositalmente numa posição invertida (por assim dizer, de cabeça para baixo). - A sensibilidade não é contrária àquela equanimidade. Pois é uma faculdade e uma força, de aceitar tanto o estado de prazer quanto de desprazer, ou também de mantê-los longe da mente e, por isso, ela tem uma escolha. Em compensação a suscetibilidade «Empfindelei» é uma fraqueza, de se deixar afetar mesmo contra a vontade, porque se compartilha o estado de espírito dos outros, os quais podem, por assim dizer, jogar ao bel-prazer com o órgão do indivíduo suscetível. A primeira é máscula, pois o homem que quer poupar pesares ou dor a uma mulher ou a uma criança precisa ter de participar do sentimento destas tanto quanto é necessário para julgar o sentimento dos outros, não por sua força, mas pela fraqueza deles, e a delicadeza do seu sentimento é necessária à generosidade. Pelo contrário, a participação inativa do seu sentimento, para que este seja uma ressonância simpatiética ao sentimentos dos outros e, assim, se seja afetado apenas de maneira passiva, é tola e pueril. - Desse modo, pode e deveria haver piedade de bom humor; pode-se e deve-se fazer um trabalho fatigante, mas necessário, de bom humor; pode-se inclusive morrer de bom humor, pois tudo isso perde seu valor quando a gente faz ou suporta essas coisas de mau humor e com rabugice. Da dor com que alguém se ocupa deliberadamente como se nunca fosse cessar, a não ser com a vida, se diz que traz algo (um mal) no fundo do peito. - Mas não se deve trazer nada no fundo do peito, pois é preciso tirar da mente aquilo que não se pode mudar: seria um absurdo querer fazer com que não tenha acontecido o que aconteceu. Aprimorar-se é bem possível, e mesmo um dever, mas querer ainda aprimorar o que já está fora de meu poder, é absurdo. Entretanto, tomar alguma coisa a peito, entendendo-se por alguma coisa todo bom conselho ou doutrina que se tem o firme propósito de observar, é um direcionamento refletido do pensamento com o intuito de ligar sua vontade a um sentimento bastante forte na execução deles. - Em vez de mudar rapidamente sua disposição visando melhorar seu modo de vida, a penitência daquele que se autoflagela é puro trabalho perdido e tem ainda a perniciosa consequência de que se considera, meramente por isso (pelo arrependimento), saldadas as suas culpas e, assim, de que se poupa o esforço racional de busca do aprimoramento, que depois disso tem ainda de ser redobrado. Há um modo de contentamento que é, ao mesmo tempo, cultura, a saber, aumento da capacidade de fruir ainda mais os contentamentos dessa espécie, tais como o das ciências e belas-artes. Mas outro modo é o consumo, que sempre nos faz menos capazes de fruições posteriores. Contudo, qualquer que seja o caminho por que se possa buscar o contentamento, é uma máxima capital, como já se disse acima, dosar-se para que sempre se possa ter mais dele; pois estar saciado produz aquele estado repugnante que torna a própria vida um fardo ao homem mal habituado, e consome as mulheres sob o nome de vapores. - Jovem! (eu repito), acostuma-te a amar o trabalho, recusa-te os contentamentos, não para renunciar a eles, mas para tanto quanto possível mantê-los sempre à vista. Não embotes prematuramente a receptividade para eles com a sua fruição. A maturidade, que nunca permite que se lamente a privação de cada fruição física, assegurar-te-á justamente com esse sacrifício um capital de satisfação que é independente do acaso ou da lei natural. Entretanto, julgamos também o contentamento e a dor por uma satisfação ou insatisfação superior em nós mesmos (a saber, moral): se devemos recusá-los ou entregar-nos a eles. 1. O objeto pode ser agradável, mas o contentamento com ele despraz: Daí a expressão uma "alegria amarga". - Aquele que está em má situação e recebe uma herança dos pais ou de um parente digno e generoso, não pode evitar se alegrar com seu falecimento, mas também não pode evitar se repreender por essa alegria. Exatamente isso se passa na mente de um funcionário adjunto que acompanha, com não fingida tristeza, as exéquias de seu estimado antecessor. 2. O objeto pode ser desagradável, mas a dor que se tem por ele aprazo Daí, a expressão "dor amena": por exemplo, a de uma viúva que, apesar de ter sido deixada em boa situação, não quer se deixar consolar, o que com frequência é interpretado, embora injustamente, como afetação. Em contrapartida, o contentamento pode, além disso, aprazer quando o homem tem um contentamento com objetos dos quais é honroso se ocupar: por exemplo, em vez da mera fruição dos sentidos, o entretenimento com as belas-artes, é também a satisfação de que ele (como homem fino) é capaz de um tal contentamento. - Igualmente, a dor de um homem pode, além disso, ser para ele um desprazer. Todo ódio de alguém ofendido é dor; mas o homem de boa índole não pode evitar se censurar pelo fato de que, mesmo depois do desagravo, continue guardando rancor àquele que o ofendeu. Contentamento que alguém obtém por si mesmo (legalmente) é sentido em dobro; uma vez como ganho e, em seguida, como mérito (a imputação interior de ser o próprio autor dele). - Dinheiro ganho com o trabalho contenta pelo menos de forma mais duradoura que o obtido em jogos de azar, e ainda que não se leve em conta o quanto a loteria tem no geral de nocivo, há, no entanto, naquilo que se ganha com ela algo de que um homem de boa índole tem de se envergonhar. - Um mal provocado por uma causa estranha é doloroso, mas aquele em que se tem culpa, aflige e abate. Mas como explicar ou conciliar o fato de que num mal que outros fazem a alguém, se falem duas línguas? - Assim, por exemplo, um dos injuriados diz: "Eu me daria por satisfeito, se tivesse a menor culpa nisso"; porém, um segundo: "O meu consolo é que sou totalmente inocente". - Sofrer inocentemente injúria causa indignação, porque é sofrer ofensa de outro. - Sofrê-la como culpado abate, porque é censura interior. - Vê-se facilmente que, desses dois seres humanos, o segundo é o melhor. Não é precisamente a observação mais agradável que se pode fazer aos homens a de que seu contentamento aumenta por comparação com a dor dos outros, mas a dor própria diminui pela comparação com um sofrimento igualou ainda maior dos outros. Esse efeito é, porém, meramente psicológico (segundo o princípio do contraste: opposita iuxta se posita magis elucescunt) e não tem nenhuma relação com a moral: por exemplo, desejar a outros que sofram, para poder sentir tanto mais intimamente o conforto do próprio estado. A gente se compadece com o outro pela imaginação (como quando alguém que, vendo outro perder o equilíbrio e prestes a cair, involuntariamente e em vão se inclina para o lado oposto, como que para colocá-lo de pé) e se alegra apenas de não estar também preso ao mesmo destino. (Suave mari magno turbantibus aequora ventis, E terra alterius magnum spectare laborem; Non quia vexari quenquam est incunda voluptas. Sed quibus ipse malis careas quia cernere suave est. Lucrécio, Nota do Autor.) Por isso o povo acorre com vivo desejo para ver o cortejo e a execução de um delinquente, da mesma maneira que se vai assistir a um espetáculo teatral. Pois as comoções e sentimentos que se exteriorizam no rosto e na conduta do condenado agem simpateticamente sobre o espectador e, depois de passado o temor provocado pela imaginação (temor cuja intensidade aumenta ainda pela solenidade), deixam nele o sentimento suave, mas ainda assim sério, de um relaxamento, que toma tanto mais sensível o júbilo de vida que se lhe segue. Também quando comparada a outras dores possíveis em sua própria pessoa, a dor se toma mais suportável. Pois aquele que teve uma perna quebrada pode tomar mais suportável sua infelicidade quando se lhe mostra que poderia facilmente ter sido atingido no pescoço. O meio mais profundo e fácil de mitigar todas as dores é o pensamento que bem se pode exigir de um homem racional: o de que a vida em geral, no que diz respeito à fruição dela, a qual depende das circunstâncias felizes, não tem absolutamente valor próprio, e só tem um valor, no que concerne ao uso que dela se faz, pelos fins a que é orientada, valor que não pode ser dado ao ser humano pela sorte, mas apenas pela sabedoria, valor que, portanto, está em seu poder. Quem se aflige e angustia com a perda da vida, nunca terá alegria de viver. B Do sentimento do belo, isto é, do prazer em parte sensível e em parte intelectual na intuição refletida , ou do gosto. No significado próprio da palavra, gosto é, como já se disse acima, a propriedade de um órgão (da língua, do palato e da garganta), de ser afetado especificamente por certas matérias decompostas durante o ato de comer ou beber. Ao exercer sua função, o gosto deve ser entendido, ou simplesmente como gosto capaz de fazer diferenciações, ou também, ao mesmo tempo, como bom gosto [por exemplo, se algo é doce ou amargo, ou se o que se prova - doce ou amargo - é agradável]. O primeiro pode obter consenso universal sobre a maneira de denominar certas matérias, mas o último jamais pode emitir um juízo universalmente válido, a saber, que o que é agradável para mim (por exemplo, o amargo) também será agradável a todos. A razão disso é clara: o prazer e o desprazer não pertencem à faculdade de conhecer respectivamente aos objetos, mas são determinações do sujeito, portanto, não podem ser atribuídos aos objetos externos. - O bom gosto contém, por conseguinte, o conceito de uma diferenciação mediante satisfação ou insatisfação, que vinculo à representação do objeto na percepção ou imaginação. A palavra gosto, no entanto, é tomada como uma faculdade de julgar sensível, de escolher não meramente para mim segundo a sensação dos sentidos, mas também segundo certa regra que é representada como válida para todos. Essa regra pode ser empírica, onde então, porém, não pode reivindicar uma verdadeira universalidade e, por conseguinte, tampouco necessidade (no bom gosto, o juízo de qualquer outro tem de concordar com o meu). Assim, em matéria de refeição a regra de gosto válida para os alemães manda começar por uma sopa, mas, para os ingleses, por um prato forte, porque um hábito que se propagou aos poucos por imitação fez com que esta se tomasse a regra de como servir a mesa. Há, entretanto, também um bom gosto cuja regra tem de ser fundada a priori, porque enuncia a necessidade, portanto, também a validade para todos no modo como a representação de um objeto deve ser julgada em referência ao sentimento de prazer ou desprazer (onde, portanto, a razão entra secretamente no jogo, ainda que não se possa deduzir o juízo dela de princípios racionais e demonstrá-lo de acordo com estes), e a esse gosto se poderia denominar racional à diferença do empírico, como gosto sensível (aquele, gustus reflectens; este, reflexus). Toda exposição da própria pessoa ou da sua arte feita com gosto pressupõe um estado de sociabilidade (para se comunicar), que nem sempre é sociável (de participação no prazer dos demais), mas de início é geralmente bárbaro, insaciável e de mera rivalidade. - Em completa solidão ninguém adornará ou limpará sua casa: não fará isso para os seus (mulher e filhos), mas apenas para os estranhos, a fim de se mostrar de uma maneira vantajosa. Porém, no gosto (da escolha), isto é, na faculdade de julgar estética, não é imediatamente a sensação (o material da representação do objeto), mas a maneira como a livre imaginação (produtiva) a harmoniza mediante criação, ou seja, é a forma que produz a satisfação com o objeto, pois somente a forma é capaz de reivindicar uma regra universal para o sentimento de prazer. Da sensação dos sentidos, que pode ser muito distinta devido à diferença da capacidade sensorial dos sujeitos, não se pode esperar semelhante regra universal. - Pode-se, pois, definir o gosto assim: "gosto é a faculdade do juízo estético de escolher de um modo universalmente válido". Ele é, por conseguinte, uma faculdade de julgar socialmente os objetos exteriores na imaginação. - Aqui a mente sente sua liberdade no jogo das representações da imaginação (por conseguinte, da sensibilidade), pois a sociabilidade com outros seres humanos pressupõe liberdade - e esse sentimento é prazer -. Mas a validade universal desse prazer para todos, pela qual a escolha com gosto (do belo) se diferencia da escolha pela mera sensação dos sentidos (do agrado meramente subjetivo), isto é, do agradável, contém o conceito de uma lei, pois só segundo esta a validade do prazer pode ser universal para quem julga. Contudo, a faculdade de representar o universal é o entendimento. Logo, o juízo de gosto é tanto um juízo estético quanto um juízo do entendimento, pensado porém no vínculo de ambos (portanto, o último não como puro). - O julgamento de um objeto pelo gosto é um juízo sobre o acordo ou conflito entre a liberdade no jogo da imaginação e a legalidade do entendimento, e diz respeito apenas a à forma de julgar esteticamente (unificabilidade das representações sensíveis), não aos produtos nos quais aquela é percebida, pois isso seria gênio, cuja arrebatada vivacidade necessita frequentemente ser limitada e moderada pelo recato do gosto. A beleza é a única que pertence ao gosto; na verdade, o sublime também pertence ao juízo estético, mas não ao gosto. Contudo a representação do sublime pode e deve ser bela em si, do contrário é rude, bárbara e contrária ao gosto. Mesmo a representação do mal ou da feiura (por exemplo, em Milton, a figura da morte personificada) pode e precisa ser bela, para que um objeto possa ser representado esteticamente, mesmo que seja um Tersites, pois do contrário causa desagrado ou asco, ambos contendo a ânsia de repelir de si uma representação oferecida para fruição, ao passo que a beleza, ao contrário, implica o conceito de um convite para a união mais íntima com o objeto, isto é, para fruição imediata. - Com a expressão "uma bela alma" se diz tudo o que se pode dizer para tomá-la fim da mais íntima união com ela; pois grandeza e força da alma referem-se à matéria (os instrumentos para certos fins), mas a bondade da alma refere-se à forma pura sob a qual todos os fins têm de poder se unir e que, por isso, onde é encontrada, é como o Eras do mundo da fábula, criadora original mas também supraterrena -, essa bondade da alma é, porém, o ponto central em tomo do qual o juízo de gosto reúne todos os seus juízos sobre o prazer sensível que pode ser ligado à liberdade do entendimento. Nota. - Como se pôde ter chegado a isto, que principalmente as línguas modernas tenham designado a faculdade de julgar estética com uma expressão (gustus, sapor) que indica meramente certo órgão dos sentidos (o interior da boca) e tanto a distinção quanto a eleição que ele faz das coisas que podem causar fruição? - Não há nenhuma situação que se possa prolongar e repetir tão frequentemente com satisfação - estando nela unidos a sensibilidade e o entendimento numa fruição - quanto uma boa refeição em boa companhia. - A primeira, todavia, é considerada aqui somente como veículo para o entretenimento da segunda. Ora, o gosto estético do anfitrião mostra-se na sua habilidade de escolher de maneira universalmente válida, mas não pode fazê-la mediante o próprio gosto, já que seus convidados talvez escolham outros pratos ou bebidas, cada um segundo seu gosto particular. A reunião que promove se baseará, por conseguinte, na diversidade, ou seja, será preciso encontrar algo conforme o gosto de cada um, o que resulta numa validade universal comparativa. Na discussão da presente questão não se pode tratar de sua habilidade para escolher os próprios convidados de forma a que se entretenham em geral uns aos outros (habilidade que também é chamada de bom gosto, embora seja propriamente a razão em sua aplicação ao gosto, e deste ainda distinta). E assim, devido a um sentido particular, o sentimento de um órgão pode dar nome a um sentimento ideal, a saber, de uma escolha em geral de validade sensível-universal. - Ainda mais extraordinário é isto: que a habilidade de provar pelo sentido se algo é um objeto de fruição de um mesmo sujeito (não se sua escolha é universalmente válida) (sapor) foi sendo elevada até passar a denominar a sabedoria (sapientia), provavelmente porque um fim incondicionalmente necessário não precisa de reflexões nem de ensaios, mas vem imediatamente à alma como que pelo sabor daquilo que é salutar. O sublime (sublime) é a grandeza que suscita respeito (magnitudo reverenda) segundo a extensão ou grau; a aproximação (para estar à altura de suas forças) é atraente, mas ao mesmo tempo o temor de desaparecer, em sua própria apreciação, ao se comparar com ele é assustador (por exemplo, o trovão sobre nossa cabeça ou uma cadeia de montanhas alta e não desbravada): onde, se estamos em segurança, reunimos as próprias forças para apreender o fenômeno e, ao mesmo tempo, receamos não poder alcançar sua grandeza, aí se desperta a admiração (um sentimento agradável pela contínua superação da dor). O sublime é realmente o contrapeso, mas não o reverso do belo, porque o empenho e a tentativa de se elevar à apreensão (apprehensio) do objeto desperta no sujeito um sentimento de sua própria grandeza e força, mas a representação mental do sublime pode e tem sempre de ser bela na descrição ou exposição. Pois, do contrário, a admiração se torna assombro, que é muito diferente do encantamento, como um juízo no qual a gente não se cansa de se surpreender. A grandeza contrária a fins (magnitudo monstrosa) é o monstruoso. Os escritores que quiseram, por isso, enaltecer a vastidão do Império russo erraram ao intitulá-lo monstruoso, pois nisso está contida uma censura, como se ele fosse muito grande para um único soberano.- Aventureiro é um homem que tem propensão a se enredar em acontecimentos cuja verdadeira narrativa é semelhante a um romance. O sublime, portanto, não é realmente um objeto para o gosto, mas para o sentimento de comoção; a exposição artística dele, todavia, pode e deve ser bela em sua descrição e em seu revestimento (nos acessórios, parerga), porque senão é selvagem, rude e repelente e, assim, contrária ao gosto. O gosto contém uma tendência a incentivar externamente a moralidade O gosto (na condição, por assim dizer, de sentido formal) tende à comunicação de seu sentimento de prazer ou desprazer a outros e contém uma receptividade, afetada com prazer por essa mesma comunicação, para sentir nele uma satisfação (complacentia) em comum com os outros (socialmente). Ora, para poder ser pensada como tal, a satisfação, que não pode ser considerada válida apenas para o sujeito sensível, mas também para todo e qualquer outro, isto é, como válida universalmente, porque tem de conter a necessidade (dessa satisfação), portanto, um princípio a priori dela, é uma satisfação pela concordância do prazer do sujeito com o sentimento de todo e qualquer outro, segundo uma lei universal que tem de provir da legislação universal daquele que sente, por conseguinte, da razão: isto é, a escolha segundo essa satisfação se encontra, pela forma, sob o princípio do dever. Logo, o gosto ideal tem uma tendência a incentivar externamente a moralidade. - Tornar o homem civilizado em sua posição social não quer dizer exatamente tanto quanto formá-lo como homem eticamente bom (como homem moral), mas o prepara para tal pelo esforço de satisfazer os outros no estado em que se encontra (tornar-se querido ou admirado). - O gosto poderia, desse modo, ser chamado de moralidade no fenômeno externo, se bem que essa expressão, tomada ao pé da letra, contém uma contradição, pois ser bem educado contém a aparência ou a conveniência daquilo que é eticamente bom, e inclusive um grau dele, a saber, a inclinação a estabelecer um valor já na aparência dele. Ser bem educado, decente, ter boas maneiras, ser polido (com eliminação da rudeza), é apenas a condição negativa do gosto. A representação dessas qualidades na imaginação pode ser um modo exteriormente intuitivo de representar um objeto ou sua própria pessoa com gosto, mas apenas para dois sentidos, audição e visão. Música e artes plásticas (pintura, escultura, arquitetura e jardinagem) requerem gosto, como receptividade de um sentimento de prazer para as meras formas da intuição externa - aquela em relação à audição, estas em relação à visão. Em contrapartida, o modo da representação discursiva por meio da linguagem oral ou pela escrita contém duas artes em que se pode mostrar o gosto: eloquência e poesia. Observações antropológicas sobre o gosto A Do gosto da moda É uma propensão natural do ser humano comparar o próprio comportamento com o de alguém mais importante (a criança com o adulto, o inferior com o superior) e imitar suas maneiras. Uma lei dessa imitação, para meramente não parecer inferior aos demais e onde de resto não se pensa em tirar nenhum proveito, chama-se moda. Esta pertence, pois, ao item vaidade, porque em seu fim não há nenhum valor interno, da mesma maneira que ao da loucura, porque nela há uma coerção a nos deixar dirigir servilmente pelo mero exemplo que muitos nos dão em sociedade. Estar na moda é uma questão de gosto: o fora da moda que segue um costume anterior, chama-se antiquado; aquele que valoriza o estar fora da moda é um extravagante. É, porém, sempre melhor ser um louco na moda que um louco fora dela, caso se queira dar essa denominação severa àquela vaidade, título que a mania de moda realmente merece quando sacrifica coisas verdadeiramente úteis, ou até deveres, àquela vaidade. - Todas as modas constituem, já por seu mero conceito, modos de vida inconstantes. Pois se o jogo da imitação for fixado, então esta se tornará costume, onde já não se visa o gosto. A novidade é, portanto, o que torna a moda apreciada, e ser inventivo em todas as formas exteriores, ainda quando estas frequentemente degeneram em excentricidade e, em parte, em feiura, faz parte do tom das pessoas da corte, principalmente das damas, então avidamente seguidas pelas outras, as quais ainda se arrastam por muito tempo entre as classes inferiores com coisas que aquelas já deixaram de usar. - Por conseguinte, a moda não é propriamente uma questão de gosto (pois pode ser extremamente contrária a ele), mas da mera vaidade de querer se distinguir, e de competição, a fim de superar os outros (os élegants de Ia cour, também chamados petits maitres, são cabeças de vento). O verdadeiro gosto, o gosto ideal, pode se unir à magnificência, portanto, a algo sublime que é simultaneamente belo (como um magnífico céu estrelado, ou se isso não soa muito pequeno, a igreja de São Pedro em Roma). Mas a pompa, que é uma exibição presunçosa, pode também ser ligada ao gosto, porém não sem negação desse último, porque a pompa é calculada visando à grande multidão, que compreende em si muito do populacho, cujo gosto, embotado, requer mais sensação dos sentidos que capacidade de julgar. B Do gosto artístico Levo em consideração aqui apenas as artes da palavra, eloquência e poesia, porque estão voltadas para uma disposição da mente pela qual esta é imediatamente despertada para a atividade, disposição que têm, assim, o seu lugar numa antropologia pragmática, onde se procura conhecer o ser humano segundo aquilo que se pode fazer dele. Denomina-se espírito o princípio que vivifica a mente por meio de ideias. Gosto é uma mera faculdade reguladora de julgar a forma na ligação do diverso na imaginação; espírito, porém, é a faculdade produtiva da razão, de atribuir um modelo para aquela forma a priori da imaginação. Espírito e gosto: o primeiro para criar ideias, o segundo para limitá-las à forma adequada às leis da imaginação produtiva e, assim, formá-las (fingendi) originalmente (não imitativamente). Um produto composto com espírito e gosto pode ser em geral chamado de poesia e é uma obra da bela arte: esta pode ser apresentada imediatamente aos sentidos pelos olhos ou ouvidos, e pode ser chamada também de arte poética (poetica in sensu lato); pode ser arte da pintura, dajardinagem, da arquitetura ou da música e arte de fazer versos (poetica in sensu stricto). A arte poética, entretanto, difere da eloquência apenas segundo a subordinação mútua entre entendimento e sensibilidade; de maneira que a primeira é um jogo da sensibilidade ordenado pelo entendimento, a segunda, porém, um afazer do entendimento vivificado pela sensibilidade; mas ambos, tanto o orador quanto o poeta (em sentido amplo), são poetas e produzem de si mesmos novas formas (composições do sensível) em sua imaginação. (A novidade da exposição de um conceito é uma exigência capital que a bela arte faz ao poeta, ainda que o conceito mesmo não deva ser novo. - Para o entendimento (prescindindo do gosto), têm-se as seguintes expressões para indicar o aumento de nossos conhecimentos por meio de uma nova percepção. - Descobrir algo: perceber pela primeira vez o que já existia, por exemplo, a América, a força magnética voltada para os polos, a eletricidade do ar. - Inventar algo (tornar realidade o que ainda não existia), por exemplo, a bússola, o aeróstato. - Encontrar algo: reencontrar o que estava perdido mediante buscas. - Idealizar e conceber (por exemplo, instrumentos para artistas ou máquinas). - Invencionar: representar, com consciência, o não verdadeiro como verdade, como nos romances, sempre que ocorra apenas para entretenimento. - Mas uma invencionice dada como verdade é mentira. (Turpiter atrum desinit in piscem mulier formosa superne), Horácio, Nota do Autor.) Porque o dom da poesia é uma destreza artística ligada ao gosto, um talento para a bela arte, que em parte tende a produzir ilusão (embora doce, com frequência também indiretamente saudável), não pode faltar um forte uso dele na vida (uso com frequência também nocivo). - Por isso, vale a pena fazer algumas questões e observações a respeito do caráter do poeta, ou também a respeito da influência de seu ofício sobre ele mesmo e sobre os outros. Por que entre as belas artes (da palavra) a poesia obtém a vitória sobre a eloquência, ambas tendo os mesmos fins? - Porque a poesia é simultaneamente música (cantável) e som, uma inflexão por si só agradável, diferentemente da mera linguagem. A eloquência mesma toma emprestado à poesia uma inflexão próxima do som, o acento, sem o qual o discurso se privaria dos momentos necessários de repouso e animação que nele se encontram. A poesia, contudo, não obtém a vitória apenas sobre a eloquência, mas também sobre qualquer outra das belas-artes; sobre a pintura (de que faz parte a escultura) e mesmo sobre a música. Pois esta última só é arte bela (não simplesmente agradável) porque serve de veículo à poesia. Também não há entre os poetas tantas inteligências superficiais (inaptas para os negócios) quanto entre os músicos, porque aqueles falam também ao entendimento, mas estes meramente aos sentidos. - Uma boa poesia é o meio mais eficaz de vivificar a mente. - Isso não vale, porém, somente para o poeta, mas para todo detentor de uma bela arte: ele precisa ter nascido para ela e não pode chegar a ela por disciplina e imitação; da mesma maneira, o artista necessita ainda, para o êxito de seu trabalho, de um humor propício que o assalta como num momento de inspiração (por isso também é chamado de vates), porque o que é feito segundo preceitos e regras resulta sem graça (servil), mas um produto da bela arte não requer apenas gosto, que pode estar fundado em imitação, mas também originalidade do pensamento, a qual, vivificante por si mesma, é chamada de espírito. - O pintor da natureza, com pincel ou pena (este último em prosa ou em verso), não é o belo espírito, porque só imita; apenas o pintor de ideias é mestre da bela arte. Por que habitualmente por poeta se entende um autor de versos, isto é, de um discurso escandido (dito em cadência, como a música)? Porque ele, anunciando uma obra da bela arte, se apresenta com uma solenidade que tem de satisfazer (pela forma) o gosto mais refinado, pois do contrário não seria belo. - Porque essa solenidade é, entretanto, exigida mormente para a representação bela do sublime, tal solenidade afetada, sem verso, foi chamada (por Hugo Blair) de "prosa enlouquecida" . - A versificação, por outro lado, tampouco é poesia, se desprovida de espírito. Por que a rima nos versos dos poetas dos tempos modernos, se ela fecha com êxito o pensamento, é uma importante exigência do gosto nessa nossa parte do mundo - mas, ao contrário, uma falta repugnante contra o verso nos poemas dos tempos antigos, de tal modo que se em alemão, por exemplo, os versos livres agradam pouco, um Virgílio latino rimado agradará ainda menos? Provavelmente porque nos antigos poetas clássicos a prosódia era definida, mas ela falta em grande parte às línguas modernas, onde o ouvido é compensado pela rima, que fecha o verso com o mesmo som que o anterior. Num discurso solene em prosa é ridículo quando ocorre inesperadamente uma rima em meio a outras frases. Donde vem que a licença poética, que não é permitida ao orador, pode violar aqui e ali as leis da linguagem? Provavelmente disto, que o poeta não é muito constrangido, pela lei da forma, a expressar um grande pensamento. Por que uma poesia medíocre é insuportável, mas um discurso medíocre ainda tolerável? A causa parece estar em que o tom solene desperta grande expectativa em todo produto poético, e precisamente porque esta não é satisfeita, o tom se rebaixa como de costume mais do que o valor prosaico desse mesmo produto ainda mereceria. - O final de um poema com um verso que pode ser retido como sentença, deixa um gosto que causa contentamento e, com isso, torna de novo saborosa muita coisa insossa; também faz parte, por isso, da arte do poeta. Que com a idade a veia poética seque, numa época em que as ciências ainda anunciam à boa inteligência saúde e atividade nos negócios, isso provém de que a beleza é uma flor, mas a ciência, um fruto, isto é, a poesia tem de ser uma arte livre, que, pela diversidade, requer agilidade, mas com a idade esse senso ágil desaparece (e com razão); outra causa para isso é que o hábito de só avançar pela mesma via das ciências traz ao mesmo tempo agilidade, logo a poesia, que requer originalidade e novidade (e por isso destreza) em cada um de seus produtos, não se harmoniza bem com a velhice, a não ser no espírito caustico, nos epigramas e xênios ; onde é também mais seriedade do que jogo. Que os poetas não tenham êxito como os advogados e outros doutos de profissão, reside na disposição do temperamento que é em geral necessária para o poeta nato, a saber, afugentar as preocupações mediante o jogo sociável com pensamentos. - Contudo, uma particularidade que diz respeito ao caráter, a saber, a de não ter caráter, mas ser volúvel, extravagante e não confiável (sem maldade), fazer inimigos intencionalmente, sem todavia odiar a ninguém, e fazer troça mordaz do amigo, sem querer magoá-lo, reside numa disposição, em parte inata, que governa o juízo prático, a do engenho destrambelhado. Do luxo O luxo (luxus) é o excesso de prazeres sociais com gosto numa comunidade (é, pois, contrário ao bem-estar desta). Esse excesso, mas sem gosto, é pândega pública (luxuries). - Se se levam em conta os efeitos de ambos sobre o bem-estar, então luxo é um dispêndio desnecessário, que leva ao empobrecimento, e pândega é um dispêndio semelhante, que leva à doença. O primeiro, todavia, ainda é compatível com a progressiva cultura do povo (na arte e na ciência), a segunda, porém, repleta de gozo, causa, por fim, repugnância. Ambos buscam mais a ostentação (brilho exterior) que a própria fruição, o primeiro pela elegância (como em bailes e espetáculos) para o gosto ideal, a segunda, pela superabundância e multiplicidade para o sentido do gosto (físico, como, por exemplo, um banquete do lorde-maior). - Se o governo está autorizado a restringir a ambos mediante leis sobre gastos, é uma questão cuja resposta não cabe aqui. Mas tanto as belas-artes quanto as artes agradáveis, que em parte debilitam o povo para poder governá-lo melhor, atuariam justamente contra o propósito do governo se fosse introduzido um rude laconismo. Um bom modo de vida é a adequação do bem viver à sociabilidade (portanto, ao gosto). Vê-se por aqui que o luxo traz danos ao bom modo de vida e a expressão "ele sabe viver", usada em referência a um homem rico ou nobre, significa a habilidade de sua escolha no prazer social, que implica moderação (sobriedade), e tanto amplia o prazer, quanto o torna duradouro. Vê-se por aí que, uma vez que não se pode propriamente censurar o luxo na vida doméstica, mas somente na vida pública, a postura do cidadão para com a comunidade, no que se refere à sua liberdade de avançar sobre a utilidade quando se compete pelo embelezamento da própria pessoa ou das coisas (em festas, casamentos e funerais e, assim por diante, até o bom tom no trato em comum), dificilmente deveria ser penalizada por proibições de desperdício, porque o luxo tem a vantagem de vivificar as artes e, assim, de restituir à comunidade os gastos que tal dispêndio possa lhe ter custado. LIVRO TERCEIRO DA FACULDADE DE DESEJAR Apetite (appetitio) é a autodeterminação da força de um sujeito mediante a representação de algo futuro como um efeito seu. O apetite sensível habitual chama-se inclinação. Apetecer, sem o emprego de força para a produção do objeto, é desejo. Este pode ser dirigido a objetos que o sujeito mesmo se sente incapaz de produzir, e é então um desejo vazio (ocioso). O desejo vazio de poder elidir o tempo que há entre apetecer e obter aquilo que apetece, é ânsia. O apetite por um objeto indeterminado (appetitio vaga), que apenas impele o sujeito a sair de seu estado presente, sem saber em qual pretende entrar, pode ser chamado de desejo humoroso (ao qual nada satisfaz). A inclinação que a razão do sujeito dificilmente pode dominar, ou não pode dominar de modo algum, é paixão. Em contrapartida, o sentimento de prazer ou desprazer no estado presente, que não deixa a reflexão aflorar no sujeito (a representação da razão, se se deve entregar ou resistir a ele), é afecção. Estar submetido a afecções e paixões é sempre uma enfermidade da mente, porque ambas excluem o domínio da razão. Ambas são também igualmente violentas segundo o grau, mas, no que diz respeito à qualidade delas, essencialmente diferentes uma da outra, tanto no método de prevenção quanto no de cura a ser empregado pelos alienistas. Das afecções, confrontadas com a paixão. Afecção é surpresa mediante sensação, pela qual se perde o controle da mente (animus sui campos). É, por isso, apressada, ou seja, passa velozmente a um grau de sentimento que toma a ponderação impossível (é inconsiderada). - A imperturbabilidade, sem diminuição da força dos móbiles para agir, é fleuma no bom sentido da palavra, uma qualidade do homem estrênuo (animi strenui), de não deixar que a força das afecções o faça perder a tranquilidade e ponderação. O que a afecção de ira não faz a toda velocidade, ela não faz de modo algum, e facilmente esquece. A paixão do ódio, porém, não tem pressa em se enraizar profundamente para pensar em seu inimigo. - Um pai, um mestre, não pode castigar, sem ter tido paciência de ouvir as desculpas (não a justificação). - A alguém que entra irado em vosso aposento para vos dizer palavras duras com veemente indignação, fazei-o cortesmente se sentar: se vos sairdes bem nisso, a reprimenda dele será mais branda, porque a comodidade de estar sentado é um relaxamento que certamente não combina com os gestos ameaçadores e os gritos de quando se está em pé. Ao contrário, a paixão (como estado da alma pertencente à faculdade de desejar) não tem pressa e reflete para alcançar seu fim, por mais violenta que possa ser. - A afecção é como a água que rompe um dique; a paixão, como um rio que se enterra cada vez mais fundo em seu leito. A afecção atua sobre a saúde como um ataque apopléctico; a paixão, como uma tísica ou definhamento. - A afecção pode ser vista como a bebedeira que se cura dormindo, mas que depois dá dor de cabeça; a paixão, porém, como uma doença causada por ingestão de um veneno ou como uma atrofia, que necessita interna ou externamente de um alienista que saiba prescrever quase sempre paliativos, mas contra a qual no mais das vezes não remédios radicais. Onde há muita afecção, existe geralmente pouca paixão, como entre os franceses, que são inconstantes por sua vivacidade em comparação com os italianos e espanhóis (e também indianos e chineses), os quais tramam vingança em seu rancor ou persistem até a loucura em seu amor. - As afecções são leais e abertas; as paixões, pelo contrário, insidiosas e encobertas. Os chineses censuram os ingleses de serem impetuosos e irascíveis "como os tártaros", mas os ingleses censuram os chineses de serem rematados impostores (porém, serenos), censura que não os abala de modo algum em sua paixão. - A afecção pode ser vista como uma bebedeira que se cura dormindo; a paixão, como uma loucura que cisma com uma representação que deita raízes cada vez mais fundas. - Quem ama, pode ainda assim enxergar; contudo, quem está apaixonado toma-se inevitavelmente cego para as faltas do objeto amado, mesmo que costume recuperar a visão oito dias depois do casamento. Aquele a quem a afecção assalta como um repente assemelha-se a um perturbado, por melhor que possa ser a afecção; mas porque imediatamente depois ele se arrepende, então é só um paroxismo, que se intitula desatino. Muitos desejam até mesmo poder se zangar, e Sócrates tinha dúvida se não seria bom se zangar às vezes; mas ter a afecção em seu poder de tal modo que se possa refletir de sangue frio se se deveria ficar zangado ou não, parece ser algo contraditório. - Ao contrário, nenhum ser humano deseja para si a paixão. Pois quem quer se deixar colocar na prisão, quando pode ser livre? Das afecções em particular A Do governo da alma em relação às afecções O princípio da apatia, a saber, que o sábio nunca deve sofrer afecção, nem mesmo de compaixão com os males de seu melhor amigo, é um princípio moral inteiramente justo e sublime da escola estoica, pois a afecção toma (mais ou menos) cego. - A natureza, no entanto, foi sábia ao implantar em nós a disposição para a afecção, a fim de ter provisoriamente as rédeas nas mãos até que a razão alcançasse a força adequada, isto é, a fim de acrescentar ainda móbiles de estímulo patológico (sensível), que fazem interinamente as vezes da razão, para a vivificação dos móbiles morais. Pois de resto a afecção, considerada por ela só, é sempre imprudente: ela se faz incapaz de perseguir seu próprio fim e, portanto, não é sábia para fazer com que, por deliberação sua, ele se manifeste em si. - Não obstante, na representação do bem moral a razão pode provocar uma animação da vontade (nos discursos religiosos ou políticos para o povo ou mesmo também apenas para si mesmo) por meio da ligação de suas ideias com intuições (exemplos) que são adjudicadas àquelas, e, por conseguinte, avivam a alma em vista do bem, não como efeito, mas como causa de uma afecção, onde no entanto essa razão ainda continua mantendo as rédeas nas mãos e se acarreta um entusiasmo pelo bom propósito, o qual, porém, terá propriamente de ser incluído na faculdade de desejar e não na afecção, como um sentimento sensível mais intenso. - O dom natural de uma apatia com suficiente força da alma é, como se disse, o fleuma feliz (em sentido moral). Quem dele está dotado, na verdade não é ainda, apenas por isso, um sábio, embora tenha sempre o favorecimento da natureza, que faz o tomar-se sábio mais fácil para ele do que para outros. Em geral o que constitui o estado de afecção não é a intensidade de certo sentimento, e sim falta de reflexão para comparar esse sentimento com a soma de todos os sentimentos (de prazer ou desprazer) em seu estado. O rico a quem um criado quebra por inépcia uma bela e rara taça de cristal ao carregá-la durante uma festa, não deveria dar nenhuma importância a isso, se no momento mesmo comparasse essa perda de um prazer com a quantidade de todos os prazeres que sua feliz situação lhe confere na condição de homem rico. Mas se se entrega única e exclusivamente a um sentimento de dor (sem fazer rapidamente em pensamento aquele cálculo), não é de surpreender que seu estado de espírito será tal como se houvesse perdido toda a sua felicidade. B Das diversas afecções mesmas O sentimento que impele o sujeito a ficar no estado em que se está, é agradável; mas o que o impele a abandoná-lo, desagradável. Ligado à consciência, o primeiro chama-se contentamento (voluptas); o segundo, descontentamento (taedium). Como afecção, aquele chama-se alegria; este, tristeza. - A alegria em excesso (não moderada por nenhuma apreensão de dor) e a tristeza profunda (não amenizada por nenhuma esperança), o abatimento, são afecções que ameaçam a vida. Pelos obituários se observou, entretanto, que mais seres humanos perdem subitamente a vida por alegria do que por tristeza profunda, porque a mente se abandona inteira à esperança, como afecção, quando inesperadamente se abre a perspectiva de uma felicidade sem limites, e assim a afecção leva até a asfixia, enquanto, sempre receoso, o abatimento também é sempre combatido naturalmente pela mente e, portanto, só é letal aos poucos. Susto é o medo súbito, que põe a mente fora de si. Semelhante ao assombro é o surpreendente que deixa a pessoa atônita (mas não ainda perturbada) e desperta a mente para que recupere a reflexão; é estímulo para o espanto (que já contém em si reflexão). Com os indivíduos experientes isso não acontece tão facilmente; mas da arte é próprio representar o usual por um lado em que ele é surpreendente. A ira é um assombro que ao mesmo tempo estimula rapidamente as forças a resistirem ao mal. Temor de um objeto que ameaça com um mal indeterminado é receio. Alguém é tomado de receio sem que reconheça um objeto particular: é uma opressão por causas meramente subjetivas (um estado doentio). Vergonha é medo do desprezo que se receia receber de uma pessoa presente e, como tal, uma afecção. Aliás, alguém pode também se envergonhar sensivelmente sem a presença daquele perante ao qual sente vergonha, mas então não é afecção e sim, como o abatimento, uma paixão de atormentar a si mesmo continuamente com desprezo; a vergonha, ao contrário, como afecção, tem de surgir repentinamente. As afecções são, em geral, ataques doentios (sintomas), e podem ser divididas (por analogia com o sistema de Brown) em estênicas, procedentes da força, e astênicas, procedentes da fraqueza. Aquelas são de uma natureza excitante, mas por isso também com frequência extenuante; estas, de uma natureza que afrouxa a força vital, mas que por isso também prepara o repouso. - Rir com afecção é uma alegria convulsiva. O choro acompanha a sensação lânguida de uma ira impotente perante o destino ou perante os outros homens, tal como uma ofensa recebida deles; e essa sensação é de melancolia. Ambos, porém, sorriso e choro, acalmam, pois libertam de um impedimento da força vital pelo transbordamento (a saber, pode-se também rir até as lágrimas quando se ri a não poder mais). O riso é masculino; o choro, ao contrário,feminino (no homem, afeminado) e somente o acesso súbito de lágrimas, por se compartilhar generosa mas impotentemente o sofrimento dos outros, pode ser perdoado ao homem, em cujo olho a lágrima brilha, sem que a deixe derramar em gotas e nem mesmo acompanhar de soluços, produzindo então uma música desagradável. Da timidez e da bravura Receio, angústia, terror e pavor são graus do medo, isto é, da aversão ao perigo. O controle da mente que encara esse perigo com reflexão é coragem; a força do sentido interno (ataraxia), de não se atemorizar facilmente com o perigo, é intrepidez. A falta da primeira é covardia, a da segunda, pusilanimidade. Brioso é O que não se assusta; coragem tem aquele que com reflexão não retrocede diante do perigo; bravo é aquele cuja coragem é constante nos perigos. Inconsiderado é o leviano que se arrisca em perigos, porque os não conhece. Ousado, o que neles se arrisca, embora os conheça; temerário, aquele que, diante da patente impossibilidade de alcançar seu fim, se coloca no maior perigo (como Carlos XII em Bender). Os turcos denominam seus bravos (que assim o são talvez pelo ópio) de loucos. - A covardia é, por conseguinte, tibieza desonrosa. Ser assustadiço não é disposição habitual de ter facilmente medo, pois esta se chama pusilanimidade, mas meramente um estado e disposição casual, na maior parte dependente apenas de causas corporais, de não se sentir suficientemente preparado para um perigo súbito. Quando se anuncia a inesperada aproximação do inimigo a um general que está em seu roupão de dormir, o sangue bem pode lhe parar por um momento nas cavidades do coração; e o médico de certo general observou que, quando tinha azia, ficava abatido e pusilânime. Brio é, todavia, meramente qualidade do temperamento. A coragem, ao contrário, se assenta em princípios e é uma virtude. A razão confere então ao homem decidido a força que a natureza por vezes lhe recusa. O amedrontamento nas lutas provoca até mesmo evacuações benéficas, que tornaram um escárnio proverbial ("não ter o coração no lugar certo"); pretende-se, no entanto, ter observado que os marinheiros que, ao toque de combate, correm para o banheiro, são depois os mais valentes na luta. Exatamente o mesmo se observa também na garça que se apresta para o combate, quando o falcão voa sobre ela. Logo, paciência não é coragem. Ela é uma virtude feminina, porque não oferece força de resistência, mas espera tornar o sofrimento imperceptível pelo hábito (tolerância). Aquele que grita sob o bisturi cirúrgico ou pelas dores da gota e de cálculos, não é por isso, nesse estado, covarde ou frouxo; tal como a imprecação que se profere quando, andando pela rua, se bate numa pedra (com o dedão do pé, donde deriva a palavra hallucinari), esse grito é antes uma explosão de raiva, na qual a natureza se empenha em dissipar o sangue parado no coração. - Mas paciência de uma natureza especial demonstram-na os índios na América, que, quando estão cercados, arremessam longe suas armas e, sem pedir clemência, se deixam matar com tranquilidade. Há mais coragem aqui que a demonstrada pelos europeus, que neste caso se defendem até o último homem? A mim isso parece ser meramente uma vaidade bárbara: manter a honra de sua estirpe porque o inimigo não conseguiu obrigá-los a lamentar e gemer como prova de sua submissão. A coragem como afecção (pertencendo assim por um lado à sensibilidade) pode, contudo, ser despertada também pela razão e é, desse modo, verdadeira bravura (força da virtude). Não se deixar intimidar por chacotas nem por escárnios recheados de ditos picantes, mas por isso mesmo tanto mais perigosamente zombeteiros, e perseguir inabalavelmente o seu caminho, é uma coragem moral que muitos que se distinguem por bravura em batalha ou duelo não possuem. Pois da determinação faz parte algo a que o dever ordena ousar mesmo sob o risco da zombaria, e dela faz parte até mesmo um alto grau de coragem, visto que o amor à honra é o constante companheiro da virtude, e aquele que está suficientemente preparado contra a violência raras vezes se sente à altura do escárnio, quando, com sorriso malicioso, se lhe nega essa sua pretensão à honra. A maneira de agir que se dá uma aparência externa corajosa de não ceder em nada no respeito que requer dos outros, chama-se insolência; é oposta ao acanhamento, que é uma espécie de pusilanimidade e de receio de não aparecer vantajosamente aos olhos dos outros. - Se é justa confiança em si mesmo, tal insolência não pode ser censurada. Entretanto, aquela insolência (Essa palavra deveria ser propriamente escrita Drãustigkeit (de Drãuen ou Drohen [ameaçar]) e não Dreistigkeit, porque o tom ou mesmo a fisionomia de semelhante indivíduo deixa os outros receosos de que também possa ser grosseiro. Do mesmo modo se escreve liederlicb por luderlich, porque a primeira significa um leviano, travesso, mas de resto não inútil e de boa índole, mas a segunda um homem réprobo, que repugna aos outros (da palavra Luder [ladrão, tratante]). Nota do Autor.) na maneira de agir que dá a alguém a aparência de não levar em nenhuma conta o juízo dos outros sobre si, é impertinência, descaramento, mas, em expressão moderada, falta de modéstia; pois esta não faz parte da coragem na significação moral da palavra. Se o suicídio também pressupõe coragem ou sempre apenas tibieza, não é uma questão moral, mas uma questão meramente psicológica. Se é cometido apenas para que não se sobreviva à própria honra, portanto, por ira, então parece coragem; mas se é a paciência que se esgota de tanto sofrer de tristeza, a qual esgota aos poucos toda paciência, então é tibieza. Ao ser humano parece ser uma espécie de heroísmo olhar a morte diretamente nos olhos e não temê-la, quando não pode amar a vida por mais tempo. Mas se, ainda que temendo a morte, não pode de maneira alguma deixar de amar a vida e, assim, é preciso que uma confusão da mente oriunda do medo preceda a decisão para o suicídio, então ele morre de covardia, porque não pode suportar por mais tempo os tormentos da vida. - A maneira de realizar o suicídio dá de certo modo a conhecer essa diferença de estado de espírito. Se o meio escolhido para esse fim mata subitamente e sem salvação possível, como, por exemplo, o tiro de pistola ou um sublimado corrosivo (como o levava consigo um grande monarca, para o caso de cair prisioneiro), ou pular em água profunda com os bolsos cheios de pedras, a coragem do suicida é indiscutível. Se se trata, porém, de corda que pode ser cortada por outros ou de um veneno comum, que o médico ainda pode extrair do corpo, ou de um corte no pescoço que pode ser novamente curado com pontos, em tais atentados, nos quais o suicida, se ainda é salvo, geralmente se alegra e nunca mais os tenta, trata-se de um desespero covarde procedente da fraqueza, não de um desespero vigoroso, o qual ainda requer força da disposição de ânimo para semelhante ato. Nem sempre são almas meramente abjetas e indignas que resolvem se livrar de tal maneira do peso da vida: ao contrário, não se deve temer facilmente semelhante ato daquelas que não têm sentimento algum da verdadeira honra. - Entretanto, como o ato permanece sempre hediondo e, por intermédio dele, o homem faz de si mesmo um monstro, é digno de nota que, em épocas em que a injustiça pública é declarada legal por um Estado revolucionário (por exemplo, o comitê de salvação pública da República francesa), homens honrados (por exemplo, Roland) tenham procurado se antecipar à execução legal por meio do suicídio, que eles mesmos teriam declarado reprovável num Estado constitucional. A razão disso é a seguinte: há em toda execução legal algo de ultrajante, porque é uma penalidade, e se a execução é injusta, então aquele que é vítima da lei não pode reconhecê-la como merecida. Mas ele demonstra isso pelo fato de que, tendo sido condenado, prefere optar pela morte como um homem livre e atentar contra a própria vida. Por isso também alguns tiranos (como Nero) consideravam um favor permitir ao condenado que se matasse, visto que então ocorreria com mais honra. - Não pretendo, porém, defender a moral idade desse ato. A coragem do guerreiro é, todavia, muito distinta da do duelista, por mais que o duelo seja tolerado pelo governo, e por mais que a defesa pessoal contra ofensas, sem no entanto estar publicamente permitida por lei, tenha de certo modo se tornado questão de honra no exército, na qual o comandante não se mete. - Fazer vistas grossas para o duelo é um princípio terrível, sobre o qual o chefe de Estado não refletiu adequadamente, pois há também sujeitos indignos que colocam a própria vida em jogo para valerem alguma coisa, e que, ao correrem perigo, não estão em absoluto pensando em fazer algo pela conservação do Estado. Bravura é coragem conforme a lei, que não teme perder nem mesmo a vida naquilo que o dever manda. Tal bravura não é constituída apenas pelo destemor, mas a irrepreensibilidade moral (mens conscia rectiy) tem de estar ligada a ela, como no cavaleiro Bayard (chevalier sans peur et sans reproche). Das afecções que enfraquecem a si mesmas no que concerne a seus fins (Impotentes animi motus) As afecções de ira e de vergonha têm algo de próprio: enfraquecem a si mesmas no que concerne a seus fins. São sentimentos, despertados repentinamente, de um mal como ofensa, os quais todavia, por sua veemência, tornam ao mesmo tempo o indivíduo incapaz de repeli-lo. A quem se deve temer mais: àquele que, presa de forte ira, empalidece, ou àquele que enrubesce? O primeiro é temível de imediato; o segundo, tanto mais temível posteriormente (devido à sede de vingança). Na primeira situação, o homem que saiu de si se assusta consigo mesmo, por ter sido arrebatado à violência no uso de sua força, violência de que mais tarde poderá se arrepender. Na segunda situação, o susto subitamente se transforma em medo de que a consciência da incapacidade de se defender sozinho possa se tornar visível. - Ambas afecções, se podem encontrar alívio com a mente se controlando prontamente, não são prejudiciais à saúde, mas onde isso não ocorre, em parte são perigosas para a própria vida, em parte, quando seu ímpeto é detido, deixam atrás de si um rancor, isto é, uma humilhação por não se ter comportado com decoro diante de uma ofensa, humilhação que, entretanto, seria evitada se elas pudessem ser traduzidas em palavras. Mas ambas afecções são de tal espécie, que fazem emudecer e se apresentam, por isso, sob uma luz desvantajosa. É possível desabituar-se da fúria mediante disciplina interna da mente, mas na vergonha a fraqueza de um sentimento de honra ultrassensível não se deixa tão facilmente eliminar. Pois, como diz Hume (ele próprio acometido desta debilidade - o acanhamento para falar em público), se a primeira tentativa de ser audaz fracassa, isso só torna o indivíduo ainda mais tímido, e não há outro remédio a não ser fazer com que o juízo dos outros sobre nós vá aos poucos perdendo sua suposta importância, colocando-nos, com isso, interiormente em pé de igualdade com eles, a começar pelas pessoas de nossas relações cujo juízo sobre a decência é de pouca relevância. Esse hábito leva à sinceridade, que está a igual distância do acanhamento e da insolência ofensiva. Simpatizamos, sem dúvida, com a vergonha do outro como uma dor, mas não com a ira dele, se nos relata o que o levou a ela estando presentemente no mesmo estado de afecção; pois diante de alguém nesse estado não está seguro nem mesmo aquele que escuta seu relato (de uma ofensa sofrida). Espanto (embaraço de se encontrar diante do inesperado) é uma excitação do sentimento que primeiro obstrui o jogo natural dos pensamentos, sendo, portanto, desagradável, mas depois propicia tanto mais que os pensamentos afluam à representação inesperada e, por isso, é agradável; essa afecção, todavia, só se chama propriamente assombro se ao mesmo tempo é incerto se a percepção ocorre em vigília ou em sonho. Um novato no mundo se espanta com tudo, mas quem chegou a conhecer o curso das coisas mediante experiência reiterada, toma por princípio não se espantar com nada (nihil admirari). Quem, pelo contrário, persegue refletidamente, com olhar perscrutador, a ordem da natureza na grande diversidade dela, é tomado de assombro perante uma sabedoria com a qual não contava: uma admiração da qual não pode se livrar (espantar-se bastante), mas essa afecção é excitada somente pela razão, e é uma espécie de estremecimento sagrado ao ver se abrir, diante dos próprios pés, o abismo do suprassensível. Das afecções pelas quais mecanicamente a natureza faz bem à saúde A natureza faz bem à saúde, mecanicamente, por meio de algumas afecções. A estas pertencem principalmente o riso e o choro. A ira, quando se pode ralhar bravamente (mas sem temer resistência), é sem dúvida um meio bastante seguro para a desopilação, e muitas donas-de-casa não têm outra moção “Motion” interna que ralhar com os filhos e com a criadagem; do mesmo modo também se os filhos e a criadagem se comportam pacientemente, um cansaço agradável da força vital se propaga uniformemente pela máquina; esse meio, contudo, não é sem perigo, porque se deve temer a resistência dos que convivem na casa. O riso bonachão (não malicioso, sem amargura) é, em compensação, mais apreciado e proveitoso, pois é aquele que se devia recomendar ao rei da Pérsia que instituiu um prêmio para "quem inventasse um novo divertimento". - Ocorrendo de maneira intermitente (como que convulsivamente), a expiração de ar (da qual o espirro é só um efeito menor, ainda que também vivificante, quando seu estrépito pode ressoar sem obstáculo) intensifica o sentimento da força vital pelo movimento saudável do diafragma. Ora, não importa se aquele que nos faz rir é um palhaço pago (arlequim) ou um gozador astuto, que, fazendo parte do grupo de amigos, não parece ter nenhuma maldade, "sabe esconder o jogo" e não ri junto com os demais, mas, com aparente ingenuidade, desfaz subitamente a tensão de uma expectativa (tal como se solta uma corda tensa): o riso é sempre uma vibração dos músculos que tomam parte na digestão, e a estimula muito mais que a sabedoria do médico. Uma grande tolice cometida por um engano da faculdade de julgar também pode provocar exatamente o mesmo efeito - mas, com certeza, às custas do pretenso sabichão. (Exemplos disso podem ser dados em quantidade. Contudo, quero citar apenas um que ouvi da boca da falecida condessa de K.-g., uma dama que era a glória de seu sexo. Estava de visita a sua casa o conde Sagramoso, que tinha então a missão de cuidar da instalação da ordem dos Cavaleiros de Malta na Polônia (segundo a ordenação de Ostrog), e por acaso também ali fora um professor, natural de Königsberg, mas empregado em Hamburgo como curador e inspetor de gabinetes de história natural de alguns ricos comerciantes que cultivam essa paixão; a este, que visitava seus parentes na Prússia, o conde, para ter o que falar, disse em seu alemão estropiado: "Eu tive em Hamburgo uma tia , mas ela morreu". De pronto o professor tomou a palavra e perguntou: "Por que o senhor não a mandou esfolar e empalhar?" Ele tomou a palavra inglesa ant, que significa tia “Tante”, por pato (Ente), e porque lhe ocorreu imediatamente que deveria ser um pato muito raro, lamentou a grande perda. É fácil imaginar a risada que esse mal-entendido suscitou. Nota do Autor.) Da mesma maneira, o choro, respiração (convulsiva) entremeada de soluços, quando acompanhado de profusão de lágrimas é, como lenitivo, uma precaução da natureza em benefício da saúde, e uma viúva que, como se diz, não quer se deixar consolar, isto é, não quer ver as lágrimas estancar, cuida, sem saber ou no fundo sem querer, de sua saúde. Um acesso de ira nesse estado logo impediria essa efusão, mas para prejuízo da pessoa, embora não só a tristeza, mas também a ira possa fazer mulheres e crianças verter lágrimas. - Pois o sentimento de impotência contra um mal numa forte afecção (de ira ou de tristeza) invoca o auxílio de signos naturais exteriores, que então também ao menos desarmam uma alma masculina (segundo o direito do mais fraco). Entretanto, essa expressão da delicadeza como fraqueza do sexo não pode comover o homem compassivo até o choro, mas apenas até que lágrimas lhe marejem os olhos, porque no primeiro caso atentaria contra o próprio sexo e assim, com sua feminilidade, não serviria de proteção à parte mais frágil, mas no segundo caso não demonstraria ao outro sexo o compadecimento que sua masculinidade exige dele como dever, a saber, o de tomá-lo sob sua proteção, o que está implícito no caráter que os livros de cavalaria atribuem ao homem corajoso, caráter que reside justamente em poder dar essa proteção. Mas por que os jovens gostam mais do drama trágico e também preferem encená-lo, por exemplo, quando querem dar uma festa aos pais, enquanto os velhos preferem o drama cômico chegando até o burlesco? No primeiro caso, a causa é, em parte, exatamente a mesma que impele as crianças a desafiar o perigo, movidas provavelmente por um instinto da natureza que as leva a testar suas forças; mas em parte também porque, dado o pouco siso da juventude, das impressões terríveis ou que oprimem o coração, não resta, apenas terminada a peça, pesadume algum, mas somente um agradável cansaço após uma forte comoção interna, o qual predispõe novamente para a alegria. Em contrapartida, tal impressão não desaparece tão facilmente entre os mais velhos, que não podem produzir de novo tão facilmente em si essa predisposição para a alegria. Um arlequim de engenho ágil provoca com suas graças uma convulsão salutar no diafragma e nas entranhas deles, convulsão que, junto com a conversação durante o jantar que se seguirá em companhia dos outros, lhes aguça e toma saudável o apetite. Nota geral Certos sentimentos corporais internos têm parentesco com as afecções, mas não são afecções, porque são somente momentâneos, passageiros, e não deixam vestígios; tal é o terror que acomete crianças quando à noite ouvem de suas amas histórias de assombração. - O calafrio “Schauern”, como se alguém tomasse um banho de água fria (numa chuva repentina “Regenschauer”), também é um deles. Não a percepção do perigo, mas o simples pensamento do perigo - ainda que se saiba que não existe perigo algum - produz essa sensação, que, quando é um simples susto e não um transporte de medo, não parece ser exatamente desagradável. A vertigem e mesmo o enjoo em embarcação parecem pertencer, pela causa, à classe desses perigos ideais. - Por uma tábua sobre a terra se pode avançar sem vacilar, mas se está sobre um abismo ou mesmo, para quem é neurastênico, sobre um fosso, a vã preocupação com o perigo muitas vezes se toma realmente perigosa. A oscilação de um barco, mesmo com vento suave, é uma alternância entre afundar e emergir. Quando se afunda, a tendência natural é se elevar (porque todo afundamento implica em geral a representação de perigo); por isso, o movimento para cima e para baixo do estômago e das entranhas está mecanicamente ligado a uma ânsia de vômito, que aumenta mais ainda se o paciente olha pela janela do camarote, e tem, ora a visão do céu, ora a do mar, pelo que fica ainda mais forte a ilusão de não estar num lugar firme. Um ator, que é ele mesmo frio, mas de resto possui entendimento e forte capacidade de imaginação, pode com frequência comover mais por emoção afetada (artificial) que por verdadeira. Alguém seriamente apaixonado é embaraçado, desajeitado e pouco atraente diante da amada. Mas alguém que apenas faz papel de apaixonado e, além disso, tem talento, pode representá-lo de modo tão natural, que faz a pobre enganada cair inteirinha na sua rede, justamente porque tem o coração despreocupado, a mente clara, e, portanto, está em plena posse do uso livre de sua habilidade e forças para simular muito naturalmente a aparência de amante. O riso cordial (franco) é (enquanto pertence à afecção de alegria) sociável; a chacota maliciosa (irônica) é hostil. O distraído (como Terrasson, entrando solene com touca de dormir, em vez da peruca, sobre a cabeça e o chapéu debaixo do braço, totalmente envolvido com a querela sobre a superioridade dos antigos ou dos modernos no que diz respeito às ciências) dá com frequência ensejo ao primeiro; será objeto de risada, mas por isso mesmo não de escárnio. Sorri-se do esquisito que não é insensato, sem que isso lhe custe alguma coisa: ele ri junto. - Alguém que ri mecanicamente (sem espírito) é insípido e toma a reunião social insulsa. Aquele que não ri, é rabugento ou pedante. Crianças, principalmente meninas, têm de ser logo habituadas a sorrir francamente e sem constrangimento, pois os traços risonhos do rosto se imprimem pouco a pouco também no interior e fundam uma disposição para a alegria, amabilidade e sociabilidade, que prepara desde cedo para uma intimidade com a virtude da benevolência. Escolher alguém em sociedade como alvo de brincadeira (fazer caçoada dele), sem, todavia, ser mordaz (zombaria sem ofensa), brincadeira contra a qual o outro está preparado para pagar com a mesma moeda e, assim, pronto para provocar uma risada alegre, é uma vivificação cordial que, ao mesmo tempo, cultiva a sociedade. Mas se isso sucede às custas de um simplório, que, como uma bola, se arremessa ao outro, então a risada, sendo maliciosa, é ao menos indelicada; e se sucede a um parasita que, por amor à pândega, permite façam de si um jogo maligno ou um tolo, então o riso é prova de mau gosto, tanto quanto de embotamento do senso moral daqueles que dele podem rir às gargalhadas. Mas a situação de um bobo da corte, que, para sacudir beneficamente o diafragma, deve temperar com risada a refeição de sua majestade fazendo alusões picantes a seus mais distintos servidores, está, dependendo como é tomada, acima ou abaixo de toda crítica. Das paixões A possibilidade subjetiva do surgimento de certo desejo, que precede a representação de seu objeto, é propensão (propensio); - a coação interna da faculdade de desejar para possuir esse objeto, antes de conhecê-lo, é instinto (como impulso de acasalamento ou impulso paternal dos animais de proteger suas crias etc.). - O desejo sensível que serve de regra (hábito) ao sujeito chama-se inclinação (inclinatio). - A inclinação pela qual a razão é impedida de comparar essa inclinação com a soma de todas as inclinações em vista de certa escolha, é a paixão (passio animi). Percebe-se facilmente que as paixões são altamente prejudiciais à liberdade, porque se deixam unir a mais tranquila reflexão e, portanto, não devem ser inconsideradas como a afecção, nem tampouco turbulentas e passageiras, mas podem deitar raízes e coexistir mesmo com a argumentação sutil-, e se afecção é uma embriaguez, paixão é uma doença que tem aversão a todo e qualquer medicamento e, por isso, é muito pior que todas aquelas comoções passageiras da mente, que ao menos estimulam o propósito de se aperfeiçoar; ao contrário destas, a paixão é um encantamento que exclui também o aperfeiçoamento. Designa-se a paixão com a palavra mania (ambição, sede de vingança, desejo de poder etc.), exceto a do amor, quando não se está enamorado. A causa é que esse último desejo simultaneamente cessa quando satisfeito (mediante o gozo), ao menos em relação à mesma pessoa, e portanto pode-se apresentar como paixão um estar apaixonadamente enamorado (enquanto a outra parte persiste na negativa), mas não o amor físico, porque este não contém um princípio constante em relação ao objeto. A paixão pressupõe sempre uma máxima do sujeito, de agir segundo um fim que lhe é prescrito pela inclinação. Está, portanto, sempre ligada à razão do sujeito: não se podem atribuir paixões aos meros animais nem tampouco aos puros seres racionais. Visto que nunca são plenamente satisfeitas, a ambição, a sede de vingança etc., fazem por isso mesmo parte das paixões, como doenças contra as quais só existem meios paliativos. As paixões são cancros para a razão prática pura e na sua maior parte incuráveis, porque o doente não quer ser curado e se subtrai à ação do princípio unicamente por meio do qual isso pode ocorrer. Também na esfera prático-sensível, a razão vai do universal ao particular não segundo o princípio de contentar uma única inclinação colocando todas as demais na sombra ou de lado, mas de observar se aquela pode coexistir com a soma de todas as inclinações. - O desejo de glória de um homem sempre pode ser uma direção de sua inclinação aprovada pela razão, mas o ávido de glória também sempre quer ser amado pelos outros, ele necessita do relacionamento agradável com os demais, da conservação de sua fortuna e coisas semelhantes. Se, porém, é apaixonadamente ávido de glória, ele é cego para esses fins aos quais igualmente é conduzido por suas inclinações, e que seja odiado pelos outros, ou que fujam do contato com ele, ou que corra o risco de empobrecer por seus gastos - isso tudo ele não o vê. É loucura (fazer, de uma parte de seus fins, o todo), que contradiz diretamente a razão mesma em seu princípio formal. As paixões, por isso, não são meramente, como as afecções, disposições infelizes da mente, que fomentam muitos males, mas também são, sem exceção, más, e o desejo em sua melhor índole, ainda que se dirija àquilo que pertence (segundo a matéria) à virtude, por exemplo, à caridade, tão logo redunde em paixão, não é apenas (segundo a forma) pragmaticamente ruinoso, mas também moralmente reprovável. A afecção abole momentaneamente a liberdade e o domínio sobre si mesmo. A paixão renuncia a eles e encontra seu prazer e satisfação no servilismo. Visto, não obstante, que a razão não cessa de convocar a liberdade interna, então o infeliz suspira em seus grilhões, dos quais, entretanto, não pode se arrancar, porque estão por assim dizer, intimamente atados a seus próprios membros. As paixões, não obstante, também tiveram seus enaltecedores (pois onde não se encontrarão eles, se a maldade nos princípios encontrou espaço?), e se diz: "Nunca se realizou algo de grande no mundo sem paixões violentas, e a Providência mesma as plantou sabiamente como molas na natureza humana”. - Isso bem pode ser concedido às muitas inclinações, sem as quais a natureza viva (mesmo a do homem) não pode passar, como uma necessidade natural e animal. Mas a Providência não quis que pudessem, e nem mesmo que devessem, se tomar paixões, e representá-las sob esse ponto de vista pode ser perdoado a um poeta (para dizer com Pope: "Ora, se a razão é um ímã, as paixões são ventos"), mas o filósofo não deve admitir esse princípio em si, nem mesmo para exaltá-las como uma disposição provisória da Providência, que intencionalmente a teria posto na natureza humana antes que o gênero humano alcançasse o grau adequado de civilização. Divisão das paixões Elas são divididas em paixões da inclinação natural (inatas) e paixões da inclinação procedentes da civilização dos seres humanos (adquiridas). As paixões do primeiro gênero são a inclinação à liberdade e a inclinação sexual, ambas ligadas a afecção. As do segundo gênero são a ambição, desejo de poder e cobiça, que não estão ligadas à impetuosidade de uma afecção, mas à persistência de uma máxima dirigi da a certos fins. Aquelas podem ser denominadas inflamadas (passiones ardentes); estas, como a avareza, paixões frias (frigidae). Mas todas as paixões são sempre desejos dirigidos apenas de homens a homens, não a coisas, e sem dúvida se pode ter muita inclinação a utilizar um campo fértil ou uma vaca, mas não afecção (que consiste na inclinação à comunidade com outros), e muito menos uma paixão. A Da inclinação à liberdade como paixão Dentre todas é a mais violenta no homem natural, num estado em que ele não pode evitar o confronto entre suas reivindicações e as dos outros. Quem só pode ser feliz conforme a escolha de outro (por mais benévolo que este possa ser), sente-se, com razão, infeliz. Pois, que garantia tem ele de que o juízo de seu poderoso semelhante concorda com o seu? O selvagem (ainda não habituado à submissão) não conhece maior infelicidade que cair nesta, e com razão, enquanto uma lei pública não lhe dê segurança; até que aos poucos a disciplina o tenha feito resignar-se a ela. Daí seu estado de guerra constante, cuja intenção é manter os demais tão longe de si quanto possível e viver disperso pelos desertos. A criança que acaba de ser tirada do ventre materno parece entrar no mundo gritando, diferentemente de todos os outros animais, porque vê como coerção sua incapacidade de se servir de seus membros, e anuncia no mesmo instante seu direito à liberdade (da qual nenhum outro animal tem uma representação). (Lucrécio, como poeta, interpreta esse fenômeno de fato notável no reino animal de outra maneira: Vagituque locum lugubri completut, aecumst cuoi tantumin vita restet transire malorum! Essa previsão, todavia, a criança recém-nascida não a pode ter, mas que nela o sentimento de incômodo não procede da dor corporal, e sim de uma ideia obscura (ou representação análoga a esta) da liberdade e do obstáculo a ela, a injustiça, isso se descobre pelas lágrimas que vêm se unir ao grito alguns meses após o nascimento, o que revela uma espécie de amargura, quando se esforça por se aproximar de certos objetos ou simplesmente por modificar seu estado, e se sente impedida de fazê-lo. - Esse impulso a ter vontade própria e a apreender o impedimento como uma ofensa também se distingue especialmente por seu tom e deixa transparecer uma maldade que a mãe se vê obrigada a castigar, mas habitualmente se replica a isso com gritos ainda mais veementes. Exatamente o mesmo sucede quando cai por sua própria culpa. Os filhos de outros animais brincam, os do ser humano brigam prematuramente uns com os outros, e é como se certo conceito de direito (referente à liberdade externa) se desenvolvesse ao mesmo tempo que a animalidade e não se aprendesse pouco a pouco. Nota do Autor.) - Povos nômades, por exemplo, os árabes, não estando fixados em solo algum (na condição de povos pastoris), são tão fortemente afeiçoados a seu modo de vida, ainda que este não seja completamente livre de coerção, e têm ainda um espírito tão elevado para olhar com desprezo para os povos sedentários, que as dificuldades inseparavelmente ligadas a esse modo de vida não foram, por milênios, capazes de afastá-los dele. Os meros povos caçadores (como os olenni-tungues) inclusive se enobreceram mediante esse sentimento da liberdade (separados de outras tribos a eles aparentadas). - Assim, o conceito de liberdade sob leis morais não apenas desperta uma afecção, denominada entusiasmo, mas a mera representação sensível da liberdade exterior aumenta a inclinação de persistir nela ou, pela analogia com o conceito de direito, a amplifica até tomá-la uma paixão impetuosa. Nos meros animais, mesmo a inclinação mais veemente (por exemplo, da cópula) não se denomina paixão, porque não possuem razão, a única que fundamenta o conceito da liberdade e com a qual a paixão entra em colisão, paixão cujo surgimento pode, portanto, ser imputado ao ser humano. - Diz-se realmente de seres humanos que amam apaixonadamente certas coisas (a bebida, o jogo, a caça) ou as odeiam (por exemplo, o almíscar, a aguardente), mas essas diversas inclinações ou aversões não recebem o nome de paixões, porque são somente outros tantos instintos diferentes, isto é, meros padecimentos da faculdade de desejar e, por isso, não merecem ser classificadas como coisas (das quais existem inúmeras) conforme os objetos da faculdade de desejar, mas conforme o princípio do uso ou do abuso que os homens fazem entre si de sua pessoa e de sua liberdade, porque um homem faz de outro um mero meio para seu fim. - As paixões se dirigem propriamente apenas aos seres humanos, e também apenas por eles poderão ser satisfeitas. Essas paixões são ambição, desejo de poder e cobiça. Porque são inclinações que se dirigem meramente à posse dos meios de satisfazer todas as inclinações que dizem respeito imediatamente ao fim, elas têm nessa medida o aspecto da razão, a saber, de aspirar à ideia de uma capacidade vinculada à liberdade, unicamente por meio da qual podem ser alcançados fins em geral. A posse dos meios para se conseguir quaisquer propósitos certamente se estende muito além de uma inclinação voltada para algo particular e para a satisfação dela. - Por isso, elas também podem ser denominadas inclinações da ilusão, que consistem nisto: avaliar como sendo iguais a mera opinião dos outros sobre o valor das coisas e o valor real delas. B Do desejo de vingança como paixão Como as paixões só podem ser inclinações de seres humanos voltadas para seres humanos, desde que estas se dirigem a fins concordantes ou conflitantes uns com os outros, isto é, são amor ou ódio; como, porém, o conceito de direito, porque provém imediatamente do conceito da liberdade externa, é um impulso muito mais importante e move muito mais fortemente a vontade que o da benevolência, então o ódio, surgindo de injustiça sofrida, ou seja, o desejo de vingança é uma paixão que provém irresistivelmente da natureza do homem, e, por malvada que seja, é a máxima da razão - em virtude do lícito desejo de justiça, de que aquela é um análogo - misturada à inclinação, e precisamente por isso é uma das paixões mais impetuosas e mais profundamente arraigadas, que, quando parece estar extinta, sempre deixa ainda sobrar um resto de um ódio, chamado rancor, como um fogo que arde sob a cinza. O desejo de estar num estado e numa relação com os seus próximos em que pode ser dado a cada o que manda o direito, não é, sem dúvida, paixão, e sim um fundamento de determinação do livre-arbítrio pela razão prática pura. Mas a excitabilidade dele pelo mero amor-próprio, isto é, apenas para seu proveito e não em favor de uma legislação para todos, é um impulso sensível do ódio, não da injustiça, mas do que é injusto conosco: como tem por base uma ideia, ainda que com certeza aplicada egoisticamente, essa inclinação (de perseguir e destruir) transforma o desejo de justiça contra o ofensor em paixão de retaliação, que com frequência é violenta até a loucura de expor a si mesmo à ruína, se o inimigo não se põe a salvo, e toma esse ódio hereditário inclusive entre os povos (na vingança de sangue), porque como se diz, o sangue do ofendido, mas ainda não vingado, clama vingança até que o sangue inocentemente derramado seja novamente lavado com sangue - mesmo que seja o de um descendente inocente. C Da inclinação ao poder de ter influência sobre outros seres humanos em geral Essa inclinação é a que mais se aproxima da razão técnico-prática, isto é, da máxima da prudência. - Pois ter em seu poder as inclinações dos outros homens para poder dirigi-las e determiná-las segundo as próprias intenções é quase tanto quanto estar de posse dos outros, como se fossem simples instrumentos da própria vontade. Não é de admirar que a aspiração a tal poder de influência sobre os outros se tome paixão. Esse poder contém como que uma tripla potência: reputação, autoridade e dinheiro; quando se está de posse deles, com eles se consegue, se não por meio de uma dessas influências, ao menos por meio de outra, abordar um homem qualquer e utilizá-lo para os próprios propósitos. - As inclinações para isso, quando se tomam paixões, são ambição, desejo de dominação e cobiça. Sem dúvida que aqui o homem é tapeado (enganado) por suas próprias inclinações, e no uso de tais meios perde seu fim-último; aqui, porém, não falamos de sabedoria, que não consente paixões, e sim apenas da esperteza com que se podem manipular os tolos. Mas as paixões em geral, por veementes que possam ser como móbiles sensíveis, são puras fraquezas no que diz respeito àquilo que a razão prescreve ao ser humano. A capacidade do homem inteligente de utilizar aquelas inclinações para seus propósitos deve ser, por isso, relativamente tanto menor quanto maior é a paixão que domina os outros homens. A ambição é a fraqueza dos seres humanos devido à qual se pode ter influência sobre eles pela opinião, o desejo de dominação, pelo temor deles e a cobiça, pelo próprio interesse deles. - São sempre um servilismo por meio do qual outro, se se apodera do indivíduo, tem o poder de utilizar-se dele, pelas inclinações deste, para os próprios propósitos. - Mas a consciência desse poder em si e da posse dos meios para satisfazer suas inclinações excita ainda mais a paixão que a utilização deles. a Ambição Não é amor à honra, uma alta estima que o ser humano pode esperar de outros por seu valor interno (moral), mas empenho pela reputação, onde a aparência basta. A soberba (pretensão de que os outros se menosprezem em comparação conosco, uma tolice que atua contra seu próprio fim), - a soberba, digo, precisa apenas ser adulada e então se tem, por essa paixão do tolo, poder sobre ele. Os aduladores, (A palavra Schmeichler devia significar muito primitivamente Schmiegler (alguém que se rebaixa), que manda como bem entende num poderoso cheio de si, devido ao próprio orgulho deste; assim como a palavra hipócrita (que propriamente devia se escrever Häuchler), devia significar um impostor que, com suspiros entremeados entre suas falas, finge sua devota humildade perante um eclesiástico poderoso. Nota do Autor.) senhores que não têm opinião própria, que dão com prazer a última palavra a um homem importante, alimentam essa paixão que o toma fraco e arruínam os grandes e poderosos que se entregam a essa magia. Soberba é um desejo de honra frustrado, que atua contra seu próprio fim e não pode ser considerado como um meio deliberado de usar outros homens (os que ela afasta de si) para os seus fins; o soberbo, pelo contrário, é instrumento dos malandros, que o denominam tolo. Uma vez um comerciante muito sensato e honrado me perguntou: "Por que o soberbo também é sempre abjeto?" (ele tinha, pois, feito a experiência: alguém que ostentava sua riqueza como um poder superior nos negócios, se mais tarde perdia sua fortuna, não tinha nenhum escrúpulo em rastejar). Minha opinião foi esta: como soberba é a pretensão de que outro despreze a si mesmo em comparação com o soberbo, e como tal pensamento não pode ocorrer senão àquele que se sente disposto para a abjeção, a soberba já em si mesma daria um sinal infalível prenunciando a abjeção de tais homens. b Desejo de dominação Essa paixão é, em si, injusta e sua exteriorização põe tudo contra ela. Mas ela começa pelo temor de se ser dominado pelos outros e pensa em se colocar a tempo em vantagem de poder sobre eles, o que é sempre um meio duvidoso e injusto de utilizar outros homens para os próprios propósitos, porque em parte leva à resistência e é imprudente “unklug”, em parte é contrária à liberdade sob leis, que todos podem reivindicar, e é injusta. - Mas no que diz respeito à arte de dominar mediatamente, por exemplo, a do sexo feminino por meio do amor que infunde ao masculino, a fim de usá-lo para seus propósitos, ela não está incluída neste item, porque não comporta violência alguma, mas sabe dominar e cativar o seu súdito por meio da própria inclinação deste. - Não que a parte feminina de nossa espécie esteja livre da inclinação a dominar a masculina (justamente o contrário é verdade), e sim porque não se serve, para esse fim, do mesmo meio que a parte masculina, a saber, da prerrogativa da força (que é entendida aqui pela palavra dominar), mas do atrativo contido na inclinação que a outra parte tem de ser dominada. c Cobiça O dinheiro é a solução, e àquele a quem Plutão favorece abrem-se todas as portas que estão fechadas para o menos rico. A invenção desse meio que, aliás, não tem outra utilidade (ou ao menos não deve ter) a não ser servir meramente ao intercâmbio das atividades dos seres humanos, mas com isso também de todos os bens físicos entre eles, principalmente depois que são representados por metais, produziu uma cobiça que por último, mesmo sem o gozo da mera posse e inclusive com a renúncia (do avaro) a todo uso dele, contém um poder que se crê seja suficiente para substituir a falta de qualquer outro. Essa paixão, inteiramente insípida, embora nem sempre moralmente reprovável, dirigida de forma meramente mecânica e imputada principalmente à idade (como compensação a sua impotência natural), e que também deu àquele meio universal, por sua grande influência, pura e simplesmente o nome de possibilidades, é uma paixão tal que, quando sobrevém, não permite alteração, e se a primeira das três é odiada, a segunda, temida, esta terceira é desprezada. (Aqui o desprezo deve ser entendido em sentido moral; pois no sentido civil, se é verdade, como diz Pope, que "o diabo cai numa chuva de ouro de cinquenta por cento sobre o usurário, e se apodera de sua alma", a grande multidão antes admira o homem que demonstra tão grande sabedoria mercantil. Nota do Autor.) Da inclinação à ilusão como paixão Por ilusão, como um móbil dos desejos, entendo a ilusão prática interna de tomar, por objetivo, o que é subjetivo na motivação. - A natureza requer de tempos em tempos estímulos mais intensos da força vital, para reavivar a atividade do ser humano, a fim de que ele não perca, na mera fruição, o sentimento da vida. Para tal fim ela mui sábia e benevolentemente faz com que o homem preguiçoso por natureza considere objetos de sua imaginação fins reais (formas de obter honra, poder e dinheiro), os quais lhe proporcionam bastante trabalho e lhe dão muito o que fazer com o não fazer nada; aqui, o interesse que o ser humano tem por esses fins é um interesse da mera ilusão e, portanto, a natureza joga realmente com ele e estimula-o (o sujeito) ao seu fim, embora ele esteja convencido (objetivamente) de que foi ele quem estabeleceu um fim próprio para si. - Justamente porque nelas a fantasia é espontaneamente criadora, essas inclinações da ilusão são apropriadas a se tomar apaixonadas no mais alto grau, principalmente quando pensadas em vista de uma rivalidade entre os homens. Os jogos de bola dos meninos, as lutas, as corridas, as brincadeiras de soldado, além disso, os dos homens no jogo de xadrez e de cartas (onde, nos primeiros, o propósito é a mera superioridade do entendimento e, nos segundos, o puro ganho); finalmente, os jogos do cidadão que tenta sua sorte nas sociedades públicas com o faro ou com dados -, todos eles são inconscientemente estimulados pela sábia natureza à empreitada de testar suas forças em disputa com outros, a fim propriamente de que a força vital em geral se preserve da extenuação e se mantenha ativa. Dois desses antagonistas creem jogar um contra o outro, porém de fato a natureza joga com ambos, do que a razão pode claramente convencê-los se refletem como os meios escolhidos por eles se ajustam mal a seus fins. - Mas o bem-estar, enquanto dura esse estímulo, porque se irmana com ideias (ainda que mal interpretadas) provocadas pela ilusão, é precisamente por isso a causa de uma propensão à paixão mais veemente e duradora. (Em Hamburgo, um homem que perdeu no jogo uma fortuna considerável passava o tempo vendo os outros jogarem. Outro lhe perguntou como se sentia quando pensava ter um dia possuído tal fortuna. O primeiro respondeu: "Se a possuísse uma vez mais, não saberia um modo mais agradável de empregá-la". Nota do Autor.) As inclinações da ilusão tomam supersticioso o homem fraco, e fraco, o supersticioso, isto é, inclinado a esperar efeitos interessantes de circunstâncias que não podem ser causas naturais (de temer ou de esperar algo). Caçadores, pescadores e também jogadores (principalmente de loterias) são supersticiosos, e a ilusão que induz ao engano de tomar o subjetivo pelo objetivo, a disposição do sentido interno por conhecimento das coisas mesmas, toma ao mesmo tempo compreensível a propensão à superstição. Do sumo bem físico No estado saudável, a maior fruição sensível, que não contém absolutamente nenhuma mescla de repugnância, é o repouso após o trabalho. - Nesse estado, a propensão ao repouso, sem trabalho anterior, é preguiça. - Todavia, uma resistência um tanto longa para voltar aos negócios, e o doce far niente para recobrar forças não é preguiça, porque a gente pode se ocupar de forma agradável e, não obstante, útil (inclusive no jogo); e alternar trabalhos também oferece, segundo a natureza específica deles, repouso de diversos modos, porque voltar a um trabalho difícil que se deixou inacabado requer, ao contrário, muita resolução. Dos três vícios, preguiça, covardia e falsidade, o primeiro parece ser o mais desprezível. Nesse juízo pode-se, no entanto, frequentemente ser muito injusto para com o ser humano. Pois a natureza também colocou sabiamente uma aversão ao trabalho contínuo no instinto de muitos sujeitos, instinto salutar para eles tanto quanto para os outros, porque este não suportaria, sem esgotamento, um dispêndio de forças longo ou muitas vezes repetido, e necessitaria de certas pausas de descanso. Por isso, não sem razão Demétrio também sempre fazia destinar um altar a essa deidade maligna (a preguiça), já que, se a preguiça não se intrometesse, a maldade incansável cometeria no mundo muito mais perversidades do que há agora; se a covardia não se apiedasse dos seres humanos, a belicosa sede de sangue logo os aniquilaria, e se não existisse a falsidade pois entre o grande número de malvados reunidos num complô (por exemplo, num regimento) sempre haverá um que o delatará], Estados inteiros seriam logo destruídos devido à maldade inata à natureza humana. Os mais fortes impulsos da natureza, que substituem a razão invisível (do regente do mundo), a qual cuida universalmente do gênero humano mediante uma natureza superior, o bem físico do mundo, sem que a razão humana possa atuar nisso, são amor à vida e amor sexual: o primeiro para manter o indivíduo, o segundo para manter a espécie, porque por meio da união dos sexos a vida de nossa espécie dotada de razão se conserva progredindo no todo, apesar de trabalhar deliberadamente em sua própria destruição (por meio de guerras), destruição, porém, que não impede as criaturas racionais em cultura sempre crescente de representar inequivocamente em projeção ao gênero humano um estado de felicidade nos séculos vindouros, do qual não mais se retrocederá. Do sumo bem físico-moral As duas espécies de bem, o físico e o moral, não podem se misturar, pois assim se neutralizariam e não contribuiriam para o fim da verdadeira felicidade: a inclinação ao bem-estar e à virtude, uma em luta com a outra, e a restrição do princípio da primeira pelo da última perfazem, ao se encontrarem, todo o fim do ser humano de boa índole, que numa parte é sensível, noutra, porém, moral e intelectual; mas porque na prática é difícil impedir a mistura, ele necessita de uma análise por meios reagentes (reagentia) para saber quais são os elementos e a proporção de sua composição que possam, unidos entre si, proporcionar a fruição de uma felicidade morigerada. O modo de pensar que unifica o bem-estar com a virtude nos relacionamentos é humanidade. Aqui não se depende do grau do primeiro, porque, para um, isso parece requerer muito, para outro, pouco, mas somente da forma proporcional em que a inclinação para o primeiro deve ser limitada pela lei do último. A sociabilidade é também uma virtude, contudo, a inclinação ao relacionamento frequentemente se converte em paixão. Mas se a fruição das relações sociais se toma presunçosa pela ostentação, essa falsa sociabilidade cessa de ser virtude e é bem-estar que prejudica a humanidade. Música, dança e jogo tomam uma reunião social silenciosa (pois as poucas palavras necessárias para o jogo não estabelecem uma conversação, que requer comunicação recíproca dos pensamentos). O jogo, que, como se afirma, só deve servir para preencher o vazio da conversação após a refeição, é em geral a coisa que mais importa, como meio de aquisição em que afecções são intensamente agitadas, em que se estabelece certa convenção de interesses pessoais para se saquearem uns aos outros com a maior cortesia, e, enquanto dura o jogo, um completo egoísmo é erigido em princípio que ninguém renega: a união do bem-estar social com a virtude e, por conseguinte, a verdadeira humanidade dificilmente poderiam esperar verdadeiro incremento de tal conversação, a despeito de toda cultura que possa introduzir nos modos. O bem-estar que parece melhor se afinar com tal incremento é uma boa refeição em boa companhia (e, se possível, também variada), da qual Chesterfield diz que ela não deve ser inferior ao do número das Graças nem superior ao das Musas. Se reúno numa mesa apenas homens de gosto (esteticamente ligados), (Numa mesa festiva, em que a presença das damas restringe por si mesma a liberdade dos senhores àquilo que é civilizado, um súbito silêncio intervindo de quando em quando é um incidente ruim, que ameaça com o tédio, onde ninguém se atreve a propor um assunto novo e adequado para a continuidade da conversa, porque não deve inventá-lo mas buscá-lo nas novidades do dia, as quais porém precisam ser interessantes. Uma única pessoa, principalmente se é a dona da casa, pode frequentemente impedir essa interrupção e manter a conversa constantemente acesa, tal que a conclua, como num concerto, com forte júbilo geral, e seja tanto mais saudável por isso, como no Banquete de Platão, do qual o convidado dizia: "Tuas refeições não agradam só quando são saboreadas, mas também sempre que se pensa nelas." Nota do Autor.) que têm o propósito de desfrutar juntos não apenas uma refeição, mas também uns aos outros (quando a soma do número deles não pode ser muito superior à do número das Graças), esse pequena sociedade tem de se propor não tanto a satisfação do corpo - que cada um pode ter também isoladamente -, mas o contentamento social, para o qual aquela tem de parecer ser apenas o veículo: nesse caso, aquele número é suficiente para não deixar a conversa se interromper ou mesmo se dividir em pequenos grupos separados entre os comensais que se sentam próximos uns aos outros. Essa última situação não é gosto de conversação, que sempre envolve cultura, onde um sempre fala com todos (não meramente com seu vizinho); ao contrário, os chamados tratamentos lautos (banquete e comilança) são de todo sem gosto. É evidente que em todas as mesas, mesmo na de uma taverna, o que é dito publicamente por um conviva indiscreto em prejuízo de um ausente, não é para ser usado fora dessa sociedade, nem deve ser passado adiante. Pois, mesmo sem um pacto feito especificamente para isso, todo simpósio envolve certa inviolabilidade sagrada e dever de discrição sobre aquilo que possa posteriormente embaraçar um dos convivas fora da reunião: porque, sem essa confiança, aniquilar-se-ia o contentamento tão salutar à própria cultura moral em sociedade, e mesmo essa sociedade. - Por isso, se numa chamada sociedade pública (pois, a bem da verdade, por maior que seja uma mesa de convidados continua sendo apenas uma sociedade privada, e somente a sociedade civil em geral é, na ideia, pública) se dissesse algo prejudicial sobre meu melhor amigo, eu o defenderia e talvez intercederia por minha conta e risco a seu favor, com palavras duras e ásperas, mas não me deixaria utilizar como instrumento de divulgação dessa difamação, nem a levaria ao homem que ela pretende atingir. - Não é apenas um gosto social que tem de conduzir a conversa, também princípios devem servir ao trânsito aberto entre os homens na troca de seus pensamentos como condição restritiva de suas liberdades. Aqui, na confiança entre pessoas que comem juntas à mesa, há algo de análogo aos costumes antigos, por exemplo, o do árabe, junto a quem, apenas consiga que lhe dê um único alimento (um gole de água) em sua tenda, o estrangeiro pode contar também com sua segurança; ou quando foi oferecido à imperatriz russa pão e sal pelos deputados de Moscou partidários dela, e ela, provando-os, pôde estar segura, pelo direito de hospitalidade, contra toda armadilha. - Mas comer junto à mesa é considerado como a formalização de semelhante contrato de segurança. Comer sozinho (solipsismus convictorii) é nocivo para um douto filosofante: (Pois o douto filosofante tem de andar continuamente às voltas com seus pensamentos para descobrir, mediante múltiplas tentativas, a que princípios deve conectá-los sistematicamente, e as ideias, como não são intuições, lhe pairam, por dizer assim, no ar. O douto em história ou matemática pode, pelo contrário, pô-las diante de si e, com a pena na mão, ordená-las conforme regras universais da razão, e não obstante ao mesmo tempo empiricamente como fatos e, assim, porque o que vem antes já está estabelecido em certos pontos, no dia seguinte ele pode prosseguir o trabalho a partir de onde o havia deixado. - No que concerne ao filósofo, não se pode considerá-lo trabalhador no edifício das ciências, isto é, não como douto, mas se tem de considerá-lo como um investigador da sabedoria. É a mera ideia de uma pessoa que toma para si, como objeto, o fim-último de todo saber, praticamente e (em função dele) também teoricamente, e não se pode usar esse nome no plural, mas apenas no singular (o filósofo julga desta ou daquela maneira), porque designa uma mera ideia, mas dizer filósofos indicaria uma pluralidade daquilo que, no entanto, é unidade absoluta. Nota do Autor.) não é restauração, mas exaustão (principalmente quando se toma glutonaria solitária), trabalho extenuante, não jogo vivificante dos pensamentos. O homem que, ao se alimentar, consome a si mesmo pensando durante a refeição solitária, perde pouco a pouco a alegria que adquire quando um companheiro de mesa lhe oferece, com suas ideias diversificadas, nova matéria de vivificação, que ele mesmo não podia pressentir. Numa mesa repleta, onde a variedade dos pratos é pensada apenas para manter a longa reunião dos convidados (coenam ducere), a conversa habitual passa por três fases: 1. Narrar, 2. Raciocinar e 3. Gracejar. - A. As novidades do dia, primeiro as do país, depois também as de fora, trazidas por cartas e jornais. - B. Quando se satisfaz esse primeiro apetite, então a reunião se toma mais viva, pois, como na argumentação é difícil evitar a diversidade dos juízos sobre um mesmo objeto trazido à baila, e como cada qual não tem exatamente em pouca conta o seu, passa-se a uma discussão que faz o apetite avançar aos pratos e bebidas, e também o torna saudável conforme o grau de vivacidade dessa discussão e da participação nela. - C. Mas porque argumentar é sempre uma espécie de trabalho e dispêndio de força, que se torna por fim penoso devido à fruição bastante intensa enquanto ele dura, a conversa recai naturalmente no mero jogo de gracejos, em parte para agradar também as mulheres presentes, sobre as quais os ataques levemente maliciosos, mas não vergonhosos, ao seu sexo, têm o efeito de mostrar a própria graça delas numa luz favorável, e assim a refeição termina em riso: este, se é franco e cordial, foi destinado especificamente pela natureza, mediante o movimento do diafragma e das entranhas, para a digestão, como para o bem-estar corporal, ainda que os partícipes do banquete, e sabem-se lá quantos!, presumam descobrir cultivo do espírito num desígnio da natureza. - Música durante um lauto festim de grandes senhores é o disparate mais insípido que a glutonaria já pôde inventar. As regras de um banquete servido com gosto e que anima a sociedade são: a) escolha de um tema de conversa que interesse a todos e sempre dê a alguém ocasião de acrescentar algo apropriado; b) não deixar sobrevir um silêncio mortal, mas apenas pausas momentâneas à conversa; c) não variar sem necessidade o assunto nem saltar de uma matéria a outra, porque, ao final do banquete, tal como ao final de um drama (tal é também a vida inteira percorrida pelo homem racional), a mente se ocupa inevitavelmente em recordar os vários atos do diálogo: onde não pode encontrar um fio de conexão, ela se sente confusa e não constata ter avançado, mas, antes, retrocedido em seu cultivo. - Deve-se esgotar um assunto interessante antes de passar a outro e, quando a conversa embatuca, saber insinuar imperceptivelmente na reunião, a título experimental, outro tema aparentado ao anterior: assim uma única pessoa da reunião pode tomar as rédeas do diálogo, sem que isso se note ou cause inveja; d) não deixar surgir nem perdurar a opiniaticidade, nem para si, nem para os que estão do seu lado na reunião; ao contrário, como a conversa não deve ser uma ocupação, mas apenas um jogo, deve-se afastar essa seriedade com uma brincadeira oportuna; e) se uma discussão séria é, não obstante, inevitável, manter a si mesmo e a suas emoções em cuidadosa disciplina, de modo que o respeito e a afeição recíprocos sempre sobressaiam, o que depende mais do tom (que não deve ser nem gritado nem arrogante) que do conteúdo da conversa, a fim de que nenhum dos convidados volte para casa de relações cortadas com o outro. Por insignificantes que possam parecer essas leis da humanidade refinada, principalmente se comparadas com as leis morais puras, tudo o que promove a sociabilidade, ainda que só consista em máximas ou maneiras de agradar, é um traje que veste vantajosamente a virtude, que deve ser recomendado a esta última inclusive de um ponto de vista sério. - O purismo do cínico e a mortificação da carne do anacoreta, sem bem-estar social, são formas desfiguradas da virtude e não convidam para esta: ao contrário, abandonados pelas Graças, não podem aspirar à humanidade. Antropologia SEGUNDA PARTE CARACTERÍSTICA ANTROPOLÓGICA Da maneira de conhecer o interior do homem pelo exterior Divisão 1) o caráter da pessoa, 2) o caráter do gênero, 3) o caráter do povo, 4) o caráter da espécie. A O caráter da pessoa De um ponto de vista pragmático, a doutrina universal natural (não civil) dos signos (semiotica universalis) se serve da palavra caráter numa dupla acepção, porque, em parte, se diz que certo homem tem este ou aquele caráter (físico), em parte, que tem em geral um caráter (moral), que, ou é único, ou não pode ser caráter algum. O primeiro é o signo distintivo do ser humano como ser sensível ou natural; o segundo o distingue como um ente racional, dotado de liberdade. Tem caráter o homem de princípios, de quem se sabe seguramente que se pode contar, não com seu instinto, mas com sua vontade. - Por isso, no que cabe à sua faculdade de desejar (ao que é prático), pode-se dividir, na característica sem tautologia, o característico em: a) o natural ou disposição natural, b) o temperamento ou índole sensível e c) o caráter pura e simplesmente ou índole moral. - As duas primeiras disposições indicam o que se pode fazer do ser humano; a última (moral), o que ele se dispõe a fazer de si mesmo. I Do natural Um ser humano de boa natureza se diz de alguém que não é teimoso, mas que cede; ele sem dúvida fica zangado, mas facilmente se acalma e não guarda rancor (é negativamente bom). - Já é, ao contrário, dizer mais poder dizer dele que "tem um bom coração", ainda que também isso faça parte da índole sensível. É um impulso ao bem prático, ainda que não seja exercido segundo princípios, de modo que a pessoa de boa natureza e a de bom coração são, ambas, pessoas que um astuto pode usar como quiser. - E assim o natural se refere (subjetivamente) mais ao sentimento de prazer ou desprazer em como um ser humano é afetado por outro (e ele pode ter nisso algo de característico), do que (objetivamente) à faculdade de desejar; onde a vida não se revela apenas interiormente no sentimento, mas também exteriormente na atividade, embora meramente segundo móbiles da sensibilidade. Nisso consiste o temperamento, que tem ainda de ser diferenciado de uma disposição habitual (adquirida por hábito), porque esta não tem por base uma disposição natural, mas meras causas ocasionais. II Do temperamento Do ponto de vista fisiológico, quando se fala de temperamento entende-se a constituição corporal (a estrutura forte ou fraca) e a compleição (os fluídos, aquilo que no corpo se move regulado pela força vital, onde também se incluem o calor ou o frio na elaboração desses humores). Mas, sob o aspecto psicológico, isto é, como temperamento da alma (da faculdade de sentir e de desejar), essas expressões, tomadas de empréstimo à constituição sanguínea, são representadas somente conforme a analogia do jogo dos sentimentos e desejos com as causas motrizes corporais (dentre as quais o sangue é a principal). Daí resulta que os temperamentos, que atribuímos meramente à alma, podem também ter secretamente, como causa coadjuvante, aquilo que é corporal no homem; além disso - como, em primeiro lugar, admitem uma divisão superior em temperamentos do sentimento e da atividade, e como, em segundo, cada um deles pode ser ligado à excitabilidade (intensio) ou ao afrouxamento (remissio) da força vital -, só podem ser estabelecidos precisamente quatro temperamentos simples (como nas quatro figuras silogísticas pelo medius terminus): o sanguíneo, o melancólico, o colérico e o fleumático, pelo que poderão se conservar as antigas formas e manter apenas uma interpretação mais cômoda, adaptada ao espírito dessa doutrina dos temperamentos. Aqui, a expressão da constituição sanguínea não serve para indicar - nem pela patologia humoral nem pela patologia neural - as causas dos fenômenos do homem afetado sensivelmente, mas serve apenas para classificá-las segundo os efeitos observados, pois não se deseja, antes de mais nada, saber que composição química do sangue autorizaria a denominação de uma certa qualidade do temperamento, mas que sentimentos e inclinações se coletam ao observar um ser humano que permitem colocá-lo convenientemente sob a rubrica de uma classe particular. A divisão superior da doutrina do temperamento pode, portanto, ser feita entre temperamento do sentimento e temperamento da atividade, e estes, por sua vez, podem se dividir em duas espécies, que, juntas, dão os quatro temperamentos. - Como temperamento do sentimento considero então o sanguíneo, A, e sua contrapartida, o melancólico, B. - O primeiro tem a particularidade de que a sensação é afetada rápida e intensamente, mas não penetra fundo (não é durável); no segundo, em compensação, a sensação chama menos atenção, mas deita raízes profundas. A diferença entre os temperamentos do sentimento se funda nisso, não na propensão à alegria ou à tristeza. Pois a leveza dos sanguíneos os dispõe à jovialidade; a gravidade, ao contrário, que cisma com uma sensação, tira da alegria sua rápida mutabilidade sem por isso causar propriamente tristeza. - Mas porque toda alteração que se tem em seu poder vivifica e fortalece em geral a alma, aquele que pouco se importa com o que lhe ocorre, se não é sábio, é decerto mais feliz que aquele que se prende a sensações que lhe enrijecem a força vital. I Temperamentos do sentimento A O temperamento sanguíneo do homem de sangue leve O sanguíneo dá a conhecer sua índole nas seguintes manifestações. Ele é descuidado e esperançoso; por um momento, dá grande importância a cada coisa e, no momento seguinte, é capaz de não continuar pensando nela. Promete em nome da honra, mas não mantém a palavra, porque não refletiu antes com suficiente profundidade se seria capaz de cumpri-la. É bastante bondoso em prestar ajuda aos outros, mas é mau pagador e sempre pede prorrogação dos prazos. É bom companheiro, engraçado e alegre, não dá grande importância a coisa alguma (Vive la bagatelle!) e todos os seres humanos são seus amigos. Habitualmente não é má pessoa, mas um pecador difícil de converter, que realmente se arrepende muito de algo, mas logo esquece esse arrependimento (que nunca se toma um desgosto). Ele se cansa das ocupações e, entretanto, está incessantemente ocupado com aquilo que é mero jogo, porque traz distração, e perseverança não é com ele. B O temperamento melancólico do homem de sangue pesado O propenso à melancolia (não o melancólico, pois isso significa um estado e não a mera propensão a um estado) dá grande importância a todas as coisas que lhe dizem respeito, encontra em toda parte motivos de preocupação e volta a atenção primeiro para as dificuldades, assim como, ao contrário, o sanguíneo começa pela esperança de êxito: por isso, aquele também pensa profundamente; este, apenas superficialmente. Ele dificilmente promete, porque para ele manter a palavra é caro, mas o poder para tanto, duvidoso. Não que isso ocorra por motivos morais (pois aqui se trata de móbiles sensíveis), mas porque a adversidade o importuna e, por isso mesmo, o torna preocupado, desconfiado e hesitante, mas com isso também insensível à alegria. - Se habitual, essa disposição da mente é, aliás, contrária à do amor aos homens, que é mais uma herança do sanguíneo: porque quem tem ele mesmo de passar sem alegria, dificilmente deixará de invejá-la nos outros. II Temperamentos da atividade c O temperamento colérico do homem de sangue quente Dele se diz que é caloroso, se inflama rapidamente como o fogo na palha, deixa se apaziguar logo pela condescendência dos outros, se zanga a seguir, sem odiar, e ama tanto mais aquele que condescende logo com ele. - Sua ação é rápida, mas não persistente. - É solícito, mas se submete de mau grado às ocupações, precisamente porque não é persistente e, portanto, faz com gosto o papel daquele que dá as ordens, que dirige os trabalhos, mas que não deseja ele mesmo executá-los. Sua paixão dominante é, por isso, a ambição: gosta de lidar com questões de interesse público e quer ser elogiado em voz alta. Ama, por conseguinte, a aparência e a pompa das formalidades; gosta de proteger e é generoso na aparência, não por amor, mas por orgulho, pois ama mais a si mesmo. - Preza a ordem e parece, por isso, mais prudente do que é. É cobiçoso para não ser mesquinho; é cortês, mas com cerimônia, duro e afetado no trato, e gosta de ter algum adulador como alvo de seu chiste; a resistência dos outros às presunções de seu orgulho o mortifica mais que ao avaro a resistência às suas cobiças, porque um pouco de troça cáustica desfaz totalmente o nimbo de sua importância, enquanto que o avaro tem o seu lucro como compensação. - Numa palavra, o temperamento colérico é o menos feliz de todos, porque é o que mais incita à resistência contra si. D O temperamento fleumático do homem de sangue frio Fleuma significa ausência de afecção, não indolência (falta de vida), e o homem de muita fleuma nem por isso merece o nome de fleumático ou de um fleumático, que o põe, sob essa rubrica, na classe dos preguiçosos. Fleuma, como fraqueza, é propensão à inatividade, a não se deixar mover para os negócios nem pelos motivos mais fortes. A insensibilidade para esses motivos é uma inutilidade voluntária, cujas inclinações tendem somente para a saciedade e descanso. Fleuma, como força, é, em contrapartida, a qualidade de não se comover fácil ou rapidamente, mas de maneira duradoura, ainda que lentamente. - Quem tem uma boa dose de fleuma em sua mistura, esquenta lentamente, mas conserva o calor por mais tempo. Não incorre facilmente em cólera, mas reflete primeiro se não deve se encolerizar, enquanto, por outro lado, o colérico fica furioso por não poder tirar o homem firme de sua frieza. Dotado pela natureza de uma dose inteiramente normal de razão, mas, ao mesmo tempo, dessa fleuma, sem brilhar e, todavia, não partindo do instinto, mas de princípios, o homem de sangue frio nada tem de que se arrepender. Seu feliz temperamento ocupa nele o lugar da sabedoria, e mesmo na vida comum é com frequência chamado de filósofo. Com isso é superior aos outros sem lhes ferir a vaidade. Também o chamam comumente de manhoso, pois tudo o que é arremessado contra ele por balistas e catapultas amortece como em sacos cheios de lã. É um marido conciliador e sabe auferir para si o domínio sobre esposa e familiares, parecendo anuir com a vontade de todos, porque, por sua vontade inflexível, mas superior, sabe fazer com que mudem a vontade deles para a sua, como corpos de pequena massa e grande velocidade que, ao se chocarem, atravessam o obstáculo, mas, com menos velocidade e mais massa, o levam consigo sem destruí-lo. Se um temperamento deve estar associado a outro - como se acredita comumente -, por exemplo, A-----------------------------B o sanguíneo o melancólico I I I I I I I I I I C-----------------------------D o colérico o fleumático eles ou se opõem um ao outro, ou se neutralizam. O primeiro caso ocorre quando se quer pensar o sanguíneo unido ao melancólico ou, igualmente, o colérico unido ao fleumático num único e mesmo sujeito, pois eles (A e B, igualmente C e D) estão em contradição um com o outro. - O segundo, a saber, a neutralização, ocorreria na mistura (como que química) do sanguíneo com o colérico e do melancólico com o fleumático (A e C, igualmente B e D). Pois não se pode pensar a bondosa jovialidade fundindo-se no mesmo ato à ira intimidante, nem tampouco o sofrimento do que se autoflagela com a tranquilidade satisfeita da mente que se basta a si mesma. - Mas se um desses dois estados deve alternar com o outro no mesmo sujeito, isso produz mero humor instável, mas não temperamento definido. Não há, portanto, temperamentos compostos, por exemplo, um sanguíneo-colérico (que todos os fanfarrões querem possuir, simulando serem senhores misericordiosos e não obstante também severos), mas existem apenas quatro no total, e todos eles simples, e não há o que fazer com o homem que se arroga um temperamento misto. Alegria e leviandade, profundidade e demência, magnanimidade e teimosia, finalmente, frieza e fraqueza, são, como efeitos do temperamento, diferentes apenas em relação às suas causas. (Que influência a diferença dos temperamentos pode ter sobre os negócios públicos ou, inversamente, estes sobre aqueles (por efeito do exercício habitual destes), a resposta a isso alguns pretendem tê-la descoberto, em parte pela experiência, em parte com a ajuda de presumíveis causas ocasionais. Assim se diz, por exemplo, que na de religião O colérico é ortodoxo O sanguíneo, livre-pensador, O melancólico, místico, O fleumático, indiferentista. Mas estes são juízos lançados ao léu, que valem para a característica tanto quanto lhes dá um chiste escurril (valent quantum possunt). Nota do Autor.) III Do caráter como índole moral Poder dizer pura e simplesmente de um ser humano que "ele tem um caráter” não significa apenas ter dito muito a seu respeito, mas também tê-lo elogiado, pois isso é uma raridade que inspira respeito e admiração. Se por esse nome em geral se entende aquilo de que, sendo bom ou mau, seguramente se precisa para ter um caráter, então se costuma acrescentar: ele tem este ou aquele caráter, e então a expressão designa a índole. - Mas ter pura e simplesmente um caráter significa ter aquela qualidade da vontade segundo a qual o sujeito se obriga a seguir determinados princípios práticos que prescreveu inalteravelmente para si mesmo mediante sua própria razão. Mesmo que esses princípios realmente possam por vezes ser falsos e errôneos, o aspecto formal do querer em geral, de agir segundo princípios firmes (não saltando de lá para cá como num enxame de mosquitos), é em si algo estimável e digno de admiração, como também raro. Aqui não importa o que a natureza faz do ser humano, mas o que este faz de si mesmo; pois aquilo faz parte do temperamento (onde o sujeito é em grande parte passivo), mas apenas isto dá a conhecer que possui um caráter. Todas as outras qualidades boas e úteis do homem têm um preço, pelo que se deixam trocar por outras de igual utilidade: o talento tem um preço de mercado, pois o soberano ou senhor local pode precisar de um homem assim de várias maneiras; - o temperamento tem um preço afetivo, e a gente pode se dar bem com ele, que é um companheiro agradável -; mas o caráter tem um valor intrínseco e está acima de qualquer preço. (Um navegante ouvia numa reunião a discussão que doutos estavam tendo sobre a posição que lhes cabia de acordo com suas respectivas faculdades. Ele a decidiu a seu modo, a saber, quanto lhe renderia um homem capturado por ele ao ser vendido no mercado na Argélia. Lá, ninguém pode precisar do teólogo e do jurista, mas o médico sabe um ofício e seu preço será pago em espécie. - A ama que havia amamentado o rei Jaime I da Inglaterra pediu-lhe que fizesse de seu filho um cavalheiro (um homem fino). Jaime lhe respondeu: "Isso eu não posso fazer; posso torná-la conde, mas cavalheiro é ele mesmo que tem de se tornar um". - Viajando próximo à ilha de Creta, Diógenes (o cínico) foi (como reza a história) capturado e posto à venda num mercado de escravos. "O que você sabe fazer, do que você entende?" lhe perguntou o vendedor que o havia colocado numa elevação. "Sei governar, respondeu o filósofo, e tu deves procurar para mim um comprador que tenha necessidade de um senhor". O comerciante, refletindo sobre essa estranha pretensão, fechou esse estranho negócio: entregou o filho ao filósofo para que o educasse, fazendo dele o que quisesse; ele mesmo, porém, passou alguns anos negociando na Ásia; e ao voltar, encontrou seu filho, antes rude, transformado num homem hábil, bem educado, virtuoso. - É mais ou menos assim que se pode estimar o grau do valor humano. Nota do Autor.) Das qualidades que se seguem meramente de que o ser humano tenha um caráter ou seja sem caráter 1. O imitador (na moral) é sem caráter, pois este consiste precisamente na originalidade da índole. A fonte de onde haure sua conduta foi aberta por ele mesmo. Mas nem por isso o homem racional pode ser um excêntrico: ele jamais o será, porque se apoia em princípios que valem para todos. O outro é um arremedador do homem de caráter. A boa índole do temperamento é uma aquarela e não um traço do caráter; mas este, se se faz dele uma caricatura, é um escárnio injurioso do homem de verdadeiro caráter, porque ele não toma parte no mal transformado em uso público (em moda) e, assim, é apresentado como um excêntrico. 2. A maldade, como disposição do temperamento, é todavia menos ruim que a bondade dela sem caráter, pois por meio deste último se pode sobrepujar a primeira. Mesmo um homem de mau caráter (como Sila), embora provoque abominação pela crueldade de suas máximas severas, é ao mesmo tempo objeto de admiração, assim como, comparando a força da alma em geral com a bondade da alma, ambas precisam se encontrar unidas no sujeito para produzirem aquilo que é mais ideal do que realidade, a saber, para fazerem jus ao título de grandeza da alma. 3. Ter o senso rígido e inflexível nalguma resolução tomada (como, por exemplo, Carlos XII) é realmente uma disposição natural muito favorável ao caráter, mas não ainda um caráter determinado em geral. Pois para isso são requeri das máximas provenientes da razão e de princípios morais práticos. Por isso, não se pode propriamente dizer que a maldade de tal homem é uma qualidade do caráter dele, pois então ela seria diabólica; o ser humano, contudo, nunca aprova o mal em si e, assim, não há propriamente maldade por princípios, mas somente porque se abdicou deles. Procede-se, pois, melhor, se os princípios concernentes ao caráter são apresentados apenas negativamente. São eles: a. Não dizer inverdade, de propósito: por isso, também falar com cuidado, a fim de que não recaia sobre si a vergonha do desmentido. b. Não fingir: parecer bem-intencionado pela frente, mas ser hostil por trás. c. Não quebrar suas promessas (consentidas), do que também faz parte: honrar ainda a memória de uma amizade já rompida e não abusar depois da antiga confiança e franqueza do outro. d. Não travar relacionamento que envolva gosto com homens de má índole e lembrar do noscitur ex socio etc., limitando a relação somente a negócios. e. Não levar em conta a difamação proveniente de um juízo superficial e mau dos demais, pois o contrário já revela fraqueza; moderar também o temor de infringir a moda, que é coisa passageira e inconstante e, se ela já alcançou alguma influência importante, ao menos não estender seu mandamento até a moralidade. O ser humano consciente de um caráter em sua índole não recebe esse caráter da natureza, mas precisa sempre tê-lo adquirido. Pode-se admitir também que o estabelecimento dele, como uma espécie de renascimento, como certa promessa solene que a pessoa se faz a si mesma, toma inesquecíveis para ele esse renascimento e o momento em que nele ocorreu essa transformação, como se fosse uma nova era. - A educação, os exemplos e o ensino não podem produzir pouco a pouco essa firmeza e perseverança nos princípios em geral, que surge apenas como que por meio de uma explosão que sucede repentinamente ao fastio com o estado oscilante do instinto. Apenas poucos serão talvez os que tentaram essa revolução antes dos trinta anos, e ainda menos os que a fundaram solidamente antes dos quarenta. - Querer se tomar um homem melhor fragmentariamente é uma tentativa inútil, pois uma impressão se extingue enquanto se trabalha numa outra, mas o estabelecimento de um caráter é unidade absoluta do princípio interno da conduta de vida em geral. - Também se diz que os poetas não têm caráter, por exemplo, que preferem perder o melhor amigo a perder a piada, ou que o caráter não deve ser procurado entre os cortesãos, obrigados a se sujeitar de todas as maneiras, e que a firmeza de caráter é coisa incerta entre os eclesiásticos, que cortejam o Senhor dos céus mas ao mesmo tempo também os senhores da terra com a mesma disposição de espírito; que, portanto, ter um caráter interno (moral) é e permanecerá sendo só um piedoso desejo. Mas talvez os filósofos sejam culpados disso por nunca terem colocado esse conceito em separado numa luz suficientemente clara, e por terem tentado apresentar a virtude apenas fragmentariamente, jamais inteiramente na beleza de sua figura e de forma que pudesse interessar a todos os homens. Numa palavra, ter convertido a veracidade em máxima suprema para si, tanto na confissão interior perante si mesmo quanto no relacionamento com outro qualquer, é a única prova da consciência de um homem de que tem um caráter; e porque tê-lo é o mínimo que se pode exigir de um homem racional, mas simultaneamente também o máximo do valor interno (da dignidade humana), ser um homem de princípios (ter um caráter determinado) tem de ser possível à razão humana mais comum e, por isso, tem de ser superior em dignidade ao maior talento. Da fisiognomonia É a arte de julgar, pela figura visível de uma pessoa, por conseguinte, pelo exterior, o interior dela, quer segundo sua índole sensível, quer segundo sua índole moral. - Aqui ela não é julgada em seu estado doentio, mas saudável; não quando seu espírito está em movimento, mas quando está em repouso. - Se aquele a quem se julga com esse propósito se der conta de que está sendo observado e de que se espia seu interior, ele evidentemente não terá a mente tranquila, mas em estado de coerção e de comoção interior, e mesmo de aversão a se ver exposto à censura alheia. Se um relógio tem uma bela caixa, disso não se pode julgar com segurança (disse um famoso relojoeiro) que também o interior seja bom; mas se a caixa está mal trabalhada, então se pode concluir com bastante certeza que também o interior não vale muita coisa; pois o artista não porá em descrédito uma obra em que trabalhou tão aplicadamente e tão bem, descuidando de seu aspecto exterior, que é o que menos trabalho custa. - Seria, porém, absurdo concluir, também aqui, segundo a analogia de um artista humano com o inescrutável criador da natureza, que ele deu a uma boa alma também um belo corpo a fim de recomendar o homem que ele criou aos outros homens e fazer com que seja acolhido entre eles, ou também o inverso, que um seja intimidado pelo outro (por meio do hic niger est, hunc tu, Romane caveto). Pois o gosto, que contém um mero fundamento subjetivo da satisfação ou insatisfação de uma pessoa ligada como um único e mesmo fim no ser humano. Da direção da natureza para a fisiognomonia Por melhores que tenham sido as recomendações daquele a quem devemos confiar, o fato de olharmos antes no seu rosto, mas principalmente nos seus olhos, para averiguar o que dele devemos esperar, é um impulso natural, e aquilo que há de repulsivo ou atraente em seus gestos decide sobre nossa escolha, ou também nos toma reticentes, mesmo antes de lhe conhecermos os costumes; assim, não cabe discutir se há uma característica fisiognomônica, que todavia nunca pode se tomar uma ciência, porque a peculiaridade de uma figura humana, que aponta certas inclinações ou faculdades do sujeito observado, não pode ser compreendida pela descrição de conceitos, e sim pela ilustração e exposição na intuição ou em sua imitação: onde a figura humana em geral é exposta ao juízo segundo suas variedades, cada uma das quais deve indicar uma qualidade particular interior do ser humano. Desde que há muito tempo já se esqueceram as caricaturas de cabeças humanas de Batista Porta, que representam cabeças de animais comparadas analogicamente com certos rostos humanos característicos e que deveriam permitir inferir uma semelhança entre as disposições naturais em ambos; desde a grande difusão desse gosto por Lavater, que se tornou por longo tempo mercadoria amplamente apreciada e barata graças às silhuetas, gosto porém que recentemente foi totalmente abandonado; desde que quase mais nada restou além da observação ambígua (do sr. de Archenholz), segundo a qual o rosto de uma pessoa que se imita por uma única careta também despertaria ao mesmo tempo certos pensamentos ou sensações que concordam com o caráter dela -, desde então, da fisiognomonia como arte de espreitar o interior do homem por meio de certos signos externos e involuntários deixou inteiramente de ter procura, dela nada tendo restado senão a arte da cultura do gosto, não realmente em coisas, mas nos costumes, maneiras e usos, para, mediante uma crítica que seja proveitosa ao relacionamento e ao conhecimento dos homens, vir em auxílio desse conhecimento. Divisão da fisiognomonia Do característico 1. Na fisionomia em geral, 2. Nas feições do rosto, 3. na gesticulação habitual (as expressões faciais). A Da fisionomia É notável que os artistas gregos tivessem em mente também um ideal de fisionomia (para deuses e heróis) que devia expressar - em estátuas, camafeus e gemas - uma perpétua juventude e, ao mesmo tempo, um repouso livre de toda emoção, sem acréscimo de nenhum estímulo. - O perfil grego perpendicular toma os olhos mais fundos do que deveriam ser para nosso gosto (que está voltado para o estímulo sensível), e mesmo uma Vênus de Mediei não carece de tal estímulo. - A causa pode ser esta: como o ideal deve ser uma norma determinada, inalterável, um nariz saliente, formando um ângulo (maior ou menor) com o rosto a partir da testa, não proporcionaria nenhuma regra determinada da figura, tal como todavia é requeri da por aquilo que entra na norma. Tampouco os gregos modernos, a despeito de sua bela conformação se harmonizar com o restante de seu corpo, possuem em seu rosto essa grave perpendicularidade do perfil, que parece demonstrar a idealidade no que diz respeito às obras de arte como arquétipos. - Segundo tais modelos mitológicos, os olhos se encontram mais para o fundo e são colocados um tanto à sombra da raiz das narinas; nos tempos atuais, ao contrário, são considerados mais belos os rostos de seres humanos com um pequeno relevo do nariz a partir da testa (sinuosidade na raiz do nariz). Se seguimos nossas observações sobre as pessoas tais como realmente são, uma exata e justa regularidade indicaria comumente uma pessoa bem ordinária e sem espírito. O meio termo parece ser a medida fundamental e a base da beleza, mas está ainda longe de ser a beleza mesma, porque para esta se requer algo característico. - Pode-se, entretanto, encontrar esse algo característico também sem beleza num rosto cuja expressão fale bastante a seu próprio favor, se bem que noutra referência (talvez moral ou estética); isto é, pode-se censurar num rosto, ora esta, ora aquela parte, a testa, o nariz, o queixo ou a cor do cabelo etc., mas não obstante se reconhece que, para a individualidade da pessoa, isso é mais recomendável do que se a regularidade fosse perfeita: porque geralmente esta também traz consigo falta de caráter. Mas não se deve censurar a feiura num rosto, se em suas feições não se denuncia a expressão de uma mente corrompida pelo vício ou de uma propensão natural, mas infeliz, para ele, como, por exemplo, certo traço de sorriso malicioso tão logo a pessoa fale, ou também a desfaçatez, sem abrandamento suave, quando olha o outro no rosto, expressando com isso que não leva em nenhuma conta o seu juízo. - Existem homens cujo rosto (como dizem os franceses) é rébarbatif, que, como se diz, fazem as crianças correr para a cama, ou que têm um rosto grotesco e desfigurado pelas bexigas, ou um rosto wanschapenes (como que pensado em delírio, em sonho), como o chamam os holandeses; mas, ao mesmo tempo, tais homens demonstram tanta bondade e alegria, que fazem brincadeiras com o próprio rosto, ao qual, por isso, de modo algum se pode chamar de feio, embora não levem a mal quando uma dama diga a respeito deles (como a respeito de Pelisson na Académie française): "Pelisson abusa da permissão que os homens têm de serem feios". Ainda pior e mais tolo é quando uma pessoa de quem se deve esperar boas maneiras, só acentua, como a plebe, as deformidades corporais de alguém, as quais frequentemente só servem para elevar as qualidades espirituais dele; se ocorre com pessoas infortunadas em tenra juventude ("você é cego", "você é aleijado"), isso as torna verdadeiramente más e pouco a pouco revoltadas com os de boa compleição que se imaginam melhores por isso. Aliás, para povos que nunca saem de seu país, os rostos naturais insólitos dos estrangeiros, são geralmente um objeto de zombaria. Assim, no Japão as crianças perseguem os holandeses que lá foram comerciar, gritando-lhes: "Que olhos enormes, que olhos enormes!"; e aos chineses, os cabelos ruivos de muitos europeus que os visitam parecem repugnantes, mas os olhos azuis deles, ridículos. No que se refere ao simples crânio e à sua figura, que constitui a base da figura, por exemplo, dos negros, dos cal mucos, dos índios dos mares do sul e outros, como descritos por Camper e principalmente por Blumenbach, as observações sobre esse assunto pertencem mais à geografia física que à antropologia pragmática. Algo intermediário entre ambas pode ser esta observação: que entre nós a testa do sexo masculino costuma ser chata, a do feminino, porém, mais esférica. Se uma saliência no nariz indica um trocista, se a particularidade da fisionomia dos chineses, dos quais se diz que a mandíbula inferior excede um pouco a superior, é um sinal de sua obstinação, ou se a dos americanos, cuja testa é coberta de cabelos por ambos os lados, é signo de uma imbecilidade inata etc., isso são conjecturas que só permitem uma interpretação incerta. B Do característico nas feições do rosto Não é prejudicial a um homem, mesmo no juízo do sexo feminino, se a cor da pele ou bexigas tomaram seu rosto desfigurado e feio, pois se a bondade em seus olhos e, ao mesmo tempo, a expressão do homem valoroso na consciência de sua força, ligada à serenidade, reluzirem em seu olhar, ele poderá ser sempre querido, digno de amor e tido universalmente como tal. Brinca-se com ele e com sua amabilidade (per antiphrasin), e uma mulher pode ter orgulho de possuir um marido assim. Tal rosto não é caricatura, pois esta é um desenho, intencionalmente exagerado (distorção) do rosto num estado de afecção, pensado para fazer rir e pertencendo à mímica; aquele, ao contrário, deve ser considerado uma variedade contida na natureza e não pode ser chamado de carranca (que seria repulsiva), pois pode inspirar amor mesmo sem ser amável e, sem ser belo, não é todavia feio. (Heidegger, um músico alemão residente em Londres, era um homem de figura estranha, mas esperto e inteligente, de cuja companhia gostavam, por sua conversação, os nobres. - Certa vez, num encontro para beber ponche, afirmou contra um lorde que ele era a cara mais feia de Londres. O lorde refletiu e propôs a aposta de que lhe apresentaria uma outra mais feia, e então fez chamar uma mulher bêbada, à vista da qual a reunião inteira irrompeu numa estrondosa risada e exclamou: "Heidegger, você perdeu a aposta!". - "Não sejam tão precipitados" respondeu, "vamos colocar minha peruca na mulher, e eu colocarei sua touca; então veremos". Feito isso, quase morreram de rir, pois a mulher parecia um homem muito bem apessoado e o homem, uma bruxa. Isso prova que, para dizer que alguém é belo, ou ao menos razoavelmente bonito, o juízo não tem de ser pronunciado de maneira absoluta, mas sempre apenas de maneira relativa, e não se pode chamar um homem de feio, porque ele não é propriamente lindo. - Somente os defeitos repugnantes no rosto podem autorizar a empregar essa expressão. Nota do Autor.) C Do característico das expressões faciais Expressões faciais são o jogo dos traços do rosto, ao qual se é levado por uma afecção mais ou menos forte, e a propensão para esta é um traço de caráter do ser humano. É difícil que a impressão causada por uma afecção não se denuncie em nenhuma expressão facial; ela se denuncia por si mesma na penosa contenção do gesto ou da voz, e quem é muito fraco para dominar suas afecções, neste o jogo das expressões faciais (malgrado sua razão) colocará a nu o interior que ele gostaria de ocultar e subtrair aos olhos dos outros. Mas quando se adivinha quem eles são, aqueles que são mestres nessa arte não serão considerados as melhores pessoas com quem se possa tratar em confiança, principalmente quando se exercitaram em simular expressões faciais que contradizem aquilo que fazem. A arte de interpretar as expressões faciais, que denunciam impremeditadamente o interior, embora nisso também possam mentir deliberadamente, pode dar ensejo a muitas boas observações, das quais só quero mencionar uma. - Se alguém que normalmente não torce a vista enquanto fala, olha para a ponta do nariz e, desse modo, torce a vista, aquilo que está contando é sempre mentira. Mas não se deve considerar aí o estado defeituoso dos olhos de um estrábico, que pode ser completamente livre desse vício. De resto, existem gesticulações constituídas pela natureza mediante as quais homens de todas as raças e climas se entendem, mesmo sem acordo prévio. Destas fazem parte balançar a cabeça (na afirmação), sacudi-la (na negação), levantá-la (em desafio), abaná-la (em admiração), arrebitar o nariz (de escárnio), o sorriso trocista (arreganhando os dentes), ficar de beiço caído (à rejeição de um desejo), franzir a testa (em desaprovação), abrir e fechar rapidamente a boca (oral), acenar com as mãos aproximando-as e afastando-as, bater as mãos por sobre a cabeça (de surpresa), cerrar o punho (em ameaça), inclinar-se, colocar o dedo sobre a boca (compescere labella) para pedir silêncio, apupar etc. Notas esparsas Expressões faciais repetidas com frequência, acompanhando mesmo involuntariamente o movimento da mente, tomam-se pouco a pouco traços constantes do rosto, mas desaparecem com a morte; por isso, como observa Lavater, o rosto assustador, que revela o malvado em vida, como que se enobrece (negativamente) na morte, porque então, como todos os músculos relaxam, sobra apenas como que a expressão do repouso, que é inocente. - Assim pode ocorrer também que um homem, cuja juventude transcorrera sem desvios, com o passar da idade mude de fisionomia, apesar da perfeita saúde, devido à devassidão, mas a partir dessa outra fisionomia não se pode chegar a conclusão sobre sua disposição natural. Fala-se também de rosto comum, em oposição ao rosto aristocrático. Este último não significa nada mais que uma presumida importância, unida à maneira cortesã da bajulação, que só prospera nas grandes cidades, onde os homens entram em atrito uns com os outros e pulem as suas asperezas. Por isso, funcionários nascidos e educados na província, quando são promovidos a cargos de importância na cidade, para onde vão com suas famílias, ou ainda quando se qualificam para eles por sua posição social, não demonstram certa vulgaridade apenas em suas maneiras, mas também na expressão do rosto. Pois, como não se sentiam constrangidos em sua esfera de atuação, por não terem de lidar senão com subordinados, os músculos do rosto não adquiriram a flexibilidade necessária para cultivar o jogo de expressão facial adequado a todas as situações em que deve estar com superiores, inferiores e iguais, além das afecções ligadas a esse jogo, que é requerido, sem concessão alguma, para ser bem recebido em sociedade. Em contrapartida, pessoas da mesma posição conhecedoras das maneiras urbanas, sendo conscientes de ter uma superioridade sobre as outras, imprimem em traços duradouros essa consciência em seus rostos, quando um longo exercício a toma habitual. Numa religião ou culto que detém o poder do Estado, os devotos, se são por longo período disciplinados e como que entorpecidos em mecânicos exercícios de fervor religioso, introduzem em todo um povo, dentro dos limites desse Estado, traços nacionais que o caracterizam fisionomicamente. Assim, o sr. Fr. Nicolai fala de desagradáveis rostos abençoados na Bavária; em compensação, a liberdade de ser descortês, própria da velha Inglaterra, John Bull já a leva estampada no rosto para usá-la onde quer que possa ir, no estrangeiro ou contra um estrangeiro em seu próprio país. Há, pois, uma fisionomia nacional, sem que se possa considerá-la precisamente inata. - Existem designações características em sociedades que são punidas por lei. Em suas viagens, um hábil médico alemão observa que os presos no Rasphuis de Amsterdã, na Bicêtre de Paris e na Newgate de Londres eram em sua maior parte homens fortes e conscientes de sua superioridade; mas de nenhum será lícito dizer, com o ator Quin: "Se este sujeito não é um malandro, então o Criador não escreve em caracteres legíveis". Pois para assim decidir tão violentamente seria necessário, mais do que qualquer mortal possa se arrogar possuí-la, a faculdade de distinguir entre o jogo que a natureza joga com as formas de sua constituição, a fim de produzir meramente a multiplicidade dos temperamentos, e aquilo que nesse jogo ela faz ou não pela moral. B O caráter do sexo Em todas as máquinas que devem produzir com menos força o mesmo tanto que outras produzem com força maior, é preciso pôr arte. Pode-se, por isso, admitir de antemão que a previdência da natureza terá colocado mais arte na organização da parte feminina que na da masculina, porque, não apenas para juntar os dois na mais estreita união física, mas também, como seres racionais, para o fim que mais interessa a ela mesma, a saber, a conservação da espécie, ela dotou o homem de mais força que a mulher e os muniu, além disso, naquela qualidade (de animais racionais), de inclinações sociais para manter duradouramente sua comunidade sexual numa união doméstica. Para a unidade e indissolubilidade de uma ligação não é suficiente o encontro aleatório de duas pessoas: uma das partes tem de estar submetida à outra e, reciprocamente, uma ser superior à outra em algum aspecto, para poder dominá-la ou governá-la. Pois se entre duas pessoas que não podem prescindir uma da outra há pretensões iguais, nelas o amor-próprio gera apenas discórdia. No progresso da civilização, cada uma das partes tem de ser superior de maneira heterogênea: o homem tem de ser superior à mulher por sua capacidade física e sua coragem, mas a mulher, por seu dom natural de dominar a inclinação do homem por ela; porque, pelo contrário, no estado ainda não civilizado, a superioridade está simplesmente do lado do homem. - Por isso, na antropologia a especificidade da mulher é um objeto de estudo para o filósofo, mais que a do sexo masculino. No rude estado de natureza tal especificidade não pode ser reconhecida, tão pouco quanto a das maçãs e peras silvestres, cuja variedade só se descobre por enxerto ou inoculação; pois não é a civilização que introduz essas qualidades femininas, mas só lhes dá ocasião de se desenvolver e, em circunstâncias favoráveis, tomar conhecidas. Feminilidades significam fraquezas. Graceja-se com elas, os tolos as utilizam para seu escárnio, mas os sensatos veem muito bem que são elas justamente as alavancas que dirigem a masculinidade, e que as mulheres as empregam para aquele seu fim. O homem é fácil de investigar, a mulher não revela seu segredo, ainda que não guarde bem o de outros (devido à sua loquacidade). Ele ama a paz do lar e se submete de bom grado ao regimento dela, simplesmente para não se ver estorvado em seus afazeres; a mulher não teme a guerra doméstica, em que ela combate com sua língua, e em vista da qual a natureza lhe deu a loquacidade e eloquência carregada de emoção, que desarma o homem. Ele se baseia no direito do mais forte para mandar na casa, porque deve protegê-la contra os inimigos externos; ela, no direito do mais fraco: o de ser protegida pelo homem contra os homens; com lágrimas de amargura deixa o homem sem armas, ao lançar-lhe na cara a falta de generosidade dele. No rude estado de natureza, sem dúvida, isso é diferente. A mulher é como um animal doméstico. O homem vai à frente com suas armas na mão, e a mulher o segue, carregando a bagagem de utensílios do lar. Mas mesmo ali onde uma constituição civil bárbara torna legal a poligamia, a mulher favorita sabe obter, dentro de sua jaula (denominada harém), o domínio sobre o homem, e este pena muito para conseguir uma paz tolerável na disputa de muitas para ser aquela (que há de dominá-lo). No estado civil, a mulher não se entrega ao desejo do homem sem casamento, e casamento monogâmico: aqui, se a civilização ainda não chegou até a liberdade feminina de receber galanteios (ter também publicamente outros homens como pretendentes), o homem castiga a mulher que o ameaça com um rival. (Considera-se geralmente como fábula a antiga lenda a respeito dos russos, segundo a qual as mulheres suspeitavam que seus maridos estavam tendo caso com outras mulheres se, de quando em quando, não apanhassem deles. Mas nas viagens de Cook se pode ler que um marujo inglês, vendo um índio de Otaheit bater na mulher, quis dar uma de galante e avançou sobre ele, ameaçando-o. A mulher se voltou no ato contra o inglês, perguntando-lhe que tinha a ver com isso! O homem tinha de fazer aquilo! - Da mesma forma, quando a mulher casada estimula visivelmente o galanteio e seu marido já não presta atenção nisso, mas se sente compensado com reuniões para beber ponche e jogar ou com cortejar outras mulheres, também se notará que, não só desprezo, também ódio brotará do lado feminino, porque a mulher reconhece nisso que ele já não lhe dá nenhum valor e abandona indiferente sua esposa a outros, como um osso a ser roído por eles. Nota do Autor.) Mas se o galanteio se converteu em moda e o ciúme em algo ridículo (como não deixa de ocorrer numa época de luxo), o caráter feminino se revela: com seu afeto pelos homens ele exige liberdade e, ao mesmo tempo, a conquista desse sexo inteiro. - Ainda que goze de má reputação sob o nome de coqueteria, essa inclinação não é desprovida de verdadeiro fundamento que a justifique. Pois uma jovem senhora está sempre em perigo de se tomar viúva, e isso faz com que lance seus charmes a todos os homens que as circunstâncias tomam disponíveis para o matrimônio, a fim de que, caso aquilo aconteça, não lhe falte pretendentes. Pope acredita que se pode caracterizar o sexo feminino (entenda-se a parte cultivada dele) por dois aspectos: a inclinação a dominar e a inclinação ao contentamento. - Por este último, no entanto, não se deve entender o contentamento doméstico, mas o público, pelo qual o sexo feminino pode se mostrar vantajosamente e se distinguir; então a segunda inclinação também se dissolve na primeira, a saber, não agradar menos que as rivais, mas, se possível, vencer a todas elas por seu gosto e charme. - Mas também a inclinação mencionada por primeiro não serve, como inclinação em geral, para caracterizar uma classe de seres humanos em geral em relação a outras. Pois a inclinação ao que nos é vantajoso é comum a todos os seres humanos, portanto também a de dominar, tanto quanto nos seja possível; por isso, ela não caracteriza. - Entretanto, que esse sexo se ache em guerra constante consigo mesmo e, pelo contrário, em muito bom entendimento com o outro, talvez isso possa ser entendido como fazendo parte do caráter dele, se não fosse mera consequência natural da rivalidade em tentar obter vantagem na afeição e apego dos homens. Como a inclinação a dominar é o verdadeiro fim, o contentamento público, pelo qual se amplia o espaço de jogo de seus charmes, é apenas o meio de levar a efeito aquela inclinação. Só se pode chegar à característica desse sexo utilizando como princípio não aquilo que tomamos por nosso fim, mas aquilo que era o fim da natureza na instituição da feminilidade, e uma vez que, mesmo por intermédio da tolice dos homens, e no entanto conforme o propósito natural, tal fim tem de ser sabedoria, esses seus supostos fins podem servir também para indicar o princípio dela, que não depende de nossa escolha, mas de um propósito superior que ela tem para com o gênero humano. São eles: 1. A conservação da espécie, 2. A cultura e o refinamento da sociedade por meio da feminilidade. I. Quando a natureza confiou ao seio feminino seu penhor mais caro, a saber, a espécie na forma de um feto mediante o qual o gênero deveria se reproduzir e eternizar, ela teve, por assim dizer, medo quanto à conservação dele e implantou na natureza dele esse medo de ferimentos corporais, bem como a timidez diante de semelhantes perigos; fraquezas pelas quais esse sexo exige legitimamente que o masculino o proteja. II. Querendo infundir também os finos sentimentos referentes à civilização, isto é, os da sociabilidade e do decoro, a natureza tomou muito cedo esse sexo hábil para dominar o masculino mediante sua decência e sua eloquência na linguagem e nos gestos, exigindo comportamento suave e cortês por parte do sexo masculino, de tal modo que este último se viu, devido à própria generosidade, invisivelmente cativado por uma criança, e por ela levado, não precisamente à moralidade mesma, mas àquilo com que se veste, a decência moralizada, preparação e exortação àquela. Notas esparsas A mulher quer dominar, o homem, ser dominado (principalmente antes do casamento). Daí os galanteios da antiga nobreza de cavalaria. - A mulher muito cedo infunde em si mesma confiança para agradar. O jovem sempre teme desagradar, daí seu embaraço (constrangimento) na companhia das damas. - Já unicamente pela qualificação de seu sexo, a mulher afirma esse seu orgulho de manter afastada toda e qualquer impertinência do homem, pelo respeito que infunde, e o direito de exigir atenção, mesmo sem ter nenhum mérito. - A mulher recusa, o homem solicita; a submissão dela é favorecimento. - A natureza quer que a mulher seja a solicitada, por isso ela não precisou ser tão delicada na escolha (segundo o gosto) quanto o homem, ao passo que a natureza também construiu o homem mais grosseiramente, o qual já agrada a mulher quando mostra em sua figura vigor e destreza para defendê-la; pois se, para poder se apaixonar, a beleza da figura dele lhe causasse repugnância ou se ela fosse refinada na escolha, então seria ela quem teria de se mostrar como a pretendente, e ele, como o que recusa, o que diminuiria totalmente o valor de seu sexo, inclusive aos olhos do homem. - Ela precisa parecer fria, o homem, ao contrário, cheio de afeto no amor. Não atender a um pedido apaixonado, parece ultrajante para o homem; dar facilmente ouvido a ele, ultrajante para a mulher. - O desejo desta última de que seus encantos possam atuar sobre todo homem fino é coqueteria; fingir estar apaixonado por toda mulher é galanteria; ambas podem ser mero fingimento tomado moda, sem nenhuma consequência séria, como o chichisbéu, uma liberdade afetada da mulher no casamento, ou o modo de vida das cortesãs na Itália dessa mesma época [na Historia concilii Tridentini diz-se entre outras coisas: erant ibi etiam 300 honestae meretrices, quas cortegianas vocant], do qual se conta que continha mais depurado cultivo de polidez pública que as reuniões entre ambos sexos nas residências particulares. - O homem pede em casamento somente sua mulher, mas a mulher pede a inclinação de todos os homens; ela só se enfeita para os olhos de seu próprio sexo, ciosa de superar as demais mulheres em encantos ou em distinção; o homem, ao contrário, se enfeita para o sexo feminino, se é que se pode chamar de enfeite àquilo que no traje só serve para não causar vergonha à própria esposa. - O homem julga as faltas femininas com indulgência, mas a mulher (publicamente) com muito rigor, e as jovens senhoras, se tivessem de escolher entre um tribunal masculino ou feminino para julgar suas faltas, seguramente escolheriam o primeiro como juiz. - Se o refinamento do luxo aumenta, a mulher só se mostra modesta por pressão e não esconde o desejo de que preferiria ser o homem, quando poderia dar maior e mais livre espaço de jogo a suas inclinações; mas nenhum homem quererá ser mulher. A mulher não pergunta pela abstinência do homem antes do casamento; mas a da mulher é infinitamente importante para ele. - No casamento, as mulheres fazem troça da intolerância (ciúme dos maridos em geral), mas é só brincadeira delas; a mulher solteira julga sobre esse ponto com muita severidade. - No que diz respeito às mulheres doutas, elas necessitam de seus livros como de seu relógio, a saber, elas o portam a fim de que se veja que possuem um, ainda que geralmente esteja parado ou não tenha sido acertado. A virtude ou a falta de virtude feminina é muito diferente da masculina, não tanto pela índole, quanto pelo móbil. Ela deve ser paciente, ele tem de ser tolerante. Ela é suscetível, ele, sensível. - No homem, economia é ganhar, na mulher, poupar. O homem é ciumento quando ama; a mulher também o é sem que ame, porque perde em seu círculo de adoradores tantos quantos admiradores são conquistados por outras mulheres. - O homem tem gosto para si, a mulher faz de si mesma objeto de gosto para todos. - "O que o mundo diz é verdade, e o que ele faz é bom", é um princípio feminino, que dificilmente se deixa conjugar com um caráter no significado estrito da palavra. Existiram, todavia, mulheres valorosas que, em relação aos seus assuntos domésticos, sustentaram com glória um caráter condizente com esse seu destino. - Milton foi convencido pela mulher a aceitar o posto de secretário de língua latina a ele oferecido após a morte de Cromwell, ainda que fosse contrário a seus princípios declarar agora legítimo um governo que antes apresentara como ilegítimo. "Ah!" respondeu-lhe ele, "meu amor, você e outras de seu sexo querem andar em carruagem, mas eu ... tenho de ser um homem honrado." - A mulher de Sócrates e talvez também a de Job foram igualmente tolhidas por seus valorosos maridos, mas a virtude masculina se afirmou no caráter delas, sem no entanto tirar da feminina o mérito obtido por elas na situação em que foram colocadas. Consequências pragmáticas O sexo feminino tem de aprimorar e disciplinar a si mesmo naquilo que diz respeito ao prático; o masculino não sabe fazê-lo. O marido jovem domina a esposa mais velha. Isso se funda no ciúme, pelo qual a parte inferior em capacidade sexual receia usurpações da outra parte em seus direitos, e por isso se vê obrigada a aceder complacente e atenciosamente a ela. - É assim que toda esposa experiente desaconselhará o casamento com um homem jovem, ainda que também tenha a mesma idade, pois com o passar dos anos a parte feminina envelhece antes da masculina, e mesmo que se desconsidere essa desigualdade, não se pode esperar com certeza que haverá concórdia, a qual se funda na igualdade, e uma mulher jovem e inteligente tornará maior a felicidade do casamento com um homem saudável, mas visivelmente mais velho. - Um homem, no entanto, que talvez já antes do casamento consumiu sua capacidade sexual na devassidão, será o bobo em seu próprio lar, pois só pode ter as rédeas da casa, se satisfaz reivindicações justas. Hume observa que as mulheres (inclusive as solteironas) se aborrecem mais com sátiras sobre o casamento que com alfinetadas a respeito de seu sexo. - Pois com estas nunca se pode ser sério, já aquelas poderiam certamente se tornar sérias, se se dá o devido relevo às amolações do estado conjugal, de que o solteiro está livre. Entretanto, um livre-pensadeirisrno nessa matéria teria graves consequências para todo o sexo feminino, porque este seria rebaixado a mero meio de satisfação da inclinação do outro sexo, inclinação que pode facilmente se converter em fastio e volubilidade. - A mulher se torna livre com o casamento; com ele, o homem perde a sua liberdade. Investigar, antes de casar, as qualidades morais de um homem, principalmente se for jovem, nunca é coisa para uma mulher. Ela crê poder melhorá-lo; "uma mulher sensata", diz, "pode endireitar um homem corrompido", juízo no qual ela na maior parte das vezes se vê enganada de modo mais lamentável. Aí entra também a opinião das crédulas, de que os excessos desse homem antes do casamento podem ser relevados, já que agora, se é que ainda não se consumiu, terá bastante provimento para esse instinto em sua esposa. - As boas crianças não pensam que a devassidão nessa matéria consiste justamente na mudança do gozo, e a monotonia do casamento logo o fará retomar ao modo de vida anterior. (A consequência disso é tal como nas Viagens de Scarmentado, de Voltaire: "Finalmente", diz ele, "regressei a minha pátria, Candia, lá tomei uma mulher como esposa, logo fui traído, e achei que este é o modo de vida mais cômodo de todos." Nota do Autor.) Quem deve ter o comando supremo da casa? Pois apenas um pode harmonizar todos os afazeres com os fins dela. - Eu diria na linguagem do galanteio (porém não sem verdade): a mulher deve dominar e o homem governar; pois a inclinação domina, e o entendimento governa. - A conduta do marido deve mostrar que o que lhe importa, antes de tudo, é o bem de sua esposa. Mas porque é o homem quem tem de saber melhor como está a situação e como pode melhorar: tal como um ministro ao monarca que só pensa em seus prazeres, e que prepara uma festa ou a construção de um palácio, ele declarará primeiramente seu empenhado apoio às ordens deste, mas dirá, por exemplo, que não há no momento dinheiro no tesouro, que certas necessidades urgentes têm de ser atendidas antes etc., de forma que o soberano supremo possa fazer tudo o que quiser, com a condição, não obstante, de que a realização dessa vontade lhe seja possibilitada pelo seu ministro. Como é a mulher que deve ser procurada (pois é isso que quer a recusa necessária ao sexo), ela terá de procurar agradar em geral mesmo já casada, a fim de que se encontrem pretendentes para ela, caso enviúve jovem. - O homem abdica de todas essas pretensões com o vínculo matrimonial. - Por isso, o ciúme motivado por esse coquetismo da mulher é injusto. Contudo, o amor conjugal é, por natureza, intolerante. As mulheres às vezes zombam dele, mas, como já se observou acima, por brincadeira; pois ser tolerante e indulgente com a intromissão de estranhos nesses direitos teria de ter por consequência o desprezo do lado feminino e, com isso, também o ódio a semelhante marido. Que geralmente os pais estraguem as suas filhas com mimos, e as mães, aos seus filhos, e que, dentre esses últimos, o menino mais peralta, se é atrevido, é geralmente mimado pela mãe, isso parece ter seu fundamento na perspectiva das necessidades por que passarão os pais em caso de morte do cônjuge: pois se o marido perde a mulher, ele tem em sua filha mais velha um amparo que cuidará dele; se a mãe perde o marido, o filho adulto e de boa índole tem em si o dever e também a inclinação natural de honrá-la, ampará-la e tornar-lhe agradável a vida de viúva. Detive-me neste item da característica mais longamente do que pode parecer proporcional com relação às demais partes da antropologia, mas nessa sua economia a natureza também colocou um tão rico tesouro de dispositivos em vista de seu fim, o qual não é nada menos que a conservação da espécie, que por ocasião de investigações mais detidas ainda haverá, por muito tempo, matéria suficiente para problemas, em que se admirará e utilizará praticamente a sabedoria que faz as disposições naturais se desenvolverem pouco a pouco. C O caráter do povo Pela palavra povo (populus) se entende a porção de seres humanos unidos num território, desde que constitua um todo. Aquela porção ou também parte deles que se reconhece unida, pela procedência comum, num todo civil, chama-se nação (gens); a parte que se exclui dessas leis (a porção selvagem nesse povo) se chama plebe (vulgus), (O nome injurioso la canaille du peuple tem provavelmente sua origem em canalicola, um bando de ociosos que andava de lá para lá junto ao canal na antiga Roma e que ridicularizava as pessoas ocupadas (cavillator et ridicularius, vid. Plautus, Curcul.). Nota do Autor.) cujo vínculo ilegal é motim (agere per turbas), procedimento que a exclui da qualidade de cidadão de um Estado. Hume opina que, quando numa nação cada um dos indivíduos se dedica a ter um caráter particular (como entre os ingleses), a nação mesma não tem caráter algum. Parece-me que nisso ele erra, pois afetar um caráter é justamente o caráter geral do povo ao qual ele mesmo pertenceu, e é desprezo de todos os estrangeiros, especialmente porque o povo inglês crê ser o único a poder se vangloriar de uma genuína constituição, que une a liberdade civil interna com o poder externo. - Semelhante caráter é orgulhosa grosseria, em oposição à cortesia, que se toma facilmente familiar; é uma conduta obstinada contra todos os outros, provindo de uma presumível independência, em que se crê poder não precisar de nenhum outro e, portanto, também se dispensar da afabilidade para com eles. Desse modo, os dois povos mais civilizados da terra, que são os mais opostos no contraste do caráter e talvez principalmente por isso estão em constante conflito, Inglaterra e França, também segundo o caráter inato delas, do qual o adquirido e artificial é somente a consequência, talvez sejam os únicos povos dos quais se pode admitir um caráter determinado e imutável, enquanto não se misturarem pela violência da guerra. - Que a língua francesa tenha se tornado a língua universal da conversação, principalmente do mundo feminino refinado, a inglesa, porém, a língua comercial mais difundida no mundo dos negócios, (O espírito comercial também mostra certas modificações em seu orgulho na variedade de tom em que se gaba. O inglês diz: "O homem vale um milhão"; o holandês: "Ele comanda um milhão"; o francês: "Ele possui um milhão". Nota do Autor.) isso certamente se baseia na diferença entre a situação continental e a situação insular. Mas no tocante ao natural delas, que realmente possuem agora, e ao seu aprimoramento pela língua, ele precisaria ser deduzido do caráter inato do povo primitivo de que descendem, mas para isso nos faltam documentos. - Numa antropologia de um ponto de vista pragmático, o que nos importa, porém, é apenas apresentar o caráter de ambos, como eles são agora, mediante alguns exemplos e, até onde for possível, sistematicamente; mediante exemplos que permitam julgar o que um pode esperar do outro e como um pode utilizar o outro em seu proveito. Transmitidas de geração em geração ou tornadas como que natureza pelo longo uso e infundidas no povo, as máximas, que exprimem a índole dele, são apenas muitas tentativas ousadas de classificar empiricamente, mais para o geógrafo do que para o filósofo segundo princípios racionais, as variedades existentes na propensão natural de povos inteiros. (Os turcos, que chamam a Europa cristã de Franquistão, se viajassem para conhecer os homens e aprender seus caracteres étnicos (o que nenhum povo além do europeu faz, o que prova a limitação do espírito de todos os restantes), fariam a divisão deles, de acordo com os defeitos de seus caracteres, talvez da seguinte maneira: 1. O país das modas (França). - 2. O país dos humores (Inglaterra). - 3. O país dos antepassados (Espanha). - 4. O país da pompa (Itália). - 5. O país dos títulos (Alemanha, ao lado de Dinamarca e Suécia, como povos germânicos). - 6. O país dos senhores (Polônia), onde cada cidadão quer ser senhor, mas nenhum desses senhores, salvo o que não é cidadão, quer ser súdito. - A Rússia e a Turquia europeia, ambas em grande parte de origem asiática, estariam fora do Franquistão: a primeira de origem eslava, a segunda de origem árabe, dois povos primitivos que em outros tempos estenderam seu domínio sobre uma parte da Europa, maior que a já dominada por outro povo, e que caíram no estado de uma constituição de lei sem liberdade, onde, portanto, ninguém é cidadão. Nota do Autor.) Que o caráter de um povo dependa inteiramente da forma de governo é uma afirmação infundada que nada esclarece: pois de onde tem o próprio governo seu caráter peculiar? - Tampouco clima e solo podem dar a chave disso, já que as migrações de povos inteiros demonstraram que eles não mudaram o caráter em seus novos domicílios, mas apenas o adaptaram, conforme as circunstâncias, a estes, deixando no entanto sempre ainda transparecer, na língua, no modo de trabalhar e mesmo no vestuário, os vestígios de sua origem e, com isso, também o seu caráter. - Farei um esboço do retrato deles, desenhando-os um pouco mais pelo lado de seus defeitos e desvios da regra que pelo lado belo (sem entretanto chegar à caricatura), pois, sem contar que a adulação corrompe, mas a censura corrige, o crítico peca menos contra o amor-próprio dos homens quando simplesmente lhes mostra, sem exceção, as suas faltas, do que quando, com mais ou menos elogios aos assim julgados, apenas desperta a inveja de uns contra os outros. 1. Dentre todas as outras, a nação francesa se caracteriza pelo gosto da conversação, com respeito ao qual é o modelo de todas as demais. É cortesã, principalmente com o estrangeiro que a visita, ainda que agora já não esteja em moda ser cortesão. a francês não é cortês por interesse, mas pela necessidade imediata do gosto de se comunicar. Como esse gosto se refere principalmente ao trato com as mulheres na alta sociedade, a linguagem das damas se transformou na língua universal dessa sociedade, e é em geral indiscutível que uma inclinação dessa espécie tenha de ter influência sobre a disponibilidade para prestar serviços, sobre a benevolência solícita e, paulatinamente, sobre o amor universal pelos homens segundo princípios, e que, no todo, um tal povo tenha de se tornar digno de amor. O reverso da moeda é a vivacidade não suficientemente refreada por princípios reflexivos e, a despeito da perspicácia da razão, uma leviandade em não deixar durar certas formas, simplesmente porque se tornaram velhas ou também foram apreciadas em excesso, mesmo que todos se deem bem com elas, e um contagioso espírito de liberdade que também arrasta a própria razão para dentro de seu jogo e produz, na relação do povo com o Estado, um entusiasmo avassalador, que extrapola os limites mais extremos. - As qualidades desse povo, desenhadas em preto e branco, mas segundo modelos reais, podem ser facilmente representáveis num todo, sem outra descrição, apenas mediante fragmentos desconexos, como materiais para a caracterização. As palavras: esprit (em vez de bons sens), frivolité, galanterie, petit maitre, coquette, étourderie, point d'honneur, bon ton, bureau d'esprit, bon mot, lettre de cachet - e outras semelhantes não são facilmente traduzidas em outras línguas, porque designam mais a peculiaridade da índole da nação que as pronuncia do que o objeto presente no pensamento de alguém. 2. a povo inglês. A antiga estirpe dos britânicos [Briten] (Como grafa corretamente o senhor professor Busch (de acordo com a palavra britanni, e não brittanni). Nota do Autor.) (um povo celta) parece ter sido uma casta de homens denodados, mas as imigrações dos alemães e da estirpe do povo francês (pois a breve presença dos romanos não pôde deixar vestígio perceptível) extinguiu a originalidade desse povo, como o prova a sua língua mesclada, e uma vez que a situação insular de seu solo, que o mantém bem seguro contra ataques externos e antes até o convida a tornar-se agressor, fez dele um povo poderoso no comércio marítimo, possui um caráter que ele mesmo adquiriu para si, ainda que por natureza não tenha propriamente nenhum. O caráter do inglês, por conseguinte, não poderia significar nada mais que o princípio, aprendido bem cedo por meio de lição e exemplo, segundo o qual tem de criar para si tal caráter, isto é, tem de afetar ter um, pois um intento rígido de perseverar num princípio voluntariamente adotado e de não se desviar de certa regra (qualquer que seja), dá a um homem a importância de que se sabe seguro do que se há de esperar dele, e ele dos outros. Que esse caráter se oponha diretamente ao do povo francês, mais do que a qualquer outro, fica claro pelo fato de que renuncia a toda amabilidade, a principal qualidade dos franceses no relacionamento com os outros, e até mesmo à amabilidade entre si, e exige apenas respeito, situação em que, aliás, cada qual deseja viver meramente segundo sua própria cabeça. Para seus compatriotas o inglês ergue grandes fundações beneficentes, de que jamais se ouviu falar em outros povos. - Mas o estrangeiro que o destino fizer ir parar em seu território, e que passe por grande privação, sempre poderá acabar na estrumeira, porque não é inglês, ou seja, não é ser humano. O inglês, porém, também se isola em sua própria pátria, onde gasta o mínimo para comer. Ele prefere comer sozinho num quarto a comer à mesa da taberna gastando o mesmo dinheiro, porque nesta última se requer um pouco de cortesia, e no estrangeiro, por exemplo, na França, para onde os ingleses só viajavam com o intuito de proclamar abomináveis todas as estradas e estalagens (como o Dr. Sharp), eles se reúnem somente em companhia uns dos outros. - É estranho que, enquanto o francês geralmente ama a nação inglesa e a elogia com respeito, o inglês (que não saiu de seu país) em geral despreze e odeie o francês; a culpa disso não é bem a rivalidade dos vizinhos (pois indiscutivelmente a Inglaterra se vê como superior à França), mas o espírito comercial, que, sob a suposição de constituir a classe mais distinta, é bastante insociável entre comerciantes de um mesmo povo. (Em geral o espírito comercial é em si insociável, como o espírito de nobreza. Uma casa (assim o comerciante chama a sua empresa) está separada da outra por seus negócios, como por uma ponte elevada a residência de um nobre da de outro, banindo-se dali o trato cordial sem cerimônia; para esse tratamento um nobre precisaria ser um dos protegidos do outro, os quais, todavia, já não seriam considerados como membros da nobreza. Nota do Autor.) Como ambos povos tem suas costas próximas uma da outra e são separados um do outro apenas por um canal (que, sem dúvida, bem poderia se denominar um mar), a rivalidade entre eles produz em suas rixas sempre um caráter político modificado de diversas maneiras: apreensão, de um lado, e ódio, de outro, são duas formas da incompatibilidade entre eles, das quais aquela tem por propósito a própria conservação, esta, a dominação, ou, caso contrário, o extermínio dos outros. Podemos delinear mais brevemente agora a caracterização dos povos restantes, cuja particularidade nacional não poderia ser em sua maior parte derivada tanto do tipo diferente de sua cultura, como nos povos precedentes, quanto das disposições de suas naturezas, as quais se devem à mescla de estirpes originariamente distintas. 3. O espanhol, nascido da mistura de sangue europeu com árabe (mouro), mostra em sua conduta pública e privada certa solenidade, e o camponês mostra consciência de sua dignidade mesmo perante superiores, aos quais também está legalmente sujeito. - A grandeza espanhola e a grandiloquência encontrada mesmo em sua língua de conversação revelam um nobre orgulho nacional. A íntima malícia francesa lhe é, por isso, inteiramente repugnante. Ele é moderado, dedicado de coração às leis, principalmente às de sua velha religião. - Essa gravidade também não o impede de se divertir nos dias festivos (por exemplo, apresentando sua colheita com canto e dança), e quando num domingo à noite se arranha o fandango, nesse momento não faltam trabalhadores ociosos para dançar ao som dessa música nas ruas. - Este é seu lado bom. O ruim é que ele não aprende com os estrangeiros e não viaja para conhecer outros povos; (O espírito limitado de todos os povos que não sentem a curiosidade desinteressada de conhecer, por seus próprios olhos, o mundo exterior, e menos ainda de se transplantar para lá (como cidadãos do mundo), é algo característico deles, e nisso franceses, ingleses e alemães se diferenciam vantajosamente dos demais. Nota do Autor.) nas ciências permanece séculos atrás; avesso a qualquer reforma, tem orgulho de não ter de trabalhar; de disposição de espírito romântica, como demonstra a corrida de touros, e cruel, como demonstra o antigo auto-de-fé, revela em parte no seu gosto a origem não europeia. 4. O italiano reúne a vivacidade francesa (jovialidade) com a seriedade espanhola (firmeza), e seu caráter estético é um gosto unido à afecção, assim como a vista de seus Alpes para os vales encantadores oferece matéria, por um lado, para despertar o ânimo, por outro, para a fruição tranquila. Ali, o temperamento não é misto nem desultório (pois se o fosse não daria caráter algum), mas uma disposição da sensibilidade para o sentimento do sublime, conquanto seja compatível com o do belo. - Em seus gestos exterioriza-se um forte jogo de seus sentimentos, e seu rosto é expressivo. Os discursos de seus advogados diante dos tribunais são tão repletos de afeto, que se assemelham a uma declamação teatral. Assim como o francês prima pelo gosto na conversação, o italiano prima pelo gosto artístico. O primeiro prefere as diversões privadas; o outro, as públicas: desfiles pomposos, procissões, grandes espetáculos teatrais, carnavais, mascaradas, magnificência nos edifícios públicos, quadros pintados com pincel ou em trabalho de mosaico, antiguidades romanas em grande estilo, para ver e ser visto em grande companhia. Mas ao mesmo tempo (e para não esquecer o interesse próprio): a invenção do câmbio, dos bancos e da loteria. - Este é seu lado bom, assim como a liberdade que os gondolieri e latzaroni podem se dar no trato com os nobres. O lado ruim é que eles conversam, como disse Rousseau, em salas luxuosas e dormem em ninhos de ratos. Suas conversazioni são semelhantes a uma bolsa de valores onde a senhora da casa faz servir petiscos a um grande número de pessoas, a fim de que, passeando pelo salão, se comuniquem uns aos outros as novidades do dia, sem que para isso a amizade seja precisamente necessária, e apenas uma pequena parte é selecionada para cear entre aquelas pessoas à noite. – Mas o lado mau é: o uso do punhal, os bandidos, o refúgio do assassino em lugares sagrados, o desprezado ofício dos esbirros etc., que não devem ser atribuídos tanto ao romano, quanto à forma bifronte de governar. - Estas são, porém, incriminações pelas quais de modo algum posso assumir a responsabilidade, e geralmente difundidas pelos ingleses, a quem nenhuma outra constituição agrada a não ser a sua. 5. Os alemães têm fama de possuir um bom caráter, a saber, o da honradez e afeição à vida caseira, qualidades que não são precisamente apropriadas ao brilho. - O alemão é, dentre todos os povos civilizados, o que mais fácil e duradouramente se submete ao governo sob o qual está, e é o que mais distante está de buscar a inovação e a insubordinação contra a ordem estabelecida. Seu caráter é fleuma unida a entendimento, sem argumentar com argúcias sobre a ordem já estabelecida, nem inventar uma ele mesmo. Ao mesmo tempo, é o homem de todos os países e climas, emigra facilmente e não está apaixonadamente arraigado a sua pátria; mas quando chega como colono a um país estrangeiro, logo forma com seus compatriotas uma espécie de sociedade civil, a qual, pela unidade da língua e em parte também da religião, o insere num pequeno povo que, sob a autoridade superior e numa tranquila constituição moral, se distingue das colônias de outros povos principalmente por sua aplicação, asseio e economia. - Esse é o elogio que os ingleses fazem dos alemães na América do Norte. Já que fleuma (no bom sentido) é o temperamento da fria reflexão e a perseverança na consecução do seu fim, assim como resistência às dificuldades intrínsecas a ele, pode-se esperar do talento de seu correto entendimento e da profunda reflexão de sua razão o mesmo tanto que de qualquer outro povo capaz da maior cultura, exceto no âmbito do engenho e do gosto artístico, onde talvez não possa se igualar aos franceses, ingleses e italianos. - - Seu lado bom está naquilo que se pode executar pela aplicação contínua, e para o que não se requer precisamente gênio, (Gênio é o talento da invenção daquilo que não se pode ensinar ou aprender. Pode-se certamente aprender de outros como fazer bons versos, mas não como se faz um bom poema, pois isso deve brotar por si da natureza do autor. Não se pode, por isso, esperar que se faça um poema por encomenda nem mediante rico pagamento, como um produto de fábrica, mas ele tem de sair por uma inspiração da qual o poeta mesmo não pode dizer como chegou a ela, isto é, como uma disposição ocasional cuja causa lhe é desconhecida (scit genius, natale comes qui temperat astrum). - O gênio brilha, por isso, como uma aparição momentânea que se mostra e desaparece por intervalos, não como uma luz que se acende à vontade e que segue ardendo o tempo que se quiser, mas como chama cintilante que arranca um arrebatamento propício da imaginação produtiva. Nota do Autor.) mas também este último está longe de ter a mesma utilidade que a aplicação, ligada ao saudável talento intelectual, do alemão. - Esse seu caráter nas relações é modéstia. O alemão aprende línguas estrangeiras mais que qualquer outro; é (como se expressa Robertson) grande comerciante na erudição e o primeiro a descobrir, no campo das ciências, muitas pistas que depois são utilizadas com alarde por outros; não tem orgulho nacional, nem se apega, como cosmopolita que é, à sua pátria. Mas nesta é mais hospitaleiro com os estrangeiros que qualquer outra nação (como confessa Boswel); disciplina com rigor suas crianças para os bons costumes, assim como, por sua inclinação à ordem e à regra, se deixa antes tiranizar que envolver em inovações (sobretudo reformas arbitrárias no governo). - Este é seu lado bom. Seu lado desfavorável é sua propensão à imitação e a não acreditar muito que pode ser original (justamente o contrário do inglês arrogante), mas principalmente certa mania metódica, pela qual se deixa classificar penosamente junto aos demais cidadãos, não segundo um princípio de aproximação da igualdade, mas segundo níveis de preeminência e de hierarquia, e pela qual, nesse esquema de hierarquização, é inesgotável na invenção de títulos (como nobre e nobilíssimo, ilustre, altamente ilustre e ilustríssimo), e servil por mero pedantismo; tudo isso, sem dúvida, deve ser atribuído à forma da constituição imperial da Alemanha, mas ao mesmo tempo não se pode deixar de fazer a observação de que o surgimento dessa forma pedante resulta do espírito da nação e da propensão natural do alemão a estabelecer uma escala desde o que deve mandar até o que deve obedecer, na qual cada nível é designado pelo grau de consideração que lhe é devido, e aquele que não tem profissão nem título, como se diz, não é nada; isso naturalmente rende algo ao Estado, que confere os títulos, mas também, sem que se perceba, gera nos súditos exigências para que se limite a importância da reputação dos outros, o que tem de parecer ridículo a outros povos, e de fato revela limitação do talento inato, pela dificuldade e necessidade de divisão metódica na apreensão de um todo sob um conceito. Uma vez que a Rússia ainda não é o que se requer de um conceito determinado das disposições naturais prontas para se desenvolver, mas a Polônia já não o é mais, e os nacionais da Turquia europeia nunca foram nem serão aquilo que é necessário para se apropriar de um caráter de povo determinado: aqui pode se omitir, com toda razão, o delineamento delas. Como aqui em geral se fala do caráter inato e natural que está, por assim dizer, na mistura sanguínea dos homens, não das características adquiridas, artificiais (ou artificiosas) das nações, é necessário muita precaução no delineamento deles. No caráter dos gregos sob a dura opressão dos turcos e da não muito mais suave de seus coloyers, não se perdeu sua índole sensível (vivacidade e ligeireza) nem tampouco a conformação de seu corpo, sua figura e traços faciais, mas essa particularidade provavelmente se reavivaria de fato, se a forma de religião e de governo novamente lhes proporcionasse, por acontecimentos propícios, a liberdade de se restabelecer. - Entre outro povo cristão, os armênios, domina certo espírito comercial de tipo especial, a saber, o que estabelece comércio, a pé, desde os limites da China até o Cabo Corso, na costa da Guiné, indicando a estirpe particular desse povo sensato e ativo, que atravessa, numa linha de nordeste a sudoeste, aproximadamente a inteira extensão do antigo continente, e sabe se proporcionar uma acolhida pacífica em todos os povos que encontra, e demonstra possuir um caráter melhor do que o volúvel e servil dos gregos atuais, cuja primeira constituição não mais podemos investigar. - O que se pode julgar com verossimilhança é somente que a mistura de estirpes (nas grandes conquistas), que pouco a pouco extingue os caracteres, não é propícia ao gênero humano, apesar de todo suposto filantropismo. D O caráter da raça Com respeito a esta posso remeter ao que o conselheiro Girtanner expôs, com beleza e fundamento, como explicação e ampliação em sua obra (conforme meus princípios); - quero fazer apenas um comentário sobre a linhagem familiar e as variedades ou nuanças que se podem observar numa mesma raça. Aqui a natureza se deu por lei justamente o contrário da assimilação que intentava realizar na fusão de diversas raças, a saber, em vez de deixar que em sua formação os caracteres se aproximem constante e progressivamente num povo da mesma raça (por exemplo, a branca) - de onde resultaria por fim um único e mesmo retrato, como na impressão dele em gravura em cobre -, ela os multiplica, pelo contrário, ao infinito num mesmo ramo e na mesma família, tanto no aspecto corporal quanto no espiritual. - De fato as amas dizem para lisonjear um dos pais: "A criança tem isso do pai, ela tem isso da mãe", o que, se fosse verdade, teria esgotado há muito todas as formas de geração humana, e a reprodução teria estancado, já que a fecundidade nos acasalamentos se renova pela heterogeneidade dos indivíduos. - Assim, a cor cinza do cabelo (cendrée) não provém do cruzamento de um moreno com uma loura, mas indica um traço especial de família, e a natureza tem provisão suficiente em si para não enviar ao mundo, devido à pobreza das formas de que dispõe, um ser humano que já haja existido antes nela; como também a proximidade do parentesco é causa notória de infecundidade. E O caráter da espécie Para poder indicar um caráter da espécie de certos seres se requer que ela seja compreendida sob um conceito juntamente com outras por nós conhecidas, mas que se indique e empregue, como fundamento de diferenciação, aquilo por meio do que, como particularidade (proprietas), elas se diferenciam umas das outras. - Se no entanto se compara uma espécie de seres que conhecemos (A) com uma outra espécie de seres (non A) que não conhecemos, como se pode esperar ou desejar que se indique um caráter da primeira, se nos falta o conceito intermediário de comparação (tertium comparationis)? - Se o conceito supremo da espécie for o de um ser racional terrestre, então não poderemos nomear nenhum caráter dele, porque não temos conhecimento de seres racionais não terrestres para poder indicar sua particularidade e caracterizar assim aqueles seres terrestres entre os racionais em geral. - Parece, por conseguinte, que o problema de indicar o caráter da espécie humana é absolutamente insolúvel, porque a solução teria de ser empreendida por comparação entre duas espécies de seres racionais mediante experiência, a qual não no-las oferece. Portanto, para indicar a classe do ser humano no sistema da natureza viva e assim o caracterizar, nada mais nos resta a não ser afirmar que ele tem um caráter que ele mesmo cria para si enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo os fins que ele mesmo assume; por meio disso, ele, como animal dotado da faculdade da razão (animal rationabile), pode fazer de si um animal racional (animal rationale); - nisso ele, primeiro, conserva a si mesmo e a sua espécie; segundo, a exercita, instrui e educa para a sociedade doméstica; terceiro, a governa como um todo sistemático (ordenado segundo princípios da razão) próprio para a sociedade; o característico, porém, da espécie humana, em comparação com a ideia de possíveis seres racionais sobre a terra em geral, é que a natureza pôs nela o germe da discórdia e quis que sua própria razão tirasse dessa discórdia a concórdia, ou ao menos a constante aproximação dela, esta última sendo, com efeito, na ideia o fim, embora de fato aquela primeira (a discórdia) seja, no plano da natureza, o meio de uma sabedoria suprema, imperscrutável para nós: realizar o aperfeiçoamento do ser humano mediante cultura progressiva, ainda que com muito sacrifício da alegria de viver. Entre os habitantes vivos da terra, o ser humano é notoriamente diferente de todos os demais seres naturais por sua disposição técnica (mecânica, vinculada à consciência) para o manejo das coisas, por sua disposição pragmática (de utilizar habilmente outros homens em prol de suas intenções) e pela disposição moral em seu ser (de agir consigo mesmo e com os demais segundo o princípio da liberdade sob leis), e por si só cada um desses três níveis já pode diferenciar caracteristicamente o ser humano dos demais habitantes da terra. I. A disposição técnica. - As questões: se o homem está originariamente destinado a andar com quatro patas (como sustentou Moscati, talvez simplesmente como tese para uma dissertação) ou com dois pés; - se o gibão, o orangotango, o chimpanzé etc., estão destinados a isso (no que Lineu e Camper estão em desacordo); - se o homem é um animal frutívoro ou (porque tem um estômago membranoso) carnívoro; - se é por natureza um animal de rapina ou pacífico, porque não tem garras nem grandes presas e, por consequência, não tem armas (sem a razão), - a resposta a essas questões não apresenta dificuldades. Como quer que seja, ainda se poderia ter levantado esta: se ele é por natureza um animal social ou solitário e que teme o vizinho, o último sendo o mais provável. É difícil compatibilizar com a precaução que a natureza tomou com a conservação da espécie pensar um primeiro casal humano, já plenamente desenvolvido, que a natureza pusesse diante de meios de subsistência sem lhe ter dado ao mesmo tempo um instinto natural para eles, instinto que todavia não nos assiste no nosso atual estado de natureza. O primeiro homem se afogaria no primeiro lago que visse pela frente, pois nadar já é uma arte que se precisa aprender; ou se alimentaria de raízes e frutas venenosas e assim estaria em constante perigo de morrer. Mas se a natureza tivesse implantado no primeiro casal humano esse instinto, como foi possível que não o tenha transmitido a seus filhos, o que agora contudo nunca ocorre? É certo que as aves canoras ensinam aos filhotes certos cantos e os propagam por tradição, de modo que uma ave isolada, retirada ainda cega do ninho e alimentada, não cantaria quando adulta, mas emitiria apenas um certo som inato do órgão. Mas de onde veio o primeiro canto, (Para a arqueologia da natureza, pode-se admitir, com o cavaleiro Lineu, a hipótese de que do grande oceano que cobria a terra inteira emergiu, em primeiro lugar, uma ilha abaixo do Equador, como uma montanha na qual foram aparecendo aos poucos níveis climáticos de temperatura, desde o ardente de suas margem inferior até o frio ártico de seu cume, com todas as plantas e animais correspondentes; e que, no que diz respeito às aves de todas as espécies, as canoras imitaram o som orgânico inato de muitas e variadas classes de vozes e combinaram cada uma com as demais, até onde a garganta delas o permitira, com o que cada espécie constituiu seu canto especial, que depois uma ave transmitiu a outra por ensino (comparável a uma tradição); como também se vê que os pintassilgos e rouxinóis de diversos países apresentam alguma diversidade em seus cantos. Nota do Autor.) pois não foi aprendido, e se tivesse surgido instintivamente, por que não foi transmitido ao filhote? A caracterização do ser humano como um animal racional já está contida na simples forma e organização de sua mão, de seus dedos e pontas de dedos, em parte na estrutura, em parte no delicado sentimento deles, porque a natureza não o tornou apto para uma única forma de manejo das coisas, mas para todas indefinidamente, portanto, para o emprego da razão, e com isso designou a capacidade técnica ou habilidade de sua espécie como a de um animal racional. II. A disposição pragmática da civilização por meio da cultura, principalmente das qualidades do relacionamento, e a propensão natural de sua espécie a sair, nas relações sociais, da rudeza do mero poder individual e tornar-se um ser polido (ainda que não moral), destinado à concórdia, já é um nível superior. - O ser humano é capaz e necessita de uma educação, tanto no sentido da instrução quanto no da obediência (disciplina). Aqui reside a questão (pró ou contra Rousseau) de saber se, segundo sua disposição natural, o caráter de sua espécie estará melhor entre a rudeza de sua natureza que entre as artes da cultura, as quais não deixam entrever um desfecho. - Antes de mais nada é preciso observar que, em todos os demais animais abandonados à própria sorte, cada indivíduo alcança sua plena destinação, mas entre os homens no máximo apenas a espécie a alcança, de modo que o gênero humano só pode avançar até sua destinação mediante um progresso numa série imensa de gerações, onde porém a meta continua sempre à sua vista, não obstante a tendência para esse fim-último ser com frequência tolhida, embora jamais possa retroceder. III. A disposição moral. - A questão aqui é se o homem é por natureza bom ou por natureza mau, ou por natureza igualmente sensível para um e outro, conforme caia nas mãos de um ou outro educador (cereus in vitiumflecti etc.) Nesse último caso a espécie mesma não teria nenhum caráter. - Mas esse caso é contraditório, pois um ser dotado de uma faculdade da razão prática e da consciência da liberdade de seu arbítrio (uma pessoa) se vê nessa consciência, mesmo em meio às mais obscuras representações, sob uma lei do dever e no sentimento (que então se chama sentimento moral) de que ele e, por meio dele, os outros receberam o que é justo ou injusto. Ora, este já é o próprio caráter inteligível da humanidade em geral, e nessa medida o homem é, segundo sua disposição inata (por natureza), bom. Mas porque a experiência revela também que há nele uma propensão a desejar ativamente o ilícito, ainda que saiba que é ilícito, isto é, uma propensão para o mal, que se faz sentir tão inevitavelmente e tão cedo quanto o homem comece a fazer uso de sua liberdade, e por isso pode ser considerada inata, o ser humano também deve ser julgado mau (por natureza) segundo seu caráter sensível, sem que isso seja contraditório quando se fala do caráter da espécie, porque se pode admitir que a destinação natural desta consiste no progresso contínuo até o melhor. O resultado final da antropologia pragmática em relação à destinação do ser humano e à característica de seu aprimoramento consiste no seguinte. O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das ciências, e por maior que possa ser sua propensão animal a se abandonar passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele denomina felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno da humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca para ele. O ser humano tem, pois, de ser educado para o bem, mas aquele que deve educá-lo é novamente um ser humano que ainda se encontra em meio à rudeza da natureza e deve realizar aquilo de que ele mesmo necessita. Daí o constante desvio de sua destinação e os retornos repetidos a ela. - Queremos mencionar as dificuldades que se encontram na solução desse problema e os obstáculos a ela. A A primeira destinação física do ser humano consiste no impulso que o leva à conservação de sua espécie como espécie animal. - Mas já aqui as épocas naturais de seu desenvolvimento não querem coincidir com as civis. Pela primeira, ele é impelido pelo instinto sexual e também é capaz de gerar e conservar sua espécie, no estado de natureza, pelo menos em seu décimo quinto ano de vida. Pela segunda, ele dificilmente pode (em média) ousar isso antes dos vintes anos. Pois se o jovem tem bem cedo o poder de satisfazer sua inclinação e a de uma mulher como cidadão do mundo, está longe, entretanto, de ter o poder de manter sua mulher e filho como cidadão do Estado. - Ele precisa aprender um ofício e conseguir clientela, para iniciar uma vida familiar com uma mulher; nesse aspecto, na classe mais polida do povo pode muito bem transcorrer o vigésimo quinto ano antes de ele se tomar maduro para sua destinação. - Mas com que preenche ele esse intervalo de uma abstinência forçosa e inatural? Dificilmente com outra coisa que com vícios. B O impulso à ciência, como a uma cultura que enobrece a humanidade, não tem, no todo da espécie, proporção alguma com a duração da vida. Quando o douto avançou na cultura até o ponto de ampliar por si mesmo o campo dela, é ceifado pela morte, seu lugar é ocupado por um discípulo que ainda está aprendendo o bê-á-bá, discípulo que, pouco antes do fim da vida e depois de ter dado igualmente um passo adiante, cede por sua vez o lugar a outro. - Que massa de conhecimentos, que invenção de novos métodos não teria legado um Arquimedes, um Newton ou um Lavoisier com seus esforços e talentos, se tivessem sido favorecidos pela natureza com uma idade que perdurasse um século sem diminuição da força vital? Mas o progresso da espécie nas ciências é sempre apenas fragmentário (quanto ao tempo), e não oferece segurança contra o retrocesso com que sempre o ameaça o irrompimento da barbárie que transtorna os Estados. C No que se refere à felicidade, que a natureza do ser humano o impele constantemente a buscar, mas que a razão limita à condição da dignidade de ser feliz, isto é, da moralidade, tampouco a espécie parece alcançar sua destinação. - Não se deve justamente tomar a descrição hipocondríaca (mal-humorada) que Rousseau faz da espécie humana, quando ousa sair do estado de natureza, como recomendação de voltar a ele e de retomar às florestas, mas se deve adotar sua verdadeira opinião, com a qual exprimiu a dificuldade para nossa espécie de chegar, pela via da contínua aproximação, à sua destinação; não se deve ficar fantasiando sobre essa sua opinião: a experiência dos tempos antigos e dos modernos coloca todo pensador em embaraço e dúvida se as coisas um dia vão estar melhores para nossa espécie. Suas três obras sobre o dano que causaram à nossa espécie (1) a saída da natureza para a cultura, pelo enfraquecimento de nossa força, (2) a civilização, pela desigualdade e opressão recíproca, (3) a suposta moralização por meio de uma educação contrária à natureza e uma deformação da índole moral -, essas três obras, digo, que apresentaram o estado de natureza como um estado de inocência (ao qual o guardião da porta de um paraíso, com sua espada de fogo, impede retomar), deviam apenas servir de fio condutor para seu Contrato social, seu Emílio e seu Vigário de Sabóia, a fim de que se descobrisse uma saída para a complexidade de males em que nossa espécie se enredou por sua própria culpa. - Rousseau não queria, no fundo, que o homem voltasse novamente ao estado de natureza, mas que lançasse um olhar retrospectivo para lá desde o estágio em que agora está. Ele supunha que o homem é bom por natureza (como ela se deixa transmitir); porém de um modo negativo, quer dizer, ele não é por si mesmo e deliberadamente mau, mas apenas pelo risco de ser contaminado e corrompido por maus exemplos ou guias ineptos. Mas porque para isso são por sua vez necessários homens bons, que precisaram eles mesmos ser educados e dos quais não existe nenhum que não tenha em si perversidade (inata ou adquirida), o problema da educação moral de nossa espécie permanece sem solução, não meramente quanto ao grau, mas quanto à qualidade do princípio, porque nela uma má propensão inata pode ser muito bem censurada e mesmo até refreada, mas não exterminada pela razão humana universal. Numa constituição civil, que é o supremo grau na ascensão artificial da boa disposição da espécie humana para chegar ao fim-último de sua destinação, a animalidade é anterior e, no fundo, mais poderosa que a pura humanidade em suas manifestações, e o animal doméstico só por enfraquecimento é mais útil ao homem que o animal selvagem. A vontade própria está sempre prestes a prorromper em hostilidade contra seu próximo e a todo momento se esforça para realizar sua pretensão à liberdade incondicional de ser, não apenas independente, mas também soberana sobre outros seres por natureza iguais, o que também já se percebe na menor criança, (Os gritos que uma criança recém-nascida faz ouvir não têm o tom da queixa, mas o da indignação e de uma explosão de cólera, não porque sinta alguma dor, mas porque algo a contraria, provavelmente porque quer se mover e sente sua incapacidade de fazê-lo como grilhões que lhe tolhem a liberdade. - Qual pode ser a intenção da natureza ao fazer a criança vir ao mundo aos gritos, o que é para ela mesma e para a mãe, no rude estado de natureza, um extremo perigo? Pois um lobo, um porco mesmo, seriam atraídos a devorá-la na ausência da mãe ou no esgotamento das forças desta pelo parto. Nenhum animal além do homem (como ele é agora) anunciará ruidosamente sua existência ao nascer, o que parece estar assim disposto pela sabedoria da natureza para conservar a espécie. É necessário, pois, supor que, nessa classe de animal, tal manifestação da criança ao nascer ainda não ocorria numa época primeira da natureza (a saber, no tempo da rudeza), que, portanto, só mais tarde sobreveio uma segunda época, quando ambos pais chegaram àquela cultura necessária à vida doméstica, sem que saibamos como nem por que causas coadjuvantes a natureza realizou semelhante evolução. Essa observação conduz mais além, por exemplo, a pensar se, por grandes revoluções naturais, uma terceira época não poderia se seguir ainda à segunda, quando um orangotango ou um chimpanzé tivessem seus órgãos que servem para caminhar, tocar os objetos e falar, formando a estrutura de um homem, cujo interior conteria um órgão para o uso do entendimento e se desenvolveria gradualmente por meio da cultura social. Nota do Autor.) porque nela a natureza se esforça para conduzir a uma cultura cujos fins se acordam adequadamente com a moral idade partindo da cultura para a moral idade, e não da moralidade e de sua lei (como, todavia, a razão prescreve), o que produz inevitavelmente uma tendência equívoca e contrária aos fins, tal como quando, por exemplo, se inicia o ensino de religião, que deveria ser necessariamente uma cultura moral, pelo ensino de história, que é meramente uma cultura da memória, e em vão se procura extrair moralidade dele. A educação do gênero humano no conjunto de sua espécie, isto é, tomada coletivamente (universorum), não no conjunto de todos os indivíduos singulares (singulorum), onde a multidão não resulta num sistema, mas apenas num agregado, tendo-se presente o esforço por uma constituição civil, que deve se fundar no princípio da liberdade mas ao mesmo tempo também no princípio da coerção legal, essa educação o homem só a espera da Providência, isto é, de uma sabedoria que não é sua, mas que é ideia impotente (por sua própria culpa) de sua própria razão -, essa educação vinda de cima, digo, é salutar, mas dura e severa, passando por muita adversidade e pela operação da natureza que leva quase à destruição da espécie inteira, a saber, da produção do bem, não intencionado pelo homem, mas que, uma vez existindo, se mantém posteriormente, a partir do mal interno, que sempre o faz entrar em discórdia consigo mesmo. Providência significa exatamente essa mesma sabedoria que percebemos com admiração na conservação da espécie de seres naturais organizados que trabalham constantemente em sua própria destruição e, contudo, sempre a protege, sem por isso se admitir, na previsão, um princípio superior ao que já empregamos para aceitar a conservação das plantas e animais. - Aliás, a própria espécie humana deve e pode ser a criadora de sua felicidade, mas que ela o será, isso não se pode concluir a priori das disposições naturais dela por nós conhecidas, mas apenas da experiência e da história com uma expectativa fundada tanto quanto necessário para não desesperar desse seu progresso para o melhor, e fomentar, com toda prudência e clarividência moral, a aproximação desse fim (cada um o quanto lhe toca nisso). Pode-se, portanto, dizer que o primeiro traço característico da espécie humana, como ser racional, é a capacidade de se proporcionar um caráter em geral, tanto para a sua pessoa, quanto para a sociedade em que a natureza o coloca: isso, porém, já supõe nele uma disposição natural favorável e uma propensão ao bem, porque o mal é propriamente sem caráter (pois implica contradição consigo mesmo e não consente nenhum princípio permanente em si próprio). O caráter de um ser vivo é aquilo a partir do qual se pode reconhecer de antemão a sua destinação. - Mas como princípio para os fins da natureza se pode admitir o seguinte: a natureza quer que toda criatura alcance a sua destinação por isto, que todas as disposições de sua natureza se desenvolvam conforme a fins para ele, para que, ainda que nem todo indivíduo, ao menos a espécie realize a intenção da natureza. - Nos animais irracionais isso ocorre realmente e é sabedoria da natureza; mas no homem só o alcança a espécie, da qual nós conhecemos apenas uma entre os seres racionais da terra, a saber, a espécie humana, e nesta também só conhecemos uma tendência da natureza para esse fim, qual seja, efetuar um dia, por sua própria atividade, o desenvolvimento do bem a partir do mal; uma perspectiva que, se não for eliminada de vez por revoluções naturais, pode ser esperada com certeza moral (suficiente para o dever de cooperar com aquele fim). - Pois com o aumento da cultura são os seres humanos, isto é, seres racionais de má índole, sem dúvida, mas dotados de uma disposição para a invenção e ao mesmo tempo também de uma disposição moral, que sentem cada vez mais fortemente os males que causam uns aos outros por egoísmo, e mesmo não vendo à sua frente outro remédio contra isso que submeter, a contragosto, o senso privado (individual) ao senso comum (de todos juntos), a uma disciplina (de coerção civil), à qual porém só se submetem segundo leis dadas por eles mesmos, por tal consciência eles se sentem enobrecidos, isto é, sentem pertencer a uma espécie que é conforme à destinação do homem, tal como a razão lha representa no ideal. Linhas fundamentais da descrição do caráter da espécie humana I. O homem não estava destinado a pertencer como boi a um rebanho, mas como abelha a uma colmeia. - Necessidade de ser um membro de alguma sociedade civil. A maneira mais simples e menos artificial de instituir tal, é a de que haja uma única abelha rainha nessa colmeia (a monarquia). - Muitos dessas colmeias juntas, entretanto, logo entram em hostilidades como abelhas rapaces (a guerra), não, como fazem os homens, para fortalecer a própria unindo-a com outra - aqui termina o símile -, mas meramente para utilizar para si, com astúcia ou violência, o esforço do outro. Cada povo procura se fortalecer subjugando os vizinhos, e se não se antecipa a ele por mania de grandeza ou temor de ser absorvido por ele, a guerra externa ou interna em nossa espécie, por maior mal que possa ser, é também o móbil que impele a sair do rude estado de natureza para o estado civil, como um mecanismo da Providência onde forças conflitantes causam danos umas às outras pelo atrito, mas são mantidas longo tempo em andamento regular pelo choque ou empuxo de outros móbiles. II. Liberdade e lei (pela qual se limita aquela) são dois eixos em torno dos quais se move a legislação civil. - Mas a fim de que a segunda seja também de efeito e não recomendação vazia, tem-se de acrescentar um intermediário, (Análogo ao medius terminus num silogismo, o qual, unido ao sujeito e ao predicado do juízo, dá as quatro figuras silogísticas. Nota do Autor.) a saber, o poder que, unido àqueles, coroa de êxito aqueles princípios.- Ora, podem-se pensar quatro combinações do último com os dois primeiros: A. Lei e liberdade sem poder (anarquia). B. Lei e poder sem liberdade (despotismo). C. Poder sem liberdade nem lei (barbárie). D. Poder com liberdade e lei (república). Vê-se que apenas a última merece ser denominada uma verdadeira constituição civil, com a qual, porém, não se visa a uma das três formas do Estado (a democracia), já que por república se entende apenas um Estado em geral, e o antigo brocardo Salus civitatis (não civium) suprema lex est, não significa que o bem sensível da comunidade (a felicidade dos cidadãos) deva servir de princípio supremo à constituição do Estado, pois esse bem-estar, que cada qual se pinta segundo sua inclinação privada assim ou de outra forma, não se presta de maneira alguma a ser um princípio objetivo, como o que exige a universalidade, mas aquela sentença não diz nada mais que: o bem do entendimento, a conservação da constituição do Estado uma vez existente, é a lei suprema de uma sociedade civil em geral, pois esta só existe por meio daquela. O caráter da espécie, tal como pode ser conhecido pela experiência em todos os tempos e entre todos os povos, é este: a espécie, tomada coletivamente (como um todo da espécie humana), é uma multidão de pessoas existentes sucessivamente e próximas umas das outras, que não podem prescindir da convivência pacífica, nem todavia evitar estar constantemente em antagonismo umas com as outras; que, por conseguinte, se sentem destinadas pela natureza, pela coerção recíproca de leis emanadas delas mesmas, a uma coalizão, constantemente ameaçada pela dissensão, mas em geral progressiva, numa sociedade civil mundial (cosmopolitismus), ideia inalcançável em si que, no entanto, não é um princípio constitutivo (da expectativa de uma paz que se mantenha em meio à mais viva ação e reação dos homens), mas apenas um princípio regulador: o de persegui-la aplicadamente como a destinação da espécie humana, não sem a fundada suposição de uma tendência natural para ela. Se a questão é se a espécie humana (a qual, se é pensada como uma espécie de seres terrestres racionais em comparação com os de outros planetas, como multidão de criaturas nascidas de um só demiurgo, também pode ser denominada raça) - se, digo, ela deve ser considerada como uma raça boa ou má, tenho de confessar que não se pode vangloriar muito dela. Se, todavia, alguém fixar os olhos na conduta dos homens, não simplesmente na história antiga mas na atual, este será sem dúvida frequentemente tentado a se fazer de misantropo, como Tímon, em seu juízo, mas com mais frequência e acerto a fazer como Momo, e encontrar antes desatino que maldade se destacando como traço característico de nossa espécie. No entanto, porque o desatino, unido a um lineamento de maldade (o que então se chama loucura), é inegável na fisionomia moral de nossa espécie, pela simples ocultação de boa parte de seus pensamentos, que todo homem prudente acha necessário, fica suficientemente claro que, em nossa raça, todos têm por conveniente se acautelar e não se deixar ver inteiramente como são, o que denuncia já a propensão em nossa espécie de serem mal-intencionados uns com outros. Bem poderia ser que nalgum outro planeta existam seres racionais que não possam pensar a não ser em voz alta, isto é: tanto em vigília quanto em sonhos, em companhia ou a sós, eles não poderiam ter pensamentos sem ao mesmo tempo exprimi-los. O que resultaria desse comportamento diverso do da nossa espécie humana? Se não fossem todos puros anjos, não é possível conceber como poderiam se aturar, como um poderia ter algum respeito pelo outro e se dar bem com ele. - Faz, pois, parte da composição original de uma criatura humana e do seu conceito de espécie espreitar os pensamentos alheios, mas conter os seus, qualidade polida que não deixa de progredir gradualmente da dissimulação até o engano premeditado e, finalmente, até a mentira. Isso daria então uma caricatura de nossa espécie, que não autorizaria apenas a sorrir bondosamente dela, mas também a desprezar aquilo que constitui o seu caráter, e a confessar que essa raça de seres racionais não merece um lugar de honra entre as restantes (desconhecidas para nós) (Frederico II perguntou certa vez ao excelente Sulzer, a quem estimava pelos seus méritos e a quem havia encarregado da direção das instituições de ensino da Silésia, como estas estavam indo. Sulzer respondeu: "Desde que se continuou construindo sobre o princípio (de Rousseau) de que o homem é bom por natureza, as coisas começam a ir melhor." "Ah (disse o rei), mon cher Sulzer, vous ne connaissez pas asse: cette maudite race à laquelle nous appartenons." [Meu querido Sulzer, o Sr. não conhece suficientemente essa raça maldita à qual nós pertencemos] - Também faz parte do caráter de nossa espécie que, aspirando à constituição civil, necessite da disciplina de uma religião, a fim de que o que não pôde ser alcançado pela coerção externa seja realizado pela interna (da consciência), pois a disposição moral do homem é utilizada politicamente pelos legisladores, uma tendência que faz parte do caráter da espécie. Mas se nessa disciplina do povo a moral não antecede a religião, esta se assenhora daquela, e a religião estatutária se torna um instrumento do poder do Estado (política) sob déspotas crentes; um mal que inevitavelmente desvirtua o caráter e leva a governar com engano (o que se chama de prudência política); quanto a isso, aquele grande monarca, ao mesmo tempo que confessava em público ser apenas o supremo servidor do Estado, não podia esconder, suspirando, o contrário em sua confissão privada, embora com a desculpa para a sua própria pessoa de que a responsabilidade por tal corrupção devia ser atribuída à má raça chamada espécie humana. Nota do Autor.) -, se precisamente esse juízo condenável não revelasse uma disposição moral em nós, uma desafio inato da razão para que também se trabalhe contra aquela propensão e, portanto, para que se apresente a espécie humana não como uma espécie má, mas como uma espécie de seres racionais que, em meio a obstáculos, se esforça para se elevar do mal ao bem num progresso constante; assim, sua vontade é boa em geral, mas a sua realização é dificultada pelo fato de que a consecução desse fim não pode ser esperada do livre acordo entre os indivíduos, mas apenas por meio de progressiva organização dos cidadãos da terra na e para a espécie, como um sistema cosmopolita unificado.