Denis Diderot – Suplemento à Viagem de Bougainville ou Diálogo Entre A E B SOBRE O INCONVENIENTE DE ATRIBUIR IDEIAS MORAIS A CERTAS AÇÕES FÍSICAS QUE NÃO AS COMPORTAM At quanto meliora monet, pugnantiaque istis, Dives opis Natura suae, tu si modo recte Dispensare velis, ac non fugienda petendis Immiscere! Tuo vitio rerumne labores, Nil referre putas? “Ah! quão melhores, quão opostos a tais princípios são os avisos da natureza, bastante rica em seu próprio fundo, se apenas quiseres bem dispensar os seus recursos e não misturar junto o que se deve fugir e o que se deve procurar. Crês que seja indiferente que sofras por tua culpa ou pela culpa das coisas”?” (Horácio, Sát., liv. I, sát. 11. v. 73 e ss.) I Julgamento da Viagem de Bougainville A. — Esta soberba abóbada estrelada, sob a qual retornamos ontem, e que nos parecia garantir um belo dia, não nos manteve a palavra. B. — Como sabeis disso? A. — O nevoeiro é tão espesso que nos rouba a visão das árvores vizinhas. B. — É verdade. Mas se esse nevoeiro, que permanece na parte inferior da atmosfera apenas porque ela está suficientemente carregada de umidade, tornar a descer sobre a terra? A. — Mas se, ao contrário, atravessar a esponja, elevar-se e ganhar a região superior onde o ar é menos denso, e pode, como dizem os químicos, não estar saturado? B. — É preciso esperar. A. — Entrementes, o que fazeis? B. — Leio. A. — Ainda essa viagem de Bougainville? B. — Ainda. A. — Não entendo esse homem. O estudo das matemáticas, que supõe uma vida sedentária, preencheu o tempo de seus jovens anos; e eis que passa subitamente de uma condição meditativa e retirada ao mister ativo, penoso, errante e dissipado de viajante. B. — De modo algum. Se o navio é apenas uma casa flutuante, e se considerais o navegador que atravessa espaços imensos, encerrado e imóvel num recinto bastante estreito, vós o vereis dando a volta do globo sobre uma tábua, como vós e eu damos a volta do universo sobre vosso assoalho. A. — Outra extravagância aparente é a contradição entre o caráter do homem e de sua empresa. Bougainville tem o gosto dos divertimentos da sociedade; ama as mulheres, os espetáculos, os repastos delicados; presta-se ao turbilhão do mundo com tão boa graça quanto às inconstâncias do elemento sobre o qual foi balouçado. É amável e jovial: é um verdadeiro francês lastrado, de um bordo, de um tratado de cálculo diferencial e integral, e de outro, de uma viagem à volta do globo. B. — Ele procede como todo mundo: dissipa-se depois de aplicar-se, e aplica-se depois de dissipar-se. A. — Que pensais de sua Viagem? B. — Do que posso julgar de uma leitura assaz superficial, citaria a vantagem de três pontos principais: melhor conhecimento de nosso velho domicílio e de seus habitantes; mais segurança nos mares que ele percorreu de sonda na mão, e mais correção em nossos mapas geográficos. Bougainville partiu com as luzes necessárias e as qualidades próprias a seus intentos: filosofia, coragem e veracidade; um golpe de vista rápido que apreende as coisas e abrevia o tempo das observações; circunspecção, paciência; o desejo de ver, de esclarecer-se e de instruir-se; a ciência do cálculo, das mecânicas, da geometria, da astronomia; e uma tintura suficiente de história natural. A. — E seu estilo? B. — Sem afetação; o tom da coisa, simplicidade e clareza, sobretudo quando se possui a linguagem dos marinheiros. A. — Seu curso foi longo? B. — Tracei-o sobre este globo. Estais vendo esta linha de pontos vermelhos? A. — Que parte de Nantes? B. — E corre até o estreito de Magalhães, entra no oceano Pacífico, serpenteia entre essas ilhas que formam o imenso arquipélago que se estende das Filipinas à Nova Holanda, roça Madagáscar e o cabo da Boa Esperança, prolonga-se até o Atlântico, segue as costas da África, e une uma de suas extremidades àquela de onde o navegador embarcou. A. — E ele sofreu muito? B. — Todo navegador expõe-se, e aceita expor-se aos perigos do ar, do fogo, da terra e da água: mas que, após errar meses inteiros entre o mar e o céu, entre a morte e a vida; após ser fustigado por tempestades, ameaçado de perecer por naufrágio, por doença, por falta de água e de pão, um infortunado venha, com a embarcação destroçada, cair, expirando de fadiga e de miséria, aos pés de um monstro de bronze que lhe recusa ou o faz esperar impiedosamente os socorros mais urgentes, é uma dureza... A. — Um crime digno de castigo. B. — Uma dessas calamidades com a qual o viajante não contou. A. — E não devia contar. Eu acreditava que as potências europeias só enviassem, para comandantes em suas possessões ultramarinas, almas honestas, homens benfazejos, indivíduos cheios de humanidade, e capazes de compadecer-se... B. — É bem o que as preocupa! A. — Há coisas singulares nessa viagem de Bougainville. B. — Muitas. A. — Não assegura ele que os animais selvagens se aproximam do homem, e que os pássaros vêm pousar nele, quando ignoram o perigo de semelhante familiaridade? B. — Outros o disseram antes. A. — Como explica ele a estada de certos animais em ilhas separadas de qualquer continente por intervalos aterradores de mar? Quem levou lá o lobo, a raposa, o cão, o cervo, a serpente? B. — Ele não explica nada; atesta o fato. A. — E vós, como o explicais? B. — Quem conhece a história primitiva de nosso globo? Quantos espaços de terra, agora isolados, eram outrora contínuos? O único fenômeno, sobre o qual se poderia fazer alguma conjectura, é a direção da massa de água que os separou. A. — Como assim? B. — Pela forma geral dos arrancamentos. Qualquer dia nos divertiremos com essa pesquisa, se isso vos convier. Por enquanto, estais vendo esta ilha que chamam dos Lanceiros? À inspeção do lugar que ela ocupa no globo, não há quem não pergunte quem é que instalou aí homens? Que comunicação os ligava outrora com o resto de sua espécie? O que acontecerá com eles quando se multiplicarem em um espaço que não conta mais do que uma légua de diâmetro? A. — Eles se exterminam e se devoram; e daí talvez uma primeira época muito antiga e muito natural da antropofagia, insular de origem. B. — Ou a multiplicação é nela limitada por alguma lei supersticiosa; a criança é esmagada no seio da mãe que é calcada aos pés de uma sacerdotisa. A. — Ou o homem degolado expira sob a adaga de um sacerdote; ou se recorre à castração dos machos... B. — À infibulação das fêmeas; e daí tantas práticas de uma crueldade necessária e extravagante, cuja causa se perdeu na noite dos tempos e que tortura os filósofos. Uma observação assaz constante é que as instituições sobrenaturais e divinas se fortalecem e se eternizam, transformando-se, com o tempo, em leis civis e nacionais; e que as instituições civis e nacionais se consagram, e degeneram em preceitos sobrenaturais e divinos. A. — É uma das palingenesias mais funestas. B. — Um fio a mais que juntamos ao laço com que nos apertam. A. — Não se encontrava ele no Paraguai no momento mesmo da expulsão dos jesuítas? B. — Sim. A. — O que diz a respeito? B. — Menos do que poderia dizer, mas o bastante para nos informar que esses cruéis espartanos de hábito negro procediam, com seus escravos índios, como os lacedemônios com os hilotas; condenaram-nos a um trabalho assíduo; bebiam-lhes o suor, não lhes deixaram nenhum direito de propriedade; mantinham-nos no embrutecimento da superstição; exigiam-lhes profunda veneração; caminhavam no meio deles de chicote na mão, e os açoitavam sem distinção de idade e de sexo. Um século mais, e a expulsão tornar-se-ia impossível, ou motivo de longa guerra entre os monges e o soberano, cuja autoridade eles haviam sacudido pouco a pouco. A. — E esses patagões, a respeito dos quais o Doutor Maty e o acadêmico La Condamine fizeram tanto barulho? B. — São boas gentes que vêm a vós, e que vos abraçam gritando Chaua; fortes, vigorosos, quase não excedendo todavia a altura de cinco pés e cinco a seis polegadas; não apresentando nada de enorme, exceto a corpulência, a grossura da cabeça, e a espessura dos membros. Nascido com o gosto do maravilhoso, que exagera tudo em redor de si, como deixaria o homem uma justa proporção aos objetos, quando tem, por assim dizer, de justificar o caminho que percorreu, e o trabalho a que se deu para ir vê-los de tão longe? A. — E do selvagem, o que pensa dele? B. — É ao que parece, à defesa diária contra os animais, que o mesmo deve o caráter cruel que se lhe observa às vezes. É inocente e doce, em toda parte onde nada lhe perturba o repouso e a segurança. Toda guerra nasce da pretensão comum à mesma propriedade. O homem civilizado tem uma pretensão comum, com o homem civilizado, à posse de um campo de que ambos ocupam as duas extremidades; e esse campo converte-se em motivo de disputa entre eles. A. — E o tigre tem uma pretensão comum, com o homem selvagem, à posse de uma floresta; e é a primeira das pretensões, e a causa da mais antiga das guerras... Vistes o taitiano que Bougainville prendeu a bordo e transportou a este país? B. — Eu o vi; chamava-se Aoturu. A primeira terra que avistou, ele a tomou pela pátria dos viajantes; seja porque o tivessem iludido sobre o comprimento da viagem; seja porque, enganado naturalmente pela pouca distância aparente das bordas do mar que habitava, no lugar onde o céu parece confinar com o horizonte, ignorasse a verdadeira extensão da Terra. O uso comum das mulheres estava tão bem estabelecido em seu espírito, que se atirou sobre a primeira europeia que veio a seu encontro, e se dispunha seriamente a fazer-lhe a cortesia do Taiti. Aborrecia-se entre nós. Como o alfabeto taitiano não tem b, nem c, nem d, nem f nem g, nem q, nem y, nem ç, nem z, nunca conseguiu aprende a falar nossa língua, que oferecia a seus órgãos inflexíveis demasiadas articulações estranhas e sons novos, não cessava de suspirar por seu país, e isso não me espanta. A viagem de Bougainville é a única que me deu gosto por outro país que não o meu; até esta leitura, pensei que em parte alguma a gente estivesse tão bem como em casa; resultado que eu julgava igual para cada habitante da Terra; efeito natural da atração do solo; atração que se deve às comodidades de que gozamos e as quais não temos a mesma certeza de encontrar alhures. A. — O quê! não achais o habitante de Paris tão convencido de que cresçam espigas na campanha de Roma, assim como nos campos da Beauce? B. — Por minha fé, não. Bougainville enviou de volta Aoturu, depois de providenciar as despesas e a segurança de seu regresso. A. — Ó Aoturu! Como ficarás contente de rever teu pai, tua mãe, teus irmãos, tuas irmãs, tuas amantes, teus compatriotas, o que lhes dirás de nós? B. — Poucas coisas, e em que eles não acreditarão. A. — Por que poucas coisas? B. — Porque compreendeu poucas, e porque não descobrirá em sua língua nenhum termo correspondente àquelas de que tem algumas ideias. A. — E por que não acreditarão nele? B. — Porque, comparando seus costumes aos nossos, preferirão tomar Aoturu por mentiroso, a nos supor tão loucos. A. — Em verdade? B. — Eu não duvido: a vida selvagem é tão simples, e nossas sociedades são máquinas tão complicadas! O taitiano está próximo da origem do mundo, e o europeu, da sua velhice. O intervalo que o separa de nós é maior que a distância entre a criança recém-nascida e o homem decrépito. Ele nada entende de nossos usos, de nossas leis, ou então os vê somente como entraves disfarçados sob cem formas diversas; entraves capazes apenas de provocar a indignação e o desprezo de um ser em quem o sentimento da liberdade é o mais profundo dos sentimentos. A. — É isso que traríeis na fábula do Taiti? B. — Não é uma fábula; e não alimentaríeis a menor dúvida sobre a sinceridade de Bougainville, se conhecêsseis o suplemento de sua viagem. A. — E onde se pode encontrar o mencionado suplemento? B. — Ali, sobre a mesa. A. — Acaso poderíeis confiá-lo a mim? B. — Não, mas podemos percorrê-lo juntos, se quiserdes. A. — Seguramente que sim. Eis o nevoeiro que torna a descer, e o azul do céu que começa a surgir. Parece que meu quinhão é o de errar convosco até nas menores coisas; devo ser bastante bom para perdoar-vos uma superioridade tão contínua. B. — Tomai, tomai, lede: passai esse preâmbulo que não significa nada. e ide diretamente aos adeuses que um dos chefes da ilha deu aos nossos viajantes. Isso vos proporcionará alguma noção da eloquência daquela gente. A. — Como é que Bougainville compreendeu tais adeuses pronunciados em uma língua que ignorava? B. — Ireis sabê-lo. É um velho quem fala. II Os Adeuses do Ancião Era pai de numerosa família. A chegada dos europeus, deixou cair olhares de desdém sobre eles, sem expressar espanto, nem medo, nem curiosidade. Abordaram-no; ele volveu-lhes as costas, retirou-se para sua cabana. Seu silêncio e seu cuidado revelavam muito bem seu pensamento: gemia, no íntimo, sobre os belos dias de seu país, eclipsados. À partida de Bougainville, quando os habitantes acorriam em multidão à margem, agarravam-se ao vestuário dele, apertavam seus camaradas entre os braços, e choravam, o velho avançou com ar severo e disse: “Chorai, infelizes taitianos! chorai; mas que seja pela chegada, e não pela partida desses homens ambiciosos e malvados: um dia, vós os conhecereis melhor. Um dia, voltarão, com o pedaço de madeira que vedes preso na cintura deste, em uma mão, e com o ferro que pende à ilharga daquele, em outra, para vos encadear, vos degolar, ou vos sujeitar às suas extravagâncias e a seus vícios; um dia servireis às ordens deles, tão corrompidos, tão vis, tão infelizes como eles. Mas eu me consolo; toco ao fim de minha carreira; e a calamidade que vos anuncio, eu não a verei. Ó taitianos! meus amigos! haveria um meio de escapardes a um funesto porvir; mas preferiria antes morrer a vo-lo aconselhar. Que eles se afastem, e que vivam”. Depois, dirigindo-se a Bougainville, acrescentou: “E tu, chefe dos bandidos que te obedecem, afasta prontamente teu navio de nossa costa: nós somos inocentes, nós somos felizes; e tu só podes prejudicar nossa felicidade. Nós seguimos o puro instinto da natureza; e tu tentaste expungir de nossas almas seu caráter. Aqui tudo é de todos; e tu nos pregaste não sei que distinção entre o teu e o meu. Nossas filhas e nossas mulheres nos são comuns; tu partilhaste esse privilégio conosco; e tu vieste acender nelas furores desconhecidos. Elas se tornaram loucas em teus braços; e tu te tornaste feroz entre os delas. Elas começaram a odiar-se; vós vos degolastes por elas; e elas voltaram a nós manchadas de vosso sangue. Nós somos livres; e eis que tu fincaste em nosso solo o título de nossa futura escravidão. Tu não és nem deus, nem demônio: quem és então, para fazer escravos? Oru! tu que entendes a língua desses homens aí, dize a todos nós, como disseste a mim, o que eles escreveram nesta lâmina de metal: ‘Este país é nosso.’ Este país é teu! E por quê? Porque puseste o pé nele? Se um taitiano desembarcasse um dia em vossas costas, e se gravasse numa de vossas pedras ou na casca de uma de vossas árvores: ‘Este país é dos habitantes do Taiti’, o que acharias? Tu és o mais forte! E o que tem isso? Quando te tiraram uma das desprezíveis bagatelas de que tua embarcação está cheia, bradaste, te vingaste; e no mesmo instante projetaste, no fundo de teu coração, o roubo de todo um país. Tu não és escravo: prefererias a morte a sê-lo, e queres nos assujeitar. Crês portanto que o taitiano não sabe defender sua liberdade e morrer? Aquele de quem queres te apoderar como de um bruto, o taitiano, é teu irmão. Vós sois dois filhos da natureza; que direito tens tu sobre ele que ele não tenha sobre ti? Tu vieste; nós nos atiramos sobre tua pessoa? Pilhamos o teu navio? Nós te prendemos e te expusemos às flechas de nossos inimigos? Nós te associamos em nossos campos ao trabalho de nossos animais? Nós respeitamos nossa imagem em ti. Deixa-nos os nossos costumes; são mais sábios e mais honestos que os teus; nós não queremos trocar o que chamas nossa ignorância por tuas inúteis luzes. Tudo o que nos é necessário e bom, nós o possuímos. Somos nós dignos de desprezo, porque não soubemos criar para nós necessidades supérfluas? Quando temos fome, temos o que comer; quando temos frio, temos com que nos vestir. Tu entraste em nossas cabanas, o que faltava nelas, em tua opinião? Persegue até onde quiseres isso que denominas comodidades da vida; mas permite a seres sensatos que se detenham, quando não teriam a obter, da continuação de seus penosos esforços, senão bens imaginários. Se nos persuades a transpor o estreito limite da necessidade, quando findaremos de trabalhar? Quando fruiremos? Nós tornamos a soma de nossas fadigas anuais e diárias menor possível, porque nada nos parece preferível ao repouso. Vai a teu país te agitar, te atormentar quanto quiseres; deixa-nos descansar: não nos metas na cabeça nem tuas necessidades factícias, nem tuas virtudes quiméricas. Observa esses homens; vê como são eretos, sadios e robustos. Observa essas mulheres; vê como são eretas, sadias, frescas e belas. Toma este arco, é o meu; chama em tua ajuda um, dois, três, quatro de teus camaradas, e tenta distendê-lo. Eu o distendo sozinho. Eu lavro a terra; escalo a montanha; atravesso a floresta; percorro uma légua da planície em menos de uma hora. Teus jovens companheiros tiveram dificuldade em me acompanhar; e eu tenho oitenta anos passados. Ai desta ilha! Ai dos taitianos presentes, e de todos os taitianos vindouros, desde o dia em que tu nos visitaste! Nós não conhecíamos senão uma doença: aquela à qual o homem, o animal e a planta foram condenados, a velhice; e tu nos trouxeste outra: infectaste nosso sangue. Teremos talvez de exterminar com nossas próprias mãos nossas filhas, nossas mulheres, nossas crianças; os que se aproximaram de tuas mulheres; as que se aproximaram de teus homens. Nossos campos serão molhados com o sangue impuro que passou de tuas veias às nossas; ou nossos filhos, condenados a nutrir e a perpetuar o mal que passaste aos pais e às mães, e que transmitirão para sempre a seus descendentes. Infelizes! Tu serás culpado, ou das devastações que se seguirão às funestas carícias dos teus, ou dos assassínios que cometeremos para sustar-lhes o veneno. Tu falas de crime! Tens ideia de outro crime maior do que o teu? Qual é entre os teus o castigo de quem mata o vizinho? A morte pelo ferro. Qual é entre os teus o castigo do covarde que o envenena? A morte pelo fogo: compara teu crime a este último; e dize-nos, envenenador de nações, o suplício que mereces. Há apenas um momento, a jovem taitiana se abandonava aos transportes, aos abraços do jovem taitiano; esperava com impaciência que a mãe (autorizada pela idade núbil) lhe erguesse o véu e lhe pusesse a nu o colo. Ela sentia-se orgulhosa por excitar os desejos, e por atrair os olhares amorosos do desconhecido, de seus parentes, de seu irmão; aceitava sem terror e sem vergonha, em nossa presença, em meio de um círculo de inocentes taitianos, ao som das flautas, entre as danças, as carícias daquele que seu jovem coração e a voz secreta de seus sentidos lhe designavam. A ideia de crime e o perigo da moléstia entraram contigo entre nós. Nossos gozos, outrora tão doces, são acompanhados de remorsos e de horror. Esse homem negro, que está perto de ti, que me escuta, falou a nossos rapazes; não sei o que disse a nossas filhas; mas nossos rapazes hesitam; mas nossas filhas enrubescem. Embrenha-te, se quiseres, na floresta escura na companhia perversa de teus prazeres; mas concede aos bons e simples taitianos que se reproduzam sem pejo, à face do céu e à plena luz. Que sentimento mais honesto e mais grandioso poderias colocar no lugar daquele que nós lhes inspiramos, e que os anima? Eles pensam que o momento de enriquecer a nação e a família com um novo cidadão é chegado, e se glorificam com isso. Eles comem para viver e crescer; eles crescem para multiplicar-se, e não veem nisso nem vício, nem vergonha. Escuta a série de tuas perversidades. Apenas te mostraste entre eles, e eles tornaram-se ladrões. Apenas desceste em nossa terra e ela fumegou de sangue. O taitiano que correu a teu encontro, que te acolheu, que te recebeu gritando: Taio! Amigo, amigo, tu o mataste. E por que o mataste? Porque ele fora seduzido pelo brilho de teus pequenos ovos de serpente. Ele te dava seus frutos; ele te oferecia sua mulher e sua filha; ele te cedia sua cabana: e tu o mataste por um punhado desses grãos, que ele apanhava sem te perguntar. E este povo? Ao fragor de tua arma mortífera, o terror se apoderou dele; e ele se refugiou na montanha. Mas crê que não tardaria descer; crê que num instante, sem mim, teríeis perecido todos. Ah! Por que os aplaquei? Por que os contive? Por que os contenho ainda neste momento? Eu o ignoro; pois não mereces nenhum sentimento de piedade; pois tens uma alma feroz que não a experimenta nunca. Tu passeaste, tu e os teus, em nossa ilha; tu foste respeitado; tu desfrutaste de tudo; tu não deparaste em teu caminho nem barreira, nem recusa: convidavam-te; tu te assentavas; desdobravam à tua frente a abundância do país. Quiseste as nossas jovens? Exceto as que não dispõem ainda do privilégio de exibir o rosto e o colo, as mães te apresentaram as outras totalmente nuas; eis-te possessor da tenra vítima do dever hospitaleiro; juncou-se, para ela e para ti, a terra de folhas e de flores; os músicos afinaram seus instrumentos; nada perturbou a doçura, nem estorvou a liberdade de tuas carícias, nem das delas. Cantou-se o hino, o hino que te exortava a ser homem, que exortava nossa filha a ser mulher, e mulher complacente e voluptuosa. Dançou-se em redor de teu leito; e foi ao sair dos braços dessa mulher, após ter provado sobre o seio dela a mais doce ebriedade, que lhe mataste o irmão, o amigo, o pai, talvez. Agiste pior ainda; observa por esse lado; vê esse contorno eriçado de flechas; essas armas que só haviam ameaçados nossos inimigos, vê como estão voltadas contra nossos próprios filhos: vê as desgraçadas companheiras de nossos prazeres; vê a tristeza delas; vê a dor de seus pais; vê o desespero de suas mães: é aí que se acham condenadas a perecer ou por nossas mãos, ou pelo mal que lhes deste. Afasta-te, a menos que teus olhos cruéis se comprazam com espetáculos de morte: afasta-te; vai, e possam os mares culpados, que te pouparam em tua viagem, absorver-te. e nos vingar, engolindo-te antes de teu retorno! E vós, taitianos, reentrai em vossas cabanas, reentrai todos; e que estes indignos estrangeiros não ouçam à sua partida senão a onda que muge, e não vejam senão a espuma com que seu furor embranquece a margem deserta”! Antes que terminasse, a multidão dos habitantes desapareceu: um vasto silêncio reinou em toda a extensão da ilha; e não se ouvia senão o silvo agudo dos ventos e o rumor surdo das águas em todo o comprimento da costa: dir-se-ia que o ar e o mar, sensíveis à voz do ancião, dispunham-se a obedecer-lhe. B. — Pois bem, o que pensais disso? A. — O discurso me parece veemente; mas através de não sei que de abrupto e selvagem, se me afigura reencontrar nele ideias e construções europeias. B. — Pensai, no entanto, que se trata de uma tradução do taitiano em espanhol, e do espanhol em francês. O velho fora, à noite, à casa desse Oru, por ele interpelado, e em cuja choupana o uso da língua espanhola conservara-se desde tempos imemorais. Oru escreveu em espanhol a arenga do ancião, e Bougainville tinha uma cópia à mão, enquanto o taitiano a pronunciava. A. — Não vejo muito bem, agora, por que Bougainville suprimiu esse fragmento; mas não é tudo; e minha curiosidade pelo resto não é ligeira. B. — O que segue, quiçá, vos interessará menos. A. — Não importa. B. — É um colóquio do capelão da equipagem com um habitante da ilha. A. — Oru? B. — Ele mesmo. Quando o navio de Bougainville acercou-se do Taiti, um número infinito de árvores escavadas foram lançadas às águas; num instante sua embarcação foi cercada; para qualquer lado que volvesse o olhar, via demonstrações de surpresa e benevolência. Jogavam-lhe provisões; estendiam-lhe os braços; agarravam-se às cordas; guindavam-se contra as pranchas; enchiam a chalupa; gritavam para a margem, de onde os gritos eram respondidos; os habitantes da ilha acorriam; ei-los todos em terra: apoderam-se dos homens da tripulação; partilham-nos; cada um conduz o seu à sua cabana: os homens seguravam-nos sobraçados pelo meio do corpo; as mulheres afagavam-lhes as faces com as mãos. Colocai-vos lá; sede testemunha, pelo pensamento, desse espetáculo de hospitalidade; e dizei-me como achais a espécie humana. A. — Muito bela. B. — Mas eu esqueceria talvez de vos falar de um acontecimento assaz singular. Essa cena de benevolência e humanidade foi perturbada de repente pelos gritos de um homem que pedia socorro; era o criado de um dos oficiais de Bougainville. Jovens taitianos tinham-se atirado sobre ele, haviam-no derrubado no chão, despido e dispunham-se a fazer-lhe a civilidade. A. — O quê! Esses povos tão simples, esses selvagens tão bons, tão honestos?... B. — Vós vos enganais; o referido criado era mulher disfarçada de homem. Ignorada pela equipagem inteira, durante todo o decurso de uma longa travessia, os taitianos adivinharam-lhe o sexo ao primeiro relance. Nascera na Borgonha; chamava-se Barré; nem feia, nem bonita, contava vinte e seis anos. Nunca saíra de seu povoado; e seu primeiro pensamento de viagem foi o de dar a volta do globo: ela mostrou sempre sabedoria e coragem. A. — Essas frágeis máquinas encerram às vezes almas bem fortes. III Diálogo do Capelão e de Oru B. — Na divisão que os taitianos fizeram da tripulação de Bougainville, o capelão veio a ser o quinhão de Oru. O capelão e o taitiano eram quase da mesma idade, trinta e cinco a trinta e seis anos. Oru possuía então apenas a mulher e três filhas chamadas Asto, Palli e Thia. Elas o despiram, lavaram-lhe o rosto, as mãos e os pés, e serviram-lhe uma refeição sadia e frugal. Quando estava a ponto de deitar-se, Oru, que se ausentara com a família, reapareceu, apresentou-lhe a mulher e as três filhas nuas, e disse-lhe: — Ceaste, és jovem, tens saúde; se dormires só, dormirás mal; o homem precisa à noite de uma companheira a seu lado. Eis minha mulher, eis minhas filhas: escolhe a que te convém; mas se queres fazer-me um favor, darás preferência à mais jovem de minhas filhas, que não teve ainda filhos. A mãe acrescentou: — Infelizmente! Não devo me queixar disso; a pobre Thia! Não é culpa dela. O capelão respondeu que sua religião, sua condição, os bons costumes e a honestidade não lhe permitiam aceitar tais ofertas. Oru replicou: — Não sei o que é a coisa que chamas religião, mas só posso pensar mal dela, visto que te impede de apreciar um prazer inocente, ao qual a natureza, a soberana senhora, nos convida a todos; de dar existência a um de teus semelhantes; de prestar um serviço que o pai, a mãe e os filhos te pedem; de te desobrigar para com um hospedeiro que te dispensou boa acolhida, e de enriquecer uma nação, aumentando-a com um indivíduo a mais. Não sei o que é a coisa que chamas condição; mas teu primeiro dever é de ser homem e ser grato. Não te proponho de modo algum que transportes a teu país os costumes de Oru; mas Oru, teu hóspede e teu amigo, te suplica que te prestes aos costumes do Taiti. Os costumes do Taiti são melhores ou piores do que os vossos? É uma questão fácil de decidir. A terra onde nasceste tem mais homens do que pode nutrir? Neste caso, teus costumes não são nem piores, nem melhores que os nossos. Pode ela nutrir mais do que tem? Então nossos costumes são melhores do que os teus. Quanto à honestidade que me objetas, eu te compreendo; confesso que estou errado; e te peço por isso perdão. Não exijo que prejudiques tua saúde; se estás fatigado, cumpre que descanses; mas espero que não continuarás a nos contristar. Eis a inquietação que espalhaste em todos esses rostos: temem que hajas notado neles quaisquer defeitos que atraiam teu desdém. Mas ainda que assim fosse, o prazer de honrar uma de minhas filhas, entre suas companheiras e suas irmãs, e de praticar uma boa ação, não te bastaria? Sê generoso! CAPELÃO. — Não é isso: elas são todas as quatro igualmente belas; mas minha religião! Minha condição! ORU. — Elas me pertencem e eu tas ofereço: elas se pertencem, e elas se entregam a ti. Qualquer que seja a pureza de consciência que a coisa religião e a coisa condição te prescrevam, podes aceitá-las sem escrúpulos. Não abuso absolutamente de minha autoridade; e estejas seguro que conheço e que respeito os direitos das pessoas. Aqui, o sincero capelão concorda que a Providência nunca o expusera a tentação tão premente. Era jovem; debatia-se, atormentava-se; desviava os olhares das amáveis suplicantes; volvia-os sobre elas; alçava as mãos e os olhos ao céu. Thia, a mais jovem, abraçava-lhe os joelhos e dizia-lhe: — Estrangeiro, não aflijas meu pai, não aflijas minha mãe, não me aflijas! Honra-me na cabana e entre os meus; eleva-me ao grau de minhas irmãs, que zombam de mim. Asto, a mais velha, já tem três filhos; Palli, a segunda, tem dois, e Thia não tem nenhum! Estrangeiro, honesto estrangeiro, não me repilas! Torna-me mãe, faze-me um filho que um dia eu possa passear pela mão, ao meu lado, no Taiti; que se veja dentro de nove meses preso ao meu seio; do qual eu me sinta orgulhosa, e que faça parte de meu dote, quando eu passar da cabana de meu pai a outra. Serei talvez mais afortunada contigo do que com os nossos jovens taitianos. Se me concederes esse favor, nunca mais te esquecerei; eu te abençoarei por toda minha vida; escreverei teu nome em meu braço e no de teu filho; pronunciá-lo-emos incessantemente com alegria; e, quando deixares esta plaga, meus votos te acompanharão sobre os mares até que tenhas chegado a teu país. O ingênuo capelão diz que ela lhe apertava as mãos, que fixava em seus olhos miradas tão expressivas e tão tocantes; que chorava; que o pai, a mãe e as irmãs se distanciaram; que ficou só com ela, e que dizendo, “Mas a minha religião, mas a minha condição”, viu-se no dia seguinte deitado ao lado daquela jovem, que o cumulava de carícias, e que convidara o pai, a mãe e as irmãs, quando se aproximaram do leito pela manhã, a juntar seu reconhecimento ao dela. Asto e Palli, que se haviam afastado, voltaram com os pratos do país, com bebidas e frutas: abraçavam a irmã e faziam votos por ela. Desjejuaram, todos juntos; em seguida Oru ficou só com o capelão e lhe disse: — Vejo que minha filha está contente contigo; e eu te agradeço. Mas poderias informar-me o que vem a ser a palavra religião, que repetiste tantas vezes, e com tanta dor? O capelão, depois de devanear por um momento, respondeu: — Quem fez tua cabana e os utensílios que a mobiliam? ORU. — Fui eu. CAPELÃO. — Pois bem! nós cremos que este mundo e o que ele encerra foi obra de um obreiro. ORU. — Ele tem portanto pés, mãos e cabeça? CAPELÃO. — Não. ORU. — Onde é que ele tem sua morada? CAPELÃO. — Em toda parte. ORU. — Aqui mesmo! CAPELÃO. — Aqui. ORU. — Nós nunca o vimos. CAPELÃO. — Ele não é visto. ORU. — Ai está um pai bastante indiferente! Deve ser velho; pois conta ao menos a idade de sua obra. CAPELÃO. — Nunca envelhece; ele falou a nossos antepassados; deu-lhes leis; prescreveu-lhes a maneira segundo a qual queria ser honrado; ordenou-lhes certas ações, como boas; vedou-lhes outras, como más. ORU. — Entendo; e uma dessas ações que ele lhes vedou como má é a de dormir com uma mulher e uma moça? Por que então criou dois sexos? CAPELÃO. — Para se unirem; mas com certas condições requeridas, após certas cerimônias prévias, em consequência das quais um homem pertence a uma mulher, e só pertence a ela; uma mulher pertence a um homem, e só pertence a ele. ORU. — Para toda a vida? CAPELÃO. — Para toda a vida. ORU. — De modo que, se acontecesse a uma mulher dormir com outro além do marido, ou a um marido de dormir com outra além da mulher... mas isso nunca acontece, pois, uma vez que está presente, e que isso lhe desapraz, sabe como impedi-los. CAPELÃO. — Não; ele os deixa fazer; e eles pecam contra a lei de Deus (pois é assim que chamamos o grande obreiro), contra a lei do país; e cometem um crime. ORU. — Eu ficaria desolado em te ofender com meus discursos; mas se mo permitisses, eu te diria minha opinião. CAPELÃO. — Fala. ORU. — Esses preceitos singulares, eu os acho opostos à natureza e contrários à razão; feitos para multiplicar os crimes, para irritar a todo momento o velho obreiro, que fez tudo sem mãos, sem cabeça e sem instrumentos; que está em toda parte, e que não está à vista em parte alguma; que dura hoje e amanhã, e que não tem um dia a mais; que comanda e que não é obedecido; que pode impedir, e que não impede. Contrários à natureza, porque supõem que um ser pensante, sensível e livre, pode ser propriedade de um ser semelhante a ele. Em que estaria fundado tal direito? Não vês que confundiram, em teu país, a coisa que não tem sensibilidade, nem pensamento, nem desejo, nem vontade; que se larga, que se toma, que se guarda, que se troca sem que ela sofra e sem que ela se queixe, com a coisa que não se troca, que não se adquire de modo algum; que tem liberdade, vontade, desejo; que pode dar-se ou recusar-se por um momento; dar-se ou recusar-se para sempre; que se queixa e que sofre; e que não poderia tornar-se um bem de troca, sem que seja esquecido o seu caráter e que se faça violência à natureza? Contrários à lei geral dos seres. Nada, com efeito, te parece mais insensato do que um preceito que proscreve a mudança que está em nós; que ordena uma constância que não pode existir em nós, e viola a liberdade do macho e da fêmea, encadeando-os para sempre um ao outro; do que uma fidelidade, que limita o mais caprichoso dos gozos ao mesmo indivíduo; que um juramento de imutabilidade de dois seres de carne, à face de um céu que não é um só instante o mesmo, sob antros que ameaçam ruir; embaixo de uma rocha que despenca em pó; ao pé de uma árvore que se racha; sobre uma pedra que se abala? Creia-me, vós tornastes a condição do homem pior que a do animal. Não sei o que seja o teu grande obreiro: mas rejubilo-me por ele não ter falado a nossos pais, e não desejo que fale tampouco a nossos filhos; pois poderia por acaso dizer-lhes as mesmas tolices, e eles cometeriam talvez a de crer nele. Ontem, ao cear, conversaste conosco sobre magistrados e sacerdotes; não sei quais sejam as personagens que chamastes magistrados e sacerdotes, cuja autoridade regula vossa conduta; mas, dize-me, são eles senhores do bem e do mal? Podem eles fazer com que o que é justo seja injusto, e o que é injusto seja justo? Depende deles atribuir o bem a ações nocivas, e o mal a ações inocentes ou úteis? Tu não poderias pensá-lo, pois, desse modo, não haveria nem verdadeiro nem falso, nem bom nem mau, nem belo nem feio; a não ser aquilo que aprouvesse a teu grande obreiro, a teus magistrados, a teus sacerdotes, declarar como tal; e, de um momento a outro, serias obrigado a mudar de ideias e de conduta. Um dia, dir-te-iam, de parte de um de teus três senhores: “mata”, e serias obrigado, em consciência, a matar; outro dia: “rouba”, e serias forçado a roubar; ou: “não comas deste fruto”, e não ousarias comê-lo; “proíbo-te este legume ou este animal”, e evitarias tocá-los. Não há bondade que não se possa te interditar; não há malvadeza que não se possa te ordenar, e ao que ficarias reduzido, se teus três senhores, pouco de acordo entre si, resolvessem permitir-te, ordenar-te e proibir-te a mesma coisa, como penso que acontece amiúde? Então, para agradar ao sacerdote, terás de indispor-te com o magistrado; para satisfazer o magistrado, terás de descontentar o grande obreiro; e para tornar-te agradável ao grande obreiro, terás de renunciar à natureza. E sabes o que resultará? Desprezarás todos os três, e não serás nem homem, nem cidadão, nem devoto; não serás nada; estarás mal com toda sorte de autoridade; mal contigo próprio; malvado, atormentado por teu coração, perseguido por teus senhores insensatos; e infeliz, como te vi ontem à noite, quando eu te apresentava minhas filhas e minha mulher e quando tu exclamavas: “Mas minha religião! Mas minha condição!” Queres saber, em todos os tempos e em todos os lugares, o que é bom e mau? Apega-te à natureza das coisas e das ações; a tuas relações com teu semelhante; à influência de tua conduta sobre tua utilidade particular e o bem geral. Estás delirando, se crês que haja algo, seja no alto, seja embaixo, no universo, que possa acrescentar ou subtrair às leis da natureza. Sua vontade eterna é que o bem seja preferido ao mal, e o bem geral ao bem particular. Ordenarás o contrário; mas não serás obedecido. Multiplicarás os malfeitores e os infelizes pelo temor, pelos castigos e pelos remorsos; depravarás as consciências; corromperás os espíritos; eles não saberão mais o que devem fazer ou evitar. Perturbados no estado de inocência, tranquilos na perversidade, terão perdido a estrela polar no seu caminho. Responde-me sinceramente: a despeito das ordens expressas de teus três legisladores, um jovem, em teu país, não se deitará jamais, sem a permissão deles, com uma jovem? CAPELÃO. — Eu mentiria se o assegurasse. ORU. — A mulher, que jurou pertencer apenas a seu marido, não se entrega nunca a outrem? CAPELÃO. — Nada é mais comum. ORU. — Teus legisladores exercem rigor ou não o exercem: caso o exerçam, são feras que ferem a natureza; se não o exercem, são imbecis que expuseram ao menosprezo sua autoridade por uma proibição inútil. CAPELÃO. — Os culpados, que escapam à severidade das leis, são castigados pela censura geral. ORU. — Isso quer dizer que a justiça se exerce pela falta de senso comum de toda a nação; e que a loucura da opinião suplementa as leis. CAPELÃO. — A filha desonrada não encontra mais marido. ORU. — Desonrada! E por quê? CAPELÃO. — A mulher infiel é mais ou menos desprezada. ORU. — Desprezada! E por quê? CAPELÃO. — O jovem é chamado covarde sedutor. ORU. — Covarde! Sedutor! E por quê? CAPELÃO. — O pai, a mãe e a criança ficam desolados. O esposo volúvel é um libertino: o esposo traído partilha da vergonha de sua mulher. ORU. — Que monstruoso tecido de extravagâncias me expões aí! E ainda não dizes tudo: pois tão logo nos permitimos dispor à vontade das ideias de justiça e de propriedade; de tirar ou dar um caráter arbitrário às coisas; de unir às ações ou separar delas o bem e o mal, sem consultar mais do que o capricho, a gente se censura, se acusa, se suspeita, se tiraniza, é invejoso, é ciumento, se engana, se aflige, se esconde, se dissimula, se espia, se surpreende, briga, mente; as filhas iludem os pais; os maridos, as mulheres; as mulheres, os maridos; as moças, sim, não duvido, as moças sufocarão seus filhos; os pais desconfiados desdenharão e descuidarão dos seus; as mães separar-se-ão deles e abandoná-los-ão à mercê da sorte; e o crime e o deboche mostrar-se-ão sob todas as formas. Eu sei de tudo isso, como se tivesse vivido entre vós. Isso é assim, porque deve ser; e tua sociedade, cuja bela ordem vosso chefe vos gaba, não passará de uma corja de hipócritas, que calcam secretamente aos pés as leis; ou de infortunados, que são sozinhos os instrumentos dos próprios suplícios, em se lhes submetendo; ou de imbecis, em quem o preconceito asfixiou inteiramente a voz da natureza; ou de seres mal organizados, em que a natureza não reclama seus direitos. CAPELÃO. — Assim parece. Mas vós não vos casais então? ORU. — Nós nos casamos. CAPELÃO. — O que é vosso casamento? ORU. — O consentimento de habitar uma e mesma cabana e dormir no mesmo leito, enquanto nos sentimos bem com isso. CAPELÃO. — E quando vos sentis mal? ORU. — Nós nos separamos. CAPELÃO. — O que sucede a vossos filhos? ORU. — Oh! Estrangeiro! Tua última pergunta acaba de me desvendar a profunda miséria de teu país. Sabe, meu amigo, que aqui o nascimento de uma criança é sempre uma felicidade, e sua morte um motivo de pesar e de lágrimas. Uma criança é um bem precioso, porque deve tornar-se um homem; por isso, dedicamos-lhe um desvelo inteiramente diverso ao das nossas plantas e dos nossos animais. Uma criança que nasce ocasiona alegria doméstica e pública: é um acréscimo de fortuna para a cabana e de força para a nação; são braços e mãos a mais no Taiti; vemos nela um agricultor, um pescador, um caçador, um soldado, um esposo e um pai. Retornando da cabana do marido à dos pais, a mulher leva consigo os filhos que trouxera como dote: partilham-se os nascidos durante a coabitação; e compensam-se tanto quanto possível, os machos pelas fêmeas, de modo que resta a cada um número quase igual de moças e rapazes. CAPELÃO. — Mas as crianças ficam muito tempo sob encargo antes de prestar serviço. ORU. — Destinamos à sua manutenção e à subsistência dos velhos uma sexta parte de todos os frutos do país; esse tributo os segue em toda parte. Assim vês que, quanto mais numerosa a família do taitiano, mais rica ela é. CAPELÃO. — Uma sexta parte! ORU. — Sim; é um meio seguro de encorajar a população, e interessar no respeito à velhice e à conservação dos filhos. CAPELÃO. — Vossos esposos não se censuram às vezes? ORU. — Muito frequentemente; entretanto a duração mais curta de um casamento é de uma lua a outra. CAPELÃO. — A menos que a mulher esteja grávida; então a coabitação é ao menos de nove meses? ORU. — Estás enganado; a paternidade, como o tributo, segue a criança por toda parte. CAPELÃO. — Tu me falaste de crianças que a mulher traz como dote ao marido. ORU. — Certamente. Eis minha filha mais velha que é mãe de três filhos; eles se desenvolvem; são sadios; são belos; prometem ser fortes: quando lhe der na fantasia de casar-se, ela os levará consigo; são dela: seu marido os receberá com alegria, e a mulher lhe seria apenas mais agradável, se estivesse grávida de um quarto filho. CAPELÃO. — Filho dele? ORU. — Dele, ou de outro. Quanto mais crianças nossas filhas têm, mais procuradas são; quanto mais vigorosos e fortes são os nossos rapazes, mais ricos são: por isso, assim como ficamos atentos para preservar as moças das aproximações do homem e os rapazes do comércio da mulher, antes da idade da fecundidade, do mesmo modo os exortamos a produzir, quando os rapazes são púberes e as filhas núbeis. Não podes acreditar na importância do serviço que terás prestado à minha filha Thia, se lhe engendraste uma criança. Sua mãe não mais lhe dirá a cada lua: “Mas Thia, o que estás pensando? não ficas grávida; tens dezenove anos; já deverias ter dois filhos e não tens nenhum. Quem se encarregará de ti? Se perdes assim teus jovens anos, que farás na velhice? Thia, deves ter algum defeito que afasta de ti os homens. Corrige-te, minha filha: em tua idade, eu já era três vezes mãe”. CAPELÃO. — Que precauções tomais para conservar vossas filhas e vossos rapazes adolescentes? ORU. — Este é o principal objeto da educação doméstica e o ponto mais importante dos costumes públicos. Nossos rapazes, até a idade de vinte e dois anos, dois ou três além da puberdade, permanecem cobertos de uma longa túnica, e com os rins cingidos por uma pequena cadeia. Antes de se tornarem núbeis, nossas filhas não ousariam sair sem um véu branco. Tirar a cadeia, levantar o véu, são faltas que raramente cometem, porque lhes ensinamos desde cedo as suas deploráveis consequências. Mas, no momento em que o macho adquiriu toda sua força, em que os sintomas viris apresentam continuidade e em que a efusão frequente e a qualidade do liquido seminal nos tranquilizam; no momento em que a jovem murcha, se entedia, sendo de maturidade apta a conceber desejos, a inspirá-los e a satisfazê-los com utilidade, o pai desprende a cadeia do filho e corta-lhe a unha do dedo médio da mão direita. A mãe levanta o véu da filha. Um pode solicitar uma mulher e ser por ela solicitado; outra, passear publicamente com o rosto descoberto e o colo nu, aceitar ou recusar as carícias de um homem. Indicam-se apenas, de antemão, ao rapaz as moças, e à moça, os rapazes, que devem preferir. E uma grande festa o dia da emancipação de uma moça ou de um rapaz. Se é moça, na véspera, os rapazes se reúnem em torno da cabana, e o ar ressoa a noite toda com o canto das vozes e com o som dos instrumentos. De dia, ela é conduzida pelo pai e pela mãe a um recinto, onde se dança e onde se faz exercício de salto, de luta e de corrida. Exibe-se o homem nu diante dela sob todas as faces e em todas as atitudes. Se se trata de rapaz, são as moças que fazem em sua presença as honras da festa e expõem a seus olhares a mulher nua, sem reserva e sem segredo. O resto da cerimônia termina num leito de folhas, como viste à tua descida entre nós. Ao cair do dia, a moça regressa à cabana dos pais, ou passa à cabana de quem escolheu e lá permanece tanto quanto lhe apraz. CAPELÃO. — Assim, essa festa é ou não é um dia de casamento? ORU. — Tu o disseste... A. — O que vejo ali, à margem? B. — É uma nota, onde o bom capelão diz que os preceitos dos pais sobre a escolha dos rapazes e das moças eram cheios de bom senso e de observações muito finas e muito úteis; mas que suprimiu tal catecismo; que se afiguraria, a pessoas tão corrompidas e tão superficiais como nós, de uma licença imperdoável; acrescentando todavia que não foi sem pesar que cortara pormenores em que se poderia ver, primeiramente, até onde uma nação, que se ocupa incessantemente de um objeto importante, pode ser conduzida em suas pesquisas, sem os préstimos da física e da anatomia; em segundo lugar, a diferença das ideias sobre a beleza em uma região onde as formas são referidas ao prazer de um momento, e em um povo onde são apreciadas segundo uma utilidade mais constante. Lá, para ser bela, exige-se uma tez brilhante, uma grande fronte, grandes olhos, traços finos e delicados, um talhe ligeiro, boca pequena, mãos pequenas, pé pequeno... Aqui, quase nenhum desses elementos entra no cálculo. A mulher sobre a qual os olhares se fixam e que o desejo persegue é a que promete muitos filhos (a mulher do Cardeal de Ossat,) e que os promete ativos, inteligentes, corajosos, sadios e robustos. Não há quase nada em comum entre a Vênus de Atenas e a do Taiti; uma é Vênus galante e outra é Vênus fecunda. Uma taitiana dizia um dia com desprezo a outra mulher do país: “Tu és bela, mas geras crianças feias; eu sou feia mas gero belas crianças, e é a mim que os homens preferem”. Após essa nota do capelão, Oru continua. A. — Antes que ele retome seu discurso, tenho um pedido a fazer-vos, é o de me lembrar uma aventura ocorrida na Nova Inglaterra. B. — Ei-la. Uma jovem, Miss Polly Baker, engravidou pela quinta vez e foi trazida perante o tribunal de justiça de Connecticut, perto de Boston. A lei condena todas as pessoas do sexo, que devam o título de mãe apenas à libertinagem, a uma multa, ou uma punição corporal quando não podem pagar a multa. Miss Polly, entrando na sala onde os juízes estavam reunidos, dirigiu-lhes o seguinte discurso: “Permiti, senhores, que eu vos dirija algumas palavras. Sou uma desgraçada e pobre moça, não tenho meios de pagar advogados para que tomem minha defesa, e eu não vos reterei por muito tempo. Não pretendo que, na sentença que ides pronunciar, vós vos afasteis da lei; o que ouso esperar é que vos digneis a implorar para mim as bondades do governo e obter que me dispense da multa. É a quinta vez que compareço perante vós por causa da mesma questão; duas vezes paguei multas onerosas e duas vezes sofri punição pública e vergonhosa porque não me encontrava em condição de pagar. Isso pode estar conforme à lei, não o contesto absolutamente; mas há, às vezes, leis injustas, e elas são ab-rogadas; há também outras demasiado severas, e o poder legislador pode dispensar de sua execução. Ouso dizer que aquela que me condena é ao mesmo tempo injusta em si mesma e demasiado severa para comigo. Nunca ofendi ninguém no lugar onde vivo, e desafio meu inimigos, se é que tenho alguns, a provar que fiz o menor mal a um homem, a uma mulher, a uma criança. Permiti que eu esqueça por um momento que a lei existe e neste caso não concebo qual possa ser meu crime; pus cinco belas crianças no mundo, com o perigo de minha vida, eu as nutri com meu leite, eu as sustentei com meu trabalho; e teria feito mais por elas, se não tivesse pago multas que me tiraram os meios de fazê-lo. Constitui um crime aumentar os súditos de Sua Majestade em um país novo que carece de habitantes? Não roubei nenhum marido à mulher, nem desviei nenhum moço; jamais fui acusada desses procedimentos culpáveis, e se alguém se queixa de mim, é talvez apenas o ministro a quem não paguei direitos de casamento. Mas é minha culpa? Eu invoco vosso testemunho, senhores; vós me supondes certamente com bastante bom senso para estardes persuadidos de que preferiria a honrada condição de esposa à vergonhosa condição em que vivi até agora. Sempre desejei e desejo ainda me casar, e não temo de modo algum dizer que eu teria a boa conduta, a indústria e a economia convenientes a uma esposa, assim como tenho a sua fecundidade. Desafio quem quer que seja a dizer que me recusei a aceitar essa condição. Dei meu consentimento à primeira e única proposição que me foi feita; eu era virgem ainda; tive a simplicidade de confiar minha honra a um homem que não tinha honra alguma; ele me fez meu primeiro filho e me abandonou. Esse homem, todos vós o conheceis: é atualmente magistrado como vós e senta-se ao vosso lado; eu esperava que aparecesse hoje no tribunal e interessasse vossa piedade em meu favor, em favor de uma infeliz que só o é por causa dele; então eu seria incapaz de expô-lo ao rubor da vergonha, lembrando o que se passou entre nós. Estou errada em me queixar hoje da injustiça das leis? A primeira causa de meus extravios, meu sedutor, foi elevado ao poder e às honras pelo mesmo governo que puniu minhas desgraças com o açoite e com a infâmia. Responder-me-ão que transgredi os preceitos da religião; se minha ofensa é contra Deus, deixai-lhe o cuidado de me punir; vós já me excluístes da comunhão da Igreja, isso não basta? Por que, ao suplício do inferno, que acreditais me esperar no outro mundo, juntais o das multas e do açoite? Perdoai, senhores, tais reflexões; não sou teóloga, mas custa a crer que seja um grande crime meu o fato de ter dado à luz belas crianças que Deus dotou de almas imortais e que o adoram. Se fazeis leis que mudam a natureza das ações e as tornam crimes, fazei-as contra os celibatários cujo número aumenta todos os dias, que levam a sedução e o opróbrio às famílias, que enganam as donzelas como eu o fui, e que as forçam a viver no estado vergonhoso em que eu vivo, no meio de uma sociedade que as repele e as despreza. São eles que perturbam a tranquilidade pública; eis crimes que merecem, mais do que o meu, a animadversão das leis. Esse singular discurso produziu o efeito que Miss Baker esperava; seus juízes remiram-lhe a multa e a pena que a substituía. Seu sedutor, instruído do que se passara, sentiu remorsos de sua primeira conduta; quis repará-la, dois dias depois desposou Miss Baker, convertendo em mulher honesta aquela que cinco anos antes convertera em rapariga pública. A. — E não se trata de um conto de nossa invenção? B. — Não. A. — Estou satisfeito. B. — Não sei se o Abade Raynal narra o fato e o discurso em sua História do Comércio das Duas Índias. A. — Obra excelente e com um tom de tal modo diferente das anteriores que se suspeitou o abade de ter empregado nela mãos alheias. B. — É uma injustiça. A. — Ou uma maldade. Desmancham o louro que cingiu a cabeça de um grande homem e o desmancham tão bem que não lhe resta senão uma folha. B. — Mas o tempo reúne as folhas esparsas e refaz a coroa. A. — Mas o homem está morto; e sofreu com a injúria que recebeu de seus contemporâneos; e é insensível à reparação que obtém da posteridade. IV Continuação do Colóquio do Capelão com Oru ORU. — Como é feliz o momento, para uma jovem e para seus pais, em que sua gravidez é constatada! Ela se ergue; ela acorre; ela atira os braços em torno do pescoço de sua mãe e de seu pai; é com transportes de mútua alegria que ela lhes anuncia e que eles ficam sabendo do acontecimento. “Mamãe! Papai! Abraçai-me; estou grávida! — É realmente verdade? — Verdade mesmo. — E quem é o pai? — É fulano...” CAPELÃO. — Como sabe ela o nome do pai da criança? ORU. — Por que há de ignorá-lo? Acontece à duração de nossos amores o mesmo que à de nossos casamentos; é ao menos de uma lua à lua seguinte. CAPELÃO. — E essa regra é escrupulosamente observada? ORU. — Tu próprio vais julgar. Primeiro, o intervalo entre duas luas não é longo; mas quando dois pais têm bem fundada pretensão à formação de uma criança, esta não mais pertence à mãe. CAPELÃO. — A quem pertence então? ORU. — Àquele, dentre os dois, a quem lhe apraz dá-la; é todo o seu privilégio: e sendo uma criança por si mesma objeto de interesse e riqueza, compreendes que, entre nós, os libertinos sejam raros, e que os jovens rapazes se afastam deles. CAPELÃO. — Também tendes, pois, vossos libertinos? Sinto-me à vontade. ORU. — Temos mesmo mais do que uma espécie: mas tu me desvias de meu tema. Quando uma de nossas filhas está grávida, se o pai da criança é jovem e belo, bem feito, bravo, inteligente e laborioso, a esperança de que a criança herdará as virtudes do pai renova a alegria. Nossa menina só tem vergonha da má escolha. Deves conceber que preço atribuímos à saúde, à beleza, à força, à indústria, à coragem; deves conceber como, sem que nos imiscuamos, as prerrogativas do sangue devem eternizar-se entre nós. Tu, que percorreste diversas regiões, dize-me se notaste em alguma tantos belos homens e belas mulheres como no Taiti! Contempla-me: como é que tu me achas? Pois bem! Há dez mil homens aqui maiores e tão robustos; mas nenhum mais bravo do que eu; por isso as mães me designam muitas vezes às suas filhas. CAPELÃO. — Mas, de todas essas crianças que podes ter gerado fora de tua cabana, quantas te cabem? ORU. — A quarta, macho ou fêmea. Estabeleceu-se entre nós uma circulação de homens, de mulheres e de crianças, ou de braços de toda idade e de toda função, que é de uma importância muito superior à de vossos gêneros alimentícios, que não passam de produtos destes. CAPELÃO. — Compreendo. O que são esses véus negros que deparei por vezes? ORU. — O signo da esterilidade, vício de nascença, ou consequência da idade avançada. Aquela que larga esse véu e se mistura com os homens é uma libertina, aquele que levanta o véu e se aproxima da mulher estéril é um libertino. CAPELÃO. — E os véus cinzentos? ORU. — O signo da doença periódica. Aquela que larga esse véu e se mistura com os homens é uma libertina; aquele que o levanta e se aproxima da mulher doente é um libertino. CAPELÃO. — Tendes castigos para semelhante libertinagem? ORU. — Nenhum outro salvo a censura. CAPELÃO. — O pai pode dormir com a filha, a mãe com o filho, o irmão com a irmã, o marido com a mulher de outro? ORU. — Por que não? CAPELÃO. — A fornicação ainda passa; mas o incesto, mas o adultério! ORU. — O que queres dizer com as palavras, fornicação, incesto e adultério? CAPELÃO. — São os crimes, crimes menores, por um dos quais se queima em meu país. ORU. — Que se queime ou que não se queime em teu país, pouco me importa. Mas tu não acusarás os costumes da Europa pelos do Taiti, nem, por conseguinte, os costumes do Taiti pelos de teu país: precisamos de uma regra mais segura; e qual será a regra? Conheces outra além do bem geral e da utilidade particular? Agora, dize-me o que teu crime de incesto tem de contrário a esses dois fins de nossas ações? Tu te enganas, meu amigo, se acreditas que uma lei uma vez publicada, uma palavra ignominiosa inventada, um suplício decretado, tudo está dito. Responde-me, pois, o que entendes por incesto? CAPELÃO. — Mas um incesto... ORU. — Um incesto?... Há muito tempo que teu grande obreiro sem cabeça, sem mãos e sem instrumentos fez o mundo? CAPELÃO. — Não. ORU. — Criou toda a espécie humana ao mesmo tempo? CAPELÃO. — Não. Criou somente um homem e uma mulher. ORU. — Tiveram eles filhos? CAPELÃO. — Certamente. ORU. — Suponha que esses dois primeiros pais tivessem apenas filhas, e que a mãe houvesse morrido antes; ou que tivessem apenas rapazes, e que a mulher houvesse perdido o marido. CAPELÃO. — Tu me confundes; mas por mais que digas, o incesto é um crime abominável, e falemos de outra coisa. ORU. — Isso te apraz dizer; eu não me calo, de minha parte, enquanto não me disseres o que é o abominável crime do incesto. CAPELÃO. — Pois bem! Eu te concedo que talvez o incesto não fira em nada a natureza; mas não basta que ameace a constituição política? O que seria a segurança de um chefe e a tranquilidade de um Estado, se toda uma nação composta de vários milhões de homens fosse reunida em torno de uns cinquenta pais de família? ORU. — O pior que pode acontecer é que, onde há somente uma grande sociedade, haveria cinquenta pequenas, mais felicidade e um crime a menos. CAPELÃO. — Creio entretanto que, mesmo aqui, um filho raramente dorme com a mãe. ORU. — A menos que não tenha muito respeito por ela, e sinta uma ternura que o leve a esquecer a disparidade de idade, e a preferir a mulher de quarenta anos à moça de dezenove. CAPELÃO. — E o comércio dos pais com as filhas? ORU. — Tampouco é mais frequente, a menos que a filha seja feia e pouco procurada. Se o pai a ama, dedica-se a preparar-lhe o dote em crianças. CAPELÃO. — Isso me faz imaginar que a sorte das mulheres que a natureza desgraçou não deve ser feliz no Taiti. ORU. — Isso me prova que não nutres elevada opinião quanto à generosidade de nossos jovens. CAPELÃO. — Quanto às uniões de irmãos e irmãs, não duvido que sejam muito comuns. ORU. — E muito aprovadas. CAPELÃO. — Se bem te entendo, esta paixão, que produz tantos crimes e males em nossos países, seria aqui inteiramente inocente. ORU. — Estrangeiro! Careces de julgamento e de memória: de julgamento, pois, em toda parte onde há proibição, é necessário que nos sintamos tentados a praticar a coisa proibida e que a pratiquemos; de memória, porquanto não te lembras mais do que te disse. Temos velhas dissolutas, que saem à noite sem o véu negro, e recebem homens, quando nada pode resultar de seu contato; caso sejam reconhecidas ou surpreendidas, o exílio para o norte da ilha, ou a escravidão, é seu castigo; raparigas precoces, que levantam o véu branco sem o conhecimento dos pais (e reservamos para elas um lugar fechado na cabana); jovens, que depõem a cadeia antes do tempo prescrito pela natureza e pela lei (e repreendemos por isso seus pais); mulheres a quem o tempo da gravidez parece longo; mulheres e moças pouco escrupulosas na guarda do véu cinzento; mas, na realidade, não atribuímos grande importância a todas essas faltas; e tu não poderias acreditar o quanto a ideia de riqueza particular ou pública, unida em nossas cabeças à ideia de população, depura nossos costumes nesse ponto. CAPELÃO. — A paixão de dois homens pela mesma mulher ou o amor de duas mulheres ou de duas moças pelo mesmo homem não ocasionam quaisquer desordens? ORU. — Não vi ainda quatro exemplos disso: a escolha da mulher ou a do homem encerra tudo. A violência do homem seria falta grave; mas é preciso uma queixa pública, e é quase inaudito que uma moça ou mulher se tenham queixado. A única coisa que notei é que nossas mulheres sentem menos piedade pelos homens feios, que nossos moços a sentem menos pelas mulheres desgraciosas; e não estamos aborrecidos por isso. CAPELÃO. — Não conheceis o ciúme, pelo que vejo; mas a ternura marital, o amor maternal, estes dois sentimentos tão poderosos e tão doces, se não são estranhos aqui, devem ser bastante fracos. ORU. — Nós os compensamos com outro que é muito mais geral, enérgico e durável, o interesse. Põe a mão na consciência; deixa de lado essa fanfarronada de virtude, que está incessantemente nos lábios de teus camaradas, e que não reside no fundos de seus corações. Dize-me se, em qualquer país que seja, existe um pai que, não fosse a vergonha que o retém, não preferisse perder a filha, ou um marido que não preferisse perder a mulher a perder a fortuna e a abastança. Fica certo de que em toda parte onde o homem estiver interessado na conservação de seu semelhante assim como em seu leito, em sua saúde, em seu repouso, em sua cabana, em seus frutos, em seus campos, fará por ele tudo o que lhe for possível fazer. É aqui que o pranto embebe o parto de uma criança que sofre; é aqui que as mães são cuidadas na doença; é aqui que se preza a mulher fecunda, a filha núbil, o rapaz adolescente; é aqui que há quem se ocupe de sua instituição, porque conservá-los constitui sempre um acréscimo e perdê-los é sempre uma diminuição de fortuna. CAPELÃO. — Temo realmente que este selvagem tenha razão. O miserável camponês de nossos países, que esfalfa a mulher para aliviar o seu cavalo, que deixa perecer seu filho sem auxílio, e chama o médico para o seu boi. ORU. — Não compreendo bem o que acabas de dizer; mas, em teu regresso à tua pátria tão bem policiada, tenta introduzir nela esta mola; e então é que se sentirá lá o preço da criança que nasce, e a importância da população. Queres que eu te revele um segredo? Mas cuida para que não te escape. Vós chegastes: nós vos abandonamos nossas mulheres e nossas filhas, vós vos espantais com isso; vós nos testemunhais por isso uma gratidão que nos faz rir; vós nos agradeceis, quando nós assentamos sobre ti e sobre teus companheiros a mais forte de todas as imposições. Nós não te pedimos nenhum dinheiro; não nos jogamos sobre tuas mercadorias, desprezamos teus gêneros: mas nossas mulheres e nossas filhas vieram espremer o sangue de tuas veias. Quando te afastares, deixar-nos-ás teus filhos: este tributo cobrado sobre tua pessoa, sobre tua própria substância, em teu parecer, não vale tanto como um outro? E se queres apreciar o seu valor, imagina que tenhas duzentas léguas de costas a correr, e que, a cada vinte milhas, te aplicam semelhante contribuição. Temos terras imensas incultas, faltam-nos braços; e foi o que te pedimos. Temos calamidades epidêmicas a reparar; e nós te empregamos em reparar o vazio que elas abriram. Temos inimigos vizinhos a combater, uma necessidade de soldados; e nós te solicitamos que no-los gerasses: o número de nossas mulheres e de nossas moças é demasiado grande em relação ao dos homens; e nós te associamos à nossa tarefa. Entre essas mulheres e essas moças, há aquelas das quais não pudemos obter filhos; e são as que expusemos aos vossos primeiros abraços. Precisamos pagar um foro em homens a um vizinho opressor; tu e teus camaradas é que no-lo custearão; e dentro de cinco ou seis anos, enviar-lhe-emos vossos filhos, se valerem menos do que os nossos. Mais robustos, mais sãos que vós, nós nos apercebemos de que nos superais em inteligência e, imediatamente, destinamos algumas de nossas mulheres e nossas moças mais belas a fim de recolher a semente de uma raça melhor que a nossa. É um ensaio que tentamos, e que poderá dar certo. Tiramos de ti e dos teus o único proveito que podíamos tirar: acredita-me que, por mais selvagens que sejamos, sabemos também calcular. Vai aonde quiseres; e encontrarás sempre o homem tão esperto quanto tu. Ele não te dará jamais exceto o que não lhe serve para nada, e te pedirá sempre o que lhe é útil. Se te apresentar um pedaço de ouro por um pedaço de ferro, é que não faz nenhum caso do ouro, e que preza o ferro. Mas dize-me por que não estás vestido como os outros? Que significa esse longo casaco que te envolve da cabeça aos pés, e esse saco pontudo que deixas cair sobre tuas espáduas, ou que ergues sobre tuas orelhas? CAPELÃO. — É que, tal como me vês, eu ingressei numa sociedade de homens que se chamam, em meu país, monges. O mais sagrado de seus votos é o de não se aproximar de nenhuma mulher, e não fazer filhos. ORU. — O que fazes, então? CAPELÃO. — Nada. ORU. — E teu magistrado admite essa espécie de preguiça, a pior de todas? CAPELÃO. — Faz mais do que isso; ele a respeita e a faz respeitar. ORU. — Meu primeiro pensamento era que a natureza, algum acidente, ou uma arte cruel te privaram da faculdade de produzir teus semelhantes; e que, por piedade, preferiu-se deixar-te viver a matar-te. Mas, monge, minha filha me disse que és homem, e homem tão robusto quanto um taitiano, e que ela esperava que tuas carícias reiteradas não seriam infrutuosas. Só agora compreendi por que bradaste ontem à noite: “Mas minha religião! Mas minha condição!” Poderias informar-me do motivo do favor e do respeito que os magistrados te conferem? CAPELÃO. — Eu o ignoro. ORU. — Sabes ao menos por qual razão, sendo homem, te condenaste livremente a não sê-lo? CAPELÃO. — Seria muito comprido e muito difícil explicar-te. ORU. — E esse voto de esterilidade, o monge é-lhe realmente fiel? CAPELÃO. — Não. ORU. — Eu estava certo disso. Tendes também monges mulheres? CAPELÃO. — Sim. ORU. — Tão recatadas como os monges homens? CAPELÃO. — Mais enclausuradas, elas secam de dor, perecem de tédio. ORU. — E a injúria feita à natureza é vingada. Oh! Miserável país! Se tudo aí é ordenado como o que me contaste, sois mais bárbaros que nós. O bom capelão relata que passou o resto do dia percorrendo a ilha, visitando as cabanas, e que à noite, depois de cear, tendo o pai e a mãe lhe suplicado que dormisse com a segunda de suas filhas, Palli se apresentou no mesmo déshabillé que Thia, e que ele gritava muitas vezes durante a noite: “Mas minha religião!, mas minha condição!”, que na terceira noite foi agitado pelos mesmos remorsos com Asto, a mais velha, e que a quarta noite ele a concedeu por honestidade à mulher de seu anfitrião. V Continuação do Diálogo A. — Considero esse capelão polido. B. — E eu, muito mais os costumes dos taitianos, e o discurso de Oru. A. — Embora um pouco modelado à europeia. B. — Não duvido. — Aqui o bom capelão se queixa da brevidade de sua estada no Taiti, e da dificuldade de melhor conhecer os usos de um povo bastante sábio para se deter por si mesmo na mediocridade, ou bastante feliz para habitar um clima cuja fertilidade lhe assegurava um longo entorpecimento, bastante ativo para pôr-se ao abrigo das necessidades absolutas da vida e bastante indolente para que sua inocência, seu repouso e sua felicidade não tivessem nada a temer de um progresso demasiado rápido de suas luzes. Nada estava mal aí pela opinião e pela lei, exceto o que estava mal por sua natureza. Os trabalhos e as colheitas faziam-se em comum. A acepção do termo propriedade era muito estreita; a paixão do amor, reduzida a simples apetite físico, não produzia nenhuma de nossas desordens. A ilha inteira oferecia a imagem de uma só família numerosa, em que cada cabana representava os diversos apartamentos de uma de nossas grandes mansões. Acabou por protestar que esses taitianos hão de estar sempre presentes em sua memória, que ficara tentado a jogar as vestimentas no navio e a passar o resto de seus dias em meio deles, e que temia arrepender-se mais de uma vez por não tê-lo feito. A. — Apesar desse elogio, quais as consequências úteis a tirar dos costumes e das práticas estranhas de um povo não civilizado? B. — Vejo que tão logo algumas causas físicas, tais, por exemplo, como a necessidade de vencer a ingratidão do solo, puseram em jogo a sagacidade do homem, o referido impulso o conduziu muito além do alvo, e que, passado o termo da necessidade, somos levados ao oceano sem limites das fantasias, de onde não mais nos safamos. Possa o feliz taitiano deter-se onde se encontra! Vejo que, exceto nesse recanto apartado de nosso globo, nunca houve costumes, e jamais os haverá talvez em parte alguma. A. — O que entendeis pois por costumes? B. — Entendo por isso a submissão geral e a conduta consequente a leis boas ou más. Se as leis são boas, os costumes são bons; se as leis são más, os costumes são maus; se as leis, boas ou más, não são observadas, a pior condição de uma sociedade, não há quaisquer costumes. Ora, como quereis que leis sejam observadas quando elas se contradizem? Percorrei a história dos séculos e das nações, tanto antigas como modernas, e encontrareis os homens sujeitos a três códigos, o código da natureza, o código civil e o código religioso, e coagidos a infringir alternadamente os três códigos que nunca estiveram de acordo; daí decorre que não houve em nenhum país, como Oru adivinhou quanto ao nosso, nem homem, nem cidadão, nem religioso. A. — De onde concluireis, sem dúvida, que, baseando a moral nas relações eternas, que subsistem entre os homens, a lei religiosa torna-se talvez supérflua; e que a lei civil deve ser apenas a enunciação da lei da natureza. B. — E isso, sob pena de multiplicar os maus, em vez de produzir os bons. A. — Ou que, se julgamos necessário conservar as três, cumpre que as duas últimas não sejam mais do que cópias rigorosas da primeira, que trazemos gravada no fundo de nossos corações, e que será sempre a mais forte. B. — Isso não é exato. Não trazemos ao nascer senão uma similitude de organização com outros seres, as mesmas necessidades, a atração para os mesmos prazeres e uma aversão comum às mesmas penas: eis o que constitui o homem como ele é, e deve fundamentar a moral que lhe convém. A. — Isso não é fácil. B. — Isso é tão difícil, que eu acreditaria de bom grado o povo mais selvagem da Terra, o taitiano que se apegou escrupulosamente à lei da natureza, mais próximo de uma boa legislação do que qualquer povo civilizado. A. — Porque lhe é mais fácil desfazer-se de seu excesso de rusticidade, do que a nós voltar atrás e reformar nossos abusos. B. — Sobretudo os que se referem à união do homem com a mulher. A. — É possível. Mas comecemos pelo início. Interroguemos de boa fé a natureza, e vejamos sem parcialidade o que ela nos responderá sobre esse ponto. B. — Concordo. A. — O casamento está na natureza? B. — Se entendeis por casamento a preferência que uma fêmea concede a um macho sobre todos os outros machos, ou a que um macho dá a uma fêmea sobre todas as outras fêmeas; preferência mútua, em consequência da qual se forma uma união mais ou menos durável, que perpetua a espécie pela reprodução dos indivíduos, o casamento está na natureza. A. — Eu penso como vós; pois essa preferência se nota não só na espécie humana, mas ainda nas outras espécies de animais: testemunha-o o numeroso cortejo de machos que nos nossos campos perseguem a mesma fêmea na primavera, e dos quais um só obtém o título de marido. E a galanteria? B. — Se entendeis por galanteria a variedade de meios enérgicos ou delicados que a paixão inspira, seja ao macho, seja à fêmea, para lograr a preferência que conduz ao mais doce, ao mais importante e ao mais geral dos gozos, a galanteria está na natureza. A. — Penso como vós. Testemunha-o a diversidade de gentilezas praticadas pelo macho a fim de agradar à fêmea; pela fêmea, a fim de irritar a paixão e fixar o gosto do macho. E o coquetismo? B. — É uma mentira que consiste em simular uma paixão que não se sente, e em prometer uma preferência que não se concederá. O macho coquete zomba jogando com a fêmea; a fêmea coquete zomba jogando com o macho: jogo pérfido que conduz às vezes às catástrofes mais funestas; manejo ridículo, em que o enganador e o enganado são igualmente castigados pela perda dos instantes mais preciosos de sua vida. A. — Assim o coquetismo, segundo vós, não está na natureza? B. — Eu não afirmei isso. A. — E a constância? B. — Não vos direi coisa melhor do que aquilo que Oru disse ao capelão. Pobre vaidade de duas crianças que se ignoram a si mesmas, e que a embriaguez de um instante cega sobre a instabilidade de tudo o que as circunda. A. — E a fidelidade, esse fenômeno tão raro? B. — Quase sempre a obstinação e o suplício do homem de bem e da mulher honesta, em nossos países; quimera, no Taiti. A. — E o ciúme? B. — Paixão de um animal indigente e avaro que teme falhar; sentimento injusto do homem; consequência de nossos falsos costumes, e de um direito de propriedade estendido sobre um objeto sensível, pensante, com vontade e livre. A. — Assim, o ciúme, segundo vós, não está na natureza? B. — Não é o que digo. Vícios e virtudes, tudo está igualmente na natureza. A. — O ciúme é sombrio. B. — Como o tirano, porque tem consciência disso. A. — O pudor? B. — Mas vós me induzis assim a um curso de moral galante. O homem não quer ser nem perturbado, nem distraído em seus gozos. Os do amor são seguidos de uma fraqueza que o abandonaria à mercê de seu inimigo. Eis tudo o que pode haver de natural no pudor: o resto é da instituição. — O capelão nota, em um terceiro fragmento que eu não vos li, que o taitiano não cora dos movimentos involuntários que se excitam nele ao lado de sua mulher, em meio de suas filhas; e que elas são espectadoras do fato, às vezes emocionadas, nunca embaraçadas. Tão logo a mulher se tornou propriedade do homem, e o desfruto furtivo de uma rapariga foi considerado roubo, viu-se nascer os termos pudor, moderação, decência; virtudes e vícios imaginários; em uma palavra, quis-se erigir entre os dois sexos barreiras que os impedissem de se convidar reciprocamente à violação das leis que lhes foram impostas, e que produziram amiúde efeito contrário, aquecendo a imaginação e irritando os desejos. Quando vejo árvores plantadas em torno de nossos palácios, e uma vestimenta de pescoço que esconde e mostra parte do colo de uma mulher, parece-me reconhecer um retorno secreto à floresta, e um apelo à liberdade primeira de nossa antiga morada. O taitiano nos diria: Por que te escondes? De que tens vergonha? Praticas o mal, quando cedes ao impulso mais augusto da natureza? Homem, apresenta-te francamente, se agradas. Mulher, se este homem te convém, recebe-o com a mesma franqueza. A. — Não vos zangueis. Se principiamos como homens civilizados, é raro que não findemos como o taitiano. B. — Sim, mas essas preliminares de convenção consomem a metade da vida de um homem de gênio. A. — Convenho; mas que importa, se o impulso pernicioso do espírito humano, contra o qual bradastes há pouco, é com isso tanto mais arrefecido? Um filósofo de nossos dias, interrogado por que os homens faziam a corte às mulheres, e não as mulheres a corte aos homens, respondeu que era natural pedir a quem pode sempre conceder. B. — Semelhante razão me pareceu sempre mais engenhosa do que sólida. A natureza, indecente se quereis, impele indistintamente um sexo para o outro: e, em um estado do homem bruto e selvagem, que se concebe, mas que não existe talvez em nenhuma parte... A. — Nem mesmo no Taiti? B. — Não... o intervalo que separaria um homem de uma mulher seria transposto pelo mais apaixonado. Se eles se esperam, se eles se esquivam, se eles se perseguem, se eles se evitam, se eles se atacam, se eles se defendem, é que a paixão, desigual em seus progressos, não se lhes aplica com a mesma força. Daí sobrevém que a volúpia se espalha, se consome e se extingue de um lado, quando começa apenas a elevar-se do outro, e que ambos permanecem tristes. Eis a imagem fiel do que se passaria entre dois seres jovens, livres e perfeitamente inocentes. Mas quando a mulher conheceu, pela experiência ou pela educação, as consequências mais ou menos cruéis de um momento doce, seu coração estremece à aproximação do homem. O coração do homem não estremece absolutamente; seus sentidos comandam, e ele obedece. Os sentidos da mulher se explicam, e ela receia escutá-los. Incumbe ao homem distraí-la de seu receio, inebriá-la e seduzi-la. O homem conserva todo seu impulso natural para a mulher; o impulso natural da mulher para o homem, diria um geômetra, está na razão composta da direta da paixão e da inversa do temor; razão que se complica com uma multidão de elementos diversos em nossas sociedades; elementos que concorrem quase todos a aumentar a pusilanimidade de um sexo e a duração da perseguição do outro. É uma espécie de tática em que os recursos da defesa e os meios do ataque marcharam na mesma linha. Consagrou-se a resistência da mulher; atribuiu-se ignomínia à violência do homem; violência, que seria apenas ligeira injúria no Taiti, e que se torna crime em nossas cidades. A. — Mas como é que aconteceu que um ato cujo alvo é tão solene, e ao qual a natureza nos convida pela atração mais poderosa; que o maior, o mais doce e o mais inocente dos prazeres viesse a converter-se na fonte mais fecunda de nossa depravação e de nossos males? B. — Oru deu-o a entender dez vezes ao capelão: ouvi-o pois outra vez, e procurai retê-lo. É pela tirania do homem, que converteu a posse da mulher em propriedade. Pelos costumes e pelos usos, que sobrecarregaram de condições a união conjugai. Pelas leis civis, que sujeitaram o casamento a uma infinidade de formalidades. Pela natureza de nossa sociedade, onde a diversidade das fortunas e das posições instituiu conveniências e inconveniências. Por uma contradição estranha e comum a todas as sociedades subsistentes, onde o nascimento de uma criança, sempre encarada como um acréscimo de riqueza pela nação é muitas vezes e mais seguramente ainda um acréscimo de indigência na família. Pelas velhas concepções políticas dos soberanos, que referiram tudo aos próprios interesses e à própria segurança. Pelas instituições religiosas, que ligaram os nomes de vícios e virtudes a ações que não eram suscetíveis de qualquer moralidade. Como estamos longe da natureza e da felicidade! O império da natureza não pode ser destruído: em vão procurar-se-á contrariá-lo por meio de obstáculos, ele há de perdurar. Escrevei quanto vos aprouver sobre tábuas de bronze, para me servir das expressões do sábio Marco Aurélio, que a fricção voluptuosa de dois intestinos constitui crime, o coração do homem ficará comprimido entre a ameaça de vossa inscrição e a violência de seus pendores. Mas esse coração indócil não cessará de reclamar; e cem vezes, no curso da vida, vossos caracteres aterradores desaparecerão a nossos olhos. Gravai sobre o mármore: Tu não comerás nem do quebrantosso, nem do abutre; tu não conhecerás senão tua mulher; tu não serás marido de tua irmã; mas não esquecereis de aumentar os castigos à proporção da extravagância de vossas proibições; tornar-vos-eis ferozes, e não conseguireis de modo algum me desnaturar. A. — Como o código das nações seria curto, se o conformassem rigorosamente ao da natureza! Quantos erros e vícios poupados ao homem! B. — Quereis saber a história abreviada de quase toda nossa miséria? Ei-la. Existia um homem natural: introduziu-se dentro desse homem um homem artificial; e surgiu na caverna uma guerra civil que dura toda a vida. Ora o homem natural é o mais forte; ora é derrubado pelo homem moral e artificial; e, em um e outro caso, o triste monstro é dilacerado, atanazado, atormentado, estendido sobre a roda; sem cessar gemente, sem cessar infeliz, seja porque um falso entusiasmo de glória o arrebata e o embriaga, seja porque uma falsa ignomínia o curva e o abate. Entretanto, há circunstâncias extremas que reconduzem o homem à sua primitiva simplicidade. A. — A miséria e a moléstia, dois grandes exorcistas. B. — Vós os nomeastes. Com efeito, no que se convertem então todas essas virtudes convencionais? Na miséria, o homem não tem remorsos; e, na doença, a mulher não tem pudor. A. — Já notei isso. B. — Mas outro fenômeno que tampouco vos terá escapado é que o retorno do homem artificial e moral acompanha passo a passo os progressos do estado de doença para o estado de convalescença e do estado de convalescença para o estado de saúde. O momento em que a enfermidade cessa é aquele em que a guerra intestina recomeça, e quase sempre com desvantagem para o intruso. A. — É verdade. Eu mesmo verifiquei que o homem natural dispunha na convalescença de um vigor funesto ao homem artificial e moral. Mas, enfim, dizei-me, deve-se civilizar o homem, ou abandoná-lo a seu instinto? B. — Preciso responder-vos claramente? A. — Sem dúvida. B. — Se vos propondes a ser seu tirano, civilizai-o; envenenai-o o melhor possível com uma moral contrária à natureza; suscitai-lhe entraves de toda espécie; atrapalhai seus movimentos com mil obstáculos; atribuí-lhe fantasmas que o atemorizem; eternizai a guerra na caverna, e que o homem natural permaneça aí sempre encadeado debaixo dos pés do homem moral. Quereis vê-lo feliz e livre? Não vos imiscuais em seus assuntos: bastantes incidentes imprevistos hão de conduzi-lo à luz e à depravação; e ficai para sempre convencido que não é por vós, mas por eles, que esses sábios legisladores vos petrificaram e amaneiraram como vós o sois. Invoco o testemunho de todas as instituições políticas, civis e religiosas: examinai-as profundamente; e, ou me engano muito, ou vereis nelas a espécie humana dobrada de século em século ao jugo que um punhado de velhacos esperava impor-lhe. Desconfiai daquele que quer estabelecer a ordem. Ordenar é sempre tornar-se senhor dos outros, incomodando-os: e os calabreses são quase os únicos a quem a lisonja dos legisladores não logrou ainda iludir. A. — E essa anarquia da Calábria vos agrada? B. — Invoco sua experiência; e aposto que sua barbárie é menos viciosa que nossa urbanidade. Quantas pequenas malvadezas compensam aqui a atrocidade de alguns grandes crimes com os quais se fez tanto barulho! Considero os homens não civilizados uma multidão de molas dispersas e isoladas. Sem dúvida, se porventura algumas dessas molas viessem a chocar-se, uma ou outra ou ambas se quebrariam. Para obviar tal inconveniente, um indivíduo de sabedoria profunda e gênio sublime reuniu essas molas e compôs uma máquina, e nesta máquina, denominada sociedade, todas as molas foram tornadas atuantes, reagindo umas contra as outras, incessantemente fatigadas; e romperam-se mais em um dia, no estado de legislação, do que se romperam em um ano, na anarquia da natureza. Mas que estrépito! Que estrago! Que enorme destruição das pequenas molas, quando duas, três, quatro dessas enormes máquinas vieram a chocar-se com violência! A. — Assim preferiríeis o estado de natureza bruta e selvagem? B. — Por minha fé, não ousaria declará-lo: mas sei que se viu muitas vezes o homem das cidades despir-se e reentrar na floresta, e que nunca se viu o homem da floresta vestir-se e estabelecer-se na cidade. A. — Amiúde me ocorreu ao pensamento que a soma dos bens e dos males era variável para cada indivíduo; mas que a ventura ou a desventura de uma espécie animal qualquer contava um limite que ela não podia franquear, e que nossos esforços nos proporcionavam talvez, como resultado final, tanto inconveniente quanta vantagem: de modo que nos teríamos de fato atormentado para aumentar os dois membros de uma equação, entre os quais subsistia eterna e necessária igualdade. Entretanto, não duvido que a vida média do homem civilizado seja mais longa que a vida média do homem selvagem. B. — E se a duração de uma máquina não for uma justa medida de sua maior ou menor fadiga, o que concluireis daí? A. — Vejo que, a somar tudo, vós vos inclinaríeis a crer os homens tanto menos malvados e infelizes quanto mais civilizados? B. — Não percorri todas as regiões do universo; mas eu vos advirto somente que não encontrareis em parte alguma a condição de homem feliz exceto no Taiti, e em parte alguma suportável exceto num recanto da Europa. Lá, senhores desconfiados e ciosos de sua própria segurança incumbiram-se de mantê-lo no que chamais embrutecimento. A. — Em Veneza, talvez? B. — Por que não? Não negareis, pelo menos, que em parte alguma há menos luzes adquiridas, menos moral artificial, e menos vícios e virtudes quiméricas. A. — Eu não esperava o elogio desse governo. B. — Tampouco o faço. Indico-vos uma espécie de reparação da servidão, que todos os viajantes sentiram e preconizaram. A. — Pobre reparação! B. — Talvez. Os gregos proscreveram aquele que juntara uma corda à lira de Mercúrio. A. — E essa proibição é uma sátira sangrenta de seus primeiros legisladores. A primeira corda é que se devia cortar. B. — Vós me compreendestes. Em toda parte onde há uma lira, há cordas. Enquanto os apetites naturais forem sofisticados, contai com mulheres maldosas. A. — Como a Reymer. B. — Com homens atrozes. A. — Como Gardeil. B. — E com infortunados a propósito de nada. A. — Como Tanié, a Senhorita de La Chaux, o cavaleiro Desroches e a Senhora de La Carlière. É certo que se procurariam inutilmente no Taiti exemplos da depravação dos dois primeiros, e da desventura dos três últimos. Que faremos então? Voltaremos à natureza? Submeter-nos-emos às leis? B. — Falaremos contra as leis insensatas até que sejam reformadas; e, entrementes, nos submeteremos a elas. Aquele que, por sua autoridade privada, infringe uma lei má, autoriza a qualquer outro a infringir as boas. Há menos inconvenientes em ser louco entre loucos, do que ser sábio sozinho. Digamos a nós próprios, gritemos incessantemente que a vergonha, o castigo e a ignomínia foram atribuídos a ações inocentes em si mesmas; mas não as cometamos, porque a vergonha, o castigo e a ignomínia são os maiores de todos os males. Imitemos o bom capelão, monge em França, selvagem no Taiti. A. — Tomar o hábito do país aonde se vai, e guardar o do país onde se está. B. — E sobretudo ser honesto e sincero até o escrúpulo com os seres frágeis, que não podem fazer nossa felicidade, sem renunciar às vantagens mais preciosas de nossas sociedades. E esse nevoeiro espesso, onde foi parar? A. — Baixou. B. — E se quisermos poderemos, ainda, depois do almoço, sair ou ficar? A. — Isso dependerá, creio, um pouco mais das mulheres do que de nós. B. — Sempre as mulheres! Não se poderia dar um passo sem encontrá-las atravessadas no caminho. A. — E se lhes lêssemos o diálogo do capelão e de Oru? B. — A vosso ver, o que diriam elas? A. — Não tenho a menor ideia. B. — E o que pensariam elas? A. — Talvez o contrário do que diriam.