Denis Diderot - O Sonho de D’Alembert INTERLOCUTORES: D’Alembert, Senhorita de l’Espinasse, o médico Bordeu. BORDEU. — Então, o que há de novo? Ele está doente? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É o que receio; passou uma noite das mais agitadas. BORDEU. — Está acordado? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ainda não. BORDEU. — (Depois de se aproximar do leito de D’Alembert e lhe apalpar o pulso e a pele.) — Não há de ser nada. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Credes mesmo? BORDEU. — Respondo por isso. O pulso está bom... um pouco fraco... a pele umedecida... a respiração fácil. SENHORITA DE l’ESPINASSE.— Não é preciso lhe fazer nada? BORDEU. — Nada. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Tanto melhor, pois detesta os remédios. BORDEU. — E eu também. O que foi que ele comeu à ceia? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não quis provar nada. Não sei onde passou o serão, mas voltou preocupado. BORDEU. — Trata-se de um pequeno movimento febril sem nenhuma consequência. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Voltando para casa, pegou seu robe e seu barrete de dormir, e atirou-se na sua poltrona, onde adormeceu. BORDEU. — O sono é bom em toda parte, mas seria melhor na cama. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele se zangou com Antoine, que lhe dizia isso; foi preciso sacudi-lo cerca de meia hora para fazê-lo deitar-se. BORDEU. — É o que me sucede todos os dias, embora eu me sinta bem de saúde. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Quando deitado, em vez de repousar, como é de seu costume, pois dorme qual uma criança, começou a virar-se e a revirar-se, a esticar os braços, a afastar as cobertas e a falar alto. BORDEU. — E o que dizia? Coisas de geometria? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não; aquilo tinha toda a aparência de delírio. Era, ao começar, um galimatias de cordas vibrantes e fibras sensíveis. Aquilo me pareceu tão louco que, resolvida a não desampará-lo durante a noite e não sabendo o que fazer, aproximei uma mesinha ao pé de seu leito, e me pus a escrever tudo quanto pude apanhar de seu pesadelo. BORDEU. — Boa ideia, que é bem de vosso feitio. E pode-se ver isso? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sem dificuldade; mas quero morrer, se compreenderdes algo. BORDEU. — Talvez. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, estais pronto? BORDEU. — Sim. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Escutai. “Um ponto vivo... Não, estou enganado. Nada a princípio, depois um ponto vivo... A este ponto vivo é aplicado outro, depois outro; e por semelhantes aplicações sucessivas resulta um ser uno. pois eu sou realmente uno, eu não poderia duvidar disso... (Dizendo isso, ele se apalpava por toda parte.) Mas como se terá feito essa unidade? (Ah!, meu amigo, disse-lhe eu, que vos importa? Dormi... Ele se calou. Após um momento de silêncio, recomeçou como se dirigisse a palavra a alguém.) Olhai, filósofo, vejo realmente um agregado, um tecido de pequenos seres sensíveis, mas um animal!... um todo!, um sistema uno, com consciência de sua unidade! Não vejo, não, não o vejo...” Doutor, entendeis algo disso? BORDEU. — Às mil maravilhas! SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sois bem feliz... “Minha dificuldade provém talvez de uma falsa ideia.” BORDEU. — Sois vós quem estais falando? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não, é o sonhador. Vou prosseguir... Ele acrescentou, apostrofando-se a si mesmo: “Meu amigo D’Alembert, tomai cuidado, supondes apenas contiguidade onde há continuidade... Sim, ele é bastante esperto para me dizer isso... E a formação dessa continuidade? Ela quase não o atrapalhará... Como uma gota de mercúrio se funde em outra gota de mercúrio, uma molécula sensível e viva se funde em outra molécula sensível e viva... A princípio havia duas gotas, após o contato não há mais do que uma. Antes da assimilação, havia duas moléculas, após a assimilação não há mais do que uma... A sensibilidade torna-se comum à massa comum... Com efeito, por que não?... Eu distinguirei pelo pensamento, sobre o comprimento da fibra animal, tantas partes quantas me aprouver, mas a fibra será contínua, una... sim, una... O contato de duas moléculas homogêneas, perfeitamente homogêneas, forma a continuidade... e trata-se da união, da coesão, da combinação, da identidade mais completa que se possa imaginar... Sim, filósofo, se tais moléculas forem elementares e simples; mas se forem agregados, se foram compostos?... A combinação nem por isso deixará de efetuar-se, e, em consequência, a identidade, a continuidade... Além disso, a ação e a reação habituais... É certo que o contato de duas moléculas vivas é uma coisa completamente diferente do que a contiguidade de duas massas inertes... Adiante, adiante; poder-se-ia talvez chicanar-vos; mas não é isso que me preocupa; jamais procuro apenas criticar... Entretanto, voltemos ao assunto. Um fio de ouro muito puro, lembro-me disso, é uma das comparações que ele me apresentou; uma rede homogênea, entre cujas moléculas outras se interpõem e formam talvez outra rede homogênea, um tecido de matéria sensível, um contato que assimila, sensibilidade ativa aqui, inerte ali, que se comunica como o movimento, sem contar, como ele disse muito bem, que deve haver no caso diferença entre o contato de duas moléculas sensíveis e o contato de duas moléculas que não o sejam; e essa diferença, qual pode ser?... Uma ação e uma reação habituais... essa ação e reação com um caráter particular... Tudo concorre portanto para produzir uma espécie de unidade, que existe apenas no animal... Por Deus, se isso não é verdade, parece muito...” Estais rindo, doutor; encontrais algum sentido nisso? BORDEU. — Muito. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele não está portanto louco? BORDEU. — De maneira nenhuma. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Após tal preâmbulo, começou a gritar: “Senhorita de l’Espinasse! Senhorita de l’Espinasse! — O que desejais? — Já vistes alguma vez um enxame de abelhas escapar de sua colmeia?... O mundo, ou a massa geral da matéria, é a colmeia... Já as vistes formar na ponta do galho de uma árvore um longo cacho de pequenos animais alados, todos aferrados uns aos outros pelas patas? Esse cacho é um ser. um indivíduo, um animal qualquer... Mas tais cachos deveriam assemelhar-se todos... Sim, se ele não admitisse senão uma única matéria homogênea... Já os vistes? — Sim, já os vi. — Já os vistes? — Sim, meu amigo, eu vos disse que sim. — Se uma dessas abelhas resolve picar de uma maneira qualquer a abelha à qual está aterrada, o que julgais que acontece? Dizei, então... — Não sei de nada. — Dizei ainda assim... Vós ignorais, portanto, mas o filósofo não ignora. Se algum dia o virdes, e vós o vereis ou não o vereis, pois ele me prometeu, ele vos dirá que a outra picará a seguir, que no cacho à qual está aferrada, o que julgais que acontece? Dizei, então... — Não sei de nada. — Dizei ainda assim... Vós ignorais, portanto, mas o filósofo não ignora. Se algum dia o virdes, e vós o vereis ou não o vereis, pois ele me prometeu, ele vos dirá que aquela picará a seguinte, que no cacho todo se excitarão tantas sensações quantos animaizinhos há; que o conjunto se agitará, se mexerá, mudará de situação e de forma; que se elevarão ruídos, pequenos gritos, e que aquele que nunca tivesse visto um cacho assim dispor-se, sentir-se-ia tentado a tomá-lo por um animal de quinhentas ou seiscentas cabeças e de mil ou mil e duzentas asas...” E então, doutor? BORDEU. — E então sabei que esse sonho é muito belo, e que procedestes muito bem em escrevê-lo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Estais também sonhando? BORDEU. — Tão pouco que eu me comprometeria quase a dizer-vos a continuação. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eu vos desafio. BORDEU. — Vós me desafiais? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sim. BORDEU. — E se eu descobri-la? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Se a descobrirdes, prometo-vos... prometo-vos considerar-vos o maior louco existente no mundo. BORDEU. — Olhai para vosso papel e escutai-me: O homem que tomasse semelhante cacho por um animal enganar-se-ia; mas senhorita, presumo que ele continuou a dirigir-vos a palavra. Quereis que ele julgue mais sadiamente? Quereis transformar o cacho de abelhas em um só e único animal? Amolecei as patas pelas quais elas se seguram; de contíguas que eram, tornai-as contínuas. Entre o novo estado do cacho e o anterior, há certamente acentuada diferença; e qual há de ser essa diferença se não que agora ele é um todo, um animal uno, e que antes era apenas uma reunião de animais?... Todos os nossos órgãos... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Todos os nossos órgãos! BORDEU. — Para quem exerce a medicina e efetua algumas observações... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E depois? BORDEU. — E depois? Não passam de animais distintos que a lei da continuidade mantém numa simpatia, numa unidade, numa identidade gerais. BORDEU. — Duvidar-se-ia. É tudo? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Oh! Não, não chegastes ao fim. Após vosso despautério ou o dele, ele me disse: “Senhorita? — Meu amigo. — Aproximai-vos... mais... mais... Desejaria propor-vos uma coisa. — O que é? — Olhai esse cacho, ei-lo, vós o supondes realmente ali, ali; façamos uma experiência. — Qual? — Tomai vossa tesoura; ela corta bem? — Admiravelmente. — Aproximai-vos devagar, muito devagar, e separai-me essas abelhas, mas cuidai de não as dividir pela metade do corpo, cortai exatamente no lugar em que elas se assimilaram pelas patas. Não temais nada, haveis de feri-las um pouco, mas não haveis de matá-las... Muito bem, sois destra qual uma fada... Vede como saem voando cada uma de seu lado? Elas saem voando uma a uma, duas a duas, três a três. Quantas há! Se nem me compreendestes... vós me compreendestes bem? — Muito bem. — Suponde agora... suponde...” Por Deus, doutor, eu entendia tão pouco o que estava escrevendo; ele falava tão baixinho, essa passagem de minha anotação encontra-se tão borrada, que não consigo lê-la. BORDEU. — Eu a completarei, se quiserdes. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Se puderdes. BORDEU. — Nada mais fácil. Suponde essas abelhas tão pequenas, tão pequenas que sua organização escapasse sempre ao gume grosseiro de vossa tesoura: levaríeis a divisão tão longe quanto vos aprouvesse, sem matar nenhuma; e esse todo, formado de abelhas imperceptíveis, será um verdadeiro pólipo que só vos seria dado destruir esmagando-o. A diferença entre o cacho de abelhas contínuas e o cacho de abelhas contíguas é precisamente a que se estabelece entre animais ordinários, tais como nós, os peixes, e os vermes, as serpentes e os animais poliposos; notai que toda essa teoria sofre algumas modificações. (Neste ponto, a Senhorita de l’Espinasse se levanta subitamente e vai puxar o cordão da sineta.) Devagar, devagar, senhorita, senão ireis despertá-lo, e ele precisa de repouso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não pensei nisso, tão perplexa estou. (Para o criado que entra.) Quem de vós esteve em casa do doutor? O CRIADO. — Eu, senhorita. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Faz muito tempo? O CRIADO. — Não faz uma hora que voltei. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nada levastes para lá? O CRIADO. — Nada. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Papel nenhum? O CRIADO. — Nenhum. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Então está bem, ide... Estou pasmada. Escutai, doutor, suspeitei que um deles vos tivesse comunicado minhas garatujas. BORDEU. — Asseguro-vos que não houve nada disso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Agora que conheço vosso talento, vós me sereis de grande auxílio na sociedade. O pesadelo dele não ficou nisso. BORDEU. — Tanto melhor. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nada vedes aí de deplorável? BORDEU. — Absolutamente nada. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele prosseguiu... “Pois bem, filósofo, Concebeis portanto pólipos de toda espécie, inclusive pólipos humanos?... Mas a natureza não os oferece.” BORDEU. — Ele não sabia das duas meninas que estavam presas uma à outra pela cabeça, pelos ombros, pelas costas, pelas nádegas e pelas coxas, que viveram assim ligadas até a idade de vinte anos, e que morreram com um intervalo de alguns minutos. O que disse ele em seguida? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Desatinos que só se ouvem nos asilos de loucos. Disse: “Isso passou ou isso virá. Além do mais, quem sabe qual o estado das coisas nos outros planetas”? BORDEU. — Talvez não seja necessário ir tão longe. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — “Em Júpiter ou em Saturno, pólipos humanos! Os machos resolvendo-se em machos, as fêmeas em fêmeas, isso é engraçado...” (Aí, pôs-se a dar gargalhadas assustadoras.) “O homem resolvendo-se em uma infinidade de homens atômicos, que são encerrados entre folhas de papel como ovos de insetos, que tecem seus casulos, que permanecem certo tempo em crisálidas, que furam seus casulos e que escapam como borboletas, uma sociedade de homens formada, uma província inteira povoada com os restos de um só, isso é realmente agradável de imaginar...” (Depois as gargalhadas recomeçaram.) “Se o homem se resolve algures em uma infinidade de homens animálculos, deve haver aí menos repugnância em morrer; a perda de um homem é aí tão facilmente reparada, que deve causar pouco pesar.” BORDEU. — Esta extravagante suposição é quase a história real de todas as espécies de animais subsistentes e vindouras. Se o homem não se resolve em uma infinidade de homens, ele se resolve, pelo menos, em uma infinidade de animálculos, cujas metamorfoses e cuja organização futura e derradeira é impossível prever. Quem sabe se não é o viveiro de uma segunda geração de seres, separados desta por um intervalo incompreensível de séculos e desenvolvimentos sucessivos? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O que resmungais aí baixinho, doutor? BORDEU. — Nada, nada, estava sonhando por minha vez. Senhorita, continuai a ler. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — “Considerando bem as coisas, no entanto, prefiro nossa maneira de repovoar, acrescentou... Filósofo, vós que sabeis o que se passa ali ou alhures, dizei-me, a dissolução de diferentes partes não produz homens de diferentes caracteres? O cérebro, o coração, o peito, os pés, as mãos, os testículos... Oh! como isso simplifica a moral... Um homem nascido, uma mulher procedente...” (Doutor, permitireis que eu passe adiante...) “Um quarto quente, atapetado de pequenos cartuchos e sobre cada um dos cartuchos uma etiqueta: guerreiros, magistrados, filósofos, poetas, cartucho de cortesãs, cartucho de devassas, cartucho de reis.” BORDEU. — Isso é bem divertido e bem extravagante. É o que se chama sonhar, e uma visão que me conduz a alguns fenômenos bastante singulares. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — A seguir, pôs-se a resmungar não sei o que a respeito de grãos, de pedaços de carne submetidos à maceração na água, de diferentes raças de animais sucessivos, que via nascer e passar. Imitara com a mão direita o tubo de um microscópio, e com a esquerda, creio, o orifício de um vaso. Olhava o vaso através desse tubo, e dizia: “Que Voltaire graceje a respeito quanto quiser, mas o Anguillard tem razão; creio em meus olhos; eu os vejo: quantos há! como vão! como vêm! como se remexem!...” O vaso em que percebia tantas gerações momentâneas, ele o comparava ao universo; via em uma gota de água a história do mundo. Essa ideia parecia-lhe grande; afigurava-se-lhe inteiramente conforme à boa filosofia, que estuda os grandes corpos nos pequenos. Dizia: “Na gota de água de Needham, tudo se executa e se passa num piscar de olhos. No mundo, o mesmo fenômeno dura um pouco mais; mas o que é a nossa duração comparada à eternidade dos tempos? Menos que a gota que peguei com a ponta de uma agulha, comparada ao espaço ilimitado que me rodeia. Sequência indefinida de animálculos no átomo que fermenta, a mesma sequência indefinida de animálculos no outro átomo que se chama Terra. Quem conhece as raças de animais que nos precederam? Quem conhece as raças de animais que sucederão às nossas? Tudo muda, tudo passa, só o todo permanece. O mundo começa e acaba incessantemente, está a cada instante no início e no fim; nunca houve outro e nunca haverá outro. “Neste imenso oceano de matéria, não existe molécula que se assemelhe a outra molécula, molécula que se assemelhe a si própria por um instante: Rerum novus nascitur ordo, eis sua inscrição eterna....” Depois ajuntou, suspirando: “ó vaidade de nossos pensamentos! ó pobreza da glória e de nossos trabalhos! Ó miséria! Ó pequeneza de nossas concepções! Não há nada sólido exceto beber, comer, viver, amar e dormir... Senhorita de l’Espinasse, onde estais? — Aqui estou”. — Então seu rosto tomou cor. Quis apalpar-lhe o pulso, mas não sei onde escondeu a mão. Parecia experimentar uma convulsão. Sua boca entreabrira-se, sua respiração era apressada; soltou um profundo suspiro, depois um suspiro mais fraco e mais profundo ainda; virou a cabeça no travesseiro e adormeceu. Eu o observava com atenção, estava toda comovida sem saber por que, o coração me batia, e não era de medo. Ao cabo de alguns momentos, vi um ligeiro sorriso errar sobre seus lábios. Murmurava bem baixinho: “Em um planeta onde os homens se multiplicassem à maneira de peixes, onde a ova de um homem estivesse comprimida sobre a ova de uma mulher... Eu sentiria menos pesar... Cumpre não perder nada do que pode ter utilidade. Senhorita, se isso pudesse ser recolhido, encerrado num frasco e enviado de manhã cedo a Needham...” Doutor, e vós não denominais isso desatino? BORDEU. — Perto de vós, certamente. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Perto de mim, longe de mim, é a mesma coisa, e vós não sabeis o que estais dizendo. Eu esperava que o resto da noite fosse tranquilo. BORDEU. — Isso produz comumente semelhante efeito. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De modo algum; pelas duas horas da madrugada ele voltou à sua gota de água, que chamava um mi... cro... BORDEU. — Um microcosmo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É a palavra que usou. Admirava a sagacidade dos antigos filósofos. Dizia ou levava seu filósofo a dizer, não sei qual dos dois: “Se Epicuro, quando assegurava que a terra continha os germes de tudo, e que a espécie animal era produto da fermentação, se propusesse a mostrar uma imagem em ponto pequeno do que se fizera em ponto grande na origem dos tempos, o que iriam responder-lhe?... E vós tendes diante de vossos olhos tal imagem, e ela não vos ensina nada... Quem sabe se a fermentação e seus produtos se esgotaram? Quem sabe em que instante da sucessão dessas gerações animais nós nos encontramos? Quem sabe se esse bípede deformado, que mede apenas alguns pés de altura, que mesmo na vizinhança do polo se chama homem, e que não tardaria a perder esse nome deformando-se um pouco mais, não é a imagem de uma espécie que passa? Quem sabe se não acontece o mesmo com todas as espécies de animais? Quem sabe se tudo não tende a reduzir-se a um grande sedimento inerte e imóvel? Quem sabe qual será a duração dessa inércia? Quem sabe que raça nova pode resultar de novo de um conglomerado tão grande de pontos sensíveis e vivos? Por que não um só animal? O que era o elefante na sua origem? Talvez o animal enorme tal como ele nos parece, talvez um átomo, pois ambos são igualmente possíveis, não supondo senão o movimento e as propriedades diversas da matéria... O elefante, essa massa enorme, organizada, o produto súbito da fermentação! Por que não? A relação desse grande quadrúpede com sua matriz primeira é menor que a do vermezinho com a molécula de farinha que o produz; mas o vermezinho não passa de um vermezinho... Isso quer dizer que a pequenez que vos subtrai sua organização tira-lhe o maravilhoso... O prodígio é a vida, é a sensibilidade; e esse prodígio não é mais um... Depois que vi a matéria inerte passar ao estado sensível, nada mais deve me espantar. Que comparação de um pequeno número de elementos, postos em fermentação na concha de minha mão, com esse reservatório imenso de elementos diversos esparsos nas entranhas da terra, em sua superfície, no seio dos mares, na vaga dos ares!... Entretanto, visto que as mesmas causas subsistem, por que cessaram os efeitos? Por que não vemos mais o touro perfurar o solo com o chifre, apoiar as patas contra o solo e esforçar-se para desprender daí o corpo pesado?... Deixai passar a raça atual de animais subsistentes; deixai o grande sedimento inerte atuar alguns milhões de séculos. Talvez seja preciso, para renovar as espécies, dez vezes mais tempo do que é concedido à sua duração. Esperai, e não vos apresseis em pronunciar-vos sobre o grande trabalho da natureza. Tendes dois grandes fenômenos, a passagem do estado de inércia ao estado de sensibilidade, e as gerações espontâneas; que vos sejam suficientes: tirai deles justas consequências, e numa ordem de coisas onde não há grande nem pequeno, nem duradouro, nem passageiro absolutos, acautelai-vos contra o sofisma do efêmero...” Doutor, o que é o sofisma do efêmero? BORDEU. — É o de um ser passageiro que crê na imortalidade das coisas. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — A rosa de Fontenelle que dizia que ninguém, na memória de rosa, vira morrer um jardineiro? BORDEU. — Precisamente; isto é leve e profundo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Por que é que vossos filósofos não se exprimem com a mesma graça? Assim os entenderíamos. BORDEU. — Francamente, não sei se esse tom frívolo convém aos temas graves. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O que chamais vós de tema grave? BORDEU. — Ora, a sensibilidade geral, a formação do ser sensível, sua unidade, a origem dos animais, sua duração, e todas as questões relativas a isso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De minha parte, chamo isso de loucuras com as quais permito sonhar quando se dorme, mas com as quais um homem de bom senso acordado nunca se ocupará. BORDEU. — E por que assim, se vos apraz? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É que umas são tão claras que é inútil procurar a razão, outras tão obscuras que não se vê absolutamente nada, e todas são da mais perfeita inutilidade. BORDEU. — Julgais, senhorita, que seja indiferente negar ou admitir uma inteligência suprema? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não. BORDEU. — Julgais que se possa tomar posição sobre a inteligência suprema, sem saber o que se há de fazer com a matéria e suas propriedades, com a distinção das duas substâncias, com a natureza do homem e a produção dos animais? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não. BORDEU. — Tais questões não são portanto tão ociosas quanto pretendíeis. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas o que me adianta sua importância, se eu não poderia esclarecê-las? BORDEU. — E como podereis esclarecê-las, se não as examinais? Mas poderia eu perguntar-vos quais vos parecem tão claras que o seu exame se vos afigure supérfluo? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — As de minha unidade, de meu eu, por exemplo. Por Deus! parece-me que não é preciso tagarelar tanto para saber que eu sou eu, que sempre fui eu, e que jamais serei outra. BORDEU. — Sem dúvida o fato é claro, mas a razão do fato não o é de modo algum, sobretudo na hipótese daqueles que admitem apenas uma substância e que explicam a formação do homem ou do animal em geral pela sucessiva aposição de muitas moléculas sensíveis. Cada molécula sensível tinha seu eu antes da aplicação; mas como é que o perdeu, e como é que de todas essas perdas resulta a consciência de um todo? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Parece-me que basta o contato. É uma experiência que fiz centenas de vezes... Mas esperai... É preciso que eu vá verificar o que se passa entre aquelas cortinas... Ele dorme... Quando coloco a minha mão sobre a minha coxa, sei muito bem a princípio que minha mão não é minha coxa, mas algum tempo depois, quando o calor é igual em ambas, deixo de distingui-las; os limites das duas partes se confundem e elas constituem uma só coisa. BORDEU. — Sim, até que alguém pique uma ou outra; então a distinção renasce. Há portanto em vós algo que não ignora se é vossa mão ou vossa coxa que foi picada, e esse algo não é vosso pé, não é sequer vossa mão picada é ela que sofre, mas é outra coisa que o sabe e que não sofre. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas eu creio que é minha cabeça. BORDEU. — A vossa cabeça toda? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não, escutai, doutor, vou explicar-me por uma comparação, as comparações são quase toda a razão das mulheres e dos poetas. Imaginai uma aranha... D’ALEMBERT. — Quem está aí?... Sois vós, senhorita de l’Espinasse? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Quieto... Quieto... (A Senhorita de l’Espinasse e o doutor guardam silêncio por algum tempo, em seguida a Senhorita de l’Espinasse diz em voz baixa:) — Creio que adormeceu de novo. BORDEU. — Não, parece-me que ouço algo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Tendes razão, será que recomeçou a sonhar? BORDEU. — Ouçamos. D’ALEMBERT. — Por que sou assim? Foi preciso que eu fosse assim... Aqui, sim, mas alhures? No pólo? Mas sob a linha do equador? Mas em Saturno?... Se uma distância de algumas mil léguas muda minha espécie, o que não fará o intervalo de alguns milhares de diâmetros terrestres?... E se tudo é um fluxo geral, como o espetáculo do universo me mostra em toda parte, o que não produzirão aqui e alhures a duração e as vicissitudes de alguns milhões de séculos? Quem sabe o que é o ser pensante e sensível em Saturno?... Mas existem em Saturno sentimento e pensamento?... Por que não?... O ser sensível e pensante em Saturno teria mais sentido do que tenho?... Se for assim, ah! como é infeliz o saturnino!... Mais sentidos, mais necessidades. BORDEU. — Ele tem razão; os órgãos produzem as necessidades, e reciprocamente as necessidades produzem os órgãos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, delirais também? BORDEU. — Por que não? Vi dois cotos tornarem-se com o tempo dois braços. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mentis. BORDEU. — É verdade; mas, à falta de dois braços, que faltavam, vi duas omoplatas se alongarem, moverem-se em pinça e tornaram-se dois cotos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Que loucura! BORDEU. — É fato. Suponde uma longa série de gerações manetas, suponde esforços contínuos, e vereis os dois lados dessa pinça se estenderem, se estenderem cada vez mais, se cruzarem sobre as costas, voltarem para a frente, talvez se digitarem nas extremidades, e reconstituírem braços e mãos. A conformação original se altera ou se aperfeiçoa pela necessidade e pelas funções habituais. Andamos tão pouco, trabalhamos tão pouco e pensamos tanto, que não desespero que o homem acabe sendo apenas uma cabeça. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Uma cabeça! Uma cabeça! É muito pouco; espero que a galanteria desenfreada... Vós me suscitais ideias bem ridículas. BORDEU. — Quieta. D’ALEMBERT. — Sou portanto assim, porque foi preciso que eu fosse assim. Mudai o todo, vós me mudareis necessariamente; mas o todo muda sem cessar... O homem não é senão um efeito comum, o monstro apenas um efeito raro; ambos são igualmente naturais, igualmente necessários, e encontram-se igualmente na ordem universal e geral... E o que há de espantoso nisso?... Todos os seres circulam uns nos outros, por conseguinte todas as espécies... tudo está em um fluxo perpétuo... Todo animal é mais ou menos homem; todo mineral é mais ou menos planta; toda planta é mais ou menos animal. Não há nada de preciso na natureza... A fita do Padre Castel... Sim, Padre Castel, é vossa fita e é apenas isso. Toda coisa é mais ou menos uma coisa qualquer mais ou menos terra, mais ou menos água, mais ou menos ar, mais ou menos fogo; mais ou menos de um reino ou de outro... portanto, nada é da essência de um ser particular... Não, sem dúvida, posto que não há nenhuma qualidade de que algum ser não seja participante... e que é a relação mais ou menos grande dessa qualidade que nos leva a atribuí-la a um ser com exclusão de um outro... E vós falais de indivíduos, pobres filósofos! Deixai de lado vossos indivíduos; respondei-me. Há na natureza um átomo rigorosamente similar a outro átomo?... Não... Não convindes que tudo depende da natureza e que é impossível que haja um vazio na cadeia? O que pretendeis pois dizer com vossos indivíduos? Não os há, absolutamente, não os há... Existe apenas um único e grande indivíduo, é o todo. Neste todo, como numa máquina, num animal qualquer, há uma parte que chamareis assim ou de outro modo; mas quando concedeis o nome de indivíduo a essa parte do todo, é por um conceito tão falso quanto se, numa ave, atribuísseis o nome de indivíduo à asa, a uma pena da asa... E vós falais de essências, pobres filósofos! Deixai de lado vossas essências. Vede a massa geral, ou se, para abrangê-la, tendes imaginação demasiado estreita, vede vossa origem primeira e vosso fim derradeiro... Ó Arquitas! Vós que medistes o globo, o que sois? Um pouco de cinzas... O que é um ser?... A soma de certo número de tendências... Acaso posso ser outra coisa além de uma tendência?... Não, vou a um termo... E as espécies?... As espécies não passam de tendências com um termo comum que lhes é próprio... E a vida?... A vida, uma série de ações e reações. Vivo, ajo e reajo em massa... Morto, ajo e reajo em moléculas... Nunca morro, portanto?... Não, sem dúvida, não morro neste sentido, nem eu, nem quem quer que seja... Nascer, viver e passar é mudar de formas... E que importa uma forma ou outra? Cada forma tem a ventura e a desventura que lhe é peculiar. Desde o elefante até o pulgão... desde o pulgão até a molécula sensível e viva, a origem de tudo, não há um ponto da natureza inteira que não sofra ou que não goze. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele não diz mais nada. BORDEU. — Não; ele efetuou um excurso bastante belo. Eis bem alta filosofia; neste momento, apenas sistemática, creio que quanto mais os conhecimentos do homem progredirem, mais ela se comprovará. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E nós, onde estávamos? BORDEU. — Por minha fé, não me lembro mais; ele me recordou tantos fenômenos, enquanto eu o ouvia! SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Esperai, esperai... eu estava na minha aranha. BORDEU. — Sim, sim. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, aproximai-vos. Imaginai uma aranha no centro de sua teia. Abalai um fio, e vereis o animal alertado acudir. Pois bem! E se os fios que o inseto tira de seus intestinos, e aí os recolhe quando lhe apraz, fizessem parte sensível dele próprio?... BORDEU. — Eu vos entendo. Imaginais em vós, algures, em um recanto de vossa cabeça, aquele, por exemplo, que se chama as meninges, um ou vários pontos onde se relacionam todas as sensações excitadas ao longo dos fios. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É isso. BORDEU. — Vossa ideia não poderia ser mais justa; mas não vedes que é quase a mesma que a de certo cacho de abelhas? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ah! Isso é verdade; eu fazia prosa sem o saber. BORDEU. — E prosa da muito boa, como vereis. Quem conhece o homem apenas sob a forma em que ele se nos apresenta ao nascer, não tem a menor ideia dele. Sua cabeça, seus pés, suas mãos, todos seus membros, todas suas vísceras, todos seus órgãos, seu nariz, seus olhos, suas orelhas, seu coração, seus pulmões, seus intestinos, seus músculos, seus ossos, seus nervos, suas membranas são, a bem dizer, apenas os desenvolvimentos grosseiros de uma rede que se forma, cresce, se estende e lança uma multidão de fios imperceptíveis. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É a minha teia; e o ponto originário de todos esses fios é a minha aranha. BORDEU. — Muito bem. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Onde estão os fios? Onde está colocada a aranha. BORDEU. — Os fios estão em toda parte; não há ponto à superfície de vosso corpo ao qual não cheguem; e a aranha está aninhada em uma parte de vossa cabeça que eu vos nomeei, as meninges, à qual não se poderia quase tocar sem entorpecer toda a máquina. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas se um átomo faz oscilar um dos fios da teia da aranha, ela recebe o alarma, ela se inquieta, ela foge ou acorre. No centro, é instruída de tudo o que se passa em qualquer ponto que seja do imenso apartamento que atapetou. Por que é que eu não sei o que se passa no meu, isto é, o mundo, já que sou um novelo de pontos sensíveis, já que tudo me preme e eu premo tudo? BORDEU. — É que as impressões se debilitam devido à distância de onde partem. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Quando desferimos o mais ligeiro golpe na extremidade de uma longa viga, eu ouço a pancada, se meu ouvido está aplicado à outra extremidade. Tocasse esta viga com uma ponta a Terra e com a outra, Sírio, o mesmo efeito se produziria. Por que então, sendo tudo ligado, contíguo, isto é, sendo a viga existente e real, não ouço o que se passa no espaço imenso que me envolve, sobretudo se lhe presto ouvido? BORDEU. — E quem vos disse que não ouvis mais ou menos? Mas vem de tão longe, a impressão é tão fraca, tão cruzada no caminho; estais tão rodeada e ensurdecida por ruídos tão violentos e tão diversos; é que entre Saturno e vós só há corpos contíguos, ao passo que deveria haver continuidade. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É realmente pena. BORDEU. — É verdade, pois serieis Deus. Por vossa identidade com todos os seres da natureza, saberíeis tudo o que se faz; por vossa memória, saberíeis tudo que nela se fez. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E o que se fará? BORDEU. — Formaríeis sobre o futuro conjeturas verossímeis, porém sujeitas a erro. É precisamente como se procurásseis adivinhar o que vai se passar dentro de vós, na ponta de vosso pé ou de vossa mão. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E quem vos afirmou que esse mundo também não tem suas meninges, ou que em algum recanto do espaço não reside uma grande ou pequena aranha cujos fios se estendem a tudo? BORDEU. — Ninguém, e menos ainda que ela não existiu ou que não existirá. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Como essa espécie de Deus... BORDEU. — O único que se concebe... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Poderia ter existido, ou surgir e passar? BORDEU. — Sem dúvida, mas, sendo matéria no universo, porção do universo, sujeito a vicissitudes, envelheceria, morreria. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mais eis na verdade outra extravagância que me ocorre. BORDEU. — Dispenso-vos de enunciá-la, sei qual é. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Vejamos, qual é? BORDEU. — Vedes a inteligência unida a porções de matéria muito enérgicas, bem como a possibilidade de toda sorte de prodígios imagináveis. Outros pensaram como vós. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Vós adivinhastes o que eu pensava e nem por isso eu vos aprecio mais. Cumpre que tenhais um maravilhoso pendor para a loucura. BORDEU. — Concordo. Mas o que tem essa ideia de assustadora? Seria uma epidemia de bons e maus gênios; as leis mais constantes da natureza seriam interrompidas por agentes naturais; nossa física geral tornar-se-ia com isso mais difícil, mas não haveria de modo algum milagres. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Na verdade, é preciso ser muito circunspecto sobre o que se afirma e sobre o que se nega. BORDEU. — Vamos, quem vos contasse um fenômeno desse gênero teria o ar de um grande mentiroso. Mas deixemos aí todos esses seres imaginários, sem excetuar vossa aranha de redes infinitas; retornemos ao que é vosso e à sua formação. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Aceito. D’ALEMBERT. — Senhorita, estais com alguém: quem é que está aí conversando convosco? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É o doutor. D’ALEMBERT. — Bom dia, doutor: o que fazeis aqui tão cedo? BORDEU. — Haveis de sabê-lo: dormi. D’ALEMBERT. — Por Deus, bem que necessito. Não creio ter passado outra noite tão agitada como esta. Não ireis embora sem que eu já esteja levantado. BORDEU. — Não. Aposto, senhorita, que acreditastes que, tendo sido na idade de doze anos uma mulher menor da metade, na idade de quatro anos ainda uma mulher menor da metade, no feto uma mulherzinha, nos testículos de vossa mãe uma mulherzinha muito pequena, pensastes que sempre fostes uma mulher sob a forma que tendes agora, de modo que os únicos acréscimos sucessivos que adquiristes estabeleceram toda a diferença entre vós na vossa origem e vós tal qual estais aqui. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Concordo com isso. BORDEU. — Nada entretanto é mais falso do que semelhante ideia. Primeiro não éreis nada. Fostes, no começo, um ponto imperceptível, formado de moléculas menores, dispersas no sangue, a linfa de vosso pai ou de vossa mãe; este ponto tornou-se um fio delgado, depois um feixe de fios. Até aí, não há o menor vestígio dessa forma agradável que tendes: vossos olhos, esses belos olhos, assemelhavam-se tão pouco a olhos quanto a extremidade de uma raiz de anêmona se assemelha a uma anêmona. Cada uma das fibras do feixe de fios se transformou, pela simples nutrição e por sua conformação, em um órgão particular: isto pondo-se de parte os órgãos nos quais as fibras se metamorfoseiam e aos quais dão origem. O feixe é um sistema puramente sensível; se persistisse sob tal forma, seria suscetível de todas as impressões relativas à sensibilidade pura, como o frio, o calor, o doce, o rude. Estas impressões sucessivas, variadas entre si, e variadas cada uma em sua intensidade, talvez produzissem aí a memória, a consciência de si, uma razão muito restrita. Mas essa sensibilidade pura e simples, esse tato, diversifica-se pelos órgãos emanados de cada uma das fibras; uma fibra, formando a orelha, engendra uma espécie de tato que denominamos ruídos ou som; outra, formando o palato, engendra uma segunda espécie de tato que denominamos sabor; uma terceira, formando o nariz e o atapetando, engendra uma terceira espécie de tato que denominamos odor; uma quarta, formando o olho, engendra uma quarta espécie de tato que denominamos cor. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas, se bem vos compreendi, os que negam a possibilidade de um sexto sentido, um verdadeiro hermafrodita, são desatinados. Quem é que lhes garantiu que a natureza não poderia formar um feixe com uma fibra singular que daria origem a um órgão que nos é desconhecido? BORDEU. — Ou com as duas fibras que caracterizam os dois sexos? Tendes razão; é um prazer conversar convosco; compreendeis não só o que vos dizem, mas ainda tirais daí consequências de uma justeza que espanta. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, vós me encorajais. BORDEU. — Não, por Deus. digo o que penso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Percebo bem o emprego de algumas das fibras do feixe; mas as outras, o que acontece com elas? BORDEU. — E credes que outra além de vós sonharia em fazer semelhante pergunta? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Certamente. BORDEU. — Não sois vaidosa. O resto das fibras vai formar tantas espécies de tato quanta diversidade há entre os órgãos e as partes do corpo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E como se chamam? Nunca ouvi falar dela. BORDEU. — Elas não têm nome. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E por quê? BORDEU. — E que não há tanta diferença entre as sensações excitadas por meio delas quanto entre as sensações excitadas por meio dos outros órgãos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Pensais seriamente que o pé, a mão, as coxas, o ventre, o estômago, o peito, o pulmão e o coração têm suas sensações particulares? BORDEU. — É o que penso. Se ousasse, eu vos perguntaria se dentre as sensações que não se nomeiam... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eu vos entendo. Não. Aquela é única em sua espécie, e é pena. Mas que razão apresentais para essa multiplicidade de sensações mais dolorosas do que agradáveis com as quais vos apraz nos gratificar? BORDEU. — A razão? É que as discernimos em grande parte. Se essa infinita diversidade do tato não existisse, saber-se-ia que se experimenta prazer ou dor, mas não se saberia relacioná-los. Haveria mister do auxílio da vista. Não seria mais uma questão de sensação, mas uma questão de experiência e de observação. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Quando eu dissesse que tenho dor no dedo, se me indagassem por que é que assevero que está no dedo a minha dor, cumpriria que eu respondesse não que eu o sinto, mas que sinto dor e vejo que meu dedo está dolorido. BORDEU. — É isso. Vinde que eu vos abraçarei. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De bom grado. D’ALEMBERT. — Doutor, abraçais a senhorita, fazeis muito bem. BORDEU. — Pensei muito nisso e me pareceu que a direção e o lugar do abalo não bastariam para determinar julgamento tão súbito sobre a origem do feixe. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nada sei. BORDEU. — Vossa dúvida me apraz. É tão comum tomar qualidades naturais por hábitos adquiridos e quase tão velhos como nós. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E reciprocamente. BORDEU. — Seja como for, vedes que em uma questão onde se trata da formação primeira do animal, é atacá-la tarde demais quando se fixa o olhar e as reflexões no animal formado; que é preciso remontar a seus primeiros rudimentos, e que vem a propósito despojar-vos de vossa organização atual e retornar por um instante lá onde éreis apenas uma substância mole, informe, filamentosa, vermicular, mais análoga ao bulbo e à raiz de uma planta do que a um animal. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Se fosse de uso andar completamente nua pelas ruas, eu não seria nem a primeira nem a última a me conformar. Assim, fazei de mim tudo o que vos aprouver, desde que me instruais. Vós me dissestes que cada fibra do feixe formava um órgão particular; e qual a prova de que é assim? BORDEU. — Efetuai pelo pensamento o que a natureza às vezes efetua; mutilai o feixe de uma de suas fibras; por exemplo, da fibra que formará os olhos; o que julgais vós que há de suceder? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O animal não disporá de olhos, talvez. BORDEU. — Ou disporá de um só situado no centro da fronte. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Será um ciclope. BORDEU. — Um ciclope. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O ciclope, portanto, poderia não ser realmente um ser fabuloso. BORDEU. — Tão pouco fabuloso, que vos exibirei um quando quiserdes. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E quem sabe qual a causa dessa diversidade? BORDEU. — Aquele que dissecou o monstro e não encontrou nele senão um filete óptico. Efetuai pelo pensamento o que a natureza efetua às vezes. Suprimi outra fibra do feixe, a fibra que deve formar o nariz, e o animal ficará sem nariz. Suprimi a fibra que deve constituir a orelha, e o animal ficará sem orelhas, ou terá apenas uma, e o anatomista não encontrará na dissecção nem os filetes olfativos, nem os filetes auditivos, ou só encontrará um deles. Continuai na supressão das fibras, e o animal ficará sem cabeça, sem pés, sem mãos; sua duração será curta, porém terá vivido. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E há exemplos disso? BORDEU. — Certamente. Não é só. Dobrai algumas das fibras do feixe, e o animal contará duas cabeças, quatro olhos, quatro orelhas, três testículos, três pés, quatro braços, seis dedos em cada mão. Desarrumai as fibras do feixe, e os órgãos serão deslocados: a cabeça ocupará o meio do peito, os pulmões ficarão à esquerda, o coração à direita. Colai juntas duas fibras, e os órgãos se confundirão; os braços se prenderão ao corpo, as coxas, as pernas e os pés se reunirão, e tereis todas as espécies de monstros imagináveis. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Parece-me, porém, que uma máquina tão complicada como o animal, máquina que nasce de um ponto, de um fluido agitado, quiçá de dois fluidos misturados ao acaso, pois quase nada se sabe então sobre o que se faz; máquina que progride para sua perfeição através de uma infinidade de desenvolvimentos sucessivos; máquina cuja formação regular ou irregular depende de um pacote de fios delgados, finos e flexíveis, de uma espécie de meada onde a menor fibra não pode ser quebrada, rompida, deslocada, faltante, sem consequências deploráveis para o todo, deveria enlaçar-se, embaraçar-se ainda mais frequentemente no lugar de sua formação do que os meus fios de seda em minha dobadoura. BORDEU. — Pelo que sofre disso muito mais do que se pensa. A gente não disseca o suficiente, e as ideias sobre a sua formação acham-se muito longe da verdade. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Há exemplos notáveis dessas deformidades originais, além dos corcundas e dos coxos, cujo estado malfadado poder-se-ia atribuir a algum vício hereditário? BORDEU. — Há um sem-número, e ainda recentemente morreu na Charité de Paris, com a idade de vinte e cinco anos, em consequência de uma fluxão de peito, um carpinteiro nascido em Troyes, chamado Jean-Baptiste Macé, que tinha as vísceras interiores do peito e do abdômen numa situação invertida, o coração à direita precisamente como vós o tendes à esquerda; o fígado à esquerda; o estômago, o baço, o pâncreas, no hipocôndrio direito; a veia porta no fígado do lado esquerdo, quando o seu lugar é no fígado do lado direito; a mesma transposição no comprido canal dos intestinos; os rins, acostados um ao outro sobre as vértebras dos lombos, imitavam uma ferradura. E que venham depois disso nos falar de causas finais! SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso é singular. BORDEU. — Se Jean-Baptiste Macé fosse casado e tivesse filhos... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Pois bem, doutor, esses filhos... BORDEU. — Obedecerão à conformação geral; mas algum filho de seus filhos, ao cabo de uma centena de anos, pois essas irregularidades fazem saltos, voltará à conformação bizarra de seu antepassado. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E de onde provêm tais saltos? BORDEU. — Quem é que sabe? Para fazer um filho, é preciso estar a dois, como sabeis. Talvez um dos agentes repare o vício do outro, e a rede defeituosa renasça apenas no momento em que o descendente da raça monstruosa predominar, e der a lei à formação da rede. O feixe de fios constitui a diferença original e a primeira de todas as espécies de animais. As variedades do feixe de uma espécie produzem todas as variedades monstruosas desta espécie. (Após um longo silêncio, a Senhorita de l’Espinasse sai de seu devaneio e tira o doutor do seu com a seguinte indagação:) SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ocorre-me uma ideia bastante louca. BORDEU. — Qual? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O homem não é talvez senão o monstro da mulher, ou a mulher o monstro do homem. BORDEU. — Essa ideia ocorrer-vos-ia ainda mais depressa se soubésseis que a mulher tem todas as partes do homem, e que a única diferença existente é a de uma bolsa pendente para fora, ou de uma bolsa virada para dentro; que um feto feminino se assemelha, a ponto de enganar, a um feto masculino; que a parte que ocasiona o erro se encolhe no feto feminino à medida que a bolsa interior se estende; que ela nunca se oblitera a ponto de perder sua forma primitiva; que ela guarda sua forma em miniatura; que é suscetível dos mesmos movimentos; que é também o móvel da voluptuosidade; que dispõe de sua glândula, de seu prepúcio, e que se nota em sua extremidade um ponto que parece ter sido o orifício de um canal urinário que se fechou; que há no homem, do ânus até o escroto, um intervalo denominado perineu, e do escroto até a extremidade do pênis, uma costura que parece ser a repetição de uma vulva alinhavada; que as mulheres que têm o clitóris excessivo possuem barba; que os eunucos não a possuem absolutamente, que suas coxas se fortificam, suas nádegas se alargam, que seus joelhos se arredondam e que, perdendo a organização característica de um sexo, parecem voltar à conformação característica do outro. Aqueles, dentre os árabes, que a equitação habitual castrou, perdem a barba, adquirem voz aguda, vestem-se como mulheres, se colocam entre elas nos carros, se acocoram para urinar e afetam seus costumes e práticas... Mas eis-nos bem longe de nosso objeto. Retornemos ao nosso feixe de filamentos animados e vivos. D’ALEMBERT. — Creio que estais dizendo sujeiras à Senhorita de l’Espinasse. BORDEU. — Quando se fala de ciência, cumpre servir-se dos termos técnicos. D’ALEMBERT. — Tendes razão; então perdem o cortejo de ideias acessórias que os tornariam indecorosos. Continuai, doutor. Dizíeis, portanto, à senhorita que a matriz não é mais do que um escroto virado de fora para dentro, movimento no qual os testículos foram jogados fora da bolsa que os encerrava, e dispersos à direita e à esquerda na cavidade do corpo; que o clitóris é um membro viril em miniatura; que este membro viril feminino vai diminuindo sempre, à medida que a matriz ou o escroto virado se estendem e que... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sim, sim, calai-vos, e não vos metais em nossos assuntos. BORDEU. — Como vedes, senhorita, na questão de nossas sensações em geral, que não passam todas de um tato diversificado, é preciso deixar de lado as formas sucessivas que a rede assume, e reter apenas a rede. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Cada fio da rede sensível pode ser ferido ou afagado em todo o seu comprimento. O prazer ou a dor estão aqui ou ali, num lugar ou noutro de qualquer das longas patas de minha aranha, pois retorno sempre à minha aranha; porque é a aranha que se encontra na origem comum de todas as patas e que relaciona a este ou àquele ponto a dor ou o prazer sem experimentá-los. BORDEU. — Porque é a relação constante, invariável, de todas as impressões com esta origem comum que constitui a unidade do animal. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Porque é a memória de todas essas impressões sucessivas que constitui para cada animal a história de sua vida e de seu eu. BORDEU. — E porque é a memória e a comparação que decorrem necessariamente de todas essas impressões que fazem o pensamento e o raciocínio. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E onde é feita esta comparação? BORDEU. — Na origem da rede. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E a rede? BORDEU. — Não tem, na sua origem, nenhum sentido que lhe seja próprio: não vê nada, não ouve nada, não sofre nada. É produzida, nutrida; emana de uma substância mole, insensível, inerte, que lhe serve de travesseiro e na qual se assenta, escuta, julga e pronuncia. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ela não sofre nada. BORDEU. — Não: a mais ligeira impressão suspende sua audiência, e o animal cai no estado de morte. Sustai a impressão, ela volta às suas funções, e o animal renasce. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E de onde o sabeis? Acaso já se fez alguma ocasião renascer e morrer um homem à vontade? BORDEU. — Sim. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E como é possível? BORDEU. — Eu vos direi; é um fato curioso. La Peyronie, que conhecestes talvez, foi chamado a atender um paciente que recebera violenta pancada na cabeça. O doente sentia aí pulsações. O cirurgião não duvidou que o abscesso no cérebro estivesse formado e que não houvesse um momento a perder. Imediatamente rapa o doente e o trepana. A ponta do instrumento incide precisamente no centro do abscesso. O pus estava formado; ele esvazia o pus; limpa o abscesso com uma seringa. Quando enfia a injeção no abscesso, o paciente fecha os olhos; seus membros ficam sem ação, sem movimento, sem o menor sinal de vida; quando suspende a injeção e alivia a origem do feixe do peso e da pressão do fluido injetado, o paciente reabre os olhos, mexe-se, fala, sente, renasce e vive. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso é singular; e o paciente curou-se? BORDEU. — Curou-se; e, quando ficou curado, refletiu, pensou, raciocinou, apresentou o mesmo espírito, o mesmo bom senso, a mesma penetração, com boa porção a menos de seu cérebro. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Esse juiz é um ser bem extraordinário. BORDEU. — Ele também se engana às vezes; está sujeito às prevenções de hábito: sente-se dor em um membro que não mais se possui. A gente o engana quando quer: cruzai dois de vossos dedos um sobre o outro, tocai numa pequena bola e ele declarará que são duas. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — É que ele é como todos os juízes do mundo e necessita da experiência, sem o que tomará a sensação do gelo pela do fogo. BORDEU. — Ele faz coisa bem diferente: concede um volume quase infinito ao indivíduo, ou se concentra quase em um ponto. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não vos entendo. BORDEU. — O que é que circunscreve vossa extensão real, a verdadeira esfera de vossa sensibilidade? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Minha vista e meu tato. BORDEU. — De dia; mas, à noite, nas trevas, quando sonhais sobretudo com algo abstrato, e de dia mesmo, quando vosso espírito está ocupado? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nada. Eu existo como num ponto; cesso quase de ser matéria, sinto somente meu pensamento; não há mais lugar, nem movimento, nem corpo, nem espaço para mim: o universo, para mim, está aniquilado e eu sou nula para ele. BORDEU. — Eis o derradeiro termo da concentração de vossa existência; mas sua dilatação ideal pode ser ilimitada. Quando o verdadeiro limite de vossa sensibilidade é transposto, seja ao vos aproximar dele, seja ao vos condensar em vós mesma, seja ao vos estender para fora, não mais se sabe o que isso pode tornar-se. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, tendes razão. Muitas vezes pareceu-me em sonho... BORDEU. — E aos doentes em um ataque de gota... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Que eu me tornava imensa. BORDEU. — Que o pé deles tocava no dossel do leito. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Que meus braços e minhas pernas se alongavam ao infinito, que o resto de meu corpo assumia um volume proporcional; que o Encélado da fábula não era senão um pigmeu; que a Anfitrite de Ovídio, cujos longos braços iam formar uma cintura imensa da Terra, não passava de anã em comparação comigo, e que eu escalava o céu, e que enlaçava os dois hemisférios. BORDEU. — Muito bem. E eu conheci uma mulher em quem o fenômeno se operava em sentido contrário. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O quê! Ela diminuía gradualmente, reentrando em si mesma? BORDEU. — A ponto de sentir-se tão miúda quanto uma agulha: via, ouvia, raciocinava, julgava; tinha um terror mortal de perder-se; tremia à aproximação dos mínimos objetos; não ousava mexer-se do lugar. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eis um sonho bem singular, bastante desagradável, bastante incômodo. BORDEU. — Ela não sonhava nada; era um dos acidentes da cessação do corrimento periódico. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E permanecia por muito tempo nessa diminuta, imperceptível forma de mulherzinha? BORDEU. — Uma hora, duas, em seguida voltava sucessivamente ao seu volume natural. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E a razão dessas estranhas sensações? BORDEU. — No estado natural e tranquilo, as fibras do feixe possuem certa tensão, um tom, uma energia habitual que circunscreve a extensão real ou imaginária do corpo. Digo real ou imaginária, pois essa tensão, esse tom, essa energia, sendo variáveis, nosso corpo não é sempre de um mesmo volume. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Assim, tanto no físico quanto no moral, estamos expostos a nos crer maiores do que somos? BORDEU. — O frio nos encurta, o calor nos dilata, e determinado indivíduo pode julgar-se a vida toda menor ou maior do que é realmente. Se acontece à massa do feixe entrar em violento eretismo, aos feixes ficar em ereção, à multidão infinita de suas extremidades se arremeter para além de seus limites costumeiros, então a cabeça, os pés, os outros membros, todos os pontos da superfície do corpo serão conduzidos a uma distância imensa, e o indivíduo sentir-se-á gigantesco. Ocorrerá o fenômeno contrário se a insensibilidade, a apatia, a inércia ganhar a extremidade das fibras e encaminhar-se pouco a pouco para a origem do feixe. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Compreendo que semelhante expansão não se poderia medir, e compreendo, ainda, que semelhante insensibilidade, apatia, inércia, da extremidade das fibras, semelhante entorpecimento, depois de efetuar certo progresso, possa fixar-se, deter-se... BORDEU. — Como aconteceu a La Condamine: então o indivíduo sente como que balões debaixo dos pés. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele existe para além do termo de sua sensibilidade e, se estivesse envolvido dessa apatia em todos os sentidos, oferecer-nos-ia um homenzinho vivo sob um homem morto. BORDEU. — Concluí daí que o animal, que na origem não era senão um ponto, não sabe ainda se é realmente alguma coisa a mais. Mas voltemos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Aonde? BORDEU. — Aonde? Ao trepanado de La Peyronie... Eis realmente, julgo, o que me pedistes, o exemplo de um homem que viveu e morreu alternativamente... Mas há coisa melhor... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O que é que pode ser? BORDEU. — A fábula de Castor e Pólux realizada; duas crianças nas quais a vida de uma era imediatamente seguida pela morte da outra, e a vida desta seguida imediatamente pela morte da primeira. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Oh! Que boa peta! E isso durou muito tempo? BORDEU. — A duração dessa existência foi de dois dias que elas partilharam entre si igualmente e em repetidas vezes, de modo que cada uma teve, de sua parte, um dia de vida e um dia de morte. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Temo, doutor, que abusais um pouco de minha credulidade. Tomai cuidado, se me enganardes uma vez, nunca mais acreditarei em vós. BORDEU. — Ledes às vezes a Gazette de France? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nunca, embora seja a obra-prima de dois homens de espírito. BORDEU. — Obtende emprestado o exemplar do dia 4 deste mês de setembro, e vereis que em Rabastens, diocese de Alby, duas meninas nasceram dorso contra dorso, unidas pelas últimas vértebras lombares, pelas nádegas e pela região hipogástrica. Não se podia manter uma em pé sem que a outra ficasse de cabeça para baixo. Deitadas, elas se olhavam; suas coxas estavam curvadas entre seus troncos e suas pernas levantadas; perto do meio da linha circular comum que as prendia por seus hipogastros, discernia-se o sexo delas, e entre a coxa direita de uma que correspondia à coxa esquerda da irmã, numa cavidade havia um pequeno ânus pelo qual se escoava o mecônio. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eis uma espécie bastante estranha. BORDEU. — Elas tomaram o leite que lhes foi dado em colher. Viveram doze horas, como já vos disse, caindo uma em desfalecimento quando a outra saía dele e a outra morta, enquanto uma vivia. O primeiro desfalecimento de uma e a primeira vida da outra foi de quatro horas; os desfalecimentos e os retornos alternativos à vida que se sucederam foram menos longos; elas expiraram no mesmo instante. Notou-se que seus umbigos efetuavam também um movimento alternado de saída e entrada; ele entrava na que desfalecia e saía na que voltava à vida. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E que dizeis vós dessas alternativas de vida e morte? BORDEU. — Talvez nada que valha a pena; mas como cada qual vê tudo através das lunetas de seu sistema, e como não pretendo fazer exceção à regra, digo que é o fenômeno do trepanado de La Peyronie duplicado em dois seres conjuntos; que as redes das duas crianças se haviam de tal modo misturado que agiam e reagiam uma sobre a outra; quando a origem da rede de uma prevalecia, arrastava a rede da outra que desfalecia no mesmo instante; sucedia o contrário, se era a rede desta que dominava o sistema comum. No trepanado de La Peyronie, a pressão se efetuava de alto para baixo pelo peso de um fluido; nas duas gêmeas de Rabastens, ela se efetuava de baixo para cima pela tração de um certo número de fios da rede: conjetura apoiada pela entrada e saída alternativa dos umbigos, saída naquela que retornava à vida e entrada naquela que morria. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E eis duas almas ligadas. BORDEU. — Um animal com o princípio de dois sentidos e de duas consciências. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não tendo entretanto no mesmo momento senão o desfrute de uma só; mas quem sabe o que aconteceria se esse animal houvesse vivido? BORDEU. — Que sorte de correspondência a experiência de todos os momentos da vida, o mais forte dos hábitos que se possa imaginar, iria estabelecer entre esses dois cérebros? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sentidos duplos, memória dupla, imaginação dupla, aplicação dupla, a metade de um ser que observa, lê, medita, enquanto sua outra metade repousa: esta metade retomando as mesmas funções, quando a companheira está cansada; a vida dupla de um ser duplo. BORDEU. — Isso é possível? E a natureza, levando com o tempo a tudo o que é possível, formará algum estranho composto. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Como seríamos pobres em comparação com semelhante ser! BORDEU. — E por quê? Existem já tantas incertezas, contradições, loucuras num entendimento simples, que não sei mais no que isso daria com um entendimento duplo... Mas são dez e meia, e ouço do arrabalde até aqui um doente que me chama. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E haveria realmente perigo para ele se deixásseis de visitá-lo? BORDEU. — Menos talvez do que visitando-o. Se a natureza não realiza a tarefa sem mim, teremos muita dificuldade em realizá-la juntos e com certeza não poderei realizá-la sem ela. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Permanecei, pois. D’ALEMBERT. — Doutor, uma palavra ainda e eu vos envio a vosso paciente. Através de todas as vicissitudes que padeci no curso de minha existência, não possuindo talvez presentemente uma só das moléculas que trazia ao nascer, como continuei sendo eu para os outros e para mim? BORDEU. — Vós no-lo dissestes sonhando. D’ALEMBERT. — Será que sonhei? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — A noite toda, e se assemelhava de tal modo ao delírio, que mandei chamar o doutor esta manhã. D’ALEMBERT. — E isso por causa das patas de aranha que se agitavam por si mesmas, que mantinham alerta a aranha e faziam falar o animal. E o animal, o que dizia? BORDEU. — Que era através da memória que ele era ele para os outros e para si próprio; e eu acrescentaria, através da lentidão das vicissitudes. Se tivésseis passado num piscar de olho da juventude à decrepitude, serieis jogado no mundo como no primeiro momento de vosso nascimento; não serieis mais vós mesmo, nem para os outros nem para vós, para os outros que não seriam absolutamente eles para vós. Todas as relações seriam aniquiladas; toda a história de vossa vida para mim, toda a história da minha para vós, ficariam baralhadas. Como poderíeis saber que este homem, curvado sobre uma bengala, e cujos olhos se extinguiram, que se arrasta com dificuldade, mais diferente ainda de si mesmo por dentro do que fora, era o mesmo que na véspera andava tão ligeiramente, removia fardos tão pesados, podia entregar-se às meditações mais profundas, aos exercícios mais doces e aos mais violentos? Vós não entenderíeis vossas próprias obras, vós não vos reconheceríeis a vós próprio, não reconheceríeis ninguém, ninguém vos reconheceria; a cena toda do mundo mudaria. Pensai que houve menos diferença ainda entre vós ao nascer e quando jovem, do que haveria entre vós jovem e vós subitamente tornado decrépito. Pensai que, embora vosso nascimento esteja ligado à vossa juventude por uma série de sensações ininterruptas, os três primeiros anos de vossa existência jamais foram a história de vossa vida. O que seria pois, para vós, o tempo de vossa juventude, que nada ligaria ao momento de vossa decrepitude? D’Alembert decrépito não contaria com a mínima lembrança de D’Alembert jovem. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — No cacho de abelhas, não haveria uma só que tivesse tido tempo de adquirir o espírito do corpo. D’ALEMBERT. — O que dizeis aí? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Digo que o espírito monástico se conserva porque o mosteiro se refaz pouco a pouco, e quando entra um novo monge, encontra uma centena de velhos que o arrastam a pensar e a sentir como eles. Uma abelha vai embora, sucede-lhe no cacho outra que logo se põe a par. D’ALEMBERT. — Ide, delirais com vossos monges, vossas abelhas, vosso cacho e vosso convento. BORDEU. — Nem tanto quanto poderíeis acreditar. Se não há senão uma consciência no animal, há uma infinidade de vontades; cada órgão possui a sua. D’ALEMBERT. — Como foi que dissestes? BORDEU. — Disse que o estômago quer alimentos, que o palato não os quer de modo algum, e que a diferença entre o palato e o estômago com o animal inteiro é que o animal sabe o que quer e o estômago e o palato querem sem o saber; é que o estômago ou o palato são, um para o outro, quase como o homem e o bruto. As abelhas perdem suas consciências e retêm seus apetites ou vontades. A fibra é um animal simples, o homem é um animal composto; mas guardemos esse texto para outra vez. É preciso um acontecimento bem menor que a decrepitude para tirar ao homem a consciência do eu. Um moribundo recebe os sacramentos com profunda piedade; confessa suas faltas; pede perdão à mulher, abraça os filhos; chama os amigos; fala a seu médico; dá ordens aos domésticos; dita as últimas vontades; põe em dia seus negócios, e tudo isso com o juízo mais são, com a mais completa presença de espírito; ele sara, está convalescente e não tem a menor ideia do que fez ou disse durante a moléstia. Este intervalo, às vezes muito longo, desapareceu de sua vida. Há mesmo exemplos de pessoas que retomaram a conversação ou a ação que o súbito ataque do mal interrompera. D’ALEMBERT. — Lembro-me que, em um exercício público, um mestre-escola pedante, todo inflado de seu saber, foi metido, como se diz, no saco, por um capuchinho que menosprezara. Ele, metido no chinelo! E por quem? Por um capuchinho! E sobre qual questão? Sobre o futuro contingente! Sobre a ciência média que ele meditara a vida toda! E em que circunstância? Diante de numerosa assembleia! Diante dos alunos! Ei-lo com a honra perdida! Sua cabeça trabalha tão bem sobre essas ideias que ele cai em uma letargia que o priva de todos os conhecimentos que adquirira. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas foi uma felicidade. D’ALEMBERT. — Por Deus, tendes razão. O bom senso restou-lhe; mas esqueceu tudo. Ensinaram-lhe a falar e ler, e morreu quando começava a soletrar passavelmente. Esse homem não era absolutamente um inepto; atribuíam-lhe mesmo certa eloquência. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Já que o doutor ouviu vossa história, é preciso que ouça também a minha. Um moço de dezoito a vinte anos, cujo nome não me recordo... BORDEU. — É um Sr. de Schullemberg de Winterthour; não tinha mais do que quinze a dezesseis anos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Esse jovem sofreu uma queda na qual recebeu violenta comoção na cabeça. BORDEU. — O que chamais violenta comoção? Caiu do alto de um celeiro; teve a cabeça quebrada e ficou seis semanas inconsciente. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Seja como for, sabeis qual foi a consequência do acidente? A mesma que a de vosso mestre-escola: esqueceu tudo o que sabia; voltou à primeira idade; teve uma segunda infância e esta durou. Era tímido e pusilânime; divertia-se com brinquedinhos. Se procedia mal e lhe ralhavam, ia esconder-se num canto; pedia para satisfazer suas necessidades naturais. Ensinaram-lhe a ler e a escrever; mas eu esquecia de vos contar que houve mister ensinar-lhe de novo a andar. Voltou a ser homem e homem hábil, e deixou uma obra de história natural. BORDEU. — São gravuras, as pranchas do Sr. Zulyer sobre os insetos, segundo o sistema de Lineu. Eu conhecia o fato; ele chegou ao Cantão de Zurique, na Suíça, e há numerosos exemplos parecidos. Desarrumai a origem do feixe e mudareis o animal; parece que este reside aí por inteiro, ora dominando as ramificações, ora dominado por elas. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E o animal encontra-se sob o despotismo ou sob a anarquia. BORDEU. — Sob o despotismo, é muito bem expresso. A origem do feixe comanda, e todo o resto obedece. O animal é senhor de si, mentis compos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sob a anarquia, onde todos os filetes da rede se encontram sublevados contra o chefe, e onde não há mais autoridade suprema. BORDEU. — Muito bem. Nos grandes acessos de paixão, nos delírios, nos perigos iminentes, se o amo leva todas as forças de seus súditos para um ponto, o animal mais fraco mostra uma força incrível. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nos vapores, espécie de anarquia que nos é tão particular. BORDEU. — É a imagem de uma administração fraca, onde cada um puxa para si a autoridade do amo. Não conheço senão um meio de cura; é difícil, porém seguro; é que a origem da rede sensível, esta parte que constitui o eu, possa ser de um impulso violento para recobrar sua autoridade. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E que acontece? BORDEU. — Acontece-lhe que a recobra de fato, ou que o animal perece. Se me restasse tempo, contar-vos-ia a respeito dois fatos singulares. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas, doutor, a hora de vossa visita passou e vosso doente não mais vos espera. BORDEU. — Só se deve vir aqui quando não se tem mais nada a fazer, pois não se consegue sair. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eis uma baforada de humor inteiramente honesto; mas vossas histórias? BORDEU. — Por hoje ireis contentar-vos com esta: Uma mulher caiu, em consequência de um parto, no mais assustador estado vaporoso; eram lágrimas e risos involuntários, sufocações, convulsões, inchaços de garganta, silêncio soturno, gritos agudos, tudo o que há de pior: a coisa durou vários anos. Ela amava apaixonadamente e julgou perceber que seu amado, fatigado da moléstia dela, começava a afastar-se; então resolveu sarar ou perecer. Estabeleceu-se nela uma guerra civil na qual ora o amo prevalecia, ora os súditos. Se acontecia que a ação dos fios da rede fosse igual à reação de sua origem, ela tombava como morta; transportavam-na ao leito, onde permanecia horas a fio sem movimento e quase sem vida; outras vezes sofria apenas lassidões, uma fraqueza geral, uma extinção que parecia ser final. Ela persistiu seis meses nesse estado de luta. A revolta começava sempre pelos filetes; sentia quando chegava. Ao primeiro sintoma, a mulher levantava-se, corria e entregava-se a exercícios dos mais violentos; subia, descia as escadas; serrava madeira, cavava a terra. O órgão de sua vontade, a origem do feixe se retesava; ela dizia a si mesma: vencer ou morrer. Após um número infinito de vitórias e derrotas, o chefe permaneceu senhor, e os súditos tornaram-se tão submissos que, embora esta mulher experimentasse toda espécie de penas domésticas, embora padecesse de diferentes moléstias, nunca mais teve problema de vapores. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso é maravilhoso, mas não creio que no caso eu procederia tão bem. BORDEU. — É que vos amaríeis realmente se amásseis e que vós sois firme. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Entendo. Somos firmes se, por hábito ou por organização, a origem do feixe domina os filetes; fracos, ao contrário, se ela é dominada por eles. BORDEU. — Há muitas outras consequências a tirar daí. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas contai primeiro vossa outra história e depois haveis de tirá-las. BORDEU. — Uma jovem mulher caíra em alguns desvios. Decidiu um dia fechar a porta ao prazer. Ei-la só, ei-la melancólica e vaporosa. Mandou chamar-me. Aconselhei-a a vestir roupa de camponesa e cavar a terra o dia inteiro, dormir sobre a palha e viver de pão seco. O regime não lhe agradou. Viajai então, disse-lhe. Ela fez o giro da Europa e recobrou a saúde nas grandes estradas. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não era o que tínheis a dizer; não importa, vamos às vossas consequências. BORDEU. — Isso nunca mais terminaria. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Tanto melhor. Dizei ainda assim. BORDEU. — Não tenho coragem. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E por quê? BORDEU. — É que na marcha em que vamos, afloramos tudo e não aprofundamos nada. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Que importa? Não estamos compondo, mas conversando. BORDEU. — Por exemplo, se a origem do feixe chama todas as forças a si, se o sistema inteiro se move por assim dizer ao revés, como creio que acontece no homem que medita profundamente, no fanático que vê os céus abertos, no selvagem que canta em meio das chamas, no êxtase, na alienação voluntária ou involuntária... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E daí? BORDEU. — Daí, o animal se torna impassível, existe apenas em um ponto. Não vi o padre de Calame, de que fala Santo Agostinho, que se alienava a ponto de não mais sentir brasas ardentes; não vi no quadro os selvagens que sorriem a seus inimigos, que os insultam e lhes sugerem tormentos mais refinados do que aqueles a que são submetidos; não vi no circo os gladiadores que se lembravam, expirando, da graça e das lições da ginástica; mas creio em todos esses fatos, porque vi, mas vi com meus próprios olhos, um esforço tão extraordinário quanto qualquer desses outros. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, contai-me. Sou como as crianças, adoro os fatos maravilhosos e, quando honram a espécie humana, raramente me sucede contestar-lhes a verdade. BORDEU. — Havia numa pequena aldeia da Champanha, Langres, um bom cura, chamado le ou de Moni, muito compenetrado, muito imbuído da verdade da religião. Acometido de cálculo, era preciso talhá-lo. O dia é marcado, o cirurgião, seus assistentes e eu vamos à casa dele; o cura nos recebe com um ar sereno, despe-se, deita-se, queremos amarrá-lo; ele recusa; “colocai-me apenas”, diz, “como convém”; nós o colocamos. Então pede um grande crucifixo que se encontrava ao pé da cama; damos-lho, o bom cura aperta-o entre os braços, cola-lhe a boca. Operamos, ele permanece imóvel, não lhe escapam nem lágrimas nem suspiros, e fico liberto da pedra que ele ignorava. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso é belo; e duvidai, depois disso, que aquele a quem quebravam os ossos do peito com pedregulhos não viu os céus abertos. BORDEU. — Sabeis o que é dor de ouvidos? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não. BORDEU. — Tanto melhor para vós. É a mais cruel de todas as dores. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mais que a dor de dentes que conheço infelizmente? BORDEU. — Sem comparação. Um filósofo entre vossos amigos estava sendo atormentado com esta dor havia quinze dias, quando certa manhã disse à esposa: Não me sinto com bastante coragem para enfrentar o dia... Pensou que seu único recurso era enganar artificialmente a dor. Pouco a pouco, absorveu-se tanto numa questão de metafísica ou de geometria que esqueceu o ouvido. Serviram-lhe de comer e ele comeu sem o perceber; chegou à hora de dormir sem sofrer. A horrível dor só voltou a dominá-lo quando cessou a contensão de espírito, mas foi com um furor inusitado, seja porque de fato a fadiga irritasse a dor, seja porque a fraqueza a tornasse mais insuportável. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ao sair desse estado, deve-se ficar realmente exausto; é o que acontece às vezes àquele homem que ali está. BORDEU. — É perigoso, que tome cuidado com isso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não paro de lhe dizer, mas ele não faz caso. BORDEU. — Não é mais ele quem manda, é sua vida, terá de perecer por isso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Essa sentença me causa medo. BORDEU. — O que provam esse esgotamento, esse cansaço? Que as fibras do feixe não permaneceram ociosas e que há em todo o sistema uma tensão violenta dirigida para um centro comum. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Se semelhante tensão ou tendência violenta perdurar, se ela se tornar habitual? BORDEU. — É um tique da origem do feixe; o animal está louco, e louco quase sem remédio. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E por quê? BORDEU. — É que, no tique da origem, não sucede o mesmo que no de uma das fibras. A cabeça pode muito bem comandar os pés, mas não o pé à cabeça; a origem a uma das fibras, mas nunca a fibra à origem. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E qual a diferença, por favor? Com efeito, por que não penso em toda parte? É uma questão que me deveria ter ocorrido mais cedo. BORDEU. — É que a consciência reside apenas em um lugar. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso é fácil dizer. BORDEU. — É que ela só pode residir em um lugar, no centro comum de todas as sensações, lá onde está a memória, lá onde se fazem as comparações. Cada fibra é suscetível apenas de um determinado número de impressões, de sensações sucessivas, isoladas, sem memória. A origem é suscetível de todas, é seu registro, guarda sua memória ou uma sensação contínua, e o animal é levado desde a primeira formação a se lhe referir, a fixar-se nela por inteiro, a existir aí. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E se meu dedo pudesse ter memória? BORDEU. — Vosso dedo pensaria. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O que é pois a memória? BORDEU. — A propriedade do centro, o sentido específico da origem da rede, como a vista é a propriedade do olho: e não é mais espantoso que a memória não esteja no olho, quanto não o é que a vista não esteja na orelha. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, eludis minhas perguntas mais do que as satisfazeis. BORDEU. — Não eludo nada, digo-vos o que sei, e saberia mais, se a organização da origem me fosse tão bem conhecida como a de suas fibras, se dispusesse da mesma facilidade de observá-la. Mas se sou fraco quanto aos fenômenos particulares, em compensação, triunfo quanto aos fenômenos gerais. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E esses fenômenos gerais, quais são? BORDEU. — A razão, o juízo, a imaginação, a loucura, a imbecilidade, a ferocidade, o instinto. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Entendo. Todas essas qualidades não passam de consequências da relação, original ou contraída pelo hábito, da origem do feixe com as suas ramificações. BORDEU. — Muito bem. O princípio, ou o tronco, é demasiado vigoroso em relação aos ramos? Daí os poetas, os artistas, as pessoas de imaginação, os homens pusilânimes, os entusiastas, os loucos. Demasiado fraco? Daí o que chamamos os brutos, os animais ferozes. O sistema inteiro frouxo, mole, sem energia? Daí os imbecis. O sistema inteiro enérgico, bem concorde, bem ordenado? Daí os bons pensadores, os filósofos, os sábios. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E conforme o ramo tirânico que predomina, o instinto que se diversifica nos animais, o gênio que se diversifica nos homens; o cão tem olfato, o peixe audição, a águia vista, D’Alembert é geômetra, Vaucanson é inventor de máquinas, Grétry músico, Voltaire poeta; efeitos variados de uma fibra do feixe mais vigorosos em si do que qualquer outro e do que a fibra semelhante nos seres de sua espécie. BORDEU. — E os hábitos que subjugam; o velho que ama as mulheres e Voltaire que ainda produz tragédias. (Neste ponto, o doutor põe-se a sonhar e a Senhorita de l’Espinasse diz-lhe:) SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, estais sonhando. BORDEU. — É verdade. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Em que sonhais? BORDEU. — A propósito de Voltaire. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E então? BORDEU. — Sonho com a maneira com que se fazem os grandes homens. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E como se fazem eles? BORDEU. — Como a sensibilidade... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — A sensibilidade? BORDEU. — Ou a extrema mobilidade de certos filetes do feixe, que é a qualidade dominante dos seres medíocres. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ah! doutor, que blasfêmia. BORDEU. — Eu já esperava isso. Mas o que é um ser sensível? Um ser abandonado à discrição do diafragma. Uma palavra tocante feriu o ouvido, um fenômeno singular feriu o olho, e eis de repente o tumulto interno que se ergue, todas as fibras do feixe que se agitam, o frêmito que se espalha, o horror que se apodera, as lágrimas que correm, os suspiros que sufocam, a voz que se interrompe, a origem do feixe que não sabe o que ele se torna; não há mais sangue-frio, nem razão, nem julgamento, nem instinto, nem recurso. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eu me reconheço. BORDEU. — O grande homem, se por infelicidade recebeu essa disposição natural, ocupar-se-á sem trégua em enfraquecê-la, em dominá-la, em tornar-se senhor de seus movimentos e em conservar para a origem do feixe todo o seu império. Então ele se dominará em meio dos maiores perigos, julgará friamente, mas sãmente. Nada do que pode servir a suas concepções e concorrer a seu alvo lhe escapará; dificilmente espantar-se-á; terá quarenta e cinco anos; será grande rei, grande político, grande artista e, sobretudo, grande comediante, grande filósofo, grande poeta, grande músico, grande médico; reinará sobre si mesmo e sobre tudo o que o cerca. Não temerá a morte, medo, como disse sublimemente o estoico, que é uma alça que o robusto segura para levar o fraco a toda parte onde lhe apraz; ele terá quebrado a alça e ter-se-á ao mesmo tempo liberto de todas as tiranias do mundo. Os seres sensíveis ou os loucos se acham no palco, ele está na plateia; ele é o sábio. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Deus me guarde da sociedade desse sábio. BORDEU. — É por não haverdes trabalhado a fim de se lhe assemelhar que tereis alternadamente penas e prazeres violentos, que passareis a vida a rir e a chorar, e que nunca sereis mais do que uma criança. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eu me conformo a tanto. BORDEU. — E esperais ser mais feliz assim? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não sei nada. BORDEU. — Senhorita, esta qualidade tão apreciada, que não nos conduz a nada de grande, não se exerce quase nunca fortemente sem dor, ou fracamente sem aborrecimento; ou se boceja, ou se está ébrio. Vós vos prestais sem medida à sensação de uma música deliciosa; vós vos deixais arrastar pelo encanto de uma cena patética; vosso diafragma se fecha, o prazer passou e não vos resta senão uma sufocação, que dura todo o sarau. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas se não posso desfrutar da música sublime, nem da cena tocante, a não ser com essa condição? BORDEU. — Erro. Eu também sei desfrutar, sei admirar e jamais sofro, a não ser de cólica. Tenho prazer puro; minha censura é muito mais severa, meu elogio mais lisonjeiro e mais refletido. Será que existe a má tragédia para almas tão móveis como a vossa? Quantas vezes não enrubescestes, na leitura, devido aos transportes que experimentastes no espetáculo, e reciprocamente? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso me acontece. BORDEU. — Não é pois ao ser sensível como vós, mas ao ser tranquilo e frio como eu que compete dizer: isto é verdadeiro, isto é bom, isto é belo... Fortaleçamos a origem da rede, é tudo o que de melhor temos a fazer. Sabeis que há risco de vida? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De vida! Doutor, isso é grave. BORDEU. — Sim, de vida. Não há pessoa que não tenha tido alguma vez desgosto. Um só acontecimento basta para dar essa sensação involuntária e habitual; então, apesar das distrações, da variedade dos divertimentos, dos conselhos dos amigos, de seus próprios esforços, as fibras levam obstinadamente abalos funestos à origem do feixe; o infeliz em vão se debate, o espetáculo do universo se enegrece para ele; caminha com um cortejo de ideias lúgubres que não o largam, e ele acaba por livrar-se de si mesmo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, estais me dando medo. D’ALEMBERT. — (De pé, em robe de chambre e em gorro de dormir.) E do sono, doutor, o que dizeis? E uma boa coisa. BORDEU. — O sono, o estado em que, seja por cansaço, seja por hábito, a rede toda se relaxa e permanece imóvel; em que, como na doença, cada filete da rede se agita, se move, transmite à origem comum uma multidão de sensações amiúde disparatadas, descosidas, perturbadas; outras vezes tão ligadas, tão contínuas, tão bem ordenadas que o homem desperto não teria mais razão, nem mais eloquência, nem mais imaginação; às vezes tão violentas, tão vivas, que o homem desperto fica na incerteza quanto à realidade da coisa... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Pois bem, e o sono? BORDEU. — É um estado do animal em que não há mais conjunto: todo concerto, toda subordinação cessa. O amo é abandonado à discrição dos seus vassalos e à energia desenfreada de sua própria atividade. O fio óptico agitou-se? A origem da rede vê; ouve, se é o fio auditivo que a solicita. A ação e a reação são as únicas coisas que subsistem entre eles; é uma consequência da propriedade central, da lei de continuidade e do hábito. Se a ação começa pela fibra voluptosa, que a natureza destinou ao prazer do amor e à propagação da espécie, a imagem desperta do objeto amado será o efeito da reação na origem do feixe. Se tal imagem, ao contrário, desperta primeiro na origem do feixe, a tensão da fibra voluptosa, a efervescência e a efusão do fluido seminal serão as sequências da reação. D’ALEMBERT. — Assim há o sonho ascendente e o sonho descendente. Tive um deles esta noite: quanto ao caminho que tomou, ignoro. BORDEU. — Na vigília, a rede obedece às impressões do objeto exterior. No sono, é do exercício de sua própria sensibilidade que emana tudo quanto se passa nela. Não há distração alguma no sonho; daí sua vivacidade: é quase sempre a consequência de um eretismo, um acesso passageiro de moléstia. A origem do feixe é nele alternadamente ativa e passiva de uma infinidade de maneiras: daí sua desordem. Os conceitos encontram-se nele às vezes tão ligados, tão distintos, quanto no animal exposto ao espetáculo da natureza. Ele é apenas o quadro desse espetáculo reexcitado: daí sua verdade, daí a impossibilidade de discerni-lo do estado de vigília, não há nenhuma probabilidade de um desses estados mais do que de outro; nenhum meio de reconhecer o erro senão a experiência. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E a experiência é possível sempre? BORDEU. — Não. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Se o sonho me oferecer o espetáculo de um amigo que perdi, e mo oferecer tão verdadeiro como se esse amigo existisse; se ele me falar e eu o ouvir; se eu o tocar e se ele der a impressão de solidez às minhas mãos; se, ao meu despertar, eu tiver a alma plena de ternura e dor, e meus olhos inundados de lágrimas; se meus braços forem ainda levados para o lugar onde ele me apareceu, quem me responderá que eu não o vi, ouvi e toquei realmente? BORDEU. — Sua ausência. Mas, se é impossível discernir a vigília do sono, quem é que apreciará sua duração? Tranquilo, é um intervalo asfixiado entre o momento de deitar-se e o de levantar-se: perturbado, dura às vezes anos. No primeiro caso, pelo menos, a consciência do eu cessa inteiramente. Um sonho que nunca alguém teve e que nunca terá, me direis vós? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sim, é que somos outro. D’ALEMBERT. — E no segundo caso, não só temos consciência do eu, mas ainda a de sua vontade e de sua liberdade. O que é essa liberdade, o que é essa vontade do homem que sonha? BORDEU. — O que é? É a mesma que a do homem que vela: o último impulso do desejo e da aversão, o último resultado de tudo quanto se foi desde o nascimento até o momento em que se está: e eu desafio o espírito mais sutil a perceber aí a menor diferença. D’ALEMBERT. — Vós o credes? BORDEU. — E sois vós quem me propondes semelhante pergunta! Vós que, entregue a especulações profundas, passastes dois terços de vossa vida a sonhar de olhos abertos e a agir sem querer; sim, sem querer, bem menos que em vossos sonhos. Em vosso sonho comandais, ordenais, sois obedecido; ficais descontente ou satisfeito, experimentais contradição, deparais obstáculos, vós vos irritais, amais, odiais, censurais, ides, vindes. No decurso de vossas meditações, mal vossos olhos se abriam de manhã quando, presa novamente da ideia que vos preocupara na véspera, vós haveis vos vestido, sentado à vossa mesa, meditado, traçado figuras, seguido os cálculos, almoçado, retomado vossas combinações e às vezes deixado a mesa para verificá-las; vós haveis falado a outrem, dado ordens à vossa criada, ceado, vós haveis vos deitado, adormecido sem ter praticado o menor ato de vontade. Não fostes senão um ponto; agistes mas não quisestes. Será que se quer, por si? A vontade nasce sempre de algum motivo interior ou exterior, de alguma impressão presente, de alguma reminiscência do passado, de alguma paixão, de algum projeto no futuro. Depois disso, dir-vos-ei sobre a liberdade apenas uma palavra, é que a derradeira de nossas ações é o efeito necessário de uma causa una: nós, muito complicada, porém una. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Necessário? BORDEU. — Sem dúvida. Tentai conceber a produção de outra ação, supondo que o ser atuante seja o mesmo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele tem razão. Uma vez que eu ajo assim, aquele que pode agir de outro modo não é mais eu; e assegurar que no momento em que faço ou digo uma coisa, posso dizer ou fazer outra, é assegurar que eu sou eu e que eu sou um outro. Mas, doutor, e o vício e a virtude? A virtude, esta palavra tão santa em todas as línguas, esta ideia tão sagrada em todas as nações! BORDEU. — Cumpre transformá-la na de beneficência, e seu oposto na de maleficência. A gente nasce afortunada ou desafortunadamente; somos irresistivelmente arrastados pela torrente geral que conduz um à glória e outro à ignomínia. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E a autoestima, e a vergonha e o remorso? BORDEU. — Puerilidade fundada na ignorância e na vaidade de um ser que se imputa a si próprio o mérito ou o demérito de um instante necessário. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E as recompensas e os castigos? BORDEU. — São meios de corrigir o ser modificável que se denomina mal, e encorajar o que se denomina bom. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E essa doutrina toda nada tem de perigoso? BORDEU. — Ela é verdadeira ou falsa? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Creio que é verdadeira. BORDEU. — Isto quer dizer que pensais que a mentira tem suas vantagens, e a verdade seus inconvenientes. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Assim penso. BORDEU. — E eu também: mas as vantagens da mentira são momentâneas, e as da verdade são eternas; mas as consequências vergonhosas da verdade, quando ela as têm, passam depressa, e as da mentira só terminam com esta. Examinai os efeitos da mentira na cabeça do homem, e seus efeitos na conduta dele; em sua cabeça, ou a mentira ligou-se mais ou menos à verdade, e a cabeça é falsa; ou o homem está bem e consequentemente ligado à mentira, e a cabeça é errônea. Ora, que conduta podeis esperar de uma cabeça ou inconsequente em seus raciocínios, ou consequente em seus erros? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O último desses vícios, menos desprezível, é talvez mais de temer que o primeiro. D’ALEMBERT. — Muito bem: eis portanto tudo reduzido a sensibilidade, a memória, a movimentos orgânicos; isso me convém bastante. Mas a imaginação? Mas as abstrações? BORDEU. — A imaginação... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Um momento, doutor: recapitulemos. Segundo vossos princípios, parece-me que, por uma série de operações puramente mecânicas, eu reduziria o primeiro gênio da Terra a certa massa de carne não organizada, à qual se deixaria apenas a sensibilidade do momento, e que se reconduziria esta massa informe do estado de estupidez mais profunda que se possa imaginar à condição do homem de gênio. Um dos dois fenômenos consistiria em mutilar a meada primitiva de certo número de suas fibras, e a enredar bem o resto; e o fenômeno inverso em restituir à meada as fibras que foram separadas, e em abandonar o todo a um feliz desenvolvimento. Exemplo: tiro de Newton as duas fibras auditivas, e não há mais sensações de som; as fibras olfativas, e não há mais sensações de odores; as fibras ópticas, e não há mais sensações de cores; as fibras palatinas, e não há mais sensações de sabores; suprimo ou baralho as outras, e adeus a organização do cérebro, a memória, o julgamento, os desejos, as aversões, as paixões, a vontade, a consciência do eu, e eis certa massa informe que conservou apenas a vida e a sensibilidade. BORDEU. — Duas qualidades quase idênticas; a vida é do agregado, a sensibilidade é do elemento. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Retomo esta massa e lhe restituo as fibras olfativas, ela fareja; as fibras auditivas, ela ouve; as fibras ópticas, ela vê; as fibras palatinas, ela saboreia. Desenredando o resto da meada, permito às outras fibras que se desenvolvam, e vejo renascer a memória, as comparações, o juízo, a razão, os desejos, as aversões, as paixões, a aptidão natural, o talento, e volto a achar o meu homem de gênio, e isso sem a mediação de nenhum agente heterogêneo e ininteligível. BORDEU. — Muito bem: ficai nisso, o resto não passa de galimatias... Mas as abstrações? Mas a imaginação? A imaginação é a memória das formas e das cores. O espetáculo de uma cena, de um objeto, monta necessariamente o instrumento sensível de certa maneira; ele se remonta ou por si mesmo, ou é remontado por alguma causa estranha. Então freme por dentro ou ressoa por fora; recorda em silêncio as impressões que recebeu, ou as faz prorromper por meio de sons convencionados. D’ALEMBERT. — Mas seu relato exagera, omite circunstâncias, junta outras, desfigura o fato ou o embeleza, e os instrumentos sensíveis adjacentes concebem impressões que são realmente as do instrumento que ressoa, mas não as da coisa que se passou. BORDEU. — É verdade, o relato é histórico ou poético. D’ALEMBERT. — Mas como se introduziu essa poesia ou essa mentira no relato? BORDEU. — Pelas ideias que se despertam umas às outras, e elas se despertam porque sempre estiveram ligadas. Se tomastes a liberdade de comparar o animal a um cravo, me permitireis de fato comparar o relato do poeta ao canto. D’ALAMBERT. — Isso é justo. BORDEU. — Há em todo canto uma gama. Esta gama possui seus intervalos; cada uma de suas cordas possui seus harmônicos, e os harmônicos têm os seus. Foi assim que se introduziram modulações de passagem na melodia, que o canto se enriqueceu e se estendeu. O fato é um motivo dado que cada músico sente à sua maneira. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E por que embrulhar a questão com esse estilo figurado? Eu diria que, tendo cada um seus olhos, cada um vê e relata diversamente. Eu diria que cada ideia desperta outras, e que, conforme o temperamento ou o caráter de cada um, nós nos atemos às ideias que representam o fato rigorosamente, ou introduzimos nele as ideias despertadas, eu diria que entre essas ideias, há escolha; eu diria... que só esse tema tratado a fundo forneceria um livro. D’ALEMBERT. — Tendes razão; o que não me impedirá de perguntar ao doutor se está realmente persuadido de que uma forma, que não se assemelhasse a nada, nunca se engendraria na imaginação, e não se produziria de modo algum no relato. BORDEU. — Assim creio. Todo o delírio dessa faculdade se reduz ao talento desses charlatães que, de vários animais despedaçados, compõem outro, bizarro, que jamais se viu na natureza. D’ALEMBERT. — E as abstrações? BORDEU. — Não existem; o que existe são reticências habituais, elipses que tornam as proposições mais gerais e a linguagem mais rápida e mais cômoda. São os signos da linguagem que deram origem às ciências abstratas. Uma qualidade comum a várias ações engendrou as palavras vício e virtude; uma qualidade comum a vários seres engendrou as palavras feiura e beleza. Alguém disse um homem, um cavalo, dois animais; em seguida, alguém disse um, dois, três, e toda a ciência dos números nasceu. Ninguém tem ideia de uma palavra abstrata. Notaram-se em todos os corpos três dimensões, o comprimento, a largura e a profundidade; tratou-se de cada uma dessas dimensões, e daí todas as ciências matemáticas. Toda abstração não é senão um signo vazio de ideia. Excluir-se a ideia separando-se o signo do objeto físico, e é só ligando de novo o signo ao objeto físico que a ciência volta a ser uma ciência de ideias; daí a necessidade, tão frequente na conversação, nas obras, de chegar a exemplos. Quando, após uma longa combinação de signos, pedis um exemplo, não exigis de quem fala outra coisa exceto que dê corpo, forma, realidade, ideia ao rumor sucessivo de seus acentos, aplicando a isso sensações experimentadas. D’ALEMBERT. — A coisa está bem clara para vós, senhorita? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não extremamente, mas o doutor vai explicar-se. BORDEU. — É o que vos apraz dizer. Não que não haja talvez algo a retificar e muito a acrescentar ao que expus; mas são onze e meia, e tenho ao meio-dia uma consulta no Marais. D’ALEMBERT. — A linguagem mais rápida e mais cômoda! Doutor, será que a gente se ouve? Será que a gente é ouvido? BORDEU. — Quase todas as conversações são contas feitas... Não sei mais onde está minha bengala... Não há a seu respeito nenhuma ideia presente no espírito... E meu chapéu... E pela simples razão de que nenhum homem se parece particularmente com outro, nós nunca ouvimos precisamente, nunca somos precisamente ouvidos; há mais ou menos em tudo: nosso discurso está sempre aquém ou além da sensação. Percebe-se bem a diversidade em alguns juízos, porém há mil outras vezes em que não se percebe, e em que felizmente não se poderia perceber... Adeus, adeus. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Uma palavra ainda, por favor. BORDEU. — Falai, pois, mas depressa. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ainda vos lembrais daqueles saltos de que me falastes? BORDEU. — Sim. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Credes que os tolos e as pessoas de espírito tenham desses saltos em suas raças? BORDEU. — Por que não? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Tanto melhor para os nossos pósteros; talvez se reproduza um Henrique IV. BORDEU. — Talvez já se tenha reproduzido. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, deveríeis vir almoçar conosco. BORDEU. — Farei o possível, não prometo; vós me prendeis quando venho. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Esperar-vos-emos até as duas horas. BORDEU. — Aceito. CONTINUAÇÃO DO DIÁLOGO INTERLOCUTORES: Senhorita de l’Espinasse e Bordeu Perto das duas horas, o doutor volta. D’Alembert foi almoçar fora, e o doutor se encontra a sós com a Senhorita de l’Espinasse. A mesa é servida. Os dois falam de coisas indiferentes até a sobremesa; mas, quando os criados são dispensados, a Senhorita de l’Espinasse diz ao doutor: SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Vamos, doutor, bebei uma taça de málaga, e em seguida me respondereis a uma pergunta que me passou cem vezes pela cabeça, e que só ousaria propor a vós. BORDEU. — Esse málaga é excelente... E vossa pergunta? SENHORITA DE l’ESPINASSE. -— O que pensais da mistura das espécies? BORDEU. — Por minha fé, a pergunta também é boa. Penso que os homens atribuíram muita importância ao ato da geração, e que foi com razão; mas estou descontente com suas leis tanto civis como religiosas. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E o que achais para censurar-lhes? BORDEU. — Que foram feitas sem equidade, sem objetivo e sem nenhum respeito para com a natureza das coisas e a utilidade pública. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Tentai explicar-vos. BORDEU. — É meu desígnio... Mas esperai... (Olha para o relógio.) Disponho ainda de uma boa hora para vos dar; serei rápido, e isso nos bastará. Estamos sós, não sois hipócrita e não ireis imaginar que pretendo faltar com o respeito que vos devo; e, qualquer que seja o julgamento que fizerdes de minhas ideias, espero, de meu lado, que nada haveis de concluir contra a honestidade de meus costumes. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Com toda certeza, mas vosso início me inspira cuidados. BORDEU. — Nesse caso, mudemos de assunto. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não, não: ide adiante. Um de vossos amigos que nos procurava maridos, a mim e a minhas duas irmãs, dava um silfo à mais nova, um grande anjo de anunciação à mais velha, e a mim um discípulo de Diógenes; ele conhecia muito bem todas as três. Entretanto, devagar, doutor, um pouco devagar. BORDEAU. — Isso nem é preciso recomendar, na medida em que o assunto e o meu estado comportam. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Isso não vos custará muito... Mas aí está vosso café... tomai vosso café. BORDEU— (Após tomar o café.) Vossa pergunta é de física, de moral e de poética. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De poética! BORDEU. — Sem dúvida; a arte de criar seres que não existem, à imitação dos que existem, é verdadeira poesia. Desta vez, em lugar de Hipócrates, permitireis pois que eu cite Horácio. Este poeta, ou autor, diz algures: Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci; o mérito supremo é o de ter reunido o útil ao agradável. A perfeição consiste em conciliar esses dois pontos. A ação agradável e útil deve ocupar o primeiro lugar na ordem estética; não podemos recusar o segundo ao útil; o terceiro caberá ao agradável; e relegaremos ao grau ínfimo aquele que não produz prazer nem proveito. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Até aí posso compartilhar de vossa opinião sem enrubescer. Onde nos levará isso? BORDEU. — Ireis ver: senhorita, poderíeis informar-me que proveito e que prazer a castidade e a continência rigorosas produzem, seja ao indivíduo que as pratica, seja à sociedade? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Por Deus, nenhum. BORDEU. — Logo, a despeito dos magníficos elogios que o fanatismo lhes prodigalizou, a despeito das leis civis que as protegem, nós as excluiremos do catálogo das virtudes, e conviremos que nada há de tão pueril, de tão ridículo, de tão absurdo, de tão nocivo, de tão desprezível, nada há de pior, à exceção do mal positivo, do que essas duas raras qualidades... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Pode-se conceder isso. BORDEU. — Tomai cuidado, eu vos previno, logo mais haveis de recuar. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Nós jamais recuamos. BORDEU. — E as ações solitárias? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E então? BORDEU. — Então, elas produzem pelo menos prazer ao indivíduo, e nosso princípio é falso, ou... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — O que, doutor!... BORDEU. — Sim, senhorita, sim, e pela razão de que são também indiferentes, de que não são também estéreis. É uma necessidade, e mesmo que não fôssemos a tanto solicitados pela necessidade, é sempre algo doce. Desejo que as pessoas fiquem bem de saúde, desejo-o absolutamente, compreendeis? Censuro todo excesso, mas em um estado de sociedade tal como o nosso, há cem considerações razoáveis contra uma, sem contar o temperamento e as consequências funestas de uma continência rigorosa sobretudo para as pessoas jovens; a pouca fortuna, o temor entre os homens de um arrependimento agudo e entre as mulheres o da desonra, que reduzem uma infeliz criatura que perece de langor e enfado, um pobre-diabo que não sabe a quem se dirigir, a aviar-se à maneira do cínico. Catão, que dizia a um moço que estava a ponto de entrar em casa de uma cortesã: “Coragem, meu filho...”, far-lhe-ia a mesma consideração hoje em dia? Se o surpreendesse ao contrário, só, em flagrante delito, não acrescentaria: isso é melhor do que corromper a mulher de outrem, ou do que expor a honra e a saúde?... Pois que! Pelo fato de as circunstâncias me privarem da maior ventura que se possa imaginar, a de confundir meus sentidos com os sentidos, minha embriaguez com a embriaguez, minha alma com a alma de uma companheira que meu coração escolhesse, e de me reproduzir nela e com ela; pelo fato de não poder consagrar minha ação com o selo da utilidade, eu me vedaria um instante necessário e delicioso! Fazemo-nos sangrar na pletora; e que importa a natureza do humor superabundante, e sua cor, e a maneira de se livrar dele? Ele é tão supérfluo em uma dessas indisposições quanto na outra; e se, rebombeado de seus reservatórios, distribuído por toda a máquina, ele se escoa por outra via mais longa, mais penosa e perigosa, ficará menos perdido? A natureza não suporta nada de inútil; e como hei de ser culpado por ajudá-la, quando pede meu auxílio pelos sintomas menos equívocos possíveis? Não a provoquemos nunca, mas prestemos-lhe a mão na oportunidade, não vejo na recusa e na ociosidade senão tolice e prazer falhado. Vivei sóbrio, dir-me-ão, extenuai-vos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Eis uma doutrina que não é boa para se pregar às crianças. BORDEU. — Nem aos outros. Entretanto, vós me permitireis uma suposição? Tendes uma filha recatada, muito recatada, inocente, muito inocente; está na idade em que o temperamento se desenvolve. Sua cabeça se perturba, a natureza não a socorre de modo algum: vós me chamais. Percebo de pronto que todos os sintonias que vos atemorizam nascem da superabundância e da retenção do fluido seminal; eu vos advirto que ela está ameaçada de uma loucura que é fácil prevenir, e que às vezes é impossível curar; eu vos indico o remédio. Que fazeis? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Para dizer a verdade, creio... mas esse caso nunca acontece... BORDEU. — Não vos enganeis; não é raro e seria frequente, se a licença dos costumes não o obviasse... Seja como for, seria calcar aos pés toda decência, atrair sobre si as suspeitas mais odiosas, e cometer um crime de lesa-sociedade divulgar tais princípios. Estais devaneando. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sim, eu me abalançava a perguntar-vos se alguma vez chegastes a precisar fazer semelhante confidência às mães. BORDEU. — Seguramente. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E que alvitre adotaram essas mães? BORDEU. — Todas, sem exceção, o bom alvitre, o sensato... Eu não tiraria, na rua, o meu chapéu ao homem suspeito de praticar minha doutrina; bastar-me-ia que o chamassem de infame. Mas estamos conversando sem testemunhas e sem consequências; e eu vos direi de minha filosofia o que Diógenes inteiramente nu dizia ao jovem e pudico ateniense contra o qual ele se preparava para lutar: “Meu filho, nada temas, não sou tão malvado como aquele ali”. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Doutor, vejo aonde quereis chegar, e aposto... BORDEU. — Não aposteis, ganharíeis. Sim, senhorita, é minha opinião. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Como! quer a gente se encerre na muralha da própria espécie, quer a gente saia? BORDEU. — É verdade. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sois monstruoso. BORDEU. — Não sou eu, é ou a natureza ou a sociedade. Ouvi senhorita, não fico impressionado com palavras, e me explico tanto mais livremente quanto sou limpo e quanto a pureza de meus costumes não deixa azo de nenhum lado. Eu vos perguntaria pois, de duas ações igualmente restritas à voluptuosidade, que só podem produzir prazer sem utilidade, mas das quais uma o proporciona apenas a quem a comete e a outra o partilha com um ser similar masculino ou feminino, pois o sexo, no caso, nem tampouco o emprego do sexo nada altera, em favor de qual o senso comum se pronunciaria? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Essas questões são muito sublimes para mim. BORDEU. — Ah! depois de ter sido um homem durante quatro minutos, eis que retomais vossa coifa e vossos saiotes, e voltais a ser mulher. Está certo? Pois bem! Cumpre tratar-vos como tal... A coisa está decidida... Não se diz mais palavra de Madame du Barry... Como vedes tudo se arruma; julgava-se que a corte ia ficar transtornada. O amo procedeu como homem sensato. Omne tulit punctum, guardou a mulher que lhe dá gosto, e o ministro que lhe é útil... Mas vós não me escutais... Onde estais? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Estou nessas combinações que se me afiguram todas contra a natureza. BORDEU. — Tudo o que existe não pode ser nem contra a natureza, nem fora da natureza; não excetuo sequer a castidade e a continência voluntárias, que seriam os primeiros dos crimes contra a natureza, se se pudesse pecar contra a natureza, e os primeiros dos crimes contra as leis sociais de um país onde fossem pesadas as ações em outra balança que não a do fanatismo e do preconceito. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Volto a vossos malditos silogismos, e não vejo neles qualquer meio-termo, é preciso ou tudo negar ou tudo aceitar... Mas vede, doutor, é mais honesto e mais curto saltar por cima do lamaçal e retornar à minha primeira pergunta: que pensais da mistura das espécies? BORDEU. — Nada há a saltar para isso; estávamos nela. Vossa pergunta é de física ou de moral? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De física, de física. BORDEU. — Tanto melhor; a questão de moral caminhava à frente, e vós a concluís. Assim, pois... SENHORITA DE l’ESPINASSE. — De acordo... sem dúvida é uma preliminar, mas eu gostaria... que separásseis a causa do efeito. Deixemos a causa vil de lado. BORDEU. — É ordenar-me que comece pelo fim; mas já que o quereis, dir-vos-ei que, graças à nossa pusilanimidade, às nossas repugnâncias, às nossas leis, aos nossos preconceitos, há pouquíssimas experiências feitas; que se ignoram quais seriam as cópulas inteiramente infrutuosas; os casos em que o útil se reuniria ao agradável; que sorte de espécies se poderia esperar de tentativas variadas e seguidas; se os faunos são reais ou fabulosos; se não se multiplicariam de cem maneiras diversas as raças dos mulos, e se as que conhecemos são verdadeiramente estéreis. Mas um fato singular, que uma infinidade de pessoas instruídas vos atestará como verídico, e que é falso, é que viram no pátio das criações do arquiduque infame coelho que servia de galo a uma vintena de galinhas infames, as quais se conformavam com o fato; acrescentarão que viram frangos cobertos de pelos e originários dessas bestialidades. Acreditai que essa gente foi objeto de zombaria. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas o que entendeis por tentativas seguidas? BORDEU. — Entendendo que a circulação dos seres é gradual, que as assimilações dos seres precisam ser preparadas, e que, para lograr êxito nessa espécie de experiência, cumpriria atacá-las de longe e trabalhar primeiro para aproximar os animais por um regime análogo. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Dificilmente se obrigará um homem a pastar. BORDEU. — Mas não a tomar com frequência leite de cabra, e se levará facilmente a cabra a nutrir-se de pão. Escolhi a cabra por considerações que me são particulares. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E quais são essas considerações? BORDEU. — Sois bem ousada! É que... é que tiraríamos dela uma raça vigorosa, inteligente, infatigável e veloz, da qual faríamos excelentes domésticos. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Muito bem, doutor. Parece-me que já enxergo, atrás da viatura de vossas duquesas, cinco ou seis grandes e insolentes caprípedes, e isso me rejubila. BORDEU. — É que não mais degradaríamos nossos irmãos, sujeitando-os a funções indignas deles e de nós. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ainda melhor. BORDEU. — E que não reduziríamos mais o homem em nossas colônias à condição de besta de carga. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não percais tempo, doutor, lançai-vos à tarefa, e fazei-vos caprípedes. BORDEU. — E vós o permitireis sem escrúpulo? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas, detende-vos, ocorre-me algo; vossos caprípedes seriam desenfreados dissolutos. BORDEU. — Eu não vos garanti que fossem muito morais. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não haverá mais segurança para as mulheres honestas, eles se multiplicarão sem fim, com o tempo será preciso matá-los a pancada ou obedecer-lhes. Não os quero mais, não os quero mais. Mantende-vos sossegado. BORDEU. — (Indo-se embora.) E a questão do batismo deles? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Armaria um belo charivari na Sorbonne. BORDEU. — Vistes no Jardim do Rei, sob uma jaula de vidro, um orangotango com o ar de um São João que prega no deserto? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Sim, eu o vi. BORDEU. — O Cardeal de Polignac lhe dizia um dia: “Fala, que eu te batizo”. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Adeus então, doutor; não nos abandoneis por séculos, como costumais proceder, e pensai às vezes que eu vos amo até a loucura. Se alguém soubesse os horrores que me contastes? BORDEU. — Estou certo de que haveis de calá-los. SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Não vos fieis nisso, eu só ouço pelo prazer de repetir. Mas uma palavra ainda, e em minha vida jamais voltarei ao assunto. BORDEU. — O que é? SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Esses gostos abomináveis, de onde provêm eles? BORDEU. — Em toda parte, de uma pobreza de organização das pessoas jovens, e da corrupção da cabeça nos velhos; da atração pela beleza em Atenas, da falta de mulheres em Roma, do medo da varíola em Paris. Adeus, adeus.