Denis Diderot – Diálogo entre D’Alembert e Diderot D’ALEMBERT. — Confesso que um Ser que existe em alguma parte e que não corresponde a nenhum ponto do espaço, um Ser que é inextenso e que ocupa extensão, que é totalmente inteiro sob cada parte dessa extensão, que difere essencialmente da matéria e que lhe está unido, que a segue e que a move sem mover-se, que atua sobre ela e sofre todas as suas vicissitudes, um Ser do qual não tenho a menor ideia, um Ser de uma natureza tão contraditória, é difícil de admitir. Mas outras obscuridades esperam a quem o rejeite; pois afinal essa sensibilidade pela qual vós o substituís, se for uma qualidade geral e essencial da matéria, a pedra deverá senti-la. DIDEROT. — Por que não? D’ALEMBERT. — Isso é difícil de crer. DIDEROT. — Sim, para quem se ponha a cortá-la, talhá-la, triturá-la e não a ouça gritar. D’ALEMBERT. — Gostaria que me dissésseis que diferença estabeleceis entre o homem e a estátua, entre o mármore e a carne. DIDEROT. — Muito pouca. Da carne se faz mármore e do mármore, carne. D’ALEMBERT. — Mas um não é outro. DIDEROT. — Assim como o que denominais força viva não é força morta. D’ALEMBERT. — Não vos entendo. DIDEROT. — Vou explicar-me. O transporte de um corpo de um lugar para outro não é o movimento, é apenas o efeito. O movimento está, igualmente, quer no corpo transferido, quer no corpo imóvel. D’ALEMBERT. — Essa maneira de ver é nova. DIDEROT. — Nem por isso é menos verdadeira. Retirai o obstáculo que se opõe ao transporte local do corpo imóvel, e ele será transferido. Suprimi por súbita rarefação o ar que envolve aquele enorme tronco de carvalho, e a água nele contida, entrando de repente em expansão, o dispersará em cem mil lascas. Digo outro tanto de vosso próprio corpo. D’ALEMBERT. — Seja. Mas que relação há entre o movimento e a sensibilidade? Por acaso reconheceríeis uma sensibilidade ativa e uma sensibilidade inerte, assim como há uma força viva e uma força morta? Uma força viva que se manifesta pela translação e uma força morta que se manifesta pela pressão; uma sensibilidade ativa que se caracteriza por certas ações notáveis no animal e talvez na planta; e uma sensibilidade inerte cuja existência nos seria assegurada pela passagem ao estado de sensibilidade ativa. DIDEROT. — Muito bem. Vós o dissestes. D’ALEMBERT. — Assim a estátua tem apenas uma sensibilidade inerte; e o homem, o animal, e a própria planta, talvez, são dotados de uma sensibilidade ativa. DIDEROT. — Existe sem dúvida essa diferença entre o bloco de mármore e o tecido de carne; mas compreendeis muito bem que não é a única. D’ALEMBERT. — Seguramente. Qualquer que seja a semelhança existente entre a forma exterior do homem e da estátua, não há nenhuma relação entre a organização interna de ambos. O cinzel do mais hábil estatuário não produz sequer uma epiderme. Mas há um processo muito simples para fazer passar uma força morta ao estado de força viva; é uma experiência que se repete debaixo de nossos olhos cem vezes por dia; ao passo que não vejo bem como se faz passar um corpo do estado de sensibilidade inerte ao estado de sensibilidade ativa. DIDEROT. — É que não quereis vê-lo. Trata-se de um fenômeno tão comum. D’ALEMBERT. — E esse fenômeno tão comum, qual é, por favor? DIDEROT. — Vou dizer-vos, já que desejais passar pela vergonha. Isso ocorre todas as vezes que comeis. D’ALEMBERT. — Todas as vezes que eu como! DIDEROT. — Sim; pois, ao comer, o que fazeis? Levantais os obstáculos que se antepunham à sensibilidade ativa do alimento. Vós o assimilais a vós próprio; vós o converteis em carne; vós o animalizais; vós o tornais sensível; e o que executais com um alimento, eu executaria quando me aprouvesse com o mármore. D’ALEMBERT. — Como assim? DIDEROT. — Como? Torná-lo-ia comestível. D’ALEMBERT. — Tornar o mármore comestível não me parece fácil. DIDEROT. — É meu problema indicar-vos o processo. Tomo a estátua que vedes, meto-a num almofariz, e com fortes golpes de pilão... D’ALEMBERT. — Devagar, por favor: é a obra-prima de Falconet. Ainda se fosse uma peça de Huez ou de outro... DIDEROT. — Isso não faz mal algum a Falconet; a estátua está paga, e Falconet faz pouco caso da consideração presente e nenhum da consideração futura. D’ALEMBERT. — Vamos, pulverizai-a então. DIDEROT. — Quando o bloco de mármore estiver reduzido a pó impalpável, misturo esse pó ao humo ou terra vegetal; eu os amasso bem um com o outro; rego a mistura, deixo-a putrefazendo-se um ano, dois, um século, o tempo não importa. Quando o todo estiver transformado em uma matéria quase homogênea, em humo, sabeis o que faço? D’ALEMBERT. — Estou certo que não comeis numo. DIDEROT. — Não, mas há um meio de união, de apropriação, entre o humo e eu, um latus, como vos diria o químico. D’ALEMBERT. — E esse latus é a planta? DIDEROT. — Muito bem. Semeio nele ervilhas, favas, couves e outras plantas leguminosas. As plantas se nutrem da terra e eu me nutro das plantas. D’ALEMBERT. — Verdadeira ou falsa, gosto dessa passagem do mármore, ao humo, do humo ao reino vegetal e do reino vegetal ao reino animal, à carne. DIDEROT. — Faço pois da carne ou da alma, como diz minha filha, matéria ativamente sensível; e se não resolvo o problema que me Propusestes, pelo menos me aproximo muito; pois me confessareis que bem maior é a distância de um pedaço de mármore a um ser que sente, do que de um ser que sente a um ser que pensa. D’ALEMBERT. — Reconheço. Com tudo isso o ser sensível não é ainda o ser pensante. DIDEROT. — Antes de dar um passo à frente, permiti que eu vos conte a história de um dos maiores geômetras da Europa. O que era a princípio esse ser maravilhoso? Nada. D’ALEMBERT. — Como nada! De nada, nada se faz. DIDEROT. — Tomais as palavras muito ao pé da letra. Quero dizer que antes que a mãe dele, a bela e celerada cônega Tencin, atingisse a idade púbere, antes que o militar La Touche fosse adolescente, as moléculas que deviam formar os primeiros rudimentos de meu geômetra estavam dispersas nas jovens e frágeis máquinas de um e de outro, filtraram-se com a linfa, circularam com o sangue, até que se apresentassem aos reservatórios destinados à sua coligação, os testículos do pai e da mãe. Eis formado esse germe raro; ei-lo, como é a opinião comum, conduzido pelas trompas de Falópio à matriz; ei-lo agarrado à matriz por um longo pedículo; ei-lo, crescendo sucessivamente e avançando para o estado de feto; eis chegado o momento de sua saída da obscura prisão; ei-lo nascido, exposto sobre os degraus de Saint-Jean-Le-Rond, que lhe deu seu nome; retirado dos Enjeitados; aferrado à mama da boa vidraceira, Sra. Rousseau; aleitado, tornado grande de corpo e de espírito, literato, mecânico, geômetra. Como se produziu isso? Comendo, e por outras operações puramente mecânicas. Eis em quatro palavras a fórmula geral: Comei, digeri, destilai in vasi licito, et fiat homo secundum artem. E aquele que expusesse à Academia o progresso da formação de um homem ou de um animal não empregaria senão agentes materiais cujos efeitos sucessivos seriam um ser inerte, um ser sensível, um ser pensante, um ser que resolve o problema da precessão dos equinócios, um ser sublime, um ser maravilhoso, um ser que envelhece, que enfraquece, que morre, dissolvido e restituído à terra vegetal. D’ALEMBERT. — Não acreditais portanto nos germes preexistentes? DIDEROT. — Não. D’ALEMBERT. — Ah! Que prazer que me dais! DIDEROT. — Isso é contra a experiência e a razão: contra a experiência, que procuraria inutilmente esses germes no ovo e na maior parte dos animais antes de certa idade; contra a razão, que nos ensina que a divisibilidade da matéria tem um termo na natureza, embora não tenha nenhum no entendimento, e que repugna conceber um elefante todo formado num átomo e neste átomo outro elefante todo formado, e assim sucessivamente, até o infinito. D’ALEMBERT. — Mas sem esses germes preexistentes, não se concebe a geração primeira dos animais. DIDEROT. — Se a questão da prioridade do ovo sobre a galinha ou da galinha sobre o ovo vos embaraça, é porque supondes que os animais foram originariamente o que são agora. Que loucura! Não sabemos o que foram assim como não sabemos o que se tornarão. O vermezinho imperceptível que se agita na lama encaminha-se talvez para o estado de grande animal; o animal enorme, que nos apavora por sua grandeza, encaminha-se talvez para o estado de vermezinho, é talvez uma produção particular momentânea deste planeta. D’ALEMBERT. — Como foi que dissestes isso? DIDEROT. — Eu vos dizia... Mas isso vai nos afastar de nossa primeira discussão. D’ALEMBERT. — O que é que tem? Voltaremos a ela ou então não voltaremos. DIDEROT. — Permitiríeis que eu me antecipe no tempo em alguns milhares de anos? D’ALEMBERT. — Por que não? O tempo nada é para a natureza. DIDEROT. — Consentis pois que eu extinga o nosso Sol? D’ALEMBERT. — Tanto mais de bom grado quanto não será o primeiro que se extinguiu. DIDEROT. — Extinto o Sol, o que acontecerá? As plantas perecerão, os animais perecerão, e eis a Terra solitária e muda. Reacendei esse astro, e no mesmo instante restabeleceis a causa necessária de uma infinidade de gerações novas entre as quais eu não ousaria assegurar que no decurso dos séculos nossas plantas, nossos animais de hoje se reproduzirão ou não se reproduzirão. D’ALEMBERT. — E por que os mesmos elementos espersos, vindo a reunir-se, não proporcionariam os mesmos resultados? DIDEROT. — E que tudo se mantém na natureza, e quem supõe um novo fenômeno ou faz voltar um instante passado recria um novo mundo. D’ALEMBERT. — É o que um pensador profundo não poderia negar. Mas para voltar ao homem, uma vez que a ordem geral quis que ele existisse, lembrai-vos que foi na passagem do ser sensível ao ser pensante que vós me deixastes. DIDEROT. — Lembro-me disso. D’ALEMBERT. — Francamente, sentir-me-ia muito grato se me tirásseis dali. Estou com um pouco de pressa de continuar pensando. DIDEROT. — Ainda que eu não conseguisse fazê-lo, o que resultaria daí contra um encadeamento de fatos incontestável? D’ALEMBERT. — Nada, exceto que ficaríamos aí detidos simplesmente. DIDEROT. — E, para ir mais longe, nos seria permitido inventar um agente contraditório em seus atributos, uma palavra destituída de sentido, ininteligível? D’ALEMBERT. — Não. DIDEROT. — Poderíeis dizer-me o que é a existência de um ser sensível, em relação a si próprio? D’ALEMBERT. — É a consciência de ter sido ele, desde o primeiro instante de sua reflexão até o momento presente. DIDEROT. — E no que se baseia essa consciência? D’ALEMBERT. — Na memória de suas ações. DIDEROT. — E sem essa memória? D’ALEMBERT. — Sem essa memória ele não teria nada de si, pois, sentindo a sua existência apenas no momento da impressão, não teria história alguma de sua vida. Sua vida seria uma sequência interrompida de sensações que nada ligaria. DIDEROT. — Muito bem. E o que é a memória? De onde nasce? D’ALEMBERT. — De certa organização que cresce, enfraquece e se perde às vezes inteiramente. DIDEROT. — Se, portanto, um ser que sente e que possui essa organização peculiar à memória, liga as impressões que recebe, forma por essa ligação uma história, que é a de sua vida, e adquire consciência de si, ele nega, afirma, conclui e pensa. D’ALEMBERT. — Assim me parece; resta-me apenas uma dificuldade. DIDEROT. — Vós vos enganais; restam-vos muitas outras. D’ALEMBERT. — Mas uma principal; pois se me afigura que só podemos pensar numa única coisa ao mesmo tempo, e que, para formar, não digo essas enormes cadeias de raciocínios que abrangem em seu circuito milhares de ideias, mas uma simples proposição, dir-se-ia que é preciso ter presente ao menos duas coisas, o objeto que parece permanecer sob o olhar do entendimento, enquanto este se ocupa da qualidade que afirmará ou negará naquele. DIDEROT. — Também penso assim; o que me levou às vezes a comparar as fibras de nossos órgãos a cordas vibrantes sensíveis. A corda vibrante sensível oscila, ressoa por muito tempo ainda, depois de ser dedilhada. É essa oscilação, essa espécie de ressonância necessária que mantém o objeto presente, enquanto o entendimento se ocupa da qualidade que lhe convém. Mas as cordas vibrantes gozam ainda de outra propriedade, é a de fazer outras fremir, e é assim que uma primeira ideia chama a segunda; as duas, uma terceira; todas as três, uma quarta, e assim sucessivamente, sem que possamos fixar o limite das ideias, despertadas, encadeadas, no filósofo que medita ou se ouve no silêncio e na obscuridade. Esse instrumento dá saltos surpreendentes, e uma ideia desperta fará às vezes fremir uma harmônica que dele se encontra a um intervalo incompreensível. Se o fenômeno ocorre entre as cordas sonoras, inertes e separadas, como não haverá de produzir-se entre os pontos vivos e ligados, entre as fibras contínuas e sensíveis? D’ALEMBERT. — Se isso não for verdadeiro, é pelo menos muito engenhoso. Mas estaríamos tentados a crer que tombais imperceptivelmente no inconveniente que pretendeis evitar. DIDEROT. — Qual? D’ALEMBERT. — Pretendeis atacar a distinção das duas substâncias. DIDEROT. — Não o escondo. D’ALEMBERT. — E se quiserdes olhar a coisa de perto, fazeis do entendimento do filósofo um ser distinto do instrumento, uma espécie de músico que presta ouvido às cordas vibrantes, e que se pronuncia sobre sua consonância ou dissonância. DIDEROT. — Pode ser que eu tenha dado motivo a essa objeção, que talvez não vos ocorreria opor se tivésseis considerado a diferença entre o instrumento filósofo e o instrumento cravo. O instrumento filósofo é sensível; é ao mesmo tempo o músico e o instrumento. Como sensível, tem a consciência momentânea do som que produz; como animal, tem dele memória. Esta faculdade orgânica, ligando os sons nele próprio, produz e aí conserva a melodia. Suponde sensibilidade e memória no cravo, e dizei-me se este não repetirá por si próprio as árias que teríeis executado em suas teclas. Nós somos instrumentos dotados de sensibilidade e de memória. Nossos sentidos são outras tantas teclas dedilhadas pela natureza que nos rodeia, e que se dedilham amiúde elas próprias; eis, a meu ver, tudo o que se passa num cravo organizado como vós e eu. Há uma impressão cuja causa está dentro ou fora do instrumento, uma sensação que nasce da referida impressão, uma sensação que dura; pois é impossível imaginar que ela se produza e que se extinga em um instante indivisível; outra impressão que lhe sucede, e cuja causa está similarmente dentro ou fora do animal; uma segunda sensação e vozes que as designam por sons naturais ou convencionais. D’ALEMBERT. — Entendo. Assim, pois, se esse cravo sensível e animado fosse ainda dotado da faculdade de se nutrir e de se reproduzir, viveria e engendraria por si mesmo, ou com sua fêmea, cravinhos vivos e ressoantes. DIDEROT. — Sem dúvida. Em vossa opinião, que outra coisa é isso se não um tentilhão, um rouxinol, um músico, um homem? E que outra diferença encontrais entre o canário e a serineta? Vedes este ovo? É com ele que se derrubam todas as escolas de Teologia e todos os templos da Terra. O que é este ovo? Certa massa insensível, antes que o germe seja nele introduzido; e depois que o germe é introduzido, o que é ainda? Certa massa insensível, pois o germe não passa, por sua vez, de um fluido inerte e grosseiro. Como passará essa massa a outra organização, à sensibilidade, à vida? Pelo calor. Quem produzirá o calor? O movimento. Quais serão os efeitos sucessivos do movimento? Em vez de me responder, sentai-vos e acompanhemo-los com os olhos de momento a momento. Primeiro é um ponto que oscila, um filete que se estende e que se colora; carne que se forma; um bico, pontas de asas, olhos, patas que aparecem; certa matéria amarelada que se divide e produz intestinos; é um animal. Este animal se move, se agita, grita; ouço seus gritos através da casca; ele se cobre de penugem; ele vê. O peso da cabeça, que oscila, leva incessantemente seu bico de encontro à parede interna de sua prisão; ei-la quebrada; ele sai dela, anda, voa, se irrita, foge, aproxima-se, sofre, ama, deseja, goza; tem todas as vossas afecções; todas as vossas ações, ele as executa. Pretendereis vós, com Descartes, que se trata de uma pura máquina imitativa? Mas as criancinhas hão de zombar de vós, e os filósofos hão de vos replicar que, se esta é uma máquina, vós sois outra. Se confessais que, entre o animal e vós há diferença apenas na organização, demonstrareis senso e razão, estareis de boa fé; mas concluir-se-á contra vós que, com certa matéria inerte, disposta de uma certa maneira, impregnada de uma outra matéria inerte, do calor e de movimento, obtêm-se sensibilidade, vida, memória, consciência, paixões, pensamento. Só vos resta um destes dois partidos a tomar: imaginar na massa inerte do ovo um elemento escondido que esperava o seu desenvolvimento a fim de manifestar a presença, ou supor que esse elemento imperceptível aí se insinuou através da casca, num instante determinado do desenvolvimento. Mas o que é esse elemento? Ocupava espaço, ou não ocupava espaço algum? Como veio ele, ou será que escapou, sem se mover? Onde estava? O que fazia ali ou alhures? Foi criado no instante da necessidade? Existia? Aguardava um domicílio? Homogêneo, era material, heterogêneo, não se concebe nem sua inércia antes do desenvolvimento, nem sua energia no animal desenvolvido. Escutai-vos e tereis piedade de vós mesmo; sentireis que, para não admitir uma suposição simples que explica tudo, a sensibilidade, propriedade geral da matéria, ou produto da organização, renunciais ao senso comum, e vos precipitais em um abismo de mistérios, contradições e absurdos. D’ALEMBERT. — Uma suposição! Isso vos apraz dizer. Mas se fosse uma qualidade essencialmente incompatível com a matéria? DIDEROT. — E de onde sabeis que a sensibilidade é essencialmente incompatível com a matéria, vós que não conheceis a essência do que quer que seja, nem da matéria, nem da sensibilidade? Acaso compreendeis melhor a natureza do movimento, sua existência num corpo, e sua comunicação de um corpo a outro? D’ALEMBERT. — Sem conceber a natureza da sensibilidade, nem a da matéria, vejo que a sensibilidade é uma qualidade simples, una, indivisível e incompatível com um sujeito ou suposto divisível. DIDEROT. — Galimatias metafísico-teológico. Como? Então não vedes que todas as qualidades, todas as formas sensíveis de que a matéria está revestida, são essencialmente indivisíveis? Não há nem mais nem menos impenetrabilidade. Há a metade de um corpo redondo, mas não há a metade da redondeza; há mais ou menos movimento, porém não há mais nem menos movimento; não há metade, um terço, um quarto de uma cabeça, de uma orelha, de um dedo, assim como não há metade, um terço, um quarto de um pensamento. Se no universo não há uma molécula que se assemelhe a outra, em uma molécula, um ponto que se assemelhe a outro ponto, convinde que o átomo mesmo é dotado de uma qualidade, de uma forma indivisível; convinde que a divisão é incompatível com as essências das formas, pois ela as destrói. Sede físico, e convinde com a produção de um efeito quando o vedes produzido, embora não possais explicar a ligação da causa com o efeito. Sede lógico, e não substituais uma causa que existe e que explica tudo por outra causa que não se concebe, cuja ligação com o efeito se concebe ainda menos, que engendra uma multidão infinita de dificuldades e que não resolve nenhuma. D’ALEMBERT. — Mas se eu desisto dessa causa? DIDEROT. — Não há senão uma substância no universo, no homem, no animal. A serineta é de madeira, o homem é de carne. O canário é de carne, o músico é de uma carne diversamente organizada; mas ambos têm uma mesma origem, uma mesma formação, as mesmas funções e o mesmo fim. D’ALEMBERT. — E como se estabelece a convenção dos sons entre os vossos dois cravos? DIDEROT. — Um animal, sendo um instrumento sensível perfeitamente semelhante a outro, dotado da mesma conformação, montado com as mesmas cordas, dedilhado da mesma maneira pela alegria, pela dor, pela fome, pela sede, pela eólica, pela admiração, pelo terror, é impossível que no polo ou sob o equador emita sons diferentes. Por isso encontrareis quase as mesmas interjeições em todas as línguas mortas e vivas. Cumpre tirar da precisão e da proximidade a origem dos sons convencionais. O instrumento sensível, ou o animal, verificou que, emitindo determinado som, seguia-se determinado efeito fora dele, que outros instrumentos sensíveis parecidos com ele ou outros animais semelhantes se aproximavam, se afastavam, pediam, ofereciam, feriam, acariciavam, e tais efeitos se ligaram em sua memória e na dos outros à formação desses sons; e notai que não há no comércio dos homens senão ruídos e ações. E para dar a meu sistema toda sua força, notai ainda que está sujeito à mesma dificuldade insuperável proposta por Berkeley contra a existência dos corpos. Há um momento de delírio em que o cravo sensível pensou que era o único cravo existente no mundo e que toda a harmonia do universo se passava nele. D’ALEMBERT. — Há muita coisa a dizer a respeito. DIDEROT. — Isso é verdade. D’ALEMBERT. — Por exemplo, não se concebe bem, segundo vosso sistema, como formamos silogismos, nem como tiramos consequências. DIDEROT. — É que nós não as tiramos de modo algum: elas são todas tiradas pela natureza. Nós apenas enunciamos fenômenos conjuntos, cuja ligação é necessária ou contingente, fenômenos que nos são conhecidos pela experiência: necessários em matemática, em física e outras ciências rigorosas; contingentes em moral, em política e outras ciências conjeturais. D’ALEMBERT. — Será que a ligação dos fenômenos é menos necessária num caso do que em outro? DIDEROT. — Não; mas a causa sofreu demasiadas vicissitudes particulares que nos escapam, para que possamos contar infalivelmente com o efeito subsequente. A certeza que temos de que um homem violento se irritará com uma injúria, não é a mesma que aquela de que um corpo que bate em outro menor pô-lo-á em movimento. D’ALEMBERT. — E a analogia? DIDEROT. — A analogia, nos casos mais complicados, não passa de uma regra de três que se executa no instrumento sensível. Se determinado fenômeno conhecido na natureza é seguido de outro fenômeno conhecido na natureza, qual será o quarto fenômeno consequente a um terceiro, ou dado pela natureza, ou imaginado à imitação da natureza? Se a lança de um guerreiro comum mede dez pés de comprimento, quanto medirá a lança de Ajax? Se posso atirar uma pedra de quatro libras, Diomedes deve remover um bloco de rochas. As pernadas dos deuses e os saltos de seus cavalos estarão na relação imaginada dos deuses com o homem. É uma quarta corda harmônica e proporcional a três outras de que o animal espera a ressonância que se produz sempre nele mesmo, mas que nem sempre se produz na natureza. Pouco importa ao poeta, mas nem por isso é menos verdadeira. É outra coisa para o filósofo; cumpre que ele interrogue em seguida a natureza que, dando-lhe muitas vezes um fenômeno totalmente diferente daquele que presumira, leva-o a perceber então que a analogia o seduziu. D’ALEMBERT. — Adeus, meu amigo, boa noite e bom sono. DIDEROT. — Estais gracejando; mas sonhareis sobre vosso travesseiro com este diálogo, e se ele não assumir consistência, tanto pior para vós, pois sereis forçado a adotar hipóteses do contrário ridículas. D’ALEMBERT. — Estais enganado; cético me deitarei, cético me levantarei. DIDEROT. — Cético! Será que alguém é cético? D’ALEMBERT. — Esta, agora? Não ireis me afirmar que não sou cético? E quem o sabe melhor do que eu? DIDEROT. — Esperai um momento. D’ALEMBERT. — Aviai-vos, pois tenho pressa de dormir. DIDEROT. — Serei breve. Acreditais que haja uma única questão discutida a respeito da qual um homem permaneça com igual e rigorosa medida de razão pró e contra? D’ALEMBERT. — Não, seria o asno de Buridã. DIDEROT. — Neste caso, não há nenhum cético, dado que, à exceção das questões de matemática, que não comportam a menor incerteza, há pró e contra em todas as outras. A balança nunca é, pois, igual, sendo impossível que não penda para o lado que julgamos mais verossímil. D’ALEMBERT. — Mas eu vejo de manhã a verossimilhança à minha direita e, à tarde, à minha esquerda. DIDEROT. — Isso significa que sois dogmático pró, de manhã, e dogmático contra, à tarde. D’ALEMBERT. — E, à noite, quando me lembro dessa circunstância tão rápida de meus julgamentos, não creio em nenhum deles, nem no da manhã, nem no da tarde. DIDEROT. — Isso significa que não vos lembrais mais da preponderância das duas opiniões entre as quais oscilastes; que tal preponderância vos parece ligeira demais para assentar um sentimento fixo, e que adotais o alvitre de não vos ocupardes de temas tão problemáticos, de abandonar sua discussão a outros e de não mais disputar a seu respeito. D’ALEMBERT. — É possível. DIDEROT. — Mas, se alguém vos chamasse de lado e, interrogando-vos amistosamente, vos perguntasse, em sã consciência, em qual dos dois lados deparais menos dificuldades, de boa fé, ficaríeis constrangido de responder e faríeis o papel do asno de Buridã? D’ALEMBERT. — Creio que não. DIDEROT. — Escutai, meu amigo, sé pensardes bem, verificareis que, em tudo, nosso verdadeiro sentimento não é aquele no qual jamais vacilamos; mas aquele ao qual mais habitualmente retornamos. D’ALEMBERT. — Creio que tendes razão. DIDEROT. — E eu também. Boa noite, meu amigo, e memento quia pulvis es, et in pulverem reverteris. D’ALEMBERT. — Isso é triste. DIDEROT. — E necessário. Concedei ao homem, não digo a imortalidade, mas somente o duplo de sua duração, e vereis o que acontecerá. D’ALEMBERT. — E o que quereis vós que aconteça? Mas o que tenho eu com isso? Que aconteça o que acontecer. Eu quero é dormir, boa noite.