Voltaire – Dicionário Filosófico A Abraão Abraão é um nome famoso na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin para os povos nórdicos, e tantos outros, mais conhecidos pela sua celebridade do que por uma história documentada. Refiro-me apenas, agora, à história profana; quanto à dos judeus, nossos amos e inimigos nossos em que acreditamos e que odiamos, como é evidente que a história desse povo foi escrita pelo próprio Espírito Santo em pessoa, temos por ela o respeitinho que nos deve merecer. Aqui, apenas nos reportamos aos árabes; estes se vangloriam (e lá sabem o que fazem) de descender de Abraão por parte de Ismael; acreditam que aquele patriarca fundou Meca e que expirou nesta cidade. A verdade, diga-se: a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus que a raça de Jacó. É certo, também, que qualquer das duas raças era ratoneira a valer; mas os ladrões árabes foram prodigiosamente superiores aos ladrões dos judeus. Os descendentes de Jacó só conseguiram conquistar um país muito pequenino e miserável, que afinal acabaram por perder; ao passo que os descendentes de Ismael conquistaram e submeteram parte da Ásia, da Europa e da África, fundaram um império ainda mais dilatado que o dos romanos e expulsaram os judeus das cavernas onde se acobertavam e a que pomposamente chamavam Terra da Promissão. Se formos julgar os fatos à luz dos exemplos da história moderna, seria bastante difícil que Abraão tivesse sido o pai de duas nações tão diferentes; diz-se que nasceu na Caldeia e era filho de um pobre oleiro, que ganhava miseravelmente a vida a fazer pequenos ídolos de barro. Não é verossímil que o filho dum miserável oleiro tenha ido fundar Meca, distante dali quatrocentas léguas, sob os trópicos, e forçado a atravessar desertos inóspitos. Se fora um conquistador, sem dúvida que dirigia seus passos para a bela terra assíria; e se fosse apenas o pelintra que nos pintam, não andaria tão longe da pátria a fundar reinos e cidades. O Gênesis afirma que ele tinha setenta e cinco anos quando deixou o país de Harã, após a morte do pai, o oleiro Taré: mas no mesmo Gênesis se lê que Taré, tendo gerado Abraão aos setenta anos, viveu até os duzentos e cinco anos, e que Abraão só partiu de Harã depois de o pai ter morrido. Fazendo as contas é mais que evidente (a acreditar no que diz o Gênesis) que Abraão contava já cento e trinta e cinco anos quando saiu da Mesopotâmia. Foi de uma terra que era tida por idólatra para outra terra igualmente idólatra: Siquém, na Palestina. Por que foi para lá? Por que trocou as férteis margens do Eufrates por uma região tão distante, tão estéril e pedregosa como é a de Siquém? A língua caldaica devia ser muito diferente da que se falava em Siquém, que tampouco era terra onde se pudesse comerciar fosse o que fosse; Siquém dista mais de cem léguas da Caldéia; há que atravessar desertos áridos para aí chegar; mas Deus queria que ele fizesse aquela viagem, queria mostrar-lhe a terra que os seus descendentes deviam ocupar vários séculos depois. O espírito humano só com muita dificuldade consegue compreender as razões de tal viagem. Mal chegou a esse tamanhinho país montanhoso de Siquém, a fome obriga-o a sair de lá para fora. Parte para o Egito com a mulher, à procura de paparoca. De Siquém a Mênfis são duzentas léguas bem medidas; será coisa natural que alguém vá buscar trigo tão longe e, ainda por cima, a uma terra de que se ignora a língua? Eis viagens bem extravagantes levadas a cabo por quem já conta a bonita idade de quase cento e quarenta anos. Leva para Mênfis na sua companhia a mulher, Sara, que era muito nova, por assim dizer uma criança em comparação com ele, pois só tinha sessenta e cinco anos. Como era mui formosa, resolveu tirar partido da beleza dela. Disse-lhe: "Faze de conta que és minha filha". O rei apaixonou-se pela jovem e bela Sara e logo ofereceu ao pretenso irmão muitas ovelhas, bois, burros, burras, camelos, servos e servas: o que prova que o Egito de então era um reino muito poderoso e muito civilizado, por conseguinte muito antigo, e que ali se recompensavam, condignamente com toda a magnificência, os irmãos que vinham oferecer as manas, novas e bonitas, aos reis de Mênfis. A jovem Sara contava já noventa anos quando Deus lhe prometeu que Abraão (que por essa altura ia nos seus cento e sessenta) lhe faria um filho. Abraão, que adorava as viagens partiu para o horrível deserto de Cades na companhia da mulher, já pejada mas sempre jovem e bonitinha. Um rei desse deserto não tardou a ficar apaixonado por Sara, como já o estivera o rei do Egito. O pai dos crentes repetiu a peta que pregara no Egito: apresentou a esposa como irmã, e nessa negociata arranjou mais um milionário à custa da mulher. Os comentadores da Bíblia encheram um espantoso número de calhamaços a justificar a conduta de Abraão e para congraçarem a cronologia. Recomendamos ao leitor esses comentários. São todos escritos por gente sutil e profunda, metafísicos excelentes, criaturas sem preconceitos nenhuns e muito menos pedantes. De resto o nome de Brão, Abrão, era famoso na Índia e na Pérsia: há eruditos sábios que pretendem, até, que era ele o mesmo legislador que os gregos chamaram Zoroastro. Outros afirmam que era o Brama dos indianos: o que, aliás não foi demonstrado. Mas o que se antolha mais provável para muitos sábios é que este Abraão fosse cal deu ou persa: com o correr dos tempos os judeus gabaram-se de ser seus descendentes, tal como os francos se dizem descendentes de Heitor e os bretões de Tuba! Uma coisa é certa: o povo judaico era uma horda bastante recente, que só muito tarde se estabeleceu na Fenícia; que estava cercada de povos primitivos; que adotou a língua destes e deles tomou o nome de Israel que é caldeu, segundo o testemunho do judeu Flávio Josefo. Sabe-se que inclusive os nomes dos anjos foi ele buscar aos babilônios; finalmente, que foi por imitação dos fenícios que chamou DEUS pelo nome de Eloi, ou Eloá, de Adonai, de Jeová, ou Hião. Muito provavelmente por intermédio dos babilônios conheceu o nome de Abrão ou Ibraim; porque a primitiva religião de todas as terras entre o Eufrates e o Ôxus chamava-se Kish-Ibrahim, Milat-Ibrahim. Todas as pesquisas efetuadas nos próprios locais pelo sábio Hyde no-lo confirmam. Portanto, os judeus fizeram com a história e a lenda antiga o que os seus adelos fazem com as roupas velhas: voltam-nas do avesso e vendem-nas como novas o mais caro que podem. Singular exemplo da estupidez humana, este, de durante tanto tempo termos considerado os judeus como um povo que tudo ensinou aos demais, quando o próprio Josefo, seu historiador, confessa o contrário. É difícil penetrar com segurança nas trevas da Antiguidade, mas torna-se evidente que todos os reinos da Ásia desfrutavam já grande esplendor muito antes que essa vagabunda horda de árabes a que chamavam judeus possuísse um cantinho de terra exclusivamente seu; antes que tivesse fundado uma cidade, que fixasse leis próprias, que criasse uma religião definida. Por onde se conclui que, ao observarmos um antigo rito, uma ideia antiga estabelecida no Egito ou na Ásia e igualmente entre os judeus, é-nos lícito pensar que foi o minúsculo povo mais moderno, ignorante, boçal, sem capacidade nem gosto artístico, que copiou, mal ou bem, conforme pôde, a nação antiga, florescente e industriosa. E é à luz destes princípios que temos de julgar a Judeia, a Biscaia, Cornualha, Bérgamo, a terra de Arlequim, etc.: de certeza que Roma, a sempre vencedora, nada imitou da Biscaia, da Cornualha, nem de Bérgamo; e é preciso ser um ignorante de calibre ou um traste muito atrevido para afirmar que os judeus teriam ensinado fosse o que fosse aos gregos. Adão A piedosa Madame Bourignon tinha a certeza que Adão era hermafrodita, como os primeiros homens do divino Platão. Fora Deus quem lhe revelara esse terrível segredo; eu, menos feliz em matéria de revelações, abstenho-me de falar nisso. Os rabinos judeus leram os livros de Adão; sabem o nome do seu preceptor e da sua segunda esposa; como nunca li os livros do nosso primeiro pai, não abrirei a boca a tal respeito. Certas cabecinhas ocas, quando muito sabichonas, ficam espantadíssimas quando leem o Veidam dos antigos brâmanes e ali topam que o primeiro homem foi criado nas Índias, etc., que se chamava Adimo, palavra que quer dizer "o gerador"; e que a mulher dele se chamava Procrite, que significa "a vida". Dizem que a seita dos brâmanes é incontestavelmente mais antiga que a dos judeus; que os judeus só muito tarde puderam escrever na língua cananéia, porque só muito depois se estabeleceram na terra de Canaã; dizem que os indianos sempre deram provas de espírito inventivo e os judeus foram sempre uns grandes imitadores; os indianos, sempre sutis e hábeis e os judeus, sempre grosseiros e boçais; dizem ser coisa bem difícil que Adão, ruivo e com uma bela cabeleira, seja o pai dos pretos, escuros como a tinta da China e de carapinha eriçada. E que mais dirão eles? Por mim, cala-te boca! Deixo de bom grado essas pesquisas ao reverendo Padre Berruyer, da Companhia de Jesus; é o maior inocente que já conheci. Queimaram o seu livro como o de um homem que quisesse ridicularizar a Bíblia: mas posso garantir que não havia ali a menor malícia. Alma Bela coisa seria podermos ver a nossa alma. Conhece-te a ti mesmo é um excelente preceito, mas só a Deus cabe pô-lo em prática: quem, além d'Ele, poderá conhecer a Sua essência? Chamamos alma àquilo que anima. Não sabemos muito mais do que isso, por culpa dos limites da nossa inteligência. Três quartas partes do gênero humano não vão mais longe e em nada as preocupa o ser pensante; a outra parte indaga, interroga-se; até agora ninguém descobriu nada, nem descobrirá. Pobre pedante, vês uma planta que vegeta e falas em vegetação ou até mesmo de alma vegetativa. Notas que os corpos têm e produzem movimento e falas de força; vês um galgo aprender a arte da caça e logo clamas: é o instinto, alma sensitiva; tens associações de ideias e falas de espírito. Mas, por favor, que queres dizer com tal palavreado? Esta flor vegeta, mas há algum ser real que se chame vegetação? Aquele corpo empurra outro, mas contém em si um ser distinto que se chame força? O teu cão traz-te uma perdiz, mas haverá algum ser que se chame instinto? Não ririas de um argumentador (ainda que fosse o próprio preceptor de Alexandre) que te dissesse: "Todos os animais vivem, logo neles existe um ser, uma forma substancial que é a vida"? Se uma tulipa pudesse falar e te dissesse: "A minha vegetação e eu somos dois seres evidentemente ligados em conjunto", não troçarias da tulipa? Vejamos primeiro aquilo que sabes e de que tens certeza: que caminhas com os pés; que digeres com o estômago; que tens sensações no corpo todo e que pensas com o cérebro. Vejamos agora se a tua razão, e só ela, te poderá ter esclarecido o suficiente para concluíres, sem ajuda sobrenatural, que possuis uma alma. Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram: "É forçoso que haja em nós algo que produza os nossos pensamentos, algo de muito sutil; um sopro, um fogo, um éter, uma quinta-essência, um espectro pouco denso, uma enteléquia, um número, uma harmonia". Finalmente, e segundo Platão, é um composto do próprio e do outro. "São átomos que pensam em nós", afirmou Epicuro na esteira de Demócrito. Mas diz lá agora, amigo meu, como é que um átomo pensa? Confessa que não fazes a mínima ideia a tal respeito. A ideia a que, sem dúvida, devemos aderir é esta: a alma é um ser imaterial; mas por certo não tendes a noção de como é esse ser imaterial. "Não", respondem os sábios, "mas sabemos que a sua natureza é pensar." E como o sabeis senhores? "Sabemos, porque pensa." Ó sábios! Ó sabichões! ... receio bem que sejais tão ignorantes como Epicuro: a natureza duma pedra é cair, porque cai; mas o que vos pergunto é quem a fez cair. "Sabemos", insistem os sábios, "que uma pedra não tem alma." Assim o creio, também. "Sabemos que uma negação e uma afirmação não são divisíveis, não são partes da matéria." Igualmente perfilho essa doutrina. Mas a matéria, aliás desconhecida para nós, possui qualidades que não são materiais, que não são divisíveis; tem a gravitação para um centro, que Deus lhe destinou. Ora, esta gravitação não tem partes, não é divisível. A força motriz dos corpos não é um ser composto de partes. A vegetação dos corpos organizados, a sua vida, o seu instinto, também não são seres à parte, seres divisíveis; não se pode cortar em dois a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, tal como não se pode cortar em dois uma sensação, uma negação, uma afirmação. O vosso belo argumento, extraído da indivisibilidade do pensamento, não prova portanto absolutamente nada. A que chamais, então, alma? Que ideia fazeis dela? Vós próprios não podeis, sem ser por intermédio da revelação, admitir em vós outra coisa mais que a existência duma força que ao certo desconheceis o que é uma capacidade de sentir, de pensar. Chegados aqui, dizei-me de boa fé: essa força, essa capacidade de sentir e de pensar, é a mesma que vos faz digerir e andar? Confessais que não porque a vossa inteligência pode cansar-se e ordenar ao estômago: Digere!, que ele nada fará se estiver doente; é em vão que o vosso ser imaterial mandaria aos pés que caminhassem, porque não darão um passo se sofrerem de gota. Os gregos bem perceberam que, com frequência, o pensamento não podia intervir no jogo dos nossos órgãos; e admitiram para esses órgãos uma alma animal e para os pensamentos uma alma mais fina, mais sutil. Mas em mil ocasiões esta alma do pensamento dirige a outra alma animal. A alma pensante ordena às mãos que agarrem num objeto qualquer, e elas agarram-no. Mas já não diz ao coração que bata, ao sangue que corra, ao estômago que faça o quilo; tudo isto acontece e se faz sem ela, fora do seu poder: aí temos, pois, duas almas numa embaraçosa situação e bem pouco senhoras do mando em sua casa. Ora, essa primeira alma animal por certo não existe, não é mais que o movimento dos vossos órgãos. Acautela-te e desconfia, ó homem!, porque, usando apenas a tua razão tão mesquinha, não tens nenhuma prova de que a outra alma exista. Só pela fé podes sabê-lo. Nasceste, vives, atuas, pensas, acordas, dormes, sem saber como. Deu-te Deus a faculdade de pensar, como te deu tudo o mais; e, se não te tivesse vindo ensinar, nos tempos marcados pela sua providência, que possuías uma alma imaterial e imortal, não terias nenhuma prova disso. Vejamos agora os belos sistemas que a tua filosofia engenhocou a respeito dessas almas. Um diz que a alma do homem faz parte da substância do próprio Deus; outro que ela é parte do grande todo; um terceiro, que foi criada por toda a eternidade; um quarto, que foi feita e não criada; outros garantem que Deus as forma à medida que vai precisando delas e que chegam no momento da cópula. "Estão alojadas nos animálculos seminais", proclama este. "Não", assevera aqueloutro. "vão habitar nas trompas de Falópio." "Enganam-se todos redondamente", opina um recém-vindo: "a alma espera seis semanas até que o feto se forme e só então ocupa a glândula pineal; mas. se depara com um germe falso. volta para trás. aguardando ocasião mais propícia." A última doutrina, a mais moderna, põe a alma a residir no corpo caloso, esta a sede que lhe destina La Peyronie; mas havia que ser primeiro-cirurgião do rei de França para assim dispor, com tanto à vontade, da instalação da alma. Apesar disso, o tal corpo caloso não conseguiu fazer fortuna, tão duradoura e acrescida, como a que o dito cirurgião amealhou. Santo Tomás, na questão 75ª e seguintes, diz que a alma é uma forma subsistente per se, que está toda em tudo, que a sua essência difere da sua potência, que há três almas vegetativas, a saber: a nutritiva, a aumentativa, a generativa; que a memória das coisas espirituais é espiritual e a memória das corporais, corporal; que a alma racional é uma forma "imaterial quanto às operações e material quanto ao ser". Santo Tomás encheu duas mil páginas com a solidez e a clareza que estão a ver; por isso é considerado o anjo tutelar da escola. Não se ergueram menos sistemas a discutir o modo como a alma sentirá quando abandonar o corpo através do qual sentia, como poderá ouvir sem orelhas, cheirar sem nariz e apalpar sem mãos; se o corpo que reocupará depois será aquele que tinha aos dois anos ou aos oitenta; como o eu, a identidade da própria pessoa, subsistirá; como a alma de um homem que ficou pateta na idade de quinze anos e pateta morreu com setenta retomará o fio das ideias, a lucidez que possuía na puberdade; por que hábil escamoteação uma alma, cuja perna foi amputada na Europa e que tiver perdido um braço na América, tornará a encontrar essa perna e esse braço, os quais, tendo-se entretanto transformado em hortaliças, andariam já no sangue doutro animal qualquer. Nunca mais acabaríamos, se quiséssemos enumerar todos os extravagantes dislates que a coitada da pobre alma humana imaginou sobre si própria. Muito singular é o fato de que nas leis do povo eleito nada conste sobre a espiritualidade e a imortalidade da alma, nem no Decálogo, nem no Levítico, nem no Deuteronômio. O que é certo, indubitável, é que Moisés em parte nenhuma propõe aos judeus recompensas e castigos numa vida futura, que nunca lhes fala na imortalidade das suas almas, que nunca lhes prometeu que alcançariam o céu, que nunca os ameaçou com o inferno: tudo nele é temporal. Antes de morrer disse-lhes no Deuteronômio: "Quando, pois, gerardes filhos, e filhos de filhos, e vos corromperdes, e fizerdes mal aos olhos do Senhor, certamente perecereis depressa na terra, a qual, passado o Jordão, ides possuir. Não prolongareis os vossos dias nela, antes sereis de todo destruídos. E o Senhor vos espalhará entre os povos, e ficareis poucos em número entre as gentes, às quais o Senhor vos conduzirá”. “... porque eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus zeloso, que castigo a maldade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração”. "Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias”. "Se ouvirdes outros deuses, e os servirdes, e vos inclinardes perante eles, certamente perecereis...”. "O Senhor teu Deus te mete numa boa terra, terra de trigo e cevada, e de vides, e figueiras, e romeiras; terra de oliveiras, abundante de azeite e mel: terra em que comerás o pão sem escassez e nada te faltará nela...”. "E será que, se diligentemente obedecerdes a meus mandamentos, então darei a chuva da vossa terra há seu tempo, a tempo rã e a serôdia, para que recolhais o vosso grão, e o vosso mosto e o vosso azeite; e darei erva no vosso campo aos vossos gados, e comereis e fartar-vos-eis. “Pende, pois, estas minhas palavras no vosso coração e na vossa alma, e atai-as por sinal na vossa mão, para que estejam por testeiras entre os vossos olhos; e escrevei-as nos umbrais de vossa casa, e nas vossas portas; para que se multipliquem os vossos dias”. "Tudo o que eu vos ordeno, observareis; nada lhe acrescentarás nem diminuirás”. "Quando profeta ou sonhador de sonhos se levantar no meio de ti, e te der um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio, de que te houver falado, dizendo: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los...” não ouvirás as palavras daquele profeta ou sonhador de sonhos, nem o teu olho o poupará, nem terás piedade dele, nem o esconderás; mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele, para matá-lo, e depois a mão de todo o povo. “Quando o Senhor teu Deus te tiver introduzido na terra, a qual vais possuir, e tiver lançado fora muitas gentes de diante de ti; e o Senhor teu Deus as tiver dado diante de ti, para feri-las, totalmente as destruirás. Não farás com elas concerto, nem terás piedade delas”. "Não comereis aves imundas, como a águia, o grifo, a coruja, etc.”. "Todo o animal que tem unhas fendidas, que tem a unha dividida em duas, que remói, entre os animais, isso comereis. Porém estes não comereis, dos que somente remoem, ou que têm a unha fendida: o camelo, e a lebre, e o coelho, porque remoem mas não têm a unha fendida; imundos vos serão; nem o porco, porque tem unha fendida mas não remói; imundo vos será”. "E será que, se ouvires a voz do Senhor teu Deus, tendo cuidado de guardar os seus mandamentos, bendito serás tu na cidade, e bendito serás no campo. Bendito o fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra, e o fruto dos teus animais, e a criação das tuas vacas, e os rebanhos das tuas ovelhas. Bendito o teu cesto e a tua masseira”. "Será porém que, se não deres ouvidos à voz do Senhor teu Deus, para não cuidares em fazer todos os seus mandamentos e os seus estatutos, que hoje te ordeno, então sobre ti virão todas estas maldições, e te alcançarão: maldito serás tu na cidade, e maldito serás no campo. Maldito o teu cesto e a tua masseira... O Senhor mandará sobre ti a maldição, a turbação e a perdição em tudo que puseres a tua mão para fazer, até que sejas destruído, e até que repentinamente pereças... O Senhor te fará pegar a pestilência... O Senhor te ferirá com a tísica e com a febre, e com a quentura, e com o ardor, e com a secura, e com a destruição de sementeiras e com ferrugem... O Senhor te ferirá com as úlceras do Egito, com hemorroidas, e com sarna, e com coceira, de que não possas curar-te; o Senhor te ferirá com loucura, e com cegueira, e com pasmo do coração... serás oprimido e roubado todos os dias e não haverá quem te salve. Desposar-te-ás com uma mulher, porém outro homem dormirá com ela... O Senhor te ferirá com úlceras malignas nos joelhos e nas pernas, de que não possas sarar, desde a planta do teu pé até ao alto da cabeça”. “O estrangeiro te emprestará a ti, porém tu não lhe emprestarás a ele; ele será por cabeça, e tu serás por cauda... portanto não haverás servido ao Senhor teu Deus com alegria e bondade de coração”. "E comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas, etc”. É evidente que em todas estas promessas e em todas estas ameaças nada há que não seja temporal e não se encontra ali uma palavra só que seja sobre a imortalidade da alma e sobre a vida futura. Alguns ilustres comentadores julgaram que Moisés estava perfeitamente a par desses dois graves dogmas; e provam-no com as palavras de Jacó, o qual, julgando que o filho fora devorado pelas feras, clamava na sua dor: Descerei com o meu filho à fossa, in infernum, ao inferno; isto é, morrerei já que o meu filho morreu. Provam-no, ainda, com os passos de Isaías e de Ezequiel; mas os hebreus a quem Moisés se dirigia não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías que viveram séculos depois. Inútil será disputarmos a propósito dos secretos sentimentos de Moisés. O fato é que nas leis públicas nunca falou de uma vida futura, que limitou todos os castigos e todas as recompensas ao tempo presente. Se conhecia a existência da vida futura, por que razão não expôs então, expressamente, tal dogma? E se a não conheceu, qual era o objetivo e a importância da sua missão? Pergunta formulada por várias personagens de tomo, e à qual respondem que o Senhor de Moisés e de todos os homens se reservava o direito de, a seu tempo, explicar aos judeus uma doutrina que ainda não estavam em situação de compreender quando viviam no deserto. Se Moisés tivesse proclamado o dogma da imortalidade da alma, uma grande seita dos judeus não a teria combatido sempre; essa grande seita dos saduceus não teria sido autorizada no Estado; os saduceus não teriam ocupado, como se pode verificar, os cargos mais importantes; da sua seita não teriam saído eminentes pontífices. Parece que foi só depois da fundação de Alexandria que os judeus se dividiram em três seitas: os fariseus, os saduceus, e os essênios. O historiador Josefo, que era fariseu, diz-nos, no Livro XIII das Antiguidades Judaicas, que os fariseus acreditavam na metempsicose; os saduceus acreditavam que a alma perecia com o corpo; os essênios acrescenta Josefo, consideravam as almas imortais: era sua crença que as almas desciam em forma aérea para os corpos, vindas da mais elevada região do ar; eram para eles arrastadas por uma atração violenta e, depois da morte, as que pertenceram a pessoas de bem ficam para lá do oceano, numa terra onde não há calor nem frio, vento ou chuva. As almas dos maus vão para um clima totalmente oposto. Tal era a teologia dos judeus. Aquele a quem, unicamente, coube a tarefa de instruir todos os homens acabou por condenar essas três seitas; mas sem ele nunca teríamos podido conhecer a nossa alma, já que os filósofos nunca tiveram sobre o assunto ideias definidas e que Moises, único autêntico legislador antes do nosso, Moises, que falava com Deus cara a cara, deixou os homens numa profunda ignorância sobre tão grave artigo. E só, pois, de há mil e setecentos anos para cá que temos a certeza da existência da alma e da sua imortalidade. No espírito de Cícero ainda dominava a dúvida; mas o neto e a neta já puderam aprender a verdade da boca dos primeiros galileus que vieram pregar a Roma. Antes dessa época, porém, e ainda depois, em todas as restantes partes da Terra onde os apóstolos não chegaram, cada um devia perguntar à sua alma: "Quem és? donde vens? o que fazes? para onde vais? Tu és algo que desconheço, algo que pensa e sente, e embora sentisses e pensasses cem milhões de anos nada mais conseguirás saber pelas tuas próprias luzes, sem o auxílio de um Deus". Homem! Esse Deus concedeu-te a inteligência não para penetrares na essência das coisas que criou, mas para que te conduzas pela senda do Bem! Foi isto mesmo que pensou Locke, e já antes de Locke, Gassendi, e antes de Gassendi um ror de sábios; mas temos agora por aí uns senhores bacharéis que sabem tudo o que estes grandes homens ignoravam. Cruéis inimigos da razão ousaram protestar e rebater essas verdades por todos os espíritos sábios e prudentes reconhecidas. Levaram a má fé e a sua impudência ao ponto de imputarem aos autores desta obra que eles teriam garantido que a alma é matéria. Ó perseguidores da inocência, bem sabeis que dissemos aqui coisa totalmente oposta. Páginas atrás, pudestes ler as seguintes palavras contra Epicuro, Demócrito e Lucrécio: "Mas, amigo meu, como é que um átomo pensa? Confessa que não fazes a mínima ideia a tal respeito". Sois à evidência, portanto, uns caluniadores. Ninguém sabe o que é o ser chamado espírito, a que dais esse nome material de espírito que significa vento. Todos os primeiros Padres da Igreja acreditaram na alma corporal. É impossível que nós, criaturas limitadas, saibamos se a nossa inteligência é substância ou faculdade: não podemos conhecer a fundo nem o ser como extensão nem o ser pensante, ou o mecanismo do pensamento. Bem se vos proclama, alto e bom som, na companhia respeitável de Gassendi e Locke, que entregues a nós próprios nada sabemos dos segredos do Criador. Por acaso sois deuses para saberdes tudo? Diz-se e repete-se nas vossas barbas que só podemos conhecer a natureza e o destino da alma pela revelação. Homessa! A revelação não vos basta? Grandes inimigos haveis de ser dessa revelação que nós apregoamos, já que, com tal sanha, perseguis aqueles que tudo esperam dela e só nela creem. Confiamos na palavra de Deus; e vós, inimigos da razão e de Deus, vós que blasfemais duma e doutro, tratais a humilde dúvida e a submissão humilde do filósofo como outrora o lobo tratou cordeiro nas fábulas de Esopo; dizeis-lhe: "Disseste mal de mim no ano passado, vou-te beber sangue". Mas a filosofia nunca se vinga; ri em santa paz dos vossos esforços vãos; ilumina e ensina suavemente, calmamente os homens, que quereis embrutecer ainda mais para os tom ardes semelhantes a vós. Amizade É um tácito contrato entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Digo sensíveis, porque um monge, um eremita pode não ser mau e viver sem conhecer a amizade. Digo virtuosas, porque os malvados só conhecem cúmplices, os lúbricos têm companheiros de deboche, os ambiciosos, associados, os políticos arrebanham os de feitio faccioso, os homens vulgares e ociosos têm ligações apenas, os príncipes, cortesãos; mas os homens virtuosos e só eles têm amigos. Cetego era o cúmplice de Catilina e Mecenas o cortesão de Otávio; mas Cícero era amigo de Ático. Que contém então esse contrato entre duas almas ternas e honestas? As suas obrigações são, por isso mesmo, maiores e mais tênues, conforme o grau de sensibilidade e o número dos serviços prestados, etc. O fervor pela amizade foi mais intenso entre os gregos e os árabes do que entre nós. As histórias que esses povos inventaram sobre a amizade são admiráveis; nada temos que se lhe compare, somos um tanto rudes em tudo. A amizade era um tema de religião e de legislação entre os gregos. Os tebanos tinham até o regimento dos amantes: que belo regimento! Houve quem supusesse que se tratava de um regimento de sodomitas; puro engano; tomavam o acessório pelo fundamental. Entre os gregos, a amizade era prescrita pela lei e pela religião. A pederastia era tolerada pelos costumes de então; mas não se devem imputar à lei abusos vergonhosos. Adiante falaremos disso. Amor Amor omnibus idem. Temos aqui de recorrer ao físico; é o estofo da natureza que a imaginação bordou. Se queres fazer uma ideia do que seja o amor, olha os pardais do teu jardim; contempla os teus pombos; repara no touro que levam para junto da bezerra, nesse altivo garanhão que dois palafreneiros conduzem ao pé da meiga égua que o espera e desenrola a cauda para o receber; vê como os seus olhos brilham; ouve os seus relinchos; contempla aqueles saltos, aqueles caracoleios todos, as orelhas espetadas, a boca que se abre em breves convulsões, as narinas arfando, dilatadas, a respiração ofegante, as crinas erguidas que padanam, o imperioso movimento com que ele se lança à conquista do objetivo que a natureza lhe destinou; mas não tenhas inveja e pensa nas vantagens de que a espécie humana desfruta: compensam em amor tudo o que a natureza concedeu aos animais em força, beleza, agilidade, rapidez. E há até animais que desconhecem o prazer. Os peixes escamosos estão privados desse regalo: a fêmea expele para o lodo milhões de ovos; o macho que os encontra casualmente passa sobre eles e fecunda-os com o seu sêmen, sem para nada se importar com a fêmea donde provinham. A maioria dos animais que copulam atinge o prazer por um único sentido; e, logo que esse apetite foi satisfeito, tudo acabou. Nenhum animal, além de ti, conhece a delícia do beijar; o teu corpo é todo ele cheio de sensibilidade; são principalmente os teus lábios que gozam duma voluptuosidade que jamais se cansa e esse prazer só da tua espécie é apanágio; finalmente, em qualquer altura podes entregar-te ao amor, enquanto nos animais apenas numa época determinada é concedido. Se meditares nestas superioridades, dirás como o Conde de Rochester: "Num país de ateus, o amor faria adorar a Divindade". Como os homens possuem o dom de aperfeiçoar tudo o que a natureza lhes deu, também aperfeiçoaram o amor. O asseio, os cuidados com o nosso corpo, tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato, e a vigilância da saúde torna os órgãos da voluptuosidade mais sensíveis ainda. Todos os outros sentimentos penetram a seguir no de amor, tal como os metais se amalgamam com o ouro: a amizade, a estima vem em seu auxílio; os talentos do corpo e do espírito forjam novas e ternas cadeias. Nam facit ipsa suis interdum foemina factis, Morigerisque modis, et mundo corpore cultu, Ut facile insuescat secum vir degere vitam. (Lucrécio, Livro IV.) É principalmente o amor-próprio que aperta todos estes laços. Aplaudimo-nos intimamente com a nossa escolha e um ror de ternas ilusões é o ornamento da obra de que a natureza rasgou os alicerces. Também aí és superior aos animais; mas, se gozas tantos prazeres que eles ignoram, quantos desgostos não virás a padecer e de que eles não fazem a mínima ideia! Para ti, o que resulta mais horroroso ainda é que a natureza, em três quartas partes da Terra, envenenou os prazeres do amor e as fontes da vida com uma doença terrível, à qual somente o homem está sujeito e que só a ele ataca, nos seus órgãos procriadores. Não sucede com esta malvada peste o que se verifica com tantas outras doenças, que são a consequência dos nossos excessos. Não foi o deboche que a introduziu no mundo. As Frinéias, as Laís, as Floras e as Messalinas não foram atacadas por ela; nasceu nas ilhas onde os homens viviam na mais completa inocência e daí se espalhou pelo Antigo Mundo. Se algum dia foi possível acusar a natureza de desprezar a sua obra, de contradizer os seus próprios planos, de agir contra os seus fins, foi nessa ocasião. É então este o melhor dos mundos possíveis? Homessa! Pois se Cesar, Antônio, Otávio nunca tiveram tal doença, era assim coisa tão impossível que ela poupasse Francisco I e não o levasse à cova, como aconteceu? Não, dizem os entendidos, o destino ordenou tudo pelo melhor... Quero crê-lo, mas é bem triste que seja assim. Amor Dito Socrático Se o amor que vulgarmente se chama socrático e platônico fosse apenas um sentimento honesto, devíamos aplaudi-lo; se for uma devassidão, seremos forçados a sentir vergonha pela Grécia. Como é possível que um vício que, generalizando-se, viria destruir o gênero humano, que um tão nefando atentado contra a natureza seja coisa assim natural? Afigura-se-nos ser o último estádio da perversão endurecida e, todavia, é a herança comum daqueles que ainda não tiveram tempo de serem corrompidos. Penetrou nos corações muito novos, que não conheceram ainda a ambição, nem o dolo, nem a sede de riquezas; é a juventude cega que, por uma confusão dos instintos, se precipita nessa voragem mal sai da infância. A atração entre os dois sexos manifesta-se muito cedo; mas, apesar de tudo quanto se afirma das africanas e das mulheres da Ásia meridional, essa tendência é geralmente mais violenta no homem do que na mulher; é uma lei que a natureza estabeleceu para todos os animais. É sempre o macho que ataca a fêmea. Os machos jovens da nossa espécie, educados uns com os outros, sentindo essa força que a natureza começa a fazer desabrochar neles e não achando o objeto natural para o seu instinto, deixam-se atrair por aquilo que mais se assemelha a tal objeto. Frequentemente um rapazinho, pela frescura da pele, pelo garbo das suas cores e a meiguice do olhar, durante dois ou três anos mais parece uma linda rapariga; se o amarmos, é porque a natureza se equivoca: prestamos homenagem ao sexo feminino, mostrando-nos rendidos a quem se adorna com as suas belezas, e, quando a idade faz desaparecer essa semelhança, a confusão finda. Citraque juventam Aetatis breve ver ET primos carpere flores. (Ovídio, Met., X, 84-85.) É por demais sabido que este equívoco da natureza é muito mais frequente nos climas temperados do que nas geladas terras setentrionais, porque ali o sangue é mais ardente e as ocasiões mais propícias; por isso, o que no moço Alcibíades nos surge como uma simples fraqueza, torna-se uma abominação repugnante num marujo holandês ou num vivandeiro moscovita. Não posso admitir que se afirme que os gregos teriam permitido tal libertinagem. É costume citar o legislador Sólon, porque disse em dois versos de pé quebrado: Gozarás um rapaz a teu gosto Enquanto não tiver pelos no rosto. Mas, em boa fé, seria na qualidade de legislador que Sólon escreveu esses dois versos ridículos? Era então ainda muito novo, mas quando o debochado atingiu a idade da razão não incluiu tal infâmia entre as leis da sua república; é como se acusássemos Théodore de Bêze de ter pregado a pederastia na sua igreja só porque na juventude fizera versos para o jovem Candide, em que dizia: Amplector hunc et illam. Abusa-se do texto de Plutarco que, nas suas tagarelices, põe um dos interlocutores do Diálogo do Amor a dizer que as mulheres não são dignas do verdadeiro amor; mas outro interlocutor defende a causa das mulheres como é de direito. Certo é, e tanto quanto o nosso conhecimento da Antiguidade pode garanti-lo, que o amor socrático não era um amor infame: foi esse nome de amor que baralhou tudo. O que então se chamava os amantes de um rapaz eram, precisamente, o que entre nós são os gentis-homens ao serviço dos nossos príncipes, o que eram os pajens, moços adidos à educação de uma criança fidalga, partilhando os mesmos estudos, os mesmos exercícios militares: instituição guerreira e santa da qual se abusou com folguedos noturnos e orgias. A legião dos amantes criada por Laio era uma tropa invencível de moços guerreiros obrigados por juramento a darem a vida uns pelos outros; e nunca a disciplina antiga teve nada de tão belo. Sexto Empírico e outros bem se cansam a dizer que a pederastia era recomendada pelas leis da Pérsia. Pois que nos citem a letra da lei; que nos mostrem o código dos persas e mesmo que o fizessem nem assim os havia de acreditar, diria que o fato não é verdadeiro pela simples razão que é impossível. Não, não é próprio da natureza humana fazer uma lei que contrarie e que ultraje a natureza, uma lei que destruiria o gênero humano se fosse observada à letra. Quantas pessoas não se equivocaram com os hábitos vergonhosos e tolerados, supondo que eram as leis do próprio país! Sexto Empírico, que duvidava de tudo, devia também ter duvidado daquela jurisprudência. Se vivesse hoje e visse dois ou três jovens jesuítas abusarem dalguns estudantes, estaria no direito de dizer que tal jogo lhes é permitido pelos regulamentos de Inácio de Loiola? O vício pelos rapazes era em Roma coisa tão vulgar, que ninguém se lembraria de punir essa tolice na qual a maioria incorria alegremente ou com discreta vergonha. Otávio Augusto, esse carrasco debochado e poltrão que ousou exilar Ovídio, achou perfeitamente natural que Virgílio cantasse Alexis e que Horácio compusesse graciosas odes em louvor de Ligurino; mas a antiga lei Scantinia, que proibia a pederastia, nunca foi abolida: o imperador Filipe aplicou-a com todo o rigor, expulsando de Roma os rapazolas que se prostituíam como profissionais. Finalmente, não acredito que haja ou possa ter havido, em nenhuma época, uma nação civilizada que promulga leis contra os costumes. Animais (Os) Que néscio é afirmar que os animais são máquinas privadas do conhecimento e de sentimentos, agindo sempre de igual modo, e que não aprendem nada, não se aperfeiçoam, etc.! Pode lá ser... Então esse pardalzinho que constrói o ninho em semicírculo quando o prende a uma parede, que o constrói num quarto de círculo quando o faz num ângulo e em círculo num ramo de árvore - faz tudo de igual modo? O cão de caça que ensinaste a obedecer-te durante três meses não estará a saber mais ao cabo desse período do que sabia no início das lições? O canário a quem tentas ensinar uma melodia repete-a logo no mesmo instante, ou não levarás certo tempo a fazer-lha decorar? E não reparaste como se engana, com frequência, e vai corrigindo depois? É só por eu ser dotado de fala que julgas que tenho sentimentos, memória, ideias? Pois bem, não te direi nada; mas vês-me entrar em casa com um ar preocupado, aflito, andar a procurar um papel qualquer com nervosismo, abrir a secretária onde me recorda tê-lo guardado, encontrá-lo afinal, lê-lo jubilosamente. Calculas que passei de um sentimento de aflição para outro de prazer, que sou possuidor de memória e conhecimento. Transfere agora esse teu raciocínio, por comparação, para aquele cão que se perdeu do dono, que o procura por todos os lados soltando latidos dolorosos, que entra em casa, agitado, inquieto, que sobe e que desce, percorre as casas, umas após outras, até que acaba, finalmente, por encontrar o dono de que tanto gosta no gabinete dele e ali lhe manifesta a sua alegria pela ternura dos latidos, em pródigas carícias. Algumas criaturas bárbaras agarram nesse cão, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentéricas. Encontras nele todos os órgãos das sensações que também existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a natureza colocou todos estes instrumentos do sentimento no animal, para que ele não possa sentir? Dispõe de nervos para manter-se impassível? Que nem te ocorra tão impertinente contradição da natureza. Mas os mestres-escolas perguntam o que é e onde está a alma dos animais? Não entendo tal pergunta. Uma árvore tem a faculdade de receber nas suas fibras a seiva que nelas circula, de desabrochar os botões e criar os seus frutos; e ainda me haveis de perguntar o que é a alma dessa árvore? Esta beneficiou de alguns dons, como o animal beneficiou doutros, dos do sentimento, da memória, de certo número de ideias. Quem criou todos esses dons? Quem lhes concedeu todas essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva nos campos e gravitar a Terra à roda do Sol. As almas dos animais são formas substanciais, afirmou Aristóteles; e, depois de Aristóteles, a escola árabe; e, depois da escola árabe, a escola angélica; e, depois da escola angélica, a Sorbonne; e, depois da Sorbonne, mais ninguém no mundo. As almas dos animais são materiais, proclamam outros filósofos. Mas também não têm tido mais sucesso que os primeiros. Foi sempre em vão que se lhes perguntou o que é uma alma material; viram-se forçados a convir que é matéria passível de sensações: mas quem foi que lha deu? É uma alma material, isto é, trata-se de matéria que dá sensações à matéria; e não saem deste círculo vicioso. Escutai agora outros animais discutindo acerca de animais; á alma destes é um ser espiritual que morre com o corpo: mas que provas tendes disto? Que ideia fazeis desse ser espiritual que, com efeito, experimenta sentimentos e sensações, memória, e a sua dose de ideias e de combinações de ideias, mas que nunca poderá vir a saber o que é uma criança de seis anos? Em que base imaginais que esse ser, que não tem corpo, pereça com o corpo? Mas, de todos, os maiores animais ainda foram aqueles que afirmaram que a tal alma não é corpo nem espírito. Que rico sistema! Só podemos encarar como espírito algo de desconhecido que não é corpo; logo, o sistema destes cavalheiros vem a dar nisto: a alma dos animais é uma substância que não é corpo nem outra coisa qualquer que seja ainda menos que um corpo. Qual a origem de tantos e tão contraditórios despautérios? Do hábito que os homens sempre tiveram de examinar e definir o que é uma coisa, antes de saberem se ela existe. Costuma chamar-se à lingueta, que é a válvula dum fole, a alma do fole. Que alma vem a ser esta? Apenas um nome que dei a essa válvula, que desce, sobe, deixa entrar o ar e impele-o para um canudo, quando aperto o fole. Ali não há, pois, alma nenhuma distinta do instrumento. Mas quem faz mover a válvula dos animais? Já vo-lo disse, aquele que faz mover os astros. O filósofo que afirmou Deus est anima brutorum tinha razão; mas não devia ter ficado por aí. Anjo Anjo em grego significa enviado, mensageiro; não ficaremos muito mais instruídos se soubermos que os persas tinham os Pêris, os hebreus os Malakim, os gregos os seus Daimonoi. Mas o que talvez já melhor nos elucide é o fato de que uma das mais antigas ideias dos homens foi sempre esta de colocar seres intermediários entre nós e a Divindade; são esses demônios, esses gênios que a Antiguidade inventou; o homem sempre concebeu os deuses à sua imagem e semelhança. Viam os príncipes transmitir as suas ordens por mensageiros, logo a Divindade também envia os seus correios: Mercúrio, Íris eram correios, mensageiros dos deuses. Os hebreus, esse povo eleito que era o único que a Divindade conduzia, a princípio não atribuíram nomes especiais aos anjos que Deus se dignava finalmente mandar-lhes; tomaram de empréstimo os nomes que lhes davam os caldeus, quando o povo judaico esteve no cativeiro de Babilônia; Miguel e Gabriel são nomeados pela primeira vez por Daniel, escravo desses povos. O judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo Rafael, que viajou com seu filho para ajudar este a receber o dinheiro que lhe devia o judeu Gabael. Nas leis dos judeus, isto é, no Levitico e no Deuteronômio, não se faz qualquer menção da existência dos anjos e com melhores razões ao seu culto: por isso os saduceus não acreditavam nos anjos. Mas nas histórias dos judeus fala-se muito neles. Estes anjos eram corporais; tinham asas no dorso, tal como os gentios fingiram que Mercúrio as tinha nos calcanhares; por vezes, escondiam as asas debaixo das túnicas. E como não haviam eles de ter um corpo, se bebiam e comiam à grande, e os habitantes de Sodoma foram tentados e quiseram cometer o nefando pecado de pederastia com os anjos que foram à casa de Lot? Segundo Ben Maimon, a antiga tradição judaica admite dez graus, dez ordens de anjos: 1. Os chaios acodesh, puros, santos. 2. Os ofamin, rápidos. 3. Os oralim, os fortes. 4. Os chasmalim, as chamas. 5. Os serafim, faíscas. 6. Os malakim, anjos, mensageiros deputados. 7. Os eloim, os deuses ou juízes. 8. Os ben eloim, filhos dos deuses. 9. Os querubim, imagens. 10. Os ychim, os animados. A história da queda dos anjos não se encontra em parte nenhuma nos livros de Moisés; o primeiro testemunho que dela possuímos é o do profeta Isaías, o qual, apostrofando o rei de Babilônia, exclama: "Em que se transformou o exato r dos tributos? Até as faias e os cedros rejubilam com a sua queda; como caíste do céu, ó Hellel, ó estrela da manhã, filha da alva?" Traduziu-se este Hellel pela palavra latina Lúcifer; e depois por um sentido alegórico, deram o nome de Lúcifer ao príncipe dos anjos que fizeram a guerra no céu; e esse nome, que quer dizer fósforo e aurora tornou-se afinal no nome do diabo. A religião cristã tem seu fundamento na queda dos anjos. Aqueles que se revoltaram foram lançados das esferas onde habitavam para o inferno no centro da Terra, e tornaram-se diabos. Um diabo tentou a Eva sob o disfarce de serpente, e condenou às penas eternas o gênero humano. Jesus veio redimir o gênero humano e triunfar do diabo, que continua ainda a tentar-nos quanto pode. Todavia, esta tradição fundamental apenas se encontra no livro apócrifo de Enoch, e mesmo ali duma maneira completamente diferente da que a tradição aceita. Santo Agostinho, na sua centésima nona carta, não opõe a menor dúvida em atribuir corpos livres e ágeis aos bons e aos maus anjos. O Papa Gregório II reduziu a nove coros, a nove hierarquias ou ordens, os dez coros de anjos reconhecidos pelos judeus. Assim, temos: os serafins, os querubins, os tronos, as dominações, as virtudes, as potências, os principados, os arcanjos e, por fim, os anjos, que dão o nome geral às outras oito hierarquias. Os judeus tinham no templo dois querubins, cada um com duas cabeças, uma de boi e outra de águia, e seis asas. Agora pintamo-los sob a imagem de uma cabeça que voa, com duas asinhas debaixo das orelhas. Representamos os anjos e os arcanjos sob a figura de jovens com duas asas nas costas. Com respeito aos tronos e dominações ainda não se arranjou maneira de pintá-los. Santo Tomás, na questão 108, artigo 2º, diz que os tronos estão tão perto de Deus como os querubins e os serafins, porque Deus está sentado em cima deles. Escoto contou até mil milhões de anjos. Tendo transitado do Oriente para a Grécia e Roma a antiga mitologia dos gênios bons e maus, consagramos nós também essa crença, admitindo para cada homem um anjo bom e outro mau, um que o ajuda e outro que o tenta prejudicar desde o nascimento até a hora da morte; mas ainda não sabemos se estes anjos, bons e maus, mudam continuamente de um posto para outro, ou se serão revezados por outros. Consultai sobre esta matéria a Súmula de Santo Tomás. Não se sabe ao certo onde os anjos moram, se será no ar, no vácuo ou nos planetas: Deus não quis que ficássemos a saber tanto. Antropófagos Já falamos do amor. É penoso passar de pessoas que se beijam a pessoas que se comem. Mas é mais do que certo que houve antropófagos; na América foram topados alguns; talvez ainda lá os haja quem sabe, e os ciclopes não eram os únicos que, na Antiguidade, por vezes se alimentavam de carne humana. Conta Juvenal que entre os egípcios, esse povo tão sábio, tão louvado e afamado pelas suas leis, um povo tão piedoso que adorava até crocodilos e cebolas, os tintiritas comeram um dos seus inimigos que caíra prisioneiro em suas mãos; e não conta esta história por tê-la ouvido narrar a outrem, já que esse crime foi cometido quase à sua vista; achava-se então no Egito e perto de Tintire. A propósito, cita os gascões e os saguntinos que se alimentaram, outrora, com a carne dos compatriotas. Em 1725 trouxeram quatro selvagens do Mississípi para Fontainebleau e foi-me dada a honra de conversar com eles; do grupo fazia parte uma grande dama do país a quem perguntei se já tinha comido gente e com perfeita ingenuidade me respondeu que sim. Devo ter ficado um tanto escandalizado, mas ela desculpou-se, dizendo que mais valia comer um inimigo morto que deixá-lo devorar pelas feras, e que os vencedores mereciam ter a preferência. Quanto a nós, matamos em batalha campal ou não campal os nossos vizinhos, e na mira da mais vil das recompensas trabalhamos como cozinheiros dos corvos e dos vermes. Aí é que está o horroroso da questão, é nisso que consiste o crime; se nos matarem, que importa ser comido por um soldado, ou por um corvo ou um cão? Respeitamos mais os mortos que os vivos. Devíamos respeitar tanto uns como outros. Os povos que se dizem civilizados têm toda a razão em não porem os inimigos vencidos a assar no espeto; porque, se fosse permitido comer os vizinhos, depressa se comeriam também os compatriotas; o que seria grave inconveniente para as virtudes sociais. Mas os povos civilizados nem sempre assim o foram; durante muito tempo eram selvagens; e no número infinito de revoluções por que o nosso globo tem passado, o gênero humano ora foi numeroso, ora muito raro. Aconteceu já aos homens o que hoje em dia acontece aos elefantes, aos leões, aos tigres, cuja espécie tem diminuído muito. Nos tempos em que uma região era escassamente povoada, os homens tinham pouca sorte, eram caçadores. O hábito de se alimentarem normalmente com aquilo que tinham morto na caça levou-os com facilidade a tratarem os inimigos como tratavam os veados e os javalis. Foi a superstição que fez imolar vítimas humanas, foi a necessidade que as fez comer. Qual é o maior crime: juntarem-se muitas pessoas com férvida religiosidade para enterrar um punhal no coração duma rapariga ornada de faixas, em honra da Divindade, ou comer um pobre homenzinho que matamos em legítima defesa? Todavia temos muitos mais exemplos de raparigas e rapazes mortos nas aras do sacrifício do que raparigas e rapazes comidos: quase todas as nações que se conhecem sacrificaram rapazes e raparigas. Os judeus imolavam-nos. A isto chamava-se o anátema; era um autêntico sacrifício, e está estipulado no capítulo vigésimo sétimo do Levítico que não sejam poupadas as almas vivas que tiverem sido votadas ao sacrifício; mas em parte alguma se indica que as comam, apenas as ameaçam disso; Moisés, como já vimos, disse aos judeus que, se não respeitarem as cerimônias do culto, não só serão atacados de sarna, mas que até as mães virão a comer os filhos. É verdade que no tempo de Ezequiel os judeus deviam ter o costume de comer carne humana, porque é ele próprio quem lhes preceitua, no capítulo 39, que Deus lhes dará a comer não só os cavalos dos seus inimigos, mas também os cavaleiros e os outros guerreiros. Isto é indubitável. E, com efeito, por que é que os judeus não haviam de ter sido antropófagos? Era até a única coisa que faltava para o povo eleito de Deus ser o mais abominável e repugnante povo da terra. Li nas anedotas da história da Inglaterra no tempo de Cromwell que uma cerieira de Dublim vendia excelentes velas de sebo feitas com gordura de ingleses. Um belo dia uma das freguesas queixou-se de que as velas já não prestavam. "Que havemos de fazer?", respondeu a cerieira. "Este mês houve tanta falta de ingleses..." Agora pergunto eu quem era mais culpado: se aqueles que degolavam os ingleses ou esta boa mulherzinha que os aproveitava para velas de sebo? Ápis O boi Ápis era adorado em Mênfis como um deus, um símbolo ou como boi? É de crer que os fanáticos viam nele um deus, os sábios e sensatos, um simples símbolo, e que o povo ignaro o adorava como boi. Teria Cambises procedido bem quando matou este boi pelas próprias mãos, ao conquistar o Egito? E por que não? Demonstrava assim aos imbecis que era possível pôr o deus deles a assar no espeto, sem que a natureza parecesse irritada ou se incomodasse para vingar tal sacrilégio. Elogiaram-se muito os egípcios. Quanto a mim, não conheço povo tão desprezível como este; sempre deve ter havido, no seu caráter como no seu governo, um vício de raiz que fez dele sempre um povo de vis escravos. Concedo que em tempos quase imemoriais tenham conquistado a terra; mas nos tempos históricos foram subjugados por todos aqueles povos que quiseram dar-se a esse trabalho, pelos assírios, pelos gregos, pelos romanos, os árabes, os mamelucos, os turcos; enfim, por toda a gente que lhes apeteceu, exceção feita para os nossos cruzados, visto que estes ainda tinham mais de inexperientes e desastrados que de poltrões os egípcios. Foi a milícia dos mamelucos que derrotou os franceses. Talvez haja só duas coisas toleráveis neste povo: a primeira é que aqueles que adoravam um boi nunca pretenderam coagir a mudar de religião os que adoravam um macaco; a segunda, que sempre puseram os pintos a chocar no forno. As suas pirâmides são muito elogiadas; mas quem não vê que são monumentos de um povo escravizado? Foi indispensável obrigar toda a nação a participar na sua construção, sem o que nunca teriam podido erguer tão pesadas massas de rocha. E para que servem? Para conservar numa estreita câmara a múmia de algum príncipe, ou de qualquer governante ou intendente, na mira que a alma deste vá dar vida à múmia ao cabo de mil anos. Mas se eles tinham assim tanta fé na ressurreição dos corpos por que é que então lhes extraíram o cérebro antes de os embalsamarem? Ou será que os egípcios deviam ressuscitar sem mioleira? Apocalipse Justino, o mártir que escrevia à volta do ano 270 da nossa era, foi o primeiro que falou no Apocalipse; atribuiu-o ao apóstolo João, o evangelista: no seu diálogo com Trífon, este judeu pergunta-lhe se ele não acredita que Jerusalém há de ser reconstruída um dia. Justino responde-lhe que sim e que todos os bons cristãos pensam o mesmo. "Viveu entre nós", disse, "certo personagem chamado João, um dos doze apóstolos de Jesus; profetizou que os fiéis passarão mil anos em Jerusalém”. Este reinado de mil anos foi durante muito tempo uma crença profundamente arraigada entre os cristãos. Este espaço de tempo já gozava de muito crédito entre os gentios. As almas dos egípcios regressavam aos seus corpos passados mil anos; segundo Virgílio, as almas do purgatório eram postas à prova durante igual período de tempo, "et mille per annos”. A nova Jerusalém de mil anos devia ter doze portas, em memória dos doze apóstolos; devia apresentar forma quadrada; o comprimento, largura e altura deviam ser de doze mil estádios, isto é, quinhentas léguas, de modo que as casas deviam também ter quinhentas léguas de altura. Imagine-se como seria desagradável morar no último andar; mas, que querem?, é o que vem no Apocalipse, capítulo 21. Se Justino foi o primeiro que atribuiu o Apocalipse a São João, houve logo algumas pessoas que rejeitaram o seu testemunho, visto que, no mesmo diálogo com o judeu Trífon, ele afirma que Jesus Cristo (de acordo com o que referem os apóstolos), mergulhando nas águas do Jordão, fez ferver as águas deste rio e incendiou-as, o que em nenhum escrito dos apóstolos se encontra. O mesmo São Justino cita confiadamente os oráculos das sibilas; ademais, pretende ter visto os vestígios das celas onde foram encerrados os setenta e dois intérpretes no farol do Egito, no tempo de Herodes. Ora, o testemunho de um homem que teve a infelicidade de ver tão de perto essas celas de doidos parece indicar que o autor merecia também lá ter sido encafuado. Santo Irineu, que veio depois, e que também acreditava no tal reinado de mil anos, disse que soube por um velho que São João fizera o Apocalipse. Mas é costume censurar a Santo Irineu o ter escrito que só devia haver quatro Evangelhos porque só há quatro partes do mundo e quatro ventos cardiais, e que Ezequiel só viu quatro animais. Chama ele a este raciocínio uma demonstração. Forçoso é confessar aqui, à puridade, que o modo como Ireneu demonstra equivale, na perfeição, ao modo como Justino viu o que viu. Clemente de Alexandria apenas fala nos seus Electa dum Apocalipse de São Pedro, de que na época faziam grande caso. Tertuliano, um dos maiores partidários do reinado de mil anos, não só garante que São João profetizou essa ressurreição e esse tal reinado de mil anos na cidade de Jerusalém, como pretende ainda que esta nova Jerusalém começava já a formar-se no espaço; que todos os cristãos da Palestina, e até mesmo os pagãos, a tinham visto quarenta dias a fio pelo cabo da noite; infelizmente, a cidade levava sumiço mal rompia a manhã. Orígenes, no seu prefácio ao Evangelho de São João, cita os oráculos do Apocalipse; mas igualmente cita nas suas homílias os oráculos das sibilas. Contudo, São Dionísio de Alexandria, que escrevia por meados do século III, afirma num dos seus fragmentos, conservados por Eusébio, que quase todos os doutores da Igreja rejeitaram o Apocalipse como sendo um livro destituído de razão; que esse livro não fora escrito por São João, mas por tal Cerinto, que abusivamente utilizara um nome célebre para emprestar mais consistência às suas fantasias. O concílio de Laodicéia, realizado em 360, não contou o Apocalipse entre os livros canônicos. Coisa muito singular seria que Laodicéia, que era uma igreja a quem o Apocalipse era dirigido, rejeitasse um tesouro como esse e a ela destinado; e que o bispo de Éfeso, que assistia ao concílio, rejeitasse também um livro de São João, o apóstolo sepultado em Éfeso. A toda a gente era bem visível que São João se revolvesse constantemente na tumba, fazendo subir e descer a terra. Todavia, essas mesmas altas personagens que tinham a certeza que São João não estava morto de todo tinham também a certeza que não fora ele o autor do Apocalipse. Mas os que teimavam na crença do famoso reinado de mil anos ficaram inabaláveis na sua posição. Sulpício Severo, na sua História Sagrada, livro IX, trata de insensatos ímpios todos os que não acreditavam no Apocalipse. Afinal, após muitas dúvidas, de oposições de concílio para concílio, prevaleceu a opinião de Sulpício Severo. Tendo ficado esclarecida essa matéria, a Igreja decidiu que o Apocalipse é incontestavelmente da autoria de São João; e assim ficou resolvido, sem possibilidades de apelo. Cada comunidade cristã a si própria atribui as profecias contidas nesse livro; os ingleses descobriram nele as revoluções da Grã-Bretanha; os luteranos, as guerras civis na Alemanha; os reformados de França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis: todos tinham igualmente razão. Bossuet e Newton comentaram ambos o Apocalipse; mas, pensando bem, as grandiloquentes tiradas de um e as descobertas sublimes do outro honraram-nos mais que os seus comentários apocalípticos. Ateu, Ateísmo I Noutros tempos, qualquer pessoa que fosse detentora de um segredo numa arte, corria logo o perigo de ser tomada por feiticeiro; qualquer seita nova era logo acusada de imolar criancinhas nos seus sacrifícios e atos de culto; e o filósofo que se afastasse da terminologia da escola era acusado de ateísmo pelos fanáticos e pelos velhacos, e condenado pelos idiotas. Anaxágoras atreve-se a afirmar que o Sol não era guiado por Apolo montado numa quadriga; chamam-lhe ateu e é obrigado a dar às de vila-diogo. Aristóteles é acusado de ateísmo por um sacerdote; como não pode mandar punir o acusador, retira-se para Cálcis. Mas a morte de Sócrates é decerto ainda o caso mais odioso da história grega. Aristófanes (esse homem que os comentadores tanto admiram só porque era grego, parecendo esquecer-se de que Sócrates era grego também), Aristófanes foi o primeiro que levou os atenienses a considerarem Sócrates um ateu. Esse poeta cômico, que não é cômico nem poeta, entre nós não lhe teriam consentido que fizesse representar as suas farsas farsalhonas na feira de São Lourenço; a mim se me afigura ainda mais vil e mais desprezível do que o descreve Plutarco. Eis o que diz o sábio Plutarco deste truão: "A linguagem de Aristófanes tresanda ao seu miserável charlatanismo: nunca se ouviram graçolas tão baixas e tão repugnantes; nem a própria ralé lhe acha graça e toma-se verdadeiramente insuportável para as pessoas de senso e honra; a sua arrogância não se pode tolerar e as pessoas de bem detestam a sua evidente malevolência". Eis aí, diga-se de passagem, o Tabarin que a Sra. Dacier, admiradora de Sócrates, ousa admirar: é este o homem que preparou antecipadamente o veneno com que os infames juízes fizeram morrer o homem mais virtuoso da Grécia. Os tintureiros, os sapateiros e as costureiras de Atenas aplaudiram uma farsa em que Sócrates aparecia, suspenso no ar dentro dum cesto, proclamando que Deus não existe e gabando-se de ter roubado uma túnica quando ensinava filosofia. Um povo inteiro, cujo governo corrupto autorizava tão infames licenças, merecia com toda a justiça o que lhe aconteceu depois: tornar-se escravo dos romanos e sê-lo hoje ainda dos turcos. Passemos em branco o período que medeia entre a república romana e nós. Os romanos, muito mais sensatos que os gregos, nunca perseguiram nenhum filósofo por causa das suas ideias. Já o mesmo não aconteceu com os povos bárbaros que sucederam ao império romano. Maio imperador Frederico II tem querelas com os papas, logo o acusam de ser ateu e também de autor do livro dos Três Impostores, de parceria com o seu chanceler de Vinéis. O nosso grande chanceler de L'Hospital afirma-se contrário às perseguições: imediatamente é acusado de ateísmo, "Homo doctus sede verus atheus". Um jesuíta, tão abaixo de Aristófanes como Aristófanes está abaixo de Homero, um pobre pateta cujo nome se tornou ridículo até entre os próprios fanáticos, o jesuíta Garasse, para falar sem papas na língua, em todo o lado descobre ateístas; pois é assim que apelida todos quantos são alvo do seu descabelado furor. Chama ateísta a Théodore de Bêze; foi ele, também, que induziu o público em erro a respeito de Vanini. O desgraçado fim de Vanini não nos impressiona nem indigna tanto como o de Sócrates, porque Vanini não passava de um pedante estrangeiro sem mérito nenhum; mas Vanini não era nada um ateu, como se tentou fazer crer; era justamente o oposto disso. Era um pobre padre napolitano, pregador e teólogo de seu oficio, discutindo até o absurdo sobre as essências e sobre os universais, "et utrum chimaera bombinans in vacuo possit comedere secundas intentiones"." De resto, não tinha a menor queda para o ateísmo. A sua noção de Deus é teologia da mais sã e mais acatada. "Deus é seu princípio e seu fim, pai de um e de outro e não tendo necessidade nem dum nem doutro; eterno sem estar no tempo, em toda a parte presente sem estar em parte alguma. “O passado e o futuro não contam para ele; está em todo o lado e fora de tudo, governando tudo e tendo criado tudo, imutável, infinito, sem partes; o seu poder é a sua vontade, etc.”. Vanini entusiasmava-se ao rubro em renovar aquela bela ideia de Platão, perfilhada por Averrois, de que Deus criara uma cadeia de seres, desde o menor ao maior, cujo último elo está ligado ao seu trono eternal; ideia, com efeito, mais sublime que verdadeira mas que está tão distante do ateísmo como o ser do nada. Viajou muito para fazer fortuna e para polemicar; infelizmente a polêmica está no caminho oposto ao da fortuna; criam-se tantos inimigos irreconciliáveis como se encontram sábios ou pedantes com quem disputar. E não foi a origem da infeliz sorte de Vanini: o feitio impetuoso e a sua grosseria nas controvérsias valeram-lhe o ódio de alguns teólogos; e porque tivesse tido uma querela contra um tal Francon, ou Franconi, esse Francon, amigo dos inimigos dele, não tardou em acusá-lo de ser ateu e de propagar o ateísmo. Esse Francon ou Franconi, auxiliado por várias testemunhas, teve a ferocidade de, numa acareação com Vanini, sustentar o que anteriormente afirmara. No banco dos réus, Vanini, interrogado sobre o que pensava da existência de Deus, respondeu que adorava como a Igreja um Deus em três pessoas. E tendo apanhado uma palha do chão, acrescentou: "Basta esta simples palhinha para nos provar que há um criador". Então embrenhou-se numa formosa discursata acerca da vegetação e do movimento, e ainda sobre a necessidade de um ser supremo sem o qual não haveria movimento nem vegetação. O presidente Grammont, que nessa altura estava em Tolosa, transcreve essa arenga na sua História de França, hoje tão esquecida; e é o dito Grammont quem, por um preconceito disparatado, pretende que Vanini dizia tudo aquilo mais por vaidade ou medo do que por íntima convicção. Em que base poderá fundar-se este juízo temerário e cruel do presidente Grammont? Pelas respostas que deu, é evidente que Vanini devia ser absolvido da acusação de ateísmo. Que sucedeu, então? O desditoso padre estrangeiro era também um curioso por assuntos de medicina e foi dar em casa dele um grande sapo, que conservava vivo num vaso cheio de água; foi suficiente para o acusarem de feitiçaria. Afirmou-se que o sapo era o deus que ele adorava; atribuíram um sentido ímpio a vários passos dos seus livros, o que é coisa muito fácil e muito comum, tomando as objeções como respostas, interpretando malevolamente alguma frase mais ambígua, envenenando uma expressão. Finalmente, a facção que o atacava conseguiu arrancar dos juízes a sentença que condenou à morte o infeliz. Para justificarem essa morte, acusaram o desgraçado de tudo quanto há de mais horroroso. O mínimo e menos que mínimo, o insignificantíssimo Mersenne, levou o despautério a imprimir que Vanini saíra de Nápoles com doze dos seus apóstolos para converter todos os povos ao ateísmo. Que lástima! Como podia um miserando padre manter ao seu serviço doze homens e pagar-lhes de sua bolsa? Como teria conseguido convencer doze napolitanos a viajarem com grandes despesas, para propagar por toda a parte, em risco das próprias vidas, aquela abominável e revoltante doutrina? Um rei seria suficientemente poderoso para pagar a doze pregadores do ateísmo? Ninguém, antes do padre Mersenne, ousara aventar atoarda tão absurda. Mas, depois, muitos a repetiram, uma e mais vezes; encheram com ela os jornais, os dicionários históricos; o vulgo, que aprecia as coisas extravagantes, acreditou sem mais delongas, sem pensar um só momento naquela patranhosa fábula. Até o próprio Bayle, nos Pensamentos Diversos, fala de Vanini como se este fora um ateu: serve-se do seu exemplo para sustentar o paradoxo de que uma sociedade de ateus pode subsitir; garante que Vanini era um homem de costumes muito morigerados e que foi um mártir das suas ideias filosóficas. Engana-se redondamente nos dois pontos. É o padre Vanini em pessoa quem nos elucida, nos seus Diálogos, feitos à maneira dos de Erasmo, que tivera uma amante chamada Isabelle. Era uma criatura tão livre no que escrevia como na sua conduta; mas não era um ateu. Um século depois da sua morte, o sábio La Croze e aquele que tomou o nome de Philalête quiseram reabilitá-lo, prestando-lhe justiça; mas, como ninguém se interessa com a memória de um infeliz napolitano, péssimo autor ainda por cima, quase ninguém lê tais apologias. O jesuíta Hardouin, mais sabichão que Garasse, mas não menos atrevido e impudente, no livro intitulado Athei Detecti, acusa de ateísmo os Descartes, os Arnauld, os Pascal, os Nicole, os Malebranche: felizmente nenhum deles sofreu o destino de Vanini. De todos estes fatos passo para o problema de moral levantado por Bayle, a saber: se poderia subsistir uma sociedade de ateus. A propósito deste artigo, anotemos, para começar, como os homens se contradizem no ardor da polêmica: os que protestaram com mais furor contra a opinião de Bayle, aqueles que lhe negaram da mais injuriosa maneira a possibilidade de existir uma sociedade de ateus, foram precisamente os mesmos que a seguir afirmaram, e com igual intrepidez, que o ateísmo é a religião do governo da China. Enganaram-se por certo bem enganados acerca do governo chinês; bastava que lessem os éditos dos imperadores desse vasto país, logo teriam percebido que tais éditos são sermões e que constantemente ali se faz referência ao Ser Supremo, que tudo governa, tudo castiga e premia. Mas, ao mesmo tempo, não menos se enganaram acerca de uma sociedade de ateus: e não percebo como Bayle pôde esquecer um exemplo assim tão frisante que teria podido dar a vitória à sua causa. Por que razão será impossível uma sociedade de ateus? Porque se considera que homens sem freio nunca poderiam fazer vida coletiva - viver juntos; que as leis nada podem contra os crimes secretos - ocultos; que faz falta um Deus justiceiro que castigue, neste mundo ou no outro, os malvados que conseguiram ludibriar a justiça humana. É certo que as leis de Moisés não falavam de uma vida futura, não ameaçavam com castigos depois da morte, em nada inculcavam aos primeiros primitivos judeus a crença na imortalidade da alma; mas os judeus, longe de serem ateus, longe de acreditarem que podiam esquivar-se à vingança divina, eram os mais religiosos de todos os homens. Não somente criam na existência de um Deus eterno como acreditavam que estava sempre presente entre eles; tremiam perante a hipótese de serem punidos nas suas pessoas, ou nas pessoas das mulheres, dos filhos, de em toda a sua posteridade até a quarta geração: ora, esse era já um freio muito poderoso. Mas entre os gentios várias seitas não tinham freio algum: os céticos duvidavam de tudo; os acadêmicos adiavam o seu juízo a respeito de tudo; os epicuristas estavam persuadidos de que a Divindade não podia ingerir-se nos assuntos dos homens e bem no íntimo não admitiam nenhuma divindade. Estavam convencidos de que a alma não é uma substância, mas sim uma faculdade que nasce e morre com o corpo; por conseguinte, não conheciam outro jugo que não fosse o da moral e da honra. Os senadores e os cavaleiros romanos eram autênticos ateus, porque os deuses não existiam para homens que deles já nada receavam nem desejavam. No tempo de César e de Cícero, o Senado romano era, na realidade, uma assembleia de ateus. O grande orador, na sua alocução a favor de Cluentius, declarou perante o Senado: "Que mal lhe faz a morte? Rejeitamos todas essas lendas ineptas que falam nos infernos: portanto, o que é que a morte lhe roubou? Nada, exceto o sentimento das dores". César, o amigo de Catilina, querendo salvar a vida deste contra o dito Cícero, alega as seguintes objeções: que de modo algum se castiga um criminoso condenando-o à morte; que a morte não é nada, que é, simplesmente, o termo dos nossos males e que é um momento mais feliz que fatal. E Cícero e com ele o Senado inteiro não se rendem a estas razões? É certo que os vencedores e os legisladores do universo conhecido de então formavam visivelmente uma sociedade de homens que em nada se arreceavam dos deuses, que eram autênticos ateus. Bayle em seguida examina se a idolatria é mais perigosa que o ateísmo; se será maior crime não acreditar na Divindade ou ter a respeito dela opiniões indignas: neste ponto está de acordo com Plutarco; acho que mais vale não ter opinião nenhuma a ter uma opinião má; mas, apesar do que afirma Plutarco, é óbvio que valia infinitamente mais para os gregos temerem a Ceres, Netuno ou Júpiter, que não terem medo de nada. Torna-se claro como água que é indispensável a santidade dos juramentos e que de preferência devemos fiar-nos naqueles que pensam que um falso juramento será castigado, não naqueles que pensam que o podem fazer impunemente. É indubitável que numa cidade civilizada é infinitamente mais útil haver uma religião, por má que seja, a não haver nenhuma. Parece, portanto, que Bayle devia primeiro examinar qual era mais perigoso, se o fanatismo ou o ateísmo. O fanatismo é, decerto, mil vezes mais funesto; porque o ateísmo nunca inspira paixões sanguinárias, mas o fanatismo sim; o ateísmo não se opõe aos crimes, mas o fanatismo leva a praticá-los. Suponhamos, como o autor do Commentarium Rerum Gallicarum, que o chanceler de L'Hospital fosse ateu; mas só lhe devemos leis sensatas e prudentes e só o vimos recomendar a moderação e a concórdia; ora, os fanáticos cometeram os massacres da noite de São Bartolomeu. Hobbes foi tido por ateu; viveu vida tranquila e inocente; mas os fanáticos do seu tempo inundaram de sangue a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda. Spinoza não só de certeza era ateu mas até pregou o ateísmo: o que também é garantido é que não participou no assassinato jurídico de Barneveldt; nem foi ele que esquartejou os dois irmãos de Vitt e que os comeu assados na grelha. Na sua maioria os ateus são sábios audaciosos e desgarrados que raciocinam erradamente e que, não podendo compreender a criação, a origem do mal e outras dificuldades, recorreram à hipótese da eternidade das coisas e da necessidade. Os ambiciosos, os voluptuosos nem sequer têm tempo de raciocinar e perfilhar um mau sistema; têm mais que fazer que comparar Lucrécio a Sócrates. Entre nós, é o que se verifica. Mas já assim não era no Senado de Roma, quase todo constituído por ateus, ateus na teoria e na prática, isto é, que não acreditavam na Providência nem numa vida futura; esse Senado era uma assembleia de filósofos, de voluptuosos e ambiciosos, muito perigosos todos e tanto assim que acabaram por dar com a República em pantanas. O epicurismo subsistiu sob o jugo dos imperadores, e os ateus do Senado, que tinham sido uns facciosos e indomáveis nos tempos de Sila e de César, sob Augusto e Tibério foram ateus escravos. Não desejaria mesmo nada ter uma demanda com um príncipe ateu, que julgasse ser de seu interesse mandar-me pisar num almofariz: estou convencido que o faria e eu ficaria esmagado. Não desejaria, se fosse eu o soberano, ter quesílias com cortesões ateus, cujo interesse fosse envenenarem-me: ver-me-ia obrigado a beber antídotos ao acaso todos os dias. É pois em absoluto necessário, para os governantes como para os povos, que esteja profundamente gravada nos espíritos a ideia de um Ser supremo, criador, que premia e castiga. Há povos ateus, diz Bayle, nos Pensamentos sobre os Cometas. Os cafres, os hotentotes, os topinambus e muitos outros povos pequenos não conhecem Deus: nem o negam nem o afirmam; nunca ouviram falar nisso. Se lhes disserem que há um Deus, facilmente acreditam; digam-lhes que tudo se faz pela natureza das coisas, e acreditam-vos também. Pretender que são ateus vale o mesmo que dizer que são anticartesianos; ora, não são a favor ou contra Descartes. São autênticas crianças; e uma criança não é ateu nem deísta, não é nada. Que conclusão devemos tirar de tudo isto? Que o ateísmo é coisa monstruosa e mui perniciosa naqueles que governam; que também o é nos homens da corte (ainda que levem uma vida inocente), porque dos seus gabinetes e altos postos podem furar até os que detêm o mando e influenciá-los; que, embora não tão funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal para a virtude. Acrescente-se, principalmente, que há hoje menos ateus do que nunca, desde que os filósofos reconheceram que não existe nenhum ser vegetando sem germe, nenhum germe sem uma finalidade, etc., e que o trigo não provém da podridão. Alguns geômetras que não eram filósofos rejeitaram as causas finais, mas os filósofos autênticos admitem-nas; e, como disse um autor conhecido, um catequista anuncia Deus às crianças e Newton demonstra a sua existência aos sábios. II Se existem ateus, a quem devemos culpar senão aos tiranos mercenários das almas que, provocando em nós a nossa revolta contra as suas velhacarias e hipocrisia, levam alguns espíritos fracos a negarem o Deus que esses monstros desonram? Quantas e quantas vezes essas sanguessugas do povo não levaram os cidadãos oprimidos a revoltarem-se contra o seu próprio rei? Homens que engordaram como bácoros à nossa custa, à custa do nosso suor, não se cansam de nos gritar aos ouvidos: "Podeis estar certos que uma burra falou; acreditem a pés juntos que um peixe engoliu um homem e cuspiu-o na praia, são e salvo, ao cabo de três dias; não ponham em dúvida que o Deus do universo tenha ordenado a um profeta judeu que comesse merda (Ezequiel) e a outro profeta que comprasse duas putas e lhes fizesse filhos de puta (Oséias) (são as palavras textuais que põem na boca de um Deus de verdade e de pureza), acreditem em coisas tais como estas evidentemente abomináveis ou matematicamente impossíveis: caso contrário, o senhor Deus de misericórdia vos lançará nas chamas, não somente durante milhões de bilhões de séculos a arder no fogo infernal, mas por toda a eternidade, e quer tenhais um corpo, quer não". Estas inconcebíveis parvoíces revoltam os espíritos fracos e temerários tanto quanto os espíritos firmes e sensatos. Dizem uns e outros: "Se os nossos mestres nos pintam Deus como o mais disparatado e o mais bárbaro de todos os seres, então é porque não há Deus"; mas deviam dizer: "É então certo que os nossos mestres atribuem a Deus os seus próprios absurdos e rancores, logo Deus é o oposto daquilo que eles pregam, logo Deus é tão sábio e tão bondoso como no-lo querem fazer crer louco e malvado". Assim falam as pessoas avisadas e inteligentes. Mas, se algum fanático as ouvir, vai denunciá-las a um magistrado, agente dos padrecas; e este esbirro manda queimá-las a fogo lento, julgando deste modo vingar e imitar a majestade divina, que do mesmo passo ultraja. B Babel Sempre a vaidade ergueu grandes monumentos. Foi por vaidade que os homens construíram a torre de Babei: "Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome. para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra". A empresa foi tentada no tempo de tal Fale que, que contava o bom do Noé como seu quinto avô. A arquitetura e todas as demais artes suas subsidiárias tinham, como se vê, feito grandes progressos em cinco gerações. São Jerônimo, o mesmo que diz que viu faunos e sátiros, viu tanto como eu a torre de Babei; no entanto, garante que ela tinha vinte mil pés de altura. Não é coisa por aí além. O antigo livro Jacult, escrito por um dos judeus mais eruditos, demonstra que a sua altura era de oitenta e um mil pés judaicos; e não há ninguém que não saiba que o pé judeu era, aproximadamente, do comprimento do pé grego. Esta dimensão é muito mais verossímil que a de São Jerônimo. A torre resiste ainda; mas já não está é de tamanha altura. Vários viajantes, muito de acreditar, a viram; eu, que nunca a vi, não direi acerca dela mais que do meu pobre avozinho Adão, com quem nunca tive a honra e proveito de conversar. Mas consultai o reverendo padre dom Calmet: este homem sabe tudo! Alia uma inteligência bastante perspicaz a uma profunda filosofia; explicar-vos-á a coisa. Não sei por que se diz no Gênesis que Babei significa confusão; porque Ba quer dizer pai, nas línguas orientais, e Bel quer dizer Deus; Babei, portanto, será a cidade de Deus, cidade santa. Os antigos davam este nome a todas as suas capitais. Mas é incontestável que Babei quer dizer confusão, seja porque os arquitetos ficaram confusos após terem erguido a sua obra até oitenta e um mil pés judaicos, seja porque se deu a confusão das línguas; e é evidente que desde então os alemães já não conseguem perceber os chineses; porque é óbvio, conforme opina o sábio Bochart, que o chinês é originariamente a mesma língua que o alto-alemão. Batismo Batismo, palavra grega que significa imersão. Os homens, que se guiam sempre pelos sentidos, facilmente imaginaram que aquilo que lavava o corpo lavava também a alma. Havia grandes cubas nos subterrâneos dos templos do Egito para os sacerdotes e para os iniciados. Os indianos desde tempos imemoriais que se purificam nas águas do Ganges e esta cerimônia está ainda muito em voga. Os hebreus adotaram-na: até batizavam todos os estrangeiros que abraçavam a lei judaica, e que não queriam submeter-se à circuncisão; principalmente as mulheres, a quem não obrigavam a essa operação (a que só na Etiópia eram sujeitas), eram batizadas. O batismo era uma regeneração: aquilo dava uma alma nova, tal como no Egito. Consultai a este respeito Epifânio, Maimônides e Gemara. João batizou no Jordão e batizou até Jesus, que todavia nunca batizou ninguém, mas se dignou consagrar esse antigo ritual. Todo e qualquer sinal é indiferente por si e Deus concede a graça ao sinal que lhe apraz escolher. O batismo em breve se tomou o primeiro rito e o cunho da religião cristã. Contudo, os quinze primeiros bispos foram circuncidados, mas não há a certeza de que fossem batizados. Abusou-se deste sacramento nos primeiros séculos do cristianismo; era muito vulgar estarem à espera da hora da agonia para receberem o batismo. Exemplo significativo é o do imperador Constantino, que pensava assim: o batismo purifica tudo; logo, posso matar a minha mulher, o meu filho e restante parentela, depois do que me faço batizar e vou para o céu; e foi mesmo o que fez. Este exemplo era perigoso; pouco a pouco foi sendo abolido o costume de esperar pela morte para tomar o banho sagrado. Os gregos conservaram sempre o batismo por imersão. Os latinos, nos fins do século VIII, tendo dilatado a sua religião pela Gália e pela Germânia e vendo que a imersão podia ser fatal para as crianças, nesses países frios, substituíram-na pela simples aspersão, o que muitas vezes os fez anatemizar pela Igreja grega. Perguntaram um dia a São Cipriano, bispo de Cartago, se estariam realmente batizados aqueles cujo corpo fora apenas salpicado com água. Respondeu, na sua septuagésima sexta carta, que "há várias igrejas que não acreditavam que os só salpicados fossem cristãos; quanto a ele, pensa que são cristãos, mas gozam duma graça infinitamente menor do que aqueles que foram mergulhados três vezes como era costume". Entre os cristãos consideravam como iniciado aquele que se tivesse submetido à imersão; antes disso, não passava de catecúmeno. Para ser iniciado tornava-se indispensável ter abonadores, fianças, a que davam um nome que corresponde a padrinhos, a fim de que a Igreja possuísse garantias da fidelidade dos novos cristãos e que os mistérios nunca fossem divulgados. Foi esse o motivo por que, nos primeiros séculos, os gentios ficavam geralmente tão mal instruídos sobre os mistérios dos cristãos, como estes o eram dos mistérios de Ísis e de Eleusina. Cirilo de Alexandria, num panfleto contra o Imperador Juliano, exprime-se assim: "Falaria do batismo, se não temesse que as minhas palavras cheguem aos ouvidos dos que não são iniciados". A partir do século II, começaram a batizar as crianças; era natural que os cristãos desejassem que os filhos recebessem esse sacramento, sem o qual estariam condenados às penas do Inferno. Finalmente, acabaram por concluir que era necessário administrar-lhes o batismo aos oito dias de vida porque, entre os judeus, era com essa idade que se circuncidavam as crianças. A Igreja grega conserva ainda este uso. Todavia, no século III, dominou novamente o costume de só se fazerem batizar à hora da morte. Todos os que morriam na primeira semana ficavam condenados às penas infernais, segundo opinavam os mais austeros Padres da Igreja. Mas Pierre Chrysologue, no século V, imaginou os limbos, espécie de Inferno atenuado, nos arredores do Inferno, para onde vão as criancinhas que morrem sem batismo e onde já estavam os patriarcas antes da descida de Jesus Cristo aos infernos; de modo que a ideia de que Jesus Cristo tinha descido aos limbos, e não aos infernos, prevaleceu desde então. Debateu-se o seguinte problema: se um cristão nos desertos da Arábia podia ser batizado com areia. Concluiu-se que não. E também se se poderia ser batizado com água de rosas: acabaram por decretar que era indispensável água pura, mas que podiam servir-se de água lodosa. Facilmente se depreende que estes regulamentos dependeram todos da prudência dos primeiros pastores que os fundaram. Ideias dos Unitários Rígidos sobre o Batismo "Para todos aqueles que quiserem raciocinar sem preconceitos, é evidente que o batismo não é um sinal de graça conferida, nem um selo de aliança, mas uma simples marca de profissão de fé;” "Que o batismo não é necessário, nem por necessidade de preceito, nem por necessidade de meio;” "Que não foi instituído por Jesus Cristo e que o cristão pode dispensá-lo muito bem, sem que lhe advenha qualquer inconveniente;” "Que não se devem batizar as crianças nem os adultos, nem nenhum homem em geral;” "Que o batismo podia ser um uso nos primeiros tempos do cristianismo para todos os que abandonavam o paganismo, a fim de tornarem pública a sua profissão de fé e dar-lhe um sinal autêntico; mas agora é absolutamente inútil e totalmente indiferente." (Extraído do Dicionário Enciclopédico, no artigo sobre os Unitários) Adição Importante O imperador Juliano, o filósofo, na sua imortal Sátira dos Césares, põe estas palavras na boca de Constâncio, filho de Constantino; "Todo aquele que se sentir culpado de violação, assassínio, rapina, sacrilégio e de qualquer outro crime, mesmo os mais abomináveis, ficará limpo e puro logo que eu o tiver lavado com esta água". Foi com efeito esta fatal doutrina que levou todos os imperadores e todos os grandes do império a adiarem o seu batismo até a morte. Julgavam eles ter assim descoberto o segredo de viverem no pecado e morrerem como virtuosos. Outra Adição Que ideia estapafúrdia, inspirada na barrela, essa de um jarro de água lavar todos os crimes! Hoje em dia, que se batizam todas as crianças, porque outra ideia não menos absurda a todas considerou como criminosas, ei-las agora todas salvas até que atinjam a idade da razão e que possam tornar-se culpadas. Degolai-as o mais depressa possível, para que tenham o Paraíso garantido. É tão lógica esta consequência, que houve em tempos uma seita devota que envenenava ou matava as crianças recém batizadas. Estes sacripantas raciocinavam com lógica. Diziam: "Prestamos aos inocentes o melhor bem que se pode imaginar; impedimos que sejam maus e infelizes nesta vida e garantimos-lhes a vida eterna". Beleza, Belo Perguntem a um sapo o que é a beleza, o belo admirável, o to kalón. Responder-vos-á que é a fêmea dele, com os seus dois grandes olhos redondos, salientes, espetados na pequenina cabeça, um focinho largo e achatado, barriga amarela, dorso acastanhado. Interrogai um preto da Guiné: para esse, o belo é uma pele negra, oleosa, os olhos sumidos nas órbitas, venta esborrachada. Interroguem o diabo: dirá que o belo é um par de cornichos, quatro garras afiadas e um rabiosque enrolado. Consultem, por fim, o filósofo: responder-vos-á por uma algaraviada desconexa, numa gíria arrevesadíssima; é-lhes indispensável algo de conforme ao arquétipo do belo em essência, ao to kalón. Um dia assistia eu a uma tragédia na companhia de um filósofo. "- Como isto é belo! - exclamava ele. - Mas onde está a beleza disto? - perguntei-lhe. - Está em que o autor atingiu a finalidade que pretendia." No dia seguinte o tal filósofo tomou um purgante que lhe fez grande efeito. "Atingiu a finalidade", comentei. "Ora, aí está um purgante belo!" Então percebeu que não se pode dizer que uma purga é bela e que para darmos a qualquer coisa o título de beleza será indispensável que vos cause admiração e prazer. Concordou comigo que a tal tragédia lhe proporcionara esses dois sentimentos, e que consistia nisso o to kalán, o belo. Fizemos uma viagem pela Inglaterra: ali vimos representar a mesma peça, traduzida na perfeição; pois obrigou a bocejar todos os espectadores. "Oh! Oh!" exclamou o nosso filósofo, "o to kalón não é o mesmo para ingleses e franceses." Concluiu, depois de refletir maduramente no caso, que o sentimento do belo é coisa muito relativa, do mesmo modo que aquilo que é decente no Japão é indecente em Roma, e o que está em moda em Paris é detestado em Pequim; e desistiu de elaborar um longo tratado sobre o belo que em tempos projetara fazer. Bem (supremo bem) O bem-estar é raro. O supremo bem neste mundo não poderia ser encarado como supremamente quimérico? Os filósofos gregos longamente discutiram, segundo o seu costume, este problema. Fazeis alguma ideia, caro leitor, de ver mendigos a discorrer sobre a pedra filosofal? O supremo bem! Que coisa bombástica! Vale o mesmo que inquirir o que será o supremo azul, ou o supremo guisado, o supremo caminhar, o supremo ler, etc. Cada um de nós põe o seu bem onde pode e cada qual a seu modo possui tanto quanto pode. Quid dem? quid non dem? Renuis tu quod jubet alter... Castor gaudet equis; ovo prognatus eodem pugnis... O maior bem é aquele que vos deleita com tal violência, de tão intensa maneira, que vos coloca na impotência total de sentir outra coisa, como o maior mal é aquele que chega a privar-nos de todo e qualquer sentimento. Eis dois extremos da natureza humana e esses dois momentos são breves. Não há delícias extremas nem extremos tormentos que possam durar a vida inteira: o supremo bem e o supremo mal são quimeras. Recordemos a bela fábula de Crantor: faz comparecer aos jogos olímpicos a Riqueza, a Voluptuosidade, a Saúde, a Virtude; cada uma delas solicita a maçã. A Riqueza diz: "Eu é que sou o supremo bem, porque por meu intermédio se adquirem todos os bens". A Voluptuosidade diz: "Cabe-me a maçã, porque a riqueza é desejada só para me terem". A Saúde garante que sem ela não pode haver voluptuosidade e a riqueza é inútil. Finalmente a Virtude argumenta que é superior às outras três, porque com o ouro, prazeres e saúde podemos proceder como miseráveis e conduzir-nos mal. E foi a Virtude que ganhou a maçã. A fábula é muito engenhosa e mais o seria se Crantor tivesse dito que o supremo bem é o conjunto das quatro rivais reunidas: Virtude, Saúde, Riqueza e Voluptuosidade; mas esta fábula não resolve o absurdo problema do soberano bem. A virtude não é um bem, é um dever; pertence a um gênero diferente, uma categoria superior. Nada tem a ver com sensações dolorosas ou agradáveis. O homem virtuoso, com pedra na bexiga e gota, sem amparo, sem amigos, privado do indispensável, perseguido, posto a ferros por um tirano voluptuoso e saudável, é muito infeliz; e o odioso perseguidor, acariciando uma nova amante no seu leito de púrpura, é felicíssimo. Agora direis que o sábio perseguido é preferível ao odioso perseguidor; dizei que venerais um, tanto quanto detestais o outro; mas mesmo assim haveis de confessar que o sábio, alquebrado ao peso das grilhetas, desespera e está furioso. E quem não for capaz de perceber isto, não é sábio, é um charlatão. Bem (tudo está) Rebentou enorme escândalo nas escolas filosóficas, e até mesmo entre as pessoas estudiosas e inteligentes, quando Leibniz, parafraseando Platão, ergueu o seu edifício do melhor dos mundos possíveis e imaginou que tudo ia pelo melhor. No Norte da Alemanha afirmou que Deus podia fazer só um mundo. Platão, pelo menos, dera-lhe a liberdade de fazer cinco, pela simples razão de que só há cinco corpos regulares: o tetraedro, ou a pirâmide de três faces, com a base igual; o cubo, o hexaedro, o dodecaedro e o icosaedro. Mas, como o nosso mundo não tem a forma de nenhum dos cinco corpos de Platão, devia permitir a Deus uma sexta maneira. Abandonemos por agora o divino Platão. Leibniz, que era com certeza melhor geômetra do que ele e metafísico mais profundo, prestou, pois, ao gênero humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar muito contentes e que Deus não podia fazer por nós mais do que fez; que tinha forçosamente escolhido, entre todas as possíveis decisões, a melhor de todas sem contradita. "Que será então do pecado original?", espantavam-se. "Será o que puder ser", diziam Leibniz e os amigos; mas, em público, escrevia que o pecado original fazia necessariamente parte do melhor dos mundos. Homessa!, ser assim expulso de um lugar de prazer, onde se teria vivido para sempre se não tivesse comido uma maçã! Procriar filhos na miséria, filhos mais que miseráveis, que hão de sofrer tudo, que farão sofrer tudo aos outros! Padecer de todas as doenças, sentir todos os desgostos, morrer na dor e como refrigério ser queimado ou assado pela eternidade dos séculos fora! Esta herança que nos coube seria com efeito o que há de melhor? Nada disso é bom em demasia para nós; e no que poderá, então, ser bom para Deus? Leibniz sentia que não podia responder fosse o que fosse a isto: e encheu grossos calhamaços que nem ele mesmo entendia. Negar que o mal existe é coisa para ser dita a rir por um tipo como Lúculo, que goza de excelente saúde e está a pagar um delicioso jantar em companhia dos amigalhaços e da amante no salão de Apolo; basta, porém, que ponha a cabeça fora da janela, logo verá gente infeliz; e sinta um pouco de febre, até ele próprio será infeliz. Não gosto de fazer citações; regra geral é uma tarefa ingrata: despreza-se ci contexto e expomo-nos a mil controvérsias. É necessário todavia que cite Lactâncio, Padre da Igreja, o qual, no capítulo 13, "Da Cólera de Deus", põe Epicuro a falar nos seguintes termos: "Ou Deus quer extirpar o mal deste mundo, e não pode, ou pode e não o quer; ou não pode nem quer; ou, finalmente, quer e pode. Se quer e não o pode. é sinal de impotência. o que é contrário à natureza de Deus; se pode e não o quer, é malvadez, o que não é menos contrário à sua natureza; se não quer nem pode é simultaneamente malvadez e impotência; se quer e pode (o que de todas estas hipóteses é a única que convém a Deus), qual é então a origem do mal sobre a terra?" O argumento é de força; por isso Lactâncio o rebate debilmente, dizendo que Deus quer o mal mas nos concedeu a sabedoria pela qual podemos alcançar o bem. Temos de convir que esta resposta é bem frágil se a compararmos com a objeção; porque subentende que Deus não podia conceder-nos a sabedoria se não tivesse criado o mal; e que sabedoria agradável é essa! A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém até hoje chegou a ver o fundo. Foi o que obrigou tantos filósofos antigos e antigos legisladores a recorrerem aos dois princípios, um bom, outro mau. Tifou era o princípio mau entre os egípcios, Ariman entre os persas. Como é sabido, os maniqueus adotaram esta teologia; mas, como esses povos nunca falaram com o princípio do bem nem com o do mal, não nos devemos fiar muito no que dizem. Entre as coisas absurdas que neste mundo abundam e podemos colocar no número dos nossos males, não é ligeiro disparate ter suposto que existiam dois entes todo-poderosos, em luta um com o outro, a ver qual dos dois dominava mais neste mundo e fazendo um tratado parecido com o dos dois médicos de Moliére: Passai-me o vomitório, tomai lá a sangria. Depois dos platônicos, Basilide pretendeu, desde o primeiro século da Igreja, que Deus dera o nosso mundo a fazer aos seus últimos anjos e que estes, pouco hábeis, fizeram a linda obra que está à vista. Esta fábula teológica cai por terra feita em pó pela terrível objeção de que não é próprio da natureza de um Deus todo-poderoso e sagaz mandar construir um mundo por arquitetos que nada percebiam disso. Símon, que compreendeu o alcance da objeção, previne-a, dizendo que o anjo que presidia na oficina foi condenado às penas infernais por se ter desempenhado tão mal da sua tarefa; mas a queimadura que sofreu não nos serve a nós de consolação. A aventura de Pandora, entre os gregos, não responde melhor à objeção. A caixa onde se guardam todos os males, e no fundo da qual permanece a esperança, é com efeito uma alegoria encantadora; mas foi Vulcano que criou essa Pandora e apenas para se vingar de Prometeu que fizera um homem com a alma. Os indianos não descobriram coisa muito melhor: Deus, tendo criado o homem, deu-lhe uma droga que lhe garantia uma saúde permanente; o homem guarda a droga nas garupelhas do burro, o burro teve sede, a serpente indicou-lhe uma fonte; e, enquanto o burro bebia, vai a serpente e rouba-lhe a droga. Os sírios imaginaram que, tendo sido o homem e a mulher criados no quarto céu, se lembraram de comer um bolo folhado em vez de ambrosia, que era o seu alimento natural. A ambrosia eliminava-se pelos poros; mas, após terem comido o tal empadão folhado, sentiram necessidade de ir dar de corpo. Então o homem e a mulher pediram a um anjo que lhes ensinasse onde era a retrete. "Veem aquele pequeno planeta lá embaixo, tamanhinho como um bago, que dista daqui coisa como sessenta milhões de léguas?", perguntou-lhes o anjo. "Aí é que é a retrete do universo. Vão lá e não se demorem." Foram, e deixaram-nos lá ficar; e, desde então, o nosso mundo transformou-se naquilo que é. Por todos os séculos se há de indagar dos sírios a razão por que Deus permitiu que o homem comesse empadão folhado e que depois nos caíssem em cima um ror de males tão horríveis. Transito apressadamente deste quarto céu para milorde Bolingbroke, para não me aborrecer ainda mais. Esse homem, que decerto possuía um vasto gênio deu ao famoso Pope o seu plano do tudo está bem que, com efeito, vamos encontrar tintim por tintim nas obras póstumas de milorde Bolingbroke, e que milorde Shaftesbury anteriormente incluíra nas suas Características. Queiram ler em Shaftesbury o capítulo dedicado aos moralistas e achareis ali estas palavras: "Há muitos argumentos a opor a essas lamentações sobre os defeitos da natureza. Como foi possível que tivesse saído assim, tão impotente e tão defeituosa, das mãos de um ser perfeito? Mas eu por mim nego que seja defeituosa... A sua beleza resulta do jogo dos contrários, e a concórdia universal nasce de um perpétuo combate... É necessário que um ente seja imolado a outros: os vegetais aos animais, os animais à terra...; e as leis do poder central e da gravitação, que emprestam aos corpos celestes o seu peso e movimento, não poderão ser transgredi das por um mesquinho animal que por muito protegido que esteja por essas mesmas ditas leis, em nome delas ficará, pouco depois, reduzido a cinzas, pó e nada". Bolingbroke, Shaftesbury e Pope (inovador à custa das ideias e projetos dos outros dois) não resolvem melhor o nosso problema: o seu tudo está bem significa apenas isto: que o todo é comandado por leis imutáveis; ora, quem o não sabe? Nada nos ensinam, quando observam, como se de crianças se tratasse, que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, as aranhas pelas andorinhas, as andorinhas pelos lanieiros, os lanieiros pelas águias, as águias para serem abatidas pelos homens, os homens para se matarem uns aos outros e serem depois comidos pelos vermes e a seguir pelos diabos todos, pelo menos à razão de mil para um. Eis uma hierarquia evidente e constante entre os animais de toda a espécie; a ordem reina em tudo. Quando se forma uma pedra na minha bexiga, trata-se duma mecânica admirável: sedimentos calcários passam pouco a pouco no meu sangue, vão sendo coados pelos rins, passam pelos ureteres, depositam-se na bexiga, aglomerando-se ali por uma excelente atração newtoniana: forma-se a pedra, engrossa, padeço de males mil vezes piores que a morte, tudo em nome do melhor arranjo do mundo; um cirurgião, tendo aperfeiçoado a arte inventada por Tubalcain, espeta-me um ferro agudo e cortante no perineu, agarra a pedra com as suas pinças: parte-a ao cabo de grandes esforços, tudo em nome de um mecanismo necessário; e ainda em nome desse mesmo mecanismo acabo por morrer no meio de horrorosos sofrimentos. Tudo isto está bem, tudo isto é a evidente sucessão dos princípios físicos inalteráveis: estou completamente de acordo convosco e já o sabia tão bem como vós. Se fôssemos insensíveis, nada haveria a dizer de tal física. Mas não é disso que se trata; gostaríamos de saber se não haverá males sensíveis, e donde provêm. "Não há males", assevera Pope na quarta epístola sobre o tudo está bem; "ou, se houver males particulares, formam o bem geral”. Ora, aqui está um singular bem geral, formado pela pedra da bexiga, a gota, formado por todos os crimes que se cometem, todos os sofrimentos, pela morte e a danação. A queda do homem é o emplastro que aplicamos a todas essas doenças particulares do corpo e da alma, a que chamais saúde geral; mas Shaftesbury e Bolingbroke troçam do pecado original; Pope nem disso fala; é óbvio que o sistema deles ataca a religião cristã nos seus fundamentos e sem explicar em absoluto nada que se veja. Todavia, esse sistema foi, não há muito, aprovado por alguns teólogos que de boa mente admitem os contrários; está dito e redito que não se deve invejar a ninguém a consolação de raciocinar como bem entenda e possa, acerca do dilúvio de males que nos inunda. É justo permitir aos doentes desenganados de todo comerem aquilo que lhes apetecer. Chegou-se ao ponto de pretender que tal sistema é consolador. "Deus", afirma Pope, "observa com igual impassibilidade a morte do herói como a do pardalzinho, um átomo ou mil plantas que se desintegram, formar-se uma bola de sabão ou um mundo novo." Ei-la aqui, confesso-vos, uma curiosa consolação; não achais um forte lenitivo na receita de milorde Shaftesbury ao dizer que Deus não irá modificar as suas leis eternas por um animal tão mesquinho como é o homem? Devemos, pelo menos, confessar, e tentar compreender, protestando, por que é que essas leis eternas não foram feitas para o bem-estar de cada indivíduo. Este sistema do tudo está bem apresenta o autor de toda natureza como um rei poderoso e malfazejo que pouco se incomoda que, por causa dele, percam a vida quatrocentos ou quinhentos mil homens, e que os outros vegetem na miséria e na dor, contanto que os seus desígnios sejam atingidos. Muito longe, por conseguinte, de que a opinião do melhor dos mundos possíveis sirva de refrigério e consolo, verifica-se, pelo contrário, que é desesperadora para os filósofos que a perfilham. O problema do bem e do mal permanece como um caos indecifrável para aqueles que se interrogam de boa fé; é um jogo de inteligência para os que discutem: estes são como forçados que joguem com as próprias grilhetas. Para o povo ignaro, que não pensa, parece-se bastante com peixes que tivessem sido levados de uma ribeira para um viveiro; não fazem a menor ideia de que os levaram para ali a fim de serem comidos durante a Quaresma: também nós, por nós próprios, nada de nada sabemos sobre as causas do nosso destino. Assim, escrevamos no final de quase todos os capítulos de metafísica as duas letras dos juízes romanos quando não entendem uma causa: N. L., non liquet, isso não é claro. C Cadeia dos Acontecimentos Dizem que no presente se partureja o futuro. Os acontecimentos estão encadeados uns nos outros por uma fatalidade invencível: é o Destino que, em Homero, está acima do próprio Júpiter. O soberano dos deuses e dos homens dá-o claramente a entender quando afirma que não pode impedir Sarpedon, seu filho, de morrer na data fixada. Sarpedon nascera no momento em que devia nascer e não podia nascer noutro momento qualquer; não podia morrer noutro lado senão diante de Tróia; só na Lícia havia de ficar sepultado: o seu corpo havia de produzir legumes no tempo estabelecido, legumes que deviam transformar-se na substância de vários licianos; os seus herdeiros deviam fundar uma nova ordem nos seus Estados; essa ordem nova havia de influir nos reinos vizinhos, donde resultaria um novo arranjo de guerra e de paz com os vizinhos da Lícia; assim, gradualmente, o destino da terra inteira esteve dependente da morte de Sarpedon, a qual já dependia de outro acontecimento, que estava ligado por outros à origem das coisas. Bastava que um só destes fatos tivesse acontecido de maneira diferente para que outro universo resultasse daí; ora, não é possível que o universo atual não exista tal qual é: logo, não era possível que Júpiter, apesar de ser quem era, salvasse a vida do filho. Este sistema da necessidade e da fatalidade foi, em nossos dias, inventado por Leibniz, segundo ele afirma, sob o nome de razão suficiente, mas é muito antigo: não é de hoje que não há efeito sem causa e acontece com frequência que causas mínimas produzem graves defeitos. Milorde Bolingbroke confessa que as ridículas questiúnculas da Srª de Marlborough com a Srª Masham lhe deram ensejo de celebrar o tratado privado da rainha Ana com Luís XIV: esse tratado ocasionou a paz de Utreque; essa paz de Utreque consolidou Filipe V no trono de Espanha; Filipe V tomou Nápoles e a Sicília à Casa de Áustria; o príncipe espanhol, que é hoje rei de Nápoles, deve evidentemente o seu reino a milady Masham; e não o teria obtido, não teria até talvez nascido, se a riqueza de Marlborough tivesse sido mais amável, mais lisonjeira com a rainha de Inglaterra. A existência desse príncipe em Nápoles dependia, afinal, dum salamaleque a mais ou a menos na corte de Londres. Examinai as situações de todos os povos do universo: estabelecem-se deste modo numa sucessão de fatos que parecem não depender de nada e em verdade são consequência de tudo. Tudo é rodagem, roldana, corda, mola, nesta engrenagem colossal. E o mesmo se verifica na ordem física. Um vento que sopra dos confins da África e dos mares austrais arrasta consigo uma parte da atmosfera africana, que cai em forma de chuva nos vales dos Alpes; estas chuvas fertilizam os nossos campos; o nosso vento do Norte, por sua vez, empurra os nossos barcos para as terras dos gregos; fazemos bem à Guiné e a Guiné faz-nos outro tanto. A cadeia estende-se de um lado ao outro do universo. Mas, ao que me quer parecer, abusa-se de modo estranho da verdade contida naquele princípio. Por ele somos levados a concluir que não há um átomo, por mais pequenino, cujo movimento não tenha influído na situação atual do mundo inteiro; que não aconteça o mais insignificante acidente, quer entre os homens, quer entre os animais, que não seja um elo essencial da grande cadeia do destino. Entendamo-nos: todo o efeito tem, evidentemente, a sua causa, a remontar de causa em causa no abismo da eternidade; mas nem toda causa tem seu efeito a influir até ao fim dos séculos. Todos os acontecimentos são produzidos uns pelos outros, reconheço; se o passado partureja o presente, o presente partureja o futuro; todos têm pais, mas nem todos têm filhos. Sucede aqui precisamente o mesmo que numa árvore genealógica: cada linhagem ascende, como se sabe, até Adão, mas na família há muitas pessoas que morreram sem descendência. Há uma árvore genealógica dos sucessos deste mundo. É incontestável que os habitantes das Gálias e da Espanha descendem de Gomer e os russos de Magog, seu irmão mais novo: lê-se esta genealogia em tantos e tão volumosos calhamaços! Visto que assim é•, não há que negar que devemos a Magog os sessenta mil russos que estão agora em pé de guerra lá para as bandas da Pomerânia e os sessenta mil franceses que estão agora perto de Frankfurt. Nem se pode negar que o grão-turco, que também descende de Magog, não lhe deva o obséquio de ter sido derrotado e bem derrotado, em 1769, por Catarina da Rússia. Esta aventura depende evidentemente doutras grandes aventuras. Mas que Magog tenha escarrado à direita ou à esquerda, junto do monte Cáucaso, que tenha feito dois círculos num poço ou três, que tenha dormido para o lado esquerdo ou para o lado direito, não vejo que influência possa ter tido isso na resolução tomada pela imperatriz Isabel da Rússia ao enviar um exército em auxílio da imperatriz dos romanos, Maria Teresa. Que o meu cão sonhe ou não sonhe enquanto dorme, não enxergo a relação que tão importante fato possa ter com a política do Grão Mogol. Temos de pensar que nem tudo é compacto na natureza, há vazios, lacunas, e que nem todo movimento se propaga progressivamente, até dar a volta ao mundo. Lançai na água um corpo com uma densidade semelhante, facilmente calculareis que, ao fim de certo tempo, o movimento desse corpo e aquele que o dito corpo comunicou à água se extinguiram; o movimento perde-se e restabelece-se; logo, o movimento que Magog produziu ao cuspir num poço não pode ter influído no que hoje se passa na Rússia e na Pérsia. Logo, os acontecimentos presentes não são as crias de todos os acontecimentos do passado; têm as suas linhas diretas; mas, de nada lhes servem mil pequenas linhas colaterais. Mais uma vez afirmo: todo o ser tem pai, mas nem todo o ser tem filhos. Diremos algo quando falarmos do Destino. Cadeia dos Seres Criados A primeira vez que li Platão e deparei com essa gradação de seres que se elevam desde o mais insignificante átomo até o Ser supremo, encheu-me de admiração essa escala; mas, tendo-a depois considerado mais atentamente, esse grandioso fantasma desvaneceu-se, como noutros tempos as aparições fugiam pela manhãzinha, ao cantar do galo. A imaginação compraz-se, a princípio, em ver a passagem imperceptível da matéria bruta à matéria organizada, das plantas aos zoófitos, dos zoófitos aos animais, destes ao homem, do homem aos duendes, desses duendes que são revestidos de um pequeno corpo gasoso às substâncias imateriais e, finalmente, mil ordens diferentes destas substâncias que, aumentando de beleza em perfeições, se elevam até ao próprio Deus. Esta hierarquia agrada muito à gentinha simples, que julga ver nela o papa e os seus cardeais, seguidos dos arcebispos e bispos; após o que se seguem os curas, os vigários, os padres, os diáconos, os subdiáconos; depois os monges e, a fechar a marcha, os frades capuchinhos. Mas há uma distância um tanto maior entre Deus e as suas criaturas, inda as mais perfeitas, do que entre o Santo Padre e o deão do Sacro Colégio: o deão pode vir a ser papa, mas até o mais perfeito dos gênios criados pelos Ser supremo não pode tomar-se Deus; há o infinito entre Deus e ele. Esta cadeia, esta pretensa escala, tampouco existe entre os vegetais ou animais; a prova é que há espécies de plantas e de animais hoje completamente extintas. Já não há múrex. Os judeus estavam proibidos de comer grifo e ixion; tais espécies desapareceram deste mundo, diga o que disser Bochart: onde está então a cadeia? Embora se tivessem perdido totalmente algumas espécies, é evidente que as podemos destruir. Os leões, os rinocerontes começam a tomar-se muito raros. É muito provável que tenha havido raças de homens que já desapareceram. Mas já quero que tenham subsistido todas, tanto brancos como negros, e os cafres, a quem a natureza dotou com um avental formado pela própria pele, o qual lhes pende do ventre até ao meio das coxas; os samoiedas, cujas mulheres têm um mamilo de um belo ébano, etc. Não há visivelmente um vácuo entre o macaco e o homem? Não nos é fácil imaginar um animal com dois pés e sem plumas, que seria inteligente sem ter o dom da palavra nem o nosso rosto, o qual poderíamos aprisionar e domesticar, que responderia aos nossos sinais e nos serviria? E, entre esta nova espécie e a do homem, não seria possível imaginar ainda outras? Alojais no céu, ó divino Platão, uma quantidade de substâncias celestes todas superiores ao homem; nalgumas dessas substâncias acreditamos, sim, porque a fé no-la ensina. Mas tu que razão tinhas para crer nelas? Tudo nos leva a supor que não tivesses falado com o gênio de Sócrates, e o pateta-alegre do Heres, que ressuscitou de propósito para te ensinar os segredos do outro mundo, nada te ensinou acerca dessas substâncias. A pretensa cadeia não se interrompe menos no universo sensível. Que gradação existe entre os planetas, dizei lá. A Lua é quarenta vezes menor que o nosso globo. Viajante da Lua através do vácuo, topareis com Vênus, que é quase do tamanho da Terra. Daí ireis a Mercúrio; gira numa órbita elíptica muito diferente da circunferência que Vênus percorre: Mercúrio é vinte e sete vezes menor do que nós; o Sol, um milhão de vezes maior; Marte, cinco vezes menor; Marte perfaz uma translação em dois anos, o seu vizinho Júpiter em doze, Saturno em trinta; e este, que é o mais afastado de todos, não é tão grande como Júpiter. Onde está a pretensa gradação? E depois como queres que nos grandes espaços vazios haja uma cadeia que liga tudo? Se alguma existe, é decerto a que Newton descobriu; é ela que faz gravitar todos os globos do mundo planetário nesse vácuo infinito. Ó admirável Platão! Apenas contaste fábulas, mas veio da ilha das Cassitéridas, onde no teu tempo os homens andavam nus, um filósofo que ensinou na terra verdades tão importantes como as tuas fantasias eram pueris. Caráter Deriva da palavra grega impressão, gravura. É aquilo que a natureza gravou em nós. Podemos apagá-lo? Grave pergunta é essa. Se eu tiver um nariz torto e dois olhos de gato, posso escondê-los com uma máscara. Terei mais poder sobre o caráter que me atribuiu a natureza? Um homem naturalmente violento, de feitio arrebatado, apresenta-se a Francisco I, rei da França para reclamar contra uma injustiça que sofrerá; a expressão do príncipe, o porte respeitoso dos cortesãos, o ambiente especial do lugar onde se encontra, provocam forte impressão no ânimo desse homem; baixa maquinalmente os olhos, a rude voz suaviza-se e é já com evidente humildade que expõe a sua queixa; ao vê-lo assim, julgar-se-ia que nascera tão calmo e delicado como o estão (naquele momento pelo menos) os cortesãos entre os quais se sente tão desconcertado e pávido; mas, se Francisco I fosse bom fisionomista, facilmente teria notado naqueles olhos baixos, mas que um clarão sombrio ilumina, nos músculos contraídos da face, naqueles lábios cerrados com força, que esse homem não era tão submisso e cordato como ali se via forçado a aparentar. O mesmo homem segue o rei a Pávia, é feito prisioneiro com ele, acompanha-o no cativeiro em Madri; a majestade de Francisco I já não lhe provoca igual impressão; familiariza-se com o objeto do seu respeito. Um belo dia, quando tirava as botas ao rei, puxou-as desajeitadamente e o rei, de humor irritado, amargurado pelo seu infortúnio, zanga-se com ele: o nosso homem manda o rei passear, e atira as botas janela afora. Sisto V nascera petulante, obstinado, soberbo, impetuoso, vingativo, arrogante: este seu caráter parece atenuado ou modificado para melhor durante as provações do noviciado. Logo, porém, que começa a desfrutar de algum valimento na sua Ordem, enfurece-se com um guardião e desanca-o a murro; mais tarde, inquisitor em Veneza, exerce o cargo com insolência; feito cardeal, ei-lo possuído della rabia papale: este furor domina o seu temperamento natural; esconde, então, e disfarça a sua personalidade e o seu caráter; finge-se humilde, finge-se moribundo; elegem-no papa: esse momento restitui à mola, que a política vergara, toda a sua elasticidade por tanto tempo contida; transforma-se no mais altivo e no mais despótico dos soberanos. Naturam expellas furca, tamen usque recurret. A religião, a moral põem um freio à força do temperamento natural, mas não podem destruí-lo. O bêbado, metido num convento e reduzido a beber meio sesteiro de sidra a cada refeição, não se embriagará, mas continua a gostar de vinho. A idade debilita o caráter; é uma árvore que já só produz frutos degenerados, sempre da mesma espécie; cobre-se de nós e musgo, fica carcomida, mas é sempre carvalho ou pereira. Se pudéssemos modificar o caráter, arranjando outro, dominaríamos a natureza. Mas podemos dar algo a nós próprios? Não recebemos já tudo pronto, tudo feito? Experimentai espertar o indolente com uma atividade contínua, resfriar, pela apatia, a alma turbulenta do impulso, inspirar o gosto pela música e pela poesia ao que carece de sensibilidade e ouvido: não o haveis de conseguir nunca, como não conseguireis dar vista a um cego de nascença. Podemos aperfeiçoar, burilar, esconder as virtudes e defeitos com que a natureza nos dotou: nada mais. Diz-se a um criador: "Tendes peixes em demasia neste viveiro e, por via disso, não vão crescer; há gado a mais nos vossos pastos, a erva escasseia para tantos animais, emagrecerão". Acontece que, depois deste conselho, as solhas comem metade das carpas do nosso homem e os lobos metade dos carneiros dos seus rebanhos; o resto engorda. Terá ficado contente com a sua economia? Este campônio, és tu; tu, que julgas ter triunfado de ti, lá porque uma das tuas paixões devorou as outras. Não nos parecemos quase todos com aquele velho general caturra de noventa anos que, encontrando-se com uns moços oficiais que fazem grande algazarra e galhofa com umas gentis donzelas, lhes ralha, furibundo: "É esse, então, senhores, o exemplo que vos dou?" Certo, Certeza “- Quantos anos tem o vosso amigo Christophe? - Vinte e oito; vi a certidão do casamento dele, e o registro do batismo; conheci-o de pequeno; tem vinte e oito anos, tenho a certeza disso, estou certíssimo." Mal acabei de ouvir a resposta daquele homem, tão seguro do que dizia, e de vinte outros mais, que me confirmaram coisa igual, vim a saber que, por razões secretas e um truque qualquer, o registro de batismo de Christophe foi datado com antecipação. Todas as pessoas com quem falara, nada sabiam; contudo, continuam a ter a certeza duma coisa que não é como elas julgam. Se antes do tempo de Copérnico tivésseis perguntado à terra inteira: "O Sol nasceu? Pôs-se hoje?", todos os homens vos teriam respondido: "Temos a certeza absoluta disso". Tinham a certeza e laboravam num erro. Os sortilégios, as adivinhações, as obsessões foram durante tempos sem conta a coisa mais certa deste mundo aos olhos de todos os povos. Que multidão inumerável de pessoas não viram tanta coisa bela, e estavam certíssimas de tê-las visto! Hoje em dia, já esta certeza é menos firme. Veio procurar-me um rapazola, que começou a estudar geometria; ainda nem passou da definição dos triângulos. "Não tendes a certeza", digo-lhe, "de que a soma dos três ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos?" Responde-me que não tem a certeza disso e mais: que nem faz ideia muito clara desse teorema: faço-lhe a respectiva demonstração; só então adquire a certeza, e ficará com ela o resto da vida. Eis uma certeza muito diferente de outras: algumas destas não eram mais que probabilidades e examinadas tais probabilidades posteriormente verificou-se que eram errôneas; mas a certeza matemática é imutável e eterna. Existo, penso, sinto a dor; tudo isso será tão certo como uma verdade geométrica? Sim. Por quê? É que tais verdades provam-se pelo mesmo princípio de que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não posso, ao mesmo tempo, existir e não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode, ao mesmo tempo, ter cento e oitenta graus, que é a soma de dois ângulos retos, e não os ter. A certeza física da minha existência, do meu sentir, e a certeza matemática têm, por isso, o mesmo valor, embora sejam dum gênero diferente. Já não acontece, porém, a mesma coisa na certeza baseada em aparências, ou nos relatórios unânimes que nos fazem os homens. "Homessa!", direis, "então não tendes a certeza de que Pequim existe? Não tendes já visto sedas de Pequim? Pessoas de diferentes países, de diferentes opiniões, e que escreveram com violência umas contra as outras, proclamando todos a verdade de Pequim, não vos asseguraram a existência dessa cidade?" Responderei que é coisa extremamente provável que haja agora uma cidade de Pequim; mas não desejaria apostar a vida em como tal cidade existe; e apostarei, quando quiserem, a minha vida em como os três ângulos de um triângulo somados são iguais a dois ângulos retos. Publicou-se no Dicionário Enciclopédico uma coisa muito engraçada; afirma-se ali que um homem devia ter a certeza, certeza total, que o marechal de Saxe ressuscitara, se toda a gente em Paris lho dissesse, como tem a certeza de que o marechal de Saxe vencera a batalha de Fontenoy, quando toda a gente em Paris lho afirma. Ora, reparem, por favor, como este raciocínio é admirável: "Acredito em toda a gente de Paris quando me diz uma coisa que é moralmente possível; portanto, devo acreditar em toda a gente de Paris quando me diz uma coisa moral e fisicamente impossível". Aparentemente, o autor daquele artigo queria era rir, e o outro autor que se maravilha no final do artigo, e escreve contra si próprio, queria era rir-se também. China Vamos à China buscar terra, como se não a tivéssemos por cá; estofos, como se tivéssemos falta de sedas; uma ervazinha para pôr de infusão na água a ferver, como se nos nossos climas não houvesse também muitos simples. Em paga de tudo isso queremos à viva força converter os chineses: eis um zelo muito louvável, o que não devemos é contestar a antiguidade deles nem dizer que são idólatras. Seria, em verdade, justo que um frade capuchinho, recebido no castelo dos Montemorency, quisesse convencê-los de que são nobres de fresca data, tal como o são os secretários do rei, e ainda acusa-los de idólatras, só porque encontrara no castelo duas ou três estátuas de condestáveis, para com as quais eles teriam revelado um respeito profundo? O célebre Wolf, professor de matemática na Universidade de Halle, pronunciou um dia um magnífico discurso em louvor da filosofia chinesa; elogiou essa raça tão antiga, que difere de nós pela barba, pelos olhos, nariz, orelhas e pela capacidade de raciocínio; louvou os chineses por adorarem um Deus supremo e por amarem a virtude; prestava justiça aos imperadores da China, aos kalao, aos tribunais, aos letrados. A justiça que se presta aos bonzos é dum gênero diferente. Convém saber que Ó dito Wolf atraía a Halle uma multidão de estudantes de todas as nações. Ora, havia na mesma Universidade um professor de teologia, chamado Lange, que não tinha assistência nenhuma às suas aulas; no desespero de gelar de frio, sozinho, de que se havia ele de lembrar? Pois deitar a perder o professor de matemática, como bem se calculará; e, para não faltar à regra dos seus pares, logo ali o acusou de não crer em Deus. Alguns escritores europeus, que nunca tinham posto os pés na China, nem lá perto, afirmavam que o governo de Pequim era ateu. Wolf louvara os filósofos de Pequim, portanto Wolf era ateu; a inveja e o ódio não são capazes de inventar silogismos melhores do que estes. Ora, a argumentação de Lange, apoiada numa cabala bem organizada, e num protetor, foi julgada concludente pelo rei do país, o qual enviou ao matemático um dilema formal; dava-lhe a escolher entre sair de Halle no prazo de vinte e quatro horas ou ser enforcado. E como Wolf raciocinou de maneira justa deu-se pressa em fazer as malas; a sua retirada privou o rei de duzentos ou trezentos mil escudos por ano, que o dito filósofo fazia entrar no país pela afluência dos seus discípulos. Este exemplo deve fazer sentir aos soberanos que nem sempre devem dar ouvidos à calúnia e sacrificarem um grande homem por causa da raiva ciumenta de um pateta qualquer. Mas falemos da China. Para que nos servirá, aqui no extremo do Ocidente, discutir com paixão e torrentes de injúrias, só para ficarmos com a certeza se teria ou não havido catorze príncipes antes do imperador da China, Fo-hi, e se o dito Fo-hi vivera no ano 3000 ou 2900 antes da nossa era? Então eu acharia bem que dois irlandeses se lembrassem de discutir em Dublin para saberem quem foi, no século XII, o proprietário das terras que hoje ocupo? Pois não é mais do que evidente que deviam dirigir-se a mim, que tenho em meu poder os arquivos e documentos respectivos? Sucede o mesmo ou coisa semelhante, segundo me parece, com os imperadores da China: devem dirigir-se aos tribunais do país. Mas podeis discutir tanto quanto vos aprouver a respeito dos catorze príncipes que reinaram antes de Fo-hi, porque a vossa querela não conseguirá provar senão isto: que a China era já então muito povoada e era um país onde a lei dominava. Agora, pergunto-vos se uma nação unida, que possui leis e príncipes, não nos leva a acreditar na sua prodigiosa antiguidade. Pensai quanto tempo é necessário para que um singular conjunto de circunstâncias permita encontrar o ferro nas minas, depois para que o apliquem na lavra dos campos, até que se inventem a charrua e todas as demais artes. Aqueles que fazem tudo no ar imaginaram num cálculo muito engraçado. Por exemplo, o jesuíta Petau, por um cálculo extravagante, dava à Terra, duzentos e oitenta e cinco anos depois do dilúvio, uma população cem vezes superior àquela que não ousamos hoje supor-lhe. Os Cumberland e os Whiston fizeram cálculos tão cômicos como esse; a estas boas almas bastava-lhes consultar os censos das nossas colônias na América, para ficarem por certo muito espantadas: teriam sabido que o gênero humano se multiplica pouco e que, em vez de aumentar, com frequência diminui. Deixemos, pois, nós que nascemos ontem, nós descendentes dos celtas, nós que ainda mal exploramos as florestas das nossas regiões selváticas, deixemos os chineses e os indianos gozarem em paz o seu belo clima e a sua antiguidade histórica. Deixemos, principalmente, de chamar idólatras ao imperador da China e ao subabo do Deão. Nem nos é necessário sermos fanáticos do mérito dos chineses: a constituição do império deles é, na verdade, a melhor que há no mundo, a única totalmente baseada no poder paternal (o que não impede que os mandarins apliquem bastonadas nos filhos); a única em que um governador de província é punido quando, ao abandonar o cargo, não tiver as aclamações do povo; a única que institui prêmios para a virtude, ao passo que, no resto do mundo, as leis se limitam a castigar o crime; a única que forçou os seus vencedores a adotar as suas leis enquanto nós estarmos ainda sujeitos aos costumes dos borguinhões, francos e godos, que nos ocuparam e dominaram. Mas, há que confessá-lo, a arraia-miúda chinesa, influenciada pelos bonzos, é tão velhaca e ladra como a nossa; que ali se vende tudo muito caro aos estrangeiros, tal como cá; que, no campo científico, os chineses encontram-se ainda no estádio em que nos encontramos vai para duzentos anos; que têm, tal como nós, mil ridículos preconceitos: acreditam nos talismãs, na astrologia judiciária, como durante tanto tempo também nós acreditamos. Confessemos, ainda, que ficaram espantados com o nosso termômetro, a nossa maneira de pôr os licores no gelo com salitre e que muito se maravilharam com todas as experiências de Torricelli e de Otto de Guericke, tal qual ficamos nós quando, pela primeira vez, vimos essas divertidas demonstrações da física; acrescente-se que os médicos chineses, nesse ponto iguaizinhos aos nossos, não são capazes de curar as doenças mortais e que, cá e lá, é afinal a natureza que sara os males sem importância; mas nada disso impede que os chineses, há quatro mil anos, quando nós nem sequer ler sabíamos ainda, não soubessem já todas aquelas coisas essencialmente úteis de que tanto nos vangloriamos agora. A religião dos letrados, repito-o, é admirável. Superstições, nenhumas; lendas absurdas, nenhumas; nenhuns daqueles dogmas que insultam a razão e a natureza e aos quais os bonzos dão mil sentidos diferentes porque, no fundo, não significam nada. O culto mais simples foi o que lhes pareceu ainda o melhor, a cabo de quarenta séculos. Realizam deste modo a imagem que nós temos de Seth, Enoch e Noé; contentam-se em adorar um só Deus, como o fazem todos os sábios da terra enquanto na Europa as opiniões e as almas se dividem entre Santo Tomás e São Boaventura, entre Calvino e Lutero, entre Jansênio e Molina. Circuncisão Quando Heródoto narra aquilo que lhe contaram os bárbaros entre os quais viajou, só diz tolices; e é o que acontece, na grande maioria, com todos os viajantes; por isso ele não exige que o acreditemos quando fala da aventura de Gygés e de Candaule; de Arionte ser transportado por um delfim; e do oráculo consultado para saber o que fazia Creso, o qual oráculo respondia que, nesse momento, Creso mandava cozer uma tartaruga numa panela tapada; e do cavalo de Dario, que tendo sido de todos o primeiro a relinchar, fez com que Dario fosse proclamado rei, e mais um cento de patranhas deste gênero, mais próprias para distraírem crianças de colo e mais tarde serem compiladas pelos oradores retóricos; mas quando fala daquilo que ele próprio viu, dos costumes dos povos que analisou, dos monumentos que visitou e coisas antigas que consultou, então, sim, fala para homens o ouvirem e acreditarem. "Parece", diz, no livro de Eutérpio, "que os habitantes da Cólquida são originários do Egito; por mim o creio, mais do que por tê-lo ouvido dizer, porque reparei que na Cólquida se lembravam mais dos antigos costumes egípcios do que no Egito se recordavam os antigos costumes da Cólquida”. "Estes habitantes das margens do Ponto Euxino pretendiam ser uma remota colônia ali estabelecida por Sesóstris; em meu entender, assim o conjeturava, não só porque são morenos e têm os cabelos crespos, mas ainda porque os povos da Cólquida, do Egito e da Etiópia são os únicos da Terra que, desde sempre, se fizeram circuncidar: porque os fenícios e os da Palestina confessam que adotaram esse uso dos egípcios. Os sírios, que hoje habitam as margens do Thermodon e do Partênia, e os macrões, seus vizinhos, confessam que não há ainda muito tempo que se conformaram com esse hábito egípcio; e é principalmente por esse motivo que são conhecidos como tendo origem egípcia. "Como a prática da circuncisão é muito remota, tanto na Etiópia como no Egito, não saberia dizer qual dos povos a tomou do outro; é todavia verossímil que os etíopes a imitaram dos egípcios; como, oportunamente, os fenícios aboliram o costume de circuncidar as crianças recém-nascidas, logo que tiveram maior convivência com os gregos." Por este passo de Heródoto é evidente que diversos povos aprenderam o uso da circuncisão com o Egito; mas nenhuma raça pretendeu ter imitado a circuncisão dos judeus. A quem é que se há de, pois, atribuir a origem deste costume: à nação de quem outras cinco ou seis confessam tê-lo ido buscar, ou àquela nação que, muito menos poderosa, de comércio menor, menos guerreira, escondida num recanto da Arábia Petréia, nunca transmitiu o mais insignificante dos seus usos e costumes a outro povo qualquer? Os judeus dizem que foram outrora recebidos por caridade no Egito; não é tão possível, e verossímil, que o povo fraco imitasse um hábito do povo poderoso e que os judeus tenham aprendido alguns costumes com os seus senhores? Clemente de Alexandria conta que Pitágoras, quando viajava entre os egípcios, viu-se forçado a fazer-se circuncidar, a fim de poder ser admitido nos seus mistérios e atos de culto; conclui-se, portanto, que era absolutamente necessário estar circuncidado para pertencer ao número dos sacerdotes, no Egito. Tais sacerdotes já existiam quando José chegou ao Egito; aqui a forma de governo era muito antiga e os ritos observados com escrupulosa exatidão. Os judeus confessam que permaneceram duzentos e cinco anos no Egito; dizem que durante todo esse tempo não praticaram a circuncisão; é, pois, evidente que durante esses duzentos e cinco anos os egípcios não adotaram a circuncisão dos judeus. Tê-lo-iam feito após os judeus roubarem todos os vasos sagrados que lhes tinham sido emprestados, e fugirem para o deserto com a presa, conforme o seu próprio testemunho? Um senhor adotaria a principal característica da religião do seu escravo, para mais ladrão e fugitivo? Nada disto se coaduna com a natureza humana. Lê-se no livro de Josué que os judeus foram circuncidados no deserto: "Libertai-vos do que fazia o vosso opróbrio entre os egípcios". Ora, qual podia ser esse opróbrio, para um povo que se encontrava entre os povos da Fenícia, os árabes e os egípcios, senão aquilo mesmo que os tornava desprezíveis aos olhos das três nações? Como livrá-los desse opróbrio? Cortando-lhes um pedacinho do prepúcio. Não será este o sentido natural do citado passo de Josué? O Gênesis refere que Abraão fora anteriormente circuncidado; mas Abraão viajou pelo Egito, que havia muito tempo era um reino florescente, governado por um rei poderoso. Nada nos impede de conjeturar que, nesse reino tão antigo, a circuncisão não estivesse em uso desde tempos imemoriais, muito antes de formada a nação judaica. Acresce que a circuncisão de Abraão não teve consequências de maior; a sua descendência só foi circuncidada na época de Josué. Ora, antes de Josué, os israelitas são os primeiros a declarar que adotaram muitos dos costumes dos egípcios; imitaram estes em diversos sacrifícios, em várias cerimônias rituais, como os jejuns que guardavam nas vésperas das festas de Íris, nas abluções, no costume de rapar a cabeça dos sacerdotes; o incenso, o candelabro, o sacrifício da vaca ruça, a purificação com o hissope, a abstinência da carne de porco, o pavor pelos utensílios de cozinha dos estrangeiros, tudo isso atesta que o pequeno povo hebreu, apesar da sua aversão pela grande nação egípcia, conservara uma infinidade de usos dos antigos senhores. O bode Azazel que mandaram para o deserto, carregado com os pecados do povo, era uma visível imitação duma prática egípcia; os rabinos estão de acordo que a palavra Azazel nem judaica era. Nada impede, portanto, que os hebreus tenham imitado a circuncisão dos egípcios, tal como o fizeram os seus vizinhos árabes. Não é coisa extraordinária que Deus, que santificou o batismo, prática tão remota entre os povos asiáticos, tenha também santificado a circuncisão, não menos remota entre os africanos. É coisa notória que Deus é senhor de atribuir as suas graças aos signos que se digna eleger. Aliás, desde que no tempo de Josué o povo judeu foi circuncidado, conservou tal uso até nossos dias; os árabes também se lhe mantiveram fiéis; mas os egípcios, que, nos tempos primitivos, circuncidavam os rapazes e as raparigas, com o decorrer dos anos deixaram de proceder a essa operação nas raparigas e, finalmente, acabaram por limitá-la aos sacerdotes, astrólogos e profetas. É o que nos afirmam Clemente de Alexandria e Orígenes. Com efeito, não se ignora que os Ptolomeus não sofreram a circuncisão. Os autores latinos, que tratam os judeus com tão profundo desprezo que até lhes chamam curtus Apella, por zombaria, credat Judaeus Apella, curti Judaei, não dão tais epítetos aos egípcios. Todo o povo do Egito é presentemente circuncidado, mas o motivo é outro: foi porque o maometismo adotou a antiga circuncisão da Arábia. Foi esta circuncisão árabe que transmitiu para os etíopes, onde agora ainda os rapazes e raparigas são circuncidados. Havemos de confessar que esta cerimônia da circuncisão parece, à primeira vista, uma coisa estapafúrdia; mas deve-se notar que, desde sempre, os sacerdotes orientais se consagravam às suas divindades por características particulares. Nos sacerdotes de Baco era gravada a um buril uma folha de hera. Luciano diz-nos que os devotos da deusa Íris faziam-se tatuar no pulso e no pescoço enfeitados a caracteres. Os sacerdotes de Cibele eram castrados. É muito possível que os egípcios, que veneravam o instrumento da procriação e conduziam a sua imagem, com grande pompa, nas suas procissões, imaginaram oferecer a Íris e a Osíris, por intermédio de quem tudo se engendrava na terra, uma pequenina parte daquele membro estimável, pelo qual os deuses tinham querido que o gênero humano se perpetuasse. Os costumes orientais primitivos são tão prodigiosamente diferentes dos nossos, que nada deve parecer extraordinário a quem tiver um pouco de leitura. Um parisiense fica muito espantado quando ouve dizer que os hotentotes cortam um testículo aos filhos machos. Se calhar, os hotentotes ficariam muito espantados quando soubessem que os parisienses usam os dois. Concílios Todos os concílios são infalíveis, sem dúvida; e a razão é porque são constituídos por homens. É impossível que reinem nessas assembleias as paixões, as intrigas, o espírito de luta, o ódio, o crime, os preconceitos, a ignorância. Mas então, perguntar-se-á, qual o motivo por que tantos concílios se fizeram por oposição a outros? Foi para experimentar a nossa fé; todos estavam na razão, cada qual na respectiva época. Entre os católicos romanos, presentemente, só se faz fé nos concílios aprovados no Vaticano; e entre os católicos gregos só se acredita nos aprovados em Constantinopla. Os protestantes troçam duns e doutros; deste modo, toda a gente fica contente. Aqui apenas falaremos dos grandes concílios; dos pequenos não vale a pena. O primeiro concílio foi o de Nicéia. Celebrou-se no ano de 325 da era vulgar, após Constantino ter escrito e enviado por Ózio, ao clero um tanto turbulento de Alexandria, esta bela carta: "Disputais por causa de um assunto muito insignificante. Tais sutilezas são indignas de pessoas sensatas". O assunto era este: tratava-se de saber se Jesus era criado ou incriado. Isso em nada feria a moral, que é o essencial. Que Jesus tenha sido no tempo, ou antes do tempo, lá por isso não foi menos um homem de bem. Depois de muitas altercações, ficou finalmente decidido que o Filho era tão antigo como o Pai, e consubstancial com o Pai. Esta decisão não se entende lá muito bem; mas não deixa de ser sublime e mais sublime ainda por não se perceber. Dezessete bispos protestaram contra a sentença e uma antiga crônica de Alexandria, que se conserva em Oxford, diz que dois mil padres protestaram também; mas os prelados não fazem geralmente grande caso dos simples padres, que são quase todos pelintras. Seja como for neste primeiro concílio nem por sombras se debateu o problema da Trindade. A fórmula ali consagrada reza assim: "Cremos em Jesus consubstancial ao Pai, Deus de Deus, luz de luz, engendrado e não feito; cremos também no Espírito Santo". O Espírito Santo, força é confessá-lo, foi ali tratado de modo muito inconveniente, grosseiramente quase. Está escrito no suplemento do concílio de Nicéia que os padres, vendo-se muito embaraçados para saber quais eram os livros autênticos e os apócrifos do Antigo e do Novo Testamento, colocaram-nos baralhados numa grande barafunda em cima de um altar; e os livros que deviam ser rejeitados foram os que caíram no chão. É forte pena que uma tão bela receita esteja atualmente em desuso. Depois do primeiro concílio de Nicéia, constituído por trezentos e dezessete bispos infalíveis, efetuou-se outro em Rimini; e o número dos bispos infalíveis dessa vez ascendeu a quatrocentos, sem já contar um grande destacamento em Selêucia, de cerca de duzentos mais. Esta bispalhada toda, após quatro meses de zaragatas e comezainas, arrebatou unanimemente a Jesus a sua consubstancialidade. Foi-lhe porém restituída pouco depois, exceto entre os socinianos; assim tudo acabou em bem. Um dos grandes concílios foi o de Éfeso, em 431; Nestório, bispo de Constantinopla, terrível perseguidor de heréticos, foi então ali mesmo condenado como herético, por ter sustentado que em verdade Jesus era bem Deus, mas que sua mãe em absoluto não era a mãe de Deus. Foi São Cirilo que fez condenar Nestório; mas os partidários de Nestório igualmente fizeram destituir São Cirilo no referido concílio: o que deixou muito atrapalhado o Espírito Santo. Aqui chegados, leitor, repara muito atentamente em que o Evangelho nunca diz uma só palavra da consubstancialidade do Verbo, nem da honra que teria tido Maria em ser mãe de Deus, e igual coisa sucede com outra data de bagatelas teológicas, que fizeram reunir concílios infalíveis. Eutichés era um monge que tinha protestado muito contra Nestório, cuja heresia era tão pequena ou tão grande, de um quilate tal, que não queria nada menos que supor duas pessoas em Jesus: o que é tremendo. O frade, para melhor contradizer o antagonista, garante que Jesus só tinha uma natureza. Certo Flaviano, bispo de Constantinopla, assegura-lhe que era absolutamente necessário que houvesse duas naturezas em Jesus. Reúne-se um concílio numeroso em Éfeso, no ano de 449; este foi dirimido com muita pancadaria à mistura de valentes paulitadas duma banda e doutra, tal como aconteceu no pequeno concílio de Cirte, em 355, e em certa conferência realizada em Cartago. A natureza de Flaviano ficou moída e remoída de tanta traulitada que apanhou e a Jesus foram fixadas duas naturezas. No concílio de Calcedônia, em 451, Jesus tomou a ficar reduzido a uma só natureza. Dou um salto sobre concílios que apenas se ocuparam de minudências, e faço alto no sexto concílio geral de Constantinopla, celebrado para se saber ao certo se Jesus, tendo só uma natureza, não teria duas vontades. Percebe-se quanto isso seria importante para dar graças a Deus. Este concílio foi convocado por Constantino, o Barbudo, como todos os outros tinham sido, também, pelos precedentes imperadores; os legados do bispo de Roma ficaram à esquerda; os patriarcas de Constantinopla e de Antioquia ficaram à direita. Não sei se os caudatários de Roma achavam que a esquerda é o lugar de honra. Em qualquer caso, dessa vez Jesus obteve as duas vontades. A lei mosaica proibia as imagens. Os pintores e os escultores nunca tinham feito fortuna entre os judeus. Sabe-se que Jesus nunca teve quadros, exceto, talvez, o de Maria, pintado por Lucas. Mas, enfim, em lado nenhum Jesus Cristo recomenda que se adorem as imagens. Os cristãos, todavia, adoraram-nas a partir do final do século IV, quando se familiarizaram com as belas-artes. O abuso foi tal que, no século VIII, Constantino Coprônimo reuniu em Constantinopla um concílio de trezentos e vinte bispos, que anatematizou o culto das imagens, considerando-o pura idolatria. A imperatriz Irene, a mesma que tempos depois mandou arrancar os olhos ao filho, convocou o segundo concílio de Nicéia, em 787: aí foi restabelecida a adoração das imagens. Pretende-se hoje em dia justificar o dito concílio, dizendo que tal adoração era um culto de dulia e não de latria. Mas quer de latria, quer de dulia, Carlos Magno, em 794, mandou celebrar, em Francfort, outro concílio, que acusou de idolatria o segundo concílio de Nicéia. O papa Adriano I enviou ali dois legados, mas não foi ele que o convocou. O primeiro grande concílio convocado por um papa foi o primeiro concílio de Latrão, em 1139; ali estiveram cerca de mil bispos; mas muito pouco obraram, a não ser anatematizar aqueles que diziam que a Igreja estava demasiado rica. Noutro concílio de Latrão, em 1179, promovido pelo papa Alexandre III, pela primeira vez os cardeais tiveram predomínio sobre os bispos; apenas se versaram ali problemas de disciplina eclesiástica. Outro grande concílio em Latrão, no ano de 1215. O papa Inocêncio III despojou o conde de Tolosa de todos os bens, em virtude da excomunhão com que o fulminou. Foi este o primeiro concílio em que se falou de transubstanciação. Em 1245, concílio geral de Lião, ao tempo cidade imperial, no qual o papa Inocêncio IV excomungou o imperador Frederico lI, depondo-o por conseguinte, e proibiu-lhe o fogo e a água: foi também neste concílio que deram aos cardeais um chapéu vermelho, para ajudá-los a lembrar-se que deviam tomar banho no sangue dos partidários do imperador deposto. Este concílio deu azo à destruição da Casa de Suábia e provocou trinta anos de anarquia na Itália e na Alemanha. Concílio geral em Viena, no Delfinado, em 1311, onde foi abolida a ordem dos Templários, cujos principais membros tinham sido condenados aos suplícios mais horríveis, com base em acusações que nunca foram provadas. Em 1414 houve o grande concílio de Constança, onde se contentaram em destituir o papa João XXIII, reconhecido réu culpado de mil crimes, e onde queimaram João Huss e Jerônimo de Praga, por serem heréticos contumazes, e atendendo a que a contumácia é um delito muito mais grave que o assassinato, o rapto, a simonia e a sodomia. Em 1431, o grande concílio de Basiléia, não reconhecido nem acatado por Roma, porque ali depuseram o papa Eugênio IV, que não quis nem se deixou depor. Os romanos consideram como concílio geral o quinto concílio de Latrão, em 1512, convocado contra Luís XII, rei de França, pelo papa Júlio II; mas este belicoso papa deixou-se morrer, e o concílio desfez-se em vento. Finalmente, temos o grande concílio de Trento, que não foi acatado em França no que respeita à disciplina; mas quanto ao dogma era incontestável, pois o Espírito Santo ia todas as semanas de Roma a Trento, na mala do correio, a crermos no que nos diz fra Paolo Sarpi; mas fra Paolo Sarpi tresandava um tanto a heresia. (Pelo Sr. Abausit Jº...) Confissão Mantém-se problemático saber se a confissão, a menos que a consideremos manobra política, tem feito mais bem do que mal. Havia a confissão nos mistérios de Ísis, de Orfeu e de Ceres, perante o hierofante e os iniciados; dado que tais mistérios eram expiações, forçoso era que se confessassem os crimes que deviam expiar. Os cristãos adotaram a confissão nos primeiros séculos da Igreja, como imitaram quase todos os ritos da Antiguidade: os templos, os altares, o incenso, as velas, as procissões, a água lustral, as vestes sacerdotais, diversas fórmulas dos mistérios: o Sursum corda, o Ite missa est, e tantos outros. O escândalo provocado em Constantinopla, no século IV, pela confissão pública duma mulher, fez abolir a confissão. A confissão secreta que um homem faz a outro homem somente no século VII foi admitida no nosso Ocidente. Os abades dos conventos começaram a exigir que os monges viessem duas vezes por ano confessar-lhes todas as faltas. Foram também esses abades que inventaram a fórmula: "Absolvo-te conforme posso e tu necessitas", Parece que teria sido muito mais respeitoso para com o Ser supremo, e mais justo, dizer: "Possa Ele perdoar as tuas faltas e as minhas!" O bem que a prática da confissão fez, foi, algumas vezes, ter conseguido que furtos insignificantes fossem restituídos aos donos. O mal é, por vezes, ter levado, nas convulsões políticas dos Estados, os penitentes a serem rebeldes e sanguinários, ficando com a consciência muito tranquila. Os padres guelfos, por exemplo, recusavam a absolvição aos gibelinos e os padres gibelinos recusavam-se a absolver os guelfos. Os assassinos dos Sforzas, dos Médicis, dos príncipes de Orange, dos reis de França, dispuseram-se a cometer parricídios pelo sacramento da confissão. Luís XI, La Brinvilliers confessavam-se após terem cometido algum grande crime, e confessavam-se com frequência, como aqueles glutões que tomam remédios para terem mais apetite. Se existisse uma razão para ficarmos espantados com alguma coisa, decerto o ficaríamos por causa de uma bula do papa Gregório XV, emanada de Sua Santidade no dia 30 de agosto de 1622, pela qual ordenou que, em determinados casos, o segredo da confissão seja revelado. A resposta do jesuíta Coton a Henrique IV perdurará mais do que a Ordem dos Jesuítas: "Revelaríeis a confissão de um homem que estivesse disposto a assassinar-me? - Não; mas por-me-ía de permeio entre ele e o vosso corpo". Consciência SEÇÃO PRIMEIRA Da Consciência do Bem e do Mal Locke demonstrou (se for permitido usar este termo em moral e metafísica) que não temos ideias inatas, nem princípios inatos. E foi obrigado a demonstrá-lo longamente, porque nessa época o erro contrário era universal. Daí segue-se evidentemente precisarmos muito que nos ponham na cabeça boas ideias e bons princípios, desde que possamos usar a faculdade do entendimento. Locke mostra o exemplo dos selvagens que matam e comem seu próximo sem nenhum remorso na consciência, e soldados cristãos bem educados, que, numa cidade tomada de assalto, pilham, esganam, violam, não somente sem remorso, mas com um prazer encantador, com honra e glória, com aplausos de todos os seus companheiros. Seguramente, nos massacres da noite de São Bartolomeu, e nos auto-de-fé, nos santos atos de fé da Inquisição, a consciência de nenhum assassino jamais se reprovou ter massacrado homens, mulheres, crianças; ter feito gritar, desmaiar, morrer nas torturas os infelizes que tinham como único crime celebrar a Páscoa de modo diferente do dos inquisidores. Resulta disso tudo que só temos a consciência que nos é inspirada pelo tempo, pelo exemplo, por nosso temperamento, por nossas reflexões. O homem nasceu sem princípio algum, mas com a faculdade de receber todos. Seu temperamento torná-lo-á mais inclinado à crueldade ou à doçura; seu entendimento fá-lo-á compreender um dia que o quadrado de doze é cento e quarenta e quatro, que não se deve fazer aos outros aquilo que não se quer que lhe seja feito, porém não compreenderá por si mesmo estas verdades na sua infância; não entenderá a primeira e não sentirá a segunda. Um pequeno selvagem tendo fome e a quem seu pai terá dado para comer um pedaço de outro selvagem, pedirá o mesmo no dia seguinte, sem imaginar que se deve tratar o próximo do mesmo modo que nós próprios quereríamos ser tratados. Faz maquinalmente, insensivelmente, exatamente o contrário do que ensina essa verdade eterna. A natureza preveniu contra esse horror dando ao homem a disposição para a piedade e o poder de compreender a verdade. Esses dois presentes de Deus são o fundamento da sociedade civil: por isso sempre houve poucos antropófagos e a vida tornou-se um pouco tolerável entre as nações civilizadas. Pais e mães dão a seus filhos uma educação que logo os torna sociáveis e conscientes. Uma religião e uma moral puras, convenientemente inspiradas, modelam de tal forma a natureza humana, que mais ou menos dos sete aos dezesseis ou dezessete anos não se pratica qualquer má ação sem que a consciência deixe de reprová-la. Em seguida, vêm as paixões violentas, combatendo a consciência e conseguindo, algumas vezes, sufocá-la. Durante o conflito, os homens, atormentados pela borrasca, consultam em algumas ocasiões outros homens, como em suas doenças consultam aqueles que têm a aparência sadia. Foi isto que produziu os casuístas, isto é, pessoas que decidem casos de consciência. Um dos maiores sábios casuístas foi Cícero, que no seu livro Oficias, isto é, os deveres do homem, examina os pontos mais delicados. Entretanto, muito antes dele, Zoroastro pareceu regulamentar a consciência com o mais belo preceito: Na dúvida quanto à bondade ou à maldade de uma ação, abstém-te. SEÇÃO SEGUNDA Se um Juiz Deve Julgar Segundo sua Consciência ou Segundo as Provas Tomás de Aquino, sois um grande santo, um grande teólogo, e não há dominicano algum que tenha por vós mais veneração do que eu. Entretanto, haveis decidido em vossa Suma Teológica que um juiz deve dar sua voz segundo as alegações e as pretensas provas contra um acusado cuja inocência lhe é perfeitamente conhecida. Pretendeis que as deposições das testemunhas, só podendo ser falsas, as provas resultantes do processo são impertinentes, e, no entanto, devem sobrepor-se ao testemunho de seus próprios olhos. Viu o crime ser cometido por outro, e, segundo vós, deve conscientemente condenar o acusado quando sua consciência lhe diz que é inocente. Seria preciso, então, segundo vós, que, se o próprio juiz tivesse cometido o crime de que tratamos, sua consciência o obrigaria a condenar o homem falsamente acusado desse crime. Em sã consciência, grande santo, creio que vos enganastes da maneira mais absurda e mais horrível. É pena que, possuindo tão bem o direito canônico, tenhais conhecido tão malo direito natural. O primeiro dever de um magistrado é ser justo antes de ser formalista. Se, em virtude das provas, que somente são probabilidades, condenasse um homem cuja inocência me fosse demonstrada, crer-me-ia um tolo e um assassino. Felizmente todos os tribunais do universo têm um pensamento diverso do vosso. Não sei se Farinatius e Grillandus são de vossa opinião. Seja lá como for, se alguma vez encontrardes Cícero, Ulpiano, Triboniano, Dumolin, o chanceler de Hospital, o chanceler de Aquesseau, pedi-lhes perdão pelo erro em que caístes. SEÇÃO TERCEIRA Da Consciência Enganadora O que talvez melhor se tenha dito sobre essa importante questão encontra-se no livro cômico Tristam Sandhy, escrito por um cura chamado Sterne, o segundo Rabelais da Inglaterra. Parece-se com os pequenos sátiros da antiguidade, que encerravam essências preciosas. Dois velhos capitães a meia-paga, auxiliados pelo Dr. Slop, fazem perguntas muito ridículas. Nelas os teólogos franceses não são poupados. Insistem particularmente sobre uma Memória, apresentada à Sorbona por um cirurgião que pede permissão para batizar as crianças no ventre das mães, por meio de uma cânula que se introduziria convenientemente no útero, sem ferir a mãe nem a criança. Enfim, fazem com que um cabo leia um antigo sermão sobre a consciência, composto pelo próprio cura Sterne. Numa pintura superior a muitas de Rembrandt e ao crayon de Callot, pinta um mundano homem-honesto, passando seus dias nos prazeres da mesa do jogo e do deboche não fazendo nada que a boa companhia pudesse reprovar-lhe e, por conseguinte, não se reprovando de nada. Sua consciência e sua honra o acompanham aos espetáculos, ao jogo, e sobretudo quando paga liberalmente à jovem que o entretém. Quando encarregado, pune severamente os pequenos furtos do povinho; vive alegremente e morre sem o menor remorso. O Dr. Slope interrompe o leitor para dizer que isso é impossível na Igreja anglicana, só podendo acontecer entre os papistas, Finalmente, o cura Sterne cita o exemplo de Davi, que tem, diz ele, ora uma consciência delicada e esclarecida, ora muito dura e tenebrosa. Quando poderia matar seu rei numa caverna, contenta-se em cortar uma aba da sua vestimenta: eis uma consciência delicada. Passa um ano inteiro sem ter o menor remorso de seu adultério com Betsabá e do assassinato de Uriel: eis a mesma consciência endurecida e privada de luz. Assim é, diz ele, a maioria dos homens. Admitimos ao cura que os grandes do mundo geralmente estão neste caso: a torrente de prazeres e de afazeres os arrebata, não têm tempo para ter consciência (o que é bom para o povo) e também não a possuem quando se trata de ganhar dinheiro. É, portanto, muito bom de vez em quando despertar a consciência das costureiras e dos reis com uma moral que possa impressioná-los, mas para isto é melhor falar como não se fala hoje. SEÇÃO QUARTA Liberdade de Consciência [Não adotamos todo este parágrafo, mas, como há nele algumas verdades, não cremos dever omiti-la e não nos encarregamos de justificar o que se puder aí encontrar de pouco comedido e muito duro.] O capelão do príncipe de... , católico romano, ameaçava um anabatista de expulsá-la dos Estados do príncipe. Dizia-lhe haver somente três seitas autorizadas no império, que para ele, anabatista, sendo de uma quarta, não era digno viver nas terras de monsenhor, e, enfim, a conversa se esquentando, o capelão ameaçou mandar enforcar o anabatista. "Tanto pior para sua alteza", responde o anabatista; "sou um grande manufatureiro, emprego duzentos operários, faço entrar duzentos mil escudos por ano nos seus Estados, minha família irá estabelecer-se em outro lugar e monsenhor perderá mais do que eu”. "E se monsenhor mandar enforcar teus duzentos operários e tua família?", replica o capelão. "E se der tua manufatura a bons católicos?" "Eu o desafio", diz o velhote. "Não se dá uma manufatura como se doa uma herdade, porque não se dá a engenhosidade. Seria loucura maior do que se mandasse matar todos os seus cavalos porque um deles te derrubou e porque és um mau escudeiro. O interesse de monsenhor não está em que eu coma pão sem levedura ou levedado. Mas está, isto sim, em que eu forneça o que comer a seus súditos, e que eu aumente seus lucros com meu trabalho. Sou um homem honesto e, se tivesse a infelicidade de não ter nascido tal, minha profissão forçar-me-ia a tornar-me, pois nos negócios não é como na corte e na tua igreja: não há sucesso sem probidade. Que importa se fui batizado na idade chamada da razão, enquanto o foste sem o saber? Que importa se adoro Deus à maneira de meus pais? Se seguisses tuas belas máximas, se tivesses a força nas mãos, irias de uma ponta à outra do universo, mandando ao teu bel-prazer enforcar o grego que não crê o Espírito Santo procedente do Pai e do Filho, todos os ingleses, todos os holandeses, dinamarqueses, suecos, irlandeses, prussianos, hanovrianos, saxões, holsteneuses, hesseuses, virtemburgueses, berneuenses, hamburgueses, cossacos, valacos, russos que não creem o papa infalível, todos os muçulmanos que creem num só Deus, e os indianos cuja religião é mais antiga que a judaica, e os letrados chineses, que há quatro mil anos servem um único Deus sem superstição e sem fanatismo? Não é o que farias se fosses o senhor?" "Seguramente", diz o monge, "pois estou devorado pelo zelo da casa do Senhor: Zelus domus suae comedit me." "A propósito, caro capelão", retorquiu o anabatista, "diga-me: és dominicano ou jesuíta, ou diabo?" "Sou jesuíta", diz o outro. "Ah! meu amigo, se não és diabo, por que dizes coisas tão diabólicas?" "É que o reverendo padre reitor ordenou-me dizê-las." "E quem ordenou essa abominação ao reverendo padre reitor?" "Foi o provincial." "De quem o provincial recebeu essa ordem?" "Do nosso geral, e para agradar a um senhor maior do que ele - o papa." "Deuses da terra, que com três dedos encontrastes o segredo de tomar-vos senhores duma grande parte do gênero humano, se no fundo de vossos corações admitis que vossas riquezas e vossa força não são essenciais à vossa salvação e à nossa, gozai-as com moderação. Não queremos tirar-vos a mitra ou a tiara, mas não nos esmagueis. Gozai e deixai-nos tranquilos. Desenredai vossos interesses com os reis e deixai-nos nossas manufaturas." Convulsões Por voltas do ano de 1724, dançou-se no cemitério de Saint-Médard; deram-se ali muitos milagres; um deles até mereceu a honra de vir citado numa cançoneta da duquesa do Maine: Un décrotteur à la royale, Du talon gauche estropié, Obtint pour grâce spéciale D'être boiteux de l'autre pied. Como é do conhecimento geral, as convulsões miraculosas continuaram até que foi colocado um guarda no cemitério. De par le roi, défense à Dieu De plus fréquenter en ce lieu. Os jesuítas, como também é do conhecimento geral, não podendo já obrar milagres tais depois que São Francisco Xavier esgotara as graças da Companhia, ressuscitando duma assentada nove mortos bem contados resolveram para compensar o crédito que os jansenistas tinham adquirido entretanto mandar gravar uma estampa, com uma imagem de Jesus Cristo vestido de jesuíta. Uma mariola dum gracejador do partido jansenista escreveu, como também é sabido, por debaixo da imagem esta versalhada: Admirez l'artifice extrême De ces moines ingénieux: Ils vous ont habillé comme eux, Mon Dieu, de peur qu’on ne vous aime. Os jansenistas, para melhor demonstrarem que Jesus Cristo nunca teria vestido o hábito dos jesuítas, encheram Paris de convulsionados e assim lograram atrair muita gente ao seu claustro. Carré de Montgeron, conselheiro no Parlamento, foi apresentar ao rei uma recolha in-4º de todos esses milagres, atestados por mil testemunhas. Como era lógico, agarraram nele e levaram-no logo para um castelo, onde tentaram restabelecer a saúde do seu cérebro por uma dieta rigorosa; mas a verdade acaba sempre por vencer todas as perseguições: a febre milagreira continuou, sem parança, durante mais de trinta anos. Faziam vir à casa a irmã Rosa, irmã iluminada, irmã prometida, e sujeitavam-se aos açoites, sem que, no dia seguinte, houvesse marcas das chibatadas; aplicavam-lhes bordoadas com toros no estômago, bem recheado de iguarias, sem que lhes fizessem nenhum mal; deitavam-nos diante duma grande fogueira, com o rosto besuntado de graxa, sem que se queimassem; finalmente, como todas as artes, incluindo as da bruxaria, têm tendência para se aperfeiçoar, acabaram por enterrar espadas nas carnes dos convulsionados e por crucificá-los. Até um famoso teólogo teve, também, o beneficio de ser crucificado: tudo isto, apenas, para convencer o mundo que determinada bula era ridícula, o que igualmente seria possível provar sem tantos perigos. Apesar disso tudo, porém, os jesuítas e os jansenistas deram as mãos contra o Espírito das Leis, e contra isto... e contra mais aquilo... e contra aqueloutro... e contra... Depois disto, ainda temos a ousadia de troçar dos lapões, dos samoiedas e dos pretos! Corpos Do mesmo modo que não sabemos o que é um espírito, ignoramos também o que seja um corpo; notamos algumas das suas propriedades; mas em que sujeito é que tais propriedades residem? Só existem os corpos, diziam Demócrito e Epicuro; não há corpos nenhuns, diziam os discípulos de Zenão de Eléia. Berkeley, bispo de Cloyne, foi o último que, empregando cem capciosos sofismas, pretendeu provar que os corpos não existem. Afirmava que os corpos não têm cores, nem cheiros, nem calor; essas modalidades existem nas nossas sensações e não nos objetos. Podia ter evitado o trabalho de provar essa verdade, que já era bastante conhecida. Mas daí passa à extensão, à solidez, que são essências do corpo, e julga poder provar que não há comprimento numa peça de pano verde, porque, em verdade, o pano não é bem verde; essa sensação do verde apenas existe em nós: logo, essa sensação do comprimento só em nós existe. E, após ter deste modo anulado o comprimento, conclui que o volume, que com ele se relaciona, se anula por si próprio e que, por isso, nada há no mundo a não ser as nossas ideias. De maneira que, na opinião deste douto sabichão, dez mil homens mortos por dez mil tiros de canhão apenas representam no fundo dez mil percepções do nosso entendimento. E, quando um homem faz um filho a sua mulher, é apenas uma ideia que aloja, instalada noutra ideia, da qual nascerá uma terceira ideia. Só a sua eminência, o bispo de Cloyne, competia cair nestes ridículos excessos. Supõe poder demonstrar que a extensão não existe, porque determinado corpo, observado através da sua luneta, lhe pareceu quatro vezes maior do que visto a olho nu, e quatro vezes menor com a ajuda duma outra lente. Daí conclui que, não podendo determinado corpo ter ao mesmo tempo quatro pés, dezesseis pés e um só pé de comprimento, tal comprimento não existe: logo não há nada. Ora, bastava agarrar num metro, numa medida qualquer, e dizer: mesmo que um corpo me apareça com várias dimensões, tem a extensão de tantas medidas destas. Ter-lhe-ia sido muito fácil verificar que não sucede com o comprimento e a solidez o mesmo que acontece com os sons, cores, sabor, cheiros, etc. É claro que existem entre nós sentimentos produzidos pela configuração das partes; mas o comprimento não é um sentimento. Basta que este cavaco de lenha se extinga na braseira, e deixo logo de sentir calor; que este ar não vibre, e já não ouço; que aquela rosa murche, e não sentirei o seu perfume; mas o cavaco de lenha, o ar, aquela rosa, são objetos que existem sem mim. Não vale a pena refutar o paradoxo de Berkeley. Convém saber o que o terá arrastado para tal paradoxo. Há muito tempo já, travei com ele alguns diálogos; disse-me que a origem da sua opinião provinha de que não se pode conceber o que é esse sujeito que recebe a extensão. E, com efeito, triunfa no seu livro, quando pergunta a Hilas o que é esse tal sujeito, esse substratum, essa substância. "É o corpo estendido", responde Hilas. Então o bispo, sob o nome de Filonaus, troça de Hilas; e o pobre Hilas, vendo que disse que a extensão é o sujeito da extensão, e que disse uma tolice, fica atrapalhado e acaba por confessar que não compreendeu nada, que não existem os corpos, que o mundo material não existe, que apenas existe o mundo intelectual. Hilas devia dizer apenas isto a Filonaus: Nada sabemos acerca do fundo desse sujeito, dessa substância extensa, sólida, divisível, móvel, figurada, etc.; conheço-a tanto como ao sujeito que pensa, que sente e é dotado de vontade; mas esse sujeito também existe, pois possui propriedades essenciais, das quais não pode ser despojado. Somos um pouco como a maioria das damas de Paris: comem regaladamente, sem saberem os condimentos que entram nos guisados; de igual modo, usamos os corpos sem saber o que os compõe. De que se faz um corpo? De várias partes, e essas tais partes dividem-se noutras partes. E o que são estas últimas partes? Ainda e sempre corpos; podeis dividir sem parar, que nunca adiantareis mais do que isto. Finalmente, um filósofo sutil, reparando que um quadro se faz de ingredientes de que nenhum é um quadro, e uma casa é feita de materiais dos quais nenhum é uma casa, imaginou (de uma maneira um pouco diferente) que os corpos são constituídos por uma infinidade de pequenos seres que já não são corpos; e a isto e àquilo chamam-se mimadas. Este sistema não deixa de ter um lado bom e, se proviesse da revelação, crê-lo-ia muito possível; todos esses pequenos seres seriam pontos matemáticos, espécie de almas que somente estariam à espera de uma veste para se meterem dentro dela; seria uma contínua metempsicose; uma mônada tão depressa andaria numa baleia, como dentro duma árvore ou encafuada num jogador trapaceiro. Este sistema vale tanto como o outro; gosto tanto dele como da declinação dos átomos, das formas substanciais, da graça versátil e dos vampiros de dom Calmet. Credo Recito o meu Pater e o meu Credo todas as manhãs; não sou como Broussin de quem Reminiac dizia: Broussin, dès l’age le plus tendre, Posséda la sauce-Robert, Sans que son précepteur lui pút jamais apprendre Ni son Credo ni son Pater. O símbolo ou a colação derivam da palavra symbolein e a Igreja latina adota essa palavra, tal como surripiou tudo da Igreja grega. Os teólogos com alguma cultura sabem que o símbolo que se chama dos apóstolos não era nada dos apóstolos. Entre os gregos chamava-se símbolo às palavras, aos sinais, pelos quais se reconheciam os iniciados nos mistérios de Ceres, de Cibele, de Mitra 36; com o decorrer dos anos, os cristãos tiveram o seu símbolo. Se este já existisse no tempo dos apóstolos, é de crer que São Lucas tivesse falado nisso. Atribui-se a Santo Agostinho uma história do símbolo no seu sermão 115; põem-no a dizer nesse sermão que Pedro começara o símbolo dizendo: Creio em Deus pai todo-poderoso; João acrescentara: Criador do céu e da terra; Jaime ajuntou: Creio em Jesus Cristo, um só seu filho, nosso Senhor; e assim por diante. Eliminaram esta fábula na última edição de Agostinho. Daqui me dirijo aos reverendos padres beneditinos, para saber, ao certo, se seria necessário ou não eliminar esse trecho, que é tão curioso. A verdade é que ninguém ouviu falar desse Credo durante mais de quatrocentos anos. O povo costuma dizer que Paris não se fez num dia: o povo fala frequentemente com acerto nos seus provérbios. Os apóstolos tiveram o nosso símbolo no coração, mas não o escreveram. Compuseram um, no tempo de Santa Irene, que nada se parece com aquele que nós hoje rezamos. O nosso símbolo, tai como agora é, manteve-se assim, sem nunca variar, desde o século V. É posterior ao símbolo de Nicéia. O artigo que diz que Jesus desceu aos infernos, o que fala da comunhão dos santos não se encontra em nenhum dos símbolos anteriores. Com efeito, nem nos Evangelhos, nem nos Atos dos Apóstolos, se faz referência a que Jesus tenha descido aos infernos. Mas era uma doutrina estabelecida desde o século III que Jesus descera ao Hades, ao Tártaro, palavras que traduzimos por Inferno. O Inferno, nesta acepção, não é o termo hebreu scheol, que significa o subterrâneo, a fossa. E é por isso que Santo Atanásio nos ensinou mais tarde como o nosso Salvador descera aos infernos. "A sua humanidade", diz, "não ficou por completo no sepulcro nem toda inteira no Inferno. Ficou no sepulcro segundo a carne, e no Inferno segundo a alma”. Santo Tomás garante que os santos que ressuscitaram no momento da morte de Jesus Cristo morreram outra vez, para, em seguida, ressuscitarem com ele; é a opinião mais seguida. Todas estas doutrinas são absolutamente alheias à mora!; devemos ser homens de bem, quer os santos tenham ressuscitado duas vezes, quer Deus os tenha feito ressuscitar apenas uma. O nosso símbolo foi arranjado tarde, forçoso é confessá-lo; mas a virtude é eterna. Se nos é permitido citar autores modernos em tão grave matéria, transcreverei aqui o Credo do abade de Saint-Pierre, tal como ele o escreveu pelo próprio punho, no seu livro a respeito da pureza da religião, o qual não foi impresso e que fielmente copiei. "Creio num só Deus, e amo-o. Creio que ilumina todas as almas deste mundo, tal como diz São João. Refiro-me a todas as almas que o procuram de boa fé”. "Creio num só Deus, pois não é possível que haja mais do que uma só alma do grande todo, um só ser vivificante. um só criador”. "Creio em Deus pai todo-poderoso, porque é o pai comum da natureza e de todos os homens que são igualmente seus filhos. Creio igualmente que quem a todos deu vida, que organizou as energias da nossa vida da mesma maneira, que lhes deu os mesmos princípios de moral, que é por eles entendida logo que adquirem a capacidade de raciocínio, não pôs nenhuma diferença entre os seus filhos, a não ser aquela que separa o crime da virtude”. "Creio que o chinês, justo e caritativo, é mais precioso perante ele que um sábio da Europa, caturra e arrogante”. "Creio que, sendo Deus o nosso pai comum, somos obrigados a olhar todos os homens como nossos irmãos”. "Creio que o fanático perseguidor é uma criatura abominável e que na escala do crime vem imediatamente a seguir ao envenenador e ao parricida”. "Creio que as disputas teológicas são, simultaneamente, a farsa mais ridícula e o flagelo mais horroroso da Terra, logo a seguir da guerra, da peste, da fome e da sífilis”. "Creio que os eclesiásticos devem ser pagos e bem pagos, como servidores do público, preceptores de moral, conservadores dos registros dos nascimentos e mortes; mas que não se lhes devem dar as riquezas dos arrendatários gerais, nem a categoria de príncipes, porque umas e outra corrompem a alma e não há coisa mais revoltante que ver homens, tão ricos e tão orgulhosos, pregarem a humildade e o amor da pobreza a pessoas que nada mais têm que cem soldos de salário”. "Creio que todos os padres que prestam serviço numa paróquia devem ser homens casados, não só para terem na sua companhia uma mulher honesta, que tome conta do governo da casa, mas para serem cidadãos melhores, darem bons súditos ao Estado e terem filhos bem educados”. "Creio que é absolutamente necessário acabar com a fradalhada, no que se prestará um grande benefício à pátria e aos próprios frades; são homens que Circe transformou em porcos; o sábio e prudente Ulisses deve restituir-lhes a forma humana”. Paradis aux bienfaisants! Cristianismo Pesquisas históricas sobre o cristianismo Vários foram os sábios que manifestaram a sua surpresa por não encontrarem no historiador Flávio Josefo o menor rasto de Jesus Cristo; porque hoje em dia todos os autênticos sábios estão de acordo em que o breve passo onde se lhe faz referência, na sua História, foi interpolado posteriormente. (Os cristãos, por uma dessas fraudes ditas piedosas, falsificaram grosseiramente um passo do Josefo. Atribuem a este judeu, tão fanático da sua religião, quatro lirihas ridiculamente interpoladas; e no final do passo acrescentam: Era o Cristo. Ora, ora! Então, se Josefo tivesse ouvido falar de tantos e tão espantosos sucessos, ter-lhes-ia apenas dedicado quatro linhas na História do seu país! Então esse judeu cabeçudo havia de dizer: Jesus era o Cristo! Que coisa absurda, pôr Josefo a falar como um cristão. E como é que ainda há teólogos imbecis o bastante, ou bastante insolentes, para tentarem justificar essa impostura dos primitivos cristãos, declaradamente reconhecidos como fabricantes de fraudes cem vezes maiores do que essa! Nota do Autor) O pai de Flávio Josefo havia de ter sido, porém, testemunha de todos os milagres de Jesus, Josefo era da raça sacerdotal (os levitas) e parente da rainha Mariana, mulher de Herodes; descreve até aos mais ínfimos pormenores os atos deste monarca; todavia, não tem uma palavra a respeito da vida e da morte de Jesus; e esse historiador, que não dissimula nenhuma das crueldades cometidas por Herodes, nunca fala do massacre, por ele ordenado, de todas as crianças (o massacre dos inocentes), em consequência da notícia que lhe chegara aos ouvidos de ter nascido um rei dos judeus, O calendário grego calcula em catorze mil crianças que foram degoladas nessa ocasião. É a ação mais horrível cometida em todos os tempos por um tirano. Nem se encontra exemplo semelhante na história mundial. Apesar disso, o melhor escritor que os judeus tiveram, o único estimado por romanos e gregos, não faz a mínima alusão a um acontecimento tão singular como pavoroso. Nunca fala da nova estrela que aparecera no Oriente após o nascimento do Salvador; fenômeno famoso seria esse, que é estranho ter escapado ao conhecimento de um historiador tão esclarecido como era Josefo. Guarda ainda silêncio sobre as trevas que cobriram a terra inteira, em pleno meio-dia, durante três horas, na morte do Salvador, acerca da enorme quantidade de sepulcros que nessa altura se abriram; e sobre a multidão dos justos que ressuscitaram. Os sábios não param de exteriorizar a sua surpresa ao notarem que nenhum historiador romano falou de tais prodígios, acontecidos no reinado de Trajano, perante os olhos de um governador romano e de uma guarnição romana, que devia ter enviado ao imperador e ao Senado um relato circunstanciado do mais milagroso sucesso de que os homens em tempo algum ouviram falar. A própria cidade de Roma devia ter ficado mergulhada em espessas trevas durante três horas; e tal prodígio ficaria registrado nos fastos de Roma e nos de todos os povos. Mas Deus não quis que estas coisas divinas fossem escritas por mãos profanas. Os mesmos sábios deparam ainda com muitas outras dificuldades na história relatada pelos Evangelhos. Notam, por exemplo, que, em São Mateus, Jesus Cristo disse aos escribas e aos fariseus que todo o sangue inocente derramado na terra havia de cair sobre eles, desde o sangue do justo Abel até Zacarias, filho de Barac, o qual foi morto entre o templo e o altar. Dizem os sábios que na história dos hebreus não há Zacarias nenhum morto no templo, antes da vinda do Messias, nem no seu tempo; mas na história do cerco de Jerusalém, escrita por Josefo, um tal Zacarias, filho de Barac, foi morto no meio do templo pela seita dos zelotas. Vem no capítulo XIX do livro IV. Daí os sábios terem a suspeita que o evangelho segundo São Mateus fora escrito antes da tomada de Jerusalém por Tito. Mas todas as dúvidas e todos os reparos deste gênero se desvanecem logo que se considere a infinita diferença que deve haver entre os livros escritos por inspiração divina e os livros dos homens. Deus quis envolver numa nuvem, tão respeitável como obscura, o seu nascimento, vida e morte. As suas vias são, em tudo, diferentes das nossas. Os sábios também se preocuparam muito com a diferença existente entre as duas genealogias de Jesus Cristo. São Mateus aponta Jacó como sendo pai de José; Mathan como pai de Jacó; Eleazar de Mathan. Pelo contrário, São Lucas diz que José era filho de Heli; Heli de Matthat; Matthat de Levi; Levi de Melqui, etc. Os sábios torturam-se porque não conseguem conciliar os cinquenta e seis ascendentes que Lucas atribui a Jesus, remontando até Abraão, com os quarenta e dois antepassados diferentes desses que Mateus lhe dá depois do dito Abraão. E ficam apavorados porque Mateus, apesar de falar em quarenta e duas gerações, apenas se refere a quarenta e uma. Também se levantam dificuldades pelo fato de Jesus não ser filho de José, mas de Maria. Surgem também algumas dúvidas acerca dos milagres do nosso Salvador, citando Santo Agostinho, São Hilário e outros quejandos, os quais deram às narrativas desses milagres um sentido místico, um sentido alegórico: como o da figueira amaldiçoada e seca por não ter figos, quando não era tempo de dar figos; os demônios introduzidos nos corpos de porcos, numa terra onde não se criam porcos; na água transformada em vinho, no final dum repasto em que os convivas já estavam bem animados. Mas todas estas críticas dos sábios são confundidas pela Lei, que não fica menos pura por causa delas. O objetivo deste artigo é, unicamente, seguir o fio histórico e proporcionar uma visão precisa daqueles fatos a respeito dos quais não há discussão, nem dúvidas. Jesus nasceu sob a lei mosaica, foi circuncidado de acordo com essa lei, cumpriu todos os seus preceitos, celebrou todas as suas festividades e somente pregou a moral; nunca revelou o mistério da sua encarnação; nunca disse aos judeus que fora concebido por uma virgem; recebeu a bênção de João nas águas do Jordão, cerimônia à qual muitos judeus se submetiam, mas nunca batizou fosse quem fosse; nunca falou dos sete sacramentos, nem instituiu, em vida sua, qualquer hierarquia eclesiástica. Ocultou dos contemporâneos que era filho de Deus, engendrado por toda a Eternidade, consubstancial com Deus e que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Nunca afirmou que a sua pessoa se compunha de duas naturezas e de duas vontades; pretendeu, ao que parece, que tão grandes mistérios fossem transmitidos aos homens no decorrer dos tempos, por aqueles que fossem esclarecidos pelas luzes do Espírito Santo. Enquanto foi vivo, em nada se desviou da lei dos antepassados; apenas mostrou aos homens que era um justo, grato a Deus, perseguido pelos que o invejavam e condenado à morte por magistrados cheios de preconceitos. Quis que a sua Santa Igreja, por ele fundada, fizesse tudo o mais. Josefo, no capítulo XII da História, refere-se a uma seita de judeus rigoristas, recentemente fundada por um tal Judas da Galiléia. "Desdenham", diz Josefo, "os males da terra; triunfam das torturas pela constância; preferem a morte à vida, quando o objetivo dela é honroso. São torturados a ferro e fogo e vi que lhes quebravam os ossos, mas não disseram uma palavra só que fosse contra o seu legislador. nem comeram carnes proibidas." . Parece que este retrato assenta melhor nos judaítas que nos essênios. Eis o que diz textualmente Josefo: "Judas foi o criador de uma nova seita, totalmente diferente das outras três, isto é, dos saduceus, fariseus e essênios". Continua depois e afirma: "São judeus de nação (de raça); vivem muito solidários entre si e consideram a voluptuosidade como um vício". O sentido natural desta frase revelará que o autor fala dos judaítas? Seja como for, estes judaítas já eram conhecidos antes que os discípulos de Cristo começassem a formar um partido considerável no mundo. Os terapeutes eram uma sociedade diferente dos essênios e dos judaítas; assemelhavam-se, antes, aos gimnosofistas das Índias e aos brâmanes. "São possuídos por transportes de amor celeste que nos lançam nos arroubos das bacantes e dos coribantes e que os levam a um estado contemplativo a que aspiram", afirma Fílon. "Esta seita teve origem em Alexandria, estava repleta de judeus e propagou-se intensamente por todo o Egito." Os discípulos de João Batista espalharam-se também um pouco pelo Egito, mas principalmente na Síria e Arábia; também houve alguns na Ásia Menor. Lê-se nos Atos dos Apóstolos (cap. 19) que Paulo encontrou alguns em Éfeso; perguntou-lhes: "Receberam o Espírito Santo?" Responderam-lhe: "Nem sequer ouvimos falar que havia um Espírito Santo". E Paulo disse-lhes: "Então que batismo foi o vosso?" E eles responderam: "O batismo de João". Nos primeiros anos logo após a morte de Jesus, havia sete sociedades ou seitas diferentes entre os judeus: os fariseus, os saduceus, os essênios, os judaítas, os terapeutes (espécie de monges judaicos), os discípulos de João e os discípulos de Cristo, a qual seita Deus conduziu por atalhos desconhecidos ao humano entendimento. Quem mais contribuiu para fortalecer a pequena seita nascente foi aquele mesmo Paulo que antes a perseguira com tanta crueldade. Paulo nascera em Tarso, na Cilícia, e foi educado pelo famoso médico hebreu Gamaliel, discípulo de Hillel. Os judeus afirmam que ele se zangou com Gamaliel, porque este se recusou a dar-lhe a filha em casamento. Restam-nos vestígios desta anedota na continuação dos Atos de Santa Tecla. Estes referem que ele possuía uma testa larga, era calvo, tinha as sobrancelhas unidas, o nariz aquilino, o tronco baixo e gordo. Luciano, no Diálogo de Filopatris, fornece-nos retrato .bastante parecido com este. Duvida-se grandemente que fosse cidadão romano, porque nessa época não concediam tal título a nenhum judeu. Os judeus tinham sido expulsos de Roma por Tibério, e Tarso só se tomou colônia romana cerca de cem anos mais tarde, no tempo de Caracala, como registrara Celário na Geografia, livro III, e Grotius, nos Comentários sobre os Atos. Os fiéis adotaram o nome de cristãos em Antioquia, cerca do ano 60 da nossa era vulgar; mas foram conhecidos no império romano, como adiante teremos ocasião de ver, por outros nomes. Anteriormente só se distinguiam pelo nome de irmãos, santos ou fiéis. Deus, que descera à terra para ser ali um exemplo de humildade e pobreza, dava assim à sua Igreja os mais débeis começos e dirigia-a no mesmo grau de humilhação em que tinha querido nascer. Todos os fiéis dos primeiros tempos foram homens humildes; todos trabalhavam em misteres manuais. O apóstolo Paulo afirma que ganhava a vida a fazer tendas. São Pedro ressuscitou a costureira Dorcas, que confeccionava as túnicas dos irmãos. A assembleia dos fiéis reunia-se em Joppê, na casa de um correeiro chamado Simão, conforme se lê no capítulo 19 dos Atos dos Apóstolos. Os fiéis espalharam-se secretamente pela Grécia e dali alguns foram até Roma, para junto dos judeus que viviam nesta cidade, aos quais os romanos consentiam que mantivessem uma sinagoga. A princípio, os fiéis não se separam dos judeus; praticam a circuncisão e, como já o apontamos noutra altura, os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram todos circuncidados. Quando o apóstolo Paulo trouxe para a sua companhia Timóteo, que era filho de um pai gentio, circuncidou-o, fato ocorrido na pequena cidade de Listre. Mas já outro discípulo seu, Tito, não quis sujeitar-se à circuncisão. Os irmãos, discípulos de Jesus, estiveram unidos aos judeus até ao momento em que Paulo sofreu e foi perseguido em Jerusalém, por ter introduzido estrangeiros no Templo. Nessa altura, os judeus acusaram-no de tentar destruir a lei mosaica por causa de Jesus Cristo. Foi para se lavar desta acusação que o apóstolo Jaime propôs ao apóstolo Paulo que mandasse rapar o cabelo e fosse purificar-se no templo com mais quatro judeus que tinham feito voto de raparem o cabelo. "Vai com eles", disse-lhe Jaime (cap. 21, Atos dos Apóstolos); "purificai-vos na companhia deles e que toda a gente fique a saber que é falso o que dizem de vós e que continuais a guardar a lei de Moisés." Foi pois deste modo que Paulo, a princípio encarniçado e sanguinário perseguidor da seita fundada por Jesus; Paulo, que depois quis governar essa seita nascente; Paulo, um cristão, pratica atos de culto judaico, judaíza, para que todos saibam que estão a caluniá-lo quando dizem que é cristão; Paulo faz o que hoje se considera um crime abominável, crime que é punido pela morte na fogueira em Espanha, em Portugal e na Itália; e procede assim a conselho do apóstolo Jaime e depois de ter recebido o Espírito Santo, isto é, após ter sido instruído pelo próprio Deus que se deve renunciar a todos os ritos judaicos, outrora instituídos também pelo próprio Deus. Paulo não se livrou, no entanto, de ser acusado de impiedade e heresia, e o seu processo criminal durou ainda muito tempo; mas percebe-se à evidência, e até pelas acusações levantadas contra ele, que viera a Jerusalém para observar os ritos judaicos. A Festo diz ele o seguinte (cap. 25, dos Atos): "Não pequei contra a lei judaica, nem contra o templo". Os apóstolos proclamavam que Jesus Cristo era judeu, cumpria a lei judaica, fora enviado por Deus para fazê-la observar. "A circuncisão é útil", diz o apóstolo Paulo (cap. 2, Epístola aos Romanos), se respeitais a lei; mas, se a violardes, a vossa circuncisão transforma-se em prepúcio. Se um não circuncidado guarda a lei, será como se circuncidado fosse. O judeu verdadeiro é aquele que é judeu só no seu íntimo." Quando este apóstolo fala de Jesus Cristo nas Epístolas, nunca revela o mistério inefável da sua consubstancialidade com Deus. "Somos libertados por ele", diz no capítulo 5, Epístola aos Romanos, "da cólera de Deus. O dom de Deus espalhou-se sobre nós pela graça concedida a um único homem, que é Jesus Cristo... A morte reinou pelo pecado de um único homem; os justos reinarão na vida por um único homem, que é Jesus Cristo." E no capítulo 7: "E se somos filhos, também herdeiros; herdeiros verdadeiramente de Deus e coerdeiros de Cristo" (8, 17). E no capítulo 16: "A Deus, que é o único sábio, honra e glória por Jesus Cristo... - Estais em Jesus Cristo, e Jesus Cristo está em Deus" (Primeira Epístola aos Corintios, cap. 3). E (também na Primeira Epístola aos Corintios, capo 15, versículo 27): "Tudo lhe está sujeito, excetuando sem dúvida Deus, que lhe sujeitou todas as coisas". Houve certa dificuldade em explicar o seguinte passo da Epístola aos Filipenses: "Nada façais por porfia ou vanglória; mas com humildade, tendo cada um aos outros por superiores"... "E haja entre vós o mesmo sentimento que houve também em Jesus Cristo; o qual, tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus" (3, 5 e 6). Este passo parece aprofundado e claramente explícito numa carta, que se conserva, das igrejas de Viena e de Lião, escrita no ano de 117, a qual é um precioso monumento de antiguidade. Louva-se nesta carta a modéstia de alguns fiéis: "Não quiseram", diz a carta, "assumir o grandioso título de mártires (por algumas atribulações), a exemplo de Jesus Cristo, que, sendo da natureza de Deus, não julgou ser nele uma usurpação o ser igual a Deus". Orígenes diz também, no seu Comentário sobre João: a grandeza de Jesus brilhou mais quando se humilhou "do que se tivesse feito um direito seu o ser igual a Deus". Com efeito, a explicação oposta é um contrassenso evidente. Que significado teria afirmar: "Creiam os outros superiores a vós; imitai Jesus que não julgou que era uma usurpação igualar-se a Deus"? Seria visivelmente uma contradição evidente, seria apresentar um exemplo de orgulho com um exemplo de modéstia; seria atentar contra o senso comum. A sabedoria e prudência dos apóstolos fundava assim a Igreja nascente. Esta sabedoria não foi alterada pela disputa que veio a verificar-se entre os apóstolos Pedro, Jaime e João, por um lado, e Paulo, por outro. Essa discussão deu-se em Antioquia. O apóstolo Pedro, também chamado Cefas, ou Simão Barjão, comia à mesa com os gentios convertidos e não guardava com eles os preceitos da lei, nem a escolha das carnes; Pedro, Barnabé e outros discípulos comiam indiferentemente carne de porco, animais de pata rachada e que não eram ruminantes; mas tendo chegado, entretanto, alguns judeus cristãos, São Pedro guardou com eles abstinência das carnes proibidas e nas cerimônias da lei mosaica. Esta atitude parecia muito prudente; São Pedro não queria escandalizar os judeus cristãos, seus companheiros; mas São Paulo enfrentou-o com certa dureza. "Censurei-o cara a cara, porque o seu ato era condenável" (Epístola aos Gaiatas, cap. 2). Tal querela afigura-se-nos extravagante da parte de São Paulo, o qual, tendo sido de início um perseguidor, devia ser mais moderado e porque também fizera sacrifícios no templo de Jerusalém, e circundara o seu discípulo Timóteo e acatara os ritos judaicos, que censurava agora a Cefas. São Jerônimo pretende que a dita querela entre Paulo e Pedro era a fingir. Diz ele, na sua primeira Homilia, tomo 3, que ambos procederam como dois advogados que se mostram exaltados e ofendidos numa audiência de tribunal, para terem mais autoridade e impressionarem melhor os clientes; afirma que, estando Pedro Cefas destinado a pregar aos judeus e Paulo aos gentios, simularam zangar-se um com o outro, Paulo para conquistar as boas graças dos gentios e Pedro para congraçar os judeus. Mas já Santo Agostinho não é da mesma opinião. "Estou desgostoso e zangado" diz na Epístola ao Jerônimo, "que um tão grande homem se torne no patrão da mentira, patronum mendacii." De resto, se Pedro estava encarregado dos judeus judaizantes e Paulo dos estrangeiros, é muito provável que Pedro nunca tenha ido a Roma. Os Atos dos Apóstolos não fazem qualquer menção da viagem de Pedro à Itália. Seja como for, cerca do ano 60 da nossa era, os cristãos começaram a separar-se da comunidade judaica e esse foi o motivo de tantas lutas e perseguições que lhes moveram as sinagogas disseminadas por Roma, na Grécia, Egito e Ásia Menor. E foram acusados de impiedade, de ateísmo, pelos seus irmãos judeus, que nas sinagogas os excomungavam três vezes nos dias de sabá. Mas Deus sempre os amparou, mesmo no meio das maiores aflições. Pouco a pouco, foram-se formando várias igrejas e a separação entre judeus e cristãos era total antes do final do século I. O governo romano ignorava esta separação. O Senado de Roma e os imperadores alheavam-se daquelas dissensões de um pequeno partido que Deus até ali conduzira na obscuridade e que ia fazendo progredir de maneira quase insensível. Vejamos em que estado se encontrava a religião no império romano, nessa época. Os mistérios e as expiações eram coisas correntes em todos os lados e em que todos acreditavam. É certo que os imperadores, os poderosos e os filósofos não depositavam a mínima crença nesses mistérios; mas o povo, que em matéria de religião dá a lei aos grandes e poderosos, impunha-lhes a necessidade de, na aparência, se conformarem com o seu culto. Para manter o povo amordaçado e algemado, os grandes e poderosos senhores fingiam suportar as mesmas cadeias que o povo. O próprio Cícero foi iniciado nos mistérios de Eleusina. O conhecimento de um só Deus era o dogma principal que se anunciava nessas festividades misteriosas e magnificentes. Somos forçados a confessar que as orações e os hinos que até nós chegaram desses mistérios são tudo o que o paganismo nos legou de mais piedoso e admirável. Os cristãos, que também adoravam um só Deus, tiveram por isso certa facilidade em converter muitos gentios. Alguns filósofos da seita de Platão tornaram-se cristãos. É esta a razão por que todos os Padres da Igreja, dos três primeiros séculos, foram platônicos. O zelo exagerado de alguns deles de modo algum prejudicou as verdades fundamentais. Censuraram a São Justino, um dos primeiros Padres, o ter dito, no Comentário sobre Isaias, que os santos gozariam todos os prazeres sensuais num reinado de mil anos sobre a Terra. Ficou a dever-se-lhe a gentileza de ter dito, na Apologia do Cristianismo, que Deus, ao criar a Terra, deixou-a entregue à guarda dos anjos, os quais, apaixonando-se pelas mulheres, lhes geraram filhos, que são os demônios. Lactâncio e outros Padres foram condenados por terem acreditado nos oráculos das sibilas. Lactâncio pretendia que a sibila Eritréia compusera estes quatro versos gregos, cuja versão literal é a seguinte: Com cinco pães e dois peixes Alimentará cinco mil homens no deserto; E juntando as migalhas Encherá com elas doze cestos. Censuraram, também, aos primitivos cristãos a crença ingênua nuns versos acrósticos de uma antiga sibila, os quais começavam todos pelas letras iniciais do nome de Jesus Cristo, cada qual na sua ordem. Censuraram-lhes terem forjado cartas de Jesus Cristo ao rei de Edessa; terem forjado cartas de Maria, cartas de Sêneca a Paulo, cartas e atos de Pilatos, evangelhos falsos, falsos milagres e mil outras imposturas mais. Temos ainda a história ou o Evangelho da natividade e do casamento da Virgem Maria, onde se lê que, na idade de três anos, a levaram ao templo e que subiu os degraus sozinha, sem ajuda de ninguém. Ali se relata que uma pomba desceu do céu para avisar que era José quem devia desposar Maria. Temos ainda o proto-evangelho de Jaime, irmão de Jesus, filho do primeiro casamento de José. Diz-se ali que, quando Maria ficou grávida na ausência do marido, e que este se lamentou do aborrecido fato, os padres deram a beber água do ciúme a um e outro e que ambos foram declarados inocentes. Temos o Evangelho da infância, atribuído a Santo Tomás. Segundo este Evangelho, Jesus, quando contava cinco anos, brincava com outras crianças da sua idade divertindo-se a modelar barro, com que fazia pequenos pássaros; como o repreendessem, deu vida aos pássaros, que logo voaram. Doutra vez, fez morrer de morte imediata um rapazinho que lhe batera. Temos também em árabe outro Evangelho da infância, que é obra mais séria. Temos um Evangelho de Nicodemo, o qual nos deve merecer maior atenção, porquanto nele se encontram os nomes daqueles que acusaram Jesus perante Pilatos; eram eles os principais membros da sinagoga, os seus chefes: Anás, Caifâs, Sumas, Datam, Gamaliel, Juda, Neftalim. Nesta história deferem-se fatos que se conciliam bastante bem com os Evangelhos aceites e outros pormenores que não se leem em mais parte nenhuma. Ali se diz que a mulher curada de um fluxo de sangue se chamava Verônica. Sabe-se tudo quanto Jesus obrou nos enfermos, quando da sua descida ali. Temos depois duas cartas que se supõe que Pilatos tenha escrito a Tibério, a propósito do suplício de Jesus; mas o péssimo latim em que estão redigidas logo denuncia a fraude. Levaram o falso zelo a pôr em circulação várias cartas de Jesus Cristo. Conservaram a carta que se diz ele ter escrito a Abgare, rei de Edessa; mas nesse tempo já não havia reis em Edessa. Fabricaram cinquenta Evangelhos, que depois foram considerados apócrifos. São Lucas é o próprio a declarar que muitas pessoas os fizeram. Acreditou-se que havia um evangelho chamado Evangelho eterno, conforme aquilo que se diz no Apocalipse, capítulo 14: "Vi um anjo a voar no meio do céu e que levava o Evangelho eterno". No século XIII, os frades franciscanos, abusando dessas palavras, redigiram um Evangelho eterno, segundo o qual o reinado do Espírito Santo devia substituir o de Jesus Cristo; mas nos primeiros séculos da Igreja nunca houve livro algum com aquele título. Inventaram também cartas da Virgem, escritas ao mártir Santo Inácio, aos habitantes de Messina e outras. Abdias, que viveu pouco tempo depois dos apóstolos, escreveu a história destes, nela introduziu fábulas tão absurdas que, com o correr dos anos, essas histórias dos apóstolos ficaram completamente desacreditadas; mas de início tiveram larga divulgação. É o dito Abdias que descreve o combate entre São Pedro e Simão, o mágico. Com efeito, havia em Roma um mecânico muito habilidoso que não só conseguia voar nos teatros, como hoje se faz, mas renovou o prodígio atribuído a Dédalo. Fabricou umas asas, voou e caiu como Ícaro; é, pelo menos, o que nos contam Plínio e Suetônio. Abdias, que vivia na Ásia Menor e escrevia em hebreu, pretende que São Pedro e Simão se encontraram em Roma, no tempo de Nero. Morrera nessa ocasião um rapaz, parente chegado do imperador, e toda a corte rogou a Simão que o ressuscitasse. São Pedro, pelo seu lado, ofereceu-se para fazer outro tanto. Simão utilizou todos os segredos da sua arte; a certa altura, parecia que conseguira o que queria, porque o morto mexeu a cabeça. "Não basta", gritou São Pedro, "é necessário que o morto fale; Simão que se afaste do leito e logo se verá se o rapaz está vivo." Simão afastou-se, o morto não se tornou a mexer mais e Pedro restituiu-o à vida apenas com uma palavra que lhe disse. Simão foi dali queixar-se ao imperador contra um miserável galileu que se gabava de fazer maiores prodígios do que ele. Pedro compareceu na corte; juntamente com Simão, e cada qual tentou exceder o outro em artes milagreiras. "Vê se és capaz de dizer o que estou agora a pensar", gritou Simão para Pedro. "Nesse caso, que o imperador ordene que me deem um pão de cevada", respondeu Pedro, "e verás se sei ou não aquilo que tens na alma." Deram-lhe um pão. Imediatamente, Simão faz surgir dois enormes mastins, que se atiram ao seu antagonista. Pedro lança-lhes o pão de cevada; e, enquanto os cães o comem, brada: "Então, sabia ou não sabia o que estavas a pensar? O que tu querias era fazer-me devorar pelos teus cães". Depois desta primeira exibição, propuseram a Simão e a Pedro o combate do voo, a ver quem subia mais alto. Simão foi o primeiro a elevar-se nos ares, mas São Pedro fez o sinal da cruz e Simão caiu e partiu as pernas. Este conto era imitado daquele que se encontra no Sepher toldos Jeschut, onde se diz que Jesus, em pessoa, voou e Judas, que o quis imitar, foi derrubado. Nero, irritado com Pedro por este ter causado a queda de Simão, seu favorito, e tê-lo deixado de pernas partidas, mandou crucificar Pedro de cabeça para baixo; e foi daí que se espalhou a lenda da estadia de Pedro em Roma, do seu suplício e do seu sepulcro. O já referido Abdias divulgou a crença de que São Tomás fora pregar o cristianismo às Índias, na corte do rei Gondafer, e ali vivera na qualidade de arquiteto. É verdadeiramente prodigiosa a data de livros deste gênero que se escreveram nos primeiros séculos do cristianismo. São Jerônimo e o próprio Santo Agostinho pretendem que as cartas de Sêneca e de São Paulo são autênticas, sem falha de dúvida. Na primeira carta, Sêneca deseja que o seu irmão Paulo esteja bem de saúde: Bene te valere, frater, cupio. Paulo não fala o latim tão corretamente como Sêneca. "Recebi ontem com alegria a tua carta", diz: Litteras tuas hilaris accepi; e teria logo respondido "se aqui estivesse o rapaz que vos mandaria": si praesentiam juvenis habuissem. Aliás, tais cartas, que estaríamos no direito de supor recheadas de noções instrutivas ou elevadas, não passam de simples troca de cumprimentos e banalidades. Tantas mentiras forjadas pelos cristãos mal esclarecidos e erradamente zelosos não redundaram em prejuízo da verdade do cristianismo, em nada prejudicaram o seu fundamento; pelo contrário, demonstram que a sociedade cristã aumentava todos os dias e que cada um dos seus membros diligenciava servir e ajudar o seu desenvolvimento. Os Atos dos Apóstolos nunca dizem que os apóstolos tivessem convencionado algum Símbolo. Se, em verdade, tivessem redigido o Símbolo, o Credo, tal como o possuímos hoje, São Lucas não teria omitido na sua história esse fundamento essencial da religião cristã; a substância do Credo encontra-se dispersa pelos Evangelhos, mas os artigos só muito mais tarde é que foram reunidos. O nosso Símbolo, numa palavra, é incontestavelmente a crença dos apóstolos, mas não é um texto escrito por eles. Rufino, padre de Aquiléia, foi o primeiro que se referiu a isso; e uma homília atribuída a Santo Agostinho é o primeiro monumento que nos leva a perceber como o Credo foi feito. Pedro diz na assembleia: Creio em Deus pai todo-poderoso; André diz: e em Jesus Cristo; Jaime acrescenta: que foi concebido pelo Espírito Santo; e assim de seguida. Tal fórmula chamava-se em grego symbolos e em latim collatio. Devemos no entanto reparar que onde o texto grego diz: Creio em Deus pai todo-poderoso, fazedor do céu e da terra, o latim traduziu fazedor, formador, por creatorem (criador). Mas depois, quando traduziram o símbolo do primeiro concílio de Nicéia, puseram factorem. O cristianismo estabeleceu-se primeiramente na Grécia. Aqui, os cristãos tiveram de lutar contra uma nova seita de judeus transformados em filósofos à força devido à sua convivência com os gregos; era a seita da gnose ou dos gnósticos; com eles se confundiram os novos cristãos. Todas estas seitas gozavam então de inteira liberdade para dogmatizar, reunirem-se e escrever; mas no tempo de Domiciano a religião cristã começou a causar certa preocupação ao governo. Mas o zelo de alguns cristãos, que não estava de acordo com a doutrina, não impediu a Igreja de fazer os progressos que Deus lhe destinava. A princípio, os cristãos celebraram os seus mistérios em casas retiradas, em caves, durante a noite; daí o nome que lhes deram de lucifugaces (segundo exara Minúcio Félix). Fílon chama-lhes gesséens. Entre os gentios, os nomes mais comuns, como os chamavam nos quatro primeiros séculos, eram os de galileus e nazarenos; mas sobre todos prevaleceu o de cristãos. A hierarquia e os usos não foram fixados duma vez; os tempos apostólicos foram diferentes dos tempos posteriores. São Paulo, na Primeira Epístola aos Corintios, diz-nos que, estando os irmãos reunidos em assembleia, quer os circuncidados quer os não circuncidados, quando vários profetas queriam falar, apenas a dois ou três era permitido fazê-lo, e, se nessa altura alguém tivesse uma revelação, o profeta no uso da palavra devia calar-se. É de acordo com este antigo costume da Igreja primitiva que ainda hoje se fundam algumas comunidades cristãs, as quais realizam assembleias sem distinções de hierarquia. Naquele tempo, a todos era permitido falar na igreja, com exceção das mulheres. Paulo, na Primeira Epístola aos Corintios, proíbe-lhes que falem; mas é certo que parece autorizá-las a pregar, a profetizar, no capítulo li, versículo 5, da mesma epístola: "Toda mulher que prega e profetiza de cabeça descoberta suja a cabeça"; era como se a tivessem rapada. Por isso as mulheres julgaram que lhes era permitido falar, desde que usassem véu. A cerimônia que é hoje a santa missa (que se celebra de manhã) era a ceia, que se realizava à noite; estes usos mudaram à medida que a Igreja se foi fortalecendo. Uma sociedade mais lata exigiu mais regulamentos e a prudência dos doutores conformou-se com os novos tempos e lugares. São Jerônimo e Eusébio contam que, quando as igrejas foram ganhando forma, a pouco e pouco se foram distinguindo cinco ordens diferentes: os vigilantes, episcopoi, donde provieram os bispos; os decanos da sociedade, presbyteroi, os padres; os diaconi, os serventes ou diáconos; os pistoi, fiéis iniciados, isto é, os batizados, que participavam nas ceias; e os catecúmenos e energúmenos, que aguardavam o batismo. Nestas cinco ordens, ninguém vestia hábito diferente uns dos outros; ninguém era obrigado ao celibato, como testemunha o livro de Tertuliano dedicado à esposa, como o demonstra o exemplo dos apóstolos. Durante os três primeiros séculos, não houve também qualquer imagem, em pintura ou escultura, nas assembleias. Os cristãos escondiam cautelosamente os seus livros dos gentios; apenas os confiavam aos iniciados; aos catecúmenos nem sequer era permitido rezarem a oração dominical. O que melhor distinguia os cristãos, e se manteve até aos nossos tempos, era o condão que tinham de expulsar os diabos fazendo o sinal da cruz. Orígenes, no Tratado contra Celso, confessa, no nº 133, que Antínoo, divinizado pelo imperador Adriano, fazia milagres no Egito por meio de encantamentos e prestígios; mas afirma que os demônios saem do corpo dos possessos à simples invocação do nome de Jesus. Tertuliano vai mais longe e dos confins da África, onde se encontrava, diz na Apologética, no capítulo 23: "Se os vossos deuses não confessarem que são diabos na presença de um verdadeiro cristão, queremos que derrameis o sangue desse cristão". Haverá demonstração mais clara? Com efeito, Jesus Cristo enviou os seus apóstolos para que expulsassem os demônios. Os judeus também tinham, noutros tempos, o condão de expulsar os demônios, porque, quando Jesus purificou os possessos e transferiu os diabos dos corpos deles para uma vara de dois mil porcos, os fariseus exclamaram: "Expulsa os demônios pela potência de Belzebu". "Se é por intermédio de Belzebu que os expulso", respondeu-lhes Jesus, "por quem é então que os vossos filhos os expulsam?" É incontestável que os judeus se gabavam desse poder; entre eles havia exorcistas e exorcismos. Invocavam o nome de Deus, de Jacó e de Abraão. Punham ervas consagradas no nariz dos endemoninhados (Josefo relata uma parte destas cerimônias). Esse poder sobre os diabos, que os judeus perderam, foi transmitido aos cristãos, que o parecem ter perdido também, de há uns tempos para cá. No condão de expulsar os demônios estava incluído o de destruir os efeitos das operações mágicas, porque a magia existiu sempre em todos os povos. Todos os Padres da Igreja prestam homenagem à magia. São Justino confessa no livro 3 da Apologética, que com frequência se invocam as almas dos mortos, e tira daí um argumento a favor da imortalidade da alma. Lactâncio, no livro 7 das Instituições Divinas, diz que, "se alguém ousasse negar a existência das almas depois da morte, os mágicos depressa vos convenciam, fazendo-as aparecer diante dos olhos". Ireneu, Clemente Alexandrino, Tertuliano, o bispo Cipriano, todos afirmam a mesma coisa. É verdade que hoje tudo mudou, e que já não há mágicos nem endemoninhados; mas descansem, que tornarão a aparecer outra vez, quando for do agrado de Deus. Foi só quando as sociedades cristãs aumentaram em número e que várias protestaram contra o culto oficial do império romano que os magistrados procederam severamente contra elas e também as populações as perseguiram cruelmente. Ninguém até então perseguia os judeus, que tinham privilégios especiais e se encerravam nas suas sinagogas; permitiam-lhes o exercício da sua religião, como ainda hoje acontece em Roma; todos os cultos espalhados pelo império eram tolerados, embora o Senado os não adotasse. Mas os cristãos, ao declararem-se inimigos de todos esses cultos e sobretudo do culto oficial do império, ficaram por várias vezes sujeitos a cruéis provações. Um dos primeiros e mais célebres mártires foi Inácio, bispo de Antioquia, condenado pelo próprio imperador Trajano, que então se encontrava na Ásia Menor, e enviado, por ordem do imperador, para Roma, onde foi exposto às feras, numa época em que ainda não massacravam em Roma os cristãos. Nada se sabe de que o acusaram perante o imperador, cujo caráter clemente era bem conhecido; Santo Inácio devia ter inimigos de força, para o deitarem assim a perder. Fosse como fosse, o relato do seu martírio registra que lhe acharam o nome de Jesus Cristo gravado no coração a letras de ouro, daí o nome de teôforos, que os cristãos adotaram em certas regiões, nome que a si próprio dera Inácio. Guardaram uma carta dele em que suplicava aos bispos e outros cristãos que não se opusessem ao seu martírio, quer porque os cristãos já nesse tempo fossem bastante poderosos para o livrarem, quer porque entre eles houvesse alguns com o crédito suficiente para tentarem obter o seu perdão. O que é notável, ainda, é que se tolerasse que os cristãos de Roma fossem admitidos à sua presença, quando foi levado para a capital; o que prova, à evidência, que nele puniam a pessoa e não a seita. As perseguições não foram contínuas. Orígenes, no livro 3, contra Celso, diz o seguinte: "Contam-se pelos dedos os cristãos que morreram pela sua religião, porque foram poucos e somente de tempos a tempos, e por longos intervalos". Deus cuidou tão bem da sua Igreja, apesar dos inimigos desta, procedeu de modo que ela realizou cinco concílios, isto é, assembleias toleradas, no primeiro século, dezesseis no segundo e trinta no terceiro. Tais assembleias foram proibidas algumas vezes, quando, por falsa prudência, os magistrados temiam que se tornassem tumultuosas. Poucos processos intentados pelos pro cônsules e pretores, condenando os cristãos à morte, chegaram até nós e seriam esses os únicos documentos por onde poderíamos hoje verificar as acusações feitas contra eles e os martírios que padeceram. Possuímos um fragmento de Dinis de Alexandria, em que se transcreve a sentença de um pro cônsul do Egito, no tempo do Imperador Valeriano: "Tendo sido introduzidos em audiência Dinis, Fausto, Máximo, Marcelo e Cheremon, o prefeito Emiliano disse-lhes: Já conheceis, pelas conversas que tivemos e por tudo aquilo que acerca disso vos escrevi, quanta bondade os nossos príncipes vos testemunharam a vosso respeito; quero repeti-lo aqui mais uma vez: de vós depende a vossa salvação e o vosso destino está agora nas vossas mãos. Nada mais se vos pede que uma única coisa, aquilo que a razão exige de qualquer pessoa normal: é que adoreis os deuses protetores do império e abandoneis esse outro culto, tão contrário à natureza e ao bom senso”. "Dinis respondeu: Nem todos têm os mesmos deuses e cada um adora aquele que julga ser o deus verdadeiro”. "O prefeito Emiliano insistiu: Já vejo que sois uns ingratos, que abusais da bondade que os imperadores têm demonstrado por vós. Pois seja assim, não haveis de ficar nem mais um minuto nesta cidade e vou mandar-vos para Cefro, nos confins da Líbia; será esse o lugar do vosso exílio, conforme a ordem que recebi dos nossos imperadores; de resto, não penseis em fazer também aí as vossas assembleias, nem em rezar nos sítios a que chamais cemitérios, é-vos proibida em absoluto tal coisa e a ninguém o hei de tolerar”. Este processo mantém um evidente caráter de autenticidade. Por ali se vê que em certas alturas as assembleias foram proibidas. Tal como entre nós é proibido aos calvinistas reunirem-se no Langudoque; e por vezes mandamos enforcar ou torturar na roda ministros ou predicantes que efetuavam reuniões clandestinas, não permitidas pelas leis. Do mesmo modo, foram interditas na Inglaterra e na Irlanda as assembleias dos católicos romanos e até houve ocasiões em que os transgressores foram condenados à morte. Apesar de todas estas proibições impostas pelas leis romanas, Deus inspirou a diversos imperadores que tivessem indulgência pelos cristãos. Até o próprio Diocleciano, que entre as pessoas ignorantes faz figura de cruel perseguidor; Diocleciano, cujo primeiro ano de reinado ainda está abrangido na era dos mártires, foi durante mais de dezoito anos o protetor confesso do cristianismo, a tal ponto que vários cristãos ocuparam elevados cargos na corte. Chegou até a consentir que em Nicomédia, onde residia, houvesse uma magnífica igreja, erguida defronte do seu palácio. Por fim, casou com uma cristã. O césar Galério, tendo sido infelizmente advertido contra os cristãos, dos quais supunha ter razões de queixa, convenceu Diocleciano a mandar destruir a catedral de Nicomédia. Um cristão, mais zeloso do que sensato, rasgou em pedaços o édito do imperador; donde resultou essa tão famosa perseguição, em que houve mais de duzentas pessoas condenadas à morte, em toda a extensão do império romano, sem já contarmos aquelas que a cólera da arraia-miúda, sempre fanática e sempre bárbara, pôde massacrar à margem das decisões judiciais. Houve por diversas alturas um número de mártires tão elevado, que devemos ter o maior cuidado em não menosprezar o mérito desses que se sacrificaram pela nossa santa religião, incorrendo numa perigosa baralhada de fábulas e falsos mártires. O beneditino Dom Ruinart, por exemplo, aliás criatura tão instruída como estimável e zelosa, devia ter escolhido com mais discrição os Atos Sinceros. Não basta que um manuscrito seja encontrado na abadia de Saint-Benoit-sur-Loire, ou num convento de celestinos, de Paris, ou conforme a um manuscrito de fuldenses, para que seja autêntico: é necessário, também, que seja antigo, escrito por contemporâneos e apresente ademais todas as características de verdade. Assim, bem teria podido dispensar-se de relatar a aventura do moço Romanus, caso passado em 303. Romanus obtivera o perdão de Diocleciano, em Antioquia. Afirma, todavia, que o juiz Asclepíade o condenou a ser queimado. Alguns judeus que assistiam ao espetáculo troçaram do jovem santo Romanus e censuraram os cristãos porque o Deus deles os deixava assim morrer queimados, ele que livrara Sidrac, Misac e Abdenago da fogueira; logo ali se levantou uma tempestade que extinguiu o fogo, quando o tempo estivera até então o mais calmo que é possível; o juiz ordenou que cortassem a língua ao jovem Romanus; encontrando-se no local o melhor médico do imperador, desempenhou oficiosamente a função de carrasco e cortou-lhe a língua pela raiz; e o rapaz, que antes disso era gago, falou com desembaraço, de tal modo que o imperador ficou muito espantado de que alguém falasse com tanta perfeição, não tendo língua; o médico, então, para confirmar a sua eficiência, cortou ali mesmo a língua a um homem que passava, o qual morreu subitamente. Eusébio, donde o beneditino Ruinart surripiou esta fábula, devia ter mais respeitinho pelos autênticos milagres praticados no Antigo e no Novo Testamento (dos quais nunca ninguém poderá duvidar) e não misturar com eles histórias assim suspeitas, que poderiam escandalizar os fracos. Esta última perseguição não se estendeu por todo o império. Havia então na Inglaterra algum cristianismo, que depressa se eclipsou, para reaparecer no tempo dos reis saxônicos. As Gálias meridionais e a Espanha estavam pejadas de cristãos. O césar Constâncio Cloro protegia-os muito nessas províncias. Tinha uma concubina que era cristã e foi a mãe de Constantino, conhecida pelo nome de Santa Helena. Nunca houve casamento declarado entre ela e ele, e Constâncio Cloro até a renegou no ano de 292, quando desposou a filha de Maximiano Hércules; mas ela conservara um grande ascendente sobre ele e inspirara-lhe certa devoção pela nossa santa religião. A Divina Providência preparou o triunfo da sua Igreja por vias que parecem humanas. Constâncio Cloro morreu em 306, em Iorque, Inglaterra, quando os filhos que tinha duma filha de um césar eram ainda crianças pequenas e não podiam ter a pretensão de suceder-lhe na chefia do império. Constantino fez-se eleger em Iorque por cinco ou seis mil soldados, na sua maioria alemães, gauleses e ingleses. Não havia a menor possibilidade de que esta eleição, feita sem o consentimento de Roma, do Senado e dos exércitos, pudesse vingar, mas Deus concedeu-lhe a vitória sobre Maxêncio, que entretanto fora eleito em Roma, e por fim desembaraçou-o de todos os rivais. Não se pode esconder que, nos primeiros tempos, ele se tenha tornado muito pouco digno dos favores que recebia do Céu, assassinando, como fez, os parentes mais chegados, como a própria mulher e um filho. É legítimo duvidar do que Zósimo relata a tal respeito. Diz que Constantino, torturado pelos remorsos após ter praticado tamanhos crimes, rogou aos pontífices do império se haveria expiação para eles e que estes lhe responderam que a não conheciam. Valha a verdade confessar que também a não houvera para Nero, tanto assim que este não ousou assistir aos sagrados mistérios na Grécia. Contudo, os taurobólios estavam em moda e é muito difícil acreditarmos que um imperador todo-poderoso não tivesse podido achar um padreca que lhe quisesse celebrar um sacrifício expiatório. Talvez, até, seja ainda mais incrível que Constantino, ocupado pela guerra, dominado pela ambição e os seus projetos, cercado de bajuladores, tivesse tempo para sentir remorsos. Zósimo acrescenta que um padreca egípcio, vindo de Espanha e que frequentava a corte, lhe prometeu, cheio de ronha, a expiação de todos os seus crimes pela religião cristã. Suspeita-se que fosse Ózio, bispo de Córdova. Seja como for, o certo é que Constantino comungou com os cristãos, embora nunca tivesse sido catecúmeno, e adiou o batismo para a hora da sua morte. Mandou construir a cidade de Constantinopla, que veio a ser depois o centro do império e da religião cristã. Nessa altura, a Igreja tomou uma forma augusta. Deve-se registrar que, desde o ano de 314, ainda mesmo antes que Constantino viesse residir para a sua nova cidade, aqueles que no passado tinham perseguido os cristãos foram por estes punidos à conta das crueldades anteriores. Os cristãos atiraram a mulher de Maximiano no Oronto; degolaram todos os seus parentes; no Egito e na Palestina massacraram os magistrados que mais se tinham manifestado contra o cristianismo. A viúva e a filha de Diocleciano, que se tinham escondido na Tessalonica, foram ali reconhecidas e os seus corpos atirados ao mar. Talvez fosse para desejar que os cristãos tivessem escutado menos nas suas almas o espírito de vingança; mas Deus, que pune com justiça, quis que as mãos dos cristãos ficassem tingidas com o sangue dos seus antigos perseguidores, logo que esses mesmos cristãos tiveram liberdade de agir. Constantino convocou em Nicéia, sita defronte de Constantinopla, o primeiro concílio ecumênico, ao qual presidiu Ôzio, Ali se resolveu o grave problema que, por então, dividia a Igreja, a respeito da divindade de Jesus Cristo. Uns fundavam-se na opinião de Orígenes, que afirma no capítulo 6 contra Celso: "Fazemos as nossas preces a Deus por intermédio de Jesus, que se conserva entre as naturezas criadas e a natureza incriada, que nos traz a graça de seu Pai e leva as nossas orações ao grande e poderoso Deus, na qualidade de nosso pontífice". Apoiavam-se, também, em certos passos de São Paulo, alguns já aqui transcritos. Mas acima de tudo fundavam-se nestas palavras de Jesus Cristo: "O meu Pai é maior do que eu"; e consideravam Jesus como o primeiro nascido da criação, como a mais pura emanação do Ser supremo, mas não exatamente como Deus. Os outros, que eram ortodoxos, alegavam passos mais conformes à divindade de Jesus, como o seguinte: "O meu Pai e eu somos a mesma coisa", palavras essas que os adversários interpretavam com a seguinte significação: "O meu Pai e eu temos o mesmo desígnio, igual vontade; não tenho outros desejos que não sejam os de meu Pai". Alexandre, bispo de Alexandria, e nas pisadas deste, Atanásio, chefiavam os ortodoxos; e Eusébio, bispo de Nicomédia, seguido por dezessete bispos, o padre Ário e mais padres, militavam na facção oposta. De começo, a querela foi violenta, porque Santo Alexandre apodou os adversários de anticristos. Finalmente, após muita controvérsia, o Espírito Santo decretou assim no concílio, pela boca de duzentos e noventa e nove bispos contra dezoito: "Jesus é o Filho único de Deus, luz de luz, autêntico Deus de autêntico Deus, consubstancial ao Pai; e cremos também no Espírito Santo etc.". Foi esta a fórmula do concílio. Pelo exemplo dado, se percebe o modo como os bispos arrebatavam a vitória aos simples padrecas. Duas mil individualidades de segunda ordem partilhavam a doutrina de Ário, conforme se lê no relato de dois patriarcas de Alexandria que escreveram a crônica de Alexandria em árabe. Ário foi exilado por Constantino; mas Atanásio também o foi pouco depois, e Ário voltou a ser chamado para Constantinopla; mas São Macário com tal fervor rogou a Deus que fizesse morrer Ário, antes que este padre pudesse pôr os pés na catedral, que Deus atendeu favoravelmente súplica tão piedosa, mandando Ário desta para melhor: morreu quando se dirigia para a catedral, no ano de 330. O imperador Constantino despediu-se deste mundo em 337. Depositou o testamento nas mãos do padre ariano e apagou-se nos braços do chefe dos arianos, Eusébio, bispo de Nicomédia, apenas se tendo deixado batizar no leito de morte e deixando a Igreja triunfante, mas dividida. Os partidários de Atanásio e os apaniguados de Eusébio travaram uma guerra cruel; e, durante muito tempo ainda, aquilo a que se chama arianismo manteve-se firmemente em todas as províncias do império. Juliano, o filósofo, por cognome o Apostata, tentou, sem o conseguir, limitar essas divisões. O segundo concílio geral celebrou-se em Constantinopla, no ano de 381. Ali se explicou, muito bem explicado, o que o concílio de Nicéia não julgara oportuno e conveniente dizer sobre o Espírito Santo, e à fórmula de Nicéia acrescentaram que "o Espírito Santo é senhor vivificante que procede do Pai, e que é adorado e glorificado com o Pai e o Filho". Foi só no século IX que a Igreja latina determinou gradualmente que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Em 431, o terceiro concílio geral, celebrado em Éfeso, resolveu que Maria era em verdade mãe de Deus e que Jesus possuía duas naturezas numa só pessoa. Nestório, bispo de Constantinopla, o qual pretendia que a Virgem Santa fosse chamada mãe de Cristo, foi insultado de Judas pelo concílio e as duas naturezas foram mais tarde de novo confirmadas pelo concílio de Calcedônia. Passarei rapidamente pelos séculos seguintes, cujos episódios deste gênero são bastante conhecidos. Infelizmente, não houve uma só dessas disputas de teólogos que não degenerasse em cruéis e sangrentas guerras e a Igreja viu-se sempre obrigada a combater. Deus permitiu ainda, para pôr à prova a paciência dos fiéis, que os gregos e os latinos para sempre se separassem no século IX; permitiu, também, que no Ocidente houvesse vinte e nove cismas sanguinolentos, por causa da cátedra de Roma. Entretanto, quase toda a Igreja grega e toda a Igreja da África se tornaram escravas sob o jugo dos árabes e a seguir dos turcos, que ergueram a religião maometana sobre as ruínas do cristianismo. A Igreja romana subsistiu, mas sempre manchada pelo sangue de mais de seiscentos anos de discórdia entre o império do Ocidente e o sacerdócio. Mas até as próprias lutas a fizeram mais poderosa. Na Alemanha, os bispos e os abades transformaram-se todos em príncipes e os papas adquiriram pouco a pouco o domínio absoluto em Roma e num país de cem léguas. Assim, devemos concluir que Deus pôs à prova a sua Igreja pelas humilhações, as desordens, as lutas, os crimes e o esplendor das riquezas e do mando. Essa Igreja latina perdeu no século XVI metade da Alemanha, a Dinamarca, a Suécia, a Inglaterra, a Escócia, a Irlanda, a melhor parte da Suíça, a Holanda; ganhou mais terreno na América, pelas conquistas dos espanhóis do que aquele que perdera na Europa; mas tendo um território maior, possui muito menos súditos. A Providência Divina parecia destinar o Japão, o Sião, a Índia e a China a alinharem sob a obediência do papa, para o recompensar da Ásia Menor, da Síria, da Grécia, Egito, África, Rússia e dos outros Estados que perdera e de que já falamos. São Francisco Xavier, que levou o Santo Evangelho às Índias orientais e ao Japão, quando os portugueses ali foram à cata de especiarias, fez muitos milagres, todos atestados e bem atestados pelos reverendos padres jesuítas, milagres de que não é bonito alguém desconfiar; alguns até dizem que ressuscitou nove mortos; mas o reverendo padre Ribadeneira, na sua Flor dos Santos, mais modestamente limita-se a indicar quatro: já não é nada mau. A Providência conseguiu que em menos de cem anos se contassem por milhares os católicos romanos nas ilhas do Japão; mas o diabo, sempre atrás da porta, espalhou joio no meio dessa farta seara de trigo. Os cristãos travaram uma conspiração, seguida duma guerra civil, na qual foram exterminados até ao último em 1638. Depois disso, a nação japonesa fechou as portas a todos os estrangeiros, com exceção dos holandeses, que eram considerados mercadores e não cristãos e que nos primeiros tempos foram obrigados a caminhar sobre a cruz para obterem permissão de vender as mercadorias na prisão, onde os encerram quando desembarcam em Nagasáqui. A religião católica, apostólica e romana nos últimos tempos foi proscrita da China, mas de modo menos cruel. É bem verdade que os reverendos padres jesuítas não tinham ressuscitado nenhum morto na corte de Pequim; contentaram-se em ensinar astronomia, fundir canhões e ser manda rins. As suas infelizes disputas com os dominicanos e outros padrecas a tal ponto escandalizaram o grande imperador Yong-tcheng, que este monarca, que era a justiça e a bondade personificadas, foi bastante cego para não consentir que eles ensinassem por mais tempo a nossa santa religião, perante a qual nem os nossos missionários chegavam a um acordo. Expulsou-os a todos com uma gentileza paternal, fornecendo-lhes víveres e transportes até aos confins do seu império, radiante por os ver, enfim, pelas costas. A Ásia inteira, toda a África, metade da Europa, as hordas americanas selvagens, todas as terras austrais, um quinto do globo, em suma, continuaram na posse do demônio, para atestar as santas palavras: "Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos". Se vivendo na face da Terra, como pretendem alguns sábios, existem cerca de mil e seiscentos milhões de homens a Santa Igreja romana católica conta aproximadamente sessenta milhões de adeptos: o que sempre é um tanto mais que a vigésima sexta parte dos habitantes do mundo conhecido. D Dejeção Excrementos, sua relação com o corpo do homem, com suas ideias e suas paixões. Nunca o homem pode produzir pela arte o que a natureza faz. Acreditou fazer ouro e nunca pôde fazer sequer lama, embora esteja cheio dela. Mostraram-nos um pato artificial que andava, bicava, mas foi impossível fazê-la digerir e formar verdadeiras dejeções. Que arte poderia produzir uma matéria que, tendo sido preparada pelas glândulas salivares, em seguida pelo suco gástrico, depois pela bílis hepática e pelo suco pancreático, tendo fornecido no seu caminho um quilo que se transformou em sangue, toma-se finalmente esse composto fétido e pútrido que sai dos intestinos pela força surpreendente dos músculos? Sem dúvida alguma, há tanta engenhosidade e potência para assim formar essa dejeção que repugna a vista e para preparar-lhe os condutos que servem à sua saída, quanto para produzir a semente que gerou Alexandre, Virgílio e Newton, e os olhos com os quais Galileu viu novos céus. A descarga desses excrementos é necessária à vida como a nutrição. O mesmo artifício os prepara, os impele e os evacua, tanto no homem como nos animais. Não nos espantemos de que o homem, com todo seu orgulho, nasça entre a matéria fecal e a urina, uma vez que estas partes dele mesmo, mais ou menos elaboradas, mais frequentemente ou mais raramente expulsas, mais ou menos pútridas, decidem seu caráter e a maioria das ações de sua vida. Sua merda começa a formar-se no duodeno quando os alimentos saem do estômago e impregnam-se com a bílis do fígado. Se tiver uma diarreia, fica lânguido e doce, falta-lhe força para ser maldoso. Se estiver constipado, os sais e o enxofre de sua merda entram no quilo, trazendo a acrimônia para seu sangue, fornecendo frequentemente a seu cérebro ideias atrozes. Tal homem (e o número é grande) só comete crimes causados pela acrimônia de seu sangue, vinda unicamente dos excrementos que alteram seu sangue. Oh! Homem, que ousas dizer-te à imagem de Deus! Dize-me se Deus come e se tem tripas! Tu, imagem de Deus! E teu coração, tua alma, dependendo de uma evacuação! Tu, imagem de Deus sobre tua privada! O primeiro a dizer essa impertinência proferiu-a por ser extremamente idiota ou por ser extremamente orgulhoso? Mais de um pensador (como vereis alhures) duvidou que uma alma imaterial e imortal pudesse, vinda não sei de onde, alojar-se por tão pouco tempo entre a matéria fecal e a urina. Que temos nós, dizem, acima dos animais? Mais ideias, mais memória, a palavra e duas mãos destras. Quem no-las deu? Aquele que dá asas aos pássaros e escamas aos peixes. Se somos suas criaturas como podemos ser sua imagem? Respondemos a esses filósofos que só somos a imagem de Deus pelo pensamento. Respondem-nos que o pensamento é um dom de Deus, que não é sua pintura e que não somos a imagem de Deus de maneira alguma. Nós os deixamos falar e os enviamos aos senhores da Sorbona. Muitos animais comem nossos excrementos e nós comemos os de muitos deles, os dos tordos, das galinholas, dos hortulanos, das cotovias. Vede no artigo "Ezequiel" por que o Senhor lhe ordenou que comesse merda no seu pão, limitando-se daí por diante ao excremento da vaca. Conhecemos o tesoureiro Paparel, que comia as dejeções dos lactentes, entretanto, este caso é raro e gosto não se discute. Delitos Locais Podeis percorrer a terra inteira: por todo o lado haveis de verificar que o roubo, o assassinato, o adultério, a calúnia são considerados os delitos que a sociedade condena e reprime; mas os atos tolerados na Inglaterra e condenados na Itália devem ser punidos na Itália como um atentado contra toda a Humanidade? É a isto que chamo delito local. Tudo aquilo que é criminoso apenas no espaço limitado por algumas montanhas, ou entre dois rios, não há de então exigir mais indulgência dos juízes do que esses outros atentados, abomináveis em todas as regiões? O juiz não deverá dizer consigo: "Ousaria punir em Ragusa o que condeno no Loreto?" E esta reflexão não terá o condão de suavizar, no seu íntimo, a dureza que foi levado a adquirir no longo exercício do seu ministério? Todos sabemos o que eram as quermesses da Flandres no século passado: a indecência atingia ali um grau tão elevado que podia revoltar os olhos das pessoas desacostumadas de tais espetáculos. Nalgumas cidades festejavam o Natal do seguinte modo: primeiro, aparecia um rapaz seminu, de asas nas costas; rezava a Ave-Maria a uma moça que lhe respondia fiat, e o anjo beijava-a na boca; a seguir, um garoto metido dentro dum galo de cartão, muito grande, gritava, imitando o cantar do galináceo: Puer natus est nobis. Um boi anafado, mugindo, dizia: ubi; uma ovelhinha balia Belém. Um burro zurrava hihanus, que queria dizer eamus; encerrava o cortejo uma longa procissão, precedida de quatro orates que agitavam guizos e chocalhos. Ainda hoje se encontram vestígios destas devoções populares, as quais, entre os povos mais civilizados, seriam consideradas profanações. Uma vez em Lovaina, um suíço de maus fígados, e se calhar ainda muito mais embriagado que os figurantes que faziam de boi e de burro, meteu-se com eles: choveu grossa pancadaria, quiseram enforcar o suíço, que escapou por um triz. Esse homenzinho travou violenta discussão em Haia, na Holanda, por ali ter ousado defender, com galhardia, o partido de Barneveldt contra um fanático gomarista. Em Amsterdã foi preso por ter dito que os padres são o flagelo da Humanidade e a origem de todas as nossas desgraças. "Homessa!", espantava-se o bom do homem, "se uma pessoa acredita que as boas ações ajudam à nossa salvação, metem-na na cadeia; se a gente desata a rir de um galo e de um burro, arrisca-se a ficar dependurado na forca." Por muito burlesca que seja esta anedota, demonstra-nos claramente que se pode ser condenado à forca num ou dois pontos de nosso hemisfério e, no entanto, consideram-nos inocentes no resto do mundo. Democracia "O pior dos Estados é o Estado popular", assim se exprime Cina diante de Augusto. Porém, Máximo também sustenta que "o pior dos Estados é o Estado monárquico." Bayle, tendo mais de uma vez sustentado no seu Dicionário o pró e o contra, no verbete PÉRICLES traça um retrato muito hediondo da democracia e sobretudo daquela de Atenas. Um republicano, amante da democracia e um de vossos fazedores de perguntas, envia-nos sua refutação de Bayle e sua apologia de Atenas. Exporemos suas razões. É privilégio de qualquer um que escreve julgar os vivos e os mortos, porém nós próprios somos julgados por outros, que o serão por sua vez, e de século em século todas as sentenças são reformadas. Bayle, portanto, após alguns lugares-comuns, diz estas palavras: "Em vão se procuraria na história de Macedônia tanta tirania como a que está presente na história de Atenas". Talvez Bayle estivesse descontente com a Holanda, quando assim escrevia, e provavelmente meu republicano, que o refuta, está contente, no momento, com sua cidadezinha democrática. É difícil pesar numa balança bem justa as iniquidades da república de Atenas e aquelas da corte da Macedônia. Reprovamos, ainda hoje, aos atenienses o banimento de Cimão, Aristides, Temístocles, Alcibíades, os julgamentos de morte feitos contra Focião e contra Sócrates, julgamentos que se assemelham aos de alguns dos nossos tribunais, absurdos e cruéis. Enfim, o que não perdoamos aos atenienses é a morte de seus seis generais vitoriosos, condenados por não terem tido tempo de enterrar seus mortos após a vitória, porque foram impedidos por uma tempestade. Tal sentença é ao mesmo tempo tão ridícula e tão bárbara, tão supersticiosa e ingrata que não são inépcias mais atrozes as sentenças pronunciadas pela Inquisição contra Urbano Grandier, contra a Marechala d'Ancre, contra Morin e contra tantos feiticeiros. Em vão tenta-se desculpar os atenienses dizendo-se que, segundo Homero, acreditavam que as almas dos mortos permaneceriam errantes se não recebessem as honras da sepultura ou da pira. Uma tolice não desculpa uma barbaria. Que grande mal: as almas de alguns gregos passeando uma ou duas semanas à beira-mar! Mal é lançar os vivos aos carrascos! Vivos que vos ganharam uma batalha e a quem deveríeis agradecer de joelhos! Eis, portanto, os atenienses convictos de terem sido os juízes mais tolos e mais bárbaros da terra. Mas, é preciso agora colocar na balança os crimes da corte da Macedônia. Ver-se-á que esta ultrapassa prodigiosamente Atenas em matéria de tirania e de perversidade. Comumente não há comparação alguma a fazer entre os crimes dos grandes, sempre ambiciosos, e os crimes do povo, que somente quer e sempre quis a liberdade e a igualdade. Estes dois sentimentos, liberdade e igualdade, não conduzem diretamente à calúnia, à rapina, ao assassinato, ao envenenamento, à devastação das terras dos seus vizinhos, etc., porém, a grandeza ambiciosa e o desejo imoderado do poder provocam todos esses crimes em todos os tempos e em todos os lugares. Só se vê nessa Macedônia, cuja virtude Bayle opõe à de Atenas, um tecido de crimes espantosos durante duzentos anos seguidos. Ptolomeu, tio de Alexandre, o Grande, assassina seu irmão Alexandre para usurpar o reino. Filipe, seu irmão, passa sua vida enganando e violando seus juramentos e acaba sendo apunhalado por Pausânias. Olímpio manda jogar a rainha Cleópatra e seu filho numa cuba de bronze incandescente. Assassina Arideu. Antígono assassina Êumenes. Antígono Gonatas, seu filho, envenena o governador da cidadela de Corinto, esposa sua viúva, expulsa-a e apodera-se da cidadela. Filipe, seu neto, envenena Demétrio, enxovalhando com crimes toda a Macedônia. Perseu mata sua mulher com suas próprias mãos e envenena seu irmão. Essas perfídias e essas barbarias são famosas na história. Assim, portanto, durante dois séculos o furor despótico toma a Macedônia teatro de todos os crimes; no mesmo espaço de tempo vereis o governo popular de Atenas enxovalhado somente com cinco ou seis iniquidades judiciárias e cinco ou seis julgamentos atrozes, dos quais o povo sempre se arrependeu e dos quais sempre se retratou. Pediu perdão a Sócrates após sua morte e ergueu-lhe o pequeno templo de Socrateion. Pediu perdão a Focião e ergueu-lhe uma estátua. Pediu perdão aos seis generais condenados tão ridiculamente e tão indignamente executados. Colocou a ferros o principal acusador, que escapou à vingança pública com dificuldade. O povo ateniense era, portanto, naturalmente tão bom quanto leviano. Em que Estado despótico alguma vez chorou-se a injustiça de suas sentenças precipitadas? Desta vez, Bayle errou e assim meu republicano está com a razão. O governo popular é, portanto, por si mesmo menos iníquo, menos abominável que o poder tirânico. O grande vício da democracia não é certamente a tirania ou a crueldade. Houve republicanos montanheses, selvagens e ferozes, mas não foi o espírito republicano que os fez assim, mas a natureza. A América Setentrional estava toda republicanizada, e seus habitantes eram ursos. O verdadeiro vício de uma república civilizada aparece na fábula turca do dragão com várias cabeças e do dragão com várias caudas. A multiplicidade de cabeças se prejudica. A multiplicidade de caudas obedece a uma só cabeça, mas esta quer devorar tudo. A democracia só parece convir a um país muito pequeno, e ainda é preciso que esteja situado favoravelmente. Por menor que seja, cometerá muitos erros porque será composta de homens. A discórdia reinará como num convento de monges, mas não haverá nem noite de São Bartolomeu, nem massacres da Irlanda, nem vésperas sicilianas, nem Inquisição, nem condenação às galés por ter pego água do mar sem pagar, a menos que se suponha uma república composta de diabos e jogada num canto do inferno. Após ter tomado o partido de meu suíço contra o ambidestro Bayle, acrescentarei: Que os atenienses foram guerreiros como os suíços e polidos como os parisienses sob Luís XIV. Que triunfaram em todas as artes que requerem o gênio e a mão, como os florentinos do tempo dos Médicis. Que foram os mestres dos romanos nas ciências e na eloquência no próprio tempo de Cícero. Que esse pequeno povo, tendo apenas um território, hoje reduzido a uma tropa de escravos ignorantes (cem vezes menos numerosos do que os judeus), e tendo perdido até seu nome, contudo leva a melhor sobre o Império Romano por sua antiga reputação, triunfa dos séculos e da escravidão. A Europa viu uma república dez vezes ainda menor do que Atenas, atraindo o olhar europeu durante cento e cinquenta anos com seu nome colocado ao lado do de Roma, no tempo em que esta ainda comandava os reis, condenava um Henrique, soberano da França, absolvia e chicoteava outro Henrique, primeiro homem de seu século; no tempo em que Veneza conservava seu antigo esplendor, e que a nova república das Sete Províncias Unidas espantava a Europa e as Índias com seu estabelecimento e com seu comércio. Esse formigueiro imperceptível não pôde ser esmagado pelo rei demônio do Meio-Dia e dominador dos dois mundos, nem pelas intrigas do Vaticano, que faziam mover as molas de metade da Europa. Resistiu pelas palavras e pelas armas, e com a ajuda de um Picard, que escreveu, e de um pequeno número de suíços, que combateu, afirmou-se e triunfou, podendo dizer: "Roma e eu". Dobrou todos os espíritos, divididos entre os ricos pontífices sucessores de Cipião, Romanos rerum dominos, e os pobres habitantes de um pedaço de terra ignorado, terra da pobreza e dos papudos. Tratava-se, na época, de saber como a Europa pensaria sobre questões incompreensíveis para todos. Era a guerra do espírito humano. Teve seus Calvinos, seus Bezes, seus Turretinos, para os Demóstenes, os Platões, e os Aristóteles. Tendo sido, enfim, reconhecido o absurdo da maioria das questões controvertidas, a pequena república voltou-se para aquilo que parecia sólido: a aquisição de riquezas. O sistema de Law, mais quimérico e menos funesto que o dos supralapsários e o dos infralapsários, empenhou na aritmética os que não podiam mais fazer um nome em Teomoriânica. Tornaram-se ricos e não foram mais nada. Acredita-se que atualmente haja república somente na Europa. Engano-me ou já disse isto em algum lugar, porém foi uma grande inadvertência. Os espanhóis encontraram na América a república de Tlaxcala, muito bem estabelecida. Tudo que não foi subjugado naquela parte do mundo ainda é república. Havia no continente inteiro, quando foi descoberto, somente dois reinados, o que bem poderia provar que o governo republicano é o mais natural. É preciso ter-se refinado muito e ter passado por muitas provas para submeter-se ao governo de um só. Na África, os hotentotes, os cafres e muitas populações negras são democracias. Pretende-se que os países onde se vendem mais negros são governados por reis. Trípoli, Túnis, Argel, são repúblicas de soldados e de piratas. Hoje existem semelhantes na Índia. Os maratas, muitas hordas de patanos, os seiks, não possuem reis; elegem chefes quando vão pilhar. Várias sociedades tártaras ainda permanecem assim. Mesmo o Império Turco foi durante muito tempo uma república de janízaros, que frequentemente estrangulavam seu sultão, quando este não os mandava dizimar. A todo momento se pergunta se um governo republicano é preferível ao de um rei. A disputa termina sempre convindo que é muito difícil governar os homens. Os judeus tiveram por senhor o próprio Deus; vede o que lhes aconteceu: foram quase sempre vencidos e escravizados. Não achais que hoje fazem bela figura? Destino De todos os livros que até nós chegaram o mais antigo era o de Homero: ai ficamos a saber os costumes da Antiguidade profana, heróis grosseiros e brutais concebidos à imagem do homem; mas, é também ali que se encontram as origens da filosofia e, principalmente, a ideia do destino, que é o senhor dos deuses tal como os deuses são os senhores do mundo. Júpiter em vão tentou salvar Heitor; consulta os fados; pesa numa balança os destinos de Heitor e Aquiles; logo fica a saber que o troiano há de ser infalivelmente morto pelo grego; não poderá evitá-lo; e, desde esse momento, Apolo, o gênio guardião de Heitor, é obrigado a abandoná-lo (Ilíada, canto 22). Com frequência Homero apresenta no seu poema ideias completamente opostas, seguindo o privilégio da Antiguidade; mas, seja como for, é nele que, pela primeira vez, achamos a noção do destino. Estava, pois, muito em voga no seu tempo. Entre o povo judeu,. só muito mais tarde os fariseus adotaram a ideia do destino; porque esses fariseus, que foram os primeiros letrados do povo judaico, eram muito recentes. Em Alexandria tinham misturado uma parte dos dogmas estoicos com antigas ideias judaicas. São Jerônimo pretende, até, que a seita dos fariseus não é muito anterior à nossa era vulgar. Nunca os filósofos precisaram de Homero ou dos fariseus para estarem convencidos de que tudo obedece a leis imutáveis, de que tudo é interdependente, de que tudo tem um efeito necessário. Ou o mundo subsiste pela própria natureza, pelas suas leis físicas, ou um Ser Supremo o formou de acordo com leis supremas: tanto num caso como noutro, essas leis são imutáveis; quer num caso como noutro, tudo é necessário; os corpos graves tendem a cair no centro da Terra, sem poderem pairar na atmosfera. As pereiras nunca podem dar ananases. O instinto de um épagneul não pode ser o mesmo que o duma avestruz. Está tudo determinado, interdependente, limitado. O homem só pode ter certo número de dentes, de cabelos e ideias; e chega a uma idade em que forçosamente os dentes, cabelos e ideias lhe começam a faltar. É contraditório que aquilo que ontem aconteceu não tenha acontecido, que aquilo que acontece hoje não aconteça; é tão contraditório como que aquilo que deve acontecer possa não chegar a acontecer. Se pudesses modificar o destino duma mosca, nenhuma razão havia que te pudesse impedir de o fazer e determinar o destino de todas as outras moscas da Natureza inteira; e, afinal de contas, tornar-te-ias mais poderoso que Deus. Há patetas que dizem: o médico salvou a minha tia de uma doença mortal, e conseguiu que ela vivesse mais dez anos do que devia. Outros, ainda, armando em inteligentes e capazes de tudo, afirmam: o homem prudente cria o seu próprio destino. Nullum numen abest, si sit prudentia, sed te Nos facimus, fortuna, deam, coeloque locamus. A fortuna é nada; em vão a veneram. A prudência é o deus que devemos implorar. Muitas vezes, porém, o homem prudente sucumbe ao peso do destino, em vez de dirigi-lo; é o destino que faz prudentes os homens. Certos políticos garantem que, se Cromwell, Ludlow, Ireton e uma dúzia doutros parlamentares tivessem sido assassinados oito dias antes da cabeça de Carlos I ser cortada, o rei teria podido viver e vinha a morrer muito descansado na cama: têm toda a razão; e podiam acrescentar, ainda, que, se a Inglaterra inteira tivesse sido engolida pelas águas do mar, esse monarca não teria perecido no cadafalso, perto de Whitehatl ou sala branca; mas as coisas estavam dispostas de maneira que Carlos I ficasse com o pescoço cortado. O cardeal d'Ossat com certeza que era mais prudente que um maluqinho de Rilha-Foles; mas, não é evidente que os órgãos mentais do sábio e sagaz d'Ossat seriam constituídos de modo mui diverso do que os do doidinho, tal como os órgãos duma raposa diferem dos duma cegonha ou duma cotovia? Sim, sim, o médico salvou a tua tia, mas por certo não contrariou as leis da Natureza: obedeceu-lhes. É claro que a tua tia não podia evitar que, em determinada altura, certa doença a atacasse, que o médico não podia estar algures senão na cidade onde então se encontrava, que a tua tia havia de mandar chamá-lo, que ele devia receitar-lhe os remédios que a curaram. Um camponês está convencido que foi por acaso que caiu granizo na sua seara; mas o filósofo sabe que o acaso não existe, e que era impossível, tal como está constituído o mundo, que naquele dia não caísse granizo naquele local. Há pessoas que ficam apavoradas com uma verdade tão simples e apenas admitem metade dela, como aqueles devedores que entregam metade aos credores e pedem uma moratória para pagarem o resto da dívida. Afirmam os tais que há acontecimentos necessários e outros que o não são. Havia de ser coisa engraçada essa de uma parte do mundo ser regulada por leis e outra não; que uma parte daquilo que acontece tenha de acontecer e outra parte daquilo que acontece não deva acontecer. Mas quando se analisa mais de perto repara-se que a doutrina contrária à doutrina que admite o destino é absurda; mas há muitas pessoas condenadas a raciocinar mal, outras a não raciocinarem nada e outras, ainda, a perseguirem como feras aqueles que raciocinam. E há pessoas que vos dizem: "Não acrediteis no fatalismo; porque, se tudo vos parecer inevitável, não fareis mais nada, tomar-vos-eis indiferentes de todo, não dareis apreço às riquezas, nem às honrarias, nem aos louvores; não haveis de querer adquirir nada, acreditareis que não tendes mérito nem poder algum; nenhum dos vossos talentos será cultivado, tudo perecerá na apatia". Ora, evitai esses temores, cavalheiros, porque sempre havemos de ter paixões e preconceitos, já que o nosso destino é sermos dominados pelos preconceitos e paixões; demais, sabemos que não depende de nós termos muito mérito e grandes talentos, tal como não depende de nós possuirmos bonitos cabelos anelados e as mãos esguias e finas; ficamos convencidos de que de nada podemos ser vaidosos e, contudo, a vaidade sempre há de existir. Eu cá tenho forçosamente a vaidade de escrever isto; e tu tens a paixão de me condenar: ambos somos igualmente idiotas, ambos somos de igual modo joguetes do destino. A tua natureza leva-te a praticar o mal, a minha é de amar a verdade e publicá-la, apesar da tua oposição e perseguição. O mocho que se alimenta de ratos no pardieiro onde vive disse um dia ao rouxinol: "Para de cantar de sob essas belas ramadas, vem até aqui à minha toca, para eu te devorar"; e o rouxinol respondeu: "Nasci para cantar aqui onde estou, e para assim me divertir à tua custa". Perguntais-me agora o que acontecerá à liberdade. Não vos percebo. Não sei que liberdade é essa de que falais; há tanto, tanto tempo que divagais acerca da natureza dela que, é mais do que certo, nem a conheceis. Se quiserdes, ou melhor, se puderdes examinar calmamente comigo o que a liberdade é, tende a bondade de passar à letra L. Deus Sob o império de Arcádio, Logomaco, teologal de Constantinopla, foi à Cítia e deteve-se no sopé do Cáucaso, nas férteis planuras de Zefirim, já nas fronteiras da Cólquida. O bom velhote Dondindac estava na sua grande sala baixa, entre o aprisco e a vasta granja; ajoelhado, e com ele também ajoelhados estavam a mulher, cinco filhos e outras tantas filhas, todos entoavam louvores a Deus, após um ligeiro repasto. - "Que fazes aí, idólatra?" perguntou-lhe Logomaco. - "Não sou idólatra", respondeu Dondindac. - "Hás de sê-lo, por força, pois és um cita e não um grego. Ora, dize-me cá, que entoavas tu nesse teu bárbaro linguajar de cita?" - "Todas as línguas são iguais, aos ouvidos de Deus", respondeu o cita; "louvávamos o Senhor, em nossos hinos." - "Que coisa estapafúrdia", admirou-se o teologal. "Uma família cita que reza a Deus sem nunca ter sido ensinada por nós!" E, sem mais aquela, iniciou uma conversa com o citado Dondindac, porque o teologal - valha-nos isso! - sabia um poucochinho da língua cita e o outro - ainda bem! - sabia seu naco de grego. Esta instrutiva palestra, meio em cita meio em grego, foi achada num manuscrito que se conserva (quase por milagre) na biblioteca de Constantinopla. Foi como se segue: LOGOMACO Ora, vamos lá a ver se sabes o teu catecismo. Por que rezas a Deus? DONDINDAC É porque é justo adorar o Ser Supremo, que nos deu tudo quanto possuímos. LOGOMACO Não está nada mal observado, não senhor, para um bárbaro como tu! E que lhe pedes nas tuas orações? DONDINDAC Agradeço-lhe todos os bens de que desfruto e também os males de que sofro; mas não lhe peço nada: Ele sabe melhor do que nós aquilo de que carecemos, e não é só por isso: temia pedir-lhe bom tempo enquanto o meu vizinho era muito capaz de lhe estar a pedir chuva. LOGOMACO Ah! Já estava mesmo à espera de que me dissesses qualquer tolice. Vamos recomeçar, mas com mais elevação. Ora dize-me lá, bárbaro duma figa, quem te disse que Deus existe, sim, que há um Deus? DONDINDAC A Natureza inteira. LOGOMACO Não basta. Que ideia fazes tu de Deus? DONDINDAC A ideia de que é o meu criador, o meu senhor, que me há de recompensar se eu praticar o bem e castigar se fizer o mal. LOGOMACO Tudo o que dizes são frioleiras e lugares comuns! Vamos ao essencial, que é o que importa. Deus é infinito secundum quid, ou segundo a essência? DONDINDAC Não percebo cá disso. LOGOMACO Forte besta! Estúpido! Deus está nalgum lugar, ou fora de qualquer lugar, ou em toda a parte? DONDINDAC Não sei, não sei... Será como quiserdes. LOGOMACO Estúpido! Ignorante! Pode fazer com que o que foi não foi, e que um pau não tenha dois bicos? Vê o futuro como futuro ou como presente? Como procede Deus para fazer sair o ser do nada ou para aniquilar o ser? DONDINDAC Nunca pensei nisso... LOGOMACO Oh! Como és lorpa! Seja, há que ser humilde, ter a noção das distâncias. . . Dize-me cá, amigo, julgas que a matéria pode ser eterna? DONDINDAC E que me importa a mim que seja eterna ou não? Eu cá não tenciono existir eternamente! Deus sempre foi o meu senhor; deu-me a noção de justiça, hei de obedecer-lhe; não pretendo de modo algum ser filósofo, quero ser apenas um homem. LOGOMACO Isto, com pinhas tão duras, dá um trabalhão! Bem, vamos lá a ver se, devagarzinho... por exemplo: quem é Deus? DONDINDAC Meu rei meu juiz e meu pai. LOGOMACO Não é nada disso que te estou a perguntar. Qual é a sua natureza? DONDINDAC Ser poderoso e bom. LOGOMACO Mas é corporal ou espiritual? DONDIDAC E como quereis que o saiba?! LOGOMACO O quê? ! Não sabes ao menos o que é um espírito? DONDINDAC Nem pouco nem muito! E de que é que isso me servia? Se o soubesse, seria mais justo? Seria melhor marido, melhor pai, melhor patrão, melhor cidadão? LOGOMACO Bem. Já estou a ver que tenho de te explicar duma vez por todas, tintim por tintim, o que é um espírito. Olha: um espírito é... é... assim uma coisa... é... Pra outra vez te digo. DONDINDAC O meu medo é que me direis não aquilo que é mas o que não é. Agora, permiti-me que seja eu quem vos faça uma perguntinha. Aqui já há muito tempo, entrei num templo dos vossos. Explicai-me: por que pintais Deus com umas grandes barbaças? LOGOMACO Essa pergunta é muito difícil e necessita de muitas instruções preliminares. DONDINDAC Antes de receber as vossas instruções, tenho de vos contar um caso que me aconteceu um dia destes. Tinha acabado mesmo nessa altura de construir um caramanchão num canto do jardim; e ouvi uma toupeira a falar com um escaravelho. Dizia ela assim: - "Ora, aqui está uma linda obra; isto é que devia ser uma toupeira poderosa, alguma nova-rica! que mandou erguer este edifício". - "Falais assim por troça", respondeu o escaravelho, "pois foi um amigo meu, um escaravelho cheio de talento, aliás, que foi o arquiteto disto tudo." Desde então, resolvi que nunca mais havia de discutir fosse com quem fosse. Direito Direito das gentes, direito natural, direito público. SEÇÃO PRIMEIRA Não conheço nada melhor a esse respeito do que os versos de Ariosto no canto XLIV (st 2): "Reis, imperadores e sucessores de Pedro, Em nome de Deus assinais um belo Tratado: Amanhã as gentes guerrearão. Por quê? É que a piedade, A boa fé, quase não os atormenta E malgrado São Tiago e São Mateus O interesse é o seu único Deus”. Se houvesse somente dois homens sobre a terra e estivessem juntos, como viveriam? Ajudar-se-iam, prejudicar-se-iam, acariciar-se-iam, injuriar-se-iam, combater-se-iam, reconciliar-se-iam, não poderiam viver um sem o outro, nem um com o outro. Fariam como fazem todos os homens hoje. Têm o dom do raciocínio, sim, mas possuem também o dom do instinto e sempre sentirão, raciocinarão e agirão como foram destinados pela natureza. Um Deus não veio sobre nosso globo para reunir o gênero humano e dizer-lhe: "Ordeno aos negros e aos cafres que andem nus e comam insetos”. "Ordeno aos samoiedos que se vistam com peles de rena e comam sua carne insípida com peixe seco e fétido, e sem sal. Os tártaros do Tibete acreditarão em tudo que o dalai-lama lhes disser, e os japoneses, em tudo que lhes disser o dairi”. "Os árabes não comerão carne de porco e os vestfalianos só se nutrirão com ela”. "Tirarei uma linha do monte Cáucaso até o Egito e do Egito ao monte Atlas: todos os que habitarem a oriente dessa linha poderão desposar várias mulheres e os que estiverem a ocidente só terão uma”. "Se em direção ao golfo Adriático, desde Zara até a Polesina, ou em direção aos pântanos do Reno e do Mosela, ou em direção ao monte Jura ou mesmo na ilha de Álbion ou no território dos sármatas, ou dos escandinavos, qualquer pessoa resolver tornar um único homem despótico, ou pretender ele próprio sê-lo, que se lhe corte rapidamente o pescoço, até que o destino e eu tenhamos ordenado de outra maneira”. "Se qualquer pessoa tiver a insolência e a demência de querer estabelecer ou restabelecer uma grande assembleia de homens livres sobre o Mançanares ou sobre a Propôntida, que seja empalado e arrastado por quatro cavalos”. "Qualquer um que fizer suas contas seguindo uma determinada regra aritmética em Constantinopla, Cairo, Tafilelt, Delhi, Andrinopla, será imediatamente empalado sem se formar processo; e qualquer um que ousar contar segundo outra regra em Roma, Lisboa, Madri, Champanha, Picardia e em direção ao Danúbio, desde Ulm até Belgrado, será devotamente queimado sob o canto dos Misereres”. "O que será justo às margens do Loire será injusto às margens do Tâmisa, pois minhas leis são universais, etc., etc..." É preciso confessar não termos prova clara, nem mesmo no Diário Cristão, nem na Chave do Gabinete dos Príncipes, de que um Deus tenha vindo à terra promulgar esse direito público, que, no entanto, existe. É seguido à risca tal como acabamos de enunciá-lo e compilaram-se, compilaram-se, compilaram-se belos comentários sobre esse direito das nações, embora tais comentários nunca tivessem rendido um escudo sequer aos que foram arruinados pela guerra, pelos editos ou pelos empregados das herdades. Essas compilações parecem-se muito com o Casos de Consciência, de Pontas. Eis um caso da lei para examinar: é proibido matar. Todo assassino é punido, a menos que tenha matado em companhia de muitos e ao som de trombetas. É a regra. No tempo em que havia ainda antropófagos nas florestas de Ardenas, um bom aldeão encontra um antropófago que levava uma criança para comer. O aldeão, tomado de piedade, mata o comedor de crianças e livra a prisioneira, que logo foge. Dois passantes veem de longe o bom homem e o acusam diante do preboste de ter cometido um assassinato na estrada. O corpo de delito estava sob os olhos do juiz, duas testemunhas falavam, devia-se pagar cem escudos ao juiz pelo seu tempo, a lei era precisa. O aldeão foi enforcado ali mesmo, por ter feito o que Hercules, Teseu, Rolando e Amadis teriam feito em seu lugar. Dever-se-ia enforcar o preboste por seguir a Lei à risca? Escreveram-se mil volumes para resolver casos dessa espécie. Puffendorf estabeleceu inicialmente a existência de seres morais. "São", diz ele, "certos modos que os seres inteligentes unem às coisas materiais, ou aos movimentos físicos, tendo em vista dirigir ou restringir a liberdade das ações voluntárias do homem, para colocar alguma ordem, alguma conveniência e alguma beleza na vida humana”. Em seguida; para dar ideia clara do justo e do injusto aos suecos e aos alemães, nota "que há duas espécies de espaço, um a respeito do qual se diz que as coisas estão em algum lugar, por exemplo, aqui, ali; outro, a respeito do qual dizemos que as coisas existem num certo tempo, por exemplo, hoje, ontem, amanhã. Concebemos, assim, duas espécies de estados morais, um que marca qualquer situação moral e que tem alguma conformidade com o lugar natural; outro, que designa certo tempo, enquanto provenha dele qualquer efeito moral, etc.", Não é tudo. Puffendorf distingue muito curiosamente os modos morais simples e os modos de estima, as qualidades formais e as qualidades operativas. As qualidades formais são simples atributos, mas as operativas devem dividir-se cuidadosamente em originais e derivadas. Entretanto Barbeyrac comentou essas belas coisas que são ensinadas nas universidades. Nestas, as opiniões estão divididas entre Grotius e Puffendorf sobre questões dessa importância. Acreditai-me, lede os Oficias, de Cícero. SEÇÃO SEGUNDA Nada contribuirá mais para tornar um espírito falso, obscuro, confuso, incerto, do que a leitura de Grotius, de Puffendorf e de quase todos os comentaristas do direito público. Nunca se deve fazer um mal na esperança de um bem, diz a virtude, e ninguém escuta. É permitido guerrear contra uma potência que se torna muito preponderante, diz o Espírito das Leis. Quando os direitos devem ser constatados pela prescrição? Neste ponto, os publicistas chamam em seu socorro o direito divino e o direito humano. Os teólogos entram no jogo. Abraão e sua posteridade, dizem, tinham direito sobre a terra de Canaã, porque viajaram por ela e foi-lhes dada por Deus, numa aparição. Contudo, nossos sábios mestres discutem há quinhentos e quarenta e sete anos para saber, de acordo com a Vulgata, de quem é o direito: se de Abraão, que compra uma cripta no local, ou de Josué, que saqueia uma parte. Não importa, seu direito era claro e limpo. Mas, e a prescrição? Sem prescrição. Mas, o que se passou antigamente na Palestina deve servir de regra à Alemanha e à Itália? ... Sim, pois Ele disse que assim deveria ser. Seja senhores, não discuto contra vós, Deus me livre! Os descendentes de Atila estabeleceram-se, segundo dizem, na Hungria. Em que época os antigos habitantes começaram a ter a consciência de serem servos dos descendentes de Átila? Nossos doutores, que escreveram sobre a guerra e a paz, são bem profundos. A crê-los, tudo pertence de direito ao soberano para o qual escrevem. Não pode alienar nada do seu domínio. O imperador deve possuir Roma, Itália, e França, tal era a opinião de Bartole. Primeiramente, porque o imperador intitula-se rei dos romanos; em segundo lugar, porque o arcebispo de Colônia é chanceler da Itália e o arcebispo de Trevas é chanceler das Gálias. Mais ainda, o imperador da Alemanha traz um globo dourado em sua sagração, portanto é senhor do globo da terra. Em Roma, não há padre que não tenha aprendido em seu curso de teologia que o papa deve ser soberano do mundo, pois está escrito que foi dito a Simão, filho de Jonas da Galiléia, apelidado Pedro: "És Pedro e sobre esta pedra construirei minha assembleia". Em vão dizia-se a Gregório VII: "Não se trata dos homens, trata-se apenas do reino celeste". "Maldito condenado", respondia, "trata-se do terrestre." E se pudesse, vos condenaria e enforcaria. Espíritos ainda mais profundos fortificam esse raciocínio com um argumento sem réplica. Aquele de quem o bispo de Roma se diz vigário declarou que seu reino não é deste mundo, portanto este mundo deve pertencer ao vigário, desde que o Senhor renunciou a ele. Quem deve vencer: o gênero humano ou as decretais? As decretais, claro! Pergunta-se, em seguida, se há alguma justiça no massacre de dez ou doze milhões de homens desarmados na América. Responde-se que não há nada mais justo e mais santo, já que não eram católicos, apostólicos e romanos. Não faz um século, em todas as declarações de guerra dos príncipes cristãos, a ordem de ataque imediato era sempre dada a todos os súditos do príncipe aos quais a guerra era anunciada por um arauto em cota de malhas e mangas pendentes. Assim, uma vez feito o anúncio, se um auvernhate encontrasse uma alemã, era obrigado a matá-la, salvo violá-la antes ou depois. Aqui está uma questão bastante espinhosa nas escolas: se toda gente estiver comandada para ir matar e fazer-se matar na fronteira, os suábios, estando persuadidos de que a guerra ordenada é a mais horrível injustiça, deverão ir? Alguns doutores diziam sim, alguns justos diziam não. Que diziam os políticos? Quando já se discutira muito sobre essas grandes questões preliminares, que, por sinal, nunca embaraçaram nenhum soberano, nem embaraçarão, foi preciso discutir os direitos respectivos de cinquenta ou sessenta famílias do condado de Alost, da cidade de Orchias, do ducado de Berg e de Juliers, do condado de Toumai, do de Nice, do de todas as fronteiras de todas as províncias. O mais fraco sempre perdeu a causa. Durante cem anos discutiu-se com veemência se os duques de Orléans, Luís XII e Francisco I, tinham direito ao ducado de Milão, em vista do contrato de casamento de Valentina de Milão, neta bastarda de um bravo camponês chamado Jacob Muzio. O processo foi julgado pela batalha de Pávia. Os duques de Sabóia, Lorena e Toscana reclamavam o ducado Milanês, porém, acreditava-se que havia no Friul uma família empobrecida de gentis-homens saída em linha reta de Alboim, rei dos lombardos, que tinha um direito bem anterior. Os publicistas escreveram grossos livros sobre os direitos ao reino de Jerusalém. Os turcos não os escreveram, mas Jerusalém lhes pertence, pelo menos até o presente ano de 1770, e Jerusalém não é um reino. Dogmas No dia 18 de fevereiro do ano de 1763, da era vulgar, entrava o Sol no signo dos Peixes, subi ao céu, como todos os meus amigos sabem. Mas não foi a burra Borac, de Maomé, que me serviu de montada; tampouco foi o carro em chamas de Elias que me levou lá; não me transportou o elefante de Samonocodão, o Siamês, nem o belo cavalo de São Jorge, patrono da Inglaterra, nem o porco de Santo Antônio: confesso com toda a ingenuidade que a viagem se fez sem eu saber bem como. Pensarão, por certo, que estava fascinado; mas talvez já ninguém seja capaz de acreditar-me, se disser que vi julgar todos os mortos. E os juízes, quem eram? Eram, embora isso vos desagrade, todos aqueles que fizeram algum bem aos homens: Confúcio, Sólon, Sócrates, Tito, os Antoninos, Epicteto, todos aqueles grandes homens que, tendo ensinado e praticado as virtudes que Deus exige, pareciam ser os únicos com direito a pronunciarem as sentenças. Não direi em que tronos se sentavam, nem quantos milhões de seres celestes estavam prosternados diante do Criador de todos os globos, nem que a multidão de habitantes desses globos inumeráveis compareceu perante os juízes. Só contarei aqui certos e breves pormenores, muito interessantes, que mais me impressionaram. Assim, reparei que cada morto defendia a sua causa e alardeava os seus bons sentimentos; tinha ao lado todas as testemunhas dos seus atos. Por exemplo, quando o cardeal de Lorena se vangloriava de ter feito aprovar algumas das suas opiniões pelo Concílio de Trento e, pelo preço da sua ortodoxia, rogava a concessão da vida eterna, apareciam subitamente à roda dele umas vinte cortesãs ou damas da corte, todas elas trazendo gravado na testa o número de entrevistas amorosas que tinham tido com o cardeal. Viam-se também aqueles que, com ele, lançaram os fundamentos da Liga; e todos os cúmplices dos seus perversos desígnios ali estavam a rodeá-lo. Mesmo defronte do cardeal de Lorena estava Calvino, o qual, no seu grosseiro dialeto, se gabava de ter dado alguns valentes pontapés no ídolo papal, após outros que o tinham derrubado. "Escrevi contra a pintura e a escultura", dizia, "e demonstrei sem possibilidade de refutação que os atos bons não têm qualquer valor e que dançar o minuete é coisa diabólica; vamos, depressa, depressa, expulsem daqui para fora esse cardeal de Lorena e me ponham já sentado ao lado de S. Paulo”. Enquanto assim perorava altissonante, viu-se surgir ao lado dele uma fogueira ardendo; um horroroso espectro, trazendo ao pescoço um cabeção meio queimado, surgiu de entre as chamas, soltando gritos de estarrecer. "Monstro", clamava, "monstro, execrável, treme! Treme, agora! Reconhece em mim aquele Miguel Servet que mandaste matar no mais cruel dos suplícios, apenas porque tinha discutido contigo acerca da maneira pela qual três pessoas podem formar uma única substância." Então, todos os juízes ordenaram que o cardeal de Lorena fosse precipitado no abismo, mas que Calvino fosse punido ainda com muito mais rigor. Vi uma multidão prodigiosa de mortos, que diziam: "Eu era crente, eu era crente"; mas na testa traziam escrito: "Eu fiz"; e ficavam logo condenados. Aparecia depois, impando de altivez, o jesuíta Le Tellier, com a bula Unigenitus muito espetada na mão. Mas eis que ao lado dele, de súbito, se elevou uma rima de duas mil cartas de prego régias. Vai um jansenista e lança-lhes fogo: Le Tellier ficou torrado até os ossos; e o jansenista, que não era menos useiro e vezeiro que o jesuíta em intrigalhadas tenebrosas, também apanhou a sua conta de chamuscadelas, para aprender. Pela direita e pela esquerda, via chegar magotes de faquires, talapões, bonzos, monges brancos, negros e cinzentos, que tinham encasquetado na cachimônia que, para render preito ao Ser Supremo, haviam de cantar a bom cantar, ou açoitarem-se uns aos outros, ou andarem completamente nus. Ouvi então uma voz tremenda que lhes perguntou: "Qual foi o bem que fizestes aos homens?" A essa voz tonitruante seguiu-se um profundo silêncio; ninguém ousou responder-lhe, e, daí a nada, foram todos arrastados para o Rilha-foles do universo, que é um dos maiores edifícios que jamais se viu. Um energúmeno bradava: "É nas metamorfoses de Xaca que temos de acreditar", e outro redarguia, em altos berros: "Não é nada, mas é nas Samonocodão". "Baco fez parar o Sol e a Lua", dizia este. "Eis a bula ln Coena Domini", dizia um recém-chegado; e o bedel do tribunal não parava de berrar: "Tudo já para Rilha-foles! Vá, vá, depressa, é andar para Rilha-foles!" Quando todos esses processos terminaram, ouvi proferir a sentença seguinte: "Em nome do Eterno Criador, conservador, remunerador, vingador, absolvedor, etc., ficai sabendo todos aqueles, ó habitantes dos cem mil milhões de bilhões de mundos que nos aprouve formar, que nunca aqui havemos de julgar nenhum dos ditos habitantes com base nas suas ideias ocas e vãs, mas unicamente pelos atos; porque tal é a nossa justiça". Confesso que foi aquela a primeira vez que ouvi um édito destes: todos aqueles que lera neste minúsculo grão de areia em que nasci, acabam fatalmente por estas palavras: Porque tal é a nossa vontade. E Economia Na acepção ordinária, esta palavra significa a maneira de administrar seus bens. É comum a um pai de família e a um superintendente das finanças de um reino. Os diferentes tipos de governo, as inquietações da família e da corte, as guerras injustas e mal conduzidas, a espada de Têmis colocada nas mãos de carrascos para fazer perecer o inocente, as discórdias intestinas, são objetos estranhos à economia. Aqui não iremos tratar das declamações desses políticos que governam um Estado do fundo do seu gabinete, valendo-se de brochuras. Economia Doméstica A primeira economia, de que todas as outras dependem, é a do campo, pois fornece as três únicas coisas de que os homens carecem necessariamente: o sustento, o vestuário e o abrigo. Não existe uma quarta, a menos que seja o aquecimento nos países frios. Se bem realizados, os três garantem a saúde, sem a qual não há nada. Algumas vezes o estabelecimento no campo é chamado de a vida patriarcal, mas em nosso clima a vida patriarcal seria impraticável e nos faria morrer de frio, de fome e de miséria. Abraão vai da Caldeia ao país de Siquém. Daí é preciso que faça uma longa viagem pelos desertos áridos até Mênfis para comprar trigo. Com todo o respeito devido, descarto sempre tudo que for divino na história de Abraão e de seus filhos. Só considero aqui sua economia rural. Não vejo que tenha uma só casa. Abandona a mais fértil região do universo e cidades onde havia casas cômodas para errar por países cujas línguas não podia entender. Vai de Sodoma ao deserto de Gerara sem ter um único estabelecimento. Quando manda embora Agar e o filho que teve com ela, ainda está num deserto, e só lhes dá como viático um pedaço de pão e uma bilha de água. Quando vai sacrificar seu filho ao Senhor, é ainda num deserto. Vai, ele próprio cortar a lenha para queimar a vítima, colocando-a sobre as costas do filho que irá imolar. Sua mulher morre num lugar chamado Arbeia ou Hebron e não possui nem seis pés de terra para enterrá-la. É obrigado a comprar uma caverna para aí colocá-la. Foi o único pedaço de terra que possuiu. Entretanto, teve muitos filhos, pois sem contar Isaac e sua posteridade, teve de sua outra mulher, Cetura, na idade de cento e quarenta anos, segundo cálculo comum, cinco filhos machos, que se foram em direção da Arábia. Não é dito que Isaac tivesse possuído um único pedaço de terra no lugar onde seu pai morreu. Pelo contrário, vai para o deserto de Gerara com sua mulher Rebeca, em casa desse mesmo Rei Abimelec, rei de Gerara, que tinha amado sua mãe. O rei do deserto toma-se de amores também por Rebeca, cujo marido a faz passar por sua irmã, como Abraão havia feito Sara passar por sua irmã diante deste mesmo Rei Abimelec, quarenta anos antes. É um pouco espantoso que nessa família se faça sempre passar sua mulher por sua irmã, a fim de ganhar alguma coisa, porém, já que esses fatos são consagrados, devemos guardar um silêncio respeitoso. As Escrituras dizem que Isaac se enriqueceu nessa terra horrível, tomada fértil para ele, que se tomou extremamente poderoso. É dito também que não havia água para beber, que teve uma grande querela por causa de um poço com os pastores do reizinho de Gerara e não se sabe que tenha tido casa própria. Seus filhos, Esaú e Jacó, não possuem mais estabelecimentos que seu pai. Para viver, Jacó é obrigado a ir para a Mesopotâmia, de onde Abraão havia saído. Serve sete anos para ter uma das filhas de Labão e sete outros anos para obter a segunda filha. Foge com Raquel e os rebanhos de seu sogro, que o persegue. A fortuna não lhe está bem assegurada. Esaú é representado tão errante quanto Jacó. Nenhum dos doze patriarcas, filhos de Jacó, possuem residência fixa, nem um campo de que sejam proprietários. Só repousam sob tendas como os árabes beduínos. Está claro que a vida patriarcal não convém de modo algum à temperatura do nosso ar. Um bom cultivador, como os Pignoux do Auvergne, precisa de uma casa sadia, voltada para o oriente, de vastas granjas, de não menos vastas cavalariças, de estábulos mantidos limpos e isso tudo pode custar pelo menos cinquenta mil francos em nossa moeda atual. Deve semear todos os anos cinquenta jeiras de trigo, reservando outro tanto para pastagens, possuir algumas jeiras de vinha, cerca de vinte e cinco jeiras para os grãos de miúdos e os legumes, uma quinzena de jeiras de bosques, uma plantação de amoreiras, bichos-da-seda e colmeias. Com todas essas melhorias bem economizadas manterá na abundância uma família numerosa. Sua terra melhorará dia a dia, suportará sem nada temer os aborrecimentos das estações e o fardo dos impostos, tendo em vista que um bom ano repara os prejuízos de dois maus. Em seu domínio desfrutará de uma soberania efetiva, submetida apenas às leis. É o estado mais natural do homem, o mais tranquilo, o mais feliz e desgraçadamente o mais raro. O filho desse verdadeiro patriarca, vendo-se rico, logo se desgosta com o pagamento humilhante da taxa do imposto senhorial. Infelizmente aprendeu algum latim, corre à cidade, compra um mandato que o isenta dessa taxa e que dará nobreza ao seu filho no fim de vinte anos. Vende seu domínio para pagar sua vaidade. Uma moça, criada no luxo, casa-se com ele, desonra-o e arruína-o. Morre na mendicância e seu filho veste libré em Paris. Eis a diferença entre a economia do campo e as ilusões das cidades. A economia na cidade é muito diferente. Vivei em vossa terra: não comprareis quase nada e o solo produzirá tudo para vós. Podereis alimentar sessenta pessoas quase sem vos aperceberdes. Trazei para a cidade a mesma renda: comprareis tudo a preços altos e podereis alimentar apenas cinco ou seis domésticos. Um pai de família que vive na sua terra com doze mil libras de renda precisará ser muito cuidadoso para viver em Paris, na mesma abundância, com quarenta mil. Essa proporção sempre subsistiu entre a economia rural e a da capital. Sempre vale a pena reler a curiosa carta da Sra. de Maintenon à sua cunhada, Sra. de Aubigné. "Credes que conheço Paris melhor do que vós. Assim sendo, eis, minha cara irmã, um projeto de despesa que executaria se vivesse fora da corte. Sois doze pessoas: senhor e senhora, três mulheres, quatro lacaios, dois cocheiros, um camareiro. 15 libras de carne a 5 vinténs a libra... 3 libras 15 vinténs 2 peças de assado.................................2...........10 Pão.......................................................1............10 Vinho....................................................2...........10 Lenha....................................................2 Frutas...................................................1............10 Velas...................................................................10 Candela.................................................................8 14 13 Conto 4 vinténs de vinho para vossos 4 lacaios e vossos 2 cocheiros. É o que a Sra. de Montespan dá aos seus. Se tendes vinho na adega não vos custará 3 vinténs. Coloco 6 para o camareiro e 20 para vós dois, que não bebeis por três. Coloco uma libra de candela por dia, embora seja preciso só meia libra. Coloco 10 vinténs em velas; duram três dias, são 6 em cada libra e a libra custa dez vinténs. Coloco 2 libras para a lenha; entretanto, só queimareis três meses por ano e só são precisos dois fogos. Coloco uma libra e 10 vinténs para as frutas. O açúcar só custa 11 vinténs a libra e apenas é preciso um quarto de libra para uma compota. Coloco duas peças de assado; economiza-se uma quando o senhor ou a senhora almoça ou janta na cidade, mas também esqueci uma ave cozida para a sopa. Entendemos da administração da casa. Podeis muito bem, sem ultrapassar quinze libras, ter uma entrada, quer de linguiça, quer de línguas de ovelha ou de tripas de vitela, pernil de carneiro, a pirâmide eterna e a compota que tanto amais. Isto posto, e mais o que aprendo na corte, creio, minha querida, que vossas despesas não deverão ultrapassar cem libras por semana. São quatrocentas libras por mês. Digamos quinhentas, para que as bagatelas que esqueci não se queixem de que lhes faço injustiça. 500 libras por mês fazem: Para despesas de boca............................................6.000 libras Para vossas roupas.................................................1.000 Para aluguel de casa................................................1.000 Para salários e roupas dos criados..........................1.000 Para as roupas, a ópera e as grandezas do senhor...3.000 12.000 libras Tudo isso não é honesto, etc." O marco de prata valia então mais ou menos a metade do numerário de hoje. O absolutamente necessário custava a metade do preço, e o luxo normal que se tornou necessário e que não é mais luxo custava três a quatro vezes menos do que hoje em dia. Assim, o Conde d'Aubigné teria podido, com suas 12.000 libras de renda, que gastaria muito obscuramente em Paris, viver como um príncipe na sua terra. Há em Paris trezentas ou quatrocentas famílias municipais que ocupam a magistratura há já um século e cujos bens consistem em rendas sobre a Prefeitura. Suponho que cada uma tenha vinte mil libras de renda e estas vinte mil libras faziam exatamente o dobro do que fazem hoje. Assim sendo, tais famílias realmente só têm a metade do seu antigo ganho. Desta metade subtrai-se a metade, segundo o tempo inconcebível do sistema de Law. Essas famílias, portanto, não gozam realmente senão de uma quarta parte da renda que possuíam quando da elevação de Luís XIV ao trono. E o luxo tendo aumentado três quartos, sobra pouco mais do que nada para elas, a menos que tenham reparado sua ruína com ricos casamentos ou com sucessões ou com uma engenhosidade secreta. E foi o que fizeram. Em todo lugar, se aquele que vive de rendas não aumentar seus bens numa capital, perdê-los-á com o tempo. Os proprietários rurais auxiliam-se mutuamente porque, aumentando o dinheiro numericamente, o ganho de suas terras aumenta proporcionalmente. Entretanto, estão expostos a outra infelicidade que reside neles próprios. São conduzidos à ruína por seu luxo e sua falta de atenção, tão perigosa quanto o primeiro. Vendem suas terras a financistas que amealham e cujos filhos, por sua vez, dissipam. E um círculo perpétuo de elevação e decadência, por falta de uma economia razoável e que consiste unicamente em não gastar mais do que se recebe. Da Economia Pública A economia de um Estado não é exatamente como a de uma grande família. Foi o que levou o Duque de Sully a dar o nome de Economias às suas memórias. Todos os outros ramos de um governo são mais obstáculos do que auxílios à administração dos dinheiros públicos. Tratados, por vezes concluídos a preço de ouro, e guerras infelizes arruínam um Estado por muito tempo (mesmo as felizes o esgotam). O comércio interceptado e mal realizado ainda o empobrece. Os impostos excessivos provocam a miséria. O que é um Estado rico e bem econômico? É aquele onde todo homem que trabalha está seguro de uma fortuna condizente com a sua posição, começando pelo rei e terminando pelo serviçal. Tomemos como exemplo o Estado onde o governo das finanças é mais complicado, a Inglaterra. O rei está quase sempre seguro de ter que gastar anualmente um milhão de libras esterlinas com sua casa, sua mesa, seus embaixadores e seus prazeres. Esse milhão volta inteiro ao povo pelo consumo, pois se os embaixadores despendem seus ordenados em outros lugares, os ministros estrangeiros consomem seu dinheiro em Londres. Todo proprietário de terras está certo de gozar seus ganhos, fora as taxas impostas pelos seus representantes no Parlamento, quer dizer, por ele próprio. O comerciante joga um jogo de azar e de engenhosidade contra quase todo o universo e fica incerto muito tempo se casará sua filha com um par do reino ou se morrerá num hospital. Os que, sem serem negociantes, colocam suas precárias fortunas nas grandes companhias de comércio, parecem-se com os ociosos da França que compram fundos reais, e cuja sorte depende da boa ou má fortuna do governo. Aqueles cuja única profissão é vender e comprar promissórias públicas de acordo com as felizes ou infelizes notícias que se fornecem, e traficar o temor e a esperança, estão, na subordem, no mesmo caso que os acionistas, e todos são jogadores, fora o cultivador que fornece com que jogar. Uma guerra sobrevém; é preciso que o governo empreste dinheiro vivo, pois não se pagam frotas e exércitos com promessas. A Câmara dos Comuns imagina um imposto sobre a cerveja, sobre o carvão, sobre as chaminés, sobre as janelas, sobre os acres de trigo e de pastagem, sobre a importação, etc. Calcula-se o que esse imposto mais ou menos irá produzir. Toda a nação é informada. Um decreto do Parlamento diz aos cidadãos: "Os que quiserem emprestar para a pátria receberão quatro por cento do seu dinheiro durante dez anos, ao final dos quais serão reembolsados". Esse mesmo governo faz um fundo de amortização do excesso do que produzem os impostos. Esse fundo servirá ao reembolso dos credores. Chegado o tempo do reembolso, diz-se-lhes: "Quereis vossos fundos ou quereis deixá-los a três por cento?" Os credores que creem sua dívida assegurada deixam, na maioria, seu dinheiro nas mãos do governo. Nova guerra, novos empréstimos, novas dívidas; o fundo de reembolso está vazio, não se reembolsa nada. Enfim, o amontoado de papel representativo de um dinheiro que não existe atingiu cento e trinta milhões de libras esterlinas, que perfazem cento e vinte e sete milhões de guinéus, no ano de 1770 da nossa era vulgar. Digamos, de passagem, que a França está mais ou menos neste caso. Deve fundos de cerca de cento e vinte e sete milhões de luíses de ouro. Ora, essas duas importâncias (a inglesa e a francesa), montando a duzentos e cinquenta e quatro milhões de luíses de ouro, não existem na Europa. Como pagar? Examinemos primeiramente a Inglaterra. Se cada um pedisse de volta seu fundo a coisa seria visivelmente impossível, a não ser por meio da pedra filosofal ou de alguma multiplicação semelhante. Que fazer? Uma parte da nação emprestou para toda a nação. A Inglaterra deve à Inglaterra cento e trinta milhões de libras esterlinas, com juros de três por cento. Paga, portanto, nesse único artigo muito módico 3 900 000 libras esterlinas de ouro, cada ano. Os impostos são cerca de sete milhões; restam, portanto, para satisfazer os encargos do Estado, três milhões e cem mil libras esterlinas, com o que se pode, economizando, extinguir pouco a pouco uma parte das dívidas públicas. O banco do Estado, dando vantagens imensas aos diretores, é útil à nação porque aumenta o crédito, suas operações são conhecidas, e não poderia fazer mais papel-moeda do que é preciso, sem perder o crédito e sem arruinar-se a si mesmo. Está aí a grande vantagem de um país comerciante, onde tudo se faz em virtude de uma lei positiva, onde nenhuma operação é escondida, onde a confiança é estabelecida sobre cálculos feitos pelos representantes do Estado e examinados por todos os cidadãos. A Inglaterra, diga-se o que disser, vê sua opulência assegurada enquanto possuir terras férteis, rebanhos abundantes e um comércio vantajoso. Se os outros países chegarem a não ter necessidade de seu trigo e a virar contra ela a balança do comércio, pode acontecer então uma grande subversão nas fortunas particulares. Mas a terra permanece, a indústria permanece e a Inglaterra, então, menos rica em dinheiro, o é sempre em valores renascentes que o solo produz. Volta ao mesmo estado em que estava no século XVI. Todo um reino é absolutamente igual às terras de um particular. Se o fundo da terra for bom, nunca ela ficará arruinada. A família que a fazia valer pode ser reduzida à esmola, mas o solo prosperará sob outra família. Existem outros reinos que jamais serão ricos, por mais que se esforcem. São os que, situados sob um céu rigoroso, só podem ter o estritamente necessário. Os cidadãos só podem pagar as comodidades da vida fazendo-as vir do estrangeiro a um preço excessivo. Dai à Sibéria e ao Kamtchatka reunidos, que perfazem quatro vezes a extensão da Alemanha, um Ciro como soberano, um Sólon como legislador, um Duque de Sully, um Colbert como superintendente das finanças, um Duque de Choiseul como ministro da guerra e da paz, um Anson como almirante: com todo seu gênio aí morrerão de fome. Ao contrário, fazei governar a França por um louco sério assim como Law, por um louco divertido como o Cardeal Dubois, por ministros como já temos visto algumas vezes: poderíamos dizer deles o que um senador de Veneza dizia dos seus confrades ao Rei Luís XII, conforme pretendem os contadores de anedotas. Luís XII, encolerizado, ameaçava arruinar a república: "Eu vos desafio", disse o senador. "A coisa me parece impossível, pois há vinte anos que meus confrades fazem todos os esforços imagináveis para destruí-la, sem, contudo, consegui-lo". Nunca houve algo mais extravagante, sem dúvida alguma, do que criar uma companhia imaginária do Missisípi, que deveria render ao menos cem por um a todos os interessados, triplicar de um só golpe o valor necessário das espécies, reembolsar, em quimérico papel, as dívidas e os encargos do Estado e terminar, enfim, louca e tiranicamente, proibindo a todo cidadão guardar em sua casa mais de quinhentos francos em ouro ou em dinheiro. Esse cúmulo de extravagância sendo inusitado, o espanto geral foi tão grande como deveria ter sido: todo mundo gritava que a França havia acabado para sempre. Ao cabo de dez anos isso ainda não tinha acontecido. Um bom país restabelece-se sempre por si mesmo, por pouco que seja toleravelmente governado; um mau só pode enriquecer graças a uma engenhosidade extrema e feliz. A proporção será sempre a mesma entre a Espanha, a França, a Inglaterra propriamente dita e a Suécia. Contam-se comumente vinte milhões de habitantes na França (talvez seja muito). Ustariz admite apenas sete na Espanha, Nichols dá oito à Inglaterra, não se atribuem cinco à Suécia. O espanhol (um pelo outro) tem o valor de oitenta de nossas libras para gastar por ano. O francês, melhor cultivador, tem cento e vinte libras; o inglês, cento e oitenta; o sueco, cinquenta. Se quisermos falar do holandês, acharíamos que só tem o que ganha, porque não é o seu território que o alimenta e o veste. A Holanda é uma feira contínua, onde só se é rico pela própria engenhosidade, ou pela de seu pai. Que enorme desproporção entre as fortunas! Um inglês, que possui sete mil guinéus de renda, absorve a subsistência de mil pessoas. Esse cálculo assusta ao primeiro olhar, mas ao fim de um ano, repartiu seus sete mil guinéus pelo Estado e cada um obteve mais ou menos o seu contingente. Em geral, o homem custa muito pouco à natureza. Na Índia, onde os rajás e nababos acumulam tantos tesouros, o povo comum vive, no máximo, com dois vinténs por dia. Entre os americanos, aqueles que não estão sob dominação alguma, só tendo seus braços, não gastam nada. A metade da África sempre viveu da mesma forma, e não somos superiores a todos esses homens senão em cerca de quarenta escudos por ano. Porém, esses quarenta escudos fazem uma prodigiosa diferença, cobrindo a terra com belas cidades e enchendo os mares de embarcações. É com nossos quarenta escudos que Luís XIV teve duzentas embarcações e construiu Versalhes. E enquanto cada indivíduo, um pelo outro, puder gabar-se de pagar quarenta escudos de renda, o Estado poderá florescer. É evidente que quanto mais homens e mais riquezas possua um Estado, mais abusos sejam encontrados. Os atritos são tão consideráveis nas grandes máquinas, que elas estão quase sempre desreguladas. Esses desarranjos causam tal impressão nos espíritos, que na Inglaterra, onde é permitido a todo cidadão dizer o que pensa, encontra-se todos os meses algum calculador que caridosamente adverte seus compatriotas de que tudo está perdido e de que a nação está arruinada sem apelo. A permissão de pensar sendo menor na França, queixa-se de contrabando; imprime-se furtivamente, mas com frequência, que jamais sob os filhos de Lotário, nem no tempo do Rei João, de Carlos VI, da batalha de Pavia, das guerras civis e de São Bartolomeu o povo foi tão miserável quanto hoje. Se se responde a essas lamentações com uma ordem de prisão, que não parece ser uma razão bem legítima, mas que é muito peremptória, o queixoso foge gritando aos aguazis que só viverão seis semanas e que, graças a Deus, morrerão de fome como os outros antes desse tempo. Bois-Guillebert, que atribuiu tão imprudentemente seu insensato "dizimo real" ao marechal de Vauban, pretendia no seus Pormenores sobre a França que o grande Ministro Colbert já havia empobrecido o Estado em um bilhão e quinhentos milhões, esperando-se pior. Um calculador de nosso tempo, que parece ter as melhores intenções do mundo, embora queira absolutamente que nos embebedemos após a missa, pretende que os valores renascentes da França, que formam a renda da nação, montam a apenas quatrocentos milhões aproximadamente no que parece enganar-se em somente cerca de um bilhão e seiscentos milhões de libras, a vinte vinténs a peça, estando o marco de prata em moeda a quarenta e nove libras e dez. E assegura que o imposto para pagar os encargos do Estado não pode ser mais do que de setenta e cinco milhões, quando na realidade é de trezentos, e que quase não são suficientes para saldaras dívidas anuais. Uma só em todas essas especulações, cujo número é considerável, parece-se com os erros cometidos nas medidas astronômicas tomadas sobre a Terra. Duas linhas correspondem a espaços enormes no céu. Na França e na Inglaterra a economia pública é a mais complicada. Não se tem ideia de tal administração no resto do globo, desde o monte Atlas até o Japão. Há apenas centro e trinta anos começou a arte de tornar metade de uma nação devedora de outra metade, de fazer passar com papéis as fortunas de mão em mão, de tornar o Estado credor do Estado, de fazer um caos de tudo o que deveria estar submetido a uma regra uniforme. Esse método estendeu-se à Alemanha e à Holanda. Forçou-se tal requinte e tal excesso a ponto de se estabelecer um jogo entre o soberano e os súditos: a loteria. Vosso capital é em dinheiro vivo; se ganhardes, obtereis espécies ou rendas; e quem perder não sofrerá grande dano. O governo normalmente retira dez por cento por seu trabalho. Essas loterias tornam-se cada vez mais complicadas a fim de atordoar e iscar o público. Todos esses métodos foram adotados na Alemanha e na Holanda e quase todo mundo ficou endividado. Isso não é muito sensato, mas quem o é? Os pequenos, que não podem arruinar-se. Endemoninhados Possuídos pelo demônio, energúmenos, exorcizados ou, sobretudo, doentes do útero, pálidos, hipocondríacos, epilépticos, catalépticos, curados pelos emolientes do Sr. Paumme, grande exorcista. Os exaladores, os epilépticos, as mulheres com furor uterino, foram sempre considerados vítimas dos espíritos malignos, dos demônios malfeitores, das vinganças dos deuses. Este mal foi denominado mal sagrado e em toda parte os padres da Antiguidade apoderaram-se dessas doenças, porque os médicos eram grandes ignorantes. Os sintomas muito complicados indicavam que se estava com muitos demônios no corpo: um demônio da fúria, um da luxúria, um da contração, um do endurecimento, um do deslumbramento, um da surdez. Seguramente o exorcista estava com um demônio do absurdo e mais um da intrujice. Sabemos que os judeus expulsavam os diabos dos corpos dos possuídos com a raiz barath e com palavras; que nosso Salvador expulsava-os por uma virtude divina, comunicada também a seus apóstolos, mas muito enfraqueci da hoje em dia. Quis-se renovar há pouco tempo a história de São Paulino. Este santo viu na abóbada de uma igreja um pobre endemoninhado que caminhava de ponta-cabeça sob ou sobre ela, mais ou menos como uma mosca. São Paulino viu bem que o homem estava possuído e mandou rapidamente procurar, a algumas léguas dali, as relíquias de São Félix de Nole: aplicou-as ao paciente como vesicatórios. O demônio, que sustentava o homem contra a abóbada, logo fugiu e o endemoninhado despencou sobre o lajeado. Podemos duvidar dessa história, conservando o mais profundo respeito pelos milagres verdadeiros, e ser-nos-á permitido dizer que não é assim que curamos os endemoninhados atualmente. Nós os sangramos, os banhamos, os purgamos suavemente, damos-lhes emolientes, é assim que são tratados pelo Sr. Paumme, que já realizou mais curas do que os milagres que os padres de Ísis, de Diana e outros realizaram. Quanto aos endemoninhados que se dizem possuídos para ganhar dinheiro, em lugar de banhá-los, açoitamo-los. Acontecia frequentem ente que os epilépticos, tendo as fibras e os músculos secos, pesavam menos do que um volume semelhante de água e boiavam quando eram metidos num banho. Gritava-se: Milagre! Dizia-se: É um possuído ou um feiticeiro! Ia-se procurar água benta ou um carrasco. Era uma prova indubitável de que o demônio se assenhorara do corpo da pessoa que boiava, ou então de que ela se tinha oferecido a ele. No primeiro caso era exorcizada; no segundo, queimada. Foi assim que raciocinamos e agimos durante quinze ou dezesseis séculos, e ousamos zombar dos cafres! Em 1603, numa pequena cidade do Franco-Condado, uma grande senhora mandava sua enteada ler a vida dos santos diante de seus parentes. Esta jovem pessoa, um pouco instruída, mas não sabendo ortografia, substituiu a palavra "vidas" por "histórias". Sua madrasta, que a odiava, disse-lhe asperamente: Por que não lês como está escrito? A jovem enrubesceu, tremeu, não ousou responder. Não queria revelar qual das suas companheiras havia-lhe ensinado o nome mal ortografado, tendo o pudor de não pronunciá-lo. Um monge, confessor da casa; pretendeu haver sido o diabo que lhe ensinara a palavra. A moça julgou melhor calar-se do que justificar-se. Seu silêncio foi tomado como confissão. A Inquisição convenceu-a de ter feito um pacto com o diabo. Foi condenada a ser queimada, porque possuía muitos bens herdados de sua mãe e o confisco pertencia de direito aos Inquisidores. Foi a centésima milésima vítima da doutrina dos endemoninhados, dos possuídos, dos exorcismos, e dos verdadeiros diabos que reinaram sobre a terra. Entusiasmo Esta palavra grega significa emoção das entranhas, agitação interior. Os gregos inventaram esta palavra para exprimir os abalos que experimentam os nervos, a dilatação e o aperto dos intestinos, as violentas contrações do coração, a corrida apressada desses espíritos de fogo que sobem das entranhas ao cérebro, quando estamos vivamente emocionados? Ou, então, davam a princípio o nome de entusiasmo, de agitação nas entranhas, às contorções da pítia, a qual, na trípode de Delfos, recebia o espírito de Apolo por um sítio que parece feito apenas para receber corpos? Que devemos entender por entusiasmo? Quantos graus existem nas nossas afeições? Acordo, sensibilidade, emoção, perturbação, surpresa, paixão, arrebatamento, demência, furor, raiva: eis todos os estados por que pode passar esta nossa pobre alma humana. Um geômetra assiste a uma tragédia comovente; repara apenas que está bem representada. A seu lado, um rapaz está tão comovido que não repara em mais nada; uma mulher chora; outro rapaz ficou tão enlevado que, para sua infelicidade, resolve também escrever uma tragédia: a doença do entusiasmo contagiou-o. O centurião ou o tribunal militar, que considerava a guerra apenas como um ofício no qual podia ganhar uma pequena fortuna, marchava tranquilamente para a batalha, tal como um pedreiro sobe para um telhado, para consertá-lo. César chorava quando via a estátua de Alexandre. Ovídio falava sempre espirituosamente do amor. Safo exprimia o entusiasmo desta paixão; e se é verdade que isso lhe custou a vida, é que nela o entusiasmo se transmudou em loucura. O espírito de partido predispõe maravilhosamente para o entusiasmo; não há facção que não possua os seus energúmenos. O entusiasmo é, principalmente, a herança da devoção mal compreendida. O jovem faquir, que somente vê a ponta do nariz ao fazer as suas orações, exalta-se gradualmente até acreditar que, se conseguir suportar o peso de correntes pesando cinquenta libras, o Ser Supremo lhe ficará muito agradecido. Adormece com a imaginação recheada de Brama até acima e não falha de o ver em sonhos. Até, algumas vezes, nesse estado de vigília em que não se está completamente a dormir nem acordado, saltam-lhe centelhas dos olhos; vê Brama resplandecente de luz, cai em êxtase, e tal doença acaba, com frequência, por se tornar incurável. A coisa mais rara de se encontrar é haver quem alie a razão ao entusiasmo; a razão consiste sempre em ver as coisas como elas são. Aquele que, durante a bebedeira, vê as coisas a dobrar, está nesse momento privado da razão. O entusiasmo é tal qual o vinho: pode excitar tanto tumulto nos vasos sanguíneos e tão violentas vibrações nos nervos, que a razão fica totalmente aboli da r Pode provocar leves agitações que apenas façam dar ao cérebro um pouco mais de atividade: é o que acontece nos grandes gestos da eloquência e, sobretudo, na poesia sublime. O entusiasmo sensato é só pertença dos grandes poetas. Esse entusiasmo razoável é a perfeição da arte dele; é isto que, noutros tempos, levou a acreditar que os vates eram inspirados pelos deuses, o que nunca se disse dos outros artistas. Como poderá o raciocínio comandar o entusiasmo? É que um poeta desenha primeiramente a disposição do seu quadro; é a razão, nessa altura, que lhe governa o lápis. Mas se quiser animar as suas personagens e dar-lhes o caráter das paixões, então a imaginação escalda, o entusiasmo atua; é como um cavalo de corrida que se lança impetuosamente para a meta; mas a pista foi traçada regularmente. Escravos Por que chamamos escravos aqueles a quem os romanos chamavam servi, e os gregos, douloi? Faz falta aqui a etimologia e os Bochart não poderão fazer com que esta palavra venha do hebraico. O monumento mais antigo que temos do termo escravo é o testamento de um Ermangaut, arcebispo de Narbona, que lega ao bispo de Fredelou seu escravo Anaph, Anaphun slavonium. Anaph foi um feliz ardo pertencendo seguidamente a dois bispos. Não é inverossímil que os eslavos (Slavi), vindos dos confins do Norte, como tantos povos indígenas e conquistadores, para pilhar o que o Império Romano tinha arrebatado às nações, e sobretudo à Dalmácia e à Ilíria, levassem os italianos a chamar schiavitú a infelicidade de cair em suas mãos, e schiavi os que estavam cativos nos seus novos antros. Tudo que se pode recolher do emaranhado da história da Idade Média é que no tempo dos romanos nosso universo conhecido dividia-se em homens livres e em escravos. Quando os eslavos, alanos, hunos, heiolos, lombardos, ostrogodos, vândalos, borguinhões, francos, normandos vieram dividir os despojos do mundo, não parece que a multidão de escravos tenha diminuído. Antigos senhores viram-se reduzidos à servidão, uma minoria acorrenta a maioria, como se vê nas colônias onde se empregam negros, e como se pratica em mais de uni gênero. Nada encontramos nos escritores antigos concernente aos escravos dos assírios e dos egípcios. O livro que mais fala em escravos é a Ilíada. Inicialmente, a bela Briséia é escrava em casa de Aquiles. Todos os troianos, e sobretudo as princesas, temem ser escravos dos gregos e fiar para suas mulheres. A escravidão é tão antiga quanto a guerra, e a guerra tão antiga quanto a natureza humana. Estava-se tão acostumado a essa degradação da espécie, que Epicteto jamais se espantou de ser escravo, e seguramente valia mais do que seu senhor. Nenhum legislador da Antiguidade tentou anular a servidão; pelo contrário, os povos mais entusiastas da liberdade, como os atenienses, os lacedemônios, os romanos, os cartagineses, foram os que tiveram as leis mais duras contra os servos. O direito de vida e de morte sobre eles era um dos princípios da sociedade. É preciso admitir que de todas as guerras a de Espártaco é a mais justa, e talvez a única justa. Quem acreditaria que os judeus, que parecem formados para servirem todas as nações que os conquistaram, também tivessem tido alguns escravos? Está afirmado em suas leis que poderão comprar seus irmãos por seis anos e os estrangeiros para sempre. Está dito que os filhos de Esaú deviam ser os servos dos filhos de Jacó. Contudo, mais tarde, sob outra economia, os árabes, que se diziam filhos de Esaú, reduziram os filhos de Jacó à escravidão. Os Evangelhos não colocam na boca de Jesus Cristo nem uma só palavra que lembre ao gênero humano sua liberdade primitiva e para a qual parece ter nascido. Nada é dito no Novo Testamento do estado de opróbrio e de pena a que metade do gênero humano estava condenada; nenhuma palavra nos escritos dos Apóstolos e dos Padres da Igreja para mudar as bestas de carga em cidadãos, como se começou a fazer entre nós no século XIII. Se falaram de escravidão, foi sobre a do pecado. É difícil compreender como, em São João, os judeus podem dizer a Jesus: "Jamais servimos sob alguém”. Eles, que eram então súditos dos romanos; eles, que tinham sido vendidos no mercado após a tomada de Jerusalém; eles, cujas dez tribos levadas escravizadas por Salmanazar tinham desaparecido da face da terra e cujas duas outras tribos foram colocadas a ferros durante setenta anos pelos babilônios; eles, sete vezes reduzidos a escravidão na sua Terra Prometida, como eles próprios confessavam; eles, que em todos os seus escritos falavam de sua servidão no Egito, nesse Egito que detestavam e para onde correram em massa para ganhar algum dinheiro, desde que Alexandre dignou-se permitir-lhes que se estabelecessem ali. O Reverendo Padre Dom Calmet diz que é preciso entender aqui uma servidão intrínseca, o que também é difícil compreender. A Itália, a Gália, a Espanha e uma parte da Alemanha eram habitadas pelos estrangeiros, que se tornaram senhores, e pelos nativos, que se tornaram servos. Quando Opas, bispo de Sevilha, e o Conde Juliano chamaram os mouros maometanos contra os reis visigodos cristãos, que reinavam dali até os Pireneus, os maometanos, segundo seu costume, exigiram que o povo visigodo se submetesse à circuncisão, ou se batesse e pagasse um tributo em dinheiro e em moças. O Rei Roderico foi vencido e só foram escravizados os que foram presos na guerra. Mediante pagamento, os colonos guardaram seus bens e sua religião. Foi assim que os turcos fizeram depois na Grécia. Mas impuseram aos gregos um tributo de seus filhos: os machos, para serem circuncisos e servirem como icoglans e janízaros; as moças, para serem criadas nos serralhos. Esse tributo foi depois comprado a peso de ouro. Para o serviço interior das casas, os turcos só possuem escravos comprados dos circassianos, dos mingrelianos e dos pequeno-tártaros. Entre os africanos muçulmanos e os europeus cristãos, o costume de pilhar e de escravizar tudo que se encontra sobre o mar subsistiu sempre. São aves de rapina que caem uns sobre os outros: argelinos, marroquinos, tunisinos vivem da pirataria. Os religiosos de Malta, sucessores dos religiosos de Rodes, juram pilhar e acorrentar todos os muçulmanos que acharem. As galeras do papa vão prender argelinos ou são presas nas costas setentrionais da África. Os que se dizem brancos vão comprar negros a bons preços para revendê-los na América. Só os pensilvanianos renunciaram solenemente, há pouco tempo, a esse tráfico, que lhes pareceu desonesto. SEÇÃO SEGUNDA No monte Krapack, onde sabem que moro, li há pouco tempo um livro feito em Paris, cheio de espírito, de paradoxos, de visão e de coragem, de alguma forma como os de Montesquieu, e escrito contra Montesquieu. Nesse livro prefere-se muito mais a escravidão à domesticidade e sobretudo ao estado livre de serviçal. Lamenta-se a sorte desses infelizes homens livres que podem ganhar suas vidas onde queiram pelo trabalho para o qual o homem nasceu e que é tanto o guardião da inocência como o consolador da vida. Ninguém, diz o autor, está encarregado de alimenta-los, de socorrê-los e, no entanto, os escravos eram nutridos e cuidados pelos senhores assim como seus cavalos. Isso é verdade, mas a espécie humana prefere prover-se a depender, e os cavalos nascidos nas florestas as preferem às estrebarias. Nota com razão que os operários perdem muitos dias de trabalho para ganhar a vida, porque lhes são proibidos. Ora, isso não ocorre porque sejam livres, mas porque temos muitas leis ridículas e muitas festas. Diz muito corretamente que não foi a caridade cristã que quebrou as correntes da servidão, uma vez que essa caridade as apertou durante mais de doze séculos. Poderia também acrescentar que entre os cristãos, os próprios monges, tão caridosos, ainda possuem escravos, reduzidos a um estado horroroso sob o nome de "amortalháveis", "mãos-mortáveis" e "servos da gleba". Afirma, o que é verdadeiro, que os príncipes cristãos franquearam os servos só por avareza. Foi, com efeito, para ter o dinheiro amontoado por esses infelizes que lhes assinaram patentes de franquia. A liberdade não lhes foi dada, foi-lhes vendida. O Imperador Henrique V começou: franqueou os servos de Spire a Worms, no século XII; os reis da França o imitaram. Isso prova qual é o preço da liberdade, pois esses homens grosseiros pagaram um preço muito alto por ela. Enfim, cabe aos homens cujo estado se discute, decidir qual preferem. Interrogai o mais vil serviçal, coberto de andrajos, nutrido com pão preto, dormindo sobre a palha numa cabana entreaberta; perguntai-lhe se quer ser escravo, melhor nutrido, melhor vestido, melhor acomodado. Não somente responderá recuando horrorizado, mas haverá alguns a quem nem mesmo ousareis fazer a proposta. Em seguida, perguntai a um escravo se deseja ser franqueado e vereis o que vos responderá. Só por aí a questão já está decidida. Considerai ainda que o serviçal pode tornar-se fazendeiro, e de fazendeiro, proprietário. Na França, pode até mesmo chegar a ser conselheiro do rei, se ganhou bastante. Na Inglaterra, pode ser rendeiro livre, nomear um deputado ao Parlamento. Na Suécia, ele próprio pode tomar-se um membro dos estados da nação. Essas perspectivas são preferíveis à de morrer abandonado num canto do estábulo do senhor. SEÇÃO TERCEIRA Puffendorf diz que a escravidão foi estabelecida "com um consentimento das partes e por um contrato para fazer a fim de receber". Só acreditarei em Puffendorf quando mostrar-me o primeiro contrato. Grotius pergunta se um homem feito cativo na guerra tem o direito de fugir (notai que não fala de um prisioneiro sob palavra de honra). Decide que não tem esse direito: pois não diz que tendo sido ferido não tem o direito de se fazer curar? A natureza decide contra Grotius. Eis o que avança o autor de O Espírito das Leis após ter pintado a escravidão dos negros com o pincel de Molière: "O Sr. Perry diz que os moscovitas vendem-se facilmente; sei bem a razão. É que sua liberdade não vale nada." O Capitão Jean Perry, inglês, que descrevia em 1714 o estado presente da Rússia, não diz uma palavra do que O Espírito das Leis o faz dizer. Encontramos em Perry somente algumas linhas a respeito da escravidão dos russos, ei-las: "O czar ordenou que em todos os seus Estados ninguém, no futuro, se diga seu golup ou escravo mas somente raap, que significa súdito. É verdade que esse povo não tirou nenhuma vantagem real, pois ainda hoje é efetivamente escravo". O autor de O Espírito das Leis acrescenta que, segundo, a descrição de Guilherme Dampier, "todo mundo procura vender-se no reino de Achem". Seria um estranho comércio. Não vi nada na Viagem de Dampier que se aproxime de tal ideia. É pena que um homem com tanto espírito tenha arriscado tantas coisas e citado falsamente tantas vezes. SEÇÃO QUARTA Servos de corpo, servos da gleba, mãos-mortas etc. Diz-se comumente que não há mais escravos na França; que é o reino dos francos e que escravo e franco são contraditórios; que se é tão franco que muitos banqueiros são os últimos a morrer, deixando mais de trinta milhões de francos adquiridos às expensas dos descendentes dos antigos francos, se ainda os há. Feliz a nação francesa por ser tão franca! Entretanto, como conformar tanta liberdade com tantas espécies de servidão como, por exemplo, a mão-morta? Mais de uma bela dama em Paris, brilhando num camarote da Opera, ignora descender de uma família borgonhesa ou burbonesa ou do Franco-Condado, ou da Marca ou do Auvergne e que sua família ainda é escrava de mão-mortável, mão amortalhável. Desses escravos, uns são obrigados a trabalhar três dias por semana para seu senhor, outros, dois. Se morrem sem filhos, seus bens pertencem ao senhor; se deixam filhos, o senhor toma somente os animais mais belos, os melhores móveis à sua escolha, em mais de um costume. Em outros costumes, se o filho do escravo mão-mortável não está na casa de escravidão paterna depois de um ano e um dia da morte do pai, perde todos os seus bens e permanece ainda escravo, isto é, se ganhar algum bem por sua engenhosidade, ao morrer o pecúlio pertencerá ao senhor. Eis ainda melhor: um bom parisiense vai ver seus pais na Borgonha ou no Franco-Condado, permanece um ano e um dia numa casa mão-mortável e retoma a Paris. Todos os seus bens, em qualquer lugar que estejam situados, pertencerão ao senhor fundiário, no caso de o homem morrer sem deixar linhagem. Pergunta-se, a esse propósito, como o condado de Borgonha recebeu a alcunha de Franco com tal servidão? Sem dúvida assim como os gregos deram às fúrias o nome de Eumênides, bons corações. Mas, o mais curioso, o mais consolador de toda essa jurisprudência, é que os monges são senhores da metade das terras mão-mortáveis. Se por acaso um príncipe de sangue, ou um ministro de Estado, ou um chanceler, ou algum de seus secretários lançasse os olhos sobre esse artigo seria bom, na ocasião, lembrar-se que o rei da França declarou à nação, no seu decreto de 18 de maio de 1731, que "os monges e os beneficiários possuem mais da metade dos bens do Franco-Condado". O marquês de Argens, no Direito Público Eclesiástico, diz que em Artois, dos dezoito arados existentes, os monges possuem treze. Os monges chamam-se a si próprios de gente de mão-morta, pois possuem escravos. Talvez isso deva ser colocado na categoria das "contradições". Quando fizemos algumas censuras modestas sobre essa estranha tirania das pessoas que juraram a Deus serem pobres e humildes, responderam-nos: Há seiscentos anos, mais ou menos, que gozam desse direito, como despojá-las? Replicamos humildemente: Há trinta ou quarenta mil anos, mais ou menos, que as fuinhas estão na posse de comer nossos frangos, mas deram-nos permissão para destruí-las quando as encontrarmos. N. B. Comer meia onça de ovelha é um pecado mortal para um cartuxo, mas pode em sã consciência comer a substância de uma família inteira. Vi os cartuxos da minha vizinhança herdarem cem mil escudos de um de seus escravos mão-mortáveis, que havia feito essa fortuna com o comércio em Frankfurt. E como é preciso dizer tudo, é verdade que a família despojada teve permissão para vir pedir esmola à porta do convento. Digamos, portanto, que os monges têm ainda cinquenta ou sessenta mil escravos mão-mortáveis no reino dos francos. Não se pensou até o presente em reformar essa jurisprudência cristã que acaba de ser abolida nos Estados do rei da Sardenha, mas pensar-se-á nisso. Esperemos somente alguns séculos, quando as dívidas do Estado estiverem pagas. Espírito SEÇÃO PRIMEIRA Um homem que tinha alguns conhecimentos do coração humano foi consultado sobre uma tragédia que deveria ser representada. Afirmou que havia tanto espírito nessa peça que duvidava do seu sucesso. O que!?, dir-se-á, é isso um defeito, numa época em que todos querem ter espírito, onde só se escreve para mostrar possuí-la, onde o público chega a aplaudir os pensamentos mais falsos, quando são brilhantes? Sim, sem dúvida, aplaudir-se-á no primeiro dia, aborrecer-se-á no segundo. Chamamos espírito tanto uma comparação nova quanto uma alusão fina; tanto o abuso de uma palavra apresentada num sentido para que se entenda num outro, quanto uma relação delicada entre duas ideias pouco comuns; uma metáfora singular, uma busca daquilo que não está imediatamente visível num objeto, e que efetivamente não existe nele. É a arte de reunir duas coisas longínquas, ou de dividir duas coisas que parecem juntar-se, ou de opô-las uma à outra. É dizer um pensamento pela metade para que se adivinhe o resto. Enfim, falar-vos-ia de todas as diferentes maneiras de mostrar espírito, se mais o tivesse eu. Entretanto, todos esses brilhos (e não falo de falsos brilhos) não convêm ou convêm muito raramente a uma obra séria e de interesse, porque seu uso faz com que só o autor apareça e o público só quer ver o herói. Ora, este último está sempre apaixonado ou em perigo. O perigo e as paixões não procuram espírito. Príamo e Hêcuba não fazem epigramas quando seus filhos são degolados em Tróia incendiada. Dido não suspira em madrigais, voando à pira sobre a qual será imolada. Demóstenes não tem belos pensamentos quando anima os atenienses para a guerra; se os tivesse, seria um retórico, mas é um homem de Estado. A arte admirável de Racine está bem acima do que chamamos espírito, mas se Pirro se exprimisse sempre neste estilo; "Vencido, carregado de ferros, de remorsos consumido. / Queimado com mais fogos que hei acendido. / Ai de mim, fui alguma vez tão cruel como o sois?" ou se Orestes continuasse dizendo; "Que os citas são menos cruéis que Hermione", estas duas personagens não comoveriam de modo algum. Perceberíamos que a verdadeira paixão muito raramente ocupa-se com semelhantes comparações e que há pouca proporção entre os fogos reais em que Tróia foi consumida e os fogos do amor de Pirro. Entre os citas que imolam homens e Hermione que não amou Orestes, Cina, falando de Pompeu, diz: "O céu escolheu sua morte para servir dignamente/ De marca eterna a essa grande mudança/ E deveria essa honra aos manes dum tal homem/ Levar consigo a liberdade de Roma”. Esse pensamento tem um brilho muito grande. Tem muito espírito e mesmo um ar de grandiosidade que impõe. Estou seguro de que esses versos pronunciados com o entusiasmo e a arte de um bom ator serão aplaudidos. Mas estou seguro de que a peça de Cina, escrita nesse gosto, nunca seria representada por muito tempo. Com efeito, por que o céu deveria honrar Pompeu por tomar os romanos escravos após sua morte? O contrário seria mais verdadeiro: os manes de Pompeu deveriam sobretudo obter do céu a manutenção eterna dessa liberdade pela qual se supõe que combateu e morreu. Que seria, então, uma obra cheia de pensamentos rebuscados e problemáticos? Quão superiores a todas as ideias brilhantes são estes versos simples e naturais: "Cina, tu te lembras e queres me assassinar! Sejamos amigos, Cina, sou eu que te convido". A verdadeira beleza é feita pelo sublime e pelo simples, não pelo "espírito". Em "Rodogune", Antíoco diz à sua amante, que o deixa após haver-lhe indignamente proposto matar sua mãe: "Ela foge, mas como um parta, trespassando-nos o coração". Antíoco tem espírito. Faz um epigrama contra Rodogune, comparando engenhosamente as últimas palavras que ela diz, ao partir, às flechas que os partas lançavam ao fugir. Mas não é porque a amante o abandona que a proposição de matar sua mãe é revoltante. Que vá ou fique, o coração de Antíoco está igualmente trespassado. O epigrama é, portanto, falso, e se Rodogune não partisse, não haveria lugar para tão mau epigrama. Escolhi propositalmente esses exemplos nos melhores autores a fim de que sejam mais chocantes. Não relevo os chistes e os jogos de palavras perceptivelmente falsos. Não há quem não ria quando na tragédia do Velocino de Ouro, fazendo alusão aos seus sortilégios, Hipsipilo diz a Medéia: "Só tenho atrativos e vós tendes encantos". Corneille encontrou o teatro e todos os gêneros literários enfeitados com essas puerilidades, mas raramente chegou a permiti-las em sua obra. Não quero falar aqui desses traços de espírito admissíveis alhures e que o gênero sério reprova. Poderíamos aplicar a seus autores o mote de Plutarco, traduzido por Amyot com feliz ingenuidade: "Sem propósito fazes boas propostas". Volta-me à memória um dos traços brilhantes que vi citar como modelo em muitas obras de gosto e mesmo no Tratado dos Estudos, do finado Sr. Rollin. O trecho é tirado da bela Oração Fúnebre, do grande Turenne, composta por Fléchier. É verdade que nessa oração Fléchier quase iguala o sublime Bossuet, que chamei e chamo ainda "o único homem eloquente" entre tantos escritores elegantes. Parece-me que o traço de que falo não foi empregado pelo bispo de Meaux. Ei-lo: "Potências inimigas da França, viveis, e o espírito da caridade cristã impede-me fazer algum voto por vossa morte, etc. Mas viveis, e lastimo neste púlpito um sábio e virtuoso capitão, cujas intenções eram puras, etc." Uma apóstrofe nesse gosto conviria a Roma durante a guerra civil, após o assassinato de Pompeu, ou a Londres, após a morte de Carlos I, porque, com efeito, tratava-se dos interesses de Pompeu e de Carlos I. Mas é decente desejar-se destramente em púlpito a morte do imperador, do rei da Espanha e dos eleitores, e colocar na mesma balança um general do exército do rei inimigo? As intenções de um capitão, que só podem ser as de servir seu príncipe, devem ser comparadas com os interesses políticos das cabeças coroadas contra as quais servia? Que diríamos de um alemão que desejasse a morte do rei da França por causa da perda do General Merci, cujas intenções eram puras? Por que, então, essa passagem foi sempre louvada por todos os retóricos? Porque a figura é nela bela e patética em si mesma, porém não examinam o fundo e a conveniência do pensamento. Plutarco teria dito a Fléchier: "Fizestes sem propósito uma bela proposta". Volto ao meu paradoxo, ou seja, que todos esses brilhos, a que damos o nome de espírito, não devem aparecer nas grandes obras, feitas para instruir ou para comover. Direi que devem ser banidos mesmo da ópera. A música exprime as paixões, os sentimentos, as imagens; mas onde estão os acordes que um epigrama possa fornecer? Esses jogos da imaginação, essas finuras, esses rodeios, esses traços inopinados, essas graças, essas pequenas sentenças cortadas, essas familiaridades engenhosas que se prodigalizam hoje, só são convenientes às pequenas obras de pura recreação e adorno. A fachada do Louvre, de Perrault, é simples e majestosa. Um escritório pode receber com graça pequenos ornamentos. Tende tanto espírito quanto quiserdes ou quanto puderdes num madrigal, em versos leves, numa cena de comédia, nem apaixonada nem ingênua, num cumprimento, num pequeno romance, ou numa carta, onde vos alegrais para alegrardes vossos amigos. Longe de mim reprovar Voiture por ter posto espírito em suas cartas. Pelo contrário, considero que não possuía muito, embora o procurasse sempre. Diz-se que os mestres da dança fazem mal a reverência porque querem fazê-la muito bem. Creio que Voiture frequentemente esteve neste caso. Suas melhores cartas são estudadas, sente-se que se cansa para procurar o que se apresenta tão naturalmente ao Conde Antoine Hamilton, à senhora de Sevigné e a tantas outras senhoras que, sem esforço, escrevem essas bagatelas melhor do que Voiture, que as escrevia a duras penas. Despréaux, que havia ousado comparar Voiture a Horácio nas suas primeiras sátiras, quando seu gosto amadureceu com a idade mudou de opinião. Sei que importa muito pouco aos negócios deste mundo que Voiture seja ou não um grande gênio, que tenha feito somente algumas belas cartas, ou que todos os seus gracejos sejam modelares. Mas nós, que cultivamos e amamos as artes, prestamos grande atenção ao que é indiferente ao resto do mundo. Para nós, o bom gosto em literatura é o mesmo que o vestuário nas mulheres. Desde que não se confunda opinião com partido, parece-me que ousadamente poderíamos dizer que há em Voiture poucas coisas excelentes, e que Marot facilmente se reduziria a umas poucas páginas. Não queremos roubar-lhes a reputação, pelo contrário, queremos saber justamente o que lhes valeu essa reputação que tanto respeitamos e quais são as verdadeiras belezas que esconderam seus defeitos. É preciso saber o que devemos imitar e o que devemos evitar. Este é o verdadeiro fruto do estudo aprofundado das belas-letras. Assim fazia Horácio quando examinava criticamente Lucílio, e, embora isto lhe tivesse valido inimigos, estes acabaram sendo esclarecidos também. O desejo de brilhar e de dizer de uma maneira nova o que outros já disseram é a fonte de expressões novas e de pensamentos amaneirados. Quem não pode brilhar por um pensamento quer fazer-se notar pela palavra. (...) Por que evitar uma expressão de uso corrente para introduzir outra que diz precisamente a mesma coisa? Uma palavra nova só é perdoável quando é absolutamente necessária, inteligível e sonora. Em física, uma nova máquina, uma nova descoberta exigem uma palavra nova e se é obrigado a criá-la. Porém, há novas descobertas no coração humano? Existe outra grandeza fora aquela de Corneille e de Bossuet? Outras paixões diferentes das manejadas por Racine, afloradas por Quinault? Outra moral evangélica que a do Padre Bourdalove? Os que acusam nossa língua de não ser bastante fecunda devem encontrar esterilidade, com efeito, mas neles próprios: Rem verba sequuntur. Quando se está bem invadido por uma ideia, quando um espírito justo e cheio de calor é senhor de seu pensamento, este sai de seu cérebro já ornado de expressões convenientes, como Minerva saiu já armada do cérebro de Júpiter, Enfim, tudo nos leva a concluir que não é preciso procurar os pensamentos, nem os rodeios, nem as expressões, e que a arte em todas as grandes obras está em raciocinar bem sem colocar muitos argumentos; em pintar bem, sem querer pintar tudo; em emocionar, sem querer excitar sempre as paixões. Sem dúvida, dou aqui belos conselhos. Eu próprio os segui? Infelizmente, não! Pauci, quos aequus amavit Jupiter, aut ardens evexit ad aethera virtus, dis geniti potuere. SEÇÃO SEGUNDA A palavra espírito, quando significa uma qualidade da alma, é um desses termos vagos, pronunciados quase sempre num sentido diferente por todos os que os empregam; não exprime o mesmo que julgamos gênio, gosto, talento, penetração, extensão, graça, finura, mas deve ter todos esses méritos. Poderíamos defini-lo como razão engenhosa. É uma palavra genérica que sempre necessita de outra palavra que a determine, e quando se diz: "Eis uma obra cheia de espírito", "um homem que tem espírito", tem-se muita razão ao perguntar: qual? O espírito sublime de Corneille não é o espírito exato de Boileau, nem o espírito ingênuo de La Fontaine. O espírito de La Bruyêre, que é a arte de pintar singularmente, não é o de Malebranche, que é o da imaginação com a profundidade. Quando se diz que um homem tem um espírito judicioso, entende-se que tem uma razão apurada e não aquilo que chamamos espírito. Um espírito firme, macho, corajoso, grande, pequeno, fraco, leve, doce, arrebatado, etc., significa o caráter e a têmpera da alma, e não tem relação com o que se entende na sociedade pela expressão: "ter espírito". O espírito, na acepção comum da palavra, contém muito do belo espírito e, entretanto, não significa precisamente a mesma coisa, pois jamais o termo "homem de espírito" pode ser tomado maldosamente e "belo espírito" é algumas vezes pronunciado ironicamente. Donde vem essa diferença? É que um "homem de espírito" não significa "espírito superior", "talento notável" tal como "belo espírito" significa. Esta expressão, "homem de espírito", não anuncia pretensão, e "belo espírito" é um cartaz, é uma arte que pede erudição, é uma espécie de profissão e por isso expõe à inveja e ao ridículo. Nesse sentido, o Padre Bouhours teria razão ao dizer, segundo o Cardeal Duperron, que os alemães não tinham pretensões a ter espírito porque seus sábios ocupavam-se unicamente com obras laboriosas e pesquisas penosas, que não lhes permitiam espalhar flores, nem que se esforçassem para brilhar ou que o belo espírito se misturasse com a sabedoria. Os que desprezam o gênio de Aristóteles em vez de condenar apenas sua Física, que não poderia ser boa estando privada da experiência, talvez ficassem bastante espantados vendo que Aristóteles ensinou perfeitamente em sua Retórica a maneira de dizer coisas com espírito. Diz que tal arte consiste em deixar de usar a palavra própria (que já não diz nada novo) e em seu lugar empregar uma metáfora, uma figura cujo sentido seja claro e a expressão enérgica. Mostra muitos exemplos e, entre outros, o de Péricles ao falar de uma batalha onde a mais florescente juventude de Atenas perecera: "O ano foi despojado da sua primavera". Aristóteles tem bastante razão ao dizer que é preciso o novo. O primeiro que, para exprimir a mistura dos prazeres com a amargura, os comparou com rosas cheias de espinhos teve espírito; aqueles que o repetiram não tiveram nenhum. Não é sempre por uma metáfora que nos exprimimos espirituosamente. Pode ser através de um novo circunlóquio, deixando-se adivinhar sem dificuldade uma parte do pensamento. É o que chamamos "finura", "delicadeza", e que são tanto mais agradáveis quanto mais exercitem e valorizem o espírito dos outros. As alusões, as alegorias, as comparações são um vasto campo de pensamentos engenhosos. Os efeitos da natureza, a fábula, a história apresentados à memória fornecem uma imaginação feliz dos traços que o espírito empregará depois propositalmente. O ponto principal é saber até onde o espírito deve ser admitido. Está claro que nas grandes obras deve-se empregá-lo com sobriedade e por isso mesmo nelas é um ornamento apenas. A grande arte está na pertinência. Um pensamento fino e engenhoso, uma comparação justa e florida são defeitos quando só a razão ou a paixão deveriam falar, ou então quando se deve tratar de grandes interesses. Nesses casos não há o falso belo espírito mas o espírito deslocado, e toda beleza fora de lugar deixa de ser beleza. Virgílio nunca teve esse defeito que entretanto se pode censurar algumas vezes no Tasso, por mais admirável que seja. Esse defeito ocorre porque o autor, cheio de suas próprias ideias, quer exibir-se quando deveria mostrar suas personagens. A melhor maneira de conhecer o uso que devemos fazer do espírito é ler um pequeno número de boas obras de gênio que temos nas línguas cultas e na nossa. O falso espírito é diferente do espírito deslocado. Não é somente um pensamento falso, pois poderia ser falso sem ser engenhoso, é um pensamento falso e rebuscado. O gosto falso é diferente do falso belo espírito, porque este é sempre uma afetação, um esforço mal feito, enquanto o outro é frequentem ente um hábito de compor mal sem esforço e de seguir por instinto um mau exemplo estabelecido. A intemperança e a incoerência das imaginações orientais é um falso gosto, mas é mais uma falta de espírito do que um abuso de espírito. As estrelas que caem, as montanhas que se fendem, os rios que recuam, o Sol e a Lua que se dissolvem, comparações falsas e gigantescas, a natureza sempre ultrajada, são as características desses escritores, porque nesses países, onde nunca se falou em público, a verdadeira eloquência não pode ser cultivada e é muito mais fácil ser empolado do que justo, fino e delicado. O falso espírito é precisamente o contrário de ideias triviais e empoladas. É uma procura fatigante de traços finos, uma afetação para dizer em enigma o que os outros já disseram naturalmente, para aproximar ideias que parecem incompatíveis, para dividir o que deve ser reunido, para tomar relações falsas, para misturar indecentemente a galhofa com o sério e o pequeno com o grande. Seria um trabalho supérfluo amontoar citações onde se encontra o termo espírito. Examinaremos apenas uma de Boileau, que é citada no grande Dicionário de Trévoux: "É próprio dos grandes espíritos, quando começam a envelhecer e a declinar, satisfazer-se com contos e fábulas". Essa reflexão não é verdadeira. Um grande espírito pode cair nessa fraqueza, a qual não é, porém, própria dos grandes espíritos. Nada é mais capaz de extraviar a juventude do que citar erros dos bons escritores como exemplo. Não se pode esquecer de dizer aqui em quantos sentidos diferentes a palavra espírito é empregada. Não é um defeito da língua; é, pelo contrário, uma vantagem ter assim tantas raízes ramificando-se em várias direções. Espírito de corpo, de sociedade: para exprimir os usos, a maneira de falar e de se conduzir, os preconceitos de um grupo. Espírito de partido: que está para o espírito de corpo como as paixões para os sentimentos comuns. Espírito de uma lei: para distinguir a intenção; é nesse sentido que se diz: "A letra mata e o espírito vivifica". Espírito de uma obra: para exprimir-lhe o caráter e o fim. Espírito de vingança: para significar desejo e intenção de vingar-se. Espírito de discórdia, de revolta, etc., Foi citado num dicionário espírito de polidez, baseado num autor denominado Bellegarde, que não tem autoridade alguma. Devem-se escolher com um cuidado escrupuloso os autores e os exemplos. Não se diz espírito de polidez como se diz espírito de vingança, de dissensão, defacção, porque a polidez não é uma paixão animada por um forte motivo que a conduza, e que metaforicamente chamamos espírito. Espírito familiar diz-se num outro sentido e significa esses seres intermediários, esses gênios, esses demônios admitidos na Antiguidade, como por exemplo, o espírito de Sócrates, etc. Espírito significa algumas vezes a parte mais sutil da matéria: fala-se em espíritos animais, espíritos vitais, para significar o que nunca se viu e que dá movimento à vida. Esses espíritos que cremos correr rapidamente nos nervos são provavelmente um fogo sutil. O Dr. Mead é o primeiro que parece tê-la provado, no prefácio do Tratado sobre os venenos. Espírito, em química, é ainda um termo que recebe várias acepções diferentes, mas que significa sempre a parte sutil da matéria. Neste sentido há longinquamente espírito no bom espírito e no belo espírito. Como tudo é metáfora em todas as línguas, a mesma palavra pode dar ideias diferentes sem que o vulgo se aperceba. SEÇÃO TERCEIRA Essa palavra não é uma grande prova de imperfeição das línguas, do caos onde estão ainda e do acaso que dirige quase todas as nossas concepções? Agradou aos gregos, assim como a outras nações, chamar "vento", "sopro", "pneuma", o que entendiam vagamente por respiração, vida, alma. Assim, em certo sentido, na Antiguidade, alma e vento eram a mesma coisa. E se disséssemos que o homem é uma máquina pneumática só teríamos traduzido os gregos. Os latinos imitaram os gregos e serviram-se da palavra "spiritus", espírito, sopro. "Anima" e "spiritus" eram a mesma coisa. O rouhak dos fenícios e, conforme se pretende, dos caldeus, significa o mesmo: "sopro" e "vento". Quando se traduziu a Bíblia em latim, empregou-se sempre indiferentemente a palavra sopro, espírito, vento, alma. Spiritus Deiferebatur super aquas, o vento de Deus, o espírito de Deus pairava sobre as águas. Spiritus vitae, o sopro da vida, a alma da vida. Inspiravit in faciem ejus spiraculum, ou spiritum vitae: e ele soprou sobre sua face o sopro da vida, o espírito da vida. E, segundo o hebraico, soprou em suas narinas um sopro, um espírito de vida. Haec quum dixisset, insuflavit et dixit eis: Accipite spiritum sanctum. Tendo dito isso, soprou sobre eles e lhes disse: Recebei o sopro santo, o espírito santo. Spiritus ubi vult spirat, et vocem ejus audis, sed nescis unde veniat: o espírito, o vento sopra onde quer, e ouvis sua voz (sem barulho), mas não sabeis de onde vem. Isso está longe das nossas brochuras do Quai des Augustins e do Pont-Neuf, intituladas Espírito de Marivaux, Espírito de Desfontaines, etc. O que em francês entendemos comumente por espírito, belo espírito, traço de espírito, etc. significa: pensamentos engenhosos. Nenhuma outra nação fez tal uso da palavra spiritus. Os latinos diziam ingenium; os gregos, eufuia, ou então empregavam adjetivos. Os espanhóis dizem agudo, agudeza. Os italianos empregam comumente o termo ingegno. Os ingleses servem-se da palavra wit, witty, cuja etimologia é bela! Pois significava antigamente sábio. Os alemães dizem verstãndig; quando querem exprimir pensamentos engenhosos, vivos, agradáveis, dizem "ricos em sentido", sinn-reich, Por isso os ingleses, que mantiveram muitas expressões da antiga língua germânica e francesa, dizem: sensible man. Assim, quase todas as palavras que exprimem as ideias do entendimento são metáforas. O ingegno ou ingenium é tirado do que engendra; a agudeza, do que é pontudo; o sinn-reich, rico em sentido; o espírito, do vento; e o wit, da sabedoria. Em todas as línguas aquilo que corresponde ao espírito em geral varia, e quando dizeis: "Este homem tem espírito", estamos no direito de perguntar-vos qual. Girard, no seu útil livro de definições, intitulado Sinônimos Franceses, conclui assim: "No comércio com as damas é preciso ter espírito ou o jargão que aparenta espírito" (o que não é honrá-las; merecem melhor). "O entendimento é próprio dos políticos e das cortesãs". Parece-me que o entendimento é necessário em todos os lugares e é bastante extraordinário ver um entendimento próprio de. "O gênio convém a gente que faz projetos e gastos." Ou me engano, ou o gênio de Corneille era feito para todos os espectadores; o gênio de Bossuet para todos os ouvintes e também, em particular, para as pessoas que gastam. As palavras que correspondem a spiritus, espírito, vento, sopro, em todas as nações dão necessariamente a ideia de ar. Por isso todas supuseram que o ar fosse nossa faculdade de pensar, de agir, o que nos anima. E a partir dessa suposição, julgou-se que nossa alma fosse ar sutil. Pelo mesmo motivo, os manes, os espíritos, as almas do outro mundo, as sombras foram compostos de ar. Por isso dizíamos, não faz muito tempo: "Um espírito apareceu-lhe"; "tem um espírito familiar"; "aparecem espíritos neste castelo". E o populacho ainda o diz. Somente as traduções dos livros hebraicos em mau latim empregaram a palavra spiritus nesse sentido. Manes, umbrae, simulacra, são expressões de Cícero e de Virgílio. Os alemães dizem geist, os inglêses ghost, os espanhóis duende, trasgo, os italianos parecem não ter um termo significando alma do outro mundo. Só os franceses serviram-se da palavra espírito. Para todas as nações a palavra própria deve ser fantasma, imaginação, sonho, parvoíce, intrujice. SEÇÃO QUINTA Na Inglaterra, para exprimir que um homem tem muito espírito, diz-se que tem grandes partes, great parts. Donde poderia vir essa maneira de falar que espanta hoje em dia os franceses? Deles próprios. Outrora nos servíamos comumente da palavra partes naquele sentido. Clélia, Cassandrar os demais antigos romanos só falam das partes de seus heróis e heroínas, e essas partes são seu espírito. Não poderiam melhor se exprimir. Com efeito, quem pode ter tudo? Cada um de nós só possui sua porçãozinha de inteligência, de memória, de capacidade, de profundidade de ideias, de extensão, de vivacidade, de finura. A palavra partes é a mais conveniente para seres tão fracos como o homem. Os franceses deixaram escapar de seus dicionários uma expressão que os ingleses apanharam, e mais uma vez enriqueceram-se à nossa custa. Vários escritores filósofos espantaram-se com o fato de que, todo mundo pretendendo ter espírito, ninguém ouse gabar-se de tê-lo. "A inveja", segundo dizem, "permite a cada um ser o panegirista de sua probidade e não de seu espírito." A inveja permite que se faça a apologia de sua probidade, não de seu espírito: por quê? É que é necessário passar por homem de bem e não é absolutamente necessário ter a reputação de homem de espírito. Levantou-se a questão de saber se todos os homens nascem com o mesmo espírito, as mesmas disposições para as ciências, ou se tudo depende de sua educação e das circunstâncias em que se encontram. Um filósofo, que tinha o direito de acreditar-se nascido com alguma superioridade, pretendeu que os espíritos são iguais. Entretanto, é sempre o contrário que se tem visto. De quatrocentas crianças educadas juntas pelos mesmos mestres, sob a mesma disciplina, apenas cinco ou seis fazem progressos bem nítidos. O grande número é sempre de medíocres, e entre estes ainda encontramos matizes. Em uma palavra, os espíritos diferem mais do que os rostos. SEÇÃO SEXTA Falso Espírito Existem cegos, zarolhos, vesgos, caolhos, há vista comprida, vista curta, ou distinta, ou confusa, ou fraca, ou infatigável. Isso também é uma imagem bastante fiel do nosso entendimento, mas não se conhece quase nada de vista falsa. Não há muitas pessoas que tomem sempre um homem por um cavalo, nem um urinol por uma casa. Por que encontramos tão frequentem ente espíritos, aliás muitos justos, que são absolutamente falsos sobre coisas importantes? Por que o mesmo siamês, que jamais se deixará enganar quando for questão de pagar-lhe três rupias, crê firmemente nas metamorfoses de Samonocodão? Qual a estranha bizarrice que leva homens sensatos parecerem-se com Dom Quixote, que acreditava ver gigantes onde os outros homens só viam moinhos de vento? Dom Quixote era mais desculpável do que o siamês crente de que Samonocodão veio várias vezes à terra, ou do que o turco persuadido de que Maomé colocou metade da Lua em sua manga. Dom Quixote, atacado pela ideia de que devia combater gigantes, podia imaginar que estes deveriam ter o corpo tão grande quanto um moinho e os braços tão longos quanto suas asas, mas de que suposição pode partir um homem sensato para se persuadir de que metade da Lua entrou numa manga e de que um Samonocodão desceu do céu para empinar papagaio em Sião, cortar uma floresta e fazer passes de mágica? Os maiores gênios podem ter espírito falso sobre um princípio que admitiram sem exame. Newton tinha o espírito muito falso quando comentou o Apocalipse. Tudo o que certos tiranos da alma desejam é que os homens a quem ensinam tenham o espírito falso. Um faquir cria uma criança que promete muito. Emprega cinco ou seis anos a meter-lhe na cabeça que o deus Fô apareceu aos homens como um elefante branco e persuade a criança de que será chicoteada após sua morte, durante quinhentos mil anos, se não acreditar nessas metamorfoses. Acrescenta que no fim do mundo o inimigo do deus Fô virá combatê-lo. A criança estuda, torna-se um prodígio e argumenta a partir das lições de seu mestre. Acha que Fô só pode transformar-se em elefante branco porque este é o mais belo dos animais. Os reis de Sião e Pegu, diz, guerrearam por um elefante branco; certamente se Fô não estivesse escondido nesse elefante esses reis não teriam sido tão insensatos de combaterem pela posse de um simples animal. O inimigo de Fô virá desafiá-lo no fim do mundo. Certamente esse inimigo será um rinoceronte, pois este combate o elefante. É assim que raciocina numa idade madura o sapiente aluno do faquir e torna-se uma das luzes da Índia. Quanto mais seu espírito for sutil, mais falso será e, em seguida, formará espíritos falsos como o seu. Mostra-se a todos esses energúmenos um pouco de geometria, que aprendem facilmente, mas, coisa estranha, seu espírito não se endireita com isso! Percebem as verdades da geometria, mas estas não lhes ensinam a pesar as probabilidades. Pegaram o costume e raciocinarão atravessado para o resto de suas vidas. Estou desolado por eles. Infelizmente há muitas maneiras de se ter falso espírito: 1º não examinar se o princípio é verdadeiro, mesmo quando dele deduzimos consequências justas. Essa maneira é comum. 2º tirar consequências falsas de um princípio reconhecido como verdadeiro. Por exemplo, um doméstico é interrogado por pessoas que suspeita quererem matar seu amo, que se encontra em seu quarto, Seria bastante tolo se lhes dissesse a verdade, sob o pretexto de que não se deve mentir. Está claro que teria tirado uma consequência absurda de um princípio muito verdadeiro. Como o homicídio é proibido, um juiz que condenasse um homem porque matou outro que queria assassiná-lo seria tão iníquo quanto mau raciocinador. Casos semelhantes se repartem em mil matizes diferentes. O bom espírito, o espírito justo, é o que os desenreda. Foi por isso que vimos tantos julgamentos iníquos, não que o coração dos juízes fosse maldoso, mas porque não estavam bastante esclarecidos. Estados, Governos Qual é o melhor? Ainda não conheci até hoje ninguém que tenha governado um Estado. Não falo dos senhores ministros que, em verdade, governam dois ou três anos, uns; seis meses, outros; seis semanas, ainda outros; falo de todos aqueles homens que, à hora da ceia ou no íntimo dos gabinetes, explanam o seu sistema de governo, reformando os exércitos, a Igreja, o vestuário e a finança. O abadede Bourzeis começou a governar a França cerca do ano de 1645, sob o nome de cardeal de Richelieu e fez esse Testamento Político pelo qual pretende alistar a nobreza na cavalaria por três anos, manda pagar a derrama aos tribunais de contas e aos parlamentos, priva o rei da receita da gabela; garante sobretudo que, para entrar em campanha com cinquenta mil homens, devem-se por economia recrutar cem mil. Afirma que "só a Provença tem muito mais portos de mar que a Espanha e a França juntas". O abade de Bourzeis nunca tinha viajado. De resto, a sua obra está inçada de anacronismos e dislates; põe o cardeal de Richelieu a assinar duma forma como ele nunca assinou, bem como o faz falar como ele jamais falou. Acresce que preenche um capítulo inteiro a dizer que "a razão deve ser a regra de um Estado", e a tentar provar essa descoberta. Essa obra diabólica, produto bastardo do abade de Bourzeis, durante muito tempo passou por filha legítima do cardeal de Richelieu; e todos os acadêmicos, nas suas arengas, nunca se esqueciam de exaltar desmedidamente essa obra-prima da política. O Sr. Gatien de Courtilz, ao ver o êxito do Testamento Político, de Richelieu, mandou imprimir, em Haia, o Testamento de Colbert, com uma formosa carta de Colbert dirigida ao rei. É evidente que se esse ministro fosse autor de semelhante testamento, teria de ser dado por interdito e suspenso do cargo; contudo, este livro foi citado por alguns autores. Outro patifório, de quem se desconhece o nome, arranjou logo processo de lançar a público o Testamento de Louvois, ainda pior, se possível, do que o de Colbert; um abade de Chevremont pôs também a testar o Duque Carlos da Lorena. Tivemos seguidamente os testamentos políticos do Cardeal Alberoni, do Marechal de Belle-Isle e, finalmente, o de Mandrin. De Bois-Guillebert, autor do Pormenor da França, impresso em 1695, apresentou o projeto inexequível do dízimo real, sob o nome do Marechal de Vauban. Um louco chamado La Jonchêre, que não possuía cheta, magicou em 1720 um projeto financeiro em quatro volumes; e alguns imbecis citaram essa produção como uma obra de La Jonchêre, o tesoureiro-geral, supondo que um tesoureiro não pode fazer um mau livro de finanças. Mas havemos de concordar que alguns homens houve, muito sábios e sensatos, talvez até muito dignos da governação, que têm escrito acerca da administração pública, quer em França, quer na Espanha ou na Inglaterra. Os seus livros foram de grande utilidade: não se julgue que tenham corrigido os ministros então no exercício do poder, quando tais livros apareceram, porque um ministro nunca se corrige nem deixa corrigir por outrem. Segue uma linha determinada; não lhe valem instruções nem conselhos alheios; não tem, sequer, tempo para os ouvir; a acumulação, o ritmo dos assuntos a resolver arrastam-no num autêntico turbilhão; mas esses livros bons educam a juventude, que virá mais tarde a ocupar funções de chefia; educam os príncipes e a segunda geração fica mais instruída e mais competente. A fraqueza e a força de todos os governos foi mui de perto examinada nos últimos tempos. Dizei-me, pois, vós que tendes viajado, que muito tendes lido e visto, em que Estado, sob qual regime político, gostaríeis de ter nascido? Percebo perfeitamente que um grande senhor latifundiário de França não ficaria aborrecido por ter nascido na Alemanha; ali seria soberano em vez de súdito. A um par de França havia de ser-lhe grato ter os privilégios do pariato inglês, pois seria legislador. O homem togado e o financeiro achar-se-iam melhor em França que algures. Mas que pátria deveria escolher um homem sensato, livre, um homem de parca fortuna e sem preconceitos? Um membro do Conselho de Pondichéry, criatura bastante ilustrada, regressava à Europa por terra na companhia de um brama, bastante mais instruído do que vulgarmente os bramas costumam ser. - "Como achais o governo do grão-mogol?" perguntou o conselheiro. - "Abominável", respondeu o brama. "Como quereis que um Estado seja governado capazmente, e com êxito, por tártaros? Os nossos raias, os nossos omras, os nossos nababos, estão todos muito satisfeitos, mas já não assim os cidadãos, e alguns milhões de cidadãos ainda devem valer qualquer coisa." O conselheiro e o brama atravessaram a Ásia inteira, observando e discutindo. - "Reparai numa coisa", disse o brama; "não há nenhum Estado republicano nesta vasta parte do mundo." - "Houve outrora a república de Tyr", disse o conselheiro, "mas pouco durou. Também havia outra para os lados da Arábia Pétrea, num recanto chamado Palestina, se podemos honrar com o nome de república uma horda de gatunos e usurários, tão depressa governada por juízes como por uma espécie de reis, ora, ainda, por grandes pontífices, horda que foi submetida e escravizada sete ou oito vezes e acabou por ser expulsa da região que tinha ocupado”. - "Compreendo que devem encontrar-se à face da Terra muito poucas repúblicas", disse o brama. "Raramente os homens são dignos de se governarem a si próprios. Essa felicidade apenas deve pertencer aos pequenos povos que se escondem nas ilhas, ou entre as montanhas, como coelhos bravos que se esquivam dos animais carnívoros; mas, por fim, são descobertos e acabam também por ser devorados." Quando os dois viajantes chegaram à Ásia Menor, o conselheiro disse ao brama: - "Sereis por acaso capaz de acreditar que houve uma república formada num cantinho da Itália, a qual durou mais de quinhentos anos e que dominou esta Ásia Menor, a Ásia, a África, a Grécia, as Gálias, a Espanha e a Itália inteira?" - "E transformou-se depois numa monarquia?" indagou o brama. - "Advinhaste-lo", disse o outro; "mas essa monarquia caiu e todos os dias lemos belas dissertações para encontrar as causas da sua decadência e. da sua queda." - "Incomodais-vos por nada", respondeu o indiano; "esse império caiu porque existia. Tudo vem a cair; e tenho esperança de que aconteça outro tanto ao império do grão-mogol." - "A propósito", disse o europeu, "acreditais que seja necessária mais honra num Estado despótico e mais virtudes numa república?" Depois de lhe ter sido explicado o que se entende por honra, o indiano respondeu que a honra era mais necessária numa república e que era mais necessária a virtude num Estado monárquico. - "Porque", disse, "um homem que pretenda ser eleito pelo povo não o conseguirá se estiver desonrado; ao passo que numa corte facilmente poderá obter um cargo, conforme aquele preceito de um alto príncipe que costumava dizer que um cortesão, para triunfar, não devia ter honra nem mau humor. No que respeita à virtude, é prodigiosamente precisa numa corte, mas para ousar dizer a verdade. O homem virtuoso está muito mais à vontade numa república, pois ali não tem que lisonjear seja quem for." - "Acreditais", inquiriu o homem da Europa, "que as leis e as religiões sejam feitas para os climas, tal como fazem falta as peles em Moscou e os tecidos de gaze em Delhi?" - "Decerto", respondeu o brama; "todas as leis que dizem respeito à física são calculadas pelo meridiano onde se habita; uma só mulher chega e sobeja para um alemão, ao passo que um persa possui três ou quatro. Os ritos da religião são da mesma natureza. Como podia eu, se fosse cristão, dizer missa na minha província natal, onde não há pão nem vinho? Acerca dos dogmas, porém, já o caso é outro; o clima para aí não conta nada. A vossa religião não começou na Ásia, donde a expulsaram? Não é agora praticada para as bandas do mar Báltico, onde era desconhecida?" - "Qual é o Estado, sob qual regime, gostaríeis mais de viver?" perguntou o conselheiro. - "Em qualquer parte fora da minha pátria", respondeu-lhe o companheiro; "e tenho encontrado muitos siameses, tonquineses, persas e turcos que afirmam outro tanto." - "Mas", insistiu o europeu, "qual Estado escolheríeis?" O brama respondeu: - "Aquele onde todos obedecem às leis". - "É essa uma antiga resposta", disse o conselheiro. - "Lá por isso, não se diga que é uma resposta má", redarguiu o brama. - "E onde é esse país?" perguntou o conselheiro. O brama disse: - "Há que procurá-lo." Evangelho Constitui um grande problema saber quais são os primeiros evangelhos. É uma verdade indubitável, diga Abbadie o que disser, que nenhum dos primeiros Padres da Igreja até Ireneu, inclusive, cita qualquer passo dos quatro evangelhos que nós hoje conhecemos. Pelo contrário, os teodosianos rejeitaram constantemente o Evangelho de São João e falaram dele sempre com desprezo, como afirma Santo Epifânio na sua homilia trigésima segunda. Os nossos inimigos apontam ainda que não só os mais antigos padres nunca citam nada dos evangelhos, mas referem ainda vários passos os quais apenas se encontram nos evangelhos apócrifos, rejeitados pelo cânone. São Clemente, por exemplo, conta que tendo sido Nosso Senhor interrogado acerca do tempo em que viria o seu reino, respondeu assim: "Será quando dois forem só um, quando o que está de fora se assemelhe ao que está dentro e quando não houver macho ou fêmea". Ora, devemos confessar que este passo não se encontra em nenhum dos nossos evangelhos. Há cem outros exemplos que provam esta verdade; podem ser recolhidos no Exame Crítico, de Fréret, secretário perpétuo da Academia de Literatura de Paris. O sábio Fabrício dedicou-se à tarefa de reunir os antigos evangelhos que o tempo poupou; o de Tiago parece ser o primeiro. É certo que goza ainda de grande autoridade nalgumas igrejas do Oriente. Chamou-se-lhe o primeiro Evangelho. Dele nos ficaram a paixão e a ressurreição, que se supõe tenham sido escritas por Nicodemo. Este Evangelho de Nicodemo é citado por São Justino e por Tertuliano; é aí que se encontram os nomes dos acusadores do Salvador: Anás, Caifás, Summas, Datam, Gamaliel, Judas, Levi, Neftalim. O cuidado em mencionar esses nomes dá certa aparência de sinceridade a toda a obra. Os nossos adversários concluíram logo que já que tantos falsos evangelhos foram, a princípio, considerados autênticos pode-se também ter suposto como autênticos aqueles que são, ainda agora, objeto da nossa crença. Insistem muito na fé dos primeiros heréticos que morreram por causa desses evangelhos apócrifos. Houve com certeza, afirmam eles, falsários, sedutores e pessoas seduzidas que morreram no erro: não é isso então uma prova da verdade da nossa religião, que tenha havido mártires que se sacrificaram até à morte por ela? Acrescentam, ainda, que nunca se pergunta aos mártires: "Acreditais no Evangelho de João ou no Evangelho de Tiago?" Os pagãos não podiam basear interrogatórios sobre livros que não conheciam: os magistrados puniram alguns cristãos como perturbadores da ordem pública; mas nunca os interrogaram sobre os nossos quatro evangelhos. Estes apenas foram um pouco conhecidos entre os romanos no tempo de Trajano e não andaram nas mãos do público antes dos últimos anos de Diocleciano. Os socinianos rígidos consideram, pois, os nossos quatro evangelhos como obras clandestinas, fabricadas cerca de um século depois de Jesus Cristo e cuidadosamente escondidas dos gentios durante o século seguinte; afirmam que são obras grosseiramente redigi das por homens grosseiros, obras que durante muito tempo se destinavam ao uso da população. Não queremos repetir aqui as outras muitas blasfêmias que diziam. Essa seita, embora bastante divulgada, anda hoje tão escondida como andavam nesse tempo os primeiros evangelhos. São muito difíceis de converter, porque só acreditam na razão. Os outros cristãos combatem contra eles apenas com a voz sagrada da Escritura: por isso, é impossível que uns e outros, continuando a ser sempre inimigos, algum dia possam reconciliar-se. (Pelo abade de Tilladet.) Ezequiel Acerca de alguns passos singulares deste profeta e de alguns usos antigos. Sabe-se hoje perfeitamente que não devemos julgar os hábitos antigos pelos modernos: quem quisesse reformar a corte de Alcínoo, na Odisseia, pela do grão-turco ou a de Luís XIV, não teria decerto bom acolhimento entre os sábios; quem censurasse Virgílio por ter apresentado o Rei Evandro coberto com uma pele de urso e acompanhado por dois cães a receber os embaixadores seria considerado mau crítico. Os costumes dos antigos egípcios e judeus ainda não são mais diferentes dos nossos do que os do Rei Alcínoo, de sua filha Nausícaa e do bonacheirão Evandro. Ezequiel, que era escravo entre os caldeus, teve uma visão perto da pequena ribeira de Chobar, a qual deságua no Eufrates. Em nada nos devemos espantar que, nessa altura, tenha visto animais com quatro focinhos e quatro asas, com patas de veado, e também rodas que andavam sozinhas e possuíam o espírito da vida; todos esses símbolos deleitam a nossa imaginação; mas vários críticos ficaram revoltados com a ordem que lhe deu o Senhor de comer, durante trezentos e noventa dias a fio, pão de cevada, de trigo e de milho coberto de excrementos humanos. O profeta exclamou, protestando: "Pu! fu! fu!... a minha alma, até aqui, não está contaminada"; e o Senhor respondeu-lhe: "Está bem! Então, ordeno-te que comas soltura de boi em vez de excrementos de homem e amassarás o pão com essa caca rala". Como agora já se não usa comer tais compotas com pão, a maioria dos homens modernos acham essas ordens indignas da majestade divina. Contudo, havemos de confessar que a bosta de vaca e todos os diamantes do grão-mogol são rigorosamente iguais, não apenas aos olhos de um ser divino como aos de um verdadeiro filósofo; e com respeito às razões que Deus podia ter para ordenar semelhante almoço ao profeta, não será a nós que caberá indagá-las. Basta verificarmos que essas ordens, que tão estapafúrdias nos parecem, não o eram assim para os judeus. É verdade que a Sinagoga não permitia, no tempo de São Jerônimo, a leitura de Ezequiel antes da idade dos trinta anos; mas isso era porque, no capítulo 18, ele diz que o filho já não sofrerá a iniquidade do pai e que não mais se dirá: "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados". Dizendo isto, achava-se em contradição expressa com Moisés, o qual, no capítulo 28 dos Números, garante que os filhos sofrem as iniquidades dos pais até à terceira e quarta geração. Ezequiel, no capítulo 20, põe o Senhor a dizer que ele, Senhor, dera aos judeus preceitos que não são bons. Eis a razão por que a Sinagoga proibia aos jovens uma leitura como essa que os podia levar a descrer da infalibilidade das leis de Moisés. Os censores contemporâneos ainda ficam mais espantados com o capítulo 16 de Ezequiel; eis a maneira como o profeta dá a conhecer os crimes de Jerusalém: introduz o Senhor a falar com uma rapariga e diz-lhe o Senhor: "Quando nasceste, ainda não te tinham cortado a tripa do umbigo, ainda não te tinham salgado, estavas completamente nua e tive pena de ti; cresceste, ficaste uma mulher, as tuas mamas altearam-se, o teu corpo viu crescerem pelos em certos sítios, eu passei, vi-te, percebi que chegado era o tempo dos amantes; tapei as tuas vergonhas; deitei-me em cima de ti com o meu manto; foste minha; lavei-te, perfumei-te; vesti-te do bom e do fino, calcei-te; ofereci-te um manto de algodão, braceletes, um colar; pendurei-te no nariz um amuleto de pedrarias, e brincos nas orelhas, e coloquei-te uma coroa na cabeça, etc... "Então, confiante na tua beleza, fornicaste por tua conta com todos os viandantes... E montaste um local mal-afamado e até chegaste a te prostituir nas praças públicas e para todos os que passavam abriste as pernas, e dormiste com egípcios... e, afinal, acabaste por ter de pagar aos teus amantes, e deste-lhes presentes para que fossem contigo para a cama... e, pagando o amor em vez de ser a ti que pagassem, fizeste o contrário do que fazem geralmente as raparigas... O provérbio diz: tal mãe, tal filha; e é isso mesmo que dizem de ti, etc." Protestam também, e com mais vigor, contra o capítulo 23. Havia uma mãe que tinha duas filhas, as quais ainda muito novinhas perderam a virgindade: a mais velha chamava-se Oolla e a mais pequenita, Ooliba ... "E Oolla era uma doidivanas por moços fidalgos, magistrados, cavaleiros; fornicou com egípcios desde garotinha... A irmã, Ooliba, não lhe ficava atrás, antes pelo contrário: fornicou que se fartou com oficiais, magistrados e garbosos cavaleiros; a todos deu a conhecer a sua indecência e vícios; multiplicou as fomicações; desejava, com apaixonado transporte, ser possuída por aqueles machos que têm o membro viril como o de um burro e que espirram sêmen como cavalos... " Essas descrições, que tanto apavoram os espíritos fracos, apenas significam as iniquidades existentes em Jerusalém e Samaria; e as expressões que ali nos parecem licenciosas, ao tempo não o eram. Semelhante simplicidade nos dizeres transparece descuidadamente em mais de um passo da Sagrada Escritura: fala-se ali muitas vezes de abrir a vulva. Os termos de que se servem para exprimir a cópula de Booz com Rute, de Judá com a enteada, de modo algum são desonestos em hebreu, embora assim possam ser considerados na nossa língua. Ninguém se cobre com um véu quando não tiver vergonha da própria nudez; como é que nesses recuados tempos haviam de corar por se falar nos órgãos genitais, se se tocava nos testículos daqueles a quem se fazia qualquer promessa? Era esse um sinal de respeito, um símbolo de fidelidade, como outrora entre nós os fidalgos colocavam as mãos entre a dos seus suseranos. Nós, então, traduzimos genitais por coxa. Eliezer põe a mão sob a coxa de Abraão; José põe a mão sob a coxa de Jacó. No Egito, esse costume era muito remoto. Os egípcios estavam tão longe de considerar indecente aquilo que nós hoje não ousamos mostrar nem nomear, que levavam em procissão uma grande imagem do membro viril, chamado phallum, a fim de agradecerem aos deuses o serviço desse membro, precioso para a propagação do gênero humano. Tudo isto prova suficientemente que as nossas conveniências não são as conveniências dos outros povos. Em que época houve, entre os romanos, maneiras mais polidas do que no século de Augusto? Todavia, Horácio não revela qualquer relutância em dizer numa peça moral: Nec vereor ne, dum futuo, vir rure recurrat. E Augusto serve-se de igual expressão, num epigrama contra Fúlvia. Um cavalheiro que entre nós pronunciasse o termo vernáculo que corresponde a futuo seria tomado como um cocheiro bêbado; essa palavra, e outras de que se servem Horácio e vários autores, ainda nos parecem mais indecentes que as expressões de Ezequiel. Ponhamos de lado todos os preconceitos ao lermos autores antigos, ou quando viajarmos entre povos distantes. Em toda a parte a Natureza é a mesma, só os usos e costumes é que variam. Encontrei um dia, em Amsterdam, um rabino muito ancho pela leitura deste capítulo. - "Ah! meu nobre amigo", disse-me, "como vos estamos agradecidos! Que bela ação a vossa, ao dardes a conhecer toda a sublimidade da lei mosaica, o almoço de Ezequiel, as suas belas atitudes para o lado esquerdo; Oolla e Ooliba são tipos admiráveis, irmão, tipos que anunciam que um dia virá em que o povo judaico será dono e senhor da terra inteira; mas por que razão omitistes tantos outros pormenores semelhantes? porque não falaste do Senhor dizendo ao sábio Osias, logo no segundo versículo do primeiro capítulo: 'Osias, pega numa prostituta e faz-lhe filhos de prostituta'. São estas as suas palavras exatas. Osias arranjou uma rapariga nessas condições, teve dela um filho, depois uma rapariga, e ainda um rapaz; e essa situação durou três anos. 'Não é ainda o bastante', diz-lhe o Senhor no terceiro capítulo: 'Tens de ir arranjar uma mulher que não seja apenas debochada, mas adúltera, também'. Osias obedeceu; mas isso custou-lhe quinze escudos e um sesteiro e meio de cevada; porque, como sabeis, na Terra Prometida o trigo escasseia. Mas sabeis o que tudo isso significa?" perguntou o rabino. - "Não", respondi. - "Nem eu", disse o rabino. Um sábio compenetrado e grave aproximou-se nessa altura de nós e explicou-nos que eram tudo invenções engenhosas e engraçadas. "Ah! senhor", respondeu-lhe logo um moço muito instruído, "então, se apreciais invenções, acreditai no que vos digo, mais valem as de Homero, Virgílio e Ovídio. Quem gostar e achar graça às profecias de Ezequiel merece, para seu castigo, ser obrigado a comer com ele aquelas iguarias que Ezequiel papava ao almoço". F Fábulas As mais antigas fábulas não serão visivelmente alegóricas? A primeira que conhecemos, segundo o nosso processo de calcular o tempo, não será a referida no nono capítulo do livro dos Juízes? Foi preciso escolher um rei entre todas as árvores; a oliveira, porém, não quis abandonar os cuidados com o azeite, nem a figueira deixou os seus figos ao deus-dará, nem a vinha o vinho, nem as outras árvores os frutos respectivos; o cardo, que nenhum préstimo tinha, foi coroado rei, porque possuía espinhos e podia agredir os outros. A antiga fábula de Vênus, tal como Hesíodo a narra, não será uma alegoria da natureza inteira? O leite fecundante das partes genitais tombou do éter nas praias do mar; Vênus nasce dessa espuma preciosa; o seu primeiro nome é o de amante da procriação: haverá imagem mais imediata? Vênus é a deusa da beleza; a beleza deixa de ser atraente, se abandona as graças; a beleza faz nascer o amor; o amor tem setas que atravessam os corações; traz uma venda que oculta os defeitos daquele a quem se ama. A sabedoria é concebida no cérebro do rei dos deuses sob o nome de Minerva; a alma do homem é um fogo divino que Minerva mostra a Prometeu, que se serve dele para dar vida ao homem. É impossível não reconhecermos nessas fábulas uma pintura viva da natureza inteira. A maioria das outras fábulas são a corrupção de antigas histórias ou o resultado dos caprichos da imaginação. Acontece com as fábulas antigas o mesmo que com os nossos contos modernos: há apólogos morais que são deliciosos e também os há muito sensaborões. As fábulas dos povos primitivos, os quais possuíam qualidades inventivas, foram mais tarde grosseiramente imitadas por povos rudes e sem imaginação; para prova, basta citar as fábulas de Baco, Hércules, Prometeu, Pandora e tantas mais; todas elas foram o entretenimento espiritual da Antiguidade. Os povos bárbaros, que nelas ouviram falar confusamente, introduziram-nas na sua mitologia selvagem; e, a seguir, atreveram-se a dizer: "Fomos nós que as inventamos". Ai deles, coitados, povos ignorados e ignorantes, que nunca conheceram uma arte agradável ou útil, que até o nome de geometria desconheciam, como podiam afirmar que inventaram fosse o que fosse? Pois se nem descobrir novas verdades, nem mentir com habilidade souberam? Fanatismo O fanatismo, em relação à superstição, é o mesmo que o arrebatamento é para a febre ou a raiva para a cólera. Aquele que experimenta êxtases, visões, que confunde os sonhos com as realidades e as suas imaginações com profecias, é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com o crime, é um fanático. Jean Diaz, retirado em Nurembergue, o qual estava firmemente convencido que o papa é o Anticristo do Apocalipse e quem tem a marca da besta demoníaca, não passava de um entusiasta; Barthélemy Diaz, seu irmão, que partiu de Roma para assassinar santamente o irmão e que, com efeito, o matou por amor de Deus, era um dos mais abomináveis fanáticos que a superstição alguma vez criou. Polieucte, que num dia solene vai ao templo derrubar e partir as estátuas e os paramentos, é um fanático menos horrível que Diaz, mas não menos tolo. Os assassinos do Duque Francisco de Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, do Rei Henrique III, do Rei Henrique IV e de tantos outros, eram uns energúmenos, todos doentes da mesma raiva de que padecia Diaz. O exemplo do mais detestável fanatismo foi dado pelos burgueses de Paris, que, na noite de São Bartolomeu, desataram a assassinar, a degolar, a atirar das janelas abaixo, a esquartejar os seus concidadãos só por estes não irem à missa. Há também fanáticos de sangue-frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime consiste em não pensarem como eles, juízes; e tais juízes são tanto mais culpados, tanto mais dignos da execração do gênero humano quanto, não estando nesse momento possuídos por nenhum acesso de furor, como os Clément, os Châtel, os Ravaillac, os Damiens, à primeira vista parece que poderiam escutar a voz da razão. Mas desde que o fanatismo atacou o cérebro de alguém, como se se tratasse duma gangrena, a doença é quase incurável. Vi pessoas atacadas de convulsões as quais, quando se falava dos milagres de São Páris, insensivelmente se iam exaltando, mesmo sem elas quererem: os olhos inflamavam-se-lhes, os membros tremiam, a ira descompunha-lhes o rosto, totalmente desfigurado, e teriam nessa altura morto fosse lá quem fosse que os contradissesse. Não há outro remédio, para este mal epidêmico, que o espírito filosófico, o qual, divulgando-se pouco a pouco, acaba por suavizar os costumes dos homens e conjura os acessos do mal; porque, logo que a doença faz progressos, há que fugir a sete pés e esperar que o ar fique purificado de novo. As leis e a religião não são suficientes contra a peste das almas; a religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se em veneno nos cérebros infectados. Esses miseráveis têm constantemente no espírito o exemplo de Aod, que assassinou o Rei Eglon; de Judite, que cortou a cabeça a Holofemes, quando dormia com ele; de Samuel, que fez em postas o Rei Agag. Não veem que esses exemplos, que na Antiguidade são toleráveis, nos tempos de hoje são abomináveis; e extraem os seus furores da própria religião que os condena. As leis são muito impotentes contra tais acessos de raiva; é tal e qual como se lerdes uma sentença do conselho a um fanático. Essa gentinha está persuadida de que o espírito sagrado, que as penetra, é superior às leis, que o seu entusiasmo é a única lei que devem ouvir e acatar. O que é que se há de responder a um homem que vos diz que gosta mais de obedecer a Deus do que aos homens e que, por conseguinte, está seguro de alcançar a glória divina quando vos corta o pescoço? Geralmente é gente velhaquíssima que chefia os fanáticos e lhes mete o punhal na mão. Parecem-se com aquele Velho da Montanha que, segundo dizem, fazia gozar as alegrias do Paraíso a imbecis e lhes prometia uma eternidade desses prazeres, de que lhes proporcionara um aperitivo, com a condição de que fossem assassinar todas as pessoas que indicasse. No mundo inteiro, só houve uma religião que não foi contaminada pelo fanatismo: a dos sábios letrados da China. As seitas dos filósofos não só estavam isentas dessa peste, mas até possuíam o remédio para ela; porque uma das vantagens da filosofia é tornar a alma tranquila, e o fanatismo é incompatível com a tranquilidade. Se a nossa santa religião foi muitas vezes corrompida por esse furor infernal, a loucura dos homens é a principal responsável. Ainsi du plumage qu'il eut Icare pervertit l'usage; Il le reçut pour son salut, Il s'en servil pour son dommage. (Bertaud, bispo de Séez.) Falsidade das Virtudes Humanas Quando o duque de La Rochefoucauld escreveu os seus pensamentos sobre o amor-próprio e revelou essa mola oculta do homem, tal Sr. Esprit, da Congregação do Oratório, escreveu um livro capcioso, sob o título: Da Falsidade das Virtudes Humanas. Afirmava ali que a virtude era coisa que não existia; mas, por um curioso chiste, em cada capítulo termina remetendo-nos à caridade cristã. Assim, segundo o Sr. Esprit, nem Catão, nem Aristides, nem Marco Aurélio, nem Epicteto eram pessoas de bem; e só entre os cristãos as virtudes se encontram. Entre os cristãos só há virtudes nos que são católicos; entre os católicos ainda deviam excetuar-se os jesuítas, inimigos confessos dos oratorianos; portanto, a virtude só se encontra entre os inimigos dos jesuítas. O tal Sr. Esprit começa por dizer que a prudência não é uma virtude e o argumento dele é que é muitas vezes enganada. É o mesmo que dizer que César não era um grande cabo de guerra porque fora derrotado em Dyrrachium. Se o Sr. Esprit fosse filósofo, não teria analisado a prudência como uma virtude, mas como um talento, como uma qualidade feliz; porque um celerado pode ser muito prudente e não poucos conheci desta espécie. Oh, a grande raiva de querer que: Ninguém será virtuoso exceto nós e os nossos amigos! Ora, o que é a virtude, amigo? É praticar o bem: procede sempre assim conosco, e basta. E depois agradeceremos o motivo. Pois podia lá ser! Na tua opinião, então não havia de haver diferença nenhuma entre o Presidente de Thou e Ravaillac, entre Cícero e o Pompílio a quem ele salvara a vida e lhe cortou depois a cabeça por dinheiro? E és capaz de afirmar que Epicteto e Porfírio eram dois velhacos por não terem acatado os nossos dogmas? Uma insolência assim, revolta. Calo-me, já, porque ficaria muito irritado se continuasse. Fé I Um dia, o Príncipe Pico della Mirandola encontrou-se com o Papa Alexandre VI em casa da cortesã Emília, quando Lucrecia, filha do santo padre, estava em trabalhos de parto e não se sabia, em Roma, se o filho dela era do papa ou de seu filho, o duque de Valentinois, ou do marido de Lucrecia, Afonso de Aragão, que constava que era impotente. A princípio, o diálogo foi muito animado. O Cardeal Bembo conta-nos uma parte da conversa. - "Pico", perguntou o papa, "quem julgas que seja o pai do meu neto?" - "Acho que é o vosso genro", respondeu Pico.- "Eh! Eh! como podes acreditar numa parvoíce tamanha?" - "Acredito, pela fé." - "Mas acaso ignoras que uma criatura impotente não pode fazer filhos?" - "A fé consiste", retorquiu Pico, "em crer nas coisas porque elas são impossíveis; e, aliás, a honra da vossa casa exige que o filho de Lucrecia não passe por ser o fruto de um incesto. Quereis que eu acredite em mistérios mais incompreensíveis do que esse. Pois não é forçoso que esteja convencido que uma serpente falou, que desde esse tempo todos os homens ficaram danados, que a burra de Balaão falou também, com grande eloquência, e que as muralhas de Jericó caíram ao soar das trombetas?" E a seguir, Pico desatou a desfiar todas as coisas portentosas em que era obrigado a acreditar. Alexandre deixou-se cair num sofá e rebolava-se a poder de tanto riso. - "Acredito em tudo isso como vós", dizia, por entre gargalhadas, "porque sinto que só pela fé posso ser salvo e que não o serei pelos meus atos." - "Ah! santo padre", exclamou Pico, "não tendes necessidade de boas obras nem de fé; isso é bom para os pobres profanos, como eu; mas, para vós, que sois uma espécie de vice-Deus, vós, sim, podeis acreditar e fazer tudo quanto vos apeteça. Tendes as chaves do céu; e com toda a certeza, São Pedro não vai dar-vos com a porta na cara. Quanto a mim, porém, confesso-vos que para entrar lá necessitaria de uma poderosa proteção se, sendo apenas um pobre príncipe, tivesse ido para a cama com uma filha minha e tivesse utilizado o estilete e a cantarela tantas vezes como Vossa Santidade dizem que já fez." Alexandre VI não era desconfiado, nem se ofendia com os gracejos que lhe dirigiam. - "Falemos a sério", disse para o Príncipe della Mirandola. "Dize-me lá que mérito podemos ter em dizer a Deus que estamos persuadidos de coisas em que, com efeito, não podemos acreditar? Que prazer pode isso dar a Deus? Cá entre nós, dizer que se acredita naquilo que é impossível de acreditar, é mentir e nada mais." Pico della Mirandola fez um grande sinal da cruz. - "Homessa! Deus paternal", exclamou, "que Vossa Santidade me perdoe, mas não sois cristão." - "Assim Deus me salve que não", respondeu o papa. - "Pois já tinha cá as minhas desconfianças", rematou Pico della Mirandola. (Por um descendente de Rabelais.) II O que é a fé? É acreditarmos naquilo que parece evidente? Não: é evidente que há um Ser necessário, eterno, supremo, inteligente; mas isso não é artigo de fé, mas, sim, de razão. Não tenho mérito nenhum em pensar que este Ser, eterno, infinito, que conheço como a virtude, a própria bondade, queira que eu seja bom e virtuoso. A fé consiste em acreditarmos, não naquilo que nos parece verdadeiro, mas naquilo que se apresenta como errado e falso ao nosso entendimento. Só pela fé os asiáticos podem acreditar na viagem que Maomé fez pelos sete planetas, nas encarnações do deus Fô, de Visnu, de Xaca, de Brama, de Samonocodão, etc., etc., etc. Coitados, obrigam a inteligência a tratos de polé, submetem-na, tremem de analisar os fatos, não querem ser empalados nem assados vivos e gritam: "Acredito!" Estamos bem longe de fazer aqui a menor alusão à fé católica. Não somente a veneramos, mas é a nossa: apenas falaremos da fé embusteira dos outros povos do mundo, dessa fé que não é fé e consiste num palavreado oco. Há uma fé para as coisas espantosas e outra fé para as coisas contraditórias e impossíveis. Visnu encamou quinhentas vezes; isso é bastante espantoso, mas fisicamente ao fim e ao cabo não é impossível; porque se Visnu tem uma alma, pode ter quinhentos corpos para se divertir. Na verdade, o indiano não tem uma fé muito viva; intimamente, não está convencido dessas metamorfoses todas: mas dirá, afinal, ao seu bonzo: "Tenho fé: pretendeis que Visnu passou por quinhentas encarnações, o que, para vós, equivale a quinhentas rupias de rendimento; está dito, é coisa assente; iríeis fazer um aranzel contra mim, iríeis denunciar-me, traríeis a ruína ao meu negócio, se não tivesse fé. Seja! tenho fé e tomai lá mais dez rupias que vos dou". O indiano pode jurar e trejurar a esse bonzo que acredita, sem fazer um falso juramento; porque, apesar de tudo, não lhe demonstrou que Visnu não tenha vindo quinhentas vezes visitar as Índias. Mas se o bonzo lhe exigir que acredite numa coisa contraditória, impossível, como, por exemplo: dois e dois são cinco, ou que o mesmo corpo pode estar em mil lugares diferentes, ou que ser e não ser é precisamente a mesma coisa; então, se o indiano disse que tem fé, mentiu, e se jura que acredita, comete um perjúrio. Diz, pois, ao bonzo: - "Reverendo padre, posso garantir-vos que acredito em todos esses disparates, contanto que vos valham dez mil rupias de rendimento em vez de quinhentas". - "Meu filho", responde logo o bonzo, "passa para cá vinte rupias e Deus te fará a graça de acreditares em tudo aquilo de que ora duvidas." - "Como quereis", responde o indiano, "que Deus opere em mim o que ele não pode operar sobre ele próprio? É impossível que Deus faça ou acredite em coisas contraditórias. Desejaria dizer-vos, para vos dar prazer, que acredito no que é obscuro; mas não posso dizer-vos que acredito no que é impossível. Deus quer que sejamos virtuosos mas não que sejamos absurdos. Já vos dei dez rupias, toma lá mais vinte; acreditai em trinta rupias, sede homem de bem se puderes e não me tortureis mais os miolos com as vossas fantasias." Filosofia SEÇÃO PRIMEIRA Escrevei filosofia ou philosophia, como preferirdes, mas concordai que desde que apareça é perseguida. Os cães a quem dais um alimento de que não gostam vos mordem. Direis que me repito, mas é preciso colocar cem vezes diante dos olhos do gênero humano que a Sagrada Congregação condenou Galileu, e que os pedantes que declararam excomungados todos os bons cidadãos que se submeteram ao grande Henrique IV foram os mesmos que condenaram as únicas verdades que podíamos encontrar nas obras de Descartes. Todos os cães do lodo teológico que ladravam uns contra os outros, ladravam em uníssono contra De Thou, contra La Mothe-le-Vayer, contra Bayle. Quantas besteiras foram escritas pelos estudantezinhos gauleses contra o sábio Locke! Os gauleses dizem que César, Cícero, Sêneca, Plínio, Marco Aurélio poderiam ser filósofos, mas que não se permite tal coisa entre os gauleses. Responde-se-lhes que é permitida e útil para os franceses, que foi ótima para os ingleses e que já é hora de exterminar a barbaria. Replicar-me-eis que não chegaremos a uma conclusão. É verdade, mas somente para o povo e os imbecis; entre as pessoas honestas é negócio feito. SEÇÃO SEGUNDA Uma das grandes pragas, como um dos grandes ridículos do gênero humano, é ver os padres se encarregarem daquilo que é da competência dos filósofos, em todos os países que chamamos de policiados, talvez com exceção da China. Tais padres puseram-se a regulamentar o ano. Era seu dever, diziam, pois era necessário que os povos conhecessem seus dias de festa. Assim os padres caldeus, egípcios, gregos, romanos, acreditaram-se matemáticos e astrônomos. Qual o quê! Estavam muito ocupados com seus sacrifícios e seus oráculos, suas divindades, seus augúrios Para estudar seriamente. Qualquer um que faça da charlatanice uma profissão não pode ter o espírito justo e esclarecido. Foram astrólogos e nunca astrônomos. Os próprios gregos inicialmente constituíram o ano com somente trezentos e sessenta dias. Foi preciso que os geômetras lhes ensinassem que se enganavam em cinco dias. Reformaram então seu ano. Outros geômetras lhes mostraram que ainda se haviam enganado em seis horas. Ífito obrigou-os a mudar seu almanaque e tiveram que acrescentar em seu ano defeituoso um dia cada quatro anos. Ífito celebrou esta mudança com a instituição das Olimpíadas. Enfim foram obrigados a recorrer ao filósofo Metão que, combinando o ano lunar com o solar, compôs um ciclo de dezenove anos, ao fim dos quais o Sol e a Lua voltavam ao mesmo ponto, com a diferença de cerca de uma hora e meia. Esse ciclo foi gravado em ouro na praça pública de Atenas. É o famoso número de ouro de que nos servimos ainda hoje com as correções necessárias. Sabemos que confusão ridícula os padres romanos introduziram no cômputo do ano. Seus disparates foram tão grandes que suas festas de verão caíram no inverno. César, o universal César, foi obrigado a fazer vir de Alexandria o filósofo Sosígenes, para reparar os enormes erros pontificais. Quando foi novamente necessário reformar o calendário de Júlio César, sob o pontificado de Gregório XIII, quem foi solicitado? Algum inquisidor? Não. Um filósofo, um médico chamado Lílio. Que se peça ao Professor Copê, reitor da universidade, para fazer o livro do "Conhecimento do Tempo" e não saberá nem mesmo do que se trata. Será preciso voltar ao Sr. De Lalande, da Academia de Ciências, encarregado desse trabalho penoso e muito mal recompensado. O Reitor Copê cometeu um estranho engano quando propôs para os prêmios da universidade este assunto tão singularmente enunciado: "Non magis Deo quam regibus, infensa est ista quae vocatur hodie philosophia" - "Esta, que chamamos hoje filosofia, não é mais inimiga de Deus do que dos reis". Quis dizer menos inimiga. Tomou magis por minus. E o pobre homem deveria saber que nossas academias não são inimigas do rei nem de Deus. SEÇÃO TERCEIRA Se a filosofia honrou a França com a Enciclopédia, é preciso admitir também que a ignorância e a inveja, que ousaram condenar essa obra, teriam coberto a nação de opróbrio se doze ou quinze convulsionários que formaram uma cabala pudessem ser olhados como os órgãos da França, quando na verdade só eram ministros do fanatismo e da sedição que forçaram o rei a quebrar a corpo ração que tinham seduzido. Suas manobras não foram tão violentas quanto as do tempo da Fronda, mas não foram menos ridículas. Sua credulidade fanática pelas convulsões e pelos sortilégios miseráveis de Saint-Médard era tão forte que obrigaram um magistrado, aliás sábio e respeitável, a dizer em pleno Parlamento que os milagres da Igreja católica subsistiam sempre. Somente as convulsões podem ser tais milagres. Seguramente não se fazem outros, a menos que se acredite nas criancinhas ressuscitadas por Santo Ovídio. O tempo dos milagres passou, a Igreja triunfante não tem mais necessidade deles. Em sã consciência, entre os perseguidores da Enciclopédia havia um único que entendesse uma palavra dos artigos de astronomia, de dinâmica, de geometria, de metafísica, de botânica, de medicina, de anatomia, que encheu os tomos desse livro tão necessário? Que multidão de imputações absurdas e de calúnias grosseiras não foram acumuladas contra esse tesouro de todas as ciências! Seria suficiente reimprimi-las logo após a Enciclopédia para eternizar sua vergonha. É o que ocorre com quem quer julgar uma obra quando não está sequer em condições -de estudá-la, Covardes! Gritaram que a filosofia arruinava a cato li cidade. Como!? Em vinte milhões de homens houve um único que tivesse molestado qualquer rato de igreja? Um único que tivesse faltado alguma vez com o respeito nas igrejas? Um único que tivesse proferido publicamente uma só palavra contra nossas cerimônias, que se aproximasse da virulência das expressões usadas então contra a autoridade real? Repetimos que nunca a filosofia fez mal ao Estado, enquanto o fanatismo, unido ao espírito de corporação, prejudicou-o sempre. SEÇÃO QUARTA Manual de Filosofia Antiga Consumi cerca de quatro anos na minha peregrinação em dois ou três rincões do mundo à procura dessa pedra filosofal chamada verdade. Consultei todos os adeptos da Antiguidade, Epicuro e Agostinho, Platão e Malebranche e permaneci em minha pobreza. Talvez em todos esses cadinhos de filósofos existam uma ou duas onças de ouro, mas todo o resto é cabeça morta, lodo insípido onde nada pode germinar. Parece-me que os gregos, nossos mestres, escreviam para mostrar seu espírito em vez de se servirem dele para se instruir. Não vejo um único autor da Antiguidade que tenha um sistema consequente, metódico, claro, indo de consequência em consequência. Eis o que pude obter aproximando e combinando os sistemas de Platão, do mestre de Alexandre, de Pitágoras e dos orientais: O acaso é uma palavra vazia de sentido e nada pode existir sem causa. O mundo está disposto segundo leis matemáticas, portanto disposto por uma inteligência. A formação do mundo não pode ter sido presidida por um ser inteligente como eu, pois não posso formar sequer um verme do queijo. Portanto, este mundo é obra: de uma inteligência prodigiosamente superior. Esse Ser, que possui inteligência e potência num grau tão alto, existe necessariamente? Deve existir, pois é preciso ou que tenha recebido seu ser de outro, ou que seja por sua própria natureza. Se recebeu seu ser de outro (o que é muito difícil de conceber), é preciso, portanto, que eu recorra a esse outro, que será, então, o primeiro motor. Para qualquer lado que me volte, devo admitir um motor primeiro necessariamente potente e inteligente por sua própria natureza. Esse primeiro motor produziu as coisas do nada? Isso não é concebível; criar do nada é mudar o nada em alguma coisa. Não devo admitir tal produção, a menos que encontre razões invencíveis que me forcem a admitir aquilo que meu espírito não pode jamais compreender. Tudo o que existe parece existir necessariamente, já que existe. Pois, se há atualmente uma razão para a existência das coisas, houve uma antes e em todos os tempos. E essa causa deve ter tido sempre seu efeito, porque, senão, teria sido durante toda a eternidade uma causa inútil. Mas como as coisas terão existido sempre, estando visivelmente sob a mão do motor primeiro? É preciso, portanto, que essa potência tenha agido e aja sempre, assim como não há sol sem luz, movimento sem um ser que passe de um ponto do espaço para outro. Há, portanto, um Ser potente e inteligente que agiu sempre, pois se não tivesse agido de que lhe teria servido a existência? Todas as coisas são, portanto, emanações eternas desse primeiro motor. Mas, como imaginar que a pedra e a lama sejam emanações do Ser eterno, inteligente e potente? É preciso de duas coisas, uma: ou que a matéria dessa pedra e dessa lama exista necessariamente por si própria, ou que exista necessariamente por este primeiro motor. Não há meio-termo. Assim, portanto, só há dois partidos possíveis: admitir a matéria eterna por si própria, ou saindo eternamente do Ser potente, inteligente, eterno. Mas, quer subsistente por sua própria natureza, quer emanada do Ser produtor, existe por toda a eternidade, já que existe e que não há nenhuma razão para que não tenha existido anteriormente. Se a matéria é eternamente necessária, é, portanto, contraditório e impossível que não seja. Porém, que homem pode assegurar que é impossível, contraditório, que esse pedregulho e essa mosca não tenham existência? Somos então forçados a engolir esta dificuldade mais espantosa para a imaginação do que contrária aos princípios do raciocínio. Com efeito, desde que concebestes que tudo emanou do Ser Supremo e inteligente, que nada emanou sem razão, que este Ser sempre existente deve ter sempre agido, que, por conseguinte, todas as coisas devem ter saído eternamente do seio dele, não deveis repelir a crença de que a matéria formadora desse pedregulho e dessa mosca é uma produção eterna, como não repelis a concepção de que a luz é uma emanação eterna do Ser todo-poderoso. Já que sou um ser extenso e pensante, minha extensão e meu pensamento são, portanto, produções necessárias desse Ser. É evidente que não posso dar a mim mesmo a extensão nem o pensamento. Portanto, recebi um e outro desse Ser necessário. Pode ter-me dado o que não tem? Tenho inteligência e estou no espaço, portanto, Ele é inteligente e está no espaço. Dizer que esse Ser eterno, esse Deus todo-poderoso, preenche necessariamente e todo o tempo o universo com suas produções não é tirar-lhe a liberdade. Pelo contrário, pois esta é o poder de agir. Deus sempre agiu plenamente, portanto, Deus sempre usou a plenitude de sua liberdade. A liberdade denominada de indiferença é uma palavra sem ideia, um absurdo, pois seria determinar-se sem razão, um efeito sem causa. Portanto, Deus não pode ter essa pretensa liberdade, que é uma contradição nos termos. Portanto, sempre agiu com a mesma necessidade que constitui sua existência. É, portanto, impossível que o mundo exista sem Deus e é impossível que Deus exista sem o mundo. Este está cheio de seres que se sucedem, portanto, Deus produziu sempre seres que se sucedem. Essas asserções preliminares são à base da antiga filosofia oriental e da dos gregos. É preciso excetuar Demócrito e Epicuro, cuja filosofia corpuscular combateu esses dogmas. Mas notemos que os epicuristas fundavam-se sobre uma física inteiramente errada e que o sistema metafísico de todos os outros filósofos subsiste com todos os sistemas físicos. Toda a Natureza, excetuando-se o vácuo, contradiz Epicuro e nenhum fenômeno contradiz a filosofia que acabo de explicar, Ora, uma filosofia que está de acordo com tudo o que se passa na Natureza e que retém os espíritos mais atentos não é superior a qualquer outro sistema não revelado? Além das asserções dos antigos filósofos, que nos resta? Um caos de dúvidas e de quimeras. Não creio que tenha existido algum filósofo vinculado a esse sistema que no fim de sua vida não tenha confessado ter perdido seu tempo. É preciso admitir que os inventores das artes mecânicas foram muito mais úteis para os homens do que os inventores dos silogismos. Aquele que imaginou a lançadeira ganha furiosamente daquele que imaginou as ideias inatas. Filósofo Filósofo, amante da sabedoria, quer dizer, da verdade. Todos os filósofos tiveram este duplo caráter: nenhum houve na Antiguidade que não desse exemplos de virtude aos homens e lições de verdades morais. Todos puderam enganar-se sobre a física; mas esta é tão pouco necessária à condução da vida que os filósofos não tinham precisão dela. Foram necessários séculos para se conhecer uma parte das leis da Natureza. Basta um dia a um sábio para conhecer os deveres do homem. O filósofo não é entusiasta, não se erige em profeta, não se diz inspirado dos deuses; assim, não incluirei nas fileiras dos filósofos nem o velho Zoroastro, nem Hermes, nem o velho Orfeu nem qualquer desses legisladores de que se orgulhavam os povos da Caldeia, da Pérsia, da Síria, do Egito e da Grécia. Os que se disseram filhos de deuses foram os pais da impostura; e, se se serviram da mentira para ensinar verdades, eram indignos de a ensinar, não eram filósofos: eram, quando muito, mentirosos cheios de prudência. Por que fatalidade, talvez vergonhosa para os povos ocidentais, é preciso ir ao extremo do Oriente para encontrar um sábio simples, sem fausto, sem impostura, que ensinava os homens a viverem felizes, seiscentos anos antes de nossa era vulgar, numa época em que todo o Setentrião ignorava ainda o uso das letras e os gregos mal começavam a distinguir-se pela sabedoria? Esse sábio é Confúcio, que, sendo legislador, nunca quis enganar os homens. Alguma vez foram conferidas, depois dele, em toda a terra, regras de conduta mais belas? "Governai um Estado tal qual governais uma família; não é possível governar bem a família sem se dar o exemplo”. "A virtude deve ser comum ao trabalhador e ao monarca”. "Ocupa-te com a preocupação de prevenir os crimes para diminuir a preocupação de os punir. "Sob os bons Reis Yao e Xu os chineses foram bons; sob os maus Reis Kie e Chu, os chineses foram maus”. "Procede com os outros como contigo mesmo”. "Ama os homens em geral, mas acarinha as pessoas de bem. Esquece as injúrias e nunca os benefícios”. "Vi homens incapazes para as ciências, nunca vi homens incapazes de virtude." Confessemos que não existe legislador que tenha anunciado verdades mais úteis ao gênero humano. Uma multidão de filósofos gregos ensinou posteriormente uma moral tão pura. Se se tivessem limitado aos seus vãos sistemas de física, não se falaria hoje nesses nomes senão jocosamente. Se ainda são respeitados, é porque foram justos e ensinaram os homens a sê-la. Não podemos ler certas passagens de Platão e sobretudo o admirável exórdio das leis de Zaleuco, sem que, no nosso coração, experimentemos o amor das ações honestas e generosas. Os romanos tiveram o seu Cícero, que sozinho vale talvez todos os filósofos da Grécia. Depois, aparecem homens ainda mais respeitáveis que quase desesperamos de imitar: é Epicteto na escravidão, são os Antoninos e os Julianos sobre o trono. Que cidadão entre nós se privaria, como Juliano, Antonino e Marco Aurélio, de todas as delicadezas da nossa vida mole, efeminada? Quem dormiria como eles sobre o chão duro? Quem desejaria impor-se a sua frugalidade? Quem marcharia com eles, a pé e de cabeça nua, à testa dos exércitos, expostos ora aos ardores do sol, ora às geadas? Quem comandaria como eles todas as suas paixões? Entre nós, existem os devotos; mas onde estão os sábios? Onde estão as almas inabaláveis, justas e tolerantes? Houve filósofos de gabinete em França; e todos, exceto Montaigne, foram perseguidos. Parece-me que o último grau da malignidade da nossa natureza está em querermos oprimir os filósofos que a querem corrigir. Concebo perfeitamente que os fanáticos de uma seita degolem os entusiastas de outra, que os franciscanos odeiem os dominicanos e que um mau artista intrigue para levar à perda quem o exceda; mas que o sábio Charron tenha estado ameaçado de perder a vida, que o sabedor e generoso Ranus tenha sido assassinado, que Descartes fosse obrigado a fugir para a Holanda a fim de escapar à raiva dos ignorantes, que Gassendi tenha sido forçado algumas vezes a retirar-se para Digne, longe das calúnias de Paris, eis o eterno opróbrio de uma nação. Um dos filósofos mais perseguidos foi o imortal Bayle, honra da natureza humana. Dir-me-ão que o nome de Jurieu, seu caluniador e seu perseguidor, se tornou execrável, reconheço-o; o do jesuíta Le Tellier assim se tornou também; mas os grandes homens que ele oprimia deixaram por isso de acabar os seus dias no exílio e na miséria? Um dos pretextos usados para acabrunharem Bayle e para o reduzirem à pobreza foi o artigo Davi, do seu útil dicionário. Censuravam-lhe não ter ele louvado ações que, em si, ora se revelam injustas, sanguinárias, atrozes, ora são contrárias à boa fé, ora fazem corar o pudor. Na verdade, Bayle não louvou Davi por haver reunido seiscentos vagabundos, cobertos de dívidas e de crimes; por haver pilhado os seus compatriotas, à testa desses bandidos; por ter vindo no desígnio de degolar Nabal e toda a família deste, que não quisera pagar as contribuições; por ter ido vender os seus serviços ao Rei Achis, inimigo do seu povo; por ter traído esse Rei Achis, seu benfeitor; por haver massacrado em certas aldeias as próprias crianças de peito, receoso de que aparecesse um dia alguém que pudesse denunciar as suas depredações, como se uma criança de peito fosse capaz de revelar tais crimes; por ter feito perecer todos os habitantes de outras aldeias sob serras, sob grades de ferro, a machadada e em fornos; por haver roubado o trono a Isboseth, filho de Saul, mercê de uma perfídia; por haver despojado e feito perecer Mifiboseth, neto de Saul e filho do seu amigo e protetor Jônatas; por haver entregado aos gabaonitas dois outros filhos de Saul e cinco dos seus netos, que morreram no cadafalso. Já não falo da prodigiosa incontinência de Davi, das suas concubinas, do adultério com Betsabé e do assassínio de Uria. Como assim! Pois os inimigos de Bayle quereriam que este fizesse o elogio de tais crueldades e de tais crimes? Seria preciso que ele dissesse: "Príncipes da terra, imitai o homem que agiu segundo o coração de Deus; massacrai sem piedade os aliados do vosso benfeitor, degolai ou fazei degolar toda a família do vosso rei; dormi com todas as mulheres, fazendo correr o sangue dos homens; e sereis um modelo de virtudes quando se disser que haveis composto salmos"? Não teria Bayle muita razão quando disse que se Davi era segundo o coração de Deus, o foi pela sua penitência e não pelos seus crimes? Não teria Bayle prestado serviço ao gênero humano ao dizer que Deus, que sem dúvida ditou toda a história judaica, nem por isso canonizou todos os crimes relatados nessa história? No entanto, Bayle foi perseguido; e por quem? Por homens perseguidos noutros lugares, por fugitivos que na sua pátria seriam lançados às chamas; e esses foragidos eram atacados por outros foragidos chamados jansenistas, expulsos do seu país pelos jesuítas, que, por seu turno, foram finalmente expulsos. Assim, todos os perseguidores se declararam em guerra mortal, ao passo que o filósofo, oprimido por todos eles, se contentou em lamentá-los. Sabe-se bem que Fontenelle esteve a ponto, em 1713, de perder as suas pensões, o seu lugar e a sua liberdade, por haver redigido em França, vinte anos antes, o Tratado dos Oráculos do sábio Van Dale, de onde expurgara com precaução tudo o que poderia alarmar o fanatismo. Um jesuíta escrevera contra Fontenelle, que não se dignara responder; e foi quanto bastou para que o jesuíta Le Tellier, confessor de Luís XIV, o acusasse junto do rei de ateísmo. Sem. o Senhor de Argenson, aconteceria que o digno filho de um falsário, procurador em Vire, e ele próprio falsário reconhecido, conseguia proscrever a velhice do sobrinho de Corneille. É tão fácil seduzir-se o seu penitente que devemos dar graças a Deus por esse Le Tellier não ter feito ainda mais mal. Há dois covis no mundo em que não é possível fazer frente à sedução e à calúnia: a cama e o confessionário. Sempre vimos os filósofos perseguidos por fanáticos; mas será possível que os homens de letras se imiscuam também e eles próprios aticem contra os seus confrades as armas com que todos são trespassados, uns após outros? Infelizes letrados! Incumbe-vos, pois, ser delatores? Vede se alguma vez entre os romanos houve gente como Garasse, Chaumeix, Hayer, que acusasse os Posidônios, os Varrões, os Plínios. Ser hipócrita, que baixeza! Mas ser hipócrita e maldoso, que horror! Nunca houve hipócritas na antiga Roma, que nos contava como uma pequena partedos seus súditos. Havia malandrins, reconheço-o, mas não hipócritas da religião, que constituem a espécie mais cobarde e mais cruel de todas. Por quejá não se veem em Inglaterra e de onde vem que existam ainda em França? Filósofos, ser-vos-à fácil resolver esse problema, Fim, Causas Finais. Parece que se há de ser de feitio muito arrebatado para negar que os estômagos foram feitos para digerir, os olhos para ver, as orelhas para ouvir. Por outro lado, será preciso ter um amor extraordinário pelas causas finais para garantir que a pedra foi formada para construir casas e que os bichos-da-seda nasçam na China a fim de termos cetim na Europa. Mas, dizem, se Deus fez uma coisa visivelmente com determinado desígnio, fez igualmente todas as coisas com um desígnio determinado. É ridículo admitir a Providência num caso e negá-la nos outros. Tudo aquilo que está feito foi previsto, foi antecipadamente calculado. Não há arranjo sem objetivo, nem efeito sem causa; logo, tudo é igualmente o resultado, o produto duma causa final; logo é tão verdadeiro dizer que os narizes foram feitos para trazer lunetas e os dedos para serem adornados de diamantes, como é verdade dizer que as orelhas foram formadas para ouvir os sons e os olhos para receberem a luz. Creio que se pode esclarecer facilmente essa dificuldade. Quando os efeitos são invariavelmente os mesmos, em qualquer lugar e em qualquer tempo, quando esses efeitos uniformes são independentes dos seres aos quais pertencem, nesse caso há, visivelmente, uma causa final. Todos os animais têm olhos e veem; todos têm orelhas e ouvem; todos têm boca, com a qual comem; estômago, ou coisa parecida, por onde digerem; todos têm um orifício que expulsa os excrementos; todos, também, um instrumento adequado à procriação: e tais dons da Natureza atuam neles sem que nenhuma arte se intrometa. Eis algumas causas finais claramente estabelecidas e é perverter o nosso pensamento negar uma verdade tão universal. Mas as pedras, em qualquer lugar e em qualquer época, não formam edifícios; nem todos os narizes trazem óculos; nem todos os dedos trazem anéis; nem todas as pernas andam de meias de seda. Um bicho-da-seda portanto não é feito para cobrir as minhas pernas, como a vossa boca é feita para comer e o vosso traseiro para ir à retrete. Portanto, há efeitos produzidos por causas finais e efeitos em grande quantidade a que não se pode dar esse nome. Mas uns e outros estão igualmente no plano da Providência geral: sem dúvida, nada se faz contra a vontade da Providência, nem, até, sem ela. Tudo o que pertence à Natureza é uniforme, imutável, é a obra imediata do Mestre; foi ele quem criou as leis pelas quais a Lua entra em três quartos como sendo a causa do fluxo e refluxo do oceano, e o Sol como no quarto restante; foi ele que deu um movimento de rotação ao Sol, pelo qual este astro emite em cinco minutos e meio raios de luz nos olhos dos homens, dos crocodilos e dos gatos. Mas se, após tantos séculos, nos lembramos de inventar tesouras e espetos para assar, e tosquiamos com umas a lã dos carneiros e pomo-los a assar nos espetos para os comer, poder-se-á concluir outra coisa que não seja que Deus nos fez de maneira que, um dia, nos havíamos de tornar forçosamente industriosos e carnívoros? Os carneiros por certo não foram criados para serem cozidos e comidos, pois vários são os povos que se abstêm desse horrível crime. Os homens não são criados essencialmente para se massacrarem, pois os bramas e os quacres não matam ninguém; mas a massa de que somos moldados produz muitas vezes massacres, tal como produz calúnias, vaidades, perseguições e impertinências. Não é que a formação do homem seja precisamente a causa final dos nossos furores e das nossas parvoíces: porque uma causa final é universal e invariável em qualquer tempo e em qualquer lugar; mas os horrores e absurdezas da espécie humana não são menores por isso, na ordem eterna das coisas. Quando malhamos o trigo, o mangual é a causa final da separação do grão. Mas se esse mesmo mangual, malhando o grão, esmaga mil insetos, tal não acontece pela minha vontade determinante, e também não acontece por um simples acaso: é que esses insetos se encontraram desta vez debaixo do meu mangual e deviam encontrar-se ali mesmo. É uma consequência da natureza das coisas que um homem seja ambicioso, que esse homem por vezes arregimente outros homens, que seja vencedor ou derrotado; mas nunca se poderá dizer: o homem foi criado por Deus para ser morto na guerra. Os instrumentos que a Natureza nos deu não podem ser sempre as causas finais em movimento, que provoquem um efeito infalível. Os olhos, concedidos para ver, não estão sempre abertos; cada sentido tem os seus tempos de repouso. Há, até, sentidos que nunca usamos. Por exemplo, uma infeliz idiota, encerrada dentro dum claustro aos quatorze anos, fecha nela para sempre a porta donde devia sair uma geração nova; mas nem por isso a causa final subsiste menos; e agirá se a pobrezinha for libertada. Fraude Será necessário empregar fraudes piedosas com o povo? O faquir Bambabef encontrou-se um belo dia com um discípulo de Confutzeu, a quem nós chamamos Confúcio, e esse fulano chamava-se Uang; Bambabef afirmava que o povo precisa de ser enganado e Uang teimava que nunca se deve enganar ninguém. Em seguida, resume-se essa discussão. BAMBABEF Devemos imitar o Ser Supremo, que não nos mostra as coisas tal como são; faz-nos ver o Sol com um diâmetro de dois ou três pés, embora o astro seja um milhão de vezes maior do que a Terra; faz-nos ver a Lua e as estrelas pregadas sobre um fundo azul igual, quando estão a distâncias diferentes. Quer que uma torre quadrada de longe nos pareça redonda; quer que o fogo pareça quente, quando não é quente nem frio; finalmente, rodeia-nos de erros convenientes à nossa natureza. UANG Aquilo a que chamais erro não o é. O Sol, tal como está situado a milhões de lis distante do nosso globo, não é aquele que vemos. Na realidade, apenas distinguimos, e não podemos ver senão isso, o Sol que se retrata na nossa retina, sob um ângulo determinado. Os nossos olhos não nos foram dados para conhecer as grandezas nem as distâncias; para as saber, precisamos socorrer-nos de outros instrumentos e de outras operações. Bambabef pareceu ficar muito espantado com essa afirmação. Uang, que era dotado de muita paciência, explicou-lhe então a teoria da óptica; e Bambabef, que possuía qualidades de concepção, rendeu-se, aceitou as demonstrações do discípulo de Confutzeu; depois, a disputa recomeçou nos seguintes termos: BAMBABEF Se Deus não nos engana com o concurso dos nossos sentidos, como eu supunha, pelo menos confessai que os médicos enganam sempre as crianças para bem delas: dizem-lhes que lhes dão açúcar e na realidade dão-lhes ruibarbo. Logo eu, como faquir que sou, posso enganar o povo, que é tão ignorante como as crianças. UANG Eu cá tenho dois filhos e nunca os enganei; se por acaso estão doentes, digo-lhes: "Este remédio é muito amargoso, é preciso um bocadinho de coragem para o tomar; mas se fosse doce, fazia-lhes mal". Nunca consenti que as amas e os preceptores lhes metessem medo com espíritos, almas penadas, fadas e bruxas: e por esse processo, consegui fazer deles cidadãos corajosos e sensatos. BAMBABEF o povo não nasceu com tanta felicidade, não foi tão feliz ao nascer como a vossa família. UANG Os homens são todos semelhantes uns aos outros; nascem todos com as mesmas faculdades e inclinações. Os faquires é que são culpados, corrompem a natureza dos homens. BAMBABEF É verdade que lhes ensinamos coisas erradas, confesso; mas é para o bem deles. Fazemos-lhes crer que, se não comprarem os nossos pregos bentos, se não expiarem os pecados dando-nos dinheiro, tornar-se-ão na vida futura cavalos de posta, cães ou lagartos: ora, isso mete-lhes muito medo e tornam-se pessoas de bem. UANG Mas então não vedes que assim contribuís para perverter essa pobre gente? Há entre eles, e muito mais do que se possa pensar, gente que raciocina, que troça dos vossos milagres, das vossas artes milagreiras, das vossas tontas superstições, gente que vê, perfeitamente, que não será transformada em lagartos nem em cavalos de posta. E que sucede, então? Possuem o suficiente bom senso para perceberem que lhes estais a pregar uma religião impertinente e não têm o bom senso bastante para se elevarem a conceber uma religião pura e livre de superstições, tal como é a nossa. As suas paixões fazem-lhes crer que não há religião nenhuma, porque a única que lhes ensinam é grotesca; assim vos tornais culpados de todos os vícios em que se atascam e se afundam. BAMBABEF Isso é mentira! Só lhes ensinamos uma boa e justa moral. UANG Seríeis decerto lapidados pelo povo se lhes ensinásseis uma moral impura. Os homens são feitos de maneira que, por muito que queiram cometer o mal, não gostam que lho preguem. Apenas era necessário não misturar uma moral sábia com fábulas absurdas, porque enfraqueceis com as vossas imposturas, sem as quais bem podíamos passar, essa moral justa que sois forçados a ensinar. BAMBABEF Homessa! Então acreditais que se pode ensinar a verdade ao povo sem a apoiar em fábulas? UANG Acredito-o firmemente. Os nossos letrados são feitos da mesma massa que os nossos alfaiates, tecelões e lavradores. Adoram todos um Deus criador, que premia e castiga. Não conspurcam o seu culto com sistemas absurdos, nem cerimônias disparatadas; e praticam-se muito menos crimes entre a gente letrada que entre o povinho ignorante, a gentinha ignara. Por que razão não nos dignaríamos instruir os nossos operários da mesma maneira como instruímos os nossos letrados? BAMBABEF Seria forte tolice; é o mesmo que se quisésseis que tivessem uma delicadeza semelhante, que fossem todos jurisconsultos: mas tal coisa não é possível nem conveniente. Deve haver pão alvadio para os amos e pão escuro para os criados. UANG Confesso. Reconheço que os homens não devem ter todos a mesma ciência; mas há coisas indispensáveis a todos. É necessário que cada um seja justo e a maneira mais segura de inspirar a justiça a todos os homens é inspirar-lhes a religião sem superstição. BAMBABEF Excelente projeto, mas impraticável. Pensais que basta que os homens acreditem num Deus que castiga e que recompensa? Haveis-me dito que sucede com frequência que os mais isentos dentre o povo se revoltam contra as minhas fábulas; pois também se hão de revoltar contra as vossas verdades. Vão dizer: "Quem me poderá garantir que Deus castiga e recompensa? Onde está a prova? Que missão é a vossa? Que milagre fizestes para que vos acredite?" E troçarão de vós, muito mais do que de mim. UANG É esse o vosso erro. Imaginais que sacudirão o jugo de uma ideia honesta, verossímil, útil a toda a gente, de uma ideia que está de acordo com a razão humana, porque se repelem coisas desonestas, absurdas, inúteis, perigosas, que causam arrepios ao bom senso. O povo está sempre disposto a acreditar nos seus magistrados: quando os seus magistrados lhes propõem apenas uma crença razoável, perfilham-na de boa vontade. Para nada são precisos prodígios. Em nada são precisos prodígios para acreditarmos num Deus justo, o qual lê no coração dos homens; uma ideia como esta é natural demais para ser combatida e repelida. Nem é necessário dizer como Deus punirá ou recompensará; é suficiente o acreditar na sua justiça. Garanto-vos que vi cidades inteiras as quais quase não tinham outros dogmas além desse e que são aquelas mesmas onde reparei que a virtude era maior. BAMBABEF Tomai cuidado: achareis nessas cidades filósofos que vos hão de negar não só os castigos como também as recompensas divinas. UANG Pois haveis de confessar que esses tais filósofos negarão ainda com mais veemência as vossas invencionices; por aí não vos governais. Por essa banda, não vos governareis. E mesmo quando ali houvesse filósofos que não acatassem os meus princípios, não deixariam por causa disso de serem pessoas de bem, lá por isso não cultivariam menos a virtude, que deve ser perfilhada pelo amor e não pelo medo. Aliás, sustento que daqui em diante nenhum filósofo há de garantir que a Providência não reserva castigos aos maus e recompensas aos bons; porque se me perguntarem quem me disse que Deus castiga, eu hei de perguntar-lhes quem disse que Deus não castiga. Finalmente, afirmo-vos que os filósofos me ajudarão, em vez de me contradizerem. Ora dizei: quereis ser também filósofo? BAMBABEF Com todo o gosto; mas não o vás dizer aos faquires. G Gênesis Não vamos antecipar nada do que dizemos de Moisés no seu artigo; limitar-nos-emos a acompanhar alguns traços principais do livro do Gênesis, um após outro. "No princípio, Deus criou o céu e a terra." Assim se traduziu, mas esta tradução não é exata. Não haverá homem algum tanto instruído desconhecendo que o texto menciona: "No princípio, os deuses fizeram ou os deuses fez o céu e a terra". Esta lição conforma-se, aliás, com a antiga ideia dos fenícios, os quais imaginavam que Deus usava os deuses inferiores para deslindar o caos, o chautereb. Os fenícios constituíam, havia longo tempo, um povo poderoso, com uma teogonia própria, muito antes de os hebreus se haverem apoderado de algumas aldeias na região. É, pois, natural supor que quando os hebreus lograram finalmente estabelecer-se numa pequena zona da Fenícia, houvessem começado a aprender a língua, sobretudo desde que ali foram escravizados. Então, os que se ocupavam em escrever alguma coisa copiaram da antiga teologia dos seus senhores: tal é a marcha do espírito humano. Na época em que situamos Moises, os filósofos fenícios sabiam provavelmente o bastante para olharem para a Terra como um ponto, confrontada com a infinita multidão de globos que Deus colocou na imensidão do espaço a que se chama céu. Porém, a ideia, tão antiga e tão falsa, de que o céu foi feito para a Terra prevaleceu quase sempre entre o povo ignorante. É como- se disséssemos que Deus criou todas as montanhas e um grão de areia e imaginássemos que essas montanhas tinham sido criadas para esse grão de areia. É impossível que os fenícios, tão bons navegadores, não fossem também bons astrônomos; mas os velhos preconceitos prevaleciam e esses velhos preconceitos foram a única ciência dos judeus. "A terra era informe e vazia; as trevas estavam sobre a face do abismo e o espírito de Deus era levado sobre as águas." Informe significa precisamente caos, desordem; trata-se de uma dessas expressões imitativas que se encontram em todas as línguas, como "de pernas para o ar", "chinfrim", "zabumbada". A terra ainda não estava formada tal qual é; a matéria existia mas ainda não fora organizada pela potência divina. O espírito de Deus significa o sopro, o vento, que agitava as águas. Esta ideia encontra-se expressa nos fragmentos do autor fenício Sanchoniathon. Os fenícios, como todos os outros povos, supunham eterna a matéria. Nunca na Antiguidade autor algum pretendeu que algo houvesse sido tirado do nada. Não se encontra mesmo, em toda a Bíblia, qualquer passagem em que se diga que a matéria fosse feita de nada. Sempre os homens se dividiram quanto à questão da eternidade do mundo, mas nunca quanto à eternidade da matéria. Gigni De nihilo nihilum, in nihilum nil posse reverti: Eis a opinião de toda a Antiguidade. "Deus disse: Faça-se a Luz, e a luz foi feita e viu Deus que a luz era boa; e separou a luz das trevas; e à luz chamou dia, e às trevas noite; e a tarde e a manhãforam o primeiro dia. E Deus disse também: Que o firmamento se faça no meio das águas e separe as águas das águas; e Deus fez o firmamento e separou as águas acima do firmamento das águas abaixo do firmamento; e ao firmamento Deus chamou céu; e a tarde e a manhã foi o segundo dia e Deus viu que isso era bom." Comecemos por examinar se o bispo de Avranches, Huet, e Leclerc não têm evidente razão contra os que pretendem encontrar aqui um rasgo de eloquência sublime. Tal eloquência nunca é afetada em qualquer das histórias escritas pelos judeus. Aqui, como em todo o resto da obra, o estilo é da maior simplicidade. Se um orador, para transmitir o poder de Deus, empregasse apenas esta expressão: "Ele disse: Que a luz seja, e a luz foi", estaríamos então perante o sublime. Tal é a seguinte passagem de um salmo: Dixit, et facta sunt. Trata-se de um rasgo que, sendo único no seu contexto e colocado para constituir uma grande imagem, fere e transporta o espírito. Aqui, porém, a narrativa é das mais simples. O autor judeu não fala da luz de maneira diferente da dos outros objetos da criação; em cada versículo, diz igualmente: E Deus viu que isso era bom. Tudo é sublime na criação, sem dúvida; mas a da luz não o é mais que a da erva dós campos: o sublime define-se como aquilo que se eleva acima do restante, ao passo que o mesmo tom reina em todo este capítulo. A opinião de que a luz não viria do Sol era muitíssimo antiga. Via-se como difusa no ar antes do nascer e após o desaparecimento desse astro; supunha-se que o Sol servia tão só para a intensificar. Também o autor do Genesis se conforma com este erro popular e, por uma singular reviravolta da ordem das coisas, não faz criar o Sol e a Lua senão quatro dias depois da luz. Não se consegue conceber como há uma manhã e uma tarde antes que haja um Sol. Existe aqui uma confusão impossível de deslindar. O inspirado autor conformava-se com os vagos e grosseiros preconceitos da sua nação. Deus não pretendia ensinar filosofia aos judeus. Podendo elevar o espírito dos judeus até à verdade, preferia descer até eles. A separação da luz e das trevas não se mostra de melhor física; parece que a noite e o dia estariam conjuntamente misturados, como grãos de espécies diferentes que se separam uns aos outros. Sabe-se bem que as trevas são apenas a privação de luz e que não há luz senão enquanto os nossos olhos recebem esta sensação. À data, porém, estava-se muito longe de conhecer tais verdades. A ideia de um firmamento remonta também à mais alta Antiguidade. Imaginava-se que os céus eram muito sólidos, uma vez que os mesmos fenômenos eram aí invariavelmente observados. Os céus rolavam sobre as nossas cabeças, logo tinham de ser de matéria bem dura. E como avaliar quanto as exalações da terra e dos mares podem fornecer de água às nuvens? Nenhum Halley havia capaz de chegar a esse cálculo. Portanto, existiam reservatórios de água no céu. Forçoso era que semelhantes reservatórios fossem sustentados por uma boa abóbada; logo, esta era de cristal. Para que as águas superiores caíssem da abóbada sobre a terra, tomava-se necessário que aí houvesse comportas, diques, cataratas, que se abrissem e fechassem. Tal era a astronomia de então; e, posto que se escrevia para judeus, impunha-se a adoção das suas ideias. "Deus fez duas grandes luminárias; uma para governar o dia, a outra, a noite; e fez também as estrelas." Sempre a mesma ignorância da natureza. Os judeus desconheciam que a Lua só ilumina mediante uma luz refletida. O autor fala das estrelas como de uma bagatela, embora elas sejam outros tantos sóis, cada um deles com mundos girando em torno. O Espírito Santo acomodava-se ao espírito do tempo. "Deus disse também: Façamos o homem à nossa imagem, e que ele domine os peixes, etc”. Que entendiam os judeus por façamos o homem à nossa imagem? O que toda a Antiguidade entendia: Finxit in effigiem moderantum cuncta deorum. Só dos corpos se fazem imagens. Nenhuma nação imaginou um deus sem corpo e é impossível representá-lo diferentemente. Pode-se dizer "Deus nada é do que conhecemos"; mas é impossível ter qualquer ideia do que seja Deus. Os judeus consideraram constantemente Deus como corpóreo, a exemplo de todos os outros povos. Do mesmo modo, os primeiros Padres da Igreja consideravam Deus corpóreo antes de abraçarem as ideias de Platão. "Ele criou-os macho e fêmea”. Se Deus ou os deuses secundários criaram o macho e a fêmea à sua semelhança, parece, nesse caso, que os judeus consideravam Deus e os deuses como machos e fêmeas. Não se sabe, aliás, se o autor quer dizer que o homem começou por ter os dois sexos ou se entende que Deus fez Adão e Eva no mesmo dia. O sentido mais natural será o de que Deus formou Adão e Eva ao mesmo tempo; todavia, esse sentido contradiz absolutamente a formação da mulher, feita de uma costela do homem, muito tempo depois dos sete dias. "E Deus descansou no sétimo dia." Os fenícios, os caldeus, os indianos diziam que Deus fizera o mundo em seis tempos, pelo velho Zoroastro designados os seis gahambârs, tão célebres entre os persas. É incontestável que todos estes povos tinham uma teologia antes de a horda hebraica habitar os desertos de Horeb e do Sinai, antes de, entre essa horda, poder haver escritores. É, portanto, muito verossímil que a história dos seis dias tenha sido imitada da dos seis tempos. "Do lugar das delícias saía um rio que regava o jardim e de lá se repartia em quatro rios: ao primeiro se chama Pison, que torneia a terra de Hévilath de onde vem o ouro... ao segundo se chama Géhon, que rodeia a Etiópia, ... o terceiro é o Tigre e o quarto o Eufrates”. Segundo esta versão, o paraíso terrestre conteria perto de um terço da Ásia e da África. O Eufrates e o Tigre têm as suas nascentes a mais de sessenta vastas léguas um do outro, em montanhas horríveis que por nada se assemelham a um jardim. O rio que bordeja a Etiópia, e que não pode ser senão o Nilo ou o Níger, começa a mais de setecentas léguas das nascentes do Tigre e do Eufrates; e se Pison é o Fase, não deixa de surpreender a inclusão no mesmo local das nascentes de um rio da Cítia e de um rio de África. De resto,o jardim do Éden é visivelmente uma versão dos jardins de Éden em Saana, na Arábia Feliz, famosa em toda a Antiguidade. Os hebreus, povo muito recente, eram uma horda árabe. Honravam-se pois com o que de mais belo existia no melhor cantão da Arábia. Aliás, sempre fizeram uso próprio das antigas tradições dos grandes povos entre os quais constituíam um enclave. "O Senhor tomou, pois, o homem e o pós no jardim das delícias para que o cultivasse”. Cultivar o seu jardim é algo de muito louvável, mas seria bem difícil para Adão cultivar um jardim de setecentas ou oitocentas léguas de extensão: tudo leva a crer que lhe deram ajudas. "Não comerás o fruto da ciência do bem e do mal”. É difícil conceber que existisse uma árvore capaz de ensinar o bem e o mal, tal como existem pereiras e damasqueiros. De resto, por que razão não quereria Deus que o homem conhecesse o bem e o mal? Não seria o contrário muito mais digno de Deus e muito mais necessário ao homem? Parece à nossa pobre razão que Deus deveria ordenar ao homem que abundantemente comesse desse fruto; mas há que submeter a nossa razão. "Se dele comeres, morrerás." No entanto, Adão comeu e não morreu disso. Pelo contrário, fizeram-no viver ainda novecentos e trinta anos. Muitos Padres encararam tudo isto como uma alegoria. Com efeito, poder-se-ia querer dizer que os outros animais não sabem que morrerão, ao passo que o homem o sabe em virtude da sua razão. Assim, a razão é a árvore da ciência que o faz prever o seu fim. Esta explicação seria talvez a mais razoável. "O Senhor disse também: não é bom que o homem esteja só; façamos-lhe uma coadjutora a ele semelhante”. Fica-se a esperar que o Senhor lhe vá dar uma mulher; nada disso: o Senhor traz-lhe todos os animais. "E o nome que A dão deu a cada animal é o verdadeiro nome de cada um deles”. O que se poderá entender por verdadeiro nome de um animal será um nome que abriga todas as propriedades da sua espécie ou, pelo menos, as principais; em língua alguma, porém, existem semelhantes nomes. Todos contêm palavras imitativas, como coq em celta que de certo modo designa o canto do galo, lupus em latim, etc. Todavia, estas palavras imitativas são em número reduzido. Além disso, se Adão conhecesse assim todas as propriedades dos animais, ou já tinha comido o fruto da ciência, ou Deus não precisava de lhe proibir esse fruto. Reparemos ser esta a primeira vez que Adão é nomeado no Gênesis. O primeiro homem, para os antigos brâmanes, prodigiosamente anteriores aos judeus, chamava-se Adimo, o filho da terra, e sua mulher, Procriti, a vida; é o que reza o Veidam, talvez o mais antigo livro do mundo. Adão e Eva significavam estas mesmas coisas na língua fenícia. "Logo que Adão adormeceu, Deus tomou-lhe uma das costelas e pos carne em seu lugar e da costela que tirara a A dão formou uma mulher, e trouxe-a a Adão”. O Senhor, um capítulo antes, havia já criado o macho e a fêmea; portanto, por que subtrair uma costela ao homem para daí, fazer uma mulher já existente? Tem-se respondido que o autor anuncia num sítio e que explica noutro. "Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais da Terra, etc.; e disse à mulher, etc." Não se faz neste artigo qualquer menção ao diabo; tudo aí é físico. A serpente era olhada não só como o mais astuto dos animais mas ainda como imortal. Entre os caldeus havia a fábula de uma querela entre Deus e a serpente, fábula essa conservada por Phérécyde. Orígenes cita-a no Livro VI contra Celso. Nas festas de Baco, era transportada uma serpente. Os egípcios associavam uma espécie de divindade à serpente, segundo o relato de Eusébio na sua Preparação Evangélica, Livro I, cap. 10. Na Arábia e nas Índias, na própria China, a serpente era olhada como o símbolo da vida; daí resultou que os imperadores da China, anteriores a Moisés, trouxessem sempre no peito a imagem de uma serpente. Eva não se admira nada que a serpente lhe fale. Em todas as histórias antigas os animais falaram e, por isso mesmo, quando Pilpai e Loqman fizeram falar os animais, ninguém se surpreendeu. Toda esta aventura é tão física e tão desprovida de qualquer alegoria, que nos damos conta do motivo por que a serpente rasteja desde então sobre o ventre, do motivo por que sempre a procuramos esmagar e do motivo por que sempre a serpente procura morder-nos; precisamente como, nas antigas metamorfoses, todos se davam conta do motivo por que o corvo, outrora branco, é agora negro, do motivo por que o mocho só de noite sai do seu buraco, do motivo por que o lobo gosta da carnagem, etc. "Multiplicarei as tuas misérias e as tuas concepções; e terás os teus filhos com dor; e sob o poder do homem ficarás e ele te dominará”. Não se percebe que a multiplicação de concepções constitua um castigo. Sustenta-se, pelo contrário, que era uma grande bênção, principalmente entre os judeus. As dores do parto só são consideráveis nas mulheres delicadas; as acostumadas ao trabalho concebem muito facilmente, sobretudo nos climas quentes. Por vezes, há animais que sofrem grandemente durante a gravidez; em alguns casos, chegam mesmo a morrer. E quanto à superioridade do homem sobre a mulher, trata-se de uma coisa inteiramente natural: é o efeito da força do corpo e, até, da do espírito. Em geral, os homens dispõem de órgãos mais capazes de atenção persistente que as mulheres e são mais aptos para os trabalhos da cabeça e do braço. Porém, quando a mulher tem o pulso e o espírito mais fortes que o marido, torna-se, em qualquer lado, a dominadora: nesse caso, é o marido que fica submetido à mulher. "O Senhor fez-lhes túnicas de peles”. Esta passagem prova bem que os judeus supunham Deus corpóreo, uma vez que o fazem exercer o oficio de alfaiate. Um rabino chamado Eliezer escreveu que Deus cobrira Adão e Eva com a pele da própria serpente que os tentara e Orígenes pretende que esta túnica de pele era uma nova carne, um novo corpo que Deus fez ao homem. "E o Senhor disse: Eis A dão, que se tornou como um de nós”. É preciso renunciar ao senso comum para não admitir que os judeus começaram por admirar numerosos deuses. Já é mais difícil apurar o que entenderiam eles pela palavra Deus, Eloim. Alguns comentadores pretenderam que a expressão um de nós significa a Trindade, mas é indubitável que nunca a Bíblia põe em causa a Trindade. A Trindade não é um composto de vários deuses, mas é o próprio Deus triplo, e os judeus jamais ouviram falar de um deus em três pessoas. Pela expressão semelhante a nós é verossímil que os judeus entendessem os anjos, Eloim, e, por conseguinte, o livro só teria sido escrito depois de adotarem a crença nestes deuses inferiores. "O Senhor o pôs fora do jardim das delícias, para que ele cultivasse a terra”. Contudo, o Senhor havia-o posto no jardim das delícias para que ele cultivasse esse jardim. Se de jardineiro Adão se tornou lavrador devemos confessar que o seu estado não piorou muito com a mudança: um bom lavrador vale bem um bom jardineiro. Toda esta história se refere, em geral, segundo comentadores demasiado arrojados, à ideia que todos os homens tiveram, e ainda têm, de que os primeiros tempos valiam mais que os novos. Sempre o presente foi lamentado e gabado o passado. Os homens, sobrecarregados de trabalhos, localizaram na ociosidade o bem-estar, sem se darem conta de que o pior dos estados é o do homem sem nada que fazer. Tantas vezes se viram infelizes, que forjaram a ideia de um tempo em que todo o mundo conhecera a felicidade. É pouco mais ou menos como se disséssemos: "Houve tempos em que. nenhuma árvore perecia, em que nenhum animal era doente, nem fraco, nem devorado por outro". Daí, a ideia do Século de Ouro, do ovo varado por Ariarnane, da serpente que furtou ao asno a receita da vida feliz e imortal que o homem pusera sob a albarda; daí, o combate de Tifon contra Osíris, de Ofioneu contra os deuses, e essa famosa caixa de Pandora, e todos esses velhos contos, alguns divertidos, nenhum instrutivo. "E Deus pós no jardim das delícias um querubim que brandia circularmente um gládio flamejante, para guardar a entrada da árvore da vida”. A palavra Kerub significa boi. Um boi armado com um sabre flamejante constitui uma estranha figura ao pé de uma porta. Todavia, os judeus representaram, posteriormente, anjos sob a forma de bois e de gaviões, isto não obstante lhes ser proibido construir qualquer figura. Esses bois e esses gaviões, recolheram-nos visivelmente no Egito, onde imitaram tantas coisas. Os egípcios, nos primeiros tempos, veneraram o boi como símbolo da agricultura e o gavião como símbolo dos ventos; mas nunca transformaram um boi em porteiro. "Os deuses, Eloim, viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram para esposas as que escolheram”. Ainda uma imagem comum a todos os povos. Não há nação alguma, salvo a China, em que um deus qualquer não tenha vindo fazer filhos às moças. Estes deuses corpóreos desciam com frequência à terra, em visita aos seus domínios, viam as nossas filhas e lançavam mão das mais bonitas; as crianças nascidas do comércio entre estes deuses e os mortais deviam ser superiores aos outros homens e, assim, o Gênesis não deixa de afirmar que os deuses que dormiam com as nossas filhas produziam gigantes. "E farei virem sobre a terra as águas do dilúvio”. Aqui, notarei somente que Santo Agostinho, na Cidade de Deus, nº 8, diz: Maximum illud diluvium Graeca nec Latina novit historia: nem a história greganem a latina conhecem este grande dilúvio. Com efeito, só foram conhecidos os de Deucalião e Oxyges, na Grécia, vistos como universais nas fábulas recolhidas por Ovídio, mas inteiramente ignorados na Ásia oriental. "Deus disse a Noé: Vou fazer um pacto contigo e com a tua semente depois de li, e com todos os animais”. Deus fazer um pacto com os animais! Que pacto!, exclamam os incrédulos. Mas, se Deus se alia com o homem, por que não com o animal? O animal tem sentimentos e há algo de tão divino no sentimento como no mais metafísico dos pensamentos. De resto, os animais sentem melhor do que pensa a maior parte dos homens. Aparentemente, foi em virtude deste pacto que Francisco de Assis, fundador da ordem seráfica, dizia às cigarras e às lebres: "Canta, irmã cigarra; rói, irmã lebre". Em que consistiram, porém, as condições do tratado? Que todos os animais se devorariam uns aos outros; que se alimentariam da nossa carne e nós da deles; que, depois de os comermos, os exterminaríamos raivosamente e que só nos faltaria comer os nossos semelhantes que degolássemos. Tal pacto, a existir, teria sido feito com o diabo. Provavelmente toda esta passagem quer significar que Deus é igualmente senhor absoluto de tudo o que respira. "E porei o meu arco nas nuvens e ele será um sinal do meu pacto, etc.”. É de notar que o autor não diz "Pus o meu arco nas nuvens", mas "porei", o que leva evidentemente a supor que, segundo a opinião comum, o arco-íris nem sempre existira. Trata-se de um fenômeno provocado pela chuva e dão-nos aqui como algo de sobrenatural a advertir que a terra não voltará a ser inundada. É estranha esta escolha do sinal da chuva como garantia de que se não será afogado. Mas pode também responder-se que, em perigo de inundação, se é tranquilizado pelo arco-íris. "E, pela tarde, os dois anjos chegaram a Sodoma, etc.”. Toda a história dos dois anjos que os sodomitas quiseram violar é talvez a mais extraordinária que a antiguidade inventou. No entanto, convém considerar que, em quase toda a Ásia, acreditava-se na existência de demônios íncubos e súcubos; e que, além disso, sendo esses dois anjos criaturas mais perfeitas que os homens, deveriam ser mais belos e acender entre um povo corrompido maiores desejos do que suscitariam homens. vulgares. De Ló, que propõe aos sodomitas as suas duas filhas em lugar dos dois anjos, e da mulher de Ló transformada em estátua de sal, e de todo o resto da história, que se poderá dizer? A antiga fábula arábica: de Cinyra e de Myrrha tem alguma relação com o incesto de Ló e das filhas; e a aventura de Filêmon e de Baucis não deixa de se assemelhar à história dos dois anjos que apareceram a Ló e a sua mulher. Quanto à estátua de sal, ignoramos a que se assemelhe: talvez à história de Orfeu e Eurídice. Apareceram alguns sábios pretendendo que se deveria cortar dos livros canônicos todas estas coisas incríveis que escandalizam os fracos; afirmou-se, contudo, que esses sábios eram corações corrompidos, homens dignos da fogueira e que é impossível ser-se um homem decente sem se acreditar que os sodomitas quiseram violar dois anjos. Assim raciocina uma espécie de monstros, desejosa de dominar os espíritos. Alguns célebres Padres da Igreja, e sobretudo Fílon, tiveram a prudência de transformar estas histórias em alegorias, para exemplo dos judeus. Alguns papas, mais prudentes ainda, quiseram impedir a tradução destes livros em língua vulgar, temerosos de que os homens ficassem em posição de julgarem o que lhes era proposto para adoração. Impõe-nos certamente concluir que quem entender perfeitamente este livro deve tolerar os que o não entendem; porquanto aqueles que nada entendem, não é por sua culpa que o não entendem. Mas os que nada compreendem devem tolerar também os que compreendem tudo. Guerra A fome, a peste e a guerra são os três ingredientes mais famosos deste mundo rasteiro. Podemos incluir na rubrica da fome todos os maus alimentos a que a dieta nos força a recorrer para abreviarmos a nossa vida na esperança de a prolongarmos. São compreendidas na peste todas as doenças contagiosas, em número de duas ou três mil. Estes dois presentes são dádivas da Providência. Mas a guerra, que reúne todos estes dons, é dádiva da imaginação de trezentas ou quatrocentas pessoas espalhadas pela superfície do globo, sob o nome de príncipes ou de ministros; e talvez seja esta a razão por que, em numerosas dedicatórias, são apelidados de imagens vivas da Divindade. O mais obstinado dos lisonjeadores concordará sem esforço que a guerra arrasta sempre consigo a peste e a fome, por pouco que conheça os hospitais de campanha alemães e tenha atravessado algumas aldeias onde houvesse ocorrido este ou aquele grande feito militar. Sem dúvida que é uma arte muito bela, esta de desolar os campos, destruir as habitações e fazer perecer, em ano normal, quarenta mil em cem mil homens. Semelhante invenção foi, inicialmente, cultivada por nações reunidas em assembleia para a realização do seu bem comum; por exemplo, a dieta dos gregos declarou à dieta dos frígios e povos vizinhos que ia partir num milheiro de barcos de pesca para os exterminar, se pudesse. O povo romano reunido em assembleia julgou que seria de seu interesse ir combater, antes das ceifas, o povo dos veias ou o dos volscos. E, alguns anos mais tarde, estando todos os romanos encolerizados contra todos os cartagineses, bateram-se longamente sobre o mar e sobre a terra. Hoje, as coisas não se passam assim. Um genealogista prova a um príncipe que este descende em linha reta de um conde cujos pais tinham celebrado um pacto de família, há trezentos ou quatrocentos anos, com uma casa de que nem sequer resta memória. Esta casa tinha pretensões afastadas sobre uma província cujo último possuidor morreu de apoplexia: de tudo isto o príncipe e o seu conselho concluem sem dificuldade que a província pertence àquele por direito divino. A província, sita a alguns centenares de léguas do príncipe, bem pode protestar que não o conhece, que nenhum desejo tem de ser governada por ele; que para ditar leis às gentes é necessário pelo menos dispor-se do seu consentimento: tais discursos não alcançam sequer as orelhas do príncipe, cujo direito é incontestável. Sem demora, encontra um grande número de homens que nada têm a perder; veste-os com espesso tecido azul a cento e dez vinténs a vara, enfeita-lhes os chapéus com fio branco grosso, fá-los volver à esquerda e à direita, e marcha para a glória. Outros príncipes, ouvindo falar desta equipagem, associam-se cada qual segundo o seu poderio, e cobrem uma pequena parcela de território com mais assassinos mercenários do que quantos Gêngis Can, Tamerlão e Bajazeto trouxeram na sua esteira. Povos bastante afastados ouvem dizer que vai haver combate e que há cinco ou seis vinténs por dia guardados para eles se quiserem fazer parte da companhia: dividem-se imediatamente em dois bandos, como os ceifeiros, e vão vender os serviços a quem os quiser empregar. Estas multidões encarniçam-se umas contra as outras não só sem terem qualquer interesse no litígio mas até sem saberem mesmo do que se trata. Depararam-se-nos às vezes cinco ou seis potências beligerantes, ora três contra cinco, ora duas contra quatro, ora uma contra cinco todas detestando-se igualmente umas às outras, unindo-se e atacando-se à vez; todas de acordo num só ponto, o de fazerem o maior mal possível. O maravilhoso nesta empresa infernal é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de irem exterminar o próximo. Se um chefe não teve senão a sorte de fazer degolar dois ou três mil homens, nem agradece a Deus; mas que lhe caibam cerca de dez mil exterminados pelo ferro e pelo fogo e que, para cúmulo da Graça, uma cidade qualquer tenha sido destruída de alto a baixo, e logo será cantada [a quatro vozes] uma canção assaz longa, composta numa língua desconhecida por todos os combatentes e, para mais, recheada de barbarismos. A mesma canção serve para casamentos e nascimentos, bem como para os morticínios: o que é imperdoável, sobretudo na nação de mais nomeada quanto a novas canções. A religião natural mil vezes impediu os cidadãos de cometerem crimes. As almas bem nascidas não os desejam cometer; as almas ternas veem-nos com terror, tendo presente a imagem de um Deus justo e vingador. A religião artificial encoraja, porém, a todas as crueldades perpetradas em bando, conjuras, sedições, assaltos, emboscadas, ataques de surpresa, pilhagens, morticínios. Todos marcham alegremente para o crime, sob a bandeira do seu santo. Por todo o lado se paga a certo número de predicadores para celebrarem estas jornadas de morte; uns envergam um longo balandrau negro, sobrecarregado com um manto aberto; outros usam camisa por cima de uma toga e outros ainda dois pendentes de estofo colorido sobre a camisa. Todos falam estiradamente e citam o que se fez, outrora, na Palestina, a propósito de um combate na Veterávia. No resto do ano, estes sujeitos declamam contra os vícios. Provam em três pontos e por antíteses que as damas que espalham um pouco de carmim nos rostos frescos serão eterno objeto das eternas vinganças do Eterno; que PoZieucto e AtaZia são obras do demônio; que um homem que faz servir à sua mesa peixe de duzentos escudos, em dia de quaresma, garante a salvação, ao passo que o pobre homem que come carneiro, por dois vinténs e meio, irá para todos os diabos eternamente. Entre cinco ou seis mil declamações desta espécie, há quando muito três ou quatro, compostas por um gaulês chamado Massilon, que um homem decente pode ler sem repulsa; mas, em todos os discursos, apenas encontrareis dois em que o autor ousa erguer-se contra o flagelo e o crime da guerra, que contém todos os flagelos e todos os crimes. Os infelizes predicadores falam sem cessar contra o amor, que é a única consolação do gênero humano e a única maneira de o resgatarmos; nada dizem dos nossos esforços abomináveis para o destruirmos. Fizeste um muito mau sermão sobre a impureza, ó Bourdaloue!, mas nenhum sobre esses morticínios de tantas maneiras variados, sobre essas rapinas, esses assaltos, sobre esse furor universal que desola o mundo. Todos os vícios reunidos, de todas as idades e de todos os lugares, nunca igualarão os males produzidos por uma só campanha. Miseráveis médicos das almas, vós gritais durante cinco quartos de hora sobre algumas picadas de alfinete e nada dizeis sobre a doença que nos despedaça em mil bocados! Queimai todos os vossos livros, ó filósofos moralistas. Enquanto o capricho de alguns homens conduzir ao massacre de milhares dos nossos irmãos, a parte do gênero humano consagrada ao heroísmo constituirá o que de mais atroz há na natureza inteira. Em que se tornam e que me importam a humanidade, as benfeitorias, a modéstia, a temperança, a doçura, a sabedoria, a piedade, quando uma meia-libra de chumbo atirada a seiscentos passos me rebenta o corpo e eu morro aos vinte anos em tormentos inexprimíveis, entre cinco ou seis mil moribundos, quando os meus olhos, que se abrem pela última vez, veem a cidade em que nasci destruída pelo ferro e pela chama e os últimos sons que meus ouvidos escutam são os gritos das mulheres e das crianças expirando sobre as ruínas, tudo em atenção aos pretendidos interesses de um homem que não conhecemos? O pior é que a guerra mostra ser um flagelo inevitável. Reparando bem, todos os homens adoram o deus Marte: Sabaoth, entre os judeus, significa deus das armas; mas Minerva, segundo Homero, chama a Marte deus furioso, insensato, infernal. H História SEÇÃO I Definição A História é a narração de fatos considerados verdadeiros, ao contrário da fábula, narração de fatos considerados falsos. Há também a história das opiniões, simples coletânea dos erros humanos. A história das artes pode ser a mais útil de todas, se unir o conhecimento da invenção e do progresso das artes à descrição de seus mecanismos. A história natural, impropriamente denominada "história", é uma parte essencial da física. A história dos acontecimentos divide-se em sagrada e profana. A primeira é uma sequência de operações divinas e miraculosas com que aprouve a Deus guiar outrora a nação judaica e provar agora a nossa fé. Primeiros fundamentos da História Os primeiros fundamentos de toda História encontram-se nas narrativas que os pais fazem aos filhos e que são transmitidas depois de geração em geração. Em sua origem são mais ou menos prováveis (desde que não choquem o senso comum), mas perdem gradualmente a probabilidade em cada geração. Com o tempo a fábula cresce e a verdade diminui: por este motivo todas as origens dos povos são absurdas. Assim, por exemplo, durante muitos séculos os egípcios teriam sido governados por deuses e semideuses, até que finalmente teriam tido reis durante onze mil e trezentos anos, sendo que nesse espaço de tempo o sol teria mudado quatro vezes de origem e de ocidente. Na época de Alexandre, os fenícios pretendiam ter-se estabelecido em seu país havia mais de trinta mil anos, durante os quais teriam ocorrido tantos prodígios como na cronologia egípcia. Confesso que fisicamente é muito possível que a Fenícia tenha existido não somente trinta mil anos, mas trinta mil milhões de séculos, e tenha experimentado, como o resto do globo, trinta mil revoluções. No entanto, não temos conhecimento disso. Sabe-se como impera o maravilhoso ridículo na história dos gregos. Os romanos, tão sérios, também não deixaram de envolver em fábulas a história de seus primeiros séculos. Povo mais recente do que os asiáticos, permaneceu quinhentos anos sem história. Assim, não é surpreendente que Rômulo seja filho de Marte, que uma loba o tenha amamentado, que tenha marchado com mil homens da aldeia de Roma contra vinte e cinco mil combatentes da aldeia dos sabinos, e que tenha virado um deus. Também não é surpreendente que Tarquínio, o Velho, tenha cortado uma pedra com uma navalha e que uma vestal tenha puxado um navio para a terra auxiliada apenas por seu cinto. Os anais de todas as nações modernas não são menos fabulosos. As coisas prodigiosas e improváveis devem ser relatadas algumas vezes como prova da credulidade humana - pertencem à história das opiniões e das tolices, mas seu campo é vasto. Dos monumentos O único meio para conhecer com relativa certeza alguma coisa sobre a história antiga é ver se restam alguns monumentos incontestáveis. Por escrito, dispomos de apenas três: o primeiro é a coletânea das observações astronômicas feitas durante mil e novecentos anos seguidos na Babilônia e enviados à Grécia por Alexandre. Tais observações revelam que os babilônios formavam um povo organizado muitos séculos antes delas, pois as artes são obra do tempo e a preguiça natural dos homens deixa-os por milhares de anos reduzidos aos conhecimentos e aos talentos necessários para a alimentação e para a defesa contra as injúrias do clima e do ataque recíproco. Pode-se julgar a veracidade dessa afirmação examinando-se os germanos e os ingleses, no tempo de César, os tártaros, hoje em dia, dois terços da África e todos os povos encontrados na América, com exceção dos reinos do Peru e do México e da república de Tlascala. Lembremo-nos ainda de que nesse Novo Mundo ninguém sabia ler ou escrever. O segundo monumento é o eclipse central do Sol, calculado na China dois mil, cento e cinquenta anos antes de nossa era e tido como verdadeiro por todos os astrônomos. Deve-se dizer dos chineses o mesmo que se disse dos babilônios: já constituíam um vasto império organizado. Mas os chineses estão acima de todos os outros povos da Terra porque suas leis, seus costumes e a língua falada pelos letrados não mudaram há mais de quatro mil anos. E, no entanto, a China e a Índia foram sempre omitidas de nossas pretensas histórias universais, embora sejam as duas nações mais antigas de todas as que subsistem ainda hoje, as que possuem os países mais belos e mais vastos, as que inventaram quase todas as artes antes que tivéssemos conhecido algumas. Quando espanhóis e franceses fazem o catálogo das nações, não deixam de colocar seus próprios países como a primeira monarquia do mundo e seu rei como o maior rei do mundo, com a esperança de receber uma pensão assim que o rei ler o livro. O terceiro monumento, bem inferior aos dois primeiros, subsiste nos mármores de Arundel: a crônica de Atenas aí foi gravada duzentos e sessenta e três anos antes de nossa era, mas vai apenas até Cecrops, isto é, mil e trezentos anos antes da gravação. Estas são as únicas épocas incontestáveis que possuímos a respeito de toda a Antiguidade. É preciso dar grande atenção às crônicas dos mármores trazidos da Grécia por lorde Arundel. Começam mil, quinhentos e noventa anos antes de nossa era (portanto, atualmente têm uma antiguidade de três mil, trezentos e cinquenta e três anos) e não contêm qualquer fato miraculoso ou prodigioso. O mesmo comentário pode ser feito quanto às Olimpíadas - não são elas que permitem o epíteto Graecia mendax, a Mentirosa Grécia. Os gregos sabiam distinguir muito bem a fábula e a história, os fatos reais e os contos de Heródoto, tanto assim que seus oradores, ao falarem de assuntos sérios, nunca empregavam os discursos dos sofistas nem as imagens dos poetas. A data da tomada de Tróia está marcada nos mármores, mas nada se diz sobre as flechas de Apolo, o sacrifício de Ifigênia ou sobre os combates ridículos dos deuses. A data das invenções de Triptolemo e Ceres também está indicada, mas Ceres não é chamada de "deusa". Menciona-se o rapto de Prosérpina, mas não se diz que seja filha de Júpiter e uma deusa, ou que seja mulher do deus dos infernos. Hércules é indicado nos mistérios de Eleusina, mas não há uma palavra sobre seus doze trabalhos, sua passagem pela África, sua taça, sua divindade, sobre o grande peixe que o engoliu e o manteve em seu ventre três dias e três noites, segundo Licofrão. Entre nós, pelo contrário, um estandarte é trazido do céu por um anjo aos monges de St. Denis; um pombo traz uma garrafa de óleo para a igreja de Reims; dois exércitos de serpentes combatem na Alemanha; um arcebispo de Mayence é sitiado e comido por ratos, e, para o cúmulo, tem-se até o cuidado de assinalar o ano dessas aventuras. O abade Lenglet compila tais impertinências; os almanaques as repetem cem vezes e é assim que se instrui a juventude e os próprios príncipes. Toda história é recente. Não é surpreendente a ausência de história antiga profana para além de quatro mil anos. Causas: as revoluções do globo e o longo e universal desconhecimento dessa arte que transmite os fatos pela escrita. Há muitos povos que ainda não têm o hábito da história e esta arte só é comum a um número muito pequeno de nações policiadas, e, nestas, foi cultivada por poucas mãos. Saber escrever é muito raro entre franceses e germanos - até o século XIV de nossa era os atos só eram atestados por testemunhas. Na França, só a partir de 1454, sob Carlos VII, começaram-se a redigir alguns costumes franceses. Entre os espanhóis a arte de escrever era ainda mais rara e por isso sua história é tão seca e incerta até Fernando e Isabel. Vê-se por aí como o pequeno número dos que sabiam escrever podia impor-se e como lhes foi fácil obrigar-nos a crer em enormes absurdos. Há nações que subjugaram uma parte da Terra sem conhecer o uso dos caracteres. Sabemos que Gêngis Can conquistou uma parte da Ásia no começo do século XIII, mas não foi por ele nem pelos tártaros que o soubemos. Sua história, escrita pelos chineses e traduzi da pelo padre Gaubil, afirma que não conheciam ainda a arte de escrever. É quase certo que, pouco antes do reinado de Ciro, não havia em cem nações mais que duas ou três que soubessem escrever. É possível que num antigo mundo destruído os homens tivessem conhecido a escrita e as outras artes. No nosso, porém, são recentes. Restam ainda monumentos de outra espécie e que servem somente para constatar a grande antiguidade de certos povos. São monumentos que precedem todas as épocas conhecidas e todos os livros: os prodígios da arquitetura. É o caso, por exemplo, das pirâmides e palácios do Egito, que resistiram ao tempo. Heródoto, que viveu há dois mil e duzentos anos e que os vira, não conseguiu saber dos padres agípcios em que tempo haviam sido construídos. É difícil atribuir menos de quatro mil anos a mais antiga das pirâmides. A ostentação dos reis só pode ter começado quando já havia cidades. Ora, construir cidades num país inundado todos os anos exigiu que se elevassem os terrenos das cidades sobre pilastras para torná-los inacessíveis à inundação. Antes de chegar a isto e tentar grandes trabalhos, as populações devem ter feito retiradas durante as enchentes do Nilo, alojando-se no meio dos rochedos que formam duas cadeias à direita e à esquerda do rio. Também foi preciso que tais populações tivessem instrumentos de lavoura, de arquitetura, um conhecimento de agrimensura, leis e polícia. Tudo isto requer um tempo prodigioso, exigindo gerações inteiras e muito obstinadas. Entretanto, seja Quéfren ou Quéops ou Miquerinos ou Ramsés, o construtor de dois ou três desses prodígios, nem por isso nosso conhecimento do antigo Egito se torna maior, pois a língua desse povo se perdeu. Sabemos, pois, somente uma coisa: antes dos historiadores antigos já havia com que escrever uma história antiga. SEÇÃO II Como já há mais de vinte mil obras, a maioria em vários volumes, somente sobre a história da França, e como um homem estudioso que vivesse cem anos não teria tempo de lê-las, é preciso que nos limitemos. Além disso, é preciso que conheçamos também a história de nossos vizinhos, bem como a dos gregos e dos romanos, pois muitas de suas leis são ainda as nossas. Se, porém, recuássemos ainda mais, faríamos como um homem que, tendo deixado Tácito e Tito Lívio, fosse estudar seriamente as Mil e Uma Noites. Todas as origens dos povos visivelmente são fábulas. A razão disso deve ser o fato de que os homens certamente viveram por muito tempo agrupados como povoações, tiveram que aprender a fazer pão e o vestuário (o que era difícil) antes de aprender a transmitir todos os seus pensamentos à posteridade (o que era mais difícil ainda). A arte de escrever seguramente não tem mais de seis mil anos entre os chineses e, digam o que disserem, não parece que egípcios e caldeus tenham sabido ler e escrever convenientemente mais cedo. A história dos tempos anteriores só pude ter sido transmitida de memória, e sabe-se como a lembrança das coisas passadas altera-se de geração para geração. As primeiras histórias foram escritas apenas pela imaginação. E cada povo inventou não somente sua própria origem, mas também a do mundo inteiro. Qual é a história útil? Aquela que nos mostra nossos deveres e direitos sem ter a aparência de nos querer ensiná-los. Pergunta-se frequentemente se a fábula do sacrifício de Ifigênia foi tomada da história de Jefté; se o dilúvio de Deucalião é uma imitação do de Noé; se a aventura de Filemon e Baucis é uma cópia da de Ló e sua mulher. Os judeus afirmam que não se comunicavam com os estrangeiros e que seus livros só foram conhecidos pelos gregos através de uma tradução feita por ordem de um dos Ptolomeus. Entretanto, os judeus foram durante muito tempo corretores e usurários entre os gregos de Alexandria e os gregos nunca foram vender roupa em Jerusalém. Parece que nenhum povo imitou os judeus, mas estes tomaram muitas coisas dos babilônios, dos egípcios e dos gregos. Todas as antiguidades judaicas são sagradas para nós, apesar de nosso desprezo e de nosso ódio por esse povo. Não podemos crê-las pela razão, mas submetemo-nos aos judeus pela fé. Há mais ou menos oitenta sistemas para sua cronologia e muitas maneiras para explicar os acontecimentos de sua história. Não sabemos quais as verdadeiras mas damos-lhes nossa fé para o tempo em que forem descobertas. Temos que acreditar em tantas coisas desse povo sábio e magnânimo que toda nossa crença acha-se esgotada, de modo que não nos sobra nenhuma para os prodígios das outras nações. O que mais aprecio em nossos modernos compiladores é a boa fé com que nos provam que tudo o que aconteceu outrora nos maiores impérios do mundo só aconteceu para instruir os habitantes da Palestina. Se os reis da Babilônia, em suas conquistas, caem de passagem sobre o povo hebreu, é unicamente para corrigir os pecados deste povo. Se o Rei Ciro torna-se senhor da Babilônia, é para dar aos hebreus a permissão de retomarem a seu país. Se Alexandre vence Dario, é para estabelecer alfaiates em Alexandria. Quando os romanos acrescentam a Síria ao seu vasto império e englobam o pequeno reino da Judéia, ainda é para instruir os judeus. Os árabes e os turcos vieram apenas para corrigir esse povo amável. É preciso admitir que recebeu uma excelente educação. Nunca se tiveram tantos preceptores - quão útil é a história! Mas o mais instrutivo é a justiça rigorosa dos clérigos para com todos os príncipes que os desgostam. Com que candura imparcial São Gregório de Nazianzo julga o Imperador Juliano, filósofo! Declara que este não temia o diabo e que mantinha contato secreto com ele, mas que um dia os demônios lhe apareceram envoltos em chamas e sob figuras hediondas e que os expulsou fazendo por inadvertência o sinal da cru-z. Chama-o de "furioso", de "miserável". Assegura que imolou rapazes e moças todas as noites em sua adega. É assim que fala do mais clemente dos homens, que nunca se vingou sequer das invectivas do próprio Gregório. E como o melhor método para caluniar um inocente é fazer a apologia de um culpado o santo de Nazianzo não teve dúvidas em fazer o elogio do predecessor e tio de Juliano, Constâncio, que mandara matar seu tio Júlio mais seus dois filhos, os três declarados augustos. Mandou matar também Galo, irmão de Juliano. Aprendera todas essas crueldades com seu pai, Constantino, e, não contente de exercê-las sobre sua própria família, exerceu-as também sobre o império. Mas era um devoto e orava muito. E, assim, Gregório faz seu panegírico. Se é dessa maneira que os santos nos ensinam a verdade, que não devemos esperar dos profanos, sobretudo quando são ignorantes e apaixonados? Atualmente usa-se a história de um modo muito esquisito. Desenterram-se constituições suspeitas e mal compreendidas, datando da época de Dagoberto, e quer-se que voltem a vigorar mais os costumes, os direitos e as prerrogativas de antanho. Os historiadores que assim procedem seriam como um homem que chegasse à praia e dissesse ao mar: outrora banhavas Águas-Mortas, Frejus, Ravena, Ferrara. Retoma imediatamente para lá! SEÇAO III Da certeza em história Toda certeza que não encontre uma demonstração matemática é uma simples probabilidade. A certeza histórica é dessa espécie. Quando Marco Polo sozinho narrou coisas sobre a China, não pôde ser acreditado. Quando os portugueses, séculos depois, entraram nesse vasto império, começaram a tomar as descrições de Marco Polo mais prováveis. Hoje todas são certas porque a certeza decorre dos depoimentos unânimes de mais de mil testemunhas oculares de diferentes nações, sem que alguém tenha reclamado contra eles. Eu teria suspendido meu juízo se somente dois ou três historiadores tivessem escrito a aventura do Rei Carlos XII, que se obstinava em permanecer nos Estados do sultão seu benfeitor contra a vontade deste, e que se batia acompanhado de seus domésticos contra um exército de janízaros e de tártaros. Mas, tendo falado com várias testemunhas oculares, e nunca tendo visto essas ações postas em dúvida, tive de crê-las, pois não são contrárias às leis da natureza nem ao caráter do herói, embora não sejam sensatas nem comuns. O que contraria o curso ordinário da natureza não deve ser acreditado, a menos que seja atestado por homens animados verdadeiramente pelo espírito divino e que seja impossível duvidar de sua inspiração. E que seus testemunhos sejam todos concordantes (o que é bastante difícil). Incerteza da história Distinguem-se os tempos em fabulosos e históricos, mas estes últimos deveriam ser distinguidos em verdades e fábulas. Não me refiro às fábulas reconhecidas como tais e sim àquelas que estão presentes em fatos admitidos. Assim, por exemplo, é preciso considerar que a república romana permaneceu quinhentos anos sem história, que Tito Lívio deplora a perda dos monumentos que pereceram no incêndio de Roma, que nos primeiros trezentos anos a arte de escrever era muito rara, e então será permitido duvidar de todos os acontecimentos que não se enquadram na ordem humana das coisas. Sobre a máxima de Cícero concernente à história: "Que o historiador não ouse dizer uma mentira nem esconder uma verdade”. A primeira parte desse preceito é incontestável. É preciso examinar a segunda. Se uma verdade puder ser útil ao Estado, silenciá-la será condenável. Mas suponhamos que escreveis a história de um príncipe que vos confiou um segredo: deveis revelá-lo? Deveis dizer à posteridade aquilo de que serieis culpado se o dissésseis até para um único homem? O dever do historiador deverá vencer um dever maior? Suponhamos, ainda, que fostes testemunha de uma fraqueza que não teve influência sobre os negócios públicos - deveis revelá-la? Neste caso a história seria uma sátira. É preciso admitir que a maioria dos escritores de anedotas é mais indiscreta do que útil. Mas que dizer dos compiladores insolentes que, fazendo da maledicência mérito, imprimem e vendem escândalos como se estivessem vendendo peixe? SEÇÃO IV Do método, da maneira de escrever a história e do estilo Discutiu-se tanto sobre essa matéria, que agora é preciso falar um pouco a seu respeito. Sabe-se que o método e o estilo de Tito Lívio, sua gravidade, sua eloquência sábia, convêm à majestade da república romana; sabe-se também que Tácito é feito mais para pintar tiranos, Políbio, para dar lições de guerra, Dionísio de Halicarnasso, para desenvolver as antiguidades. Mas, se hoje em dia nos modelarmos por esses grandes mestres, teremos que suportar um fardo mais pesado do que eles. Exigem-se dos historiadores modernos mais detalhes, fatos mais constatados, datas precisas, autoridades, mais atenção aos costumes, às leis, aos usos, ao comércio, às finanças, à agricultura, à população. Ocorre com a história o mesmo que com a matemática e a física: a estrada alongou-se prodigiosamente. Atualmente é mais fácil fazer uma coletânea de jornais do que escrever a história. Daniel julgou-se historiador porque transcreveu datas e fez descrições de batalhas incompreensíveis. Deveria informar-me sobre os direitos da nação, sobre os direitos dos principais corpos dessa nação, sobre suas leis, usos e costumes e sua transformação. A nação tem o direito de dizer-lhe: peço-vos minha história mais do que a de Luís, o Gordo, ou a de Luís, o Briguento. Dizeis que, segundo uma velha crônica escrita ao acaso, Luís VIII, atacado por uma doença mortal, extenuado, enfraquecido, não podendo mais, os médicos ordenaram ao corpo cadavérico que se deitasse com uma mocinha para se refazer, mas o rei rejeitou essa vilania. Ah! Daniel. Não sabeis, então, o provérbio italiano: "Donna ignuda manda l'uomo sotto la terra"? Devias ter um pouco mais de tinturas de história política e de história natural. Exige-se que a história de um país estrangeiro não seja modelada na mesma forma que à de vossa pátria. Se escreveis a história da França, não sois obrigado a descrever o curso do Sena e do Loire. Mas, se contais ao público uma conquista portuguesa na Ásia, exige-se uma topografia dos países descobertos. Deveis conduzir o leitor pela mão através da África, da Pérsia e da Índia. Espera-se que informeis sobre os costumes, as leis e os usos dessas nações novas para a Europa. Temos vinte histórias dos estabelecimentos portugueses nas índias, mas nenhuma nos dá a conhecer os governos desses países, as religiões, as antiguidades, os brâmanes, os discípulos de São João, os guebros. Foram conservadas, é verdade, as cartas de Xavier e de seus sucessores. Temos histórias sobre as Índias escritas em Paris, segundo as narrativas dos missionários que não sabiam a língua dos brâmanes. Repetem em todos os escritos que os indianos adoram o diabo. Os capelões de uma companhia de comércio já partem com esse preconceito e assim que veem figuras simbólicas nas costas de Coromandel não deixam de escrever que são retratos do diabo, que estão em seu império e que vão combatê-lo. Não percebem que somos nós os adoradores do diabo Mamon, e que vamos levar-lhe nossos votos a seis mil léguas de nossa pátria para dele obter dinheiro. O importante, pois, é saber que o método conveniente à história de seu país não é próprio para descrever as descobertas do Novo Mundo; que não se deve escrever sobre uma aldeia como se escreve sobre um império, que não se pode escrever a história privada de um príncipe como se fosse a da França e a da Inglaterra. Se só tendes a nos dizer que um bárbaro sucedeu outro bárbaro às margens do Oxus ou do Iaxarte, qual é vossa utilidade? Essas regras são bem conhecidas, mas a arte de bem escrever a história sempre será rara. Há leis para escrever a história como há para todas as artes de espírito, mas, como nestas, naquela também há mais preceitos do que grandes artistas. I Ideia O que é uma ideia? É uma imagem que se imprime no meu cérebro. Todas as nossas ideias são, portanto, imagens? Seguramente, porquanto as ideias mais abstratas não passam de consequências de todos os objetos que percebi. Se pronuncio a palavra Ser, em geral, é porque conheci seres particulares. Se pronuncio a palavra infinito, é porque já me dei conta da existência de limites e afasto esses limites no meu entendimento tanto quanto o possível; se disponho de ideias, é porque disponho de imagens na cabeça. E quem foi o pintor que compôs esse quadro? Não eu, que não desenho suficientemente bem; aquele que me fez, e às minhas ideias. Sois, portanto, da opinião de Malebranche, que afirmava que vemos tudo em Deus? Pelo menos, estou certo de que, se não vemos as coisas em Deus, vemo-las por intermédio da sua ação todo-poderosa. E como se desenvolve essa ação? Disse-vos cem vezes nas nossas conversas que a esse respeito nada sei e que Deus não comunicou o seu segredo a ninguém. Ignoro o que faça bater o meu coração, correr o sangue nas minhas veias; ignoro o princípio, de todos os meus movimentos; e ainda quereis que vos diga como sinto e como penso! Não está certo. Mas sabeis ao menos se a vossa faculdade de ter ideias está ligada à extensão? Nem por sombras. É verdade que Taciano, no seu discurso aos gregos, diz que a alma é manifestamente composta por um corpo. Irineu, no capítulo XXV do segundo livro, diz que o Senhor ensinou que as nossas almas guardam a figura do nosso corpo para dele conservarem memória. Tertuliano assevera, no seu segundo livro de A Alma, que esta é um corpo. Não é outra a opinião de Arnóbio, Lactâncio, Hilário, Gregório de Nissa, Ambrósio. Há quem pretenda que os outros Padres da Igreja asseguram que a alma não tem qualquer extensão, nisso seguindo as opiniões de Platão; mas esta pretensão é muito duvidosa. Por mim, não me atrevo a ter opinião; num e noutro sistema, só descubro incompreensibilidade e, depois de haver pensado sobre o assunto durante toda a minha vida, não estou mais adiantado que no primeiro dia. Não valeria, portanto, a pena pensar nisso. É verdade; aquele que goza sabe mais a esse respeito do que aquele que reflete, ou, pelo menos, sabe-o melhor, é mais feliz. Mas que quereis? Não dependeu de mim o receber ou rejeitar todas as ideias que ao meu cérebro vieram combater-se e que se apropriaram das minhas células medulares como campo de batalha. Depois de bem se baterem, não recolhi dos seus despojos senão a incerteza. É bem triste ter tantas ideias e nada saber ao certo sobre a natureza das ideias. Admito-o; mas bem mais triste e muito mais tolo é supor-se que se sabe o que se não sabe. Ídolo, Idólatra, Idolatria. Ídolo deriva do grego eidos, figura; êidolon, representação de uma figura; latrêuein, servir, reverenciar, adorar. A palavra adorar é latina e goza de muitas acepções diferentes: significa levar a mão à boca falando com respeito, curvar-se, pôr-se de joelhos, saudar e, enfim, comumente, prestar um culto supremo. Convém assinalar aqui que o Dicionário de Trévoux começa este artigo por afirmar que todos os pagãos eram idólatras e que os indianos são ainda povos idólatras. Primeiro, não se chamava a ninguém pagão, antes de Teodósio, o Jovem. Este nome foi então atribuído aos habitantes dos burgos da Itália, pagorum incolae, pagani, que conservavam a sua antiga religião. Segundo, o Industão é maometano e os maometanos são os inimigos implacáveis das imagens e da idolatria. Terceiro, não se deve, de modo algum, designar por idólatras muitos dos povos da Índia que seguem a antiga religião dos persas, nem certas castas que não têm ídolos. Sobre se alguma vez houve um governo idólatra Ao que parece, nunca existiu sobre a terra povo algum que houvesse adotado a designação idólatra. Esta palavra é uma injúria, um termo ultrajante, como o de gavaches, que os espanhóis davam outrora aos franceses, e o de maranes, que os franceses davam aos espanhóis. Se alguém houvesse perguntado ao senado de Roma, ao areópago de Atenas, à corte dos reis da Pérsia: "Sois idólatras?", mal seria escutado. Ninguém responderia: "Adoramos imagens, ídolos". Não se encontram as expressões idólatra, idolatria, nem em Homero, nem em Hesíodo, nem em Heródoto, nem em qualquer autor da religião dos gentílicos. Nunca houve edito, nenhuma lei que impusesse a adoração de ídolos, ou que a estes se servisse como a deuses, que fossem olhados como deuses. Quando os capitães romanos e cartagineses celebravam um tratado, invocavam todos os seus deuses. "É na sua presença", proclamavam, "que juramos a paz." Ora, as estátuas de todos estes deuses, cujo desdobramento era enorme, não estavam na tenda dos generais. Os deuses eram olhados como estando presentes nas ações humanas, como testemunhas, como juízes. E não era seguramente o simulacro que constituía a divindade. Com que olhos viam eles, portanto, as estátuas das suas falsas divindades nos templos? Com o mesmo olhar, se me permitem exprimir-me assim, que nós dirigimos às imagens dos objetos da nossa veneração. O erro não era a adoração de um pedaço de madeira ou de mármore, mas a adoração de uma falsa divindade representada por essa madeira e por esse mármore. A diferença entre eles e nós não assentava na circunstância de eles terem imagens e nós não: a diferença é que as suas imagens figuravam seres fantásticos de uma religião falsa, ao passo que as nossas figuram seres reais de uma religião verdadeira. Os gregos tinham a estátua de Hércules, nós temos a de São Cristóvão; tinham Esculápio e a sua cabra, nós, São Roque e o seu cão; tinham Júpiter tonitruante, nós, Santo Antônio de Pádua e São Tiago de Compostela. Quando o cônsul Plínio dirige as suas preces aos deuses imortais, no exórdio do Panegírico de Trajano, não as dirige às imagens. Estas não eram imortais. Nem os últimos tempos do paganismo, nem os mais recuados, oferecem um único fato que nos possa levar a concluir que algum ídolo fosse objeto de adoração. Homero só fala dos deuses que habitam o ako Olimpo. O palladium, embora caído do céu, não era senão o penhor sagrado da proteção de Palas; somente a ela veneravam no palladium. No entanto, os romanos e os gregos ajoelhavam-se perante as estátuas, ofereciam-lhes coroas, incenso, flores, passeavam-nas em triunfo nas praças públicas. Nós santificamos estes costumes e nem por isso somos idólatras. Em tempos de seca, as mulheres, depois de jejuarem, transportavam as estátuas dos deuses. Caminhavam com os pés nus, os cabelos esparsos e imediatamente chovia a potes, como diz Petrônio, et statim urceatim pluebat. Ora, não consagramos este costume, ilegítimo entre os gentílicos e sem sombra de dúvida legítimo entre nós? Em quantas cidades não se transportam, de pé descalço, enormes carcaças, em vista à obtenção, por seu intermédio, das bênçãos do céu? Se um turco ou um letrado chinês fossem testemunhas destas cerimônias, poderiam, por ignorância, acusar-nos logo de confiarmos nos simulacros que passeamos em procissão; bastaria, porém, uma palavra para os desenganarmos. Fica-se estupefato com a prodigiosa quantidade de declamações proferidas em todos os tempos contra a idolatria dos romanos e dos gregos; para seguidamente se ficar mais estupefato ainda quando se descobre que não eram idólatras. Há templos mais privilegiados que outros. A grande Diana de Éfeso gozava de maior reputação que uma Diana de aldeia. Faziam-se mais milagres no templo de Esculápio em Epidauro que em qualquer outro dos seus templos. Mas.já que se torna necessário opor sempre aqui os costumes de uma religião verdadeira aos de uma religião falsa, não é verdade que desde há muitos séculos dedicamos maior devoção a certos altares que a outros? Não levamos mais oferendas a Nossa Senhora de Loreto que a Nossa Senhora das Neves? Cabe-nos verificar se é lícito valer-se alguém deste pretexto para nos acusar de idolatria. Concebia-se a existência de uma única Diana, de um único Apolo, um único Esculápio, não de tantos Apolos, Dianas e Esculápios quantos templos e quantas estátuas houvesse. Está pois provado, na medida em que pode estar um ponto de história, que os antigos não acreditavam que uma estátua fosse uma divindade, que o culto não sereferia a essa estátua, a esse ídolo, e que, por conseguinte, os antigos não eram idólatras. A populaça grosseira e supersticiosa, que não raciocinava, que não sabia duvidar, nem negar, nem crer, que acorria aos templos por ociosidade e porque os pequenos se igualam aí aos grandes, que levava oferendas por hábito, que continuamente falava de milagres sem ter examinado nenhum e que em nada se elevava acima das vítimas que trazia; essa populaça, digo eu, poderia, à vista da Grande Diana e de Júpiter tonitruante, ficar tocada de horror religioso e adorar, sem o saber, a própria estátua. É o que por vezes sucede nos nossos templos com os rudes camponeses, aos quais, todavia, não deixou de se ensinar que devem pedir a intercessão dos bem-aventurados, dos imortais recebidos no céu, não a das suas figuras de pau e pedra, e que só devem adorar o Deus único. Os gregos e os romanos aumentaram o número dos seus deuses devido a apoteoses. Os gregos divinizavam os conquistadores, como Baco, Hércules, Perseu. Roma ergueu altares aos imperadores. As nossas apoteoses são de diferente gênero, temos santos em lugar dos seus semideuses, dos seus deuses secundários, mas não atendemos à posição nem às conquistas. Erguemos templos a homens simplesmente virtuosos que, na sua maior parte, seriam ignorados na terra se não os pusessem no céu. As apoteoses dos antigos celebravam-se para lisonjear; as nossas, por respeito pela virtude. Contudo, apoteoses dos antigos são mais uma prova convincente de que os gregos e os romanos não eram propriamente idólatras. É evidente que não atribuíam mais virtude divina às estátuas de Augusto e Cláudio do que aos respectivos medalhões. Cícero, nas suas obras filosóficas, não deixa transparecer a mais leve suspeita de que houvesse equívocos com as estátuas dos deuses e as confundissem com os próprios deuses. Os seus interlocutores fulminam a religião estabelecida mas nenhum se lembra de acusar os romanos de , tomarem o mármore e o bronze por divindades. Lucrécio a ninguém censura semelhante tolice, ele que tudo censura aos supersticiosos. Assim, repito que tal opinião não existia, que ninguém teve qualquer ideia desse gênero; não havia idólatras. Horácio faz falar uma estátua de Príapo que diz: "Era outrora um tronco de figueira, e um carpinteiro, não sabendo se faria de mim um deus ou um banco, decidiu enfim transformar-me num deus, etc." Que concluir deste gracejo? Príapo era uma dessas pequenas divindades subalternas, abandonadas aos zombadores; o próprio gracejo é a mais forte prova de que a figura de Príapo, posta nas hortas para atemorizar os pássaros, não era objeto de grande reverência. Dacier, abandonando-se ao espírito comentador, não deixou de observar que Baruch profetizara esta aventura ao dizer: "Eles serão tão somente aquilo que os operários quiserem"; todavia, poderia observar também que o mesmo era lícito dizer de todas as estátuas. De um bloco de mármore, tanto podemos tirar uma bacia como a figura de Alexandre, a de Júpiter, ou qualquer coisa mais respeitável ainda. A matéria de que eram formados os querubins do Santo dos Santos teria podido igualmente servir para as funções mais vis. Um trono, um altar serão menos reverenciados só porque se pode fazer deles uma mesa de cozinha? Dacier, em vez de concluir que os romanos adoravam a estátua de Príapo e que Baruch o predissera devia, portanto, concluir que os romanos zombavam da figura de Príapo. Consultai todos os autores que falam das estátuas dos seus deuses e não encontrareis um que fale de idolatria: todos dizem expressamente o contrário. Verificai em Marcial: Qui finxit sacros auro vel marmore vultus, Nonfacit ille deos ... Em Ovídio: Colitur pro Jove forma Jovis. Em Estácio: Nulla autem effigies, nulli comissa metallo Forma Dei; mentes habitare et pectora gaudet. Em Luciano: Estne Dei sedes, nisi terra et pontus et aer? Fazia-se um volume com todas as passagens em que se afirma que as imagens não são senão imagens. Só o caso de haver estátuas que proferiam oráculos poderia fazer pensar que as estátuas detinham em si algo de divino. Porém, a opinião reinante era certamente a de que os deuses tinham escolhido certos altares, certos simulacros, para aí virem residir algumas vezes, dar audiência aos homens, responder-lhes. Não se descobrem em Homero e nos coros das tragédias gregas senão preces a Apolo, que profere os seus oráculos nas montanhas, em tal templo, em tal cidade; não há em toda a Antiguidade o menor rasto de prece que fosse dirigi da a uma estátua. Os que professavam a magia ou a consideravam ou fingiam considerar uma ciência, pretendiam ter o segredo de fazer descer os deuses às estátuas, não os grandes deuses, mas os secundários, os gênios. É o que Mercúrio Trismegista chamava fazer deuses, e Santo Agostinho refuta na Cidade de Deus. Isto mesmo, porém, evidencia que os simulacros nada tinham de divino, pois era necessário um mágico para os animar. E parece-me que raramente sucederia que um mágico fosse assaz hábil para dar alma a uma estátua, para a fazer falar. Em resumo, as imagens dos deuses não eram deuses. Júpiter, e não a sua imagem, lançava o trovão; não era a estátua de Netuno que levantava os mares nem a de Apolo que produzia a luz. Os gregos e os romanos eram gentílicos, politeístas, mas não idólatras. Sobre se os persas, os sabinos, os egípcios, os tártaros, os turcos foram idólatras e qual a antiguidade da origem dos simulacros chamados ídolos. História do seu culto. É um grande erro chamar idólatras aos povos que prestaram culto ao Sol e às estrelas. Estas nações não tiveram, durante longo tempo, nem simulacros nem templos. Se se enganaram, foi por prestarem aos astros o que deviam prestar ao criador dos astros. Aliás, o dogma de Zoroastro ou Zerdut, recolhido no Sadder, dá conta de um ente supremo, vingador e remunerador, o que muito se afasta da idolatria. Nunca os governantes da China tiveram ídolos, conservando sempre o culto simples do senhor do céu, King-Tien. Entre os tártaros, Gêngis Can não era de modo algum idólatra e não possuía qualquer simulacro. Os muçulmanos que enchem a Grécia, a Ásia Menor, a Síria, a Pérsia, a Índia e a África designam os cristãos por idólatras, giaours, pois supõem que eles prestam culto às imagens. Destruíam muitas estátuas encontradas em Constantinopla, na Santa Sofia ou na Igreja dos Santos Apóstolos, bem como noutras, todas convertidas em mesquitas. Enganou-os a aparência, como sempre engana os homens, e fez-lhes crer que os templos dedicados a santos que outrora haviam sido homens, as imagens destes santos venerados de joelhos, os milagres operados nos templos, eram outras tantas provas incontestáveis da mais completa das idolatrias. No entanto, nada disso é assim. Com efeito, os cristãos adoram apenas um Deus único e veneram nos bem-aventurados tão só a própria virtude de Deus que atua nos seus santos. Os iconoclastas e os protestantes dirigiram a mesma censura de idolatria à Igreja e foi-lhes dada a mesma resposta. Como os homens só raramente dispõem de ideias precisas e menos ainda têm exprimido as suas ideias através de palavras exatas e inequívocas, chamamos idólatras aos gentílicos, sobretudo aos politeístas. Escreveram-se volumes imensos, manifestaram-se sentimentos diversos sobre a origem do culto prestado a Deus, ou a numerosos deuses, sob figuras sensíveis: tal multidão de livros e de opiniões prova apenas a ignorância. Não se sabe quem inventou os trajes e os sapatos e pretende-se saber quem primeiro inventou os ídolos? Que importa uma passagem de Sanchoniathon, que viveu antes da guerra de Tróia? Que nos ensina ele quando afirma que o caos, o Espírito, quer dizer o sopro, enamorado dos seus princípios, daí tirou o limo, que tornou o ar luminoso, que o vento Colp e sua mulher Bau engendraram Eon, que Eon engendrou Genos, que Cronos, descendente destes, tinha um par de olhos atrás e um par de olhos à frente, que se tornou deus e ofereceu o Egito ao seu filho Thaut? E é este um dos mais respeitáveis monumentos da antiguidade. Orfeu, anterior a Sanchoniathon, não nos ensina mais na sua Teogonia, que Damascino conservou. O princípio do mundo é aí representado pela figura de um dragão com duas cabeças, uma de touro, outra de leão, um rosto ao meio, chamado rosto-deus, e asas douradas nas costas. Contudo, podeis recolher destas ideias bizarras duas grandes verdades: uma, a de que as imagens sensíveis e os hieróglifos datam da mais alta antiguidade; a outra, que todos os filósofos antigos admitiram um princípio primeiro. Quanto ao politeísmo, dir-vos-á o bom senso que, desde que há homens, quer dizer animais fracos, capazes da razão e da loucura, sujeitos a todos os acidentes, à doença e à morte, esses homens sempre sentiram a sua fraqueza e a sua dependência; facilmente reconheceram que algo há mais poderoso que eles, sentiram uma força na terra que lhes fornece os alimentos, uma força no ar que muitas vezes os destrói, outra ainda no fogo que consome e na água que submerge. Nada mais natural, portanto, que venerassem a força invisível que a seus olhos fazia luzir o sol e as estrelas. E, uma vez que se desejasse formar uma ideia desses poderes superiores ao homem, nada mais natural que os figurassem de maneira sensível. Seria sequer possível que procedessem de outro modo? A religião hebraica, que precedeu a nossa e foi dádiva do próprio Deus, estava toda cheia de imagens representativas de Deus. Este digna-se falar numa sarça a linguagem humana; aparece sobre uma montanha; os espíritos celestes que envia assumem todos formas humanas; enfim, o santuário está repleto de querubins, que são corpos humanos com asas e cabeças de animais. Daqui derivou o erro de Plutarco, de Tácito, de Ápio e tantos outros, que censuravam aos judeus o adorarem uma cabeça de burro. Deus, não obstante proibir que se pintasse ou esculpisse qualquer figura, dignou-se, pois, acomodar-se à fraqueza humana que requeria que aos sentidos se falasse através de imagens. Isaías, no capítulo VI, vê o Senhor sentado sobre um trono e a orla do seu manto que enchia o templo. O Senhor estende a mão e toca na boca de Jeremias, reza o capítulo I deste profeta. Ezequiel, no capítulo III, vê um trono de safira e Deus surge-lhe como um homem sentado nesse trono. Estas imagens em nada alteram a pureza da religião judaica que nunca empregou quadros, estátuas, ídolos para representar Deus aos olhos do povo. Os letrados chineses, os persas, os antigos egípcios tampouco tiveram ídolos; mas depressa Ísis e Osíris foram figurados; depressa Bel, em Babilônia, foi um enorme colosso; e Brama foi um monstro bizarro na quase ilha da Índia. Os gregos, principalmente, multiplicaram os nomes dos deuses, as estátuas e os templos, embora atribuindo sempre supremo poder a Zeus, nomeado pelos latinos, Júpiter, senhor dos deuses e dos homens. Os romanos imitaram os gregos. Estes povos instalaram sempre os deuses, no céu, sem se saber o que entendiam por céu e pelo seu Olimpo: não parece que esses entes superiores habitassem nas nuvens, que nada mais são que água. Inicialmente, colocaram sete nos sete planetas entre os quais contavam o Sol; mas, depois, a morada de todos os deuses foi a extensão do céu. Os romanos dispuseram de doze grandes deuses, seis machos e seis fêmeas, que nomearam Dii majorum gentium: Júpiter, Netuno, Apolo, Vulcano, Marte, Mercúrio, Juno, Minerva, Ceres, Vênus, Diana, sendo Plutão esquecido e substituído por Vesta. Vinham em seguida os deuses minorum gentium; os deuses indígitos, os heróis como Baco, Hércules, Esculápio; os deuses infernais, Plutão, Prosérpina; os deuses do mar, como Tétis, Anfitrite, as Nereidas, Glauco; depois as Dríades, as Náides; os deuses dos jardins, os dos pastores. Havia-os para cada profissão, para cada ato da vida, para as crianças, para as moças núbeis, para as casadas, para as parturientes; houve o deus Traque. Enfim, foram divinizados os imperadores. Nem estes imperadores, nem o deus Pet nem a deusa Pertunda, nem Príapo, nem Rumília, a deusa das mamas, nem Stercutius, o deus do guarda-roupa, foram verdadeiramente encarados como senhores do céu e da terra. Os imperadores tiveram por vezes templos, os pequenos deuses penates nunca os tiveram; todavia, a todos cabia uma figura, um ídolo. Eram bonecos de porcelana com que se ornavam os quartos, brinquedos de velhas e crianças não autorizados por qualquer culto público. Deixava-se à vontade a superstição de cada particular. Encontram-se ainda estes pequenos ídolos nas ruínas das cidades antigas. Se ninguém sabe quando terão começado os homens a fabricar ídolos, sabe-se que estes datam da mais alta antiguidade. - Tharê, pai de Abraão, fabricava-os em Ur, na Caldeia. Raquel furtou e levou consigo os ídolos do seu sogro Labão. Não podemos ir mais além. Porém, que noção precisa tinham os povos antigos sobre todos estes simulacros? Que virtude, que poder lhes atribuíam? Supunham que os deuses vinham do céu esconder-se nessas estátuas ou que lhes comunicariam uma parte do espírito divino, ou que não lhes comunicariam coisíssima alguma? Também sobre isto se tem escrito inutilmente: é claro que cada qual tinha opiniões concordantes ou com o seu grau de razão ou com a sua credulidade ou com o seu fanatismo. Evidentemente que os padres associavam tanta divindade quanta podiam às estátuas, para atraírem oferendas. Sabe-se que os filósofos reprovavam essas superstições, que os guerreiros as motejavam, que os magistrados as toleravam e que o povo, sempre absurdo, não sabia o que fazia. Tal é, em poucas palavras, a história de todas as nações a que Deus não se deu a conhecer. Pode-se formar a mesma ideia acerca de um culto que todo o Egito prestou a um boi, e que numerosas cidades prestaram a um cão, a um macaco, a um gato, a cebolas. Há fortes razões para crer que os primeiros ídolos foram emblemas. Em seguida, houve quem adorasse certo boi Ápis, um certo cão chamado Anúbis; sempre se comeu boi e cebolas mas toma-se difícil averiguar o que pensariam as velhas do Egito acerca das cebolas sagradas e dos bois. Os ídolos falavam com muita frequência. Em Roma, no dia de festa de Cibele, eram comemoradas as belas palavras que a estátua pronunciara quando a haviam transladado do palácio do rei Atale. Ipsa peti volui; ne sit mora, mitte volentem: Dignus Roma locus quo deus omnis eat. Quis que me levassem, conduzi-me depressa; Roma é digna de ser a morada de todos os deuses. A estátua da Fortuna falara: os Cipiões, os Cíceros, os Césares não o acreditavam, na verdade; mas a velha a quem Encolpo deu um escudo para comprar gansos e deuses poderia perfeitamente acreditar. Os ídolos também proferiam oráculos e os padres, escondidos no interior das estátuas, falavam em nome da Divindade. Como foi possível, no meio de tantos deuses e tantas teogonias diferentes, e tantos cultos particulares, que nunca houvesse guerras de religião entre os povos ditos idólatras? Essa paz foi um bem nascido de um mal, do próprio erro; porquanto cada nação, ao reconhecer numerosos deuses inferiores, achava bem que os vizinhos tivessem também os seus. Se excetuarmos Cambises, a quem se censura o haver morto o boi Ápis, não se encontra na história profana conquistador que maltratasse os deuses de um povo vencido. Os gentios não tinham nenhuma religião exclusiva, e os padres só pensavam em multiplicar as oferendas e os sacrifícios. As primeiras oferendas foram constituídas por frutos. Em breve se exigiam animais para a mesa dos padres; eles próprios os degolavam e tomaram-se carniceiros e cruéis; por fim, introduziram o uso horrível do sacrifício de vidas humanas, sobretudo de crianças e raparigas. Nunca os chineses, os persas, os indianos incorreram em semelhantes abominações; mas em Hierópolis, no Egito, segundo o relato de Porfírio, foram imolados homens. Na Táurida sacrificavam-se estrangeiros; felizmente, os padres da Táurida não deviam ter muitas práticas. Os primeiros gregos, os cipriotas, os fenícios, os tírios, os cartagineses cultivaram esta superstição abominável. Os próprios romanos caíram nesse crime religioso e Plutarco relata que imolaram dois gregos e três gauleses para expiação das galanterias de três vestais. Procópio, contemporâneo do rei franco Teodoberto, conta que os francos imolaram homens quando entraram na Itália com aquele príncipe. Os gauleses, os germanos praticavam habitualmente esses atrozes sacrifícios. É impossível ler-se a história sem conceber horrores do gênero humano. Verdade se diga que, entre os hebreus, Jefté sacrificou a sua filha e Saul esteve prestes a imolar o filho; verdade se diga que os votados ao Senhor por anátema não podiam ser resgatados tal como se resgatavam os animais, e tinham de perecer. Samuel, padre judeu, cortou aos bocados com um cutelo santificado o rei Agog, prisioneiro de guerra, a quem Saul perdoara, e Saul foi censurado por ter observado o direito das gentes para com este rei. Porém, Deus, Senhor dos homens, pode privá-los da vida, quando o quiser, como o quiser e porque o quer; e não cabe aos homens porem-se no lugar do Senhor da vida e da morte e usurparem os direitos do Ente Supremo. Para consolar o gênero humano deste horrível quadro, destes piedosos sacrilégios, importa saber-se que, entre quase todas as nações ditas idólatras, havia a teologia sagrada e o erro popular, o culto secreto e as cerimônias públicas, a religião dos sábios e a religião vulgar. Aos iniciados nos mistérios, ensinava-se a crença num Deus único; basta atentar no hino atribuído ao velho Orfeu, que era cantado nos mistérios de Ceres Eleusina, tão célebre na Europa e na Ásia: "Contempla a natureza divina, ilumina o teu espírito, governa o teu coração, marcha pela via da justiça; que o Deus do céu e da terra esteja sempre presente ante os teus olhos: ele é único e por si só existe; todos os seres existem por ele, que a todos sustenta; nunca foi visto pelos mortais e vê todas as coisas". Leia-se ainda esta passagem do filósofo Máximo de Madaura na sua Carta a Santo Agostinho: "Qual o homem tão grosseiro, tão estúpido, para duvidar da existência de um Deus supremo, eterno, infinito, que nada engendrou de semelhante a si, e que é o pai comum de todas as coisas". Mil testemunhos existem acerca do horror dos sábios não só pela idolatria, como ainda pelo politeísmo. Epicteto, esse modelo de resignação e paciência, esse homem tão grande de uma condição tão baixa, não fala senão de um Deus único. Eis uma das suas máximas: "Deus me criou, Deus está dentro de mim; comigo o trago por todo o lado. Como poderia maculá-lo com pensamentos obscenos, com ações injustas, com desejos infames? O meu dever é agradecer a Deus tudo, louvá-lo por tudo e não cessar de o bendizer senão ao cessar de viver". Todas as ideias de Epicteto giram à volta deste princípio. Marco Aurélio, talvez tão grande sobre o trono do Império Romano como Epicteto na escravidão, fala muitas vezes, é verdade, dos deuses, quer para se conformar com a linguagem recebida, quer para designar os entes intermédios entre o Ser Supremo e os homens; mas em quantas passagens não nos faz ver que só admite um Deus eterno, infinito! "A nossa alma", diz ele, "é uma emanação da divindade. Os meus filhos, o meu corpo, os meus espíritos vêm-me de Deus”. Os estoicos, os platônicos admitiam uma natureza divina e universal; os epicuristas negavam-na. Os pontífices falavam nos mistérios apenas de um Deus único. Onde estavam, pois, os idólatras? Aliás, um dos grandes erros do Dicionário de Moréri consiste na afirmação de que, no tempo de Teodósio, o Jovem, só restavam idólatras nas regiões atrasadas da Ásia e da África. Ora, existiam na Itália muitos povos ainda gentílicos, mesmo no século VII. O norte da Alemanha, para lá do Weser, não era cristão no tempo de Carlos Magno. A Polônia e todo o Setentrião permaneceram, muito tempo depois dele, no que se chama idolatria. Metade da África, todos os reinos para lá do Ganges, o Japão, a populaça chinesa, cem hordas de tártaros conservaram os seus antigos cultos. Na Europa, só alguns lapões, alguns samoiedos, alguns tártaros perseveraram na religião dos seus antepassados. Acabemos por notar que, durante os tempos entre nós designados por Idade Média, designávamos o país dos maometanos por Pagania; tratávamos como idólatras, como adoradores de imagens, um povo que abolira as imagens. Confessemos outra vez ainda que é mais desculpável os turcos suporem que somos idólatras, quando veem os nossos altares carregados de imagens e de estátuas. Igualdade Que é que deve um cão a outro cão, e um cavalo a outro cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante; mas por que o homem recebeu da Divindade um raio de luz que se chama razão, qual é o fruto disso? É ser escravo em quase toda a terra. Se a terra fosse o que parece que devia ser, isto é, se por todo lado o homem encontrasse alimentação fácil e garantida, e um clima adequado à sua natureza, é óbvio que teria sido impossível a qualquer homem escravizar outro. Se o globo fosse coberto de saborosos frutos; se o que deve contribuir para a nossa vida não nos causasse as doenças e a morte; se o homem não necessitasse doutra morada e doutra cama que aquelas que têm os gamos e os cabritos: nesse caso, os Gêngis Can e os Tamerlão só teriam como servos os seus próprios filhos, que fossem criaturas honradas e generosas o bastante para os ajudarem na velhice. Nesse estado natural, de que gozam todos os quadrúpedes, as aves e os répteis, o homem seria feliz como eles o são, a servidão tornar-se-ia uma coisa absurda, em que ninguém havia de pensar; quando não se tem necessidade dos serviços de outrem, para que chamar e ter criados? Se passasse pela cabeça de qualquer indivíduo de feitio tirânico e braço nervoso escravizar um vizinho menos forte do que ele, a coisa seria impossível: já o oprimido estaria a cem léguas de distância antes que o opressor tivesse tempo de tomar as suas precauções para o agarrar. Todos os homens seriam, portanto, necessariamente iguais se de nada precisassem. A miséria, condição agregada à nossa espécie, subordina um homem a outro homem; não é a desigualdade que é um mal real, mas a dependência. Muito pouco importa que tal ou tal indivíduo se chame Sua Alteza, e outro fulano Sua Santidade; o que dói, o que é duro de roer, é ter de servir um ou outro. Uma família numerosa cultivou uma terra fértil; duas famílias vizinhas, menores, possuem campos sáfaros e rudes no laborar: é preciso que as duas famílias pobres sirvam à família opulenta, ou a degolem, é bom lembrar. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer os seus braços à rica, para conseguir ganhar o seu pão; a outra vai atacar os ricaços e é vencida. A família serviçal dá origem à criadagem assalariada e aos operários, a família vencida dá origem aos escravos. No nosso desgraçado globo é impossível que os homens que vivem em sociedade não estejam divididos em duas classes: a dos ricos, que governam, e a dos pobres, que servem; e estas duas subdividem-se em outras mil e estas mil, ainda, possuem caracteres distintos. Os pobres não são todos infelizes, em absoluto. A maioria já nasceu nesse estado de miséria e o trabalho constante impede-os de sentirem demasiado a sua triste condição; mas, quando reparam nela, geram-se as guerras, como, em Roma, as do partido popular contra o partido do Senado; a dos camponeses na Alemanha, na Inglaterra, na França. Todas essas guerras acabam, mais cedo ou mais tarde, pela submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro é o senhor de tudo num Estado: e digo num Estado, porque já o mesmo não acontece de nação para nação. O povo ou nação que melhor souber servir-se do ferro das armas subjugará sempre aquele que tiver mais ouro do que coragem. Todos os homens nascem com uma tendência bastante violenta e pronunciada para o domínio e os prazeres, e uma queda acentuada para a preguiça: por conseguinte, qualquer homem gostaria de possuir o dinheiro e as mulheres ou as filhas dos outros, ser o amo deles, submetê-los a todos os caprichos seus e não fazer nada ou, pelo menos, fazer apenas o que muito bem lhe apetecesse. Já veem que, com tão lindas disposições, é impossível que os homens sejam iguais, como é impossível que dois pregadores ou dois professores de teologia não tenham ciúmes e inveja um do outro. O gênero humano, tal como na realidade é, não pode subsistir a menos que não haja uma infinidade de homens úteis que nada possuam; porque, é mais do que certo, um homem que possua o suficiente e viva a seu bel-prazer não vai abandonar a sua terra para vir cultivar a vossa; e se ti verdes precisão de um par de sapatos, não será, com certeza, um referendário que vo-lo fará. Por isso, a igualdade é, simultaneamente, a coisa mais natural e mais quimérica que existe. Como os homens são excessivos em tudo o que podem, elevaram ao cúmulo esta desigualdade; em vários países tentou-se proibir que nenhum cidadão saísse da região onde o acaso o fizera nascer; o sentido desta lei, visivelmente, é o seguinte: Este país é tão mau e anda tão mal governado, que proibimos a todo indivíduo que saia dele, com medo que toda a gente se raspe a sete pés. Aconselho que procedam doutra maneira e melhor: deem a todos os vossos súditos o desejo de ficarem na terra onde nasceram e aos estrangeiros o desejo de a visitarem. Todo e qualquer homem, no íntimo do coração, está no seu direito de julgar-se inteiramente igual aos outros homens; daí, não se deve concluir que o cozinheiro dum cardeal deva obrigar este a fazer-lhe o jantar; mas o cozinheiro pode argumentar: "Sou um homem tal qual meu amo, nasci como ele a chorar; há de morrer, como eu, nas mesmas angústias e nas mesmas dores da agonia. Ambos fazemos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e, nessa altura, eu for cardeal e o meu amo cozinheiro, hei de torná-lo a meu serviço". Esta arenga é razoável e justa, duma ponta a outra; mas, enquanto aguarda que o Grande Turco se aposse de Roma, o cozinheiro tem de cumprir o seu dever, ou toda a sociedade humana está pervertida e dará consigo em pantanas. Que deve fazer um homem que não é cozinheiro, nem cardeal, nem está revestido de nenhum outro cargo público; um simples particular que não deve nada a ninguém, mas anda aborrecido por ser recebido em todos os lados com um certo ar de proteção ou desdém, que percebe perfeitamente que vários monsignori não sabem mais do que ele, nem têm mais espírito do que ele, e que, portanto, se aborrece de estar às vezes na sua antecâmara, que deve fazer?! É pôr-se na alheta. Imaginação SEÇÃO PRIMEIRA É o poder que tem cada ser sensível para representar as coisas sensíveis no seu cérebro. Depende da memória. Veem-se as coisas pelos sentidos, a memória as retém e a imaginação as compõe. Por isso os gregos chamavam as Musas "Filhas da Memória". É essencial notar que não podemos dar a razão dessas três faculdades - percepção, memória e imaginação. Suas molas invisíveis nascem das mãos da natureza e não das nossas. Talvez a imaginação, dom de Deus, seja a única faculdade de que dispomos para compor ideias, mesmo as mais metafísicas. Pronunciais a palavra "triângulo", mas, se não representardes a imagem de um triângulo, tereis uma palavra vazia. Só tendes ideia do triângulo porque haveis visto um (se tiverdes olhos) ou tocado num (se fordes cego). Não podeis pensar no triângulo em geral sem que vossa imaginação figure, mesmo confusamente, algum triângulo particular. Calculais, mas precisais representar unidades duplicadas, pois, se não, apenas vossas mãos trabalham. Pronunciais termos abstratos - grandeza, verdade, justiça, finito, infinito. Mas a palavra "grandeza", se não tiverdes a imagem de alguma grandeza, será mais do que um movimento de vossa língua no ar? Que querem dizer "verdade", "mentira" se não ti verdes percebido por vossos sentidos que certa coisa que vos disseram existia efetivamente, e que outra não existia? E desta experiência compondes as ideias gerais de verdade e mentira. E, quando vos perguntam o que entendeis por tais palavras, podeis impedir que vos venha alguma imagem sensível, que vos faz lembrar que um dia vos disseram que existia, e frequentem ente que não existia? Tendes noção do justo e do injusto sem a imagem de ações que vos pareceram tais? Quando criança, vistes o salário recusado a um operário que trabalhara, e isto vos pareceu muito injusto, e outras coisas semelhantes. As ideias do justo e do injusto são apenas fatos como esses, misturados em vossa imaginação. O finito-não é apenas a imagem de uma coisa limitada em sua medida? O infinito não é esta mesma medida prolongada sem fim? Todas essas operações assemelham-se à leitura de um livro: quando se lê, nem se percebem as letras, sem as quais, contudo, não se poderia ler. Basta, porém, um pouco de atenção e elas também são percebidas deslizando sob nossos olhos. Do mesmo modo, todos os vossos raciocínios, todos os vossos conhecimentos estão fundados em imagens traçadas em vosso cérebro. Não vos apercebeis disso, mas atentai um pouco e vereis, então, que as imagens são a base das noções. Cabe ao leitor compreender essa ideia, ampliá-la ou retificá-la. Todos os sentidos, e não apenas a vista, contribuem para fornecer ideias à imaginação. Um cego de nascença ouve em sua imaginação uma harmonia que não atinge mais seus ouvidos, está à mesa e sonha, os objetos que resistiram ou cederam à sua mão continuam fazendo o mesmo efeito em sua cabeça. É verdade que o sentido da vista é o único que fornece imagens, e, como é uma espécie de tato que se estende até às estrelas, sua imensa extensão enriquece a imaginação mais do que todos os outros juntos. Há duas espécies de imaginação: uma, denominada passiva, consiste em reter uma simples impressão dos objetos; outra, denominada ativa, arranja as imagens recebidas, compondo-as de mil maneiras. A primeira não ultrapassa muito a memória; é comum aos homens e aos animais. Por isso o caçador e seu cão em seus sonhos perseguem igualmente animais; dormindo, ambos ouvem o ruído dos cervos, um grita e o outro ladra. Os homens e os animais não apenas se recordam, mas compõem, pois o sonho nunca é uma imagem fiel. Essa imaginação passiva compõe, mas não é uma ação do entendimento e sim um engano da memória. A imaginação passiva não precisa da ajuda de nossa vontade, quer no sono, quer na vigília. Malgrado nós próprios, pinta o que os olhos viram, os ouvidos ouviram, o tato tocou. Acrescenta ou diminui. É um sentido interior que age necessariamente e por isso é tão frequente dizer-se: "Não se é senhor de sua imaginação". É por isso, também, que devemos ficar surpresos e convencidos de seu pequeno poder. Por que em sonho somos capazes de pronunciar um discurso eloquente ou de resolver um complicado problema matemático? Parecem ser ideias muito combinadas que não dependem de nós. Ora, se é incontestável que durante o sono essas ideias consequentes se formam em nós, malgrado nós, quem nos assegurará que não se formem também durante a vigília? Quem pode prever a ideia que terá dentro de um minuto? Não parece que nos venha exatamente como os movimentos de nossas fibras? E se o Padre Malebranche se tivesse contido e dito apenas que nossas ideias nos são dadas por Deus, quem poderia tê-lo combatido? A faculdade passiva, independentemente da reflexão, é a fonte de nossas paixões e de nossos erros. Longe de depender da vontade, determina-a, arrasta-nos para os objetos que pinta, afasta-nos deles, conforme a maneira que os represente. A imagem de um perigo inspira medo; a de um bem inspira desejos violentos; sozinha, produz o entusiasmo da glória, os partidos, o fanatismo. É ela que espalha tantas doenças do espírito, fazendo cérebros fracos, poderosamente excitados, imaginarem que seus corpos se transformavam em outros. Persuadem muitos homens que estavam obcecados ou enfeitiçados e que iam efetivamente ao "sabá" só porque se lhes dizia que fossem. Essa espécie de imaginação servil, quinhão do povo ignorante, foi o instrumento usado pela imaginação forte de certos homens para dominar. É ainda essa imaginação passiva de cérebros facilmente abaláveis que transmite aos filhos impressões recebidas por suas mães. Vi exemplos tão surpreendentes disso, que só não ponho em dúvida porque os vi. É um efeito inexplicável da imaginação. Mas quantos efeitos inexplicáveis a natureza produz? Não sabemos melhor como temos percepções, como as retemos, como as arranjamos. Entre nós e nossas vidas há o infinito. A imaginação ativa é aquela que une a reflexão, a combinação à memória. Aproxima vários objetos distantes, separa aqueles que se misturam, compõe e modifica. Parece criar, embora somente componha, pois não é dado ao homem produzir ideias - só pode modificá-las. No fundo, a imaginação ativa também é uma faculdade independente de nós como a passiva. Prova dessa independência: se propuserdes a cem pessoas igualmente ignorantes que imaginem certa máquina nova, noventa e nove não conseguirão imaginar coisa alguma, apesar de seus esforços. Se o centésimo imagina alguma coisa, não é evidente que recebeu um dom particular? Este dom chama-se gênio. Foi por causa dele que se admitiu algo inspirado e divino. É um dom da natureza, uma imaginação inventiva nas artes, no ordenamento de um quadro, de um poema. Não pode existir sem a memória, mas serve-se dela como de um instrumento com que faz suas obras. Depois de ver que se levantara uma pedra pesada exclusivamente com a ajuda de um bastão, a imaginação ativa inventou as alavancas e, em seguida, as forças moventes compostas que são apenas alavancas disfarçadas. É preciso primeiro afigurar no espírito uma máquina para depois executá-la. Essa espécie de imaginação não pode ser chamada pelo vulgo de inimiga do raciocínio, como a memória. Pelo contrário, só pode agir graças a um juízo profundo. Combina incessantemente seus quadros, corrige seus erros, eleva todos os seus edifícios com ordem. Há uma imaginação surpreendente na matemática prática e Arquimedes tinha tanta imaginação quanto Homero. É com ela que o poeta cria suas personagens, fornece-lhes os caracteres, as paixões, inventa sua fábula, apresenta a exposição, duplica o enredo, prepara o desenrolar, trabalho que requer um juízo ainda mais profundo e, ao mesmo tempo, mais fino. É preciso grande arte em todas essas imaginações inventivas e mesmo nos romances. Os que não a possuem são desprezados pelos espíritos bem formados. Um juízo inigualável reina nas fábulas de Esopo, que deliciarão sempre todas as nações. Há mais imaginação nos contos de fada, mas essas imaginações fantásticas, desprovidas de ordem e de bom senso, não podem ser estimadas. São tidas por fraqueza e condenadas pela razão. A segunda parte da imaginação ativa consiste naquela dos detalhes. É o que frequentemente os mundanos chamam de imaginação. Faz o encanto de uma conversa, porque apresenta incessantemente objetos novos ao espírito, coisa que os homens gostam muito. Pinta vivamente aquilo que espíritos frios mal desenham, emprega as circunstâncias mais fulminantes, apresenta exemplos, e, quando se torna um talento sóbrio como convém a todos os talentos, concilia-se com o domínio da sociedade. O homem é de tal modo uma máquina, que o vinho pode provocar essa imaginação que a embriaguez aniquila. É humilhante mas também espantoso: como um pouco de licor, que impede que se faça um cálculo, pode produzir ideias tão brilhantes? A imaginação dos detalhes e da expressão deve reinar sobre tudo no pensamento - além de agradável, é necessária. Quase tudo é imagem em Homero, em Virgílio, em Horácio, sem que nos apercebamos. A tragédia exige menos imagens, menos expressões pitorescas, menos metáforas e alegorias do que exigem o poema épico e a ode. No entanto, muitas dessas belezas bem manejadas produzem efeitos admiráveis na tragédia. Permite-se menos imaginação na eloquência do que na poesia. A razão é óbvia. O discurso não deve afastar-se das ideias conhecidas. O orador fala a língua de todo mundo, enquanto o poeta tem a ficção na base de sua obra. Assim, a imaginação é a essência de sua arte, e apenas um acessório para o orador. Certos toques de imaginação, diz-se, acrescentaram beleza à pintura ( ... ). Em geral, a imaginação dos pintores, quando não é engenhosa, honra mais o espírito do artista em vez de embelezar sua arte. Todas as composições alegóricas não valem a bela execução da mão que valorizou o quadro. Em todas as artes, a bela imaginação é sempre natural. Aquela que reúne objetos incompatíveis é falsa. Aquela que afigura objetos que não têm analogia, nem alegoria, nem verossimilhança é bizarra ( ... ). A imaginação forte aprofunda os objetos, a fraca só os aflora. A doce repousa em figurações agradáveis, a ardente amontoa imagem sobre imagem. A imaginação sábia emprega com discernimento todos os caracteres diversos, mas nunca admite a esquisitice e sempre rejeita o falso. Se a memória bem nutrida e exercitada é fonte da imaginação, quando sobrecarregada faz com que a segunda pereça. Assim, aquele que encheu a cabeça com datas e nomes não tem um armazém para compor imagens. Os homens ocupados com cálculos ou negócios espinhosos têm geralmente a imaginação estéril. Quando muito ardente e tumultuosa, pode degenerar em demência. Contudo, tem-se notado que esse tipo de doença cerebral ocorre mais nas imaginações passivas do que nas ativas - isto é, naquelas mais limitadas e fixadas na impressão dos objetos, e não naquelas laboriosas que reúnem e combinam ideias, porquanto a imaginação ativa precisa sempre de juízo, e a outra é independente dele. Inferno Desde que os homens vivem em sociedade, já devem ter-se apercebido que autênticos criminosos escaparam à severidade das leis. Estas punem crimes públicos e era preciso arranjar um freio para os crimes secretos; somente a religião podia ser esse freio. Os persas, os caldeus, os egípcios, os gregos imaginaram castigos para depois da morte; e, de todos os povos antigos que conhecemos, os judeus foram os únicos que só admitiram castigos temporais. É ridículo acreditar, ou fingirmos acreditar, baseando-nos nalguns passos muito obscuros, que o Inferno era admitido pelas antigas leis dos judeus, o Levitico ou o Decálogo, quando é certo que o autor dessas leis não disse uma única palavra que possa ter a menor relação com as punições aplicáveis na vida futura. Sentimo-nos no direito de dizer ao redator do Pentateuco: "Sois um homem inconsequente e sem probidade, indigno do nome de legislador que tendes a arrogância de usar. Homessa! Pois conheceis algum outro dogma mais opressivo, mais necessário para a mentalidade do povo que o do Inferno, e não o declarais expressamente? E, enquanto todos os vossos vizinhos o admitem, contentai-vos em deixar adivinhar esse dogma por certos comentadores que ainda estão para nascer daqui a quatro mil anos e que aplicarão incríveis torturas a algumas das vossas palavras para ali subentender aquilo que vós não dissestes? Ou sois, por acaso, um ignorante, e não sabeis que tal crença era universal no Egito, na Caldeia, na Pérsia; ou sois um homem tão pouco atilado que, conhecendo perfeitamente esse dogma, não fizestes dele o fundamento da vossa religião?" Os autores das leis judaicas o mais que poderiam era responder: "Confessamos que somos tremendamente ignorantes; que só muito tarde aprendemos a escrever; que o nosso povo era uma horda selvagem e bárbara que, confessadamente, vagueou perto de meio século por desertos impraticáveis; que, finalmente, usurpou um pequeno país, usando das mais odiosas rapinas e das crueldades .mais detestáveis que a história registra. Não mantínhamos nenhum comércio nem convivência com os povos civilizados; como quereis, então, que pudéssemos (nós, os mais terra-a-terra de todos os homens) inventar um sistema espiritual? "Empregávamos o termo que corresponde a alma apenas para significar a vida; conhecíamos o nosso Deus e os seus ministros e anjos apenas como seres corporais: a distinção entre a alma e o corpo, a ideia de uma vida para além da morte só pode ser o fruto duma longa meditação e duma filosofia muito sutil. Perguntai aos hotentotes e aos pretos, que habitam um país cem vezes mais extenso que o nosso, se conhecem algo da vida futura. Julgamos suficiente tentar persuadir o povo que Deus punia os malfeitores até a quarta geração, quer pela lepra, quer por mortes súbitas, quer ainda pela perda dos parcos bens que possuíam". Podia retorquir-se a esta apologia: "Inventastes um sistema cujo ridículo salta aos olhos; porque o malfeitor, que vivia na abundância e cuja família prosperava a olhos vistos, por força que se havia de rir de vós". O apologista da lei judaica então responderia: "Enganai-vos; porque, para um criminoso que raciocinasse com critério, em proporção havia cem que não raciocinavam nada. Aquele que, tendo cometido um crime, não se sentia punido no corpo, nem no corpo do seu filho, sentia temores pelo neto. Ademais, se nem sempre lhe aparecia uma úlcera purulenta, de que éramos atacados com frequência, mais cedo ou mais tarde vinha a rebentar-lhe pelo corpo: em qualquer família acontecem sempre casos azarentos e facilmente lhes fazíamos acreditar que essas desgraças eram ordenadas por uma mão divina, que assim vingava pecados secretos". Será fácil replicar a esta resposta, dizendo: "As vossas desculpas não valem nada, porque todos os dias podemos observar o fato de pessoas, muito honradas e tementes a Deus, perderem a saúde e os bens; e se não há famílias onde desgraças não sucedam, e se tais desgraças são castigos de Deus, então todas as vossas famílias seriam redutos de traficantes e ladrões". O sacerdote judeu poderia ainda argumentar; diria que há desgraças próprias da natureza humana e outras que são ordenadas expressamente por Deus. Mas faríamos ver a este teimoso argumentador o ridículo que se torna pensar que a febre e a saraiva ora são uma punição divina, ora um fenômeno natural. Entre os judeus, os fariseus e os essênios admitiram a crença num Inferno a seu modo; esse dogma já tinha transitado dos gregos para os romanos e foi, depois, adotado pelos cristãos. Vários foram os Padres da Igreja que não acreditaram nas penas eternas: parecia-lhes coisa absurda pôr a assar durante a eternidade inteira um pobre homem, só por ter roubado uma cabra. Por mais que Virgílio diga, no canto sexto da Eneida: ...Sedet aeternumque sedebit Infelix Theseus. Em vão o poeta pretende que Teseu para sempre está sentado numa cadeira e que esta postura constitui o seu suplício. Outros acreditavam que Teseu era um herói e não está sentado no Inferno, mas que está nos Campos Elísios. Não há muito tempo ainda, um bom e honesto ministro huguenote pregou e escreveu que os condenados haviam de ter um dia perdão e que era necessária uma proporção entre o pecado e o suplício e que uma falta momentânea não pode merecer um castigo infinito. Os sacerdotes, seus confrades, destituíram este juiz, demasiado indulgente; um deles disse-lhe: "Meu amigo, acredito tão pouco como tu nas penas eternas; mas é bom que a tua criada, o teu alfaiate e até o teu procurador acreditem nelas". Inquisição A Inquisição é, como se sabe, uma invenção admirável e absolutamente cristã destinada a tornar o papa e os monges mais poderosos e a tornar todo um reino hipócrita. De ordinário, São Domingos é visto como o primeiro a quem se deve esta instituição. Com efeito, conservamos ainda uma patente dada por este grande santo, concebida nas suas próprias palavras: "Eu, irmão Domingos, reconcilio com a Igreja o dito Rogério, portador dos presentes, sob condição de que se faça fustigar por um padre três domingos consecutivos desde a entrada da cidade até à porta da igreja, seja magro toda a sua vida, que durante três quaresmas do ano nunca beba vinho, traga o sanbenito com cruzes, reze o breviário todos os dias, diga dez Pater por dia e vinte à meia-noite; e de que guarde doravante a continência, se apresente todos os meses ao cura da sua paróquia, etc., tudo isto sob pena de ser tratado como herético, perjuro e impenitente". Embora Domingos seja o verdadeiro fundador da Inquisição, Luís de Paramo, um dos mais respeitáveis escritores e das mais brilhantes luminárias do Santo Oficio, refere, todavia, no título segundo do segundo livro, que Deus foi o primeiro instituidor do Santo Oficio e exerceu o poder dos irmãos pregadores contra Adão. Antes de mais, Adão é citado para comparecer em Juízo: Adam, ubi es? e, com efeito, acrescenta, a falta de citação acarretaria a nulidade do processo divino. Os trajes de pele que Deus fez a Adão e Eva foram o modelo do sanbenito que o Santo Oficio obriga os hereges a envergarem. Verdade seja que por este argumento se prova que Deus foi o primeiro alfaiate; mas não é menos evidente que o primeiro inquisidor. Adão foi privado de todos os bens imóveis que possuía no grande paraíso terrestre; donde, que o Santo Oficio confisque os bens de todos aqueles que condena. Luís de Paramo assinala que os habitantes de Sodoma foram queimados como heréticos porque a sodomia é heresia formal. Daí, passa à história dos judeus onde encontra o Santo Oficio em toda a parte. Jesus Cristo é o primeiro inquisidor da nova lei; os papas foram inquisidores de direito divino e, finalmente, transmitiram o poder a São Domingos. Procede, em seguida, à enumeração de todos aqueles que a Inquisição levou à morte; e encontra muito para cima de cem mil. O seu livro foi impresso no ano de 1598, em Madrid, com a aprovação dos doutores, os elogios do bispo e o privilégio do rei. Não concebemos hoje horrores ao mesmo tempo tão extravagantes e tão abomináveis; mas então nada parecia mais natural e mais edificante. Todos os homens se parecem com Luís de Paramo quando são fanáticos. Este Paramo era um homem simples, muito exato nas datas, sem omitir nenhum fato interessante e avaliando com escrúpulo o número de vítimas humanas imoladas pelo Santo Ofício em todos os países. Descreve coma maior ingenuidade o estabelecimento da Inquisição em Portugal e está perfeitamente de acordo com quatro outros historiadores que falaram como ele. Eis o que nos relatam unanimemente. Havia muito que o papa Bonifácio IX, no começo do século XV, enviara como delegados irmãos pregadores que iam em Portugal, de cidade em cidade, queimando os heréticos, os muçulmanos e os judeus; eram, todavia, ambulantes e os próprios monarcas se queixaram algumas vezes dos seus vexames. O papa Clemente VII quis dar-lhes um estabelecimento fixo em Portugal, como tinham em Aragão e Castela. Houve dificuldades entre a corte de Roma e a de Lisboa; azedaram-se os ânimos; com isso, sofria a Inquisição e não se estabelecia perfeitamente. Em 1539 apareceu em Lisboa um legado do papa que viera, dizia ele, para estabelecer a Santa Inquisição sob fundamentos inabaláveis. Traz ao rei João III cartas do papa Paulo III. Tinha outras cartas de Roma para os principais funcionários da Corte: as suas patentes de legado estavam devidamente seladas e assinadas; exibiu os poderes mais amplos para criar um grande inquisidor e todos os juízes do Santo Ofício. Tratava-se de um malandrim chamado Saavedra que sabia imitar todas as escritas, fabricar e apor falsos selos e falsos sinetes. Aprendera este mister em Roma e aperfeiçoara-se em Sevilha, donde chegara com dois outros intrujões. O seu séquito era magnífico; compunha-se de mais de cento e vinte lacaios. Para ocorrer a esta enorme despesa, ele e os seus confidentes contraíram em Sevilha empréstimos de somas imensas em nome da câmara apostólica de Roma; tudo estava concertado com a mais espantosa das ardilezas. O rei de Portugal começou por se admirar que o papa lhe enviasse um legado a latere sem o prevenir. O legado retorquiu altivamente que, em assunto tão premente como o estabelecimento fixo da Inquisição, Sua Santidade não podia sofrer atrasos e que ao rei era concedida honra suficiente pelo fato de o primeiro correio que lhe trazia a notícia ser um delegado do Santo Padre. O rei não ousou replicar. Nesse mesmo dia, o legado estabeleceu um grande inquisidor, mandou cobrar dízimos por toda a parte; e, antes que a Corte pudesse receber respostas de Roma, já fizera queimar duzentas pessoas e arrecadara mais de duzentos mil escudos. Entretanto, o marquês de Villanova, grande senhor espanhol de quem em Sevilha o legado sacara empréstimos com bilhetes falsos, julgou oportuno pagar-se por suas mãos, em vez de se ir comprometer com o intrujão em Lisboa. O legado fazia então Uma excursão junto da fronteira da Espanha. O marquês marcha para aí com cinquenta homens armados, rapta-o e leva-o para Madrid. A intrujice foi em breve descoberta em Lisboa e o conselho de Madrid condenou o legado Saavedra ao chicote e a dez anos de galés; mas o admirável é que o papa Paulo IV confirmou depois tudo o que fora estabelecido pelo intrujão. Ratifica com a plenitude do seu poder divino todas as pequenas irregularidades processuais e torna sagrado o que fora puramente humano. Que importa o braço de que Deus se digna servir-se? Eis como a Inquisição se tomou sedentária em Lisboa e todo o reino admirou a Providência. De resto, conhecem-se bem todas as regras processuais deste tribunal e sabe-se como são opostas à falsa equidade e à cega razão de todos os outros tribunais do universo. É-se aprisionado por simples denúncia das pessoas mais infames; um filho pode denunciar o pai, uma mulher, o marido; nunca se é acareado com os acusadores; os bens são confiscados em proveito dos juízes; é assim pelo menos que a Inquisição se tem conduzido até aos nossos dias: há aí algo de divino; pois, com efeito, é incompreensível que os homens tenham suportado pacientemente este jugo... Enfim, o conde de Aranda foi abençoado pela Europa inteira ao aparar as garras e ao limar os dentes do monstro; mas este ainda respira. Instinto Instinctus, impulsos, impulsiono. Que potência nos impele? Todo sentimento é instinto. Uma conformação secreta entre nossos órgãos e os objetos forma nosso instinto. Somente por instinto fazemos mil movimentos involuntários, do mesmo modo que por instinto somos curiosos, que procuramos a novidade, que a ameaça nos assusta, que o desprezo no irrita, que o ar submisso nos apazigua, que o choro nos enternece. Somos governados pelo instinto como os gatos e as cabras. É mais uma semelhança que temos com os animais, semelhança tão incontestável como a do nosso sangue, das nossas necessidades, das funções do nosso corpo. Nosso instinto não é nunca tão industrioso quanto os deles, nem mesmo se aproxima. Desde o momento do seu nascimento, um gamo ou um carneiro correm para a teta de sua mãe; uma criança morreria se a sua não lhe desse seu seio apertando-a em seus braços. Quando grávida, nunca uma mulher foi invencivelmente determinada pela natureza a preparar com suas próprias mãos um lindo berço de vime para seu filho, como uma toutinegra o faz com seu bico e suas patas. Mas o dom que temos para refletir, unido às duas mãos industriosas que a natureza nos presenteou, eleva-nos até ao instinto dos animais e com o passar do tempo coloca-nos, por bem ou por mal, infinitamente acima deles. Esta proposição foi condenada pelos senhores do antigo Parlamento e pela Sorbonne, esses grandes filósofos naturalistas que, como se sabe, contribuíram muito para o aperfeiçoamento das artes. Nosso instinto leva-nos inicialmente a surrar nosso irmão que nos magoa, se formos coléricos e mais fortes. Em seguida, nossa sublime razão nos faz inventar as flechas, a espada, a lança e, enfim, o fuzil, com que matamos nosso próximo. Só o instinto nos leva igualmente a fazer o amor, amor omnibus idem, mas só Virgílio, Tibulo e Ovídio falam disso. É só pelo instinto que um jovem serviçal detém-se com admiração e respeito diante do coche superdourado de um coletor do tesouro. A razão vem ao serviçal. Torna-se empregado do comércio, educa-se, rouba, toma-se por sua vez um grande senhor e enlameia seus antigos companheiros, languidamente estendido num carro ainda mais dourado do que aquele que admirou. O que é esse instinto que governa todo o reino animal e que em nós é fortificado pela razão ou reprimido pelo hábito? Será a "divina et particula aurae"? Sim, sem dúvida, é alguma coisa divina, pois tudo o é. Tudo é o efeito incompreensível duma causa incompreensível. Tudo é determinado pela natureza. Raciocinamos sobre tudo e não nos damos nada. Interesse Não ensinamos nada aos homens, nossos confrades, quando lhes dizemos que fazem tudo por interesse. O quê? ! É por interesse que esse faquir, todo nu, mantém-se ao sol, sobrecarregado de ferros, morrendo de fome, comido pelos vermes e os comendo? Sim, sem dúvida, pois conta ir ao décimo oitavo céu, e olha com piedade aquele que só será recebido no nono. O interesse de Malabar que se queima sobre o corpo de seu marido morto é o de encontrá-lo no outro mundo e ser, então, mais feliz do que o faquir. Com sua metempsicose, os hindus acreditam num outro mundo. São como nós: admitem as contradições. Conheceis algum rei ou alguma república que tenha feito a guerra ou a paz, ou editos, ou convenções, por outro motivo senão o do interesse? Com relação ao interesse do dinheiro (juros), consultai no grande Dicionário Enciclopédico o artigo do Sr. D'Alembert sobre o cálculo e o do Sr. Boucher d'Arpis sobre a jurisprudência. Ousemos acrescentar algumas reflexões. 1º - O ouro e o dinheiro são mercadoria? Sim. O autor de Do Espírito das Leis não pensa quando diz: "O dinheiro, que é o preço das coisas, aluga-se, não se compra". Posso alugá-lo e também comprá-lo. Compro ouro com dinheiro e dinheiro com ouro, e o preço muda todos os dias em todas as nações comerciantes. Na Holanda, a lei determina que as letras de câmbio sejam pagas na moeda do país e não em ouro, se o credor exigir. Neste caso, compro espécies sonantes pagando-as em ouro, fazenda, trigo ou diamantes. Preciso de dinheiro, trigo ou diamantes para um ano. O comerciante de trigo, dinheiro ou diamantes me diz: "Podereis durante este ano vender vantajosamente meu dinheiro, meu trigo, meus diamantes. Avaliemos o que me fazeis perder em quatro, cinco ou seis por cento, segundo o uso do país. Dar-me-eis, por exemplo, no final do ano, vinte e um quilates de diamantes por vinte que vos emprestei, vinte e um sacos de trigo por vinte emprestados, vinte e um mil escudos por vinte mil que me pedistes. É isso o interesse ou juro, estabelecido em todas as nações pela lei natural. A taxa depende da lei particular do país. Em Roma, por exemplo, empresta-se sob penhora a dois e meio por cento, segundo a lei, e os valores são vendidos se não se paga no tempo estipulado. Na Holanda, não se empresta sob penhora e só se pedem os juros estipulados pela lei do país. Se estivésseis na China pediríeis o juro vigente em Macau e em Cantão". 2º - Enquanto se comercia dessa maneira em Amsterdam, aí chega, vindo de Saint-Magloire, um jansenista (o fato é verdadeiro, o homem chamava-se abade dos Issarts). Diz o jansenista ao negociante holandês: "Tornai cuidado, estai-vos condenando, pois o dinheiro não pode produzir dinheiro, nummus nummum non parit. Só é permitido receber juros de seu dinheiro quando se aceita perder os cabedais. Ou seja, o único meio para salvardes vossa alma é fazer um contrato com este senhor aqui presente de tal modo que, por exemplo, se emprestardes vinte mil escudos, nunca mais os vereis, mas, em compensação, vós e vossos herdeiros recebereis mil escudos por ano durante toda a eternidade". "Bancais o engraçado", retruca o holandês; "estais propondo uma usura que é um infinito de primeira ordem. Ao cabo de vinte anos já terei recebido, eu ou os meus, meu capital; em quarenta anos, o dobro; o quádruplo em oitenta. Vedes bem que é uma série infinita. Ademais, só posso emprestar por doze meses, e contento-me com mil escudos de indenização”. O ABADE DOS ISSARTS Entristeço-me por vossa alma holandesa. Deus proibiu aos judeus de emprestar com juros. E sabeis muito bem que um cidadão de Amsterdam deve obedecer escrupulosamente às leis do comércio, dadas num deserto a alguns fugitivos errantes que não praticavam comércio algum. O HOLANDÊS Isto é claro, todo o mundo deve ser judeu, mas parece-me que a lei permite à horda hebraica maior usura do que aos estrangeiros, o que lhe propiciou excelentes negócios com eles. Aliás, seria preciso que até a proibição de cobrar juros de judeu para judeu caísse em desuso, já que Nosso Senhor Jesus Cristo, pregando em Jerusalém, diz expressamente que em seu tempo os juros eram de cem por cento, pois na parábola dos talentos diz que o servidor que tinha recebido cinco talentos ganhou cinco em Jerusalém, que aquele que tinha dois ganhou dois e que o terceiro que só tinha um e não o fez valer foi aprisionado pelo senhor por não ter feito seu dinheiro trabalhar com os cambistas. Ora, estes eram judeus, portanto era de judeu para judeu que se exercia a usura em Jerusalém. E a parábola, tirada dos costumes do tempo, indica manifestamente que a usura era de cem por cento. Lede São Mateus (capítulo XXV) que conhecia isso muito bem: foi empregado da alfândega na Galiléia. Deixai-me acabar o negócio que estou realizando com este senhor e não me façais perder meu tempo nem meu dinheiro. O ABADE DOS ISSARTS Tudo isso é belo e bom, mas a Sorbonne decidiu que o empréstimo a juros é um pecado mortal. O HOLANDÊS Caçoais de mim, meu amigo, citando a Sorbonne para um negociante de Amsterdam. Quando podem, nenhum desses raciocinadores deixa de fazer valer seu dinheiro a cinco ou seis por cento, comprando, no lugar de ações sólidas, ações da Companhia das Índias, prescrições, ações do Canadá. O conjunto do clero da França empresta a juros. Em várias províncias francesas o juro é estipulado com o principal. Aliás, a universidade de Oxford e a de Salamanca decidiram contrariamente à Sorbonne. É o que aprendi nas minhas viagens. Temos deuses contra deuses. E mais uma vez: não me aborreçais. O ABADE DOS ISSARTS Senhor, senhor, os maus têm sempre boas razões. Procurais vossa própria perdição, vos digo, pois o abade de Saint-Ciran, que não fez milagres, e o abade de Paris, que o fez em Saint-Michel... 3º - E, então, o mercador, impacientado, expulsou o abade dos Issarts do seu balcão e, após haver emprestado lealmente seu dinheiro ao último que veio, foi relatar sua conversa aos magistrados, que proibiram ao jansenista expor uma doutrina tão perniciosa para o comércio. Senhores, diz o primeiro almotacel, sois os mestres, tomai tanto quanto quiserdes da graça eficaz e da predestinação; tornai tão pouco quanto quiserdes da comunhão, mas guardai-vos de tocar nas leis de nosso Estado. Inundação Terá havido algum tempo em que a terra fosse inteiramente inundada? Eiso que é fisicamente possível. Pode ser que o mar tenha sucessivamente coberto todas as terras, uma após outra; e isto não poderá ter acontecido senão em lenta gradação, ao longo de uma prodigiosa coleção de séculos. Em quinhentos anos, o mar retirou-se das Aigues-Mortes, de Fréjus, de Ravena, que eram grandes portos, e deixou cerca de duas léguas de terreno em seco. A esta progressão, é evidente que seriam precisos dois milhões e duzentos e cinquenta mil anos para se dar a volta ao nosso globo. E o notável é que este período se aproxima muito do que necessita o eixo da Terra para se elevar e coincidir com o equador, movimento muito verossímil, de que começa a haver suspeitas desde há cinquenta anos, e que só poderá efetuar-se no espaço de dois milhões e mais de trezentos mil anos. Os leitos, os fósseis de conchas descobertos mesmo a algumas léguas do mar são a prova incontestável de que este foi depositando pouco a pouco estes produtos marinhos sobre terrenos que constituíam outrora as margens do oceano; que, porém, as águas tenham coberto inteiramente todo o globo ao mesmo tempo é quimera absurda em fisica, demonstrada como impossível pelas leis da gravitação, pelas leis dos fluidos, pela insuficiência de quantidade da água. Não que se queira infligir o menor atentado à grande verdade do dilúvio universal, relatado no Pentateuco: pelo contrário, tratando-se de um milagre, impô-se-nos acreditar; é um milagre, logo não pode ser executado pelas leis fisicas. Tudo é milagre na história do dilúvio: milagre que quarenta dias de chuva inundassem as quatro partes do mundo e as águas subissem quinze côvados acima das mais altas montanhas; milagre que houvesse cataratas, comportas, aberturas no céu; milagre que todos os animais comparecessem na arca, vindos de todas as partes do mundo; milagre que Noé encontrasse com que os alimentar durante dez meses; milagre que todos os animais se aguentassem na arca, com as suas provisões; milagre que a maior parte não houvesse morrido; milagre que encontrassem de comer à saída da arca; milagre ainda, embora de outra espécie, que um tal Le Pelletier tivesse acreditado que conseguira explicar como puderam todos os animais aguentar-se e alimentar-se naturalmente na arca de Noé. Ora, posto que a história do dilúvio é a coisa mais miraculosa de que jamais se ouviu falar, seria insensato explicá-lo: trata-se de um desses mistérios em que se acredita pela fé; e a fé consiste em se acreditar naquilo em que a razão não acredita, o que é ainda outro milagre. Assim, a história do dilúvio universal aparenta-se à da torre de Babei, à da jumenta de Balaão, à da queda de Jericó ao som das trombetas, à das águas transformadas em sangue, à da passagem do mar Vermelho e a todos os prodígios que Deus se dignou produzir em beneficio dos eleitos do seu povo; são profundezas que o espírito humano não pode sondar. J Jó Bom dia, amigo Jó: és um dos mais antigos excêntricos que os livros referem: não eras judeu: sabe-se que o livro com o teu nome é mais antigo que o Pentateuco. Se os hebreus, que traduziram do árabe, se serviram da palavra Jeová para significar Deus, é porque a pediram de empréstimo aos fenícios e aos egípcios, como nenhum verdadeiro sábio duvida. O termo Satã não era de origem hebraica, mas caldeu, como bem se sabe. Habitavas nos confins da Caldeia. Comentadores, dignos da profissão, pretendem que tu acreditavas na ressurreição porque, estando deitado no esterco, disseste, no capítulo XIX, que dali te erguerias um dia qualquer. Um doente que espera curar-se nem por isso espera a ressurreição, mas quero falar-te de outras coisas. Confessa que eras um grande tagarela, se bem que os teus amigos o fossem mais. Diz-se que possuías sete mil carneiros, três mil camelos, mil bois e quinhentas burras. Sempre quero fazer a tua contabilidade. Sete mil carneiros, a três libras e dois vinténs por cabeça, dão vinte e duas mil e quinhentas libras tornesas, logo.....................................22 500 £ Avalia os três mil camelos a cinquenta escudos por cabeça............................450 000 Mil bois não podem ser avaliados, uns compensando outros, a menos de........80 000 E quinhentas burras, a vinte francos a burra.....................................................10 000 O total eleva-se a..............................................................................................562 500 £ Sem contar com móveis, anéis e joias. Fui muito mais rico do que tu e embora tenha perdido uma grande parte dos meus bens e, como tu, seja doente, não resmunguei contra Deus como os teus amigos parecem censurar-te algumas vezes. Não estou nada satisfeito com Satã, que, para te induzir ao pecado e te fazer esquecer Deus, solicita que lhe seja concedida permissão de te privar dos teus bens e te dar a sarna. Ora, neste estado é que sempre os homens recorrem à Divindade: as pessoas felizes esquecem-na. Satã não conhecia suficientemente o mundo: aprendeu depois e, quando quer assegurar-se de alguém, torna-o intendente geral ou qualquer coisa de melhor, se possível. Isto nos mostrou claramente o nosso amigo Pope na história do cavaleiro Balaão. Tua mulher era uma impertinente, conquanto os teus pretensos amigos Elifaz, nativo de Thêman na Arábia, Baldad, de Suez, e Sofar, de Naarnath, fossem ainda mais insuportáveis do que ela. Exortam-te à paciência de uma maneira que impacientaria o mais pacífico dos homens: proferem longos sermões mais fastidiosos que os pregados pelo malandrim V... , em Amsterdam, e o... etc. É verdade que não sabes o que dizes quando gritas: "Meu Deus! Serei um mar ou uma baleia, para ter sido fechado por vós como numa prisão?", mas os teus amigos não o sabem melhor quando te respondem "que o dia não pode reverdecer sem umidade e que a erva dos prados não pode crescer sem água". Nada menos consolador que este axioma. Sofar de Naamath censura-te por seres um linguareiro; nenhum destes bons amigos, porém, te empresta um escudo. Eu não te teria tratado assim. Nada mais corriqueiro do que pessoas que aconselham, nada mais raro do que pessoas que socorrem. Vale bem a pena ter três amigos para deles nem receber uma gota de sopa quando se está doente! Suponho que, quando Deus te deu riquezas e saúde, estes eloquentes personagens não ousaram aparecer na tua frente: assim se transmutaram em provérbio aos amigos de Já. Deus ficou muito descontente com eles e disse-lhes claramente, no capítulo XLII, que são aborrecidos e imprudentes; e condena-os a uma multa de sete touros e sete carneiros por haverem dito tolices. Eu condenâ-los-ia por não haverem socorrido o amigo. Peço-te que me digas se é verdade que viveste mais cento e quarenta anos depois desta aventura. Gosto de ver que as pessoas de bem vivem longo tempo; mas os homens de hoje não podem deixar de ser uns grandes marotos, tanto a sua vida é curta! (Para um doente nas termas de Aix-la-Chapelle.) De resto, o livro de Jó é um dos mais preciosos de toda a Antiguidade. Tudo indica ser este livro de um árabe que viveu antes da época em que situamos Moisés. Diz-se que Elifaz, um dos interlocutores, é de Théman; trata-se de uma antiga cidade da Arábia. Baldad era de Suez, outra cidade da Arábia. Sofar era de Naamath, região da Arábia ainda mais oriental. Mas o mais notável, e o que demonstra que esta fábula não pode ser de um judeu, é a referência às três constelações que designamos por a Ursa, o Ôrion e as Híades. Os hebreus nunca tiveram o menor conhecimento de astronomia, não dispondo sequer de palavra que exprimisse esta ciência; tudo o que respeita às artes do espírito lhes era desconhecido, inclusive o termo geometria. Os árabes, pelo contrário, habitando em tendas, estando sempre em condições de observar os astros, foram talvez os primeiros que regularam os anos mediante a inspeção do céu. Observação mais importante: fala-se apenas de um Deus único neste livro. É um erro absurdo ter-se imaginado que os judeus foram os únicos a reconhecer um só Deus; tal era a doutrina de quase todo o Oriente e nisto os judeus não foram senão plagiários, como de resto o foram em tudo. No trigésimo oitavo capítulo, o próprio Deus fala a Jó envolto num turbilhão, o que seria imitado no Genesis. Convém repetir que os livros dos judeus são muito recentes. A ignorância e o fanatismo proclamam que o Pentateuco é o mais antigo livro do mundo. É evidente que os de Sanchoniathon, os de Thant, anteriores em oitocentos anos aos de Sanchoniathon, os do primeiro Zerdust, o Shasta, o Veidam dos indianos que ainda conservamos, os cinco Kings dos chineses, o livro de Jó enfim, são de uma antiguidade muito mais recuada que a de qualquer livro hebreu. Está demonstrado que este pequeno povo não pôde ter anais senão quando dispôs de um governo estável; que só sob os reis dispôs desse governo; e que o seu dialeto só com o tempo se formou, de uma mistura de fenício e de árabe. Há provas incontestáveis de que os fenícios cultivaram as terras muito antes dos judeus: As atividades destes consistiam no banditismo e na corretagem, sendo escritores apenas por acaso. Perderam-se os livros dos egípcios e dos fenícios; os chineses, os bramas, os guebros, os judeus conservaram os seus. Todos estes monumentos são curiosos; não passam, porém, de monumentos da imaginação humana, nos quais é impossível aprender uma única verdade, quer física, quer histórica. Não há hoje qualquer pequeno livro de física que não seja mais útil que todos os livros da Antiguidade. O bom Calmet ou dom Calmet (pois os beneditinos querem que se lhes dê dom), esse ingênuo compilador de tantas fantasias e imbecilidades, esse homem que a sua simplicidade tornou tão útil a quem quiser rir-se das tolices antigas, relata fielmente as opiniões daqueles que desejaram adivinhar a doença de que Jó foi atacado, como se em Jó houvéssemos um personagem real. Não hesita em afirmar que Jó tinha varíola, e acumula passagens sobre passagens, como é seu hábito, para provar o que não existe. Não lera a história da varíola por Astruc; pois, não sendo Astruc Padre da Igreja, nem doutor de Salamanca, mas médico muito sabedor, o bom Calmet ignorava mesmo a sua existência: são uns pobres-diabos, estes monges compiladores. Justo (Do) e do Injusto Quem nos concedeu o sentimento do justo e do injusto? Deus, que nos concedeu um cérebro e uma cabeça. Mas quando é que a vossa razão vos ensina que há vício e virtude? Quando nos ensina que dois mais dois são quatro. 80 Não há conhecimento inato pela mesma razão por que não há árvore que traga folhas e frutos ao sair da terra. Nada é o que se chama inato, quer dizer, nada se desenvolve; mas, convém repeti-lo, Deus faz-nos nascer com órgãos, os quais, à medida que crescem, nos fazem sentir tudo o que a nossa espécie deve sentir para a conservação dessa mesma espécie. Como se opera este contínuo mistério? Dizei-mo, habitantes amarelos das ilhas de Sonda, negros africanos, canadianos imberbes, e vós, Platão, Cícero, Epicteto. Sentis todos igualmente que dar o supérfluo do vosso pão, do vosso arroz ou da vossa mandioca ao pobre que humildemente o pede é melhor do que matá-lo ou furar-lhe os olhos. Para toda a terra é evidente que um benefício se revela mais honesto que um ultraje, que a doença é preferível à exaltação. Portanto, trata-se apenas de nos servirmos da nossa razão para discernir os cambiantes da honestidade e da desonestidade. O bem e o mal confinam muitas vezes; as nossas paixões confundem-nos: quem nos esclarecerá? Nós mesmos, quando estamos tranquilos. Quem quer que tenha escrito sobre os nossos deveres escreveu bem, seja em que país for, pois só com a sua razão o escreveu. Todos dizem o mesmo: Sócrates e Epicuro, Confúcio e Cícero, Marco Antonino e Amurath II têm a mesma moral. É preciso repetir todos os dias a todos os homens: "A moral é uma, vem de Deus; os dogmas são diversos, vêm de nós". Jesus não ensina qualquer dogma metafísico; não escreve cadernos teológicos; não diz: "Sou consubstancial; tenho duas vontades e duas naturezas numa só pessoa". Deixou aos franciscanos e aos dominicanos, que deviam chegar mil e duzentos anos depois dele, o cuidado de argumentarem para se saber se a sua mãe foi concebida sem pecado original; nunca disse que o casamento é o sinal visível de uma coisa invisível; nem uma palavra proferiu sobre a graça concomitante; não instituiu monges nem inquisidores, nada ordenou de tudo o que vemos hoje. Deus concedera o conhecimento do justo e do injusto em todos os tempos que precederam o cristianismo. Deus não mudou nem pode mudar: o fundo da nossa alma, os nossos princípios de razão e de moral serão eternamente os mesmos. De que servem à virtude as distinções teológicas, dogmas fundados nessas distinções, perseguições fundadas nesses dogmas? A natureza, aterrada e erguida com horror contra todas essas invenções bárbaras, grita a todos os homens: "Sede justos e não sofistas intolerantes". Podeis ler no Sadder, que é o compêndio das leis de Zoroastro, esta sábia máxima: "Quando é duvidoso que uma ação que te propõem seja justa ou injusta, abstém-te". Quem alguma vez proferiu regra mais admirável? Que legislador falou melhor? Não existe ali o sistema das opiniões prováveis, inventado por uma gente que se intitulava Sociedade de Jesus. L Lei Natural Diálogo B - Que é a lei natural? A - O instinto que nos faz sentir a justiça. B - Que chamais justo e injusto? A - O que aparece como tal ao universo inteiro. B - O universo é composto de muitas cabeças. Diz-se que na Lacedemônia aplaudiam-se os larápios que, em Atenas, eram condenados às minas. A - Abuso de palavras, logomaquia, equívoco. Não se podia cometer latrocínio em Esparta, pois tudo era comum. O que chamais roubo era a punição da avareza. B - Era proibido em Roma desposar sua irmã. Era permitido desposar a irmã de seu pai entre os egípcios, atenienses e mesmo entre os judeus. Cito a contragosto o infeliz povinho judeu, que seguramente não deve servir de regra para ninguém, e que (colocando de lado a religião) sempre foi um povo de salteadores ignorantes e fanáticos. Mas, enfim, segundo seus livros, a jovem Tamar, antes de ser violada por seu irmão Amon, lhe diz: "Meu irmão, não faças bobagem. Pede-me em casamento a meu pai. Não recusará". A - Tudo isso são leis convencionais, usos arbitrários, modas que passam; o essencial permanece sempre. Mostrai-me um país onde seja honesto arrebatar o fruto de seu trabalho, violar sua promessa, mentir para prejudicar, caluniar, assassinar, envenenar, ser ingrato para com seu benfeitor, espancar seu pai e sua mãe quando vos dão de comer. B - Esquecei-vos de que Jean-Jacques, um dos pais da Igreja moderna, disse que o primeiro que ousou fechar e cultivar um terreno foi o inimigo do gênero humano, que seria preciso exterminá-lo, e que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém? A - Qual é esse Jean-Jacques? Não é seguramente João (Jean) Evangelista, nem João (Jean) Batista, nem Tiago (Jacques) Maior, nem Tiago (Jacques) Menor. Quem escreveu essa abominável impertinência só pode ser um belo espírito (bel-esprit) ou algum bufo magro divertido e de mau gosto que quis zombar daquilo que o mundo inteiro leva tão a sério. Pois, em lugar de ir estragar o terreno de um vizinho sensato e industrioso, só teria que imitá-lo, e, cada pai de família tendo seguido esse exemplo, uma linda cidade logo se teria formado. O autor dessa passagem parece-me um animal bem insociável. B - Credes, portanto, que, ultrajando e roubando o coitado que cercou com uma cerca viva seu jardim e seu galinheiro, faltou aos deveres da lei natural? A - Sim, sim, repito. Há uma lei natural que consiste em não fazer o mal a outrem nem regozijar-se com isso. B - Concebo que o homem só ame e só faça o mal para tirar proveito. Porém, tantas pessoas são levadas a tentar tirar proveito da infelicidade do outro; a vingança é uma paixão tão violenta; há exemplos tão funestos; a ambição, ainda mais fatal, inundou a terra com tanto sangue, que, quando traço o horrível quadro, fico tentado a confessar que o homem é muito diabólico. De nada adianta que eu tenha em meu coração a noção do justo e do injusto. Átila é cortejado por São Leão; Focas, que São Gregório bajulou com a mais baixa covardia; Alexandre VI, manchado com tantos incestos, tantos homicídios, tantos envenenamentos, e com o qual Luís XII, chamado o Bom, faz a mais indigna e estreita aliança; Cromwell, de quem o Cardeal Mazarin procura proteção e por causa de quem expulsa da França os herdeiros de Carlos I, primos-irmãos de Luís XIV, e cem exemplos semelhantes atrapalham minhas ideias e deixam-me desnorteado. A - Bem! As tempestades impedem que gozemos hoje de um belo sol? O terremoto que destruiu metade da cidade de Lisboa impediu que viajásseis para Madrid muito comodamente? Se Átila foi um salteador e o Cardeal Mazarin um intrujão, em compensação não existirão príncipes e ministros honestos? Não se observou que na guerra de 1701 o conselho de Luís XIV era composto de homens muito virtuosos: o duque de Beauvilliers, o marquês de Torci, o marechal de Villars; enfim, Charnillort, que passou por incapaz, mas nunca por desonesto? A ideia da justiça não subsiste sempre? Sobre ela estão fundadas todas as leis, chamadas pelos gregos filhas do céu, quer dizer, filhas da natureza. Não tendes leis em vosso país? B - Sim, umas boas, outras más. A - De onde teríeis tirado a ideia de justiça senão da lei natural, presente em todo homem cujo espírito for bem constituído? É preciso tê-las tirado daí ou de lugar nenhum. B - Tendes razão. Há uma lei natural. Mas é mais natural ainda que as pessoas a esqueçam. A - É natural também ser limitado, corcunda, manco, disforme, doentio; porém preferimos as pessoas bem conformadas e sadias. B - Por que existem tantos espíritos limitados e disformes? A - Paz! Leis (Das) I No tempo de Vespasiano e de Tito, quando os romanos exventravam os judeus, um israelita muito rico, que não queria ser exventrado, escapuliu-se com todo o ouro que ganhara no seu mister de usurário e conduziu para Eziongaber toda a família, constituída pela velha esposa, um filho e uma filha. Trazia no séquito dois eunucos: um, cozinheiro, o outro, lavrador e vinhateiro. Um bom essênio, que sabia de cor o Pentateuco, servia-lhe de capelão. Tudo isto embarcou no porto de Eziongaber, atravessou o mar a que chamam Vermelho e que o não é, e entrou no golfo Pérsico, para ir em demanda da terra de Ofir, sem saber onde esta ficava. Como podeis supor, sobreveio uma tempestade horrível que atirou com a família hebraica para a costa das Índias; o barco naufragou numa das ilhas Maldivas, hoje chamada Pedrabranca e então deserta. O velho ricaço e a velha afogaram-se; o filho, a filha, os dois eunucos e o capelão salvaram-se; tiraram como puderam algumas provisões do barco, construíram pequenas cabanas na ilha e aí viveram assaz comodamente. Como sabeis, a ilha de Pedrabranca está a cinco graus do equador e encontram-se aí os maiores cocos e os melhores ananases do mundo; constituía um sítio agradável para se viver enquanto algures eram degolados os restos da nação eleita; contudo, o essênio chorava, considerando que além deles talvez não restassem mais judeus sobre a terra e que a semente de Abraão ia acabar. - "Se de vós depende ressuscitá-la", disse-lhe o jovem judeu, "desposai a minha irmã."- "Bem o desejaria", disse o capelão, "mas a lei proíbe-o. Sou essênio, fiz o voto de nunca me casar; a lei manda que se deve cumprir o voto. A raça judaica poderá extinguir-se, se quiser, mas decerto que não desposarei vossa irmã, embora ela seja bem bonita”. - "Os meus dois eunucos não podem fazer-lhe filhos", replicou o judeu. "Portanto, serei eu a fazer-lho se me dais licença, e peço-vos que abençoeis o casamento." - "Preferia cem vezes ser encontrado pelos soldados romanos do que servir para vos fazer cometer incesto", disse o capelão. "Se fosse uma irmã paterna, ainda passava, pois a lei permite; mas ela é vossa irmã materna e isso é abominável." - "Concebo muito bem", respondeu o rapaz, "que fosse crime em Jerusalém, onde encontraria outras moças. Mas na ilha de Pedrabranca, onde só vejo cocos, ananases e ostras, creio que a coisa é perfeitamente permitida”. Assim, o judeu casou-se com a irmã e teve uma filha, não obstante os protestos do essênio: foi este o único fruto do casamento que um considerava muito legítimo e outro abominável. Ao cabo de catorze anos, a mãe morreu, e o pai disse ao capelão: - "Haveis finalmente removido esses vossos velhos preconceitos? Quereis desposar a minha filha?" - "Deus me livre!", retorquiu o essênio. - "Ora bem! desposá-la-ei eu", disse o pai. "Acontecerá o que tiver de acontecer, mas não quero que a semente de Abraão fique reduzida a nada." O essênio, apavorado com este horrível propósito, não quis continuar com um homem que faltava à lei e fugiu. O recém-casado bem se podia esfalfar a gritar-lhe: "Ficai, amigo; eu observo a lei natural, sirvo a pátria, não abandoneis os vossos amigos": o outro deixava-o gritar, tendo sempre a lei na cabeça, e fugiu a nado para a ilha vizinha. Era a grande ilha de Attole, muito povoada e muito civilizada; mal ele abordou, fizeram-no escravo. Aprendeu a balbuciar a língua de Attole e lamentou-se amargamente da maneira pouco hospitaleira como o haviam recebido: disseram-lhe que era lei e que, desde que a ilha estivera prestes a ser surpreendida pelos habitantes da ilha de Ada, haviam sabiamente regulamentado que todos os estrangeiros que abordassem a ilha seriam reduzidos à servidão. "Isso não pode ser uma lei, visto não figurar no Pentateuco", observou o essênio. Retorquiram-lhe que figurava no digesto do país e ele permaneceu escravo: tinha felizmente um amo muito bondoso que o tratava bem e a quem se afeiçoou muito. Um dia, apareceram vários assassinos, decididos a matar o amo e a roubar-lhe os tesouros; perguntaram aos escravos se ele estava em casa e se havia muito dinheiro. "Juramos que não há dinheiro e que ele não está em casa", disseram os escravos. Todavia, o essênio disse: "A lei não permite a mentira; eu vos juro que ele está em casa e que há muito dinheiro". E assim foi o amo roubado e assassinado. Os escravos acusaram o essênio ante os juízes de haver traído o amo; o essênio disse que não queria mentir e por nada no mundo mentiria; e foi enforcado. Contaram-me esta história e muitas outras semelhantes no decurso da última viagem que fiz das Índias à França. Quando cheguei, dirigi-me a Versalhes para tratar de alguns negócios; vi passar uma bela mulher seguida de muitas belas mulheres. - "Quem é esta bela mulher?", perguntei ao meu advogado no Parlamento, que viera comigo; pois, tendo um processo no parlamento de Paris devido aos trajes que me fizeram nas Índias, desejava ter sempre o meu advogado ao pé de mim. - "A filha do rei", respondeu, "é encantadora e esmoler; pena que não possa, em caso algum, ser rainha da França". - "Como l", disse eu, "se houvesse a desgraça de se perderem todos os seus familiares e os príncipes de sangue (o que Deus não consinta!), ela não poderia herdar o reino do pai?" - "Não", disse o advogado, "a lei sálica opõe-se formalmente." - "E quem fez essa lei sálica?", perguntei ao advogado. "Não sei", disse ele, "mas pretendem que entre um antigo povo, os sálicos, que não sabia ler nem escrever, havia uma lei escrita que prescrevia que, em terra sálica, a filha não herdaria um chavo; e esta lei foi adotada em terra não sálica."- "Pois eu quero a lei", disse-lhe. "Haveis-me assegurado que esta princesa é encantadora e esmoler; portanto, teria incontestável direito à coroa se acontecesse que de sangue real só ela restasse: minha mãe herdou de seu pai e eu desejo que esta princesa herde do seu." No dia seguinte, o meu processo foi julgado numa câmara do Parlamento e perdi por unanimidade; asseverou-me o meu advogado que teria ganho por unanimidade numa outra câmara. "É muito cômico isso", disse-lhe, "portanto, cada câmara, cada lei." - "E verdade", respondeu-me. "Existem vinte e cinco comentários acerca do comum em Paris, o que equivale a dizer que se provou vinte e cinco vezes que o comum em Paris é equívoco; e se existissem vinte e cinco câmaras de juízes, existiriam vinte e cinco jurisprudências diferentes. Temos a quinze léguas de Paris uma província chamada Normandia", continuou ele, "em que seríeis julgado de maneira muito diferente da daqui." Isto deu-me vontade de conhecer a Normandia. Desloquei-me até lá com um dos meus irmãos. No primeiro albergue, encontramos um jovem que se desesperava; perguntei-lhe qual era a sua desgraça ao que ele respondeu que consistia em ter um irmão mais velho. - "Mas onde está a grande desgraça de se ter um irmão mais velho?", objetei-lhe; "o meu irmão é primogênito e vivemos muito bem juntos." - "Ai de mim, senhor", disse ele; "aqui, a lei dá tudo aos primogênitos e nada deixa aos cadetes." - "Tendes razão em estar zangado", respondi-lhe; "entre nós, partilha-se tudo em partes iguais e por vezes os irmãos não se dão melhor”. Estas pequenas aventuras levaram-me a fazer belas e profundas reflexões sobre leis e vi que se passa com elas o mesmo que com os trajes: foi-me necessário usar um "doliman" em Constantinopla e um fato justo ao corpo em Paris. Se todas as leis humanas são convenções, cogitei, não há senão que saber como fazer bem o negócio. Os burgueses de Delhi e de Agrab dizem que realizaram um negócio muito mau com Tamerlão; os burgueses de Londres gabam-se de haver feito muito negócio com o rei Guilherme de Orange. Afirmou-me, um dia, um cidadão de Londres: "A necessidade faz as leis e a força impõe a sua observância". Perguntei-lhe se algumas vezes a força não faria também leis e se Guilherme, o Bastardo e o Conquistador, não lhes havia dado ordens sem entabular negociações com eles. "Sim", disse-me, "não passávamos de bois, então, Guilherme pôs-nos o jugo e fez-nos andar a golpes de aguilhão; depois, transformamo-nos em homens mas ficaram-nos os cornos e agredimos quem quer que pretenda fazer-nos trabalhar para si e não para nós." Embebido em todas estas reflexões, encontrei-me a pensar com aprazimento que há uma lei natural independente das convenções humanas: o fruto do meu trabalho deve pertencer-me; devo honrar pai e mãe; não tenho direito algum sobre a vida do meu próximo e este nenhum direito tem sobre a minha, etc. Quando, porém, pensei que desde Chodorlahomor até Meutzel, coronel de hussardos, cada qual mata legalmente e pilha o seu próximo contanto que traga uma patente na algibeira, afligi-me muito. Disseram-me que entre os ladrões há leis e que as há também na guerra. Indaguei o que eram essas leis da guerra. Disseram-me que consistem em se enforcar o corajoso oficial que houver aguentado um posto desprovido de canhões perante um exército real; em se enforcar um prisioneiro, se um dos nossos for enforcado; em se pôr a fogo e sangue as aldeias que não trouxeram toda a sua subsistência no dia aprazado, segundo as ordens do gracioso soberano das vizinhanças. Bom, observei, eis o Espírito das Leis. Depois de me haver instruído bem, descobri que há umas sábias leis segundo as quais um pastor é condenado a nove anos de galés por ter dado um pouco de sal alheio aos seus carneiros. O meu vizinho foi arruinado por um processo devido a duas azinheiras que lhe pertenciam e fizera cortar num bosque seu, pois não pudera observar uma formalidade que lhe fora impossível conhecer; a sua mulher morreu na miséria e o filho arrasta uma vida mais infeliz ainda. Confesso que estas leis são justas embora a sua execução se mostre um pouco dura; mas reconheço de mau grado as leis que autorizam cem mil homens a irem degolar legalmente cem mil vizinhos. Afigurou-se-me que a maior parte dos homens recebe da natureza o bom senso suficiente para a feitura Juntai de um extremo da terra ao outro os simples e tranquilos agricultores: todos facilmente chegarão a acordo quanto a vender aos seus vizinhos os excedentes de trigo e que a lei contrária é inumana e absurda; que as moedas representativas dos produtos não devem sofrer mais alterações que os frutos da terra; que um pai de família deve ser o senhor em sua casa; que a religião deve agrupar os homens para uni-los e não para torná-los fanáticos e perseguidores; que aqueles que trabalham não se devem privar do fruto dos seus trabalhos para dotar a superstição e a ociosidade: numa hora farão trinta leis desta espécie, todas úteis ao gênero humano. Mas que Tamerlão chegue e subjugue a Índia e logo não vereis senão legislações arbitrárias. Uma arruinará uma província para enriquecer um publicano de Tamerlão; outra tornará crime de lesa-majestade o falar-se mal da amante do principal criado de quarto de um rajá; uma terceira arrebatará metade da colheita do agricultor e contestar-lhe-á o resto; haverá, enfim, leis que permitirão a um oficial de justiça tártaro vir capturar os nossos filhos no berço, transformar o mais robusto num soldado e o mais débil num eunuco e deixar o pai sem socorro e sem consolação. Ora, o que valerá mais: ser o cãozinho de Tamerlão ou seu súdito? É evidente que a condição de cão seu se revela muito superior. II Os carneiros vivem em sociedade com muita doçura; o seu caráter passa por extremamente afável e por isso não nos damos conta da prodigiosa quantidade de animais que devoram. É mesmo de supor que os comem inocentemente, sem saberem, tal como nós, quando comemos um queijo de Sassenage. A república dos carneiros é a imagem fiel da idade do ouro. Um galinheiro é visivelmente o mais perfeito dos Estados monárquicos. Não há rei que se compare a um galo. Este, se marcha altivamente no meio do seu povo, não é por vaidade que o faz. Se o inimigo se aproxima, não dá ordem aos seus súditos para irem fazer-se matar por ele, em virtude da sua infalível ciência e onipotência; vai ele próprio, agrupa as suas galinhas atrás de si e combate até à morte. Se sai vencedor, é ele que canta o Te Deum. Na vida civil, ninguém há tão galante, tão honesto, tão desinteressado! Possui todas as virtudes. Que tenha no bico um grão de trigo ou um verme e logo o dará à primeira das súditas que se apresente. Enfim, Salomão no seu serralho não se aproximava sequer de um galo de capoeira. Se for verdade que as abelhas são governadas por uma rainha com quem todos os súditos fazem amor, temos aqui um governo mais perfeito ainda. As formigas passam por constituir uma excelente democracia. Sobreleva-se aos demais Estados, porquanto toda a gente é aí igual e cada particular trabalha para o bem de todos. A república dos castores é superior ainda à das formigas, pelo menos se os julgarmos pelas suas obras de alvenaria. Os macacos assemelham-se mais a saltimbancos do que a um povo policiado; e não parecem reunidos sob leis fixas e fundamentais, como as espécies precedentes. Nós parecemo-nos mais com os macacos do que com qualquer outro animal, devido ao dom de imitação, à ligeireza das nossas ideias e à nossa inconstância que nunca nos permitiu ter leis uniformes e duráveis. Quando a natureza formou a nossa espécie e nos deu alguns instintos, o amor-próprio para nossa conservação, a afabilidade para conservação dos outros, o amor que é comum em todas as outras espécies e um dom inexplicável de combinarmos mais ideias que todos os animais juntos - depois de assim nos haver dado o nosso quinhão, disse-nos: "Fazei o que puderdes". Sempre que mudaram as necessidades, as leis que subsistiram tornaram-se ridículas. Assim, a lei que proíbe que se coma carne de porco e se beba vinho era muito razoável na Arábia, onde porco e vinho são perniciosos, mas absurda em Constantinopla. A lei que dá todos os bens ao primogênito era muito boa em tempos de anarquia e pilhagem. Então, o primogênito era o comandante do castelo que os bandoleiros assaltariam mais tarde ou mais cedo, os irmãos mais novos os seus oficiais e os lavradores os seus soldados. Só é de recear que o cadete venha a assassinar ou a envenenar o senhor sálico, seu primogênito, para se tornar, por seu turno, senhor da mansão, mas estes sucessos são raros, pois a natureza combinou de tal maneira os nossos instintos e paixões, que temos mais horror em assassinar um irmão primogênito do que desejos de ocupar o seu posto. Ora, esta lei, conveniente para possuidores de castelos no tempo de Chilperico, é detestável quando se trata de partilhar rendimentos numa cidade. Para vergonha dos homens, sabe-se que as leis do jogo serão as únicas que se mostram em toda a parte justas, claras, invioláveis e executadas. Por que razão o indiano que nos deu as regras do jogo de xadrez é obedecido de bom grado em toda a Terra, ao passo que as decretais dos papas, por exemplo, são hoje objeto de horror e desprezo? É que o inventor do xadrez combinou tudo com justeza para satisfação dos jogadores, enquanto os papas, nas suas decretais, só tiveram em vista as próprias vantagens. O indiano quis exercitar com igualdade o espírito dos homens e dar-lhes prazer; os papas quiseram embrutecer o espírito dos homens. Assim, a base do jogo de xadrez permanece idêntica desde há cinco mil anos e é comum a todos os habitantes da Terra; e as decretais só são reconhecidas em Spolette, Oriviete, Lorette, onde mesmo o jurisconsulto mais superficial as detesta e despreza em segredo. Leis Civis e Eclesiásticas Entre os papéis de um jurisconsulto foram encontradas notas que talvez mereçam um pouco de exame. Que nunca lei alguma eclesiástica vigore, salvo se receber sanção expressa do governo. Foi por este meio que Atenas e Roma nunca tiveram querelas religiosas. Estas querelas constituem a divisão das nações bárbaras ou tornadas bárbaras. Que só o magistrado tenha poderes para permitir ou proibir o trabalho em dias festivos, pois aos padres não incumbe impedirem homens de cultivar os campos que lhes pertencem. Que tudo o que diga respeito ao casamento dependa unicamente do magistrado, e que os padres se limitem à augusta função de abençoá-los. Que o mútuo com juros seja exclusivamente objeto da lei civil, pois que só esta preside ao comércio. Que todos os eclesiásticos sejam submetidos, em todas as circunstâncias, ao governo, pois são súditos do Estado. Que nunca se verifique o ridículo vergonhoso que é pagar-se a um padre estrangeiro o primeiro ano do rendimento de uma terra doada por cidadãos a um padre concidadão. Que nenhum padre possa, em caso algum, privar qualquer cidadão da menor prerrogativa, a pretexto de que esse cidadão é pecador, pois o padre pecador deve rezar pelos pecadores e não julgá-los. Que os magistrados, os trabalhadores e os padres paguem igualmente os encargos do Estado, pois todos pertencem igualmente ao Estado. Que não haja senão um peso, uma medida, um costume. Que os suplícios dos criminosos sejam úteis. Se um homem enforcado não serve para nada, um homem condenado a trabalhos públicos serve ainda à pátria e constitui uma lição viva. Que a lei seja clara, uniforme e precisa: interpretá-la quase sempre é corrompê-la. Que só o vício seja infamante. Que todos os impostos sejam proporcionais. Que nunca a lei esteja em contradição com o costume; pois, se o costume é bom, a lei nada vale. Letras, Gente de Letras ou Letrados. Nos nossos tempos bárbaros, quando os francos, os germanos, os lombardos, os moçárabes espanhóis não sabiam ler nem escrever, foram instituídas escolas, universidades, quase todas compostas por eclesiásticos, que, sabendo apenas o seu jargão, o ensinaram a quem o quis aprender; as academias que só apareceram muito tempo depois, embora desprezassem as tolices das escolas, mas nem sempre ousaram elevar-se contra elas, porquanto há tolices que são respeitadas, atendendo a que se reportam a coisas respeitáveis. As pessoas de letras que mais serviços prestaram ao reduzido número de entes pensantes espalhados pelo mundo são os letrados isolados, os verdadeiros sábios encerrados nos seus gabinetes que não argumentaram nos bancos das universidades nem disseram as coisas pela metade nas academias; e esses têm sido quase todos perseguidos. A nossa miserável espécie é feita de tal maneira, que aqueles que marcham em caminhos já batidos atiram sempre pedras aos que ensinam um caminho novo. Montesquieu conta que os citas cegavam os seus escravos para que estes não se distraíssem ao baterem a manteiga; assim procede a inquisição e quase todo o mundo é cego nos países em que este monstro reina. Há mais de cem anos que se usa um par de olhos na Inglaterra; os franceses começam a abrir um olho; mas por vezes encontram-se homens bem colocados que não querem mesmo permitir que se seja zarolho. Estes pobres-diabos bem colocados são como o doutor Patarata da comédia italiana que si, quer ser servido pelo ignorantão Arlequino e receia ter um criado demasiado penetrante. Fazei odes em louvor de monsenhor Superbus Fadus, madrigais à amante, dedicai ao seu porteiro um livro de geografia e sereis bem recebido; iluminai os homens e sereis esmagado. Descartes é obrigado a abandonar a pátria, Gassendi é caluniado, Arnaud arrasta os seus dias no exílio; todos os filósofos são tratados como os profetas entre os judeus. Quem acreditaria que no século XVIII um filósofo fosse trazido perante os tribunais seculares, e tratado de ímpio pelos tribunais de instrução, por haver afirmado que os homens não poderiam exercer as artes se não tivessem mãos? Não desespero que em breve seja condenado às galés o primeiro que tiver a insolência de sustentar que o homem não pensaria se não tivesse cabeça. "Porquanto", dir-lhe-á um bacharel, "a alma é um espírito puro, a cabeça é apenas matéria; Deus pode colocar a alma no calcanhar, tal como no cérebro; logo, denuncio-vos como ímpio”. A maior desgraça de um homem de letras não será talvez tornar-se o objeto do ciúme dos confrades, a vítima da cabala, do desprezo dos grandes do mundo; a sua maior desgraça é ser julgado por parvos. Os parvos vão longe por vezes, sobretudo quando o fanatismo se junta à inépcia e à inépcia o espírito de vingança. A grande desgraça vem, ainda, de que ordinariamente o homem de letras não se atém a nada. Um burguês adquire um pequeno negócio e ei-lo secundado pelos seus confrades. Se lhe fazem uma injustiça, encontra imediatamente defensores. O homem de letras está sem socorro; assemelha-se aos peixes voadores: se se eleva um pouco, devoram-no os pássaros; se mergulha, comem-no os peixes. Todos os homens públicos pagam tributo à malignidade; mas são pagos em dinheiro e em honras. O homem de letras paga igual tributo sem nada receber; desceu à arena por prazer, a si mesmo se condenou às feras. Liberdade (Da) A - Uma bateria de canhões atira junto às nossas orelhas; sois livre de ouvi-la ou não ouvir? B - Sem dúvida que não posso deixar de ouvi-la. A - Desejais que esse canhão arranque a vossa cabeça e a da vossa mulher e do vosso filho, que passeiam convosco? B - Que proposta me fazeis? Não posso, enquanto estiver em perfeito juízo, desejar tal coisa; eis o que me é impossível. A - Bom; vós ouvis necessariamente este canhão e necessariamente desejais não morrer, vós e a vossa família, de um tiro de canhão durante o passeio; não tendes o poder de não ouvir nem o poder de querer permanecer aqui. B - É evidente. (Um pobre de espírito, num escritozinho honesto, polido e, sobretudo, bem pensado, objeta que, se o príncipe ordenar a B que fique exposto ao canhão, ele fica. Sim, sem dúvida, se tiver mais coragem ou, antes, se tiver mais receio da vergonha que amor à vida, como tantas vezes sucede, quando o instinto de medo à vergonha supera o instinto de conservação, o homem é tão forçado a continuar exposto ao canhão como é forçado a fugir quando não tem vergonha de fugir. O pobre de espírito é forçado a formular objeções ridículas e a proferir injúrias e os filósofos sentem-se forçados a zombar um pouco dele e a perdoar-lhe. Nota do Autor). A - Faríeis, por conseguinte, uma trintena de passos para vos colocardes ao abrigo do canhão e tendes o poder de caminhar comigo esses tantos passos? B - Eis o que é ainda mais evidente. A - E, se fósseis paralítico, não teríeis podido evitar o continuar exposto a esta bateria; não teríeis o poder de estar onde estais: teríeis necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhão e estaríeis necessariamente morto? B - Nada mais verdadeiro. A - Em que consiste pois a vossa liberdade senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia com absoluta necessidade? B - Estais a embaraçar-me; a liberdade não é, pois, senão o poder de fazer o que quero? A - Refleti e vede se a liberdade pode ser entendida de outra maneira. B - Nesse caso, o meu cão de caça é tão livre como eu; tem necessariamente de correr quando avista uma lebre e o poder de correr se não estiver mal das pernas. Portanto, nada tenho de superior ao meu cão e vós reduzis-me à condição dos animais. A - Eis os pobres sofismas dos pobres sofistas que vos instruíram. Eis que ficais doente só com o serdes livre como o vosso cão. E então? Não vos assemelhais ao vosso cão em tantas coisas? A fome, a sede, o despertar, o dormir, os cinco sentidos não são comuns em vós e no vosso cão? Desejaríeis ter olfato sem ser pelo nariz? Por que desejais ter liberdade de maneira diferente da dele? B - Mas eu tenho uma alma que raciocina muito e o meu cão não raciocina nada. Ele quase não tem senão ideias simples e eu tenho mil ideias metafísicas. A - Pois bem, sois mil vezes mais livre que ele: quer dizer, tendes mil vezes mais de pensar que ele; mas não sois livre de maneira diferente da dele. B - Como! Não sou livre de querer o que quero? A - Que entendeis por isso? B - O que toda a gente entende. Pois não se diz todos os dias: "As vontades são livres"? A - Um provérbio não é uma razão; explicai-vos melhor. B - Entendo que sou livre de querer como muito bem me agradar. A - Com vossa licença, isso não tem sentido; não vedes que é ridículo dizer-se: "Eu quero querer"? Vós quereis necessariamente em virtude das ideias que se vos apresentam. Quereis casar-vos, sim ou não? B - E se eu vos dissesse que não quero uma coisa nem outra? A - Responderíeis como aquele que dizia: "Uns julgam que o Cardeal Mazarin está vivo, outros julgam-no morto e eu não julgo uma coisa nem outra". B - Pois bem! Quero casar-me. A - Isso sim é responder. E por que quereis casar-vos? B - Porque me enamorei de uma jovem, bela, terna, bem-educada, assaz rica, que canta muito bem, cujos pais são gente séria, e porque me gabo de ser amado por ela e muito bem acolhido pela família. A - Eis uma razão. Vedes que não podeis querer sem razão. Declaro que sois livre de vos casar; quer dizer, que tendes o poder de assinar o contrato. B - Como! Não passo querer sem razão? E em que se tornará estoutro provérbio: Si! Pro ratione voluntas: a minha vontade é a minha razão, eu quero porque quero? A - Tudo isso é absurdo, meu caro amigo: haveria em vós um efeito sem causa. B - O quê! Quando jogo ao par ou ímpar, tenho uma razão para escolher par em vez de ímpar? A - Sem dúvida que sim. B - E qual é a razão, se fazeis favor? A - É que a ideia de par se apresentou ao vosso espírito primeiro que a ideia oposta. Seria divertido que houvesse casos em que quisésseis porque existe uma causa de querer e outros em que quisésseis sem causa. Quando quereis casar-vos, sentis a razão dominante, evidentemente; não a sentis quando jogais ao par ou ímpar e, no entanto, impõe-se que haja uma razão. B - Porém, mais uma vez: não sou portanto livre? A - A vossa vontade não é livre, são-no as vossas ações. Sois livre de fazer quando tiverdes o poder de fazer. B - Mas todos os livros que li sobre a liberdade de indiferença... A - Tolices. Não há nenhuma liberdade de indiferença. É uma expressão tão destituída de sentido como as pessoas que a inventaram. Liberdade de Pensamento Pelo ano de 1707, época em que os ingleses ganharam a batalha de Saragoça, protegeram Portugal e deram durante algum tempo um rei à Espanha, milorde Boldmind, oficial general, que fora ferido, estava perto das águas de Barêges, Encontrou aí o conde Medroso, que caíra do cavalo, atrás das bagagens, a légua e meia do campo de batalha, e viera também fazer uma cura de águas. O conde Medroso era familiar da Inquisição milorde Boldmind era familiar apenas na conversação. Um dia, depois de beber, teve com Medroso a seguinte conversa: BOLDMIND Sois, portanto, sargento dos dominicanos? Exerceis um bem vil oficio. MEDROSO É verdade; mas gostei mais de ser criado deles do que ser vítima e preferi a desgraça de queimar o meu próximo à de ser eu próprio cozido. BOLDMIND Que horrível alternativa! Éreis cem vezes mais felizes sob o jugo dos mouros que vos deixavam estagnar livremente no meio das vossas superstições e que, embora vencedores, não se arrogavam o direito inaudito de pôr as almas a ferros. MEDROSO Que quereis? Não nos é permitido escrever, nem falar, nem mesmo pensar. Se falamos, torna-se fácil interpretar as nossas palavras e mais ainda os nossos escritos. Enfim, como não podem condenar-nos a um auto-de-fé pelos nossos pensamentos secretos, ameaçam-nos de sermos eternamente queimados por ordem do próprio Deus se não pensarmos como os dominicanos. Persuadiram o governo que se possuíssemos o senso comum todo o Estado ficaria em combustão e a nação tornar-se-ia a mais desgraçada da Terra. BOLDMIND Achais que somos assim desgraçados, nós, ingleses, que cobrimos os mares com os nossos barcos e viemos ganhar para vós batalhas nos confins da Europa? Vede os holandeses que vos desapossaram de quase todas as vossas descobertas na Índia e hoje se enfileiram entre os vossos protetores: pensais que sejam malditos de Deus por haverem concedido inteira liberdade à imprensa e por fazerem o comércio dos pensamentos humanos? Foi menos poderoso o império romano por Cícero haver escrito com liberdade? MEDROSO Quem é Cícero? Nunca ouvi falar desse homem; não se trata aqui de Cícero, trata-se de nosso santo pai, o papa, e de Santo Antônio de Pádua, e sempre ouvi dizer que a religião romana está perdida se os homens começam a pensar. BOLDMIND Não cabe a vós acredita-lo, pois estais seguro que a vossa religião é divina e que as portas do inferno não podem prevalecer contra ela. Se assim é, nada poderá destruí-la. MEDROSO Não, mas pode ser reduzida a pouca coisa. E foi por terem pensado que a Suécia, a Dinamarca, toda a vossa ilha e metade da Alemanha gemem na pavorosa desgraça de não mais serem súditos do papa. Diz-se mesmo que se os homens continuam a guiar-se pelas suas falsas luzes acabarão em breve por se ater à simples adoração de Deus e à virtude. Se alguma vez as portas do inferno prevalecerem até esse ponto, em que se tornará o Santo Oficio? BOLDMIND Se os primeiros cristãos não tivessem a liberdade de pensar não é verdade que não existiria cristianismo? MEDROSO Que quereis dizer? Não vos entendo. BOLDMIND Acredito. Quero dizer que se Tibério e os primeiros imperadores dispusessem de dominicanos que houvessem impedido os primeiros cristãos de usar penas e tinta; se durante tanto tempo não tivesse sido permitido pensar livremente no império romano, tornar-se-ia impossível aos cristãos estabelecer os seus dogmas. Portanto, se o cristianismo só se formou pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que injustiça desejaria aniquilar hoje essa liberdade sobre a qual está fundado? Quando vos propõem algum negócio interessante, não o examinais demorada mente, antes de o concluirdes? Haverá no mundo maior interesse que o da nossa felicidade ou eterna desgraça? Existem sobre a Terra cem religiões e todas vos condenam à danação por acreditardes nos vossos dogmas, que essas religiões consideram absurdos e ímpios; examinai, portanto, esses dogmas. MEDROSO Como posso examiná-los? Não sou dominicano. BOLDMIND Sois homem e isso basta. MEDROSO Ai de mim! Sois bem mais homem que eu. BOLDMIND A vós apenas cabe aprender a pensar; haveis nascido com espírito; sois uma ave na gaiola da Inquisição; o Santo Ofício aparou-vos as asas mas elas podem voltar a crescer. Quem não sabe geometria, pode aprendê-la; qualquer homem pode instruir-se: é vergonhoso que se deposite a alma nas mãos daqueles aos quais não se confiaria o dinheiro. Ousai pensar por vós mesmo. MEDROSO Há quem diga que se toda a gente pensasse por si a confusão seria prodigiosa. BOLDMIND Pelo contrário. Quando assistimos a um espetáculo, cada qual dá livremente a sua opinião e a paz não é perturbada; se, porém, algum insolente, protetor de algum mau poeta, quiser forçar todas as pessoas de gosto a considerarem bom o que lhes parece mau, os dois partidos podem acabar alvejando-se com maçãs, como já aconteceu uma vez em Londres. São estes tiranos dos espíritos que causaram parte das desgraças do mundo. Na Inglaterra, só somos felizes desde que cada qual goze livremente do direito de exprimir a sua opinião. MEDROSO Também nós estamos sossegados em Lisboa, onde ninguém pode exprimir a sua. BOLDMIND Estais sossegados mas não sois felizes; tal é o sossego dos forçados das galés que remam em cadência e em silêncio. MEDROSO Julgais, portanto, que a minha alma está nas galés? BOLDMIND Sim. E gostaria de libertá-la. MEDROSO Mas se acontecer que eu me sinta bem nas galés? BOLDMIND Nesse caso, é porque mereceis as galés. Limites do Espírito Humano Surgem de todos os lados, pobre doutor. Queres saber por que o teu braço e o pé obedecem à tua vontade e por que o fígado não te obedece? Indagas como o pensamento se forma no teu tímido entendimento e como se gera aquela criança no útero da mãe? Dou-te o tempo que queiras, para me responderes. O que é a matéria? Os teus colegas doutores encheram dez mil volumes sobre o assunto; descobriram nela algumas qualidades essenciais: as crianças conhecem-nas tanto como tu. Mas essa substância no fundo o que é? E a que é que chamaste espírito (termo cuja origem é a palavra latina que significa sopro, não podendo achar melhor porque não fazes a menor ideia do que isso seja)? Repara no grão de trigo que se lança à terra e dize-me por que brota depois do solo para produzir um canudo carregado com uma espiga. Ensina-me a razão por que a mesma terra produz uma maçã no alto desta árvore e uma castanha na árvore vizinha. Podia arranjar-se um calhamaço recheado de perguntas, às quais não deverias honestamente responder senão por quatro palavrinhas: Não sei nada disso. E todavia és bacharel, és doutorado, possuis vários diplomas, e és togado. Chamam-te mestre. E esse orgulhoso pateta, nomeado para um modesto emprego numa cidadezinha, supõe ter comprado o direito de julgar e condenar aquilo de que nada percebe. A divisa de Montaigne era: Que sei eu? E a tua há de ser: Que não sei eu? Literatura Literatura: esta palavra é um desses termos vagos tão frequentes em todas as línguas, tal como filosofia, pelo qual designam-se tanto as pesquisas de um metafísico quanto as demonstrações de um geômetra ou a sabedoria de um homem desenganado do mundo, etc. Acontece o mesmo também com a palavra espírito, prodigalizada indiferentemente e que tem sempre necessidade de uma explicação que limite seu sentido. O mesmo acontece ainda com todos os termos gerais cuja acepção precisa não é determinada em nenhuma língua a não ser pelos objetos a que são aplicados. A literatura é precisamente o que era a gramática entre os gregos e entre os romanos. A palavra letra só significava inicialmente gramma. Mas, como as letras do alfabeto são o fundamento de todos os conhecimentos, com o tempo chamavam-se gramáticos não somente os que ensinavam a língua mas também aqueles que se aplicavam à filosofia, ao estudo dos poetas e dos oradores, aos escólios, às discussões dos fatos históricos. Dá-se, por exemplo, o nome de gramático a Ateneu, que viveu no tempo de Marco Aurélio e foi autor do Banquete dos Filósofos, amontoado agradável de citações e de fatos, verdadeiros ou falsos. Aulus Gelius, que chamamos comumente Aulo Gélio e que viveu no tempo de Adriano, é considerado um gramático por causa das suas Noites Áticas, onde encontramos uma grande variedade de críticas e de pesquisas. As Saturnais de Macróbio, no século IV, obra de erudição instrutiva e agradável, foram também chamadas obras de um bom gramático. A literatura constituída pela gramática de Aulo Gêlio, de Ateneu, de Macróbio designa em toda a Europa um conhecimento de obras agradáveis, uma tintura de história, poesia, eloquência e crítica. Um homem que leu os autores antigos, que comparou suas traduções e seus comentários, tem uma literatura maior do que aquele que com mais gosto se limitou aos bons autores de seu país e que tem unicamente como preceptor um prazer fácil. A literatura não é uma arte particular, é uma luz adquirida sobre as belas-artes, frequentemente luz enganadora. Homero foi um gênio, Zoile um literateiro. Corneille foi um gênio e um jornalista que fala sobre suas obras-primas é um homem de literatura. Não se distinguem as obras de um poeta, de um orador, de um historiador pelo vago termo literatura, embora seus autores possam demonstrar um conhecimento muito variado e possuir tudo o que entendemos pelo termo letras. Racine, Boileau, Bossuet, Fénelon, que tinham muito mais literatura do que seus críticos, seriam mal definidos se fossem expressamente chamados gente de letras, literateiros. Assim como não nos limitaríamos a dizer que Newton e Locke são pessoas de espírito. Pode-se ter literatura sem se ser o que chamamos um sábio. Todo aquele que tiver lido com proveito os principais autores latinos na sua língua materna possui literatura, mas o saber pede estudos mais vastos e mais aprofundados. Não seria bastante dizer que o Dicionário de Bayle é uma coleção de literatura. Não seria bastante dizer que é uma obra muito sábia porque o caráter distintivo e superior deste livro é uma dialética profunda, e, se não fosse um dicionário de raciocínio mais do que de fatos e de observações, na maior parte inúteis, não teria a reputação tão justamente adquirida e que conservará para sempre. Forma literateiros mas está acima deles. Chamamos de bela literatura aquela que se atém aos objetos possuidores de beleza: a poesia, a eloquência, a história bem escrita. A simples crítica, a polimatia, as diversas interpretações dos autores, os sentimentos dos antigos filósofos, a cronologia não são belas literaturas, são sem beleza. Os homens convieram chamar belo todo objeto que inspira sem esforços sentimentos agradáveis. Aquilo que é somente exato, difícil e útil não pode pretender ser belo. Assim, não se diz: um belo escólio, uma bela crítica, uma bela discussão, como se diz um belo trecho de Virgílio, Horácio, Cícero, Bossuet, Racine, Pascal. Uma dissertação bem feita, tão elegante quanto exata e que espalha flores sobre um objeto espinhoso também pode ser chamada um belo trecho de literatura, embora numa categoria muito subordinada às obras de gênio. Entre as artes liberais, que chamamos belas-artes, justamente porque deixam de ser arte quando não possuem beleza ou não atendem à grande finalidade de agradar, há muitas que não são o objeto da literatura, tais como a pintura, a arquitetura, a música, etc. Estas artes por si próprias não têm relação com as letras, com a arte de exprimir pensamentos. Assim a expressão obra literária não convém a um livro que ensina arquitetura ou música, fortificações, castrametação, etc., porque são obras técnicas. Porém, quando se escreve a história destas artes... Loucura O que é a loucura? É possuir pensamentos incoerentes e conduzir-se da mesma forma. Se o mais sábio dos homens quiser conhecer a loucura, que reflita sobre o curso de suas ideias durante seus sonhos. Se durante a noite sua digestão é difícil, mil ideias incoerentes o agitam. Se comermos muito ou se fizermos má escolha de alimentos, a natureza parece punir-nos dando-nos pensamentos durante o sono, pois só pensamos dormindo se estivermos com má digestão. Os sonhos inquietos são realmente uma loucura passageira. A loucura na vigília é uma doença que impede necessariamente um homem de pensar e de agir como os outros. Se não puder gerir seus bens, a gerência lhe será proibida. Se não puder ter ideias convenientes à sociedade, será excluído do convívio. Se for perigoso, será encarcerado; se furioso, amarrado. Algumas vezes será curado com banhos, sangria e regime. Tal homem não está privado de ideias: está de posse delas como todos os outros na vigília e frequentemente no sono. Pode-se perguntar como sua alma espiritual, imortal, alojada no seu cérebro, recebendo pelos sentidos ideias muito claras e distintas, entretanto nunca julga corretamente. Vê os objetos como eram vistos pela alma de Aristóteles e de Platão, de Locke e de Newton. Escuta os mesmos sons, tem o mesmo sentido do tato. Como, então, recebendo as mesmas percepções que os mais sábios experimentam, não pode deixar de reuni-las de modo extravagante? Se essa substância simples e eterna conta para suas ações com os mesmos instrumentos que as almas dos cérebros mais sábios, deve raciocinar como eles. Quem pode impedi-la? Concebo, reunindo todas as minhas forças, que, se um louco vê vermelho e os sábios azul, se quando os sábios escutam música o louco escuta o relinchar de um asno, se quando estão no sermão o louco acredita estar na comédia, se quando escutam sim ele escuta não, então sua alma deve pensar às avessas com relação às outras. Porém, o louco tem as mesmas percepções que eles. Não há nenhuma razão aparente que explique por que sua alma, tendo recebido pelos sentidos todos os instrumentos, não possa usá-los. É pura, diz-se, não está sujeita por si mesma a nenhuma enfermidade. Está provida de todos os recursos necessários e, não importa o que se passe em seu corpo, nada pode mudar sua essência. Entretanto, levamo-la no seu estojo para o hospício. Essa reflexão pode fazer-nos suspeitar de que a faculdade de pensar, dada por Deus ao homem, está sujeita ao desarranjo como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro padece, como o gotoso é aquele que sofre dos pés e das mãos. Pensa com o cérebro como caminha com os pés, sem, contudo, conhecer seu poder incompreensível de andar e seu poder, não menos incompreensível, de pensar. Tem-se gota no cérebro como nos pés. Enfim, após mil raciocínios, talvez somente a fé possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial possa ficar doente. Os doutos ou os doutores dirão ao louco: "Meu amigo, embora tenhas perdido o senso comum, tua alma é tão espiritual, tão pura, tão imortal quanto a nossa. Porém, nossa alma está bem alojada e a tua mal. As janelas da casa estão fechadas para ela, falta-lhe ar, sufoca". O louco, nos seus bons momentos, responder-lhes-ia: "Meus amigos, como de hábito, estais supondo justamente o que está em questão. Minhas janelas estão bem abertas como as vossas, já que vejo os mesmos objetos e que escuto as mesmas palavras. Portanto, é preciso necessariamente que minha alma faça um mau uso dos seus sentidos ou que ela mesma seja um sentido vicioso, uma qualidade depravada. Em uma palavra: ou minha alma é louca por si própria. ou não a tenho". Um dos doutores poderá responder: "Meu confrade, Deus talvez tenha criado almas loucas como criou almas sábias". O louco responderá: "Se acreditasse no que me dizeis, seria ainda mais louco do que sou. Vós, que tanto sabeis, por favor dizei-me por que sou louco". Se os doutores tiverem ainda um pouco de senso, responder-lhe-ão: "Não sabemos". Não compreenderão por que um cérebro tem ideias incoerentes, não compreenderão também por que outro tem ideias regulares e consequentes. Acreditar-se-ão sábios, serão tão loucos quanto o louco. Se um louco tiver um momento lúcido, dir-lhes-á: "Pobres mortais, que não podeis conhecer a causa de meu mal, nem curá-lo, tremeis pensando tornar-vos inteiramente semelhantes a mim e até ultrapassar-me. Não pertenceis a melhores casas do que o rei da França, Carlos VI, o rei da Inglaterra, Henrique VI, e o imperador Wenceslau, que perderam a faculdade do raciocínio no mesmo século. Não tendes mais espírito que Blaise Pascal, Jacques Abbadie e Jonathan Swift, que morreram loucos. O último, pelo menos, fundou para nós um hospital. Quereis que eu vos reserve um lugar?" N.B. - Estou zangado porque Hipócrates prescreveu o sangue de burrico para a loucura, e ainda mais zangado porque o Manual das Senhoras diz que se cura a loucura tomando-se excrescências. Eis aí receitas divertidas. Até parecem inventadas pelos doentes. M Maldoso Gritam-nos que a natureza humana é essencialmente perversa, que o homem nasceu filho do diabo e maldoso. Nada menos razoável; porque, meu amigo, quando me pregas que toda a gente nasceu perversa, adverte-me que também nasceste e que devo desconfiar de ti como de uma raposa ou de um crocodilo. "Oh!, de modo algum!", dizes-me, "eu regenerei-me, não sou herético nem infiel, pode-se confiar em mim." Mas o resto do gênero humano, que é herético ou o que tu chamas infiel, não passa, portanto, de uma reunião de monstros; e todas as vezes que falares a um luterano ou a um turco tens de estar seguro de que te roubarão e assassinarão, pois são filhos do diabo: nasceram maldosos; um não se regenerou e o outro degenerou. Seria muito mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens: Todos vós nascestes bons; vede como seria atroz corrompesse a pureza do vosso ser. Teria sido preciso proceder com o gênero humano como se procede com todos os homens em particular. Se um cônego leva uma vida escandalosa, dizem-lhe: "Será possível que assim desonreis a dignidade de cônego?" A um homem de toga faz-se lembrar que tem a honra de ser conselheiro do rei e que deve dar o exemplo. Dizemos a um soldado para o encorajarmos: "Lembra-te que pertences ao regimento de Champanhe". Deveríamos dizer a cada indivíduo: "Lembra-te da tua dignidade de homem". E, com efeito, tenha-se ou não essa dignidade, é sempre aí que se volta; pois, que quer dizer essa expressão tão frequentemente usada por todos os povos, volta a ti? Se fosses filho do diabo, se a tua origem fosse criminosa, se o teu sangue fosse constituído por um licor infernal, a expressão volta a ti significaria: consulta, segue a tua natureza diabólica, sê impostor, ladrão, assassino, tal é a lei de teu pai. O homem não é maldoso; torna-se mau, tal como se torna doente. Comparecem os médicos e dizem-lhe: "Haveis nascido doente". Por certo que estes médicos, digam o que disserem e façam o que fizerem, não o conseguirão curar se a doença é inerente à sua natureza: e tais raciocinadores são, eles próprios, doentes. Reuni todas as crianças do universo. Vereis nelas tão só inocência, doçura e temor; se houvessem nascido más, malfeitoras, cruéis, revelá-lo-iam por algum sinal, como as pequenas serpentes que procuram morder e os pequenos tigres que procuram despedaçar. Porém, a natureza, que não deu ao homem mais armas ofensivas do que aos pombos e aos coelhos, não poderia dar-lhe o instinto da destruição. Portanto, o homem não nasceu mau. Mas por que razão tantos homens são infetados pela peste da maldade? É porque aqueles que os comandam, havendo apanhado a doença, transmitem-na ao resto dos homens, como uma mulher atacada pelo mal que Cristóvão Colombo trouxe da América espalha esse veneno dum extremo a outro da Europa. O primeiro dos ambiciosos corrompeu toda a terra. Dir-me-eis que esse primeiro monstro desenvolveu o germe de orgulho, de rapina, de fraudes, de crueldade, que existe em todos os homens. Confesso que, em geral, a maior parte dos nossos irmãos pode adquirir estas qualidades; mas pode dizer-se que toda a gente contém a febre pútrida, a pedra e cálculo, só porque toda a gente está exposta a contraí-las? Há povos inteiros que não são maldosos; os filadelfianos, os banianos nunca mataram ninguém; os chineses, os povos da Turquia, do Laos, do Sião, do próprio Japão, não conhecem guerras desde há mais de cem anos. Dificilmente se assiste, em cada dez anos, a um desses grandes crimes que espantam a natureza humana, mesmo em cidades como Roma, Veneza, Paris, Londres, Amsterdam, onde, no entanto, a cupidez, mãe de todos os crimes, é extrema. Se os homens fossem naturalmente maldosos, se todos nascessem submetidos a um ser tão maligno como infeliz que para se vingar do seu suplício lhes inspirasse os seus furores, veríamos todas as manhãs os maridos assassinados pelas mulheres e os pais pelos filhos, como, de madrugada, as galinhas estranguladas por uma fuinha que veio sugar-lhes o sangue. Admitindo que existe um bilhão de homens sobre a terra, o que é muito, isso dá cerca de quinhentos milhões de mulheres que cozem, fiam, alimentam os filhos, mantêm limpa a casa ou a cabana e dizem um pouco de mal das vizinhas. Não vejo que grandes males estas pobres inocentes cometem sobre a terra. Nesse número de habitantes do globo, há, pelo menos, duzentos milhões de crianças que decerto não matam nem pilham, aproximadamente outros tantos velhos e doentes que não têm forças para isso. Restam-nos, no máximo, cem milhões de jovens robustos e capazes do crime. Entre esses cem milhões há noventa continuamente ocupados em forçar a terra, mercê de um trabalho prodigioso, a fornecer-lhes a alimentação e o vestuário; estes, nenhum tempo têm para fazer mal. Nos restantes dez milhões estarão compreendidas as pessoas ociosas e de trato amável, que só desejam gozar a vida, docemente; os homens de talento, ocupados nas suas profissões; os magistrados, os padres, visivelmente interessados em levar uma vida pura, pelo menos na aparência. Como verdadeiros malvados, ficam-nos apenas alguns políticos, quer seculares, quer regulares, que aspiram sempre a perturbar o mundo, e alguns milhares de vagabundos que alugam os seus serviços a esses políticos. Ora, nunca chega a haver, ao mesmo tempo, um milhão de tais bestas ferozes empregadas; e nesse número conto os ladrões de estrada. Tendes, pois, no máximo, sobre a terra, e nas épocas mais tempestuosas, um homem sobre mil a que podemos chamar mau, e que nem sempre o é. Assim, existe infinitamente menos maldade sobre a terra do que se diz e se supõe. Existe ainda demais, sem dúvida: assistimos a desgraças e a crimes horríveis; mas o prazer de nos lamentarmos e de exagerarmos é tão grande que, à menor arranhadela, clamamos que a terra se afoga em sangue. Fostes enganados, logo todos os homens são perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma injustiça vê o universo coberto de danados, tal como um jovem voluptuoso que ceia com a sua dama, depois da ópera, não imagina que existam desafortunados. Matéria Os sábios aos quais se pergunta o que é a alma respondem que não sabem. Se se lhes pergunta o que é matéria, dão a mesma resposta. Verdade seja que alguns professores e sobretudo alguns estudantes sabem perfeitamente tudo isso; e ao repetirem que a matéria é extensa e divisível acham que disseram tudo; porém, quando se lhes pede que nos digam o que é essa coisa extensa, ficam em embaraços. E de que são compostas essas partes? Os seus elementos são divisíveis? Nesta altura, calam-se ou falam muito, o que é igualmente suspeito. Esse ser quase desconhecido, a que se chama matéria, é eterno? Toda a Antiguidade o acreditou. Contém em si e por si a força ativa? Muitos filósofos o pensaram. Os que o negam terão o direito de o negarem? Vós ignorais qual é a natureza da matéria e nem por isso deixais de lhe recusar modos que participam da sua natureza; porque, enfim, uma vez que a matéria é, impõe-se que seja de certa maneira, que seja figurada, e, uma vez que é necessariamente figurada, será impossível que existam outros modos adstritos à sua configuração? A matéria existe, vós não a conheceis senão através das vossas sensações. Ai de nós! Para que servem todas as sutilezas do espírito, desde que se raciocina? A geometria ensinou-nos muitas verdades, a metafísica pouquíssimas. Pesamos, medimos e decompomos a matéria; e, para além destas operações grosseiras, se queremos dar um passo, encontramos em nós a impotência e ante nós um abismo. Por favor, perdoai ao universo inteiro que se enganou ao julgar que a matéria existe por si mesma. Poderia eu pensar de outra maneira? Como não imaginar que aquilo que é, sem sucessão, foi sempre? Se não fosse necessária a existência da matéria, por que existiria ela? E sendo necessário que ela existisse, por que não teria existido sempre? Nenhum axioma, em tempo algum, recebeu aceitação mais universal que este: nada se faz de nada. Com efeito, o contrário é incompreensível. O caos precede, em todos os povos, o arranjo do mundo que uma mão divina estabelece. A eternidade da matéria não prejudicou, em nenhum povo, o culto da Divindade. Nunca a religião se exasperou por um Deus eterno ser reconhecido como o senhor de uma matéria eterna. Temos hoje a sorte de saber, pela fé, que Deus tirou a matéria do nada; mas nenhuma nação conhecera semelhante dogma, ignorado pelos próprios judeus. O primeiro versículo do Gênesis diz que os deuses Eloim, e não Elói, fizeram o céu e a terra; não diz que o céu e a terra foram criados do nada. Fílon, que viveu durante a única época em que os judeus teriam atingido alguma erudição, afirma, no seu capítulo sobre a criação: "Deus, sendo bom por natureza, não cobiçou a substancia, a matéria, que por si mesma nada tinha de bom, que por sua natureza nada tem senão inércia, confusão e desordem. Deus dignou-se torná-la boa, de má que era". A ideia do caos destrinçado por um Deus encontra-se em todas as antigas teogonias. Hesíodo repetia o que todo o Oriente pensava, ao dizer na sua Teogonia: "O caos é o que existiu primeiro". Ovídio era o intérprete de todo o império romano, ao dizer: "Sicubi dispositam, quisquis fuit ille deorum Congeriem secuit...” Portanto, a matéria era olhada entre as mãos de Deus como a argila sob a roda do oleiro, se é lícito servirmo-nos destas débeis imagens para exprimirmos o poder divino. Sendo eterna, a matéria devia ter propriedades eternas, como a configuração, a força da inércia, o movimento e a divisibilidade. Mas esta divisibilidade é apenas a consequência do movimento, pois sem movimento nada se divide, se separa ou se compõe. Considerou-se, portanto, o movimento como essencial à matéria. O caos fora movimento confuso e o arranjo do universo um movimento regular imprimido a todos os corpos pelo senhor do mundo. Porém, como teria a matéria o movimento por si mesma? Tal como tem, segundo todos os antigos, a extensão e a impenetrabilidade. Todavia, se não é possível conceber a matéria sem extensão, é possível concebê-la sem movimento. A isto respondia-se: "É impossível que a matéria não seja permeável; ora, sendo permeável, impõe-se que alguma coisa passe continuamente nos poros; para que serviriam passagens se nada por aí passasse?" De réplica em réplica, nunca mais acabaríamos; o sistema da matéria eterna tem grandes dificuldades, como todos os sistemas. O da matéria formada do nada não é menos incompreensível. Há que admiti-lo e não nos gabarmos de haver resolvido o problema; a filosofia não dá conta de tudo. Quantas coisas incompreensíveis não somos obrigados a admitir, mesmo em geometria? É concebível que duas linhas se aproximem sempre e nunca se encontrem? Na verdade, dir-vos-ão os geômetras: "As propriedades dos assíntotas foram-vos demonstradas; não podeis deixar de as admitir; mas a criação não é demonstrada: por que a admitis? Que dificuldade encontrais na crença, comum a toda a Antiguidade, da matéria eterna?" De outra banda vos acometerá o teólogo, dizendo: "Se acreditais na matéria eterna tereis de reconhecer dois princípios, Deus e a matéria, e caís no erro de Zoroastro, de Manes". Não responderemos coisa alguma aos geômetras porque esses senhores conhecem apenas as suas linhas, as suas superfícies e os seus sólidos. Mas ao teólogo podemos dizer: "Em que é que eu sou maniqueu? Eis aqui algumas pedras que o arquiteto não criou; com elas ergueu um edifício imenso; com isto, não estou a admitir dois arquitetos; as pedras em bruto obedeceram ao poder e ao gênio". Felizmente, seja qual for o sistema que se adote, a moral não é prejudicada; pois, que importa que a matéria seja criada ou arranjada? Deus é igualmente o nosso senhor absoluto. Devemos ser virtuosos, tanto sobre um caos deslindado como sobre um caos criado do nada; quase nenhuma destas questões metafísicas influi sobre a conduta da vida; trata-se de disputas semelhantes aos discursos vãos que se proferem à mesa; depois do jantar, cada qual esquece o que disse e vai para onde o seu interesse ou o seu gosto o chama. Metafísica Trans naturam, além da natureza. Mas o que está além da natureza é alguma coisa? Por natureza entende-se, portanto, matéria e por metafísica o que não é matéria. Por exemplo, vosso raciocínio, que não é comprido nem largo, nem alto, nem sólido, nem pontiagudo. Ou então vossa alma, que desconheceis, e que produz vosso raciocínio. Os espíritos, de que sempre se falou e aos quais durante muito tempo se atribuiu um corpo tão tênue que já não era mais corpo, e dos quais, finalmente, se tirou qualquer vestígio de corpo e não se sabe mais o que lhes restou. A maneira como esses espíritos sentem sem ter o embaraço dos cinco sentidos, como pensam sem cabeça, como comunicam seus pensamentos sem palavras e sem signos. ...Enfim, também é metafísica, Deus, que conhecemos por suas obras, mas que nosso orgulho quer definir: Deus, de quem sentimos o imenso poder: Deus, separado de nós por um abismo infinito e cuja nobreza ousamos sondar. Poderíamos ainda acrescentar aos objetos da metafísica até mesmo os princípios da matemática, pontos sem extensão, linhas sem largura, superfícies sem profundidade, unidades divisíveis ao infinito, etc. O próprio Bayle acreditava que esses objetos eram seres de razão, mas são apenas efeitos de coisas materiais consideradas em suas massas, superfícies, larguras e comprimentos, e extremidades dessas larguras ou comprimentos. Todas as medidas são justas e demonstráveis e a metafísica nada tem a ver com a geometria. É por isso que se pode ser metafísico sem ser geômetra. A metafísica é mais divertida; frequentemente é o romance do espírito. Em geometria, pelo contrário, é preciso calcular, medir. É um embaraço contínuo, e muitos espíritos preferiram sonhar docemente do que se fatigar. Milagres Um milagre, segundo a energia da palavra, é uma coisa admirável. Neste sentido, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos em tomo de um milhão de sóis, a ação da luz, a vida dos animais são outros tantos milagres perpétuos. Segundo as ideias recebidas, designamos por milagre a violação destas leis divinas e eternas. Que haja um eclipse do Sol durante a lua cheia, que um morto faça a pé duas léguas de caminho transportando a cabeça nos braços, a isto chamamos milagre. Muitos físicos sustentam que, neste sentido, não há milagres; eis os seus argumentos. Um milagre é a violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Basta este simples enunciado para se ver que comporta uma contradição nos próprios termos. Uma lei não pode ser ao mesmo tempo imutável e violada. Mas, objetaram-lhes, posto que a lei é instituída por Deus, não poderá ser suspensa pelo seu autor? Têm eles a audácia de responder que não e que é impossível que um Ser infinitamente sábio tenha feito leis para as violar. Deus não poderia perturbar a sua máquina salvo para fazê-la andar melhor, dizem; ora, é evidente que, sendo Deus, fez a sua imensa máquina tão perfeita quanto pôde: se visse que havia qualquer imperfeição resultante da imperfeição da matéria, remediá-la-ia desde o princípio; logo, Deus nunca modificará aí nada. Além disso, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão o levaria a desfigurar, durante algum tempo, a sua própria obra? Fá-lo em benefício dos homens, replicam. Terá de ser pelo menos em benefício de todos os homens, respondem os físicos; pois é inconcebível que a natureza divina trabalhe para alguns homens em particular e não para todo o gênero humano; além de que o próprio gênero humano é bem pouca coisa: revela-se muito menos que um pequeno formigueiro, se o comparamos com todos os seres que enchem a imensidão. Ora, não será a mais absurda das loucuras imaginar que o Ser infinito transtorna, em benefício das três ou quatro centenas de formigas que vivem neste minúsculo montão de lodo, o eterno jogo das forças imensas que fazem mover todo o universo? Suponhamos, porém, que Deus tenha querido distinguir um pequeno mundo de homens mediante favores particulares: precisaria para tanto modificar o que estabeleceu para todos os tempos e todos os lugares? Não necessita, por certo, de tal modificação, de tal inconstância, para favorecer as suas criaturas: os seus favores estão nas suas próprias leis. Tudo previu, tudo dispôs em vista delas; todas obedecem irrevogavelmente à força que, para todo o sempre, imprimiu na natureza. Por que razão faria Deus um milagre? Para satisfazer determinado desígnio acerca de alguns seres vivos! Deus diria, portanto: "Não logrei preencher mediante o estabelecimento do universo, mediante os meus decretos divinos, mediante as minhas leis eternas, certo desígnio; vou mudar as minhas ideias eternas, as minhas leis imutáveis, para tratar de executar o que não consegui com elas". Estaríamos perante uma confissão de fraqueza e não de poder. Eis o que seria, parece-nos, a mais inconcebível das contradições em Deus. Assim, pois, ousar supor a prática de milagres por Deus é realmente insultá-lo (se é que nomes podem insultar Deus), é dizer-lhe: "Sois um ser fraco e inconsequente". Acreditar em milagres é um absurdo, equivale de certo modo a desonrar a Divindade. Estes filósofos são atacados; afirmam-lhes: "Podeis exaltar a imutabilidade do Ser supremo, a eternidade das suas leis, a regularidade dos seus mundos infinitos: nem por isso o nosso pequeno monte de lama deixa de estar coberto de milagres; as histórias mostram-se tão cheias de prodígios como de acontecimentos naturais. As filhas do grande sacerdote Anius mudavam tudo o que queriam em trigo, em vinho ou em óleo; Atálida, filha de Mercúrio, ressuscitou muitas vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou Alceste à morte; Heres voltou ao mundo depois de haver passado quinze dias nos infernos; Rômulo e Remo nasceram do conúbio de um deus e de uma vestal; o Palladium caiu do céu na cidade de Tróia: a cabeleira de Berenice tornou-se um montão de estrelas; a cabana de Baucis e Filêmon foi transformada num templo soberbo; a cabeça de Orfeu proferia oráculos depois da sua morte; as muralhas de Tebas construíram-se por si, ao som da flauta, na presença dos gregos; as curas operadas no templo de Esculápio eram inumeráveis. e temos ainda monumentos carregados com os nomes de testemunhas oculares dos milagres de Esculápio". Indicai-nos um povo em que não se tivesse operado prodígios incríveis, sobretudo durante os tempos em que mal se sabia ler e escrever. A estas objeções respondem os filósofos rindo e encolhendo os ombros; mas os filósofos cristãos afirmam: "Nós acreditamos nos milagres operados no seio da nossa santa religião; acreditamos pela fé e não pela razão, que deve ficar muda. Temos uma crença firme e inteira nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas consenti que duvidemos um pouco de muitos outros; tende paciência, mas acerca, por exemplo, do que nos narra um homem simples a que foi dado o cognome de grande, forçoso nos é suspender os nossos juízos. Assegura-nos ele que um monge menor estava tão acostumado a fazer milagres, que o prior acabou por lhe proibir o exercício do seu talento. O monge obedeceu; mas, vendo um pobre pedreiro a cair do alto de um telhado, hesitou entre o desejo de lhe salvar a vida e a santa obediência. Limitou-se a ordenar ao pedreiro que ficasse suspenso no ar até nova ordem e correu muito apressado a contar ao seu prior o estado das coisas. O prior deu-lhe a absolvição do pecado que cometera ao começar um milagre sem autorização e permitiu-lhe acabá-lo, contanto que ficasse por ali e não reincidisse. Concedemos aos filósofos que convém usar de certa desconfiança para com esta história”. Mas como ousaríeis negar, dizem-lhes, que São Gervásio e São Protásio apareceram em sonhos a Santo Ambrósio e lhe indicaram o sítio onde estavam as suas relíquias? E que Santo Ambrósio as desenterrou e que elas curaram um cego? Santo Agostinho estava nessa data em Milão, é ele que conta este milagre: Imenso populo teste, diz na Cidade de Deus, Livro XXII. Eis um milagre dos bem verificados. Os filósofos afirmam que não acreditam em nada disto; que Gervásio e Protásio não apareceram a ninguém; que importa muito pouco ao gênero humano saber-se ou não onde se encontram os restos das suas carcaças; que não concedem mais crédito a este milagre que ao de Vespasiano; que é um milagre inútil; que Deus nada faz de inútil; e que se mantém firme nos seus princípios. O meu respeito por São Gervásio e São Protásio impede-me de partilhar a opinião destes filósofos; limito-me a dar conta da sua incredulidade. Ligam muita importância à passagem de Luciano que se encontra na Morte de Peregrinus. "Quando um trapaceiro hábil se torna cristão, pode ficar seguro de que fará fortuna". Porém, como Luciano é um autor profano, não deve gozar de qualquer autoridade entre nós. Estes filósofos não são capazes de se resolver a dar crédito aos milagres operados no século II. Bem podem testemunhas oculares escrever que, sendo o bispo de Esmirna, São Policarpo, condenado à fogueira e lançado às chamas, ouviram uma voz do céu que clamava: "Coragem, Policarpo! Sê forte, mostra-te homem!"; que então as chamas do braseiro se afastaram do seu corpo e formaram um pavilhão de fogo à volta da cabeça e que do meio da fogueira saiu uma pomba; e que, por fim, não houve outro recurso senão cortar a cabeça de Policarpo. A isto respondem os incrédulos: "Para que tal milagre? Por que razão as chamas perderam a sua natureza e não perdeu a sua a acha do executor? De onde resulta que tantos mártires saiam sãos e salvos do azeite fervente e não possam resistir ao gume do gládio?" Respondem-lhes que tal é a vontade de Deus. Todavia, os filósofos gostariam de ter visto isto com os seus próprios olhos, antes de o acreditarem. Os que fortificam os seus raciocínios com a ciência dir-vos-ão que os próprios Padres da Igreja confessaram muitas vezes que não se operavam mais milagres no seu tempo. São Crisóstomo afirma expressamente: "Os dons extraordinários do espírito eram atribuídos mesmo aos indignos porque então a Igreja tinha necessidade de milagres; mas hoje nem sequer são atribuídos aos dignos, porque a Igreja não tem precisão deles". Confessa em seguida que já não há ninguém que ressuscite os mortos nem sequer que cure os doentes. O próprio Santo Agostinho, não obstante o milagre de Gervásio e de Protásio, diz na Cidade de Deus: "Por que razão não se fazem hoje os milagres que se faziam outrora?" E dá o mesmo motivo: "Cur, inquiunt, nunc illa miracula quae praedicatis facta esse nonfiunt? Passem quidem dicere necessaria prius fuisse quam crederet mundus, ad hoc ut crederet mundus". Objetam os filósofos que Santo Agostinho, apesar de semelhante confissão, fala contudo de um velho sapateiro de Hipona que perdera o fato e fora orar à capela dos vinte mártires; de regresso, encontrou um peixe em cujo corpo havia um anel de ouro e o cozinheiro que fritara o peixe disse-lhe: "Eis o que os vinte mártires vos dão". Ao que os filósofos respondem que nada há nesta história a contrariar as leis da natureza, que a física não é absolutamente nada afetada pelo fato de um peixe ter engolido um anel de ouro e por um cozinheiro dar esse anel a um sapateiro; que não há aí milagre algum. Se lembrarem a esses filósofos que, segundo São Jerônimo, na sua Vida do Eremita Paulo, este eremita teve várias conversas com sátiros e com faunos, que um corvo lhe trouxe todos os dias durante trinta anos metade de um pão que era todo o seu jantar e um pão inteiro no dia em que Santo Antônio o veio ver podem os filósofos retorquir que também tudo isto em nada se opõe à física, que é possível que faunos e sátiros tenham existido e que em todo caso, sendo esta história pueril, nada apresenta de comum com os verdadeiros milagres do Salvador e seus apóstolos. Muitos bons cristãos combateram a história de São Simeão Estilita, escrita por Teodorrato. Muitos milagres que passam por autênticos na Igreja Grega foram postos em dúvida por numerosos latinos, tal como milagres latinos se tornaram suspeitos à Igreja Grega; vieram depois os protestantes que maltrataram fortemente os milagres de uma e outra Igreja. Um sábio jesuíta que pregou longo tempo nas Índias lamentou-se que nunca os seus confrades nem ele foram capazes de fazer um milagre. Xavier lamenta-se, em muitas das suas cartas, de não ser dotado para as línguas; e diz que está entre os japoneses como uma estátua muda. No entanto, os jesuítas escreveram que ele ressuscitara oito mortos; é muito; mas convém considerar que os ressuscitava a seis mil léguas daqui. Apareceram depois pessoas pretendendo que a abolição dos jesuítas em França é um milagre muito maior que os de Xavier e Inácio. Como quer que seja, todos os cristãos concordam que os milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos são de incontestável veracidade; mas que é lícito duvidar fortemente de alguns milagres ocorridos nos últimos tempos e que não tiveram autenticidade segura. Seria desejável, por exemplo, para que um milagre beneficiasse de uma boa verificação, que fosse feito na presença da Academia das Ciências de Paris ou da Sociedade Real de Londres e da Faculdade de Medicina, com assistência de um destacamento do regimento da guarda para conter a multidão popular que poderia, com a sua indiscrição, impedir a operação milagrosa. Perguntou-se um dia a um filósofo o que diria ele se visse o sol parar, quer dizer, se o movimento da Terra à volta desse astro cessasse, se todos os mortos ressuscitassem e se todas as montanhas fossem de companhia atirar-se ao mar, tudo isto para se provar uma verdade importante qualquer, a graça versátil por exemplo. "Que diria eu?" respondeu o filósofo. "Tornar-me-ia maniqueu; diria que há um princípio que desfaz o que o outro faz." Moisés Em vão numerosos sábios concluíram que o Pentateuco não pode ter sido escrito por Moisés. Referem que, segundo as próprias Escrituras está demonstrado que o primeiro exemplar conhecido foi encontrado no tempo do rei Josias e que esse único exemplar foi apresentado ao rei pelo secretário Safan. Ora, entre Moisés e este episódio do secretário Safan medeiam mil cento e sessenta e sete anos, pelo cômputo hebraico. Com efeito, Deus apareceu a Moisés na sarça ardente no ano do mundo 2213 e o secretário Safan publicou o livro da lei no ano do mundo 3380. Este livro, encontrado no tempo de Josias, foi desconhecido até o regresso do cativeiro da babilônia e afirma-se que coube a Esdras, inspirado de Deus, a divulgação de todas as Sagradas Escrituras. Mas que o redator do livro tenha sido Esdras ou qualquer outro, eis o que é indiferente, uma vez que o livro foi inspirado. Não se diz no Pentateuco que Moisés seja o seu autor: seria pois lícito atribuí-lo a outro homem a quem o Espírito Santo o teria ditado, se a Igreja não houvesse decidido que o livro é de Moisés. Alguns contraditores acrescentam que nenhum profeta citou os livros do Pentateuco, nem há referências a seu respeito quer nos salmos, quer nos livros atribuídos a Salomão, quer em Jeremias, quer em Isaías, quer enfim em qualquer livro canônico dos judeus. As palavras que correspondem a Gênesis, Êxodo, Números e Deuteronômio não se encontram em qualquer outro escrito por eles reconhecido como autêntico. Outros mais audaciosos formularam as seguintes perguntas: 1º - Em que língua teria escrito Moisés, num deserto selvagem? Não podia ser senão em egípcio, pois pelo próprio livro se verifica que Moisés e todo o seu povo tinham nascido no Egito. É provável que não falassem outra língua. Os egípcios não se serviam ainda do papiro, gravavam hieróglifos sobre mármore ou sobre madeira. Afirma-se mesmo que as tábuas dos mandamentos foram gravadas sobre pedra. Seria portanto necessário gravar cinco volumes em pedras polidas, o que exigia esforços e um tempo prodigioso. 2º - É verossímil que, em um deserto onde o povo judeu não dispunha de sapateiros nem de alfaiates e onde o Deus do universo era obrigado à prática de um milagre continuado para conservar os velhos trajes e os velhos sapatos dos judeus, se encontrassem homens suficientemente hábeis para gravar os cinco livros do Pentateuco, sobre madeira? Dir-se-á que foram encontrados artífices que fizeram um bezerro de ouro numa noite e que, depois, reduziram o ouro a pó, operação impossível à química comum, ainda não inventada; que construíram o tabernáculo, que o ornaram com trinta e quatro colunas de bronze, com os capitéis em prata; que urdiram e bordaram véus de linho, de jacinto, de púrpura e de escarlate; isto, porém, só robustece a opinião dos contraditores. Respondem estes que não era possível num deserto onde tudo faltava fazerem-se obras tão requintadas; que teria sido preciso começar por se fazerem sapatos e túnicas; que os que não têm o necessário não se inclinam para o luxo; e que é uma contradição afirmar-se que existiam fundidores, gravadores e bordadores, quando não havia trajes nem pão. 3º - Se Moisés houvesse escrito o primeiro capítulo teria havido tão pouco respeito pelo legislador? Se fosse Moisés a ter dito que Deus pune a iniquidade dos pais até a quarta geração, ousaria Ezequiel dizer o contrário? 4º - Se Moisés houvesse escrito o Levítico, poderia contradizer-se no Deuteronômio? O Levítico proíbe que se espose a mulher do irmão, o Deuteronômio ordena-o. 5º - Ter-se-ia Moisés referido, nesse livro, a cidades que não existiam no seu tempo? Teria dito que as cidades que relativamente a ela estavam a oriente do Jordão, ficavam a ocidente? 6º - Teria atribuído quarenta e oito cidades aos levitas num país onde nunca houve dez cidades e num deserto onde sempre errou sem dispor de uma casa? 7º - Teria prescrito regras para os reis judeus, quando os reis eram não só inexistentes entre este povo mas ainda objeto do seu horror e não era provável que alguma vez existissem? Como! Moisés teria estabelecido preceitos para a conduta de reis que só vieram quinhentos anos depois e nada diria com respeito aos juízes e pontífices que lhe sucederam? Esta reflexão não levará a admitir-se que o Pentateuco foi composto no tempo dos reis e que as cerimônias instituídas por Moisés não eram senão tradições? 8º - Como poderia ter acontecido que Moisés houvesse declarado aos judeus: "Fiz com que saísseis, em número de seiscentos mil combatentes, da terra do Egito sob a proteção do vosso Deus"? Não lhe teriam respondido os judeus: "É preciso que fosse muito grande a vossa timidez para que não nos tivésseis guiado contra o faraó do Egito; ele não podia opor-nos nem um exército de duzentos mil homens. Nunca o Egito teve tantos soldados em pé de guerra; teríamos vencido os egípcios sem dificuldades, seríamos os senhores do seu país. Como assim! O Deus que vos fala degolou, para nos agradar, todos os recém-nascidos do Egito, o que, se houver nesse país trezentas mil famílias, dá trezentos mil homens mortos em uma noite como nossa vingança, e nós não secundamos o vosso Deus! E vós não nos haveis oferecido esse país fértil que nada podia defender! Vós fizestes com que saíssemos do Egito como ladrões e covardes, para perecermos nos desertos, entre precipícios e montanhas! Vós poderíeis, ao menos, conduzir-nos pelo caminho direto a essa terra de Canaã, sobre a qual não temos direito algum, que nos haveis prometido e onde ainda não pudemos entrar". "Era natural que da terra de Gessen seguíssemos para Tiro e Sídon, ao longo do Mediterrâneo; mas vós fizestes com que atravessássemos quase todo o istmo do Suez; fizestes com que reentrássemos no Egito, remontássemos até para lá de Mênfis, e encontramo-nos em Beel-Séfon, nas margens do mar Vermelho, virando as costas à terra de Canaã, tendo andado oitenta léguas neste Egito que desejaríamos evitar e prestes a perecer entre o mar e o exército do faraó! "Se quiséssemos entregar-nos aos nossos inimigos, teríeis tomado outro caminho e outras medidas? Deus salvou-nos por milagre, dizeis; o mar abriu-se para nos deixar passar; mas, após semelhante favor, seria preciso fazer-nos morrer de fome e de fadiga nos desertos horríveis de Etham, de Cadés-Barné, de Mara, de Elim, de Horeb e do Sinai? Os nossos pais morreram todos nessas solidões pavorosas e vindes dizer-nos, ao cabo de quarenta anos, que Deus teve cuidados particulares com os nossos pais!" Eis o que esses judeus murmuradores, esses filhos injustos de judeus vagabundos, mortos nos desertos, teriam podido dizer a Moisés se este lhes houvesse lido o Êxodo e o Gênesis. E o que não teriam podido dizer e fazer a propósito do bezerro de ouro? "O quê! Vós ousais contar-nos que o vosso irmão fez um bezerro para os nossos pais, vós que nos dizeis, ora que haveis falado com Deus cara a cara, ora que não haveis podido vê-lo senão de costas! Mas, enfim, vós estáveis com esse Deus e vosso irmão trata de fundir num só dia um bezerro de ouro que nos dá para que o adoremos; e vós, em vez de punirdes o vosso indigno irmão, vindes a nomeá-lo nosso pontífice e mandais os vossos levitas degolarem vinte e três mil homens do vosso povo? Tê-lo-iam suportado os nossos pais? Ter-se-iam deixado agredir como vítimas por sacerdotes sanguinários? Vós dizeis que, não contente com essa carnificina inacreditável, haveis ainda feito massacrar vinte e quatro mil dos vossos pobres seguidores, porque um deles dormira com uma madianita, ao passo que vós mesmo haveis desposado uma madianita; e acrescentais que sois o mais benévolo de todos os homens! Mais algumas manifestações dessa benevolência e não restaria ninguém”. "Não, se houvésseis sido capaz de semelhante crueldade, se a houvésseis podido executar, seríeis o mais bárbaro de todos os homens e não chegariam todos os suplícios para expiação de tão estranho crime." Tais são, pouco mais ou menos, as objeções formuladas pelos sábios àqueles que pensam que Moisés é o autor do Pentateuco. No entanto, respondem-lhes que os caminhos de Deus não são os dos homens; que Deus experimentou, conduziu e abandonou o seu povo com uma sabedoria que nos é desconhecida; que os próprios judeus acreditam, desde há mais de dois mil anos, que Moisés é o autor desses livros; que a Igreja, que sucedeu à Sinagoga e é infalível tal qual esta, decidiu este ponto de controvérsia e que os sábios devem calar-se quando a Igreja fala. Moral Acabo de ler estas palavras numa declaração em catorze volumes, intitulada História do Baixo Império: "Os cristãos tinham uma moral; os pagãos, porém, não tinham moral alguma". Ah! Senhor le Beau, autor destes catorze volumes, onde foi aprender semelhante parvoíce? O que é então a moral de Sócrates, de Zaleucus, de Charondas, de Cícero, de Epicteto, de Marco Antônio? Não há senão uma moral, senhor le Beau, tal como não há senão uma geometria. Mas, dirme-ão, a maior parte dos homens ignora a geometria. É certo; contudo, desde que as pessoas se apliquem um pouco no seu estudo, todas se põem de acordo. Os agricultores, os operários, os artesãos nunca frequentaram cursos de moral; não leram os De Finibus de Cícero, nem as Éticas de Aristóteles; todavia, contanto que reflitam, são, sem o saberem, discípulos de Cícero: o tintureiro indiano, o pastor tártaro e o marujo inglês conhecem o justo e o injusto. Confúcio não inventou um sistema de moral tal como se edifica um sistema de física. Encontrou-o no coração de todos os homens. Esta moral estava no coração do pretor Festus quando os judeus o instaram a que fizesse morrer Paulo, que trouxera estrangeiros ao seu templo. "Sabei", disse-lhes, "que nunca os romanos condenam pessoa alguma sem a ouvirem”. Se os judeus careciam de moral ou faltavam à moral, os romanos conheciam-na e prestavam-lhe homenagem. A moral não reside na superstição, não reside nos cerimoniais, nada tem de comum com os dogmas. Nunca será demais repetir que todos os dogmas são diferentes e que a moral é a mesma em todos os homens que usam a razão. Assim, a moral vem de Deus, como a luz. As nossas superstições são apenas trevas. Leitor, reflete: ouve esta verdade; tira as tuas consequências. Mulher Físico e Moral Em geral é mais fraca do que o homem, menor, menos capaz delongas trabalhos; seu sangue é mais aquoso, sua carne mais compacta, seus cabelos mais longos, seus membros mais arredondados, os braços menos musculosos, a boca menor, as nádegas mais salientes, as ancas mais afastadas, o ventre maior. Esses caracteres distinguem as mulheres em toda a Terra, em todas as espécies, desde a Lapânia até as costas da Guiné, na América como na China. Plutarco, no terceiro livro das Palestras a Respeito da Mesa, pretende que o vinho não as embebeda tão facilmente como aos homens e eis a razão que apresenta daquilo que não é verdadeiro. Sirvo-me da tradução de Amyot. "A temperatura natural das mulheres é muito úmida e, com as purgações menstruais, sua cama dura toma-se muito suave, lisa e brilhante. Portanto, quando o vinho cai numa umidade tão grande, encontrando-se vencido, perde sua cor e força, torna-se descolorido e aguado. A esse respeito, podemos usar as palavras do próprio Aristóteles, pois diz que os que bebem em grandes sorvos sem tomar fôlego (o que os antigos chamavam amusiten) não se embriagam tão facilmente, porque o vinho não permanece muito tempo em seus corpos. Sendo pressionado e empurrado à força, atravessa-os inteiramente. Ora, é muito comum vermos as mulheres beberem assim e se é verossímil que seus corpos, por causa da contínua atração dos humores, feita pelo nível inferior para suas purgações menstruais, estão cheios de muitos condutos e atravessados por muitos tubos e canais por onde o vinho sai rápida e facilmente ao cair, então não pode fixar-se nas partes nobres e principais que são justamente aquelas que quando perturbadas levam à embriaguez." Esta física é bem digna dos antigos. As mulheres vivem um pouco mais do que os homens, isto é, numa geração encontram-se mais velhas do que velhos, como foi observado na Europa por todos os que fizeram levantamentos exatos dos nascimentos e das mortes. Deve-se acreditar que o mesmo aconteça na Ásia, bem como entre os negros, os vermelhos, os acinzentados. Natura est semper sibi consona. Num extrato de um Diário da China, datado de 1725, conta-se que a mulher do Imperador Yong-Tching, fazendo liberalidades às pobres mulheres chinesas que ultrapassassem setenta anos, contaram-se, só na província de Cantão, entre as que receberam presentes, 98 220 mulheres de setenta anos completos, 40893 com mais de oitenta anos e 3453 de aproximadamente cem anos. Os que amam as causas finais dizem que a natureza dá-lhes uma vida mais longa do que aos homens para recompensá-las das penas de transportar os filhos nove meses, de pô-las no mundo e de nutri-los. Não é de se acreditar que a natureza dê recompensas, mas é provável que as fibras das mulheres se endureçam mais lentamente porque seu sangue é mais suave. Nenhum anatomista, nenhum médico jamais pôde conhecer a maneira como concebem. Sanchez em vão assegurou: Mariam et Spiritum sanetum emisisse semen in copulatione, et ex semine amborum natum esse Jesum. Esta impertinência abominável de Sanchez, aliás muito sábio, não é adotada hoje por nenhum naturalista. As periódicas emissões de sangue que sempre enfraquecem as mulheres nessa época, as doenças provenientes da menopausa, o tempo de gravidez, a necessidade de amamentar e velar continuamente sobre as crianças, a delicadeza de seus membros as tornam impróprias para as fadigas da guerra e para o furor dos combates. É verdade, como já dissemos, que vimos em todos os tempos e em quase todos os países mulheres a quem a natureza deu coragem e força extraordinárias, que combateram com os homens e que sustentaram trabalhos prodigiosos. Contudo, esses exemplos são raros. O físico governa sempre o moral. As mulheres sendo mais fracas de corpo do que nós, tendo mais destreza nos seus dedos, muito mais ágeis do que os nossos, não podendo trabalhar nas obras penosas de construção, de carpintaria, de metalurgia, da lavoura, estando necessariamente encarregadas dos pequenos trabalhos mais leves no interior da casa e sobretudo do cuidado das crianças, e levando uma vida mais sedentária, devem ter o caráter mais doce do que a raça masculina e quase desconhecer os grandes crimes. Isso é tão verdadeiro, que em todos os países policiados há uma mulher para cada cinquenta homens executados. No seu Do Espírito das Leis. Montesquieu promete falar da condição das mulheres nos diversos tipos de governo. Afirma que "entre os gregos as mulheres não eram encaradas como dignas de participar do verdadeiro amor, e que o amor tinha entre eles apenas uma forma que não ouso dizer". Como garantia, cita Plutarco. É um engano perdoável apenas num espírito como o de Montesquieu, sempre levado pela rapidez de suas ideias, frequentem ente incoerentes. Plutarco, no seu capítulo sobre o "Amor", introduz vários interlocutores. E ele próprio, sob o nome de Dafneus, refuta com veemência os discursos de Protógenes a favor do deboche dos rapazes. Nesse mesmo diálogo chega até a dizer que o amor das mulheres tem algo divino, compara-o ao sol que anima a natureza. Coloca a maior felicidade no amor conjugal e termina pelo elogio magnífico da virtude de Eponina, cuja aventura memorável se passou sob os próprios olhos de Plutarco, quando viveu algum tempo na casa de Vespasiano. Essa heroína, tomando conhecimento de que seu marido, Sabino, vencido pelas tropas do imperador, escondera-se numa profunda caverna entre o Franco-Condado e a Champanha, fechou-se ali também, teve filhos, serviu-o e nutriu-o durante muitos anos. Enfim, sendo presa com o marido, é levada a Vespasiano, espanta-o com a grandeza da sua coragem e lhe diz: "Vivi mais feliz nas trevas sob a terra do que tu à luz do sol no cimo do poder". Portanto, Plutarco diz precisamente o contrário do que Montesquieu afirma em seu nome. Sempre o vemos pronunciando-se a favor das mulheres com um entusiasmo muito tocante. Não é espantoso que em todos os países o homem se tenha tornado senhor da mulher, pois tudo está fundamentado na força e normalmente ele apresenta uma superioridade muito grande tanto na força corporal como também na espiritual. Vimos mulheres muito sábias, como também guerreiras, mas nunca houve inventoras. O espírito de sociedade e de recreação habitualmente é seu quinhão. Falando de modo geral, parece que foi feita para suavizar os costumes dos homens. Em nenhuma república participaram alguma vez do governo. Jamais reinaram nos países unicamente eletivos. Entretanto, reinam em quase todos os reinos hereditários da Europa: na Espanha, em Nápoles, na Inglaterra, em muitos Estados do Norte, e em muitos feudos que denominamos femininos. O costume que se chama lei sálica excluiu-as do reinado da França, mas não, como diz Mezerai, porque fossem incapazes de governar, uma vez que quase sempre a regência lhes foi concedida. Pretende-se que o Cardeal Mazarin admitia que muitas mulheres eram dignas de reger um reino e acrescentava que o grande perigo estava que se deixassem subjugar por amantes incapazes de governar doze galinhas. Entretanto, Isabel de Castilha, Isabel da Inglaterra, Maria Teresa da Hungria desmentiram o suposto chiste atribuído ao cardeal. E hoje vemos no Norte uma legisladora muito respeitada, enquanto os soberanos da Grécia, da Ásia Menor, da Síria e do Egito são pouco estimados. Entre os maometanos a ignorância pretendeu durante muito tempo que a mulher é escrava durante toda a sua vida, e que após sua morte não vai para o paraíso. São dois grandes erros, como aliás sempre se comete quando se fala do maometismo. As esposas não são escravas. O sura ou o capítulo IV do Corão lhes consignam uma dotação. Uma moça deve ter metade do bem que herda seu irmão. Se houver apenas moças, repartem entre si dois terços da herança e o resto pertence aos parentes do morto: cada uma das duas linhas terá uma sexta parte, e a mãe do morto tem também direito à sucessão. As esposas são tão pouco escravas, que têm permissão para pedir o divórcio, que lhes é concedido quando suas queixas são julgadas legítimas. Não é permitido aos muçulmanos desposar sua cunhada, sua sobrinha, sua irmã de leite, sua enteada criada sob a guarda de sua esposa. Não é permitido desposar duas irmãs. Nisso são bem mais severos do que os cristãos que, no entanto, todos os dias compram em Roma o direito de contratar casamentos que poderiam fazer "grátis". Poligamia Maomé reduziu a quatro o número ilimitado de esposas. Mas, como é preciso ser extremamente rico para sustentar quatro mulheres de acordo com sua condição, somente os maiores senhores podem usar tal privilégio. Assim, nos Estados muçulmanos a pluralidade de mulheres não faz o mal que tão frequentem ente reprovamos, e não os despovoa, como se repete todos os dias em tantos livros escritos ao acaso. Os judeus, por um antigo uso estabelecido conforme seus livros, desde Lamich tiveram sempre a liberdade de possuir de uma só vez várias mulheres. Davi teve dezoito. Foi depois dessa época que os rabinos estabeleceram tal número para a poligamia dos reis, embora se diga que Salomão chegou a ter setecentas. Atualmente, os maometanos não concedem publicamente aos judeus o direito à pluralidade de mulheres: não os creem dignos dessa vantagem. Entretanto, o dinheiro, sempre mais forte do que a lei, dá algumas vezes aos judeus que são ricos, na África e no Oriente, a permissão que a lei recusa. Conta-se seriamente que Lélio Cina, tribuno do povo, publicou após a morte de César que o ditador teria querido promulgar uma lei dando às mulheres o direito de terem tantos maridos quantos quisessem. Todo homem sensato há de ver que se trata de um conto popular e ridículo, inventado para tomar César odioso. Assemelha-se a outro conto onde um senador romano teria proposto ao Senado que desse a César a permissão para dormir com todas as mulheres que quisesse. Inépcias semelhantes desonram a história e fazem mal ao espírito dos que nelas creem. É triste que Montesquieu tenha dado crédito a essa fábula. Por outro lado, o Imperador Valentiniano I, dizendo-se cristão, desposou Justina, ainda estando viva sua primeira mulher, Severa, mãe do imperador Graciano, só por ser muito rico, podendo, então, manter várias mulheres. Na primeira raça dos reis francos, Gontrão, Chereberto, Sigberto, Childerico tiveram muitas mulheres de uma só vez. Gontrão teve no seu palácio Veneranda, Mercatrude e Ostrogila, reconhecidas como mulheres legítimas. Chereberto teve Mesofleda, Mascovesa e Teodopila. É difícil conceber como o ex-jesuíta Nonoto pôde, na sua ignorância, forçar a ousadia até negar esses fatos e dizer que os reis dessa primeira raça não foram polígamos, chegando a desfigurar num libelo em dois volumes mais de cem verdades históricas com a confiança de um regente que dita lições num colégio. Livros nesse gosto não deixam de ser vendidos algum tempo nas províncias onde os jesuítas têm ainda um partido. Seduzem também algumas pessoas pouco instruídas. O Padre Daniel, mais sapiente, mais judicioso, confessa sem nenhuma dificuldade a poligamia dos reis francos. Não nega as três mulheres de Dagoberto I, diz expressamente que Teodoberto esposa Deutéria, embora tivesse outra mulher chamada Visigala, e Deutéria tivesse um marido. Acrescenta que imitou seu tio Clotário, que desposou a viúva de Clodomiro, seu irmão, embora já tivesse três mulheres. Todos os historiadores admitem a mesma coisa. Como, após todos esses testemunhos, suportar a imprudência de um ignorante que discursa como mestre, e que ousa dizer que fala bobagens tão grandes em defesa da religião? Como se se tratasse de nossa religião venerável e sagrada num ponto de história usado por caluniadores desprezíveis para suas imposturas ineptas! Da poligamia permitida por alguns papas e por alguns reformadores O Abade de Fleury, autor da História Eclesiástica, faz mais justiça à verdade no concernente a todas as leis e usos da Igreja. Admite que Bonifácio, apóstolo da Baixa Alemanha, tendo consultado o Papa Gregório no ano de 726, para saber em quais casos um marido pode ter duas mulheres, Gregório II respondeu-lhe, a 22 de novembro do mesmo ano, as seguintes palavras: "Se uma mulher for atacada de moléstia que a tome imprópria ao dever conjugal, o marido pode casar com outra, porém deve dar à mulher doente o socorro necessário". Esta decisão parece de conformidade com a razão e com a política, pois favorece a população, objeto do casamento. Mas o que não parece conforme a razão, nem à política, nem à natureza, é a lei que reza que uma mulher, separada de corpo e bens de seu marido, não possa ter outro esposo, nem o marido, outra mulher. É evidente que é uma estirpe perdida para o povo e que se este esposo e esta esposa separados tiverem um temperamento indomável estarão necessariamente expostos e forçados a pecados contínuos cuja responsabilidade perante Deus deve recair sobre os legisladores, se... As decretais do papa nem sempre tiveram por objeto o que é conveniente para o bem dos Estados e para o dos particulares. Essa mesma decretal do papa Gregório Il, permitindo em certos casos a bigamia, priva para sempre da sociedade conjugal meninos e meninas consagrados por seus pais à Igreja, na mais tenra idade. Essa lei parece tão bárbara quanto injusta. Aniquila de uma vez as famílias. Força a vontade dos homens antes que tenham uma vontade. Forma para sempre crianças escravas de um voto que não fizeram. Destrói a liberdade natural. Ofende a Deus e ao gênero humano. A poligamia de Filipe, landgrave de Hesse, na comunhão luterana, em 1539, é bastante pública. Conheci um dos soberanos do Império da Alemanha cujo pai, desposando uma luterana, teve permissão do papa para casar-se com uma católica e conservou suas duas mulheres. É público na Inglaterra, e se quis em vão negá-lo, que o Chanceler Cooper desposou duas mulheres que viveram juntas em sua casa numa singular concórdia honrosa para os três. Muitos curiosos possuem ainda o livrinho que o chanceler compôs a favor da poligamia. É preciso desconfiar dos autores que relatam que em alguns países as leis permitem às mulheres ter vários maridos. Os homens, que em todos os lugares fizeram as leis, nasceram com muito amor próprio, são muito ciumentos da sua autoridade, em geral têm um temperamento muito mais ardente do que o das mulheres, de modo que dificilmente teriam imaginado tal jurisprudência. O que não está conforme ao procedimento comum da natureza raramente é verdadeiro; mas é muito comum, sobretudo nos antigos viajantes, tomar um abuso por uma lei. O autor de Do Espírito das Leis pretende que na costa do Malabar, na costa do Nairos os homens só podem ter uma mulher e que, ao contrário, uma mulher pode ter vários maridos. Cita autores suspeitos e sobretudo Picard. Só se deveria falar desses costumes estranhos quando se tivesse sido por muito tempo testemunha ocular. Caso contrário, sempre se deve fazer menção, mas duvidando. Qual, porém, o espírito vivo que saiba duvidar? O mesmo autor diz ainda que a lubricidade das mulheres em Pátano é tão grande, que os homens são constrangidos a confeccionar certas guarnições para se protegerem de suas empreitadas. A testemunha de Montesquieu nunca foi a Pátano. O Sr. Linquet observa muito judiciosamente que aqueles que imprimiram esse conto eram viajantes que se enganavam ou que queriam caçoar de seus leitores. Sejamos justos, amemos o verdadeiro, não nos deixemos seduzir, julguemos pelas coisas e não pelos nomes. Sequência das reflexões sobre a poligamia Parece que o poder e não a convenção fez todas as leis, sobretudo no Oriente. Vimos ali os primeiros escravos, os primeiros eunucos, o tesouro do príncipe proveniente daquilo que se tomava do povo. Quem pode vestir, nutrir e divertir várias mulheres coloca-as em seu viveiro e manda despoticamente. Ben-Aboul-Kiba, em seu Espelho dos Fiéis, relata que um dos vizires do grande Solimão fez este discurso a um agente do grande Carlos V: "Cão cristão, por quem tenho uma estima toda particular, podes bem reprovar-me por ter quatro mulheres segundo nossas santas leis, enquanto esvazias doze tonéis por ano sem que eu beba sequer um copo de vinho? Que bem fazes ao mundo passando mais horas à mesa do que eu no leito? Todos os anos posso dar quatro filhos para o serviço de meu augusto senhor e tu podes fornecer apenas um. E que é o filho de um bêbado? Seu cérebro será ofuscado pelos vapores do vinho que bebeu seu pai. Que queres que eu me torne quando duas de minhas mulheres estão menstruadas? Não é preciso que me sirva das duas outras assim como minha lei ordena? Que te tomas, que papel fazes nos últimos meses da gravidez de tua única mulher e durante suas menstruações e durante suas doenças? É preciso que permaneças numa ociosidade vergonhosa, ou que procures outra mulher. E assim fica jogado necessariamente entre dois pecados mortais que te farão, depois de morto, cair duro nos quintos dos infernos”. "Supondo que em nossas guerras contra os cães cristãos tenhamos perdido cem mil soldados, teremos cerca de cem mil mulheres a prover. Não cabe aos ricos tomar conta delas? Maldito seja todo muçulmano bastante morno para não abrigar em casa quatro belas mulheres como suas legítimas esposas e para não tratá-las segundo seus méritos”. "Em teu país, como fazem a trombeta do dia (que chamas de galo), o honesto carneiro, príncipe dos rebanhos, o touro, soberano das vacas? Cada um deles não possui seu serralho? Assenta-te muito bem reprovar minhas quatro mulheres, quando o grande profeta teve dezoito, Davi, o Judeu, a mesma quantidade, e Salomão, o Judeu, setecentas bem contadas e mais trezentas concubinas! Vede quão modesto sou. Cessa de reprovar a gulodice de um sábio que faz refeições tão medíocres. Permito-te beber, permite-me amar. Mudas de vinho, tolera que eu mude de mulheres. Que cada um deixe viver os outros à moda de seu país. Teu chapéu não foi feito para ditar leis ao meu turbante. Teu colarinho e teu casaquinho não devem ordenar ao meu doliman. Acaba de tomar comigo teu café e vai acariciar tua alemã, já que estás reduzido a ela somente." Resposta do alemão "Cão muçulmano, por quem conservo uma profunda veneração, antes de acabar meu café, quero confundir teus ditos. Quem possui quatro mulheres possui quatro harpias, sempre prontas a se caluniarem, a se prejudicarem, a se baterem. O lar torna-se antro da Discórdia e nenhuma pode amar-te. Cada uma só dispõe de um quarto da tua pessoa e não te poderia dar mais do que um quarto de seu coração. Nenhuma pode torna-te a vida agradável: são prisioneiras que, nunca tendo visto nada, nada podem dizer-te. Só conhecem a ti, por conseguinte tu as entedias. És seu senhor absoluto, portanto te odeiam. És obrigado a guardá-las por um eunuco que as chicoteia quando fazem muito barulho. Ousas comparar-te a um galo! Porém, nunca um galo mandou chicotear suas galinhas por um capão, Toma teus exemplos dos animais, pareça-te com eles quanto quiseres. Quanto a mim, quero amar como homem, quero dar todo o meu coração e que me deem o seu. Esta noite contarei nossa conversa a minha mulher e espero que fique contente. Quanto ao vinho que me reprovas, fica sabendo que, se é um mal beber na Arábia, é um hábito muito louvável na Alemanha. Adeus." N Necessário OSMIN Pois não dizeis que tudo é necessário? SELIM Se tudo não fosse necessário, resultaria que Deus teria feito coisas inúteis. OSMIN Quer dizer que seria necessário à natureza divina fazer tudo o que fez? SELIM Assim o creio, ou, pelo menos, suspeito-o. Há quem pense de outra maneira; não os escuto: talvez tenham razão. Temo as disputas sobre esta matéria. OSMIN Também quero falar-vos de outro necessário. SELIM De qual? Daquilo que é necessário a um homem honesto para viver? Da desgraça a que se fica reduzido quanto falta o necessário? OSMIN Não: porquanto o que é necessário a uns nem sempre é necessário a outros; é necessário a um indiano ter arroz, a um inglês ter carne; a um russo é necessário um abafo de peles, a um africano um estofo de gaze; certo homem crê que lhe são necessários doze cavalos de carruagem, outro limita-se a um par de sapatos, outro ainda anda alegremente com os pés descalços; desejo falar-vos do que é necessário a todos os homens. SELIM Parece-me que Deus deu tudo o que era preciso a esta espécie: olhos para ver, pés para andar, uma boca para comer, um esôfago para engolir, um estômago para digerir, um cérebro para raciocinar, órgãos para produzir os seus semelhantes. OSMIN Como sucede então que nasçam homens privados de uma parte dessas coisas necessárias? SELIM É que as leis gerais da natureza provocaram acidentes geradores de monstros; mas, em geral, o homem está provido de tudo o que precisa para viver em sociedade. OSMIN Há noções comuns a todos os homens que lhes sirvam para viverem em sociedade? SELIM Sim. Viajei com Paul-Lucas e em toda a parte por onde passei, vi que se respeitavam pai e mãe, que se aceitava a obrigação de sustentar uma promessa, que havia piedade pelos inocentes oprimidos, que se detestava a intolerância, que a liberdade de pensamento era olhada como um direito natural e os inimigos desta liberdade como inimigos do gênero humano; os que pensam diferentemente pareceram-me criaturas mal organizadas, monstros como os nascidos sem olhos e sem mãos. OSMIN Essas coisas necessárias são-no em todas as épocas e em todos os lugares? SELIM Sim; sem o que não seriam necessárias à espécie humana. OSMIN Assim uma crença nova não seria necessária à espécie. Os homens podiam perfeitamente viver em sociedade e cumprir os seus deveres para com Deus antes de crerem que Maomé teve frequentes conversas com o arcanjo Gabriel. SELIM Nada mais evidente; seria ridículo pensar-se que não fosse possível cumprir os deveres de homem antes da vinda de Maomé ao mundo; não era absolutamente nada necessário à espécie humana acreditar no Alcorão; o mundo andava antes de Maomé tal como anda hoje. Se o maometismo fosse necessário ao mundo, teria existido em todos os lugares; Deus, que nos deu olhos para vermos o seu sol, a todos nos daria inteligência para vermos a verdade da religião muçulmana. Esta seita é, portanto, igual às leis positivas que mudam segundo os tempos e os lugares, como as modas, como as opiniões dos físicos que se sucedem umas às outras. A seita muçulmana não podia portanto ser essençialmente necessária ao homem. OSMIN Mas, uma vez que ela existe, Deus permitiu-a? SELIM Sim, tal como permite que o mundo esteja cheio de tolices, de erros e de calamidades. O que não vale dizer que os homens sejam todos essencialmente feitos para serem parvos e infelizes. Deus permite que alguns homens sejam comidos pelas serpentes; mas não podemos dizer: "Deus fez o homem para ser comido pelas serpentes". OSMIN O que entendeis ao dizerdes "Deus permite"? Que nada pode acontecer sem sua ordem? Permitir, querer e fazer não são a mesma coisa para Deus? SELIM Deus permite o crime mas não o comete. OSMIN Cometer um crime é agir contra a justiça divina, é desobedecer a Deus. Ora, Deus não pode desobedecer a si mesmo, não pode cometer crimes; contudo, fez o homem de maneira que este comete muitos: de que resulta isto? SELIM Há gente que o sabe, não eu. Tudo quanto sei é que o Alcorão é ridículo, embora aqui e ali vejo claramente o que é falso e conheço muito malo que é verdadeiro. OSMIN Supunha que vós pudésseis intruir-me e afinal não me ensinais nada. SELIM Não é muito conhecerdes as pessoas que vos enganam e os erros grosseiros e perigosos que vos recitam? OSMIN Teria motivos para me queixar de um médico que me fizesse uma exposição de plantas nocivas e não me mostrasse uma só que fosse salutar. SELIM Eu não sou médico e vós não sois doente; afigura-se-me, porém, que vos daria uma boa receita se vos dissesse: "Desconfiai de todas as invenções dos charlatães, adora i Deus, sede honesto e acreditai que dois e dois são quatro". O Orgulho Em uma das suas cartas, Cícero escreve familiarmente a um amigo: "Dizei-me a quem desejais que eu mande dar as Gálias", Noutra, lamenta-se de estar cansado das cartas de não sei que príncipes, os quais lhe agradecem o haver elevado as suas províncias a reinos, e acrescenta que nem sequer sabe onde ficam situados esses reinos. Pode ser que Cícero, que aliás vira muitas vezes o povo romano, o povo rei, aplaudi-lo e obedecer-lhe e que recebia agradecimentos de reis que nem sequer conhecia, houvesse experimentado alguns impulsos de orgulho e de vaidade. Conquanto este sentimento não seja de todo justificado em tão mesquinho animal como o homem, poderíamos no entanto perdoá-lo a um Cícero, a um César, a um Cipião; mas que nos confins de uma das nossas províncias meio bárbaras um homem que houver comprado um cargo insignificante e feito imprimir versos medíocres decida estar orgulhoso, eis o que dá matéria para nos rirmos longa mente. P Padres. Os padres são um Estado, aquilo que, mais ou menos, são os preceptores em casa dos cidadãos, feitos para ensinar, orar, dar o exemplo; não podem dispor de qualquer autoridade sobre os donos da casa, a menos que se venha a provar que quem paga salários deve obedecer a quem os recebe. De todas as religiões, a que mais positivamente exclui os padres de toda a autoridade civil é, sem contestação, a de Jesus: Dai a César o que é de César - Não haverá entre vós nem primeiro nem último - O meu reino não é deste mundo. As querelas entre o Império e o sacerdócio que ensanguentaram a Europa durante mais de seis séculos não constituíram, da parte dos padres, senão rebeliões contra Deus e os homens e um contínuo pecado contra o Espírito Santo. Desde Calcas, que assassinou a filha de Agamenão, até Gregório XII e Sisto V, dois bispos de Roma que quiseram privar o grande Henrique IV do reino de França, o poder sacerdotal foi fatal para o mundo. Orar não é dominar; exortar não é despotismo. Um bom padre deve ser o médico das almas. Se Hipócrates houvesse ordenado aos seus doentes que tomassem heléboro sob pena de enforcamento, revelar-se-ia mais bárbaro que Falaris e poucos clientes haveria tido. Quando um padre diz: "Adorai Deus, sede justo, indulgente e carinhoso", é bom médico. Quando diz: "Acreditai em mim ou sereis queimado", é um assassino. O magistrado deve sustentar e conter o padre, tal como o pai de família deve considerar o preceptor dos seus filhos e obstar a que ele abuse. O acordo do sacerdócio e do Império é o mais monstruoso dos sistemas; pois, desde que se procure semelhante acordo, logo se supõe a divisão; impõe-se antes dizer: proteção concedida pelo Império ao sacerdócio. Todavia, nos países onde o sacerdócio se apoderou do Império, como em Salém, onde Melquisedeque era sacerdote e rei, como no Japão, onde o dairi foi durante tanto tempo imperador, que se impõe fazer? Responderei que os sucessores de Melquisedeque e os dairi foram desapossados. Os turcos são sensatos neste ponto. É verdade que fazem a viagem a Meca; mas não permitem ao xerife de Meca que excomungue o sultão. Não vão a Meca comprar a permissão de não observarem o ramadã ou a de se casarem com primas e sobrinhas; não são julgados por irmãs em quem o xerife tenha poder, nem pagam o último ano do seu rendimento ao xerife. Quantas coisas haveria a dizer sobre tudo isto! Leitor, a ti mesmo cabe fazê-lo. Pátria Uma pátria é um composto de numerosas famílias; e, tal como de ordinário sustentamos a nossa família por amor-próprio, quando não há interesses contrários, assim sustentamos, devido ao mesmo amor-próprio, a nossa cidade ou a nossa aldeia, a que chamamos a nossa pátria. Quanto mais esta pátria se torna grande, menos é amada, pois o amor partilhado enfraquece. É impossível amar ternamente uma família demasiado numerosa que mal se conhece. O que arde na ambição de ser edil, tribuno, pretor, cônsul, ditador, grita que ama a sua pátria e apenas ama a sua própria pessoa. Cada qual deseja estar seguro de poder dormir em sua casa sem que outro homem se arrogue o poder de mandá-lo dormir algures; cada qual quer sentir-se seguro da sua fortuna e da sua vida. Uma vez que todos constituem assim os mesmos desejos, verifica-se que o interesse particular se torna interesse geral; fazem-se votos pela república quando afinal os fazemos tão só por nós mesmos. É impossível que tenha existido sobre a terra algum Estado que se não governasse primeiro pela república; tal é a marcha natural da natureza humana. Algumas famílias reúnem-se primeiro contra os ursos e contra os lobos; a que tem sementes fornece-as, por trocas, à que só tem madeira. Quando descobrimos a América, encontramos todas as populações divididas em repúblicas; apenas existiam dois reinos em toda esta parte do mundo. Em mil nações não encontramos mais que duas subjugadas. Assim acontecia no mundo antigo; tudo era república, antes dos reizinhos da Etrúria e de Roma. Ainda hoje se encontram repúblicas em África. Trípoli, Tunes, Argel, para o nosso setentrião, são repúblicas de bandidos. Os hotentotes, para o sul, vivem ainda como se afirma que era a vida nas primeiras idades do mundo, livres, iguais entre si, sem amos, sem súditos, sem dinheiro e quase sem necessidades. A carne dos seus carneiros alimenta-os, a pele veste-os, cabanas de madeira e de terra constituem o seu abrigo; são os mais malcheirosos de todos os homens, mas não o sentem; vivem e morrem mais docemente que nós. Restam na nossa Europa oito repúblicas sem monarca: Veneza, Holanda, Suíça, Gênova, Lucarno, Ragusa, Genebra e São Marinho. Podemos, além disso, ver na Polônia, na Suécia e na Inglaterra verdadeiras repúblicas sob um rei, embora a Polônia seja a única que adota esse nome. Podemos inquirir agora sobre o que vale mais: que a nossa pátria seja um Estado monárquico ou seja um Estado republicano? Há quatro mil anos que esta questão é debatida. Pedi a solução aos ricos, e todos optarão pela aristocracia; interrogai o povo, este quererá a democracia, e só os reis darão preferência à realeza. Como é, então, possível que quase toda a terra seja governada por monarcas? Perguntai-o aos ratos que propuseram que se pendurasse um guizo no pescoço do gato. Mas, na verdade, a razão verdadeira é que, como se tem dito, os homens raramente são dignos de se governarem a si próprios. É triste que, muitas vezes, para ser bom patriota se seja inimigo do resto dos homens. O velho Catão, esse cidadão exemplar, dizia sempre ao opinar no Senado: "Tal é o meu parecer, e que Cartago seja arrasada". Ser bom patriota é desejar que a sua cidade enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas armas. É claro que nenhum país pode ganhar sem que outro perca, nem pode vencer sem produzir desgraçados. Tal é a condição humana: desejar a grandeza do seu país é desejar a desgraça dos vizinhos. O que desejasse que a sua pátria jamais fosse maior ou menor, mais rica ou mais pobre, seria o cidadão do universo. Pecado Original Aqui reside o pretenso triunfo dos socinianos e dos unitários. Chamam a este fundamento da religião cristã o seu pecado original. É ultrajar Deus, afirmam, é acusá-lo da barbaridade mais absurda, ousar dizer que Deus formou todas as gerações dos homens para atormentá-los em suplícios eternos, sob pretexto de que o seu primeiro pai comeu um fruto num jardim. Esta imputação sacrílega é tanto mais indesculpável entre cristãos quanto é certo que não há uma só palavra tocante a este ponto, quer no Pentateuco, quer nos Profetas, quer nos Evangelhos, apócrifos ou canônicos, quer entre os escritores que são designados por primeiros Padres da Igreja. No Gênesis, nem sequer se refere que Deus tenha condenado à morte Adão por haver engolido uma maçã. Deus diz-lhe: "No dia em que a comeres certamente morrerás"; todavia, neste mesmo Gênesis faz-se viver Adão mais novecentos e trinta anos depois desse almoço criminoso. Os animais, as plantas que não tinham comido daquele fruto, morreram no tempo prescrito pela natureza. O homem nasce para morrer, como todo o resto. Enfim, a punição de Adão não era de maneira alguma contemplada pela lei judaica. Adão não era mais judeu que persa ou caldeu. Os primeiros capítulos do Gênesis (qualquer que seja a época em que foram compostos) sempre apareceram aos olhos de todos os sábios judeus como uma alegoria e até como uma fábula perigosa, porquanto se proibia a sua leitura antes da idade de vinte e cinco anos. Numa palavra, os judeus conheceram tão pouco o pecado original como as cerimônias chinesas; embora os teólogos encontrem tudo o que querem nas Escrituras, ou totidem verbis, ou totidem litteris, podemos estar certos que nenhum teólogo razoável ai encontrará esse mistério surpreendente. Confessemos que Santo Agostinho foi o primeiro a conferir crédito a esta estranha ideia, digna da cabeça esquentada e romanesca de um africano, debochado e arrependido, maniqueu e cristão, indulgente e intolerante, que passou a vida a contradizer-se. "Que horror", clamam os unitários rígidos, "é caluniar-se o autor da natureza até o ponto de lhe imputarem milagres contínuos para danar eternamente homens que fez nascer para uma tão curta vida! Ou Deus criou as almas desde toda a eternidade e, neste sistema, elas são infinitamente mais antigas que o pecado de Adão, não tendo qualquer relação com ele; ou as almas são formadas em todos os instantes que um homem se deita com uma mulher e, nesse caso, Deus estaria continuamente à espreita de todos os encontros que ocorrem no universo para criar espíritos que tornará eternamente infelizes; ou o próprio Deus é a alma de todos os homens e, neste sistema, dana-se a si mesmo." Destas três superstições, qual a mais horrível e a mais louca? Não há quarta; pois a opinião de que Deus espera seis semanas para criar uma alma danada em um feto reporta-se àquela que o faz criar a alma no momento da cópula: que importam seis semanas a mais ou menos? Expus o ponto de vista dos unitários e os homens chegaram a tal grau de superstição que tremi ao expô-lo. (Este artigo é do falecido senhor Boulanger) Perseguição Não chamarei perseguidor a Diocleciano, que durante dezoito anos foi o protetor dos cristãos; e se, nos últimos tempos do seu império, não os salvou dos ressentimentos de Galerius, nisso se comportou como apenas príncipe seduzido e empurrado pela intriga para além do seu caráter, como tantos outros. Menos ainda darei o nome de perseguidor aos Trajanos, aos Antoninos, pois ficaria convencido de que proferia uma blasfêmia. Que é então o perseguidor? É aquele cujo orgulho ferido e o fanatismo em furor irritam o príncipe ou os magistrados contra homens inocentes, cujo único crime consiste em não serem da sua opinião. "Imprudente, tu adoras um Deus, pregas e praticas a virtude; serviste os homens e consolaste-os; deste amparo à órfã, socorreste o pobre, transformaste o deserto onde alguns escravos arrastavam uma vida miserável em campos férteis, povoados por famílias felizes; descobri, porém, que me desprezas, que nunca leste o meu livro de controvérsias; sabes que sou um malandro, que falsifiquei a assinatura de G..., que roubei...; como poderias divulgar tudo isto, preciso tomar medidas preventivas. Irei pois à casa do confessor do primeiro-ministro ou à casa do magistrado; demonstrarei, inclinando o pescoço ou torcendo a boca, que tens uma opinião errônea acerca das celas onde foram encerrados os Setenta; que chegas ao cúmulo de falar, desde a dez anos, de maneira pouco respeitosa acerca do cão de Tobias, o qual tu sustentavas ser um cão de água, enquanto eu provava tratar-se de um galgo; denunciar-te-ei como inimigo de Deus e dos homens." Tal é a linguagem do perseguidor, e, embora não sejam precisamente estas as palavras que saem da sua boca, estão-lhe gravadas no coração com o buril do fanatismo, temperado no fel da inveja. Foi assim que o jesuíta Le Tellier ousou perseguir o cardeal de Noailles e jurou perseguir Bayle. Quando os protestantes começaram a ser perseguidos em França; não foram Francisco I, nem Henrique II, nem Francisco II que espiaram esses infortunados, se armaram contra eles de um furor premeditado e os entregaram às chamas, para sobre eles exercerem as suas vinganças. Francisco I estava muito ocupado com a duquesa de Etampes, Henrique II com a sua velha Diana e Francisco II era demasiado criança. Por quem começou a vingança? Por padres ciumentos que armaram os preconceitos dos magistrados e a política dos ministros. Se os reis não houvessem sido ludibriados, se houvessem previsto que a perseguição produziria cinquenta anos de guerras civis e que metade da nação seria exterminada pela outra metade, teriam extinto com as suas lágrimas as primeiras fogueiras que deixaram acender. Ó Deus misericordioso! Se algum homem pode assemelhar-se a esse ser malfazejo que nos pintam ocupado sem cessar na destruição das tuas obras, não será tal homem o perseguidor? Pedro Em italiano, Piero ou Pietro, em espanhol, Pedro, em latim, Petrus; em hebreu, Cefa. Por que motivo obtiveram os sucessores de Pedro tanto poder no Ocidente e nenhum no Oriente? É o mesmo que perguntar por que razão os bispos de Wurtzburgo e Salzburgo se atribuíram direitos realengos em períodos de anarquia, ao passo que os prelados gregos permaneceram sempre súditos. O tempo, a ocasião, a ambição de uns e a fraqueza de outros tudo fizeram e farão neste mundo. A anarquia juntou-se a opinião e a opinião é a rainha dos homens. Não que, com efeito, tenham uma opinião bem determinada, mas as palavras substituem-na. Vem relatado nos Evangelhos que Jesus disse a Pedro: "Eu te darei as chaves do reino dos céus". Os partidários do bispo de Roma sustentaram, por volta do século XI, que quem dá o mais, dá o menos; que os céus envolvem a terra e que, detendo Pedro as chaves do continente, detinha também as chaves do conteúdo. Se entendermos por céus todas as estrelas e todos os planetas, é evidente, segundo Tomásio, que as chaves oferecidas a Simão Barjona, cognominado Pedro, eram uma verdadeira gazua. Se entendermos por céus as nuvens, a atmosfera, o éter, o espaço em que rodam os planetas, não há serralheiros que, segundo Meursius, possam fabricar uma chave que sirva para todas as portas. Na Palestina, as chaves eram cavilhas de pau ligadas a uma correia. Jesus disse a Barjona: "O que houveres ligado na terra, será ligado no céu". Os teólogos do papa concluíram que os papas tinham recebido o direito de ligarem e desligarem os povos dos juramentos de fidelidade feitos aos seus reis e de disporem a seu belo talante de todos os reinos. Eis o que se chama concluir magnificamente. As com unas, nos Estados-gerais de França em 1302, dizem do requerimento que apresentaram ao rei que "Bonifácio VIII era um b... que supunha que Deus ligava e prendia ao céu o que Bonifácio ligava na terra". Um famoso luterano da Alemanha (Melânchton, parece-me) tinha muita dificuldade em digerir que Jesus houvesse dito a Simão Barjona, Cefa ou Cefas: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha assembleia, a minha. Igreja". O luterano não podia conceber que Deus houvesse usado semelhante jogo de palavras, semelhante agudeza, tão extraordinário, e que o poder do papa se fundasse sobre uma gracinha de mau gosto. Pedro passou por ter sido bispo de Roma, embora se saiba muito bem que nessa época, e durante muito tempo depois, não existiu qualquer bispado particular. A sociedade cristã só assumiu forma perto dos fins do século II. Pode ser que Pedro tivesse feito a viagem a Roma; pode ser mesmo que o tivessem crucificado de cabeça para baixo, embora não fosse esse o costume; mas não temos qualquer prova de tudo isto. Temos uma carta, sob o seu nome, em que diz estar em Babilônia: canonistas judiciosos pretenderam que por Babilônia se devia entender Roma. Assim, suposto que a houvesse datado de Roma, poderíamos concluir que a carta fora escrita em Babilônia. Durante muito tempo, tiraram-se consequências deste quilate e assim foi governado o mundo. Houve um santo homem a quem tinham feito pagar muito caro um benefício em Roma, o que se chama uma simonia; perguntaram-lhe se acreditava que Pedro tivesse estado em Roma, ao que respondeu: "Não vejo que Pedro tenha estado aqui, mas, quanto a Simão, tenho certeza". Quanto à pessoa de Pedro, impõe-se reconhecer que Paulo não foi o único a escandalizar-se com a sua conduta; há quem lhe tenha resistido muitas vezes, cara a cara, tanto a ele como aos seus sucessores. Paulo censurava-lhe asperamente o hábito de comer carnes proibidas, quer dizer, porco, chouriço de sangue (lebres, enguias, "ixion" e grifos); Pedro defendia-se invocando que, na sexta hora, vira o céu abrir-se e uma grande toalha que descia dos quatro cantos do céu, cheia de enguias, quadrúpedes e aves, e que a voz de um anjo gritara: "Matai e comei". Trata-se aparentemente da mesma voz que gritou a tantos pontífices: "Matai tudo, e comei a substância do povo", comenta Wollaston. Casaubon não podia aprovar a maneira como Pedro tratou o simplório Ananias e Safira, sua mulher. Com que direito, interrogou Casaubon, um judeu, escravo dos romanos, ordenava ou consentia que todos aqueles que acreditassem em Jesus vendessem as suas heranças e lhe depusessem aos pés o dinheiro dos preços? Se qualquer anabatista em Londres mandasse depor a seus pés todo o dinheiro dos irmãos, não seria detido como sedutor sedicioso, como um larápio que forçosamente mandariam para Tyburn? Não é horrível fazer morrer Ananias só porque este, depois de vender os seus bens e de ter dado o dinheiro a Pedro, reteve para si e para a mulher alguns escudos, para custear as suas necessidades, sem o declarar? Mal Ananias morre, chega a mulher. Pedro, em vez de adverti-la caridosamente que acaba de provocar a morte do marido com uma apoplexia por haver guardado alguns óbolos e de preveni-la para que ela se acautelasse, fá-la cair na armadilha. Pergunta-lhe se o marido deu todo o seu dinheiro aos santos. A pobre mulher responde que sim e morre imediatamente. Isto é duro. Corinzius pergunta por que razão Pedro, que matava deste modo todos que lhe davam esmolas, não ia antes matar os doutores que tinham feito morrer Jesus Cristo e que o chicotearam a ele mesmo mais de uma vez. Ó Pedro! Provocas a morte de dois cristãos que te deram esmola e deixas viver os que crucificaram o teu Deus! Aparentemente, Coringius não vivia em país de inquisição quando formulava estas perguntas audaciosas. Erasmo observava, a propósito de Pedro, algo de muito singular; é que o chefe da religião cristã começou o seu apostolado por renegar Jesus Cristo, ao passo que o primeiro pontífice dos judeus começara o seu ministério por construir um bezerro de ouro e adorá-lo. Como quer que seja, Pedro é-nos pintado como um pobre que catequizava os pobres. Assemelhava-se a esses fundadores de ordens que viviam na indigência e cujos sucessores se tornaram grandes senhores. O papa, sucessor de Pedro, ora ganhou, ora perdeu; restam-lhe, todavia, além dos súditos imediatos, cerca de cinquenta milhões de homens sobre a terra, submetidos em muitos pontos às suas leis. Atribuirmo-nos um amo que está a trezentas ou quatrocentas léguas de nossa casa; esperarmos, para pensar, que esse homem aparentou pensar; não ousarmos julgar em última instância um processo entre alguns dos nossos concidadãos senão por intermédio de comissários nomeados por esse estrangeiro; não ousarmos entrar na posse dos campos e das vinhas que obtivemos de nosso próprio rei, sem pagarmos uma soma considerável a esse amo estrangeiro; violarmos as leis do nosso país que proíbem o casamento com sobrinha e desposá-la legitimamente contra o pagamento a esse senhor estrangeiro de uma soma ainda mais considerável; não ousarmos cultivar os nossos campos no dia em que esse estrangeiro quer que seja celebrada a memória de um desconhecido que ele pôs no céu da sua autoridade privada: tal é em parte o que significa admitirmos um papa; tais são as liberdades da Igreja Galicana. Há povos que levam mais longe ainda a submissão. Vimos nos nossos dias um soberano pedir ao papa permissão para julgar pelo seu tribunal real alguns monges acusados de parricídio, não conseguir obter essa permissão e não ousar julgá-los. Sabe-se bem que outrora os direitos dos papas iam mais longe, superando em muito os dos deuses da Antiguidade, pois estes passavam por dispor dos impérios, ao passo que os papas dispunham deles efetivamente. Sturbinus diz que se pode perdoar àqueles que duvidam da divindade e infalibilidade do papa, quando se fazem as seguintes reflexões: Quarenta cismas profanaram a cadeira de São Pedro e vinte e sete ensanguentaram-na; Estevão VII, filho de um padre, desenterrou o corpo de Formoso, seu predecessor, e mandou cortar a cabeça ao cadáver; Sérgio III, culpado de assassinatos, teve um filho de Marozia, que herdou o papado; João X, amante de Teodora, foi estrangulado no leito desta; João XI, filho de Sérgio III, só se tornou conhecido como crápula; João XII foi assassinado em casa da amante; Benedito IX comprou e revendeu o pontificado; Gregório VII foi o autor de quinhentos anos de guerras civis, sustentadas pelos seus sucessores; Enfim, entre tantos papas ambiciosos, sanguinários e debochados, houve um, Alexandre VI, cujo nome não se pronuncia senão com o mesmo horror que envolve os dos Neros e Calígulas. Afirma-se que é prova da divindade do seu caráter que o papado tenha subsistido, apesar de tantos crimes; logo, se os califas tivessem uma conduta ainda mais atroz, mais divinos seriam. É assim que raciocina Dermius, a quem replicaram os jesuítas. Política A política do homem consiste inicialmente em tentar igualar-se aos animais, a quem a natureza deu alimentação, vestuário e habitação. Os começos são longos e difíceis. Como conseguir o bem-estar e abrigar-se do mal? O homem resume-se nisso. O mal está em toda parte. Os quatro elementos conspiram para formá-lo. A esterilidade de um quarto do globo, as moléstias, a multidão de animais inimigos obrigam-nos a trabalhar incessantemente para afastar o mal. Nenhum homem sozinho pode garantir-se contra o mal e promover seu próprio bem. Precisa de auxílio. A sociedade é, pois, tão antiga quanto o mundo, podendo ser muito numerosa ou muito rara. As revoluções do globo destruíram frequentemente raças inteiras de homens e de animais em vários países, e as multiplicaram em outros. Para multiplicar uma espécie, é preciso um clima e um terreno favoráveis e, apesar de tais vantagens, ainda é possível que os homens sejam obrigados a andar nus, a suportar a fome, a carecer de tudo e a perecer na miséria. Os homens são como os castores e as abelhas, ou como o bicho-da-seda: não têm um instinto capaz de provê-los do que precisam. Para cada cem machos, dificilmente encontra-se um dotado de gênio. Para cada quinhentas mulheres, dificilmente uma. Somente com gênio podem-se inventar todas as artes que promovem em longo prazo certo bem-estar, único objetivo de toda política. Para tentar essas artes é preciso auxílio, mãos que vos ajudem, mentes bastante abertas para vos compreender e bastante dóceis para vos obedecer. Antes de encontrardes e reunirdes tudo isso, escoam-se milhares de séculos de ignorância e de barbárie, milhares de tentativas abortadas. Por fim, uma arte se esboça, e são necessários milhares de séculos para aperfeiçoá-la. Política exterior Assim que uma nação descobre a metalurgia, é seguro que vencerá suas vizinhas e que as escravizará. Tendes flechas e sabres; nascestes num clima que vos fez robustos. Somos fracos, temos apenas porretes e pedras. Podeis matar-nos, mas se nos deixardes viver será para cultivarmos vossos campos, para construirmos vossas casas. Se tivermos voz, cantaremos algumas árias grosseiras quando vos entediardes, ou então sopraremos em tubos, para obter de vós roupa e pão. Nossas mulheres e filhas são belas, e certamente ireis tomá-las. Monsenhor, vosso filho, aproveita essa política estabeleci da e acrescenta novas descobertas à arte nascente. Seus servidores cortam os testículos de meus filhos, honrando-os, depois, com a guarda de suas esposas e amantes. Assim foi e assim é a política na Ásia: a grande arte de usar os homens para seu próprio bem-estar. Tendo algumas hordas servido dessa maneira a outras, os vitoriosos combatem pela partilha dos despojos. Toda pequena nação alimenta e assalaria soldados. Para encorajá-los e contê-los, cada uma possui seus deuses, seus oráculos, suas predições. Todas alimentam e assalariam adivinhos e sacrificadores açougueiros. Os adivinhos começam adivinhando para os chefes da nação, depois adivinham para si próprios e partilham o governo da nação. Por fim, o mais forte e mais hábil subjuga os outros, depois de séculos de carniçarias que arrepiam e de patifarias que fazem rir. É o complemento da política. Enquanto tais cenas de banditismo e fraudes ocorrem numa parte do globo, outras hordas, retiradas em cavernas nas montanhas ou em cantões cercados de pântanos inacessíveis, ou em alguns recantos habitáveis no meio de desertos de areia ou de ilhas, defendem-se contra os tiranos do continente. Por fim, quando todos os homens dispõem mais ou menos das mesmas armas, o sangue corre de uma ponta à outra do mundo. Não se pode matar sempre. Faz-se a paz com o vizinho até que se acredite estar bastante forte para recomeçar. Os que sabem escrever redigem tratados de paz. Os chefes de cada povo, para melhor enganar seus inimigos, testemunham pelos deuses que eles próprios fizeram. Inventam-se os juramentos. Um promete por Samonocodão, outro, em nome de Júpiter, viver sempre em boa harmonia, e na primeira ocasião degolam em nome de Júpiter e de Samonocodão. Nos tempos mais refinados, o leão de Esopo faz um tratado com três animais seus vizinhos. Trata-se de dividir uma presa em quatro partes iguais. O leão, por boas razões que deduzirá quando chegar a hora e a vez, apanha três partes só para si, e ameaça quem ousar tocar na quarta. É o que se chama de sublime em política. Política interna Trata-se de possuir em vosso próprio país o maior poder, as maiores honras e os maiores prazeres que forem possíveis. Para consegui-lo é preciso muito dinheiro. É muito difícil alcançar tais objetivos numa democracia porque nela cada cidadão é vosso rival. Uma democracia só pode subsistir num país pequeno. Podereis enriquecer-vos quando quiserdes por vosso comércio secreto, ou pelo de vosso avô; vossa fortuna suscitará ciumentos e poucos amigos. Uma casa rica não conseguirá governar muito tempo numa democracia. Numa aristocracia podem-se obter mais facilmente honras, prazeres, poder e dinheiro, mas é preciso grande discrição. Se se abusar muito, corre-se o risco de uma revolução. Numa democracia todos os cidadãos são iguais. Atualmente esse tipo de governo é raro e fraco, embora natural e sensato. Na aristocracia a desigualdade e a superioridade fazem-se sentir. Contudo, estará mais segura de seu bem-estar se for pouco arrogante. Resta a monarquia. Nela todos os homens são feitos para um só, que acumula todas as honras com que quiser enfeitar-se, goza todos os prazeres que quiser desfrutar, exerce um poder absoluto. Para ter todas essas vantagens precisa possuir muito dinheiro, caso-contrário será infeliz no interior e no exterior, perderá logo o poder, os prazeres, as honras e, talvez, a vida. Enquanto tiver dinheiro, não frui sozinho todas as regalias: também seus parentes e principais servidores fruem. Uma multidão de empregados trabalha o ano inteiro para eles, na vã esperança de desfrutar um dia em suas choças o mesmo repouso que seus sultões ou que seus paxás desfrutam em seus serralhos. Mas eis o que acontece. Um grande e gordo cultivador possuía outrora um vasto terreno de campos, prados, vinhedos, pomares e florestas. Cem empregados cultivavam para ele, enquanto jantava com sua família, bebia e dormia. Seus principais domésticos, que o roubavam, jantavam depois dele e comiam quase tudo. Os serviçais vinham após e comiam muito mal. Murmuraram, lamentaram-se, impacientaram-se e, por fim, comeram o jantar do dono e o expulsaram de sua casa. O dono disse que aqueles patifes eram filhos rebeldes que combatiam seu pai. Os serviçais disseram que haviam seguido a lei sagrada da natureza que fora violada pelo outro. Relatou-se o sucedido a um adivinho que passava por homem inspirado. O santo homem tomou a herdade para si, deixou os domésticos e o antigo dono morrerem de fome, até que por sua vez também foi expulso. É a política interna. Já se viu coisa assim mais de uma vez, e alguns dos efeitos dessa política ainda subsistem fortemente. Pode-se esperar que daqui a dez ou doze séculos, quando os homens forem mais esclarecidos, os possuidores das terras, já mais políticos, tratarão melhor seus empregados e não se deixarão subjugar por adivinhos e feiticeiros. Preconceitos O preconceito é uma opinião desprovida de julgamento. Assim, em toda terra, se incutem às crianças as opiniões que se quiser, antes de elas poderem julgar. Há preconceitos universais, necessários, que constituem a própria virtude. Em todos os países se ensinam as crianças a reconhecerem um Deus remunerador e vingador; a respeitarem e amarem pai e mãe; a olharem o furto como um crime, a mentira interesseira como um vício, antes de poderem adivinhar o que é um crime e o que é um vício. Há, pois, preconceitos muito bons: são os que o julgamento ratifica quando se raciocina. O sentimento não é um mero preconceito mas algo de mais forte. Uma mãe não ama o filho porque lhe disseram que é preciso amá-lo: acarinha-o, felizmente, mal grado seu. Não é por preconceito que acorremos em socorro de uma criança desconhecida prestes a tombar num precipício ou a ser devorada por um animal. Todavia, é por preconceito que respeitareis um homem que envergue certa indumentária; caminhe gravemente e fale da mesma maneira. Os vossos pais disseram-vos que deveis inclinar-vos diante desse homem: vós o respeitais antes de saberdes se merece o vosso respeito; cresceis na idade e em conhecimentos: acabareis por vos aperceber que esse homem é um charlatão inchado de vaidade, interesse e artifício; desprezais o que havíeis reverenciado e o preconceito cede ao julgamento. Haveis acreditado por preconceito nas fábulas com que embalaram a vossa infância: disseram-vos que os titãs guerrearam os deuses e que Vênus se enamorou de Adônis; aos doze anos, tomais estas fábulas por verdades, aos vinte, vereis nelas alegorias engenhosas. Examinemos em poucas palavras as diferentes espécies de preconceitos, para pormos ordem neste nosso assunto. Seremos talvez como aqueles que, no tempo do sistema de Lau, se aperceberam de que tinham calculado riquezas imaginárias. Preconceitos dos sentidos Não é coisa divertida que os nossos olhos nos enganem sempre, mesmo quando vemos muito bem, e que, pelo contrário, não nos enganem os ouvidos? Quando a vossa orelha, bem conformada, ouve: "Sois bela, amo-vos", é seguro que não vos disseram: "Odeio-vos, sois feia". Mas vedes um espelho liso: está demonstrado que vos enganais, que a superfície é muito irregular. Vedes o Sol, com cerca de dois pés de diâmetro; está demonstrado que é um milhão de vezes mais volumoso que a Terra. Parece que Deus pôs a verdade nas vossas orelhas e o erro nos olhos; mas estudai óptica e vereis que Deus não vos enganou e que é impossível que os objetos vos pareçam diferentes de como são vistos, no estado presente das coisas. Preconceitos físicos O Sol move-se, a Lua também, a Terra está imóvel: eis preconceitos físicos naturais. Mas que os camarões sejam bons para o sangue porque, uma vez cozidos, ficam vermelhos; que as enguias curem a paralisia porque se agitam; que a lua interfira nas nossas doenças porque um dia se observou que um doente teve um agravamento de febre durante o quarto minguante - tais ideias, e mil outras mais, foram erros de antigos charlatães que julgaram sem raciocinar e que, enganando-se, enganaram os outros. Preconceitos históricos A maior parte das histórias foi acreditada sem exame e semelhante crença não passa de um preconceito. Fabius Pictor conta que, muitos séculos antes dele, uma vestal da cidade de Elba que ia buscar água para a sua bilha foi violada e deu à luz Rômulo e Remo, que estes foram amamentados por uma loba, etc. O povo romano acreditou nesta fábula; não verificou se nesse tempo haveria vestais no Lácio, se era verossímil que a filha de um rei saísse do seu convento com a bilha, se era provável que uma loba aleitasse duas crianças em vez de as comer. O preconceito estabeleceu-se. Um monge escreve que Clóvis, em grande perigo na batalha de Tolbiac, fez o voto de se tornar cristão se escapasse; porém, é natural que alguém se dirija a um Deus estrangeiro em tal ocasião? Não é em semelhantes circunstâncias que a religião em que se nasceu atua mais poderosamente? Qual o cristão que, numa batalha contra os turcos, não se encomendaria à Santa Virgem de preferência a encomendar-se a Maomé? Acrescenta-se que um pombo trouxe a santa ampola no bico para ungir Clóvis e que um anjo trouxe a auriflama para guiá-lo. O preconceito aceita todas as historietas deste gênero. Os que conhecem a natureza humana sabem muito bem que o usurpador Clóvis e o usurpador Rolão ou Rol se fizeram cristãos para mais seguramente governarem cristãos, tal como os usurpadores turcos se fizeram muçulmanos para mais seguramente governarem muçulmanos. Preconceitos religiosos Se a vossa ama vos contar que Ceres preside às sementeiras ou que Vichnu e Xaca se tornaram homens muitas vezes, ou que Samonocodão veio cortar uma floresta, ou que Odin vos aguarda no seu salão lá para as bandas da Jutlândia, ou que Maomé ou algum outro viajaram no céu, e se o vosso preceptor vier em seguida mergulhar no vosso cérebro o que a ama aí gravou, estais prontos para o resto da vida. Que o vosso julgamento queira elevar-se contra tais preconceitos, logo os vizinhos, e principalmente as vizinhas, protestarão ante a impiedade e vos aterrorizarão; o vosso derviche, receoso de ver diminuir os seus rendimentos, acusar-vos-á junto do cadi; se puder, mandará que sejais empalado, pois quer comandar imbecis e supõe que os imbecis obedecem melhor que os outros. E isto durará até os vossos vizinhos, o derviche e o cadi, começarem a compreender que a imbecilidade não serve para nada e que a intolerância é abominável. Profetas O profeta Jurieu foi assobiado, os profetas de Cévennes foram enforcados ou postos na roda, os profetas que do Languedoc e do Delfinado vieram até Londres foram condenados a diversos suplícios, o profeta Savonarola foi assado em Florença, o profeta João Batizador ou Batista teve o pescoço cortado. Pretende-se que Zacarias foi assassinado; felizmente isto não está provado. O profeta Jeddo ou Addo, enviado a Betel sob condição de não comer nem beber, comeu infelizmente um bocado de pão e foi por seu turno comido por um leão; os seus ossos acabaram por ser encontrados na estrada, entre esse leão e o seu burro. Jonas foi engolido por um peixe; verdade se diga que só permaneceu na barriga do peixe três dias e três noites; mas sempre são setenta e duas horas muito pouco à vontade. Habacuc foi transportado pelos ares, preso pelos cabelos, até Babilônia. Não é grande desgraça, valha a verdade; mas sempre é um transporte muito incômodo. Deve sofrer-se muito quando se é levado suspenso pelos cabelos, no espaço de trezentas milhas. Por mim, teria preferido um par de asas, a jumenta Borac ou o hipogrifo. Miqueu, filho de Jemilla, viu o Senhor sentado no seu trono, com o exército do céu à direita e à esquerda, e ouviu o Senhor pedir alguém que fosse enganar o Rei Achab; como o diabo se apresentou ao Senhor, e se encarregou da comissão, Miqueu foi, por incumbência do Senhor, dar parte a Achab desta aventura celeste. É verdade que, como recompensa, apenas recebeu uma enorme bofetada pela mão do profeta Sékédia; é verdade que foi metido no calabouço, embora só por alguns dias; mas, enfim, sempre é desagradável para um homem inspirado receber bofetões e ser atirado para um buraco fedorento. Supõe-se que o Rei Amasias mandou arrancar os dentes ao profeta Amós para impedi-lo de tagarelar; mas é preciso pronunciar distintamente uma profecia, e a um profeta desdentado não o escutam com o respeito devido. Baruch sofreu bastantes perseguições. Ezequiel foi lapidado pelos seus companheiros de escravidão. Não se sabe ao certo se Jeremias foi lapidado ou se foi serrado em dois. Quanto a Isaías, passa por seguro que foi serrado por ordem de Manassés, um reizinho da Judéia. Convenhamos que seja mau oficio o de profeta. Por um único, como Elias, que vai passear de planeta em planeta numa bela carruagem de luz, puxada por quatro cavalos brancos, há cem que vão a pé e são obrigados a mendigar o jantar de porta em porta. Assemelham-se muito a Homero, de quem se diz que foi obrigado a pedir esmola nas sete cidades que depois disputaram a honra de tê-lo visto nascer. Os seus admiradores atribuíram-lhe uma infinidade de alegorias em que nunca pensara. Concede-se frequentemente a mesma honra aos profetas. Não contesto que fossem pessoas instruídas sobre o futuro. Basta para o efeito dar à alma certo grau de exaltação, como muito bem pensou um bravo filósofo ou louco dos nossos dias, que queria abrir um buraco até aos antípodas e untar os doentes com pez resinoso. Os judeus exaltavam tão bem a alma dos profetas, que estes viram distintamente todas as coisas futuras: mas é difícil adivinhar ao certo se por Jerusalém os profetas entendem sempre a vida celeste; se Babilônia significa Londres ou Paris; se, quando falam de um grande jantar, devemos explicá-lo como um jejum; se vinho tinto significa sangue; se um manto vermelho significa a fé e um manto branco a caridade. A inteligência dos profetas é o esforço do espírito humano. Por isso, nada mais direi a este respeito. Propriedade "Liberty and Property" é o grito inglês. Vale mais do que "Saint George et mon droit, Saint Denis et mon joie": é o grito da natureza. Da Suíça à China, os camponeses possuem terras próprias. Somente o direito de conquista pôde despojar os homens de um direito tão natural. Tanto na guerra como na paz, o lucro de uma nação é do soberano, do magistrado e do povo. A posse de terras permitida aos camponeses é útil igualmente ao trono e aos súditos em todos os tempos? Sê-lo-á para o trono se puder produzir uma renda maior e mais soldados. É preciso, pois, ver se o comércio e a população aumentarão. É certo que o possuidor de um terreno cultivará muito melhor sua herança do que a de outro. O espírito de propriedade duplica a força do homem. Trabalha-se para si e para sua família com mais vigor e prazer do que para um senhor. O escravo que está sob o jugo de outro inclina-se pouco ao casamento, temendo gerar escravos como ele próprio. Sua habilidade está sufocada, sua alma embrutecida. Suas forças não exibem toda a elasticidade de que são capazes. O possuidor, pelo contrário, deseja uma mulher que partilhe de sua felicidade e filhos que o ajudem no trabalho. Sua esposa e seus filhos o enriquecem. Um terreno pode tornar-se dez vezes mais fértil do que antes nas mãos de uma família laboriosa. O comércio geral aumentará. O tesouro do príncipe lucrará. O campo fornecerá mais soldados. Portanto, a vantagem está com o príncipe. A Polônia seria três vezes mais rica e povoada se o camponês não fosse escravo. Também é vantagem para os nobres. Se um deles possuir mil jeiras de terra cultivadas por seus servos, cinco mil jeiras fornecerão uma renda muito fraca, frequentemente absorvida em reparos e reduzida a nada pela intempérie das estações. Que ocorrerá se a terra for mais extensa e o terreno mais ingrato? Será o senhor de uma vasta solidão. Só será rico quando seus vassalos o forem. Sua felicidade depende da deles. Se essa felicidade se estender a ponto de tornar sua terra bastante povoada, chegando a faltar terreno para tanta mão laboriosa, então o excedente dos cultivadores necessários espalha-se pelas cidades, pelos portos marítimos, pelas oficinas dos artistas, pelos exércitos. A população terá produzido esse grande bem e a posse das terras dadas aos cultivadores, sob a dívida que enriquece os nobres, terá produzido essa população. Há outra espécie de propriedade não menos útil - aquela liberada de toda dívida e que paga apenas os tributos gerais impostos pelo soberano para o bem e a manutenção do Estado. Essa propriedade contribuiu para a riqueza da Inglaterra, da França e das cidades livres da Alemanha. Os soberanos que franquearam os terrenos que compunham seus domínios já de início tiraram vantagem porque cobraram caro as franquias. E atualmente retiram um bem ainda maior, sobretudo na Inglaterra e na França, pelo progresso da indústria e do comércio. A Inglaterra deu um grande exemplo no século XVI quando franqueou as terras da Igreja e dos monges. Era uma coisa odiosa, prejudicial a um Estado, ver homens votados por seus institutos à humildade e à pobreza tornando-se senhores das terras mais belas do reino, tratando os homens, seus irmãos, como bestas de carga. A grandeza dessa minoria de padres aviltava a natureza humana e suas riquezas particulares empobreciam o resto do reino. O abuso foi destruído e a Inglaterra tornou-se rica. Em todo o resto da Europa, somente quando os servos da Coroa e da Igreja tiveram a propriedade das terras foi possível um florescimento do comércio, das artes e das cidades. Deve-se notar que, se a Igreja perdeu com isso direitos que não lhe pertenciam, a Coroa ganhou a extensão de seus direitos legítimos. Com efeito, a Igreja, cuja primeira instituição é imitar seu legislador humilde e pobre, não foi feita originariamente para engordar com o fruto do trabalho dos homens. E o soberano, que representa o Estado, deve economizar o fruto desses mesmos trabalhos, para o bem do próprio Estado e para o esplendor do trono. Em toda parte onde o povo trabalha para a Igreja, o Estado é pobre; em toda parte onde o povo trabalha para si próprio e para o soberano, o Estado é rico. E, então, o comércio se propaga. A marinha mercante torna-se a escola da marinha militar. Formam-se grandes companhias de comércio. Em tempos difíceis, o soberano encontra recursos antes desconhecidos. Nos Estados austríacos, na França e na Inglaterra vereis o soberano tomar emprestado facilmente de seus súditos cem vezes mais do que poderia arrancar-lhes pela força, quando o povo estagnava na servidão. Todos os camponeses não serão ricos, e não é preciso que o sejam. Carecemos de homens que tenham seus braços e boa vontade. Mas até estes homens, que parecem o rebotalho da sorte, participarão da felicidade dos outros. Serão livres para vender seu trabalho a quem quiser pagá-los melhor. A liberdade será sua propriedade. A esperança certa de um justo salário os sustentará. Com alegria educarão sua família em seus ofícios laboriosos e úteis. E essa classe de homens, tão desprezível aos olhos dos poderosos, constitui o principal celeiro de soldados. Assim, do cetro à foice e ao cajado, tudo se anima, tudo prospera, tudo ganha força nova graças a uma única mola. Depois de termos visto quão vantajoso é para um Estado que os cultivadores sejam proprietários, resta vermos até onde tal concessão pode estender-se. Já ocorreu, em mais de um reino, que o servo franqueado se tenha enriquecido graças à sua engenhosidade e labor, e se tenha colocado no lugar dos antigos senhores empobrecidos pelo luxo. Compra suas terras e toma-lhes o nome. A antiga nobreza é aviltada e a nova só consegue ser invejada e desprezada. Tudo foi confundido. Os povos que aceitaram tais usurpações tornaram-se joguetes nas mãos das nações que souberam evitar esse flagelo. Os erros de um governo podem ser uma lição para os outros. Aproveitam o bem que fez e evitam o mal que cometeu. É tão fácil opor o freio das leis à cupidez e ao orgulho dos novos ricos, fixar a extensão dos terrenos plebeus que podem comprar e proibir-lhes a aquisição das grandes terras senhoriais, (Estas duas últimas leis seriam injustas, mas quem quiser opor-se à grande desigualdade das riquezas e não tiver coragem bastante nem uma política bem esclarecida capaz de abolir absolutamente as substituições e os direitos de primogenitura poderia pelo menos restringir esse privilégio aos feudos possuídos pela nobreza antiga ou titulada. Pelo menos seria agir consequentemente, é verdade que de acordo com um princípio viciado, que é o de favorecer as distinções entre as posições sociais (états). Nota do Autor). de sorte que nenhum governo poderá arrepender-se por ter franqueado a servidão e por ter enriquecido a indigência. Os exemplos das outras nações advertem, tanto assim, que os povos que se policiam por último ultrapassam frequentemente os mestres de quem receberam as lições. Q Quaresma Perguntas sobre a quaresma As primeiras pessoas que se lembraram de fazer jejum adotaram tal regime a conselho do médico por sofrerem de más digestões? A falta de apetite que sentimos quando estamos tristes teria sido a primitiva origem dos dias de jejum prescritos pelas religiões tristes? Os judeus copiaram o costume de jejuar que tinham os egípcios, de quem os judeus imitaram todos os ritos, inclusivamente a flagelação e o bode expiatório. Por que é que Jesus jejuou quarenta dias no deserto, aonde foi guiado pelo diabo, pelo Knathbull? Escreve São Mateus que depois desta quaresma Jesus teve fome; não teve, então, fome durante a quaresma? Por que é que durante os dias de abstinência a Igreja romana considera um crime comer animais terrestres e uma boa ação devorar à mesa linguados e salmões? O papista ricaço que tiver, à sua mesa, uma mesa regalada e farta de condimentados quinhentos francos de peixe será salvo; e um pobre pelintra, a morrer de fome, que tiver engolido um cruzado de carne de porco salgada e fresca incorre em pecado mortal e fica condenado às penas infernais? Por que é que será preciso pedir autorização ao bispo para comer ovos? Se um rei ordenasse ao seu povo que este nunca comesse ovos, não pareceria o mais ridículo e odioso dos tiranos? Que estranha, aberrativa aversão é essa dos bispos pelas omeletas? Pode-se lá crer que entre os papistas tivesse havido tribunais tão imbecis, tão covardes, tão bárbaros, para condenarem à morte pobres cidadãos que outros crimes não tinham cometido do que comerem carne de cavalo durante a quaresma? O caso é que é a pura verdade: aqui tenho à minha frente uma sentença destas. O que ainda é mais estranho é que os juízes que pronunciaram tal sentença se julgavam superiores aos iroqueses. Padres idiotas e cruéis! A quem ordenais guardar jejum pela quaresma? É aos ricos? Eles nunca o respeitam. É então aos pobres? Coitados, fazem quaresma e jejum todo o ano. O infeliz lavrador quase que já nunca come carne e não tem dinheiro para comprar peixe. Doidos, doidos varridos é o que sois, e quando emendais vossas leis absurdas? R Religião PRIMEIRA QUESTÃO O bispo de Gloucester, Warburton, autor de uma das obras mais eruditas que alguma vez se fizeram exprime-se deste modo, na página 8, tomo I: "Uma religião, uma sociedade que não esteja fundada sobre a crença em outra vida, deve ser sustentada por uma providência extraordinária. O judaísmo não está fundado sobre a crença em outra vida; logo, o judaísmo foi sustentado por uma providência extraordinária". Muitos teólogos levantaram-se contra ele, c. como todos os argumentos são retorquíveis, retorquiram ao seu; disseram-lhe: "Todas as religiões que não estiverem fundadas sobre o dogma da imortalidade da alma e sobre as penas e recompensas eternas são necessariamente falsas; ora, o judaísmo não conheceu este dogma; logo, o judaísmo, longe de haver sido sustentado pela Providência, era, segundo os vossos princípios, uma religião falsa e bárbara que ofendia a Providência". Teve o bispo alguns outros adversários a sustentarem que a imortalidade da alma era conhecida entre os judeus, mesmo na época de Moisés; provou-lhes, contudo, com toda a evidência, que nem o Decálogo, nem o Levítico, nem o Deuteronômio continham uma só palavra acerca de semelhante crença, e que é ridículo querer-se torcer e falsear algumas passagens dos outros livros para se extrair uma verdade que não está anunciada no livro da lei. O senhor bispo, tendo produzido quatro volumes para demonstrar que a lei judaica não propunha penas nem recompensas após a morte, nunca conseguiu responder aos seus adversários de maneira satisfatória. Diziam-lhe eles: "Ou bem que Moisés conhecia esse dogma, e nesse caso enganou os judeus, não o manifestando; ou bem que o ignorava, e nesse caso não sabia o bastante para fundar uma boa religião. Com efeito, se essa religião fosse boa, por que razão teria sido abolida? Uma religião verdadeira deve subsistir em todos os tempos e em todos os lugares; deve ser como a luz do sol, que ilumina todos os povos e todas as gerações". Este prelado, não obstante o seu muito esclarecimento, experimentou certas dificuldades para se tirar de todos estes embaraços; mas qual sistema se mostra isento deles? SEGUNDA QUESTÃO Outro sábio, muito mais filósofo, que é um dos metafísicos mais profundos dos nossos dias, dá fortes razões para provar que o politeísmo foi a primeira religião dos homens e que se começou pela crença em numerosos deuses antes que a razão fosse suficientemente esclarecida para reconhecer apenas o único Ser Supremo. Ouso acreditar, pelo contrário, que se começou por reconhecer um só Deus, para, em seguida, a fraqueza humana haver adotado vários; e eis como concebo as coisas. É indubitável que houve pequenos burgos antes de serem construídas grandes cidades e que todos os homens estiveram divididos em pequenas repúblicas antes de se reunirem em grandes impérios. É natural que os habitantes de uma pequena povoação, aterrados pelo trovão, afligidos pela perda das suas searas, maltratados pela povoação vizinha, em toda a parte sentindo um poder invisível, tenham logo asseverado: "Há algo superior a nós que nos traz o bem e o mal". Parece-me impossível que tenham afirmado: "Há dois poderes". Pois, com efeito, por que vários? Em todos os gêneros se começa pelo simples, vem em seguida o composto e muitas vezes regressa-se ao simples por ação de luzes superiores. Tal é a marcha do espírito humano. Qual foi o ser que primeiramente se invocou? Terá sido o sol? Terá sido a lua? Não creio. Examinemos o que se passa nas crianças; são, pouco mais ou menos, como homens ignorantes. Não são impressionadas nem pela beleza nem pela utilidade do astro que anima a natureza, nem pelo socorro que a lua nos presta, nem pelas variações regulares do seu curso; não pensam nisso, essas coisas lhes escapam. Não se adora, não se invoca, não se deseja apaziguar senão aquilo que se receia; todas as crianças veem o céu com indiferença; mas que o trovão ribombe e logo tremem e se escondem. Os primeiros homens agiram sem dúvida da mesma maneira. Não podem ter existido então mais do que umas espécies de filósofos que reparassem no curso dos astros e os fizessem admirar e adorar, mas os agricultores simples e sem quaisquer luzes não sabiam o bastante para abraçarem erro tão nobre. Nas aldeias, ter-se-ão limitado a comentar: "Há um poder que troveja, que neva sobre nós, que faz morrer os nossos filhos: apaziguemo-lo; mas como apaziguá-lo? Já observamos que, graças a pequenos presentes, pudemos acalmar a cólera de gentes irritadas; vamos pois dar pequenos presentes a esse poder. Temos também de lhe dar um nome. O primeiro que se nos oferece é o de chefe, senhor, amo; este poder será portanto designado por Meu Senhor. Tal foi provavelmente o motivo por que os primeiros egípcios chamaram ao seu deus Knef; os sírios Adonai; os povos vizinhos, Baal ou Bel, ou Melch, ou Moloch; os citas, Papa; tudo palavras que significam senhor, amo”. Daí que se tenha encontrado a América partilhada por uma multidão de pequenos povos, cada qual com o seu deus protetor. Os próprios mexicanos e os peruanos, que constituíram grandes nações, adoravam um deus único; uns adoravam Manko Kapac, os outros, o deus da guerra. Os mexicanos davam ao seu deus guerreiro o nome de Vitzliputzli, tal como os hebreus haviam designado o seu por Sabaoth. Não foi devido a qualquer razão superior e cultivada que todos os povos começaram, assim, a reconhecer uma divindade única. Se tivessem sido filósofos, teriam adorado o deus de toda a natureza e não o deus de uma aldeia; teriam examinado essas relações infinitas de todos os seres que provam a existência de um ser criador e conservador; mas nada examinaram, limitando-se a sentir. Tal é o progresso do nosso fraco entendimento; cada povoação sentia a sua fraqueza e a necessidade de um forte protetor. Imaginava que esse ente tutelar e terrível residia na floresta vizinha, ou sobre a montanha, ou em uma nuvem. Não imaginava mais do que um, porque a povoação não tinha mais do que um chefe na guerra. Imaginava-o corporal porque lhe era impossível representá-lo de outra maneira. Não podia acreditar que a povoação vizinha não tivesse também um deus próprio. Por isso Jefté diz aos habitantes de Moab: "Possuis legitimamente o que o vosso deus Chamos vos fez conquistar; deveis deixar-nos fruir o que nosso deus nos concedeu, mercê das suas vitórias". Este discurso, dirigido por um estrangeiro a outros estrangeiros, é verdadeiramente notável. Os judeus e os moabitas haviam desapossado os naturais da região; uns e outros tinham como único direito o da força, e uns dizem aos outros: "O teu deus protegeu-te na tua usurpação, resigna-te a que o meu deus me proteja na minha". Jeremias e Amós perguntam um ao outro "que razão teve o deus Melchom em apoderar-se do país de Gad". Parece evidente, por estas passagens, que a Antiguidade atribuía a cada país um deus protetor. Encontram-se traços desta teologia em Homero. É natural que com o exaltar-se a imaginação dos homens e havendo o seu espírito adquirido conhecimentos confusos, a breve trecho multiplicassem os deuses e assinalassem protetores aos elementos, aos mares, às florestas, às fontes, aos campos. Quanto mais houverem examinado os astros, mais os terá tocado a admiração. Como não adorar o sol, quando se adora a divindade de um riacho? Dado o primeiro passo, em breve a terra se cobriu de deuses e, por fim, desce-se dos astros aos gatos e às cebolas. No entanto, a razão acaba por se aperfeiçoar; finalmente, o tempo forma filósofos capazes de verificar que nem as cebolas, nem os gatos, nem mesmo os astros organizaram a ordem da natureza. Todos estes filósofos, babilônios, persas, egípcios, citas, gregos e romanos, admitem um Deus supremo, remunerador e vingador. De início, não o dizem aos povos; pois, a quem quer que houvesse dito mal das cebolas e dos gatos ao pé das velhas e dos padres, tê-lo-iam lapidado; quem quer que houvesse reprovado a certos egípcios o hábito de comerem os seus deuses, teria sido comido ele próprio, como conta Juvenal de um egípcio que foi morto e comido cru durante uma disputa. Que fizeram então? Orfeu e outros instituem mistérios, que os iniciados se comprometem, por juramentos execráveis, a não revelar, e o principal de tais mistérios é a adoração de um só Deus. Esta grande verdade penetra em meio mundo; o número de iniciados torna-se imenso. É verdade que a antiga religião continua a subsistir; mas, como não é contrária ao dogma da unidade de Deus, deixam-na subsistir. E porque haveriam de aboli-la? Os romanos reconhecem o Deus optimus maximus, os gregos têm o seu Zeus, o seu deus supremo. Todas as outras divindades não passam de entes intermediários: colocam-se heróis e imperadores no escalão dos deuses, quer dizer, dos bem-aventurados; é, todavia, certo que Cláudio, Otávio, Tibério e Calígula não são olhados como os criadores do céu e da terra. Numa palavra, parece provado que, no tempo de Augusto, todos os que tinham uma religião reconheciam um Deus superior, eterno, e numerosas ordens de deuses secundários, cujo culto foi mais tarde designado por idolatria. As leis dos judeus nunca haviam favorecido a idolatria; porque, conquanto admitissem os malakhim, os anjos, os seres celestes de uma ordem inferior, a sua fé não ordenava que essas divindades secundárias fossem objeto de culto entre eles. Adoravam os anjos, é verdade, quer dizer, prosternavam-se quando os viam, mas, como isso não acontecia muitas vezes, não havia cerimonial nem culto legal estabelecido em seu favor. Os querubins arqueiros não recebiam homenagens. É fato assente que os judeus, pelo menos depois de Alexandre, adoravam abertamente um Deus único tal como a inumerável multidão de iniciados o adorava secretamente em seus mistérios. TERCEIRA QUESTÃO Foi nesse tempo em que o culto de um Deus supremo estava universalmente estabelecido entre todos os sábios, na Ásia, na Europa, na África, que nasceu a religião cristã. O platonismo auxiliou muito a compreensão dos seus dogmas. O Lagos que, em Platão, significava a sabedoria, a razão do Ser Supremo, torna-se entre nós o Verbo e uma segunda pessoa de Deus. Uma metafísica profunda e acima da razão humana, eis o santuário inacessível em que foi envolvida a religião. Não repetiremos aqui como, em sequência, Maria foi declarada a mãe de Deus, como se instituiu a consubstancialidade do Pai e do Filho, e a procissão Pneuma, do órgão divino do divino Lagos, duas naturezas e duas vontades resultantes da hipóstase e, por fim, a manducação superior, a alma alimentada tal como o corpo pelos membros e sangue do Homem-Deus, adorado e comido sob a forma de pão, presente aos olhos, sensível ao gosto e não obstante reduzido a nada. Todos os sistemas foram sublimes. Começou-se, no século segundo, por expulsar os demônios em nome de Jesus; noutros tempos, eram expulsos em nome de Jeová ou Ihaho; pois conta São Mateus que, havendo os inimigos de Jesus dito que este expulsava os demônios em nome do príncipe dos demônios, ele respondeu-lhes: "Se é por Belzebu que eu expulso os demônios, por quem o expulsam vossos filhos?" Não se sabe em que época os judeus reconheceram como príncipe dos demônios Belzebu, que era um deus estrangeiro; mas sabe-se (e é Josefo que no-lo ensina) que havia em Jerusalém exorcizadores encarregados de expulsar os demônios dos corpos dos possessos, quer dizer, dos homens atacados de doenças singulares então atribuídas, em grande parte da terra, a gênios malfazejos. Estes demônios eram, pois, expulsos com a verdadeira pronunciação de Jeová, hoje perdida, e com outras cerimônias, hoje esquecidas. Esse exorcismo, através de Jeová ou de outros nomes de Deus, estava ainda em uso nos primeiros séculos da Igreja. Orígenes, discutindo contra Celso, diz-lhe (n.? 262): "Se, invocando Deus ou jurando por ele, o nomeamos como Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, faremos certas coisas devido a esses nomes, cuja natureza e força são tais que os demônios se submetem àqueles que o pronunciam; mas, se o nomeamos com outro nome, como Deus do mar ruidoso, suplantador, tais nomes são desprovidos de virtude. O nome de Israel traduzido em grego nada poderá operar; mas pronunciai-o em hebreu, com os outros nomes necessários, e operareis a conjugação”. O mesmo Orígenes diz, ao número XIX, estas palavras notáveis: "Há nomes que naturalmente têm virtude, como os utilizados pelos sábios egípcios, pelos magos na Pérsia, pelos brâmanes da Índia. O que se designa por magia não é uma arte vã e quimérica, como pretendem os estoicos e os epicuristas; nem o nome de Sabaoth ou o de Adonai foram feitos por entes criados, antes pertencem a uma teologia misteriosa que se refere ao Criador; eis de onde emana a virtude desses nomes quando são compostos e pronunciados segundo as regras, etc.". Ao falar assim, Orígenes não nos transmite o seu sentimento particular, antes se limita a exprimir uma opinião universal. Todas as religiões então conhecidas admitiam uma espécie de magia; e distinguiam-se a magia celeste e a magia infernal, a necromancia e a teurgia: tudo era prodígio, adivinhação, oráculo. Os persas não negavam os milagres dos egípcios nem os egípcios os dos persas; Deus permitia que os primeiros cristãos fossem persuadidos pelos oráculos das sibilas, e consentia-lhes ainda alguns outros erros pouco importantes que não corrompiam o fundo da religião. Outra coisa assaz notável é que os cristãos dos dois primeiros séculos abominavam os templos, os altares e as imagens. Confessa-o Orígenes, no nº 374. Tudo se modificou com a disciplina, quando a Igreja recebeu uma forma fixa. QUARTA QUESTÃO Logo que uma religião se estabelece legalmente em um Estado, os tribunais tratam de impedir que seja renovada a maior parte das coisas que eram feitas nessa religião antes de ser publicamente recebida. Os fundadores reuniam-se em segredo, não obstante os magistrados; agora só são permitidas as assembleias públicas sob os olhares da lei e todas as associações não conformes com a lei são proibidas. A antiga máxima era que mais valia obedecer a Deus que seguir as leis do Estado. Só se ouvia falar de obsessões e de possessos, o diabo andava desencadeado sobre a terra: hoje, o diabo já não sai de casa. Os prodígios, as predições eram tão necessárias: deixaram de ser admitidos. Um homem que profetizasse calamidades nas praças públicas seria metido no hospital de loucos. Os fundadores recebiam secretamente dinheiro dos fiéis; um homem que cobrasse fundos para sua disposição sem autorização legal ver-se-ia a conta com a justiça. Assim, deixam de ser usados os andaimes que serviram para construir o edifício. QUINTA QUESTÃO Depois da nossa santa religião, sem dúvida a única boa, qual seria a menos má? Não seria a mais simples? Não seria a que ensinasse muita moral e poucos dogmas? A que se empenhasse em tornar os homens justos sem os tornar absurdos? A que não ordenasse a crença em coisas impossíveis, contraditórias, injuriosas para a Divindade e perniciosas para o gênero humano e não se atrevesse a ameaçar com penas eternas quem quer que tivesse um juízo normal? Não seria a que não sustentasse a sua crença com carrascos e não inundasse a terra com sangue por causa de sofismas ininteligíveis? Aquela em que um equívoco, um trocadilho e dois ou três supostos certificados não transformariam um padre tantas vezes incestuoso, homicida e assassino em soberano e Deus? A que não submetesse os reis a esse padre? A que unicamente ensinasse a adoração de um só Deus, a justiça, a tolerância e a humanidade? SEXTA QUESTÃO Foi afirmado que a religião dos gentílicos era absurda em muitos pontos, contraditória, perniciosa; mas não lhe terão imputado mais males do que os que fez e mais tolices do que as que pregou? Pois ao ver Júpiter touro, Serpente, cisne ou outra coisa qualquer, Não acho isso nada belo Nem me admiro que por vezes o comentem. (Prólogo de O Anfitrião) Tudo isto é, sem dúvida, muito importante; mas poderão mostrar-me em toda a Antiguidade um templo dedicado a Leda que dormiu com um cisne ou com um touro? Houve algum sermão pregado em Atenas ou em Roma encorajando as moças a fazerem filhos com os cisnes do seu pátio? As fábulas recolhidas e enfeitadas por Ovídio constituem a religião? Não se assemelham à nossa Legenda Dourada, à nossa Flor dos Santos? Se algum brâmane ou algum dervixe nos objetasse a história de Santa Maria Egipcíaca, que, não tendo com que pagar aos marinheiros que a haviam conduzido ao Egito, concedeu a cada um o que se chama favores, nós diríamos ao brâmane: "Estais enganado, reverendo padre, a nossa religião não é a Legenda Dourada". Censuramos aos antigos os seus oráculos, os seus prodígios; se eles voltassem à vida e pudessem fazer a conta dos milagres de Nossa Senhora de Loreto e os de Nossa Senhora de Éfeso, a quem favoreceria o saldo final? Os sacrifícios humanos, apesar de estabelecidos entre quase todos os povos, raramente foram postos em prática. Imolados, entre os judeus, só temos a filha de Jefté e o Rei Agag, pois não o foram Isaac e Jônatas, A história de Ifigênia não está bem esclarecida, no que concerne aos gregos; e entre os antigos romanos rarearam muito os sacrifícios humanos. Em suma, a religião pagã pouco sangue fez verter e a nossa cobriu a terra de sangue. A nossa é seguramente a única boa, a única verdadeira; mas tanto mal temos feito por seu intermédio que devemos ser modestos quando falamos das outras. SÉTIMA QUESTÃO Se um homem quiser persuadir da sua religião compatriotas ou estrangeiros, não deverá fazer uso da mais insinuante das doçuras e da mais aliciante das moderações? Se começa por dizer que aquilo que anuncia está demonstrado, deparará com uma multidão de incrédulos; se ousa afirmar que esses incrédulos só rejeitam a sua doutrina na medida em que ela lhes condena as paixões, que neles o coração corrompeu o espírito, que não têm senão uma razão falsa e orgulhosa, revolta-os, anima-os contra si e por si mesmo arruína o que pretendia instituir. Se a religião que anuncia é verdadeira, torná-la-ão mais verdadeira a cólera e a insolência? Encolerizai-vos quando afirmais que é preciso ser pacífico, paciente, benfazejo, justo, cumpridor de todos os deveres da sociedade? Não, pois que toda a gente é da vossa opinião. Então por que motivo proferis injúrias contra o vosso semelhante, quando lhe pregais uma metafísica misteriosa? É que o seu senso irrita o vosso amor próprio. Tendes o orgulho de exigir que o vosso semelhante submeta a sua inteligência à vossa; o orgulho humilhado produz a cólera, que outra fonte não tem. Um homem ferido por vinte tiros de espingarda numa batalha não se encoleriza. Mas um doutor ferido pela recusa de um sufrágio torna-se furioso e implacável. OITAVA QUESTÃO Não será necessário separar cuidadosamente a religião do Estado e a religião teológica? A do Estado exige que os imãs conservem o registro dos circuncidados e os curas ou pastores, o registro dos batizados; que haja mesquitas, igrejas, templos, dias consagrados à adoração e ao repouso, ritos estabelecidos pela lei; que os ministros de tais ritos gozem de consideração mas não de poder; que ensinem os bons costumes ao povo e que os ministros da lei vigiem os costumes dos ministros dos templos. Esta religião do Estado em nenhuma circunstância poderá causar perturbação. Não é assim com a religião teológica; esta é a nascente de todas as tolices e de todas as perturbações imagináveis; é a mãe do fanatismo e da discórdia civil; é a inimiga do gênero humano. Um bonzo pretende que Fo é um deus; que foi batizado pelos faquires; que nasceu de um elefante branco; que cada bonzo pode produzir um Fo, à custa de caretas. Um macacão sustenta que Fo foi um santo homem cuja doutrina os bonzos corromperam e que Samonocodão é que é o deus verdadeiro. Após cem argumentos e cem desmentidos, as duas facções concordam em confiar o pleito à solução do dalai-lama, que habita a trezentas léguas da região e que é imortal e mesmo infalível. As duas facções enviam-lhe uma deputação solene. O dalai-lama começa, segundo o divino uso que lhe é próprio, por distribuir entre eles o seu bacio. As duas seitas recebem o bacio com igual respeito, secam-no ao sol e envolvem-no em pequenos rosários que beijam devotamente; todavia, maio dalai-lama e o seu conselho se pronunciam em nome de Fo, logo o partido condenado atira os rosários ao nariz do vice-deus e intenta aplicar-lhe cem bons golpes de azorrague. O outro partido defende o seu lama, de quem recebeu boas terras; ambos se batem longamente; e quando ficam cansados de se exterminarem, de se assassinarem, de se envenenarem reciprocamente, trocam ainda pesadas injúrias; e o dalai-lama a rir-se: e ei-lo que mais uma vez distribuiu o seu bacio a quem quer que deseje receber as dejeções do bom pai lama. Ressurreição I Conta-se que os egípcios construíram as pirâmides apenas porque as queriam usar como túmulos e que os seus corpos embalsamados por dentro e por fora aguardassem que as respectivas almas viessem reanimá-los ao cabo de mil anos. Todavia, se os corpos deviam ressuscitar, por que motivo é que a primeira operação dos embalsamadores consistia em abrir-lhes o crânio com um gancho e tirar-lhes o cérebro? A ideia de ressuscitar sem cérebro deixa suspeitar (se é lícito usar este termo) que os egípcios não o tinham em vida; convém, no entanto, considerar que a maior parte dos antigos acreditava que a alma residisse no peito. E por que motivo estaria a alma no peito, de preferência a outro sítio qualquer? É que, com efeito, em todos os sentimentos um tanto violentos experimenta-se na região do coração uma dilatação ou um aperto que leva a pensar que é ali a morada da alma. Esta alma era algo de aéreo, uma figura ligeira que passeava por onde podia até que reencontrava o seu corpo. A crença na ressurreição é muito mais antiga que os tempos históricos. Atálida, filha de Mercúrio, podia morrer e ressuscitar conforme lhe aprouvesse; Esculápio restituiu a vida a Hipólito, Hércules e Alceste: Pélops cortado aos bocados por seu pai foi ressuscitado pelos deuses. Platão conta que Heres ressuscitou somente por quinze dias. Entre os judeus, os fariseus adotaram o dogma da ressurreição muito tempo depois de Platão. Há nos Atos dos Apóstolos um fato bem singular e digno de atenção. São Tiago e muitos dos seus companheiros aconselham São Paulo a dirigir-se ao templo de Jerusalém para observar todas as cerimônias da antiga lei, apesar de ser tão cristão, "a fim de que todos saibam", dizem eles, "que aquilo que se diz de nós é falso e que continuais a guardar a Lei de Moisés". Isto é o mesmo que dizer claramente: "Ide mentir, ide perjurar, ide renegar publicamente a religião que ensinais". São Paulo dirigiu-se, pois, ao templo onde permaneceu sete dias, mas ao sétimo foi reconhecido. Acusam-no de ter vindo com estrangeiros e de haver profanado o templo. Eis como ele conseguiu resolver a situação: "Ora, sabendo Paulo que uma parte dos que ali se encontravam era formada por saduceus e a outra por fariseus, gritou na assembleia: Irmãos, eu sou fariseu e filho de fariseus; é por causa da esperança numa outra vida e na ressurreição que querem condenar-me". A ressurreição dos mortos nada tinha a ver com o caso; Paulo invocava-a apenas para acicatar, uns contra os outros, fariseus e saduceus. V. 7. "Assim falou Paulo e logo se desencadeou a discórdia entre fariseus e saduceus e a assembleia ficou dividida." V. 8. "Pois que os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito, ao passo que os fariseus reconhecem quer um, quer outro, etc." Houve quem pretendesse que Jó - personagem muito antigo - conhecia o dogma da ressurreição. Citam-se estas palavras: "Sei que o meu redentor está vivo e que um dia ou a sua redenção pairará sobre mim ou eu me levantarei da poeira, que a minha pele voltará e que eu tornarei a ver Deus na minha carne". Contudo, muitos comentadores entendem estas palavras com o significado de que Jó espera recompor-se em breve da doença e não permanecer para sempre prostrado sobre a terra como então estava. O seguimento prova suficientemente que esta é a verdadeira explicação: com efeito, no momento seguinte, Jó grita para os seus falsos e duros amigos: "Por que motivo então dizeis vós: Perseguimo-lo?" ou então: "Porque vós direis: Porque o temos perseguido". Não quererá isto dizer com toda a evidência: "Haveis de vos arrepender de me terdes ofendido quando voltardes a ver-me no meu primeiro estado de saúde e opulência"? Um doente que diz: "Hei de levantar-me", não quer dizer: "Hei de ressuscitar". Atribuir sentidos forçados a passagens claras é o meio mais seguro de nunca nos entendermos ou de sermos olhados como pessoas de má fé pela gente honesta. São Jerônimo situa o nascimento da seita dos fariseus muito pouco tempo antes de Jesus Cristo. O Rabino Hittel, que passa por ser o fundador da seita farisaica, era contemporâneo de Gamaliel, o mestre de São Paulo. Muitos destes fariseus acreditavam que só os judeus ressuscitariam e que não valia a pena ressuscitarem os restantes homens. Outros sustentaram que só na Palestina seria possível ressuscitar e que os corpos enterrados fora dessa região seriam transportados em segredo até junto de Jerusalém para se reunirem às suas almas. Contudo, São Paulo, ao escrever aos habitantes de Tessalônica, diz-lhes que "a segunda vinda de Jesus Cristo é para eles e para ele, que a testemunharão". V. 16. "Porque, logo que o sinal seja dado pelo arcanjo e pela trombeta de Deus, o Senhor mesmo descerá do céu e os que houverem morrido em Jesus Cristo serão os primeiros a ressuscitar." V. 17. "Pois nós que estamos vivos e até então permaneceremos, seremos levados com eles nas nuvens, para comparecermos ante o Senhor no meio do ar, e assim viveremos para sempre com o Senhor." Esta passagem importante não provará com evidência que os primeiros cristãos contavam assistir ao fim do mundo, previsto por São Lucas para a própria época em que São Lucas viveu? É certo que não assistiram ao fim do mundo e que ninguém ressuscitou desde essa altura, mas o que é adiado não está perdido. Santo Agostinho acredita que as crianças, e mesmo as crianças nado-mortas, ressuscitarão na idade madura. Os Orígenes, Jerônimo, Atanásio, Basílio não acreditaram que as mulheres devessem ressuscitar conservando o seu sexo. Enfim, sempre se discutiu sobre o que fomos, sobre o que somos, sobre o que seremos. II O Padre Malebranche prova a ressurreição invocando as lagartas que se transformam em borboletas. Semelhante prova é, como se vê, tão ligeira quanto às asas dos insetos que ela vai buscar. Pensadores com propensão para o cálculo formulam objeções aritméticas contra esta verdade tão bem provada. Afirmam que os homens e os outros animais se alimentam realmente e recebem o crescimento da substância dos seus predecessores. O corpo humano reduzido a poeira, espalhado no ar e caindo sobre a superfície da terra, torna-se legume ou trigo. Assim, Caim comeu uma parte de Adão; Enoch alimentou-se de Caim; Irad, de Enoch; Maviael, de Irad; Matusalém, de Maviael; e verifica-se que nenhum de nós deixou de engolir uma pequena porção do nosso primeiro pai. Por isso se disse que somos todos antropófagos. Nada é mais apreensível, após uma batalha; não só matamos os nossos irmãos como, ao fim de dois ou três anos, os comemos a todos, quando se faz a colheita no campo de batalha; e seremos assim comidos sem dificuldade, chegando a nossa vez. Ora, quando for preciso ressuscitar, como restituiremos a cada qual o corpo que lhe pertencia, sem perda do nosso? Eis o que dizem aqueles que desconfiam da ressurreição; todavia, os ressuscitadores têm respondido com muita pertinência. Um rabino chamado Samai demonstra a ressurreição mediante esta passagem do Êxodo: "Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó; e prometi sob juramento dar-lhes a terra de Canaã". Ora, Deus não obstante o seu juramento, afirma este grande rabino, não lhes deu a tal terra; logo, hão de ressuscitar para a poderem fruir e ser cumprido o juramento. O profundo filósofo Dom Calmet encontra nos vampiros uma prova bem mais concludente. Viu alguns desses vampiros que saíam dos cemitérios para irem sugar o sangue das pessoas adormecidas; é claro que não poderiam sugar o sangue dos vivos, se ainda estivessem mortos; logo, haviam ressuscitado: eis o que é peremptório. Outra coisa também certa é que todos os mortos, no dia do julgamento, hão de marchar sob a terra como toupeiras, segundo o que reza o Talmud, para comparecerem no Vale de Josafá, que se situa entre a cidade de Jerusalém e o monte das Oliveiras. O aperto nesse vale será grande; mas não há senão que reduzir os corpos proporcionalmente, como os diabos de Milton na sala do Pandemonium. Esta ressurreição far-se-á ao som de trombetas, ao que nos diz São Paulo. Serão necessariamente precisas muitas trombetas, pois o próprio trovão não é ouvido a mais de três ou quatro léguas em redor. Pergunta-se quantas trombetas haverá, os teólogos ainda não fizeram o cálculo; mas hão de fazê-lo. Afirmam os judeus que a rainha Cleópatra, sem dúvida crente na ressurreição como todas as damas desse tempo, perguntou a um fariseu se se ressuscitaria nu. Respondeu-lhe o doutor que estaremos muito bem vestidos, pela mesma razão por que o trigo semeado, morto dentro da terra, ressuscita em espiga com vestido e barbelas. Este rabino era um teólogo excelente; raciocinava como Dom Calmet. S Seita Qualquer seita, de qualquer gênero, é sempre a aliança da dúvida e do erro. Escotistas, tomistas, realistas, nominalistas, papistas, calvinistas, molinistas e jansenistas, tudo isto são nomes de guerra. Não há seitas em geometria; ninguém se refere a euclidianos, a arquimedianos. Quando a verdade é evidente, torna-se impossível a formação de partidos e facções. Nunca se discutiu sobre se é dia claro ao meio-dia. Uma vez conhecida a parte da astronomia que determina o curso dos astros e a regularidade dos eclipses, deixou de haver disputas entre os astrônomos. Ninguém diz em Inglaterra: "Sou newtoniano", ou "sou lockiano", ou "halleyano"; e por quê? Porque, quem quer que os tenha lido, não pode recusar assentimento às verdades ensinadas por esses três grandes homens. Quanto mais Newton é respeitado, menos há quem se intitule newtoniano; esta palavra faria supor a existência de antinewtonianos em Inglaterra, Temos ainda talvez alguns cartesianos em França, unicamente porque o sistema de Descartes é um tecido de imaginações errôneas e ridículas. O mesmo sucede com o reduzido número de verdades de fato que estão bem verificadas. As atas da Torre de Londres foram recolhidas autenticamente por Rymer mas não existem rymeristas, pois ninguém se propõe combater a recolha. Não se encontram aí contradições, nem absurdos, nem prodígios: nada que revolte a razão, nada, por conseguinte, que sectários se esforcem por sustentar ou derrubar mercê de raciocínios absurdos. Toda a gente convém, pois, em que as Atas de Rymer são dignas de fé. Sois maometano, logo há pessoas que o não são, logo pode acontecer que não estejais dentro da razão. Que religião seria a verdadeira, se o cristianismo não existisse? Aquela em que não há seitas, aquela em que há o acordo necessário de todos os espíritos. Ora, em que dogma se verifica a concordância de todos os espíritos? Na adoração de um Deus e na probidade. Todos os filósofos da terra que tiveram uma religião disseram, em todos os tempos: "Há um Deus e é preciso ser-se justo". Tal é a religião universal, estabelecida em todos os tempos e entre todos os homens. Portanto, é verdadeiro o ponto sobre que todos concordam e falsos os sistemas sobre que diferem. "A minha seita é a melhor", diz-me um brâmane. Mas, meu amigo, se a tua seita for boa, será necessária, pois, se não fosse absolutamente necessária, tens de confessar que seria inútil; e sendo absolutamente necessária, sê-lo-á para todos os homens; como pode acontecer que todos os homens não tenham algo que lhes é absolutamente necessário? Como pode acontecer que o resto do mundo zombe de ti e do teu Brama? Quando Zoroastro, Hermes, Orfeu, Minos e todos os grandes homens dizem: "Adoremos Deus e sejamos justos", ninguém ri, mas todo o mundo apupa aquele que pretende que não podemos agradar a Deus a menos que seguremos à hora da morte uma cauda de vaca ou aquele que liga a salvação eterna a ossos de mortos que se trazem sob a camisa ou a uma indulgência plena que se compra em Roma por dois soldos e meio. De que resulta este universal concurso de risadas e apupos que cobre o mundo, de um extremo a outro? Impõe-se que as coisas de que o mundo se ri não sejam de uma verdade bem evidente. Que diremos de um secretário de Séjano que dedicou a Petrônio um livro em estilo empolado com o título: "A Verdade dos Oráculos Sibilinos, Provada pelos Fatos"? Esse secretário prova-nos primeiro que era necessário que Deus enviasse à terra grande número de sibilas, umas atrás das outras, pois não havia outros meios de instruir os homens. Está demonstrado que Deus falava a essas sibilas, porquanto a palavra sibila significa conselho de Deus. Deviam elas viver durante muito tempo, uma vez que esse seria o menor privilégio devido a pessoas com quem Deus fala. Foram em número de doze, pois esse número é sagrado. Haviam seguramente profetizado todos os acontecimentos mundanos, dado que Tarquínio, o Soberbo, comprou por cem escudos a uma velha três dos seus livros. Que incrédulo, acrescenta o secretário, ousará negar todos estes fatos evidentes que se passaram num canto, à face de toda a terra? Quem poderá negar o cumprimento das suas profecias? Embora não estejamos na posse dos exemplares originais dos livros sibilinos, não é certo que dispomos de cópias autênticas? A impiedade tem de se calar perante estas provas. Assim falava Houttevillus a Séjano. Contava obter um lugar de áugure que lhe valeria cinquenta mil libras de renda e não teve coisa nenhuma. "O que a minha seita ensina é obscuro, reconheço-o", afirma um fanático; "e é em virtude dessa obscuridade que se deve crer na seita, pois ela própria se afirma cheia de obscuridades. A minha seita é extravagante, logo é divina; pois como seria possível que fosse abraçado por tantos povos aquilo que parece tal loucura se não houvesse aí algo de divino? É precisamente como o Alcorão que os Sonitas dizem ter um rosto de anjo e um rosto bestial; não vos escandalizeis com o focinho da besta e venerai o rosto do anjo." Assim fala semelhante insensato; mas um fanático de outra seita replica: "Tu és a besta e eu sou o anjo". Ora, quem julgará este processo? Quem decidirá entre estes dois energúmenos? O homem racional, imparcial, sábio de uma ciência que não é a das palavras; o homem isento de preconceitos e amante da verdade e da justiça; enfim, o homem que não é besta nem acredita ser anjo. Senhor Como foi possível a um homem tornar-se senhor de outro homem e por que espécie de incompreensível magia pôde esse homem tornar-se senhor de muitos mais homens? Sobre este fenômeno escreveu-se um grande número de bons volumes mas eu dou preferência a uma fábula indiana porque é curta e porque nas fábulas tudo ficou dito. "Adimo, pai de todos os homens, teve dois filhos e duas filhas de sua mulher Procriti. O mais velho era um gigante vigoroso, o mais novo, um pequeno corcunda, e as duas filhas eram bonitas. Logo que o gigante sentiu a sua força, dormiu com as irmãs e fez-se servir pelo pequeno corcunda. Das duas irmãs, uma veio a ser a sua cozinheira, a outra, a sua jardineira”. “Quando queria dormir, o gigante começava por acorrentar a uma árvore o irmãozinho corcunda; e, se este fugia, alcançava-o em quatro pernadas e dava-lhe vinte golpes com um nervo de boi”. “O corcunda tornou-se submisso e o melhor súdito do mundo”. O gigante, satisfeito por o ver cumprir os deveres de súdito, permitiu-lhe dormir com uma das irmãs, de que se desgostara. As crianças que resultaram deste casamento, sem serem corcundas, eram de envergadura assaz contrafeita e foram educadas no temor de Deus e do gigante. Receberam uma excelente educação; ensinaram-lhes que o seu enorme tio era gigante por direito divino e podia fazer o que lhe agradasse de toda a família; que, se tivesse alguma sobrinha ou segunda sobrinha bonita, seria só para si e ninguém poderia dormir com ela senão quando ele se fartasse. "Falecido o gigante, o seu filho, que, de longe, não era tão forte nem tão grande, acreditou, todavia, que era gigante de direito divino, como o pai. Quis fazer trabalhar para si todos os homens e deitar-se com todas as raparigas. A família coligou-se contra ele, foi sovado e implantou-se a república." Os siameses pretendem, pelo contrário, que a família começou por ser republicana e que o gigante só surgiu depois de um bom par de anos e de dissensões; porém, todos os autores de Benarés e do Sião convêm em que os homens viveram uma infinidade de séculos antes de terem espírito para fazer leis; e provam-no com o argumento, sem réplica, de que, mesmo hoje, quando toda a gente se orgulha de ter espírito, não se achou maneira de elaborar uma vintena de leis aceitavelmente boas. É ainda, por exemplo, questão insolúvel nas Índias apurar se as repúblicas foram estabelecidas antes ou depois das monarquias, se a confusão deveria parecer aos homens mais horrível que o despotismo. Ignoro o que tenha sucedido na sucessão dos tempos; mas, na da natureza, impõe-se-nos convir que, nascendo os homens todos iguais, a violência e a habilidade fizeram os primeiros senhores; as leis fizeram os seguintes. Sensação Diz-se que as ostras têm dois sentidos; as toupeiras, quatro; os outros animais como os homens, cinco; algumas pessoas admitem um sexto, mas é evidente que a sensação voluptuosa a que querem aludir se reduz ao sentido do tato; o nosso quinhão são pois, cinco sentidos. Para além destes, é-nos impossível imaginar e desejar outros. Pode acontecer que em outros globos haja sentidos de que não temos ideia; pode ser que o número dos sentidos aumente de globo para globo e que o ser que disponha de sentidos inúmeros e perfeitos seja o termo de todos os seres. Mas nós, com os nossos cinco órgãos, que poder é o nosso? Sentimos sempre, não obstante a nossa vontade e nunca porque o queremos; é-nos impossível não ter a sensação que a nossa natureza nos destina, quando o objeto nos impressiona. O sentimento está em nós mas não depende de nós. Recebemo-lo; e como o recebemos? Sabe-se que não há qualquer relação entre o ar batido, as palavras que me cantam e a impressão que essas palavras provocam no meu cérebro. Maravilhamo-nos com o pensamento; mas o sentimento não é menor maravilha. Um poder divino se manifesta na sensação do último dos insetos tanto como no cérebro de Newton. No entanto, milhares de animais podem morrer à vossa vista sem que vos inquieteis com o destino da sua faculdade de sentir, conquanto essa faculdade seja obra do ser dos seres; para vós, são como máquinas da natureza, nascidas para perecer e dar lugar a outras. Por que e como subsistiria a sensação desses animais quando deixam de existir? Que necessidade teria o autor de tudo o que existe de conservar propriedades cujo sujeito é destruído? Seria o mesmo que dizer que o poder de a planta chamada sensitiva retirar as folhas para os ramos subsiste ainda quando a planta já não existe. Ides sem dúvida perguntar como é que, perecendo as sensações dos animais quando estes perecem, não perecerá o pensamento do homem. Não posso responder à questão pois não sei o suficiente para resolvê-la. Só o autor eterno da sensação e do pensamento sabe como os dá e como os conserva. Toda a Antiguidade sustentou que nada existe no nosso entendimento que não tenha existido nos nossos sentidos. Descartes pretendeu, nos seus romances, que tínhamos ideias metafísicas antes de conhecermos as tetas da nossa ama; uma Faculdade de teologia proscreveu este dogma não porque fosse um erro mas porque era uma novidade: em seguida adotou esse erro, porque fora destruído por Locke, filósofo inglês, e convinha que um inglês não tivesse razão. Enfim, depois de haver mudado de opinião tantas vezes, a Faculdade volta a prescrever a antiga verdade de que os sentidos são as portas do entendimento. Procedeu como os governos endividados que ora dão curso a certas notas ora as denegam; mas depois de muito tempo ninguém quer notas daquela Faculdade. Nem todas as faculdades do mundo conseguirão impedir os filósofos de observar que começamos por sentir e que a nossa memória não é senão uma sensação continuada. Um homem que nascesse privado dos seus cinco sentidos, privado estaria de qualquer ideia, se pudesse viver. As noções metafísicas somente nos chegam através dos sentidos; pois, com efeito, como medir um círculo ou um triângulo, sem nunca se ter visto ou tocado um círculo ou um triângulo? Como formar uma ideia perfeita do infinito senão mediante o afastamento dos limites? E como estabelecer limites sem os haver contemplado ou sentido? A sensação envolve todas as nossas faculdades, diz um grande filósofo. Que se deve concluir de tudo isto? Vós que sabeis ler e que pensais, tirai conclusões. Os gregos tinham inventado a faculdade Psyché para as sensações, e a faculdade Naus para os pensamentos. Infelizmente ignoramos o que sejam essas duas faculdades; temo-las, mas a sua origem não a conhecemos melhor que a ostra, a urtiga-do-mar, o pólipo, os vermes e as plantas. Por que inconcebível mecanismo o sentimento existe em todo o meu corpo e o pensamento só existe na minha cabeça? Se vos cortarem a cabeça, tudo levará a crer que não sejais capaz de resolver um problema de geometria: no entanto, a vossa glândula pineal, o vosso corpo caloso, em que se aloja a vossa alma, subsistem por muito tempo sem alteração; a vossa cabeça cortada continua tão cheia de espíritos animais que, frequentes vezes, salta depois de ser separada do tronco: parece que deveria ter nesse momento ideias muito vivas e assemelhar-se à cabeça de Orfeu, que continuava a produzir música e a cantar para Eurídice quando a atiravam para as águas do Ebro. Se deixais de pensar quando deixais de ter cabeça, de onde resulta que o vosso coração seja sensível quando é arrancado? Podeis dizer-me que sentis porque todos os nervos têm origem no cérebro; e, no entanto, se sois trepanado, e se vos queimam o cérebro, nada sentis. As pessoas que sabem as razões de tudo isto são muito espertas. Senso Comum Existe por vezes nas expressões vulgares uma imagem do que se passa no fundo do coração de todos os homens. Sensus communis significa, entre os romanos, não só senso comum mas também humanidade, sensibilidade. Como não valemos os romanos, a expressão significa entre nós apenas metade do que significa entre eles. Significa tão só bom senso, razão grosseira, razão inicial, primeira noção das coisas ordinárias, estado médio entre a estupidez e a agudeza de espírito. "Esse homem não tem o senso comum" corresponde a injúria grossa. "Esse homem tem o senso comum" é uma injúria também; quer isto dizer que não é absolutamente estúpido e que carece daquilo a que se chama agudeza de espírito. Porém, de onde pode derivar a expressão senão dos sentidos? Quando inventaram esta expressão, os homens confessaram que nada entra na alma senão pelos sentidos; de outra maneira, como teriam empregado a palavra senso para significar raciocínio comum? Por vezes diz-se: "O senso comum é muito raro"; que significa esta frase? Significa que em muitos homens a razão inicial é travada no seu progresso por alguns preconceitos; e que esse homem, capaz de sãos juízos sobre determinado assunto, se enganará grosseiramente acerca de outros. O árabe, que será um bom calculador, um sábio químico, um astrônomo exato, acreditará no entanto que Maomé tem metade da lua escondida na manga. Que motivos o levarão a ir além do senso comum nas três ciências a que me referi, e a ficar abaixo do senso comum quando se trata da metade da lua? É que, nos primeiros casos, viu com os próprios olhos, aperfeiçoou a inteligência; e no segundo viu pelos olhos de outrem, fechou os seus, perverteu o senso comum que em si existe. Como é possível que se opere esta estranha reviravolta do espírito? Como é possível que as ideias que marcham no cérebro com passo tão regular e tão firme, quanto a grande número de objetos, falhem tão miseravelmente quando se trata de outro mil vezes mais palpável e mais fácil de compreender? Tal homem conserva em si os mesmos princípios de inteligência; torna-se, pois, necessário que haja um órgão viciado, como acontece por vezes que o mais fino dos gastrônomos possa ter o gosto depravado no que respeita a uma espécie particular de comida. Como se viciou o órgão desse árabe que vê metade da lua na manga de Maomé? Por efeito do medo. Foi-lhe dito que, se não acreditasse na história da manga, a sua alma logo após a morte, ao passar na ponte estreita, tombaria para sempre no abismo; foi-lhe dito algo de bem pior: "Se alguma vez duvidares da manga, um dervixe te designará como ímpio; outro te provará que és insensato, pois, tendo todos os motivos possíveis de credibilidade, não quiseste submeter a tua razão soberba à evidência; um terceiro te pronunciará ante o insignificante di vã de uma insignificante província e serás legalmente empalado". Tudo isto põe em terror pânico o bom do árabe, a sua mulher, a irmã e todo o resto da família. Têm bom senso sobre tudo o mais mas quanto a este artigo a sua imaginação está ferida, como a de Pascal, que via continuamente um precipício junto da sua cadeira. Mas acreditará o nosso árabe, com efeito, na manga de Maomé? Não; esforça-se por crer; diz: "Isto é impossível mas é verdade; creio no que não creio". Forma-se na sua cabeça, acerca da manga, um caos de ideias que receia deslindar; e eis o que verdadeiramente não tem o senso comum. Sonhos Somnia, quae mentes ludunt volitantibus umbris, Non delubra deum nec ab aethere numina mittunt, Sed sibi quisque facit Mas como é possível que, estando todos os sentidos mortos durante o sono, haja outro, interno, que se mantém vivo? Como é que, não vendo os vossos olhos, não escutando os vossos ouvidos, vós podeis, no entanto, ver e ouvir em sonhos? O cão anda à caça em sonhos; ladra, segue a presa, ceva-se. O poeta faz versos enquanto dorme; o matemático vê figuras; o metafísico raciocina, bem ou mal; de tudo isto, há exemplos gritantes. Serão apenas os órgãos da máquina que agem? Será a pura alma que, subtraída ao império dos sentidos, goza dos seus direitos em liberdade? Se apenas os órgãos produzem os sonhos noturnos, qual a razão por que não produzem com exclusividade as ideias diurnas? Se a pura alma, tranquila durante o repouso dos sentidos, agindo por si só, é a causa única, o sujeito único de todas as ideias que tendes enquanto dormis, qual a razão por que todas essas ideias são quase sempre irregulares, irrazoáveis, incoerentes? Como! Pois no momento em que essa alma se encontra menos perturbada é que há maior perturbação em todas as imaginações! Livre, enlouquece! Se houvesses nascido já com ideias metafísicas, como afirmaram tantos escritores que sonhavam de olhos abertos, as suas ideias puras e luminosas do ser, do infinito, de todos os princípios primeiros deveriam despertar nela com a maior das energias quando o corpo adormece: só em sonhos se conseguiria ser bom filósofo. Qualquer que seja o sistema que perfilheis, quaisquer que sejam os vãos esforços que possais empreender para provardes a vós próprios que a memória agita o vosso cérebro e que o vosso cérebro agita a vossa alma, deveis convir em que todas as vossas ideias chegam a vós durante o sono, sem vós e mau grado vosso; a vossa vontade não intervém aí. É certo, portanto, que podeis pensar sete ou oito noites de seguida sem a menor vontade de pensar e até sem que estejais seguros de pensar. Pesai isto e tentai adivinhar em que consiste o composto do animal. Os sonhos sempre foram um grande objeto de superstição. Nada mais natural! Um homem vivamente tocado pela doença da amante sonha que a vê moribunda; no dia seguinte, ela morre: logo, os deuses predisseram-lhe esta morte. Um general sonha que ganha uma batalha; ganha-a, com efeito: logo, os deuses advertiram-no que seria vencedor. Só atendemos os sonhos que se cumpriram; os outros, esquecem-se; os sonhos constituem grande parte da história antiga, tal como os oráculos. A Vulgata traduz deste modo o final do versículo 26 do capítulo XIX do Levítico: "Não observareis os sonhos". Mas a palavra sonho não existe em hebreu e seria assaz estranho que fosse reprovada a observância dos sonhos no mesmo livro em que se diz que José se toma benfeitor do Egito por haver explicado três sonhos. A explicação dos sonhos era algo de tão comum, que não se circunscrevia à intelecção do sonho: era preciso também, por vezes, adivinhar o que o outro homem tinha sonhado. Nabucodonosor, que esquecera um sonho, ordenou aos seus magos que o adivinhassem, ameaçando-os de morte se não tivessem êxito; porém, o judeu Daniel, que era da escola dos magos, salvou-lhes a vida, adivinhando e interpretando o sonho do rei. Esta história e muitas outras poderiam servir de prova de que a lei dos judeus não proibia a oniromancia, quer dizer, a ciência dos sonhos. Superstição I Capítulo tirado de Cícero, de Sêneca e de Plutarco. Quase tudo o que transcende a adoração de um Ente supremo e a submissão do coração às suas ordens eternas constitui superstição. Uma das mais perigosas consiste no perdão de crimes ligados a certas cerimônias. Et nigras mactant pecudes, et manibus divis Inferias mittunt. Ah! Nimium faciles qui tristia crimina caedis Fluminea tolli posse putatis aqua! E vós pensais que Deus esquecerá o vosso homicídio se vos banhardes num rio, se imolardes uma ovelha preta, ou se sobre vós forem pronunciadas certas palavras. Um segundo homicídio ser-vos-à, pois, perdoado pelo mesmo preço, e um terceiro, e cem assassinatos custar-vos-ão apenas cem ovelhas negras e cem abluções! Fazei melhor, miseráveis humanos: nada de mortes e nada de ovelhas pretas. Que infame ideia é imaginar-se que um padre de Isis e de Cibele, tocando címbalos e castanholas, vos reconciliará com a Divindade! E quem é esse padre de Cibele, esse eunuco errante que vive das vossas fraquezas, para se instituir como mediador entre o céu e vós? Para resmungar algumas palavras? E acreditais que o Ser dos seres ratifica o palavreado desse charlatão? Há superstições inocentes: se quereis dançar nos dias de festa em honra de Diana ou de Pomona, ou de qualquer desses deuses secundários de que está cheio o vosso calendário, fazei-o em boa hora. A dança é muito agradável, é útil ao corpo, consola a alma, não faz mal a ninguém; mas não deveis acreditar que Pomona e Vertuna ficam a dedicar-vos muita estima pelos vossos saltos em sua honra ou que vos punirão se não houver da vossa parte o cumprimento da cerimônia. Além da pá e da enxada do jardineiro não há outra Pomona ou outra Vertuna. Não haveis de ser suficientemente imbecis para acreditardes que o vosso jardim gelará por não terdes dançado a pirrica e a cordacia. Talvez haja uma superstição perdoável e capaz de estimular a virtude: referimo-nos à que consiste em colocar entre os deuses os grandes homens que foram benfeitores do gênero humano. Seria melhor, sem dúvida, que as pessoas se limitassem a olhá-los simplesmente como homens veneráveis e, sobretudo, que tratassem de imitá-los. Venerai, sem culto, um Sólon, um Tales, um Pitágoras; mas deveis abster-vos de adorar um Hércules por ter limpado as estrebarias de Áugias e ter dormido com cinquenta raparigas numa só noite. Guardai-vos, sobretudo, de prestar culto a patifes cujos únicos méritos foram a ignorância, o entusiasmo e a porcaria; que adotaram como dever e glória a ociosidade e a pedinchice: quem foi inútil toda a vida merecerá a apoteose depois de morto? Notai que as épocas de maior superstição foram sempre as dos mais horríveis crimes. II O supersticioso está para o mariola como o escravo para o tirano. Mais ainda: o supersticioso é governado pelo fanático e acaba por tornar-se fanático também. A superstição, nascida durante o paganismo, adotada pelo judaísmo, infetou a Igreja cristã desde os primeiros tempos. Todos os Padres da Igreja, sem exceção, acreditam no poder da magia. A Igreja, que sempre condenou a magia, sempre acreditou nela; nunca excomungou os bruxos como loucos que estavam enganados mas como homens que realmente mantinham comércio com os diabos. Hoje, metade da Europa crê que a outra metade foi sempre e continua a ser supersticiosa. Os protestantes veem as relíquias, as indulgências, as macerações, as preces pelos mortos, a água benta e quase todos os ritos da Igreja Romana como uma demência supersticiosa. A superstição, segundo eles, consiste na adoção de práticas inúteis a título de práticas necessárias. Entre os católicos romanos, alguns há mais esclarecidos do que os antepassados, Que renunciaram a muitos desses usos outrora sagrados; e defendem-se quanto aos outros, arguindo: “São indiferentes e o “que apenas é indiferente não pode ser um mal”. É difícil assinalar as fronteiras da superstição. Um francês que viaja pela Itália considera quase tudo como superstição e não se engana. O arcebispo de Canterbury pretende que o arcebispo de Paris é supersticioso; os presbiterianos dirigem a mesma censura a Monsenhor Canterbury e são, por seu turno, apodados de supersticiosos pelos quacres, que, aos olhos dos outros cristãos, aparecem como os maiores de todos os supersticiosos. Ninguém chega a acordo nas sociedades cristãs quanto ao que constitui a superstição. A seita que parece menos atacada por esta doença do espírito é a que tem menos ritos. Mas se, embora com pouco cerimonial, ela se liga fortemente a uma crença absurda, esta equivale por si só a todas as práticas supersticiosas observadas desde Simão, o mágico, até o Cura Gauffridi. É evidente que o fundo da religião de uma seita passa por superstição numa outra seita. Os muçulmanos acusam todas as sociedades cristãs de práticas supersticiosas e são acusados do mesmo. Quem julgará este grande processo? A razão? Mas se cada seita pretende ter a razão do seu lado. Será pois a força que julgará, enquanto aguardamos que a razão penetre em um número bastante de cabeças para desarmar a força. Por exemplo, houve tempos na Europa cristã em que não era permitido aos recém-casados o gozo dos direitos do matrimônio sem terem comprado esse direito ao bispo ou ao cura. Alguém que no seu testamento não deixasse parte dos seus bens à Igreja era excomungado e privado de sepultura. Chamava-se a isto morrer inconfesso; quer dizer, sem confessar a religião cristã. E, quando um cristão morria "intestado", a Igreja poupava ao morto essa excomunhão, substituindo-se-lhe na feitura do testamento de maneira a estipular e cobrar os legados piedosos que o defunto deveria ter deixado. Por isso, o Papa Gregório IX e São Luís ordenaram, após o concílio de Narbonne, celebrado em 1235, que todo testamento feito sem assistência de um padre seria nulo e o Papa decretou que testador e notário seriam excomungados. A taxa dos pecados foi ainda mais escandalosa, se possível. Era a força que sustentava todas estas leis, às quais se submetia a superstição dos povos; e só com o decorrer do tempo a razão logrou fazer abolir esses vergonhosos vexames, embora deixasse subsistir tantos outros. Até que ponto permite a política que se arruíne a superstição? O problema é espinhoso; é o mesmo que perguntar até que ponto se deve praticar a punção em um hidrópico que pode morrer na operação. Tudo depende da prudência do médico. Poderá existir um povo liberto de todos os preconceitos supesticiosos? É perguntar: poderá existir um povo de filósofos? Dizem que não há superstição alguma entre a magistratura da China. É verossímil que nenhuma virá substituir na magistratura de algumas cidades da Europa. Então, esses magistrados impedirão que a superstição do povo se torne perigosa. O exemplo destes magistrados não iluminará a canalha mas os principais burgueses contê-la-ão. Talvez haja um único tumulto, um único atentado religioso em que os burgueses não tenham participado outrora, porque então os burgueses eram da canalha; contudo, a razão e o tempo tê-los-ão modificado. Os seus costumes adoçados hão de suavizar os da população mais vil e mais feroz; disto temos exemplos gritantes em mais de um país. Numa palavra: menos superstições, menos fanatismo; e menos fanatismo, menos desgraças. T Teísta O teísta é um homem firmemente persuadido da existência de um Ente supremo tão bom como poderoso que formou todos os seres extensos, vegetativos, sensitivos e reflexivos; que perpetua as espécies, que castiga sem crueldade os crimes e recompensa com bondade as ações virtuosas. O teísta não sabe como Deus castiga, como favorece, como perdoa; pois não é assaz temerário para se gabar de conhecer a maneira de agir de Deus; mas sabe que Deus age e que é justo. As dificuldades contra a Providência não o abalam na sua fé, pois são apenas grandes dificuldades que não constituem provas; submete-se a essa Providência embora só aperceba alguns dos seus efeitos e algumas das suas exterioridades; e, com o julgar das coisas que não vê mediante as coisas que vê, pensa que a Providência se estende a todos os lugares e há todos os séculos. Reunido nestes princípios a todo o resto do universo, não abraça qualquer das seitas que unanimemente se contradizem. A sua religião é a mais antiga e a de maior extensão, pois a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas do mundo. Fala uma língua que todos os povos entendem, ao passo que não se entendem entre si. Têm irmãos desde Pequim a Cayenne e conta todos os sábios como irmãos. Crê que a religião não consiste nas opiniões de uma metafísica ininteligível nem em vãos artefatos mas na adoração e na justiça. Fazer bem, eis o seu culto; submeter-se a Deus, eis a sua doutrina. Grita-lhe o muçulmano: "Se não fizeres a peregrinação a Meca, acautela-te!"; "Ai de ti", diz-lhe um coletor, "se não fizeres uma viagem a Nossa Senhora de Loreto!" Ele ri-se de Loreto e de Meca; mas socorre o indigente e defende o oprimido. Teólogo Conheci um verdadeiro teólogo; dominava as línguas do Oriente e conhecia os antigos ritos dos povos tanto quanto se pode conhecer. Conhecia os caldeus, os ignícolas, os sabeus, os sírios, os egípcios tão bem como os judeus; as várias lições da Bíblia eram-lhe familiares; durante trinta anos, procurara conciliar os Evangelhos e tentara reunir no seu conjunto os Padres da Igreja. Efetuou investigações sobre a época precisa em que foi redigido o símbolo atribuído aos apóstolos e o que se coloca sobre o nome de Atanásio; sobre a diferença que havia entre sinaxe e a missa; sobre a forma como a Igreja cristã se dividiu desde o nascimento em diversos partidos e como a sociedade dominante acoimou todas as outras de heréticas. Sondou as profundezas da política que se mistura sempre nestas querelas; e distinguiu entre a política e a sabedoria, entre o orgulho que quer subjugar os espíritos e o desejo de esclarecimento pessoal, entre o zelo e o fanatismo. A dificuldade de dispor na cabeça tantas coisas cuja natureza é serem confundidas e de lançar um pouco de luz sobre tantas nuvens agastou-o muitas vezes; como, porém, estas pesquisas constituíam o dever da sua condição, dedicou-se a elas, não obstante tais repugnâncias. Acabou por chegar a conhecimentos ignorados pela maior parte dos confrades. Quanto mais foi verdadeiramente sábio, mais desconfiou de tudo o que sabia. Enquanto viveu, foi indulgente; e à hora da morte reconheceu que tinha consumido inutilmente a sua vida. Tirania Chama-se tirano o soberano que não conhece outras leis senão as do seu capricho, que se apodera dos bens dos súditos e que seguidamente os requisita para ir apoderar-se dos bens dos vizinhos. Não há tiranos destes na Europa. Costuma distinguir-se a tirania de um da tirania de muitos. A tirania de muitos seria a de uma classe que usurpasse os direitos das outras classes e exercesse o despotismo a coberto de leis por ela corrompidas. Não há também esta espécie de tiranos na Europa. Sob que tirania preferíeis viver? Sob nenhuma; mas, se tivesse de escolher, detestaria menos a tirania de um só que a tirania de muitos. Um déspota sempre beneficia com bons momentos; uma assembleia de déspotas, nunca. Se um tirano comete uma injustiça para comigo, posso desarmá-lo através da sua amante, do seu confessor ou do seu pajem; mas uma companhia de tiranos sisudos é inacessível a todas as seduções. Quando não é injusta, é pelo menos dura e nunca espalha favores. Se só tiver um tirano, estou quites ao encostar-me a uma parede quando o vejo passar, ou ao prosternar-me, ou batendo no chão com a testa, segundo o costume do país; mas, se houver uma companhia de cem tiranos, fico exposto a repetir a cerimônia cem vezes por dia, o que se torna aborrecido em longo prazo, quando se não têm os joelhos adestrados. Se possuo uma quinta na vizinhança de um dos nossos senhores, sou esmagado; se litigo contra um dos parentes de um dos nossos senhores, fico arruinado. Que fazer? Receio que neste mundo estejamos reduzidos a ser bigorna ou martelo; feliz de quem escapa a esta alternativa! Tolerância I O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza. Juntai na bolsa de Amsterdam, ou de Londres, ou de Surate, ou de Bassorá, o guebro, o baniano, o judeu, o maometano, o deícola chinês, o brâmane, o cristão grego, o cristão romano, o cristão protestante, o cristão quacre, a traficarem entre si, e vereis que não levantarão o punhal uns contra os outros para ganharem almas à sua religião. Por que motivo, então, nos degolamos quase sem pausa desde o primeiro concílio de Nicéia? Constantino começou por outorgar um edito que permitia todas as religiões e acabou como perseguidor. Antes, se alguém se insurgia contra os cristãos, era só porque começavam a constituir um partido dentro do Estado. Os romanos toleravam todos os cultos, inclusive os dos judeus e dos egípcios, que eles tanto desprezavam. E por que esta tolerância? Porque nem os egípcios, nem mesmo os judeus, tentavam exterminar a antiga religião do império ou corriam a terra e os mares para conquistarem prosélitos, limitando-se a ganhar dinheiro; mas é incontestável que os cristãos queriam que a sua religião fosse a dominante. Os judeus não queriam a estátua de Júpiter em Jerusalém; os cristãos não queriam que estivesse no Capitólio. Santo Tomás tem a boa fé de confessar que, se os cristãos não destronaram os imperadores, foi só porque não puderam. A opinião deles era que toda a terra devia ser cristã. Logo, tornaram-se necessariamente inimigos de toda a terra, até que a terra inteira se convertesse. Entre eles, combatiam-se uns aos outros sobre todos os pontos da sua controvérsia. Inicialmente, era preciso encarar Jesus Cristo como Deus e os que o negaram foram anatematizados sob o nome de ebionitas, os quais anatematizavam os adoradores de Jesus. Querem alguns que os bens sejam comuns, como se pretende que eram no tempo dos apóstolos, e os seus adversários chamam-lhes nicolaítas e acusam-nos dos crimes mais infames. Outros aspiram a uma devoção mística e são apodados de gnósticos e contra eles há quem se levante com furor. Marcião disputa sobre a Trindade e logo o acusam de idólatra. Tertuliano, Praxeas, Orígenes, Novat, Novaciano, Sabelius, Donat, todos são perseguidos pelos seus correligionários, antes de Constantino, e, mal Constantino faz reinar a religião cristã, logo se opõem os atanasianos e os eusebianos; desde essa época, a Igreja cristã inunda-se de sangue até aos nossos dias. O povo judeu era, reconheço-o, um povo rudemente bárbaro. Degolavam sem piedade os habitantes de um minúsculo país sobre o qual tinham tantos direitos como sobre Paris ou Londres. No entanto, quando Naamam se cura da sua lepra por haver mergulhado sete vezes no Jordão; quando, para testemunhar a sua gratidão a Eliseu, que lhe ensinara esse segredo, lhe diz que passará a adorar o Deus dos judeus por gratidão, reserva-se a liberdade de adorar também o Deus do seu rei; para isso pede licença a Eliseu e o profeta não hesita em conceder-lha. Os judeus adoravam o seu Deus mas nunca mostravam espanto por cada povo ter deuses próprios. Achavam bem que Chamos tivesse dado certo distrito aos moabitas, contanto que o seu Deus lhes desse também um. Jacó não hesitou em esposar as filhas de um idólatra. Labão tinha o seu Deus; como Jacó. Eis alguns exemplos de tolerância entre o povo mais intolerante e mais cruel de toda a Antiguidade; imitamo-lo nos seus furores absurdos e não na sua indulgência. Evidentemente que qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro. Isto não oferece dificuldades. Mas o governo, mas os magistrados, mas os príncipes, como se comportarão para com aqueles que têm um culto diferente do seu? Se se trata de estrangeiros poderosos pode-se ter como certo que um príncipe fará aliança com eles. Francisco I, muito cristão, unir-se-á aos muçulmanos contra Carlos V. muito católico. Francisco I dará dinheiro aos luteranos para sustentá-los na sua revolta contra o imperador; todavia começará, segundo os usos, por mandar queimar os luteranos compatriotas. Que acontecerá, porém? Acontecerá que as perseguições hão de fazer prosélitos e em breve a França estará de novo cheia de protestantes. A princípio deixar-se-ão enforcar e depois enforcarão, por sua vez. Haverá guerras civis, depois virá a noite de São Bartolomeu e este recanto do mundo tornar-se-á pior que tudo aquilo que os antigos e os modernos alguma vez disseram do inferno. Insensatos que nunca haveis podido prestar um culto puro a Deus que vos criou! Desgraçados, que o exemplo dos noachidas, dos letrados chineses, dos parses e de todos os sábios nunca guiou! Monstros que tendes precisão de superstições como o bucho do corvo tem precisão de cadáveres! Já vos foi dito e nada mais há para vos dizer: se entre nós houver duas religiões, hão de cortar-se o pescoço; se houver trinta, viverão em paz. Vede o Grão-turco: governa guebros, banianos, cristãos gregos, nestorianos, romanos. O primeiro que quiser provocar tumulto será empalado e toda a gente permanece tranquila. II De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens. Jesus, que se dignou nascer no meio da pobreza e da baixeza, tal como os seus irmãos, nunca SE dignou praticar a arte da escrita. Os judeus tinham uma lei escrita com extremo pormenor mas não temos uma única linha da mão de Jesus. Os apóstolos dividiram-se sobre muitos pontos. São Pedro e São Barnabé comiam carnes proibidas em companhia dos novos cristãos estrangeiros mas abstinham-se quando acamaradavam com os cristãos judeus. São Paulo, que lhes censurava esta conduta, o mesmo São Paulo fariseu, que fora discípulo do fariseu Gamaliel, que perseguira furiosamente cristãos e que, depois do seu rompimento com Gamaliel, se tornou cristão, iria depois, no entanto, sacrificar no templo de Jerusalém, no templo do seu apostolado. Observou publicamente durante oito dias todas as cerimônias da lei judaica a que renunciara; ajuntou mesmo devoções e purificações excessivas; enfim, judaizou inteiramente. O maior dos apostolados cristãos fez durante oito dias as mesmas coisas pelas quais há homens que são condenados à fogueira em grande parte dos povos cristãos. Teúdas, Jucas tinham-se proclamado Messias antes de Jesus. Dositeu, Simão, Meandro proclamaram-se Messias depois de Jesus. Houve desde o primeiro século da Igreja, e antes mesmo que o nome de cristão fosse conhecido, uma vintena de seitas na Judéia. Os gnósticos contemplativos, os dositeus, os ciríntios existiam antes de os discípulos de Jesus haverem tomado o apodo de cristãos. Houve em breve trinta Evangelhos, cada qual pertencendo a uma sociedade diferente; e desde o fim do século I podem contar-se trinta seitas cristãs na Ásia Menor, na Síria, em Alexandria e mesmo em Roma. Todas estas seitas, desprezadas pelo governo romano e escondidas na sua obscuridade, perseguiam-se, não obstante, umas às outras nos subterrâneos em que rastejavam; quer dizer, trocavam injúrias; era tudo o que podiam fazer na sua abjeção, quase todas compostas pela escumalha do povo. A partir da altura em que finalmente alguns cristãos abraçaram os dogmas de Platão e misturaram um pouco de filosofia à sua religião, separando-a dos judeus, tornaram-se insensivelmente mais importantes mas sempre divididos em numerosas seitas, sem que jamais existisse alguma época em que a Igreja cristã houvesse estado unida. Nasceu entre as divisões dos judeus, dos samaritanos, dos fariseus, dos saduceus, dos essenianos, dos judaítas, dos discípulos de João, dos terapeutas. Dividida desde o berço, assim permaneceu durante as perseguições que algumas vezes experimentou sob os primeiros imperadores. Muitas vezes o mártir era olhado como apóstata pelos seus irmãos, e o cristão corpocraciano expirava sob o gládio dos carrascos romanos, excomungado pelo cristão ebionita que, por seu turno, era anatematizado pelo sabeliano. Esta horrível discórdia, que dura há tantos séculos, constitui a lição bem expressiva de que devemos perdoar-nos mutuamente os nossos erros; a discórdia é o grande mal do gênero humano e a tolerância o seu único remédio. Não há quem não convenha nesta verdade, quer a medite a sangue-frio no seu gabinete, quer a examine pacificamente com os amigos. Por que razão, pois, os mesmos homens que admitem em particular a indulgência, a beneficência, a justiça, se erguem em público com tanto furor contra essas virtudes? Por quê? Porque o seu interesse é o seu deus e tudo sacrificam a este monstro que adoram. Possuo uma dignidade e um poder que a ignorância e a crueldade fundaram; caminho sobre as cabeças dos homens prosternados a meus pés; se eles se soerguem e me contemplam cara a cara, estou perdido; é preciso pois mantê-los presos ao chão com cadeias de ferro. Assim raciocinaram homens que séculos de fanatismo tornaram poderosos. Outros poderosos se lhes sobrepõem e outros ainda a estes, todos enriquecendo com os despojos do pobre, todos engordando com o seu sangue, todos rindo-se da sua imbecilidade. Unanimemente detestam a tolerância, tal como os chefes de partido enriquecidos à custa do povo receiam prestar-lhe contas, tal como os tiranos temem a palavra liberdade. Para cúmulo, pagam a fanáticos que clamam em alta grita: "Respeitai os absurdos do meu senhor, tremei, pagai e calai-vos", Assim foram os usos por longo tempo numa grande parte da terra; hoje, porém, quando tantas seitas se agitam por causa do seu domínio, que atitude tomar para com elas? Qualquer seita, como se sabe, é um título de erro; não há seitas entre os geômetras, os algebristas, os aritméticos, porque todas as proposições da geometria, da álgebra e da aritmética são verdadeiras. Em todas as outras ciências pode haver erros. Qual o teólogo tomista ou escotista que ousaria afirmar seriamente estar seguro da sua posição? Se há alguma seita que lembre os tempos dos primeiros cristãos, é, sem contestação, a dos quacres. Nenhuma se assemelha mais aos apóstolos. Estes recebiam o espírito; os quacres reúnem o espírito. Os apóstolos e os discípulos falavam três ou quatro ao mesmo tempo na assembleia do terceiro andar; os quacres fazem outro tanto no rés do chão. São Paulo permitiu às mulheres pregarem e o mesmo São Paulo o proibirá; as mulheres quacres pregam em virtude da primeira permissão. Os apóstolos e os discípulos juravam por sim ou por não, os quacres não juram de outro modo. Nenhuma dignidade, nenhuma indumentária a diferenciarem discípulos e apóstolos; os quacres usam mangas sem botões e vestem-se todos da mesma maneira. Jesus não batizou nenhum dos apóstolos; os quacres não são batizados. Seria fácil levar mais longe o paralelo; mais fácil ainda seria o fazer ver como a religião cristã de hoje difere da que Jesus praticou. Jesus era judeu, nós não somos judeus. Jesus abstinha-se de comer carne de porco por ser imunda, e carne de coelho, por ser de ruminante sem o pé fendido; nós comemos sem hesitações carne de porco, que para nós não é imunda, e coelho, que tem o pé fendido e não rumina. Jesus era circuncidado, nós conservamos o prepúcio. Jesus comia o cordeiro pascal com alface e celebrava a festa dos Tabernáculos; nós nada disso fazemos. Jesus observava o sabá, nós mudamos o sabá; Jesus sacrificava, nós não sacrificamos. Jesus escondeu sempre o mistério da sua encarnação e da sua divindade; nunca disse que era igual a Deus e São Paulo afirma expressamente na Epístola aos Hebreus que Deus criou Jesus inferior aos anjos; e, mal grado todas as palavras de São Paulo, Jesus foi reconhecido como Deus no concílio de Nicéia. Jesus não deu ao papa nem a "marche" de Ancona, nem o ducado de Spolette; e, no entanto, o papa os possui por direito divino. Jesus não transformou o casamento e o diaconato em sacramentos; entre nós, o diaconato e o casamento são sacramentos. Se atentarmos bem, podemos verificar que a religião católica, apostólica e romana é, em todas as suas cerimônias e em todos os seus dogmas, o oposto da religião de Jesus. Mas como! Devemos judaizar todos porque Jesus judaizou durante toda a vida? Se fosse permitido raciocinar consequentemente em matéria de religião, é evidente que todos deveríamos tornar-nos judeus, porquanto Jesus Cristo, nosso salvador, nasceu judeu, viveu judeu, morreu judeu e expressamente disse que cumpria na íntegra a religião judaica. E mais evidente é ainda que devemos tolerar-nos mutuamente porque todos somos fracos, inconsequentes, sujeitos à mutabilidade e ao erro. Um caniço que o vento verga sobre a lama deverá dizer a outro caniço vergado em sentido contrário: "Rasteja à minha maneira, miserável, ou apresento queixa de ti, para que te arranquem e te queimem". Tortura Embora haja poucos artigos de jurisprudência entre as nossas honestas reflexões alfabéticas, impõe-se-nos todavia dizer algo sobre a tortura, também chamada interrogatório. Trata-se de uma estranha maneira de interrogar as pessoas. Não foram, porém, simples curiosos os que a inventaram; segundo todas as aparências, esta parte da nossa legislação deve a sua origem primeira a um ladrão de estrada. Na sua maior parte, estes senhores conservam o hábito de serrar os polegares, de queimar os pés e de interrogar mediante outros tormentos os que se recusam a revelar onde têm o dinheiro. Os conquistadores, que sucederam a estes ladrões, acharam que a invenção era muito útil para os seus interesses; puseram-na em prática quando suspeitaram que houvesse alguns maus desígnios contra eles, como, por exemplo, o de ser-se livre, verdadeiro crime de lesa-majestade divina e humana. Era preciso conhecer os cúmplices; e, para esse efeito, fazia-se sofrer mil mortes a todos aqueles que eram objeto de suspeitas, pois, segundo a jurisprudência desses primeiros heróis, quem quer que fosse suspeito de ter tido algum pensamento pouco respeitoso contra eles era digno de morte. Desde que assim se merece a morte, pouco importa acrescentar tormentos pavorosos durante muitos dias e até semanas; esta prática tem mesmo um não sei quê de Divindade. A Providência submete-nos algumas vezes à tortura empregando a pedra, areias na urina, a gota, o escorbuto, a lepra, a varíola grande ou pequena, o despedaçamento das entranhas, as convulsões de nervos e outros executantes das vinganças da Providência. Ora, posto que os primeiros déspotas foram, segundo confissão de todos os seus cortesãos, imagens da Divindade, trataram de a imitar tanto quanto puderam. É muito singular que nunca se tenha falado de tratos, de tortura, nos livros dos judeus. É de lastimar que uma nação tão amável, tão honesta, tão caridosa, não tenha conhecido esta maneira de saber a verdade. A razão disto, em minha opinião, é que não tinham necessidade do sistema. Com efeito, Deus dava sempre a conhecer a verdade ao seu povo querido. Umas vezes jogavam a verdade aos dados e o culpado suspeito sempre tirava o seis. Outras vezes, dirigiam-se ao grande sacerdote que consultava Deus sem mais delongas pelo urium e o thummim. Outras vezes ainda, encomendavam-se ao vidente, ao profeta, e podeis supor que o vidente e profeta descobria as coisas mais escondidas tão bem como o urium e o thummim do grande sacerdote. O povo de Deus não estava reduzido, como nós, a ter de interrogar, a conjeturar; assim, a tortura não era usada por aquelas bandas. Foi a única coisa que faltou aos costumes do povo santo. Os romanos só infligiram a tortura aos escravos, mas estes não eram contados no número dos homens. Tudo leva a crer que um conselheiro de Tournelle também não veja como seu semelhante um homem que trazem ante si, macilento, pálido, desfeito, olhos amortecidos, barba crescida e suja, coberto pela vermina que o corroeu no calabouço. Dá-se, pois, ao prazer de lhe mandar aplicar a grande e a pequena tortura, na presença de um cirurgião que vigia o pulso do paciente, até este ficar em risco de morte, após o que se recomeça; e, como muito bem se diz na comédia Os Litigantes, "isto sempre faz passar uma hora ou duas". O grave magistrado que comprou por uma quantia qualquer o direito de fazer estas experiências sobre o próximo contará à mulher à hora de jantar o que aconteceu de manhã. À primeira vez, a senhora revolta-se, à segunda já lhe tomou o gosto, porque todas as mulheres são curiosas; c, em seguida, a primeira coisa que dirá ao marido quando este regressa a casa, de toga, é: "Queridinho, mandaste aplicar hoje a tortura a alguém?" Os franceses que passam, não sei por que, por serem um povo muito humano, admiram-se que os ingleses, que tiveram a desumanidade de nos tomarem todo o Canadá, hajam renunciado ao prazer de aplicar a tortura. Quando o cavaleiro de La Barre, neto de um tenente dos exércitos, jovem de muito espírito e grandes esperanças mas com toda a leviandade de uma juventude desenfreada, foi reconhecido culpado de ter cantado algumas canções ímpias e até de ter passado diante de uma procissão de capuchos sem tirar o chapéu, os juízes de Abbeville, pessoas comparáveis aos senadores romanos, ordenaram não só que lhe arrancassem a língua, que lhe cortassem a mão e que o queimassem lentamente, como o submeteram ainda à tortura para averiguarem precisamente quantas canções tinha cantado e quantas procissões tinha visto passar de chapéu na cabeça. Este episódio aconteceu não nos séculos XIII ou XIV mas no século XVIII. As nações estrangeiras julgam a França pelos espetáculos, pelos romances, pelos lindos versos, pelas pequenas da ópera, cujos costumes são tão doces, pelos nossos bailarinos, que têm tanta graça, pela Senhorita Clairon, que é um encanto a declamar versos. Ignoram que no fundo não há nação mais cruel que a francesa. Os russos passaram por bárbaros em 1700; nós somos bárbaros em 1769; uma imperatriz acaba de conceder a esse vasto Estado leis que teriam feito honra a Minos, a Numa e a Sólon, se houvessem disposto de espírito bastante para inventá-las. A mais notável consiste na tolerância universal e, logo a seguir, vem a abolição da tortura. A justiça e a humanidade guiaram a sua pena e ela tudo reformou. Ai da nação que, há tanto tempo civilizada, é ainda guiada por costumes antigos e atrozes! "Por que razão haveríamos de mudar a nossa jurisprudência?", perguntam nessa nação. "A Europa serve-se dos nossos cozinheiros, dos nossos alfaiates e dos nossos cabeleireiros; logo as nossas leis são boas." V Virtude O que é a virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei chamar a virtude ao que não seja fazerem-me bem? Sou indigente, és liberal; estou em perigo, tu socorres-me; enganas-me, dizes-me a verdade; sou ignorante, tu ensinas-me; chamar-te-ei sem esforço virtuoso. Mas que faremos das virtudes cardiais e teologais? Algumas hão de continuar a ser ensinadas nas escolas. Que me importa que sejas temperante? Observas um preceito salutar, a tua saúde será melhor, felicito-te. Tens fé e tens esperança. Felicito-te ainda mais; a fé e a esperança abrir-te-ão o caminho da vida eterna. As tuas virtudes teologais são dádivas celestes; as cardiais são excelentes qualidades úteis à direção da tua vida; todavia, não são virtudes em relação ao teu próximo. O homem prudente faz bem a si, o virtuoso faz bem aos outros. São Paulo teve razão em dizer que a caridade é mais importante que a fé e a esperança. Mas como! Não admitiremos como virtudes senão as que sejam úteis ao próximo? E como posso admitir outras? Vivemos em sociedade; só é verdadeiramente bom para nós aquilo que faça o bem da sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso, usará um cilício; pois bem, será santo; mas não o considerarei virtuoso a menos que venha a praticar algum ato de virtude que aproveite aos outros homens. Enquanto permanecer só não é benfazejo nem malfazejo: para nós, é nada. Se São Bruno estabeleceu a paz entre as famílias, se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou, se orou na solidão, foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios; o que não participa deste comércio, não deve ser contado entre os virtuosos. Se esse santo fosse do mundo, espalharia o bem, sem dúvida; mas, enquanto não for, o mundo terá razão em lhe recusar o nome de virtuoso; ele será para si e não para nós. Porém, dir-me-eis, se um solitário é guloso, bêbado, entregue a deboches secretos consigo mesmo, será um vicioso; logo, será virtuoso se tiver as qualidades contrárias. Não estou de acordo: trata-se de um homem vil, se tiver os defeitos a que aludis; mas não é vicioso, mau, passível de punição, em relação à sociedade que não sofre quaisquer prejuízos em consequência dos atos desse homem. É de presumir que, se ingressar na sociedade, fará o mal, será vicioso; é mesmo mais possível que venha a ser um homem maldoso do que um solitário tem perante e casto, ou venha a ser um homem de bem; pois, na sociedade, aumentam os defeitos e as boas qualidades diminuem. Há quem produza uma objeção mais forte: Nero, o Papa Alexandre VI e outros monstros da mesma espécie, espalharam benefícios; respondo com arrojo que foram virtuosos nesses dias. Alguns teólogos sustentam que o divino Imperador Antonino não era virtuoso; que era um estoico obstinado, que, não contente de comandar os homens, queria ainda por cima ser estimado por eles; que referia a si o bem que fazia ao gênero humano, que toda a vida foi justo, laborioso, benfazejo por vaidade e que se limitou a enganar os homens com as suas virtudes; e eu grito: "Meu Deus, dai-nos muitas vezes semelhantes patifes".