Denis Diderot – Dos Autores e Dos Críticos Capítulo final do “Discurso Sobre a Poesia Dramática”. Os viajantes falam de uma espécie de homens selvagens, que sopram no passante agulhas envenenadas. É a imagem de nossos críticos. Esta comparação vos parece exagerada? Convinde ao menos que eles se assemelham bastante a um solitário que vivia no fundo de um vale cercado de colinas por todos os lados. Esse espaço limitado era, para ele, o universo. Girando sobre um pé, e percorrendo com um golpe de vista seu estreito horizonte, exclamava: “Sei tudo; vi tudo”. Mas tentado um dia a pôr-se em marcha, a aproximar-se de alguns objetos que se lhe furtavam ao olhar, galgou o cume de uma dessas colinas. Qual não foi seu espanto, quando viu um espaço imenso desenvolver-se acima de sua cabeça e à sua frente? Então, mudando de discurso, disse: “Não sei nada; não vi nada”. Eu disse que os nossos críticos se pareciam com esse homem; estou enganado, eles permanecem no fundo de sua choupana, e nunca perdem a elevada opinião que têm de si próprios. O papel de um ator é um papel bastante vão; é o de um homem que se julga em condição de dar lições ao público. E o papel do crítico? É bem mais vão ainda; é o de um homem que se julga em condição de dar lições àquele que se julga em condição de as dar ao público. O autor diz: “Senhores, escutai-me; pois sou vosso mestre”. E o crítico: “É a mim, senhores, que cumpre escutar; pois sou o mestre de vossos mestres”. Quanto ao público, toma o seu próprio partido. Se a obra do autor é má, zomba dela, assim como das observações do crítico, caso sejam falsas. O crítico brada depois disso: “Ó tempo! Ó costume! O gosto está perdido!” e ei-lo consolado. O autor, de seu lado, acusa os espectadores, os atores e a cabala. Apela a seus amigos; lera-lhes a peça antes de entregá-la ao teatro: ela devia ir às nuvens. Mas vossos amigos cegos ou pusilânimes não ousaram dizer-vos que lhe faltava encadeamento, caracteres e estilo; e crede, o público quase nunca se engana. Vossa peça malogrou porque é má. “Mas o Misantropo não andou vai não vai?” É verdade. Oh! Como é doce, após uma desventura, contar com esse exemplo! Se eu subir alguma vez em cena, e se daí for expulso pelas vaias, espero realmente também lembrar-me dele. A crítica procede bem diversamente com os vivos e com os mortos. Um autor está morto? Ela se ocupa em realçar suas qualidades, e em paliar seus defeitos. Está vivo? É o contrário, são seus defeitos que realça, e suas qualidades que esquece. E há certa razão para tanto: pode-se corrigir os vivos; ao passo que os mortos não têm recurso. Entretanto, o censor mais severo de uma obra é o autor. Quanto trabalho ele se dá por si só! É ele quem conhece o seu vício secreto; e este quase nunca se encontra lá onde o crítico põe o dedo. Isso me recordou muitas vezes a frase de um filósofo: “Eles falam mal de mim? Ah! se me conhecessem, como eu me conheço!...” Os autores e os críticos antigos começavam por instruir-se; não entravam na carreira das letras senão ao sair das escolas de filosofia. Quanto tempo não guardava o autor a sua obra antes de expô-la ao público? Daí essa correção, que só pode ser efeito dos conselhos, da lima e do tempo. Nós nos apressamos demais em aparecer; e não éramos talvez nem bastante esclarecidos, nem bastante pessoas de bem, quando tomamos da pena. Se o sistema moral está corrompido, é inevitável que o gosto seja falso. A verdade e a virtude são as amigas das belas-artes. Quereis ser autor? Quereis ser crítico? Começai por ser homem de bem. Que esperar de quem não pode afligir-se profundamente? E de que me afligirei eu profundamente, senão da verdade e da virtude, as duas coisas mais poderosas da natureza? Se alguém me assegura que um homem é avaro, terei dificuldade em crer que ele produza algo de grande. Esse vício apouca o espírito e estreita o coração. As desgraças públicas nada significam para o avaro. Às vezes, rejubila-se com elas. É duro. Como há de elevar-se a algo de sublime? Está incessantemente curvado sobre um cofre forte. Ignora a velocidade do tempo e a brevidade da vida. Concentrado em si mesmo, é estranho à beneficência. A felicidade de seu semelhante nada representa a seus olhos, em comparação com um pedacinho de metal amarelo. Jamais conheceu o prazer de dar a quem carece, de aliviar quem sofre, e de chorar com quem chora. É mau pai, mau filho, mau amigo, mau cidadão. Na necessidade de escusar-se de seu vício, formou para si um sistema que imola todos os deveres à sua paixão. Se se propusesse pintar a comiseração, a liberdade, a hospitalidade, o amor à pátria, o amor ao gênero humano, onde encontraria as cores necessárias? Ele pensou, no fundo do coração, que tais qualidades não passam de extravagâncias e loucuras. Após o avaro, cujos meios todos são vis e mesquinhos, e que não ousaria sequer tentar um grande crime para conseguir dinheiro, o homem de gênio mais estreito e mais capaz de praticar males, o menos tocado pelo verídico, pelo bom e pelo belo, é o supersticioso. Após o supersticioso, é o hipócrita. O supersticioso possui a vista perturbada; o hipócrita, o coração falso. Se sois bem-nascido, se a natureza vos concedeu espírito reto e coração sensível, fugi por algum tempo à sociedade dos homens; ide estudar-vos a vós mesmo. Como produzirá o instrumento uma justa harmonia, se está desafinado? Obtende noções exatas das coisas; comparai vossa conduta com vossos deveres; tornai-vos homem de bem, e não acrediteis que este trabalho e este tempo tão bem empregados pelo homem sejam perdidos pelo autor. Jorrará, da perfeição moral que houverdes estabelecido em vosso caráter e em vossos costumes, um matiz de grandeza e de justiça que se espalhará sobre tudo o que escreverdes. Se quereis pintar o vício, sabei de vez quão contrário ele é à ordem geral e à felicidade pública e particular; e haveis de pintá-lo fortemente. Se é a virtude, como falareis dela de modo a levar os outros a amá-la, se ela não vos arrebata? De retorno entre os homens, ouvi muito os que falam bem; e falai frequentemente a vós mesmo. Meu amigo, conheceis Aristo: devo-lhe o que vou narrar-vos. Contava então quarenta anos. Dedicara-se particularmente ao estudo da filosofia. Fora cognominado “o Filósofo”, porque nascera sem ambição, porque tinha a alma honesta, porque a inveja nunca alterara nesta a doçura e a paz. De resto, grave no porte, severo nos costumes, austero e simples nos discursos, o manto de um antigo filósofo era quase a única coisa que lhe faltava; pois era pobre, e estava contente com a pobreza. Um dia, em que se propusera passar com os amigos algumas horas a conversar sobre as letras ou sobre a moral, pois não gostava de falar dos negócios públicos, encontrou-os ausentes, e tomou o alvitre de passear sozinho. Frequentava pouco os sítios onde os homens se reúnem. Os lugares afastados agradavam-lhe mais. Ia devaneando e eis o que dizia de si para consigo. “Tenho quarenta anos. Estudei muito: chamam-me o Filósofo. Se, entretanto, se apresentasse aqui alguém que me dissesse: ‘Aristo, o que é o verdadeiro, o bom e o belo?’ Teria eu minha resposta pronta? Não. Como, Aristo; não sabeis o que é o verdadeiro, o bom e o belo; e suportais que vos chamem de filósofo!” Após algumas reflexões sobre a vaidade dos elogios que se prodigalizam sem conhecimento e que se aceitam sem pudor, pôs-se a pesquisar a origem dessas ideias fundamentais de nossa conduta e de nossos julgamentos; e eis como continuou a raciocinar consigo mesmo. Não há talvez na espécie humana inteira dois indivíduos que disponham de alguma semelhança aproximada. A organização geral, os sentidos, a figura externa, as vísceras, têm sua variedade. As figuras, os músculos, os sólidos, os fluidos, têm sua variedade. O espírito, a imaginação, a memória, as ideias, as verdades, os prejuízos, os alimentos, os exercícios, os conhecimentos, as condições, a educação, os gostos, a fortuna, os talentos, têm sua variedade. Os objetos, os climas, os costumes, as leis, os usos, as práticas, os governos, as religiões, têm sua variedade. Como seria, portanto, possível que dois homens possuíssem precisamente o mesmo gosto, ou as mesmas noções do verdadeiro, do bom e do belo? A diferença da vida e a variedade dos acontecimentos bastariam por si para estabelecê-la no julgamento. “Não é tudo. No mesmo homem, tudo está em vicissitude perpétua, quer o consideremos no físico, quer o consideremos no moral; a pena sucede ao prazer, o prazer à pena; a saúde à moléstia, a moléstia à saúde. É só pela memória que somos um e o mesmo indivíduo para os outros e para nós próprios. Não me resta, quiçá, na idade em que estou, uma única molécula do corpo que trouxe ao nascer. Ignoro o termo prescrito de minha duração; mas, quando vier o momento de devolver este corpo à terra, não restará talvez uma só das moléculas que ora ele tem. A alma em diferentes períodos da vida não se assemelha muito mais. Eu balbuciava na infância; eu julgo raciocinar presentemente; mas, enquanto raciocino, o tempo passa e volto ao balbucio. Tal é minha condição e a de todos. Como seria, pois, possível que houvesse um só entre nós que conservasse durante toda a existência o mesmo gosto, e que proferisse os mesmos julgamentos sobre o verdadeiro, o bom e o belo? As revoluções, causadas pela aflição e pela perversidade dos homens, bastariam por si para alterar seus julgamentos. “O homem estará, portanto, condenado a não concordar nem com seus semelhantes, nem consigo próprio, sobre os únicos objetos que lhe importam conhecer, a verdade, a bondade, a beleza? Serão essas coisas locais, momentâneas e arbitrárias, palavras destituídas de senso? Não haverá nada que seja tal? Uma coisa será verdadeira, boa e bela, quando me parece sê-lo? E todas as nossas disputas acerca do gosto resolver-se-iam enfim nesta proposição: nós somos, vós e eu, dois seres diferentes; e eu próprio nunca sou em um instante o que eu era em outro?” Aqui Aristo fez uma pausa, a seguir recomeçou: É certo que não haverá termo para nossas disputas, enquanto cada um tomar a si mesmo como modelo e como juiz. Existirão tantas medidas quantos homens, e o mesmo homem contará tantos módulos diferentes quantos períodos sensivelmente diferentes em sua existência. Isso me basta, parece-me, para sentir a necessidade de procurar uma medida, um módulo fora de mim. Enquanto semelhante pesquisa não estiver realizada, a maioria de meus julgamentos hão de ser falsos e todos incertos. “Mas onde obter a medida invariável que procuro e que me falta?... Em um homem ideal que formarei para mim, ao qual apresentarei os objetos, que sentenciará, e do qual me limitarei a ser apenas o eco fiel? Mas esse homem será minha obra... Que importa, se eu o crio segundo elementos constantes... E tais elementos constantes, onde é que se encontram?... Na natureza?... Seja. Mas como reuni-los?... A coisa é difícil, mas será impossível?... Ainda que não pudesse alimentar a esperança de formar um modelo acabado, ficaria dispensado de tentar?... Não... Tentemos, então... Mas se o modelo de beleza ao qual os antigos escultores reportaram a seguir todas as suas obras lhes custou tantas observações, estudos e esforços, a que me obrigo eu?... Cumpre, no entanto, fazê-lo, ou então ouvir-se chamar sempre de Aristo, o Filósofo, e corar.” Neste ponto, Aristo fez uma segunda pausa um pouco mais longa que a primeira, depois da qual continuou: “Vejo ao primeiro relance que, sendo o homem ideal que procuro um composto como eu, os antigos escultores, ao determinarem as proporções que lhes pareceram mais belas, fizeram uma parte de meu modelo... Sim. Tomemos esta estátua, e animemo-la... Concedamos-lhe os órgãos mais perfeitos que o homem possa ter. Dotemo-la de todas as qualidades que são dadas a um mortal possuir, e nosso modelo ideal estará feito... Sem dúvida... Mas que estudo! Que trabalho! Quantos conhecimentos físicos, naturais e morais a adquirir! Não conheço nenhuma ciência, nenhuma arte em que não precisarei ser profundamente versado... Por isso, terei o modelo ideal de toda verdade, de toda bondade e de toda beleza... Mas semelhante modelo geral ideal é impossível de formar, a menos que os deuses me concedam sua inteligência e me prometam sua eternidade: eis-me, portanto, recaído nas incertezas, de onde me propusera sair.” Aristo, triste e pensativo, deteve-se ainda nesta passagem. “Mas por que”, prosseguiu, após um momento de silêncio, não imitaria também os escultores? Eles criaram um modelo próprio à condição deles; e eu tenho o meu... Que o homem de letras faça um modelo ideal do homem de letras mais completo possível, e que seja pela boca desse homem que ele julgue as produções dos outros e as suas. Que o filósofo siga o mesmo plano... Tudo o que parecer bom e belo para o mencionado modelo, há de sê-lo... Eis o órgão de suas decisões... O modelo ideal será tanto maior e mais severo quanto mais estendermos seus conhecimentos... Não há pessoa, e não pode haver pessoa, que julgue igualmente bem em todos os aspectos do verdadeiro, do bom e do belo. Não: e se se entender por homem de gosto aquele que traz em si o modelo geral ideal de toda perfeição, trata-se de uma quimera. “Mas esse modelo ideal que é próprio ao meu estado de filósofo, já que se quer me chamar assim, que uso farei dele quando o tiver? O mesmo que os pintores e os escultores fizeram daquele de que dispunham. Modificá-lo-ei segundo as circunstâncias. Eis o segundo estudo ao qual deverei dedicar-me. O estudo curva o homem de letras. O exercício firma o passo e alça a cabeça do soldado. O hábito de transportar fardos arria os rins do carregador. A mulher grávida lança a cabeça para trás. O corcunda dispõe seus membros de outra maneira que o homem normal. Eis as observações que, multiplicadas ao infinito, formam o estatuário, ensinam-lhe a alterar, fortalecer, enfraquecer, desfigurar e reduzir seu modelo ideal, do estado de natureza a determinado outro estado que lhe apraz. É o estudo das paixões, dos costumes, dos caracteres, dos usos, que ensinará ao pintor do homem a alterar seu modelo e a reduzi-lo do estado de homem ao estado de homem bom ou mau, tranquilo ou colérico. É assim que, de um só simulacro, emanará infinita variedade de representações diferentes que cobrirão a cena e a tela. Trata-se de um poeta? De um poeta que compõe? Compõe ele uma sátira ou um hino? Se for uma sátira, terá o olhar feroz, a cabeça enterrada entre os ombros, a boca fechada, os dentes cerrados, a respiração forçada e sufocada: é um furioso. E se for um hino? Terá a cabeça elevada, a boca entreaberta, os olhos voltados para o céu, o ar do transporte e do êxtase, a respiração Ofegante: é um entusiasta. E a alegria desses dois homens, após o êxito, não apresentará caracteres diferentes?” Após esse diálogo consigo mesmo, Aristo compreendeu que tinha ainda muito a aprender. Voltou à sua casa. Encerrou-se durante uma quinzena de anos. Dedicou-se à história, à filosofia, à moral, às ciências e às artes; e foi, aos cinquenta e cinco anos, homem de bem, homem instruído, homem de gosto, grande autor e crítico excelente.