Voltaire - Contos ZADIG ou o DESTINO História Oriental 1. O Caolho Na época do rei Moabdar existia em Babilônia um jovem chamado Zadig, cuja boa índole havia sido aperfeiçoada pela educação. Apesar de jovem e rico, sabia regrar as paixões; não queria ter sempre razão, e tinha o hábito de respeitar a fraqueza dos homens. Era de admirar que, com tanto espírito, nunca procurasse ridicularizar esses diálogos tão vagos, tão incoerentes, tão irrequietos, essas temerárias maledicências, esses juízos ignorantes, esses atrevidos gracejos, esse inútil palavrório, que eram chamados de "conversação" em Babilônia. Havia aprendido, no primeiro livro de Zoroastro, que o amor-próprio é um balão inflado de vento, de onde saem tempestades quando recebe uma alfinetada. Não se vangloriava sobretudo de desprezar as mulheres e subjugá-las. Era generoso; não tinha medo de prestar serviços a ingratos, de acordo com este grande preceito de Zoroastro: "Quando comer, dê de comer aos cães, mesmo que eles o mordam". Era o mais sábio possível, pois procurava viver em companhia de sábios. Instruído na ciência dos antigos caldeus, conhecia os princípios físicos da natureza, tais como se conheciam naquela época, e, quanto à metafísica, sabia dessa matéria o que sempre se soube em todas as épocas, ou seja, pouquíssima coisa. Estava firmemente convencido de que o ano era composto de 365 dias e um quarto, apesar da nova filosofia do seu tempo, e de que o sol se encontrava no centro do Universo; e quando os mais importantes magos, com insultuosa arrogância, diziam-lhe que dessa maneira demonstrava maus sentimentos e que só um inimigo do Estado poderia acreditar que o sol girasse ao redor de si mesmo e o ano possuísse doze meses - Zadig mantinha-se quieto, sem raiva nem desprezo. Por possuir grande riqueza e, consequentemente, amigos, boa saúde, agradável aparência, espírito justo e moderado, e um coração sincero e nobre, achou que podia ser feliz. Iria se casar com Semira, cujo nascimento e haveres a tornavam o melhor partido de Babilônia. Dedicava-lhe um firme e virtuoso afeto, e Semira o amava com paixão. Não demoraria o feliz momento em que eles se uniriam, quando, estando os dois passeando nas proximidades de uma das portas de Babilônia, viram vindo ao seu encontro alguns homens armados de sabres e flechas. Eram os capangas do jovem Orcan, sobrinho de um ministro, e a quem os cortesãos do tio o fizeram acreditar que tudo lhe era permitido. Não possuía nenhum dos atrativos ou virtudes de Zadig; mas, achando que valia muito mais, exasperava-se por não ser o preferido. Tal ciúme, que apenas a vaidade inspirava, havia-o convencido de que amava loucamente Semira. E pretendia raptá-la. Os sequazes lançaram-se sobre ela e, agindo com brutalidade, a feriram, derramando o sangue daquela criatura cuja vista seria capaz de enternecer os tigres do monte Imaús. Ela feria os céus com seus lamentos. - Ó meu querido esposo! - clamava. - Arrebataram-me daquele que eu adoro! - Não se preocupava com o próprio perigo; pensava apenas em seu Zadig, o qual, ao mesmo tempo, defendia-a com todas as forças que lhe davam a coragem e o amor. Apenas com a ajuda de dois escravos, pôs os homens em fuga, carregando-a, desmaiada e sangrando, para a casa de seus pais. Quando Semira voltou a si, deu com os olhos em seu salvador e disse-lhe: - Ó Zadig! Antes eu o amava como meu esposo; mas agora o amo como aquele a quem devo a honra e a vida. Jamais existiu coração mais comovido que o de Semira. Jamais lábios tão encantadores expressaram sentimentos mais comoventes, com essas ardentes palavras inspiradas na maior gratidão e no enlevo do mais justificado amor. Seus ferimentos eram leves; sarou logo. Zadig havia sido atingido mais gravemente; uma flecha da perto de um olho causara-lhe profundo ferimento. Semira só pedia aos deuses o restabelecimento de seu amado. Seus olhos, noite e dia, estavam banhados de lágrimas: esperava o momento em que os de Zadig pudessem usufruir de seus olhares; mas um abscesso, que se formou no olho afetado, deu motivo para as maiores preocupações. Mandaram chamar em Mênfis o grande médico Hermes, que chegou com numeroso acompanhamento, visitou o enfermo e declarou que ele perderia a vista; predisse até o dia e a hora em que deveria ocorrer o trágico evento. - Se fosse o olho direito - disse ele -, eu poderia curá-lo; mas as feridas no olho esquerdo não têm cura. Toda Babilônia lamentou o destino de Zadig e admirou a precisão da ciência de Hermes. Dois dias depois, o abscesso desapareceu sozinho; Zadig ficou completamente curado. Então, Hermes escreveu um livro, com o qual lhe provou que não deveria ter sarado. Zadig não o leu; mas, logo que pôde sair de casa, apressou-se a ir ter com aquela em que fazia consistir toda a sua felicidade e apenas pela qual desejava conservar as duas vistas. Fazia três dias que Semira se encontrava no campo. Ficou sabendo, em caminho, que essa bela dama, depois de externar abertamente a sua irresistível aversão aos caolhos, casara-se com Orcan naquela mesma noite. Ao receber essa notícia, Zadig desmaiou; a dor o levou à beira do túmulo; por muito tempo esteve doente; mas por fim a razão derrotou o sofrimento, e a própria crueldade que experimentava serviu-lhe de consolo. - Já que sofri - declarou ele - tão cruel capricho de uma jovem da corte, vou agora procurar uma burguesa. Escolheu Azora, a mais modesta donzela e a de melhor família da cidade; casou-se com ela e viveu um mês entre as delícias da mais doce união. Somente lhe notava alguma leviandade e excessiva tendência para julgar que eram justamente os jovens mais bonitos que possuíam mais inteligência e virtudes. 2. O Nariz Certo dia Azora regressou de um passeio muito irada e com grandes exclamações. - O que você tem, minha querida esposa? Quem a colocou nesse estado? - Ah! Você ficaria como eu, se visses o que presenciei. Fui levar conforto à viúva Cosru, que faz dois dias construiu um túmulo para seu jovem marido, perto do córrego que banha as redondezas. Na sua aflição, havia prometido aos deuses que ficaria junto do túmulo enquanto corressem a seu lado as águas do córrego. - Pois então! Aí está uma louvável mulher, que amava de verdade seu marido! - Ah! Se você soubesse no que ela se ocupava quando fui visitá-la! - No quê, minha bela Azora? - Ela estava mandando desviar o córrego. E Azora estendeu-se em tais insultos, explodiu em recriminações tão violentas que em nada agradou a Zadig tanta ostentação de virtude. Tinha este um amigo, chamado Cador, que era um daqueles jovens aos quais sua mulher atribuía mais virtudes e mérito que aos outros; confiou-lhe os seus pensamentos e assegurou-se, como podia, da sua fidelidade, dando-lhe um valioso presente. Azora, que havia passado dois dias no campo em casa de uma amiga, voltou no terceiro dia. Criados em lágrimas anunciaram-lhe que o marido tinha morrido de repente naquela noite e que, não ousando levar-lhe essa terrível notícia, acabavam de enterrá-lo no túmulo de seus pais, no fundo do jardim. Ela chorou, arrancou os cabelos e jurou morrer. À noite, Cador pediu licença para lhe falar, e os dois choraram. No dia seguinte, choraram menos, e jantaram juntos. Cador confessou que o amigo havia lhe deixado a maior parte da sua fortuna, e deu a entender que, para ele, a maior felicidade seria compartilhá-la com Azora. A mulher chorou, irritou-se, voltou às boas; a ceia foi mais longa que o jantar; conversaram com mais confiança. Azora fez o elogio do defunto; mas confessou que em vida Zadig possuíra alguns defeitos dos quais Cador era isento. Durante a ceia, Cador queixou-se de uma violenta pontada no baço; a mulher, nervosa e solícita, mandou trazer todas as essências com que se perfumava, para ver se alguma não seria boa para aquilo; lamentou muito que o grande Hermes já não estivesse em Babilônia; dignou-se até tocar no ponto onde Cador sentia dores tão fortes. - Você costuma ter muitos desses cruéis ataques? - perguntou-lhe, cheia de compaixão. - Às vezes eles me levam à beira do túmulo, e só há um remédio que me alivia: é aplicar no local o nariz de um homem falecido na véspera. - Estranho remédio! - espantou-se Azora. - Não mais estranho - retrucou Cador - do que os saquinhos do Sr. Arnoult contra a apoplexia. A esse raciocínio, juntamente com os extraordinários méritos do rapaz, rendeu-se afinal a mulher. "Em todo caso", pensou ela, "quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael lhe impedirá a passagem só porque ele terá o nariz um pouco mais curto na segunda vida do que na primeira?". Pegou, então, uma navalha; foi até o túmulo do marido; regou-o de lágrimas e aproximou-se para cortar o nariz de Zadig, que encontrou deitado no túmulo. Zadig levantou-se, defendendo o nariz com uma das mãos e reprimindo a navalha com a outra. - Senhora - disse ele -, não brade tanto assim contra a viúva Cosru: o plano de me cortar o nariz é equivalente ao de desviar um córrego. 3. O Cão e o Cavalo Zadig reconheceu que o primeiro mês do casamento é de fato, como está escrito no Zend-Avesta, a lua-de-mel, e que o segundo é a lua de fel. Em pouco tempo viu-se forçado a repudiar Azora, que havia se tornado muito difícil de lidar, e procurou refúgio no estudo da natureza. - Ninguém pode ser mais feliz - dizia ele - do que um filósofo que lê nesse grande livro colocado por Deus diante dos nossos olhos. É dono das verdades que descobre; alimenta e eleva a alma; vive sossegado; nada receia dos homens, e a sua dedicada esposa não vem cortar seu nariz. Imbuído dessas ideias, retirou-se para uma casa de campo na margem do Eufrates. Ali, ele não se preocupava em calcular quantas polegadas de água corriam por segundo embaixo de uma ponte, ou se caía mais uma linha cúbica de chuva no mês do rato do que no mês do carneiro. Não programava fabricar seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de garrafa; mas se dedicou sobretudo ao estudo dos animais e das plantas, adquirindo em pouco tempo uma perspicácia que lhe permitia divisar mil diferenças onde os outros não viam mais que uniformidade. Estando um dia Zadig passeando nas proximidades de um bosque, encontrou um eunuco da rainha, seguido de vários oficiais que demonstravam a maior inquietação e vagavam de um lado para outro, como pessoas desorientadas que tivessem perdido o maior bem deste mundo. - Jovem - perguntou-lhe o primeiro-eunuco -, você não vi u o cão da rainha? - É uma cadela, e não um cão - retrucou Zadig com discrição. - Tem razão - tornou o primeiro-eunuco. - É caçadora, e também muito pequena - acrescentou Zadig. - Deu cria faz pouco tempo; é manca da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas. - Então você a viu? - indagou o primeiro-eunuco, ofegante. - Não - respondeu Zadig. - Jamais a vi na minha vida, nem nunca soube se a rainha possuía ou não uma cadela. Nesse momento, por um capricho do destino, aconteceu escapar das mãos de um cavalariço o mais belo exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros oficiais correram em sua busca com mais excitação do que o primeiro-eunuco à procura da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se porventura não havia visto o cavalo do rei. - Ele é - respondeu Zadig - o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; o rabo mede três pés e meio de comprimento; o freio é de ouro de 23 quilates; e as ferraduras de prata de onze denários. - Para onde ele se dirigiu? Onde se encontra? - indagou o monteiro- mor. - Não o vi - respondeu Zadig -, nem jamais ouvi falar nele. O monteiro-mor e o primeiro-eunuco não tiveram mais dúvidas de que Zadig roubara o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no diante da assembleia do grande desterham, que o condenou ao cnute e a passar o resto da vida na Sibéria. Logo depois que o julgamento terminou, foram encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na penosa obrigação de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar 400 onças de ouro por haver dito que não vira o que havia visto. Primeiro ele precisou pagar a multa; depois lhe concederam licença para se defender diante do conselho do grande desterham. Zadig expressou-se da seguinte maneira: - Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, ó vós que possuís o peso do chumbo, a dureza do ferro, o fulgor do diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é concedido falar diante desta augusta assembleia, juro-vos por Orosmade que nunca vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me sucedeu. Estava eu passeando pelos arredores do bosque onde encontrei o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando divisei na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que pertenciam a um cão pequeno. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, mostraram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que, por conseguinte, não fazia muito tempo que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre apareciam no solo ao lado das patas dianteiras, davam mostra de que o animal possuía orelhas bastante compridas; e, como percebi que o chão era sempre menos amassado por uma das patas do que pelas outras três, concluí que a cadela da nossa venerada rainha mancava um pouco, se assim me é permitido me exprimir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, sabeis vós que, estando eu passeando pelos caminhos do citado bosque, vi marcas de ferraduras que se encontravam todas a igual distância. "Aqui está", pensei, "um cavalo com um galope perfeito." A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, havia sido levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro do caminho. "Esse cavalo", eu disse para mim mesmo, "possui um rabo de três pés e meio, o qual, movendo-se de um lado para outro, varreu dessa forma a poeira dos troncos." Debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de altura, eu vi algumas folhas recém caídas, e concluí que o cavalo as havia tocado com a cabeça, e que tinha, por conseguinte, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de 23 quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como sendo uma pedra de toque. E, por fim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri que se tratava de prata de onze denários. Todos os juízes ficaram pasmos diante do profundo e sutil raciocínio de Zadig, e isso chegou rapidamente aos ouvidos do rei e da rainha. Só se falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete; e, apesar de que vários magos expressassem a opinião de que o deviam queimar como feiticeiro, o rei ordenou que lhe restituíssem as 400 onças de ouro em que havia sido multado. O escrivão, os meirinhos, os procuradores compareceram em grande pompa à presença de Zadig, para lhe entregar as suas 400 onças; retiveram somente 398 para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação. Zadig compreendeu como era às vezes perigoso ser por demais sábio, e jurou para si mesmo que, na próxima oportunidade, nada diria do que porventura tivesse testemunhado. Essa oportunidade não se fez esperar. Um prisioneiro de Estado, que havia fugido, passou pelas janelas de sua casa. Zadig, ao ser interrogado, nada respondeu; mas lhe provaram que ele tinha olhado pela janela. Foi multado, por esse crime, em 500 onças de ouro, e Zadig agradeceu a indulgência dos juízes, de acordo com o costume de Babilônia. "Como é lamentável, meu Deus", pensava ele, "irmos passear num bosque por onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que perigoso chegar à janela! E como é difícil ser feliz nesta vida!" 4. O Invejoso Zadig buscou consolo, na filosofia e na amizade, dos males que o destino havia lhe causado. Num subúrbio de Babilônia, ele era proprietário de uma casa decorada com ótimo gosto, onde acolhia todas as atividades e diversões dignas de um homem de bem. Na parte da amanhã abria as portas da biblioteca a todos os sábios; e a mesa, de noite, às pessoas que eram boa companhia. Mas logo percebeu como os primeiros são perigosos. Eclodiu entre eles uma grande discussão a respeito da lei de Zoroastro que proibia comer grifo. - Por que proibir comer carne de grifo - argumentavam alguns -, se esse animal não existe? - Tem de existir - replicavam outros -, dado que Zoroastro não quer que o comam. Zadig tentou conciliá-los dizendo: - Se existirem grifos, não os devemos comer; se não existirem, muito menos os comeremos; e assim, de qualquer maneira, estaremos obedecendo a Zoroastro. Um sábio, que havia escrito treze volumes sobre os grifos e que, além disso, era grande teurgo, apressou-se em ir acusar Zadig diante de um arquimago chamado Yebor, o mais tolo dos caldeus e, por conseguinte, o mais fanático. Esse homem seria capaz de mandar empalar Zadig para maior glória do Sol, recitando depois o breviário de Zoroastro no tom mais satisfeito do mundo. O amigo Cador (um amigo vale mais que cem sacerdotes) foi falar com o velho Yebor e disse-lhe: - Viva o Sol e os grifos! Evite punir Zadig: ele é um santo; possui grifos no terreiro e não os come; e o seu acusador é um herege que ousa sustentar que os coelhos têm a pata fendida e não são imundos. - Pois então - disse Yebor, meneando a cabeça calva -, cumpre empalar Zadig por haver pensado mal dos grifos, e o outro por haver falado mal dos coelhos. Cador contornou a situação por intermédio de uma dama de honra com quem tivera um filho e que gozava de muito crédito junto ao colégio dos magos. Ninguém foi empalado, motivo pelo qual muitos doutores começaram a murmurar, prevendo a decadência de Babilônia. - Vejam do que depende a felicidade! - exclamou Zadig.- Tudo me persegue neste mundo, até os seres que não existem. - Amaldiçoou os sábios, e dali para a frente só procurou viver em boa companhia. Reunia em casa os homens mais insignes de Babilônia e as mulheres mais amáveis; oferecia delicadas ceias, muitas vezes precedidas de concertos e animadas por agradáveis conversações de quem conseguira se abster do empenho de mostrar espírito, que é a forma mais certa de não o ter e de estragar a mais brilhante reunião. Nem a escolha dos amigos nem a dos pratos era influenciada pela vaidade: pois em tudo preferia o ser ao parecer; e com isso atraía a verdadeira consideração à qual não almejava. Em frente a sua casa morava Arimaze, personagem cuja mesquinhez de alma estava impressa na grosseira fisionomia. Vivia corroído de fel e inchado de orgulho; e, para cúmulo, era um maçante "espirituoso". Não havendo nunca obtido sucesso na sociedade, vingava-se falando mal dela. Embora fosse riquíssimo, tinha dificuldade em reunir alguns aduladores em seus salões. Importunava-se com o barulho dos carros que paravam à noite diante da casa de Zadig, e mais ainda o irritava o ruído de seus louvores. Algumas vezes ia visitar Zadig e sentava-se à mesa sem ser convidado: estragava então toda a alegria da reunião, como dizem que as harpias envenenam a carne em que tocam. Certa vez ele ofereceu uma festa a uma dama que, em lugar de aceitá-la, foi cear na casa de Zadig. Em outra ocasião, encontrando-se os dois no palácio, abordaram um ministro, que convidou Zadig para cear, sem estender o convite a Arimaze. Os mais implacáveis ódios não têm em geral raízes mais importantes. Esse homem, que era chamado de O Invejoso, planejou prejudicar Zadig, porque este era chamado de O Feliz. A oportunidade de praticar o mal aparece cem vezes por dia, e a de praticar o bem, uma vez por ano, diz Zoroastro. O invejoso foi se encontrar com Zadig, que passeava no jardim em companhia de dois amigos e uma dama, a quem muitas vezes dizia coisas galantes, sem outra intenção a não ser de dizê-las. Conversavam a respeito da guerra que o rei acabava de ganhar contra o príncipe de Hircânia, seu vassalo. Zadig, que sobressaíra pela coragem nessa curta guerra, louvava muito o rei e ainda mais a dama. Tomou as suas tabuinhas e escreveu quatro versos de improviso, mostrando-os a sua bela companheira. Os amigos pediram que os lesse para eles; mas a modéstia o impediu, ou melhor, um bem compreendido amor-próprio. Sabia que versos improvisados só prestam para a pessoa em cuja honra são compostos: quebrou em duas a tabuinha em que escrevera e lançou as duas metades numa moita de roseiras, onde em vão os outros as procuraram. Como estivesse começando a chover, entraram em casa. O invejoso, tendo ficado no jardim, pôs-se a procurar uma das metades. A tabuinha havia sido quebrada de tal modo que cada metade de linha formava sentido e até mesmo um verso de menor medida; porém, por um acaso ainda mais estranho, o conjunto desses quatro pequenos versos também completava um sentido que continha as mais terríveis injúrias contra o rei. Lia-se: Pelo crime brutal Venceu o soberano, Na paz universal É o único tirano. O invejoso sentiu-se feliz pela primeira vez na vida. Tinha em mãos com que prejudicar um homem virtuoso e digno. Cheio de cruel alegria, fez chegar ao rei aquela sátira escrita por Zadig; trancafiaram na prisão a ele, aos seus dois amigos e à dama. Em pouco tempo foi concluído o julgamento sem que se dignassem interrogá-lo. Quando foi ouvir a sentença, encontrou de passagem o invejoso, o qual lhe disse que os seus versos não tinham valor algum. Zadig não pretendia ser um bom poeta, mas o enfurecia o fato de ser condenado por crime de lesa-majestade e de ver que mantinham na prisão uma bela dama e dois amigos por causa de um crime que ele não havia cometido. Não lhe permitiram que se pronunciasse, porque as suas tábuas falavam o bastante. Tal era a lei de Babilônia. Condenaram-no, então, ao suplício, diante de uma multidão de curiosos, nenhum dos quais ousava lamentá-lo, e que se precipitavam para examinar-lhe o rosto e ver se ele morria com cara boa. Somente seus parentes estavam tristes, pois não herdavam nada. Três quartos de seus bens seriam confiscados em proveito do rei, e o último quarto, em proveito do invejoso. Quando ele se preparava para a morte, o papagaio do rei voou do seu balcão e foi pousar no jardim de Zadig, sobre uma moita de roseiras. De uma árvore vizinha, havia precipitado ali um pêssego, derrubado pelo vento, indo cair em cima de um pedaço de tábua de escrever, à qual ficara colado. O papagaio carregou o pêssego e a tabuinha, depositando-os sobre os joelhos do rei. O monarca, curioso, leu no fragmento algumas palavras que não formavam sentido e que pareciam finais de versos. Ele amava a poesia, e sempre há alguma possibilidade com reis que gostam de versos: a aventura do papagaio deu-lhe o que pensar. A rainha, que se recordava do que estava escrito na tábua de Zadig, mandou buscá-la. Compararam os dois pedaços, que se ajuntaram perfeitamente; surgiram então os versos exatamente como Zadig os tinha escrito: Pelo crime brutal era assolada a terra. Venceu o soberano, e libertos nos vimos. Na paz universal somente o amor faz guerra: É o único tirano a quem não resistimos. O rei logo ordenou que trouxessem Zadig a sua presença e libertassem da prisão seus dois amigos e a bela dama. Zadig lançou-se de rosto contra o solo aos pés do rei e da rainha: pediu-lhes humildemente perdão de haver escrito maus versos; falou com tanta graça, espírito e razão que o rei e a rainha expressaram o desejo de tornar a vê-lo. Voltou, e agradou ainda mais. Deram-lhe todos os bens do invejoso que o havia acusado injustamente, mas Zadig devolveu-os a ele, e o invejoso só se comoveu com o prazer de não perder seus haveres. Dia após dia aumentava a estima do rei. Convidava Zadig para todas as festas e consultava-o em todos os seus negócios. A rainha começou então a olhá-lo com uma benevolência que poderia tornar-se perigosa para si mesma, para o rei, seu excelso marido, para Zadig e para o reino. Zadig começava a acreditar que não é difícil ser feliz. 5. Os Generosos Chegou a ocasião de uma grande festa que era realizada de cinco em cinco anos. Era hábito em Babilônia proclamar solenemente, ao término de cinco anos, qual o cidadão que praticara a ação mais generosa. Os grandes e os magos eram os juízes. O primeiro-sátrapa, que governava a cidade, referia as mais belas ações que haviam acontecido durante o seu governo. Realizava-se a votação; o rei proferia a sentença. Dos quatro cantos da Terra vinha gente assistir a essa solenidade. O vencedor recebia das mãos do monarca uma taça de ouro guarnecida de pedrarias, e o rei lhe dizia as seguintes palavras: - Receba este prêmio da generosidade, e queiram os deuses conceder-me muitos súditos que se assemelhem a você! Quando chegou o notável dia, o rei sentou-se no trono, cercado dos grandes, dos magos e dos representantes de todas as nações que compareciam a essa comemoração, em que a glória não era conquistada com a velocidade dos cavalos, nem com a força física, mas apenas com a virtude. O primeiro-sátrapa relatou em voz alta as ações que podiam merecer a inestimável recompensa. Não falou da magnanimidade com que Zadig havia devolvido os bens ao invejoso: não era ação que merecesse concorrer ao prêmio. Em primeiro lugar apresentou um juiz que, havendo feito um cidadão perder importante processo por causa de um engano do qual não era minimamente responsável, entregara-lhe no entanto todos os seus bens, que tinham o mesmo valor dos que o outro perdera. Em seguida apresentou um rapaz que, loucamente apaixonado pela moça com quem iria se casar, não havia hesitado em cedê-la a um amigo prestes a morrer de amor por ela; e ainda participara com o dote. E, por fim, um soldado que, na guerra de Hircânia, havia dado ainda maior exemplo de generosidade. Soldados inimigos procuravam raptar-lhe a sua querida, que ele defendia com valentia, quando lhe vieram dizer que outros hircanianos, a poucos passos dali, tinham se apoderado de sua mãe: deixou, em lágrimas, a amada e correu para libertar a mãe; regressou em seguida para aquela a quem amava, e a encontrou moribunda. Pretendeu suicidar-se; a mãe o fez entender que ele era o único arrimo e o soldado teve a coragem de suportar a vida. As simpatias dos juízes pendiam para esse soldado, quando o rei tomou a palavra e declarou: - Sua ação e dos outros são belas, mas não me espantam. Contudo, o que fez Zadig me deixou verdadeiramente admirado. Poucos dias atrás, privara eu de minha graça a meu ministro e favorito Coreb. Queixava-me dele com violência, e todos os cortesãos me asseguravam que havia sido por demais brando; cada qual se empenhava em dizer o pior possível de Coreb. Perguntei a Zadig o que pensava, e ele ousou falar bem do desamparado. Confesso que vi, nas nossas histórias, exemplos de quem reparasse um erro com a própria fortuna, quem cedesse a noiva, ou preferisse a mãe a sua amada; mas jamais soube que um cortesão tenha falado bem de um ministro em desgraça, do qual o rei sentisse raiva. Concedo 20 mil moedas de ouro a cada um daqueles cujas generosas ações acabam de ser referidas; mas entrego a taça a Zadig. - Majestade - disse este -, é Vossa Majestade quem merece a taça, pois foi quem praticou a ação mais inacreditável: sendo rei, não vos indignastes por haver vosso escravo contrariado as vossas paixões. Admiraram o rei e Zadig. O que havia cedido seus bens, o que permitira que a noiva se casasse com o amigo, o que havia preferido a salvação da mãe à da mulher amada receberam os presentes do rei; tiveram seu nome escrito no livro dos generosos. Zadig recebeu a taça. O rei ganhou a reputação de bom monarca, que, porém, não manteve por muito tempo. Tal dia foi festejado com festas mais duradouras do que o mandava a lei, e ainda é lembrado em toda a Ásia. Zadig dizia: "Finalmente sou feliz!". Mas estava enganado. 6. O Ministro O rei havia perdido seu primeiro-ministro. Para substituí-lo, escolheu Zadig. Todas as belas mulheres de Babilônia aprovaram a escolha, porque a partir da fundação do império jamais acontecera haver um ministro tão jovem. Mas desagradou a todos os cortesãos; o invejoso chegou a cuspir sangue, e seu nariz aumentou extraordinariamente. Após ter agradecido ao rei e à rainha, Zadig foi também agradecer ao papagaio: - Bela ave, foi você que me salvou a vida e me tornou primeiro-ministro: a cadela e o cavalo de Suas Majestades me causaram muito mal, mas você me trouxe o bem. Eis do que depende o destino dos homens! Mas - acrescentou ele - tão estranha felicidade talvez termine dentro de pouco tempo. - Certo - respondeu o papagaio. O que não deixou de deixar Zadig impressionado. Contudo, por ser bom físico e não acreditar que os papagaios possuíssem o dom da profecia, logo se tranquilizou e começou a exercer o cargo da melhor maneira possível. Aplicou sobre todos o sagrado poder das leis, e a ninguém fez sentir o peso de sua própria dignidade. Não interferiu nos votos do Conselho de Estado, e cada vizir podia ter sua opinião sem desagradá-lo. Quando julgava uma causa, não era ele quem julgava, e sim a lei; porém, quando esta era por demais difícil, sabia amenizá-la, e, se não existiam leis sobre a matéria, o seu sentimento de justiça as criava tais que poderiam ser assumidas pelo próprio Zoroastro. Foi dele que herdaram as nações este grande princípio: é melhor correr o risco de libertar um culpado que condenar um inocente. Acreditava que as leis eram feitas para ajudar os cidadãos, tanto quanto para intimidá-los. Seu maior talento consistiu em descobrir a verdade, que todos os homens procuram ocultar. Logo nos primeiros dias da sua administração, pôs à prova esse inestimável dom. Havia morrido na Índia um famoso comerciante de Babilônia; constituíra herdeiros seus dois filhos homens, em partes iguais, depois que tivessem casado a irmã, e deixava ainda 30 mil moedas de ouro àquele dentre os dois filhos que conseguisse provar dedicar-lhe mais amor. O mais velho ergueu-lhe um túmulo, o segundo aumentou o dote da irmã com uma parte da própria herança. "É o mais velho", diziam todos, "aquele que mais ama o pai; o mais jovem tem mais amor à irmã; é o mais velho que merece as 30 mil moedas." Zadig mandou chamar os dois irmãos separadamente. Disse ao mais velho: - Seu pai não morreu. Sarou da doença e está de volta a Babilônia. - Graças a Deus! - respondeu o rapaz. - Mas aí está um túmulo que me custou muito caro! Zadig disse depois a mesma coisa ao mais jovem. - Graças a Deus! - exclamou este. - Vou devolver a meu pai tudo o que tenho; mas gostaria que ele deixasse com minha irmã o que eu lhe dei por dote. - Não devolverá nada - disse Zadig - e ficará com as 30 mil moedas: é você que ama mais seu pai. Uma jovem muito rica havia prometido se casar com dois magos e, após ter recebido, durante alguns meses, doutrinação de outro, ficou grávida. Ambos queriam se casar com ela. - Aceitarei como marido - disse ela - aquele que me colocou em condições de fornecer um cidadão ao império. - Fui eu quem fez essa boa obra - declarou um. - Fui eu quem teve essa vantagem - disse o outro. - Sendo assim - concluiu ela -, reconhecerei como pai da criança aquele que tiver condições de lhe dar melhor educação. Nasceu-lhe um menino. Cada um dos magos quis encarregar-se da sua educação. A causa foi levada a Zadig, que mandou chamar os dois litigiosos. - O que irá ensinar ao seu pupilo? - perguntou ao primeiro. - Irei lhe ensinar - disse o mago - as oito partes da oração, mais dialética, astrologia, demonomancia, e o que são a substância e o acidente, o abstrato e o concreto, as mônadas e a harmonia preestabelecida. - Eu - declarou o segundo - procurarei torná-lo justo e digno de ter amigos. Zadig pronunciou-se: - Sejas ou não pai da criança, irá se casar com a mãe dela. 7. Disputas e Audiências Dessa maneira exibia ele, todos os dias, a finura de sua índole e a bondade de sua alma; era admirado e amado. Era tido como o mais afortunado dos homens; seu nome corria todo o império; todas as mulheres se extasiavam diante dele; todos os cidadãos lhe celebravam a justiça; os sábios o consideravam um oráculo; os próprios sacerdotes admitiam que ele sabia mais que o velho arquimago Yebor. Longe se estava agora de processá-lo por causa dos grifos; só se acreditava naquilo que ele julgava crível. Havia em Babilônia uma grande discussão, a qual, tendo iniciado fazia 1.500 anos, ainda dividia o império em duas seitas irreconciliáveis: pretendia uma que nunca se deveria entrar no Templo de Mitra a não ser com o pé esquerdo; detestava a outra tal hábito, e só entrava com o pé direito. Estava o universo com os olhos fixos nos dois pés, e toda a cidade agitada e suspensa. Zadig entrou no templo saltando de pés juntos, e depois provou, numa eloquente oração, que ao Deus do céu e da Terra pouco lhe importa a perna esquerda ou a perna direita. O invejoso e a mulher julgaram que no seu discurso não havia figuras suficientes, nem que fizera devidamente dançar os montes e as colinas. - É seco e sem inspiração - diziam. - Não se lhe vê nem o mar fugir, nem caírem as estrelas, nem o sol fundir-se como cera; falta-lhe o bom estilo. Zadig contentava-se em possuir o estilo da razão. Todo mundo concordou com ele, não porque estivesse no bom caminho, não porque fosse razoável, ou amável, mas porque ele era o primeiro-ministro. Com igual ventura se resolveu o grande processo entre os magos brancos e os magos negros. Sustentavam os brancos que, quando se rezava a Deus, era uma impiedade voltar-se para o oriente; asseguravam os negros que Deus tinha horror às orações dos homens que se voltavam para o ocidente. Zadig ordenou que cada qual se voltasse para onde bem entendessem. Deu um jeito de despachar, na parte da manhã, os assuntos particulares e os gerais; destinava o resto do dia ao embelezamento de Babilônia; mandava representar tragédias que faziam chorar e comédias que faziam rir, o que havia muito passara de moda, mas a que o seu discernimento dera novo crédito. Não pretendia saber mais que os artistas; recompensava-os com benefícios e distinções, e não tinha inveja em segredo do seu talento. À noite, divertia muito o rei, e principalmente a rainha. Dizia o rei: "Que grande ministro!"; e a rainha: "Que amável ministro!", e ambos acrescentavam: "Que pena se o tivessem enforcado!". Nunca um homem na sua posição fora obrigado a conceder tantas audiências às mulheres. A maioria vinha falar-lhe de problemas que não tinham, para arranjar algum com ele. A mulher do invejoso foi das primeiras que se apresentaram; jurou-lhe por Mitra, pelo Zend-Avesta e pelo fogo sagrado que havia sido contrária à atuação do marido; confiou-lhe depois que este era ciumento e bruto; deu-lhe a entender que os deuses o puniam recusando-lhe os preciosos efeitos desse fogo sagrado pelo qual o homem é semelhante aos imortais; acabou por deixar cair a liga; Zadig apanhou-a com a costumeira educação, porém não a prendeu ao joelho da dama; e essa pequena falta, se é que o era, foi causa dos mais terríveis infortúnios. Zadig não pensou mais no caso, mas a esposa do invejoso pensou muito. Outras damas se apresentavam todos os dias. Relatam os documentos secretos de Babilônia que ele sucumbiu uma vez, mas muito se espantou de fazê-lo sem volúpia e abraçar a amante distraidamente. Aquela a quem dera, quase sem o notar, testemunhos da sua proteção era uma camareira da rainha Astartéia. Essa terna jovem pensava, para se consolar: "Que preocupações não terá esse homem na cabeça, para que sempre pense neles, até quando pratica o amor!". No momento em que muitas pessoas não dizem nada e outras só pronunciam palavras sagradas, Zadig havia exclamado de repente: - A rainha! Julgou a moça que ele, finalmente, voltara a si num bom momento e que lhe dizia: "Minha rainha!". Mas Zadig, sempre absorto, pronunciou o nome de Astartéia. A jovem, que, naquelas felizes circunstâncias, interpretava tudo em proveito seu, imaginou que aquilo queria dizer: "Você é mais bonita que a rainha Astartéia!". Saiu dos aposentos de Zadig repleta de bonitos presentes. Contou a aventura à invejosa, que era sua amiga íntima; esta se sentiu cruelmente ofendida com a preferência. - Ele nem se dignou - declarou ela - prender- me esta liga, que eu, por sinal, não quis mais usar. - Oh! Imagine! - disse a feliz jovem à invejosa. - Essas suas ligas são idênticas às da rainha! São feitas pela mesma costureira? A invejosa ficou cismada, nada respondeu, e foi consultar seu marido, o invejoso. Enquanto isso, Zadig se dava conta de suas contínuas distrações durante as audiências e julgamentos; não sabia a que atribuí-las: era esse o seu único cuidado. Teve um sonho: parecia-lhe estar deitado sobre ervas secas, entre as quais algumas espinhosas, que o incomodavam, e que depois descansava suavemente num leito de rosas, de onde saía uma serpente que o feria no coração com sua língua aguda e peçonhenta. "Ai!", dizia ele, "bem sei que estive por muito tempo deitado naquelas ervas secas e espinhentas e agora me encontro num leito de rosas; mas que significado terá a serpente?" 8. O Ciúme A desventura de Zadig teve origem da própria ventura, e sobretudo do seu mérito. Encontrava-se todos os dias com o rei e Astartéia, sua sublime esposa. O encanto da conversação do primeiro-ministro era aumentado por esse desejo de agradar que está para o espírito como o ornamento está para a beleza; sua juventude e graça causaram em Astartéia uma impressão da qual esta no início não se deu conta. Sua paixão crescia no seio da inocência. Astartéia entregava-se sem escrúpulo e sem medo ao prazer de ver e ouvir um homem tão caro a seu marido e ao Estado; não parava de elogiá-lo diante do rei; falava dele às damas de companhia, que ainda aumentavam os elogios; tudo concorria para lhe aprofundar no coração a flecha que ela não sentia. Fazia presentes a Zadig, nos quais entrava mais galanteria do que ela mesma supunha; julgava não lhe falar senão como rainha satisfeita de seus serviços, e suas expressões eram, algumas vezes, as de uma mulher sensível. Astartéia era muito mais bonita do que aquela Semira que tanto odiava os caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz do marido. A familiaridade de Astartéia, suas ternas frases, de que começava a corar, seus olhares, que queria desviar, e que se fixavam nos dele, acenderam no coração de Zadig uma chama que o assombrou. Lutou; pediu socorro à filosofia, que sempre o ajudara; mas só conseguiu luzes, não recebendo em troca nenhum alívio. O dever, a gratidão, a soberana majestade violada apresentavam-se-lhe aos olhos como deuses vingativos; lutava e triunfava; mas essa vitória, que era preciso renovar a todo momento, custava-lhe gemidos e lágrimas. Não mais ousava falar à rainha com aquela doce liberdade que tais encantos tivera para ambos; seus olhos cobriam-se de uma nuvem; suas palavras eram constrangidas e incoerentes; baixava as pálpebras; e quando, sem querer, o seu olhar se voltava para Astartéia, encontrava o da rainha turvado de lágrimas, de onde partiam raios; pareciam dizer um ao outro: "Nós nos adoramos e temos medo do amor; ardemos ambos num fogo que condenamos". Zadig retirava-se exasperado da sua presença, com um peso no coração que não mais podia aguentar; na violência da sua agitação, não pôde evitar que o amigo Cador lhe descobrisse o segredo, como um homem que, tendo resistido por muito tempo a uma dor profunda, deixa por fim revelar o seu mal por um grito provocado por um acesso mais agudo e pelo suor que lhe banha a fronte. - Já descobri - disse-lhe Cador - os sentimentos que procurava ocultar de si mesmo; as paixões emitem sinais que não enganam. Por aí verá, meu caro Zadig, já que eu li no seu coração, se o próprio rei não irá descobrir um sentimento que o ofende. Não possui ele outro defeito senão o de ser o mais ciumento dos homens. Resista a sua paixão com mais força do que a rainha combate a dela, porque você é filósofo e porque é Zadig. Astartéia é mulher; deixa falar seus olhares com tanto maior imprudência por ainda não se considerar culpada. Infelizmente tranquilizada pela sua inocência, negligencia as necessárias aparências. Tremerei por ela enquanto não tiver nada do que se censurar. Se fossem ambos cúmplices, saberiam enganar todos os olhos: uma paixão nascente e contestada logo se revela; um amor satisfeito sabe esconder-se. Zadig tremeu diante da ideia de trair o rei seu benfeitor; e nunca foi tão fiel ao príncipe como quando se viu culpado para com ele de um crime involuntário. Porém, tantas vezes pronunciava a rainha o nome de Zadig, tal rubor lhe cobria a fronte ao dizê-lo; ora se mostrava tão animada, ora tão calada, quando ele lhe falava na presença do rei; caía em tão profundas cismas depois que Zadig se retirava, que o rei se sentiu inquieto. Acreditou em tudo o que via, e imaginou tudo o que não via. Observou sobretudo que as chinelas de sua esposa eram azuis, e que as chinelas de Zadig eram azuis, que as fitas de touca de sua mulher eram amarelas, e que o barrete de Zadig era amarelo: indícios terríveis para um soberano suscetível. Em seu espírito envenenado, as suspeitas se transformaram em certezas. Os escravos dos reis e das rainhas são outros tantos espiões de seus corações. Descobriram logo que Astartéia amava e que Moabdar sentia ciúme. O invejoso fez a invejosa enviar ao rei a sua liga, que se assemelhava à da rainha. Por cúmulo da desgraça, essa liga era azul. O monarca só pensou na maneira de vingar-se. Decidiu uma noite mandar envenenar a rainha e enforcar Zadig ao nascer do dia. A ordem foi transmitida a um impiedoso eunuco, executor das suas vinganças. Encontrava-se então no quarto do rei um anão que era mudo, mas não surdo. Sempre o toleravam em todos os lugares: ele testemunhava tudo o que acontecia de mais secreto, como um animal doméstico. Esse pequeno mudo era muito devotado à rainha e a Zadig. Ouviu, com surpresa e horror, a sentença de morte. Mas como prevenir essa terrível ordem, que dentro de poucas horas seria executada? Escrever, não sabia; mas havia aprendido a desenhar e fazia retratos com muita semelhança. Passou uma parte da noite a rabiscar o que desejaria dizer à rainha. O desenho representava o rei furioso, num canto do quadro; um cordão azul e um vaso sobre uma mesa, e ainda ligas azuis e fitas amarelas; a rainha, no meio do quadro, morrendo entre os braços de suas amas, e Zadig estrangulado a seus pés. O horizonte apresentava um sol nascente, para indicar que a terrível execução se efetuaria aos primeiros raios da aurora. Logo que terminou o trabalho, correu até uma camareira de Astartéia, acordou-a, e deu-lhe a entender que era preciso levar imediatamente o quadro à rainha. No meio da noite, batem na porta de Zadig; despertam-no; entregam-lhe um bilhete da rainha; julga estar sonhando; abre o papel com mão tremente. Qual não foi a sua consternação e o seu desespero ao ler as seguintes palavras: "Fuja imediatamente, senão vão lhe tirar a vida. Fuja, Zadig, ordeno-lhe em nome do nosso amor e das minhas fitas amarelas. Eu não sou culpada; mas sinto que vou morrer como uma criminosa". Zadig mal teve forças para falar. Mandou chamar Cador e, sem nada lhe dizer, mostrou-lhe o bilhete. Cador obrigou-o a obedecer e a tomar rapidamente o caminho de Mênfis. - Se você se atrever a ir falar com a rainha, apressará a sua morte; se falar com o rei, da mesma forma irá prejudicar a rainha. Encarrego-me do seu destino; siga o seu. Espalharei o boato de que partiu para a Índia. Em breve me encontrarei com você e lhe comunicarei o que houver acontecido em Babilônia. Cador, no mesmo instante, mandou trazer dois dromedários dos mais rápidos a uma porta secreta do palácio; fez com que Zadig montasse, precisando até mesmo ampará-lo, pois parecia prestes a entregar a alma. Um só criado o acompanhou; e em breve Cador, cheio de espanto e angústia, perdeu de vista o amigo. O ilustre fugitivo, ao alcançar o alto de uma colina de onde se avistava Babilônia, dirigiu o olhar para o palácio da rainha, e desmaiou; só recuperou os sentidos para derramar lágrimas e desejar a própria morte. Por fim, após haver-se ocupado do lamentável destino da mais amável entre as mulheres e a primeira rainha do mundo, voltou o pensamento para si mesmo e exclamou: - O que é então a vida humana? De que me serviu a virtude? Duas mulheres me enganaram indignamente; a terceira, que não é culpada, e mais bonita que as outras, vai perder a vida. Todo o bem que pratiquei foi sempre para mim uma fonte de maldições, e só fui elevado ao ápice da grandeza para cair no mais horrível precipício do infortúnio. Se eu tivesse sido mau como tantos outros, seria hoje feliz como eles. Entristecido por essas funestas reflexões, cobertos os olhos pelo véu da dor, a palidez da morte nas faces, e a alma perdida no mais sombrio desespero, seguia Zadig em direção ao Egito. 9. A Mulher Surrada Zadig guiava-se pelas estrelas. A constelação de Órion e o brilhante astro de Sírio o orientavam na direção do pólo de Canope. Admirava esses enormes globos de luz que parecem a nossos olhos fracas centelhas, enquanto a Terra, que na verdade não passa de um imperceptível ponto no firmamento, apresentava-se a nossa cobiça algo tão grande e tão nobre. Enxergava então os homens tais como são na realidade: insetos a se devorarem entre si num pequeno átomo de lama. Essa imagem verdadeira parecia extinguir suas desventuras, evidenciando-lhe o nada da sua existência e a de Babilônia. Sua alma arrebatava-se até o infinito e contemplava, livre dos sentidos, a imutável ordem do Universo. Mas quando, em seguida, voltando a si mesmo e penetrando de novo em seu coração, pensava em Astartéia, sacrifica da por sua causa, o Universo desaparecia diante de seus olhos, e ele só via, em toda a natureza, Astartéia moribunda e Zadig desgraçado. Enquanto se entregava a esse fluxo e refluxo de sublime filosofia e dor avassaladora, ia avançando para a fronteira do Egito; e seu fiel criado já se encontrava na primeira localidade, em busca de alojamento. Enquanto isso, Zadig passeava pelos jardins dos arredores. De repente avistou, não distante da estrada real, uma mulher que gritava por socorro e um homem furioso que a perseguia. O homem a estava alcançando e ela, caída, abraçava-lhe os joelhos. O homem enchia-a de pancadas e censuras. Pela violência do egípcio e pelos insistentes pedidos de perdão que lhe pedia a dama, Zadig percebeu que ele era ciumento e ela, infiel. Mas, depois de reparar naquela mulher, que era de sublime beleza e até se parecia um pouco à infeliz Astartéia, sentiu-se tomado de compaixão por ela e ódio pelo egípcio. - Ajude-me! - gritou ela para Zadig, entre soluços. - Arranque-me das mãos do mais bárbaro dos homens, salve-me a vida! A esses pedidos, Zadig lançou-se entre ela e aquele bárbaro. Tinha algum conhecimento da língua egípcia, e assim lhe falou: - Se possui alguma humanidade, peço-lhe que respeite a beleza e a fraqueza. Pode dessa maneira ultrajar uma obra-prima da criação, que jaz a seus pés e só tem por defesa as lágrimas? - Ah! Ah! - exclamou o possesso. - Quer dizer então que também a ama? É de você que eu preciso me vingar. Dizendo essas palavras, o homem larga a dama, a quem segurava pelos cabelos, e, empunhando a lança, tenta matar o estrangeiro. Este, que não havia perdido o sangue-frio, evitou facilmente o golpe furioso. Segurou a lança perto da ponta. Um queria puxá-la e o outro, arrancá-la. A lança quebra-se. O egípcio puxa a espada; Zadig também. Atacam-se. Lança aquele cem golpes precipitados, apara-os este com habilidade. A dama, sentada na relva, arruma os cabelos e olha para os dois. O egípcio era o mais robusto, Zadig o mais ágil. Batia-se aquele como um homem cuja ira cega lhe guiava ao acaso os movimentos. Zadig desarma-o. E como o egípcio, mais furioso, procura lançar-se contra ele, Zadig segura-o, domina-o, derruba-o e, apontando-lhe a espada contra o peito, oferece poupar-lhe a vida. O egípcio, fora de si, arranca o punhal e fere Zadig no mesmo instante em que o vencedor o perdoava. Indignado, Zadig lhe enfia a espada no peito. O egípcio lança um grito horrível e morre, debatendo-se. Zadig avança então para a mulher e diz-lhe respeitosamente: - Foi ele que me obrigou a matá-lo; está vingada e livre do homem mais violento que já vi na minha vida. Que quer agora de mim, senhora? - Que morra, infame, que morra; você matou o meu amor; eu gostaria de lhe esmagar o coração. - Na verdade, senhora, tinha um estranho amor; ele a surrava com toda a força e queria tirar-me a vida por me haver pedido socorro. - Quisera que ele me surrasse ainda mais - retorquiu a dama, aos gritos. - Eu bem que o merecia, pois lhe dei motivos para o ciúme. Quem me dera que ele me surrasse e que você estivesse no seu lugar! Zadig, mais surpreso e irado do que nunca estivera em sua vida, retrucou: - Senhora, apesar de toda a sua beleza, mereceria que eu a surrasse também, tanta é a sua incoerência; mas não me darei a esse trabalho. Dito isso, montou no dromedário e dirigiu-se à cidade. Mal dera alguns passos, volta-se devido ao barulho que faziam quatro correios de Babilônia. Vinham a toda brida. Um deles, ao ver a mulher, exclamou: - É ela mesma; assemelha-se à descrição que nos fizeram. - Sem dar atenção ao morto, agarram logo a dama, que não parava de gritar para Zadig: - Socorra-me outra vez, generoso estrangeiro! Perdoe-me por haver-me queixado de você. Socorra-me, que serei sua até a morte. - A Zadig passara-lhe todo e qualquer desejo de lutar por ela. - Arranje-se com outros - respondeu-lhe. - A mim você não pega mais! Por sinal, estava ferido, perdia sangue e precisava de socorro; e a vista dos quatro babilônios, com certeza enviados pelo rei Moabdar, enchia-o de inquietação. Avança com rapidez para a aldeia, sem conseguir entender por que razão vinham quatro correios de Babilônia apoderar-se daquela egípcia, e mais espantado ainda com o caráter da mulher. 10. A Escravidão Quando entrou na cidade egípcia, foi cercado pelo povo. - Foi ele que raptou a bela Missuf! - gritavam - E também assassinou Cletófis! - Senhores - disse Zadig -, Deus me livre de algum dia raptar a bela Missuf de vocês! É por demais caprichosa. E, quanto a Cletófis, eu não o matei: só me defendi contra ele. Queria me matar porque eu lhe pedi, com toda a humildade, que poupasse a bela Missuf, a quem estava surrando sem piedade. Sou um estrangeiro que vem buscar asilo no Egito; e seria descabido que, vindo pedir a proteção de vocês, começasse me apoderando de uma mulher e assassinando um homem. Os egípcios eram justos e humanitários. O povo conduziu Zadig até a delegacia. Começaram tratando-lhe o ferimento, e depois o interrogaram, a ele e ao criado separadamente, a fim de saber a verdade. Chegaram à conclusão de que Zadig não era um assassino; porém, sendo culpado de haver vertido sangue humano, a lei o condenava à escravidão. Seus dois dromedários foram vendidos em proveito da cidade, e repartiram entre os habitantes todo ouro que ele trazia. Zadig foi exposto em praça pública, como também seu companheiro de viagem. Um mercador árabe, chamado Setoc, arrematou-o; mas o criado, mais resistente à fadiga, foi vendido muito mais caro que o patrão. Nem faziam comparação entre os dois. Zadig ficou, como escravo, subordinado ao seu serviçal; amarraram um ao outro por uma corrente presa aos tornozelos, e, nesse estado, acompanharam ambos o seu senhor. Zadig, pelo caminho, consolava o criado e exortava-o a ter paciência; porém, conforme o seu costume, fazia reflexões sobre a vida humana: _ Vejo - dizia-lhe - que os males do meu destino se expandem sobre o seu. Até agora, tudo me saiu muito estranho, na verdade. Multaram-me por causa de um grifo; condenaram-me ao suplício por ter escrito versos em louvor do rei; quase fui estrangulado porque a rainha tinha fitas amarelas; e eis-me agora escravizado com você porque um brutamontes deu uma surra na amante. Mas não percamos a coragem; tudo isso, com certeza, acabará; afinal de contas, os mercadores árabes precisam ter escravos; e por que não seria eu um escravo como qualquer outro, visto que sou um homem como qualquer outro? Esse mercador não pode ser impiedoso, pois terá de tratar bem os seus escravos, se quiser aproveitá-los. Assim falava ele, mas, no fundo do coração, estava preocupado com a sorte da rainha de Babilônia. Setoc, o mercador, partiu dois dias depois para a Arábia deserta, com os escravos e camelos. Sua tribo vivia lá pelos lados do deserto de Horeb, e a viagem foi longa e penosa. Setoc, no caminho, se preocupava mais com o criado do que com o patrão, pois o primeiro sabia lidar melhor com os camelos, e todas as pequenas regalias foram para ele. Um camelo morreu a dois dias de viagem de Horeb; sua carga foi dividida entre os escravos; Zadig ganhou a sua parte. Setoc começou a rir ao ver todos os escravos marcharem curvados. Zadig tomou a liberdade de explicar-lhe a razão, e o fez conhecer as leis do equilíbrio. O mercador, admirado, começou a olhá-lo de outra forma. Zadig, vendo que lhe excitava a curiosidade, redobrou-a, ensinando-lhe muitas coisas que não eram estranhas ao seu comércio: o peso específico dos metais e dos gêneros em volume igual; as características de vários animais úteis; os meios de tornar úteis os que não o eram; em suma, mostrou-se um verdadeiro sábio. Setoc o preferiu ao seu camarada, a quem tanto havia estimado. Tratou-o bem, e não teve do que se arrepender. Ao alcançar sua tribo, Setoc reclamou 500 onças de prata a um hebreu a quem as emprestara em presença de duas testemunhas; mas estas haviam morrido, e o hebreu disso se aproveitara para ficar com o dinheiro do mercador, dando graças a Deus por haver-lhe proporcionado a oportunidade de enganar um árabe. Setoc confiou a dificuldade a Zadig, que se tornara seu conselheiro. - Em que local emprestou as suas 500 onças a esse infiel? - perguntou-lhe Zadig. - Sobre uma larga pedra que se encontra ao pé do monte Horeb. - Qual é o caráter do seu devedor? - O de um legítimo velhaco. - Mas o que lhe pergunto é se é um homem vivaz ou fleumático, ajuizado ou imprudente. - De todos os maus pagadores, é o mais vivaz que eu conheço. - Muito bem - insistiu Zadig. - Permita que eu defenda a sua causa diante do juiz. De fato, citou o hebreu ao tribunal, e assim falou ao juiz: - Meritíssimo, venho reclamar a esse homem, em nome do meu senhor, 500 onças de prata, que ele não quer devolver. - Há testemunhas? - Não, morreram; mas existe uma larga pedra sobre a qual foi contado o dinheiro; e, se aprouver a Vossa Grandeza mandar trazê-la, espero que ela preste testemunho; aqui ficaremos, o hebreu e eu, à espera de que chegue essa pedra; mandarei buscá-la por conta de Setoc, meu senhor. - Muito bem - concordou o juiz. E se pôs a cuidar de outros assuntos. - E então? - o juiz perguntou a Zadig no fim da audiência. - Sua pedra ainda não chegou? O hebreu caiu na risada e disse: - Vossa Grandeza poderia permanecer aqui até amanhã, que a pedra ainda não chegaria. Ela se encontra a mais de 6 milhas de distância e seriam necessários quinze homens para transportá-la. - Estais vendo?! - exclamou Zadig. - Eu não disse que a pedra prestaria testemunho? Visto que esse homem sabe onde a pedra se encontra, está dessa forma confessando que foi sobre ela que o dinheiro foi contado. O hebreu, sem poder retrucar, foi obrigado a confessar tudo. O juiz ordenou que ele fosse amarrado à pedra, sem água nem comida, até que devolvesse as 500 onças, as quais foram pagas sem demora. Depois desse feito, o escravo Zadig e a pedra alcançaram grande renome por toda a Arábia. 11. A Fogueira Admirado, Setoc transformou o escravo em seu amigo íntimo. Da mesma forma que o rei de Babilônia, não podia passar sem ele, e Zadig estava feliz por Setoc não ter esposa. Percebia em seu amo uma tendência natural para o bem, muita honestidade e bom senso. Ficou triste, porém, ao comprovar que ele adorava o Exército Celeste, ou seja, o Sol, a Lua e as estrelas, de acordo com o antigo costume árabe. E a isso se referia às vezes muito discretamente. Por fim, disse-lhe que eram objetos iguais aos outros e que não mereciam as suas homenagens mais que quaisquer árvore ou rocha. - Mas - rebateu Setoc -, trata-se de seres eternos, dos quais recebemos todos os benefícios. Eles animam a natureza, regulam as estações e estão tão distantes de nós que é impossível deixar de adorá-los. - Mais benefícios - retrucou Zadig - recebe o senhor das águas do mar Vermelho, que transportam as suas mercadorias para a Índia. Por que não há de ser ele tão antigo como as estrelas? E se se deve adorar o que se encontra distante, o amo deveria então adorar a terra dos gangáridas, que fica nos limites do mundo. - Não - disse Setoc -, as estrelas são por demais brilhantes para que eu não as adore. Quando anoiteceu, Zadig acendeu numerosas velas na tenda onde iria cear com Setoc, e, logo que este apareceu, lançou-se ao pé daquelas ceras brilhantes e exclamou: - Eternas e fulgurantes luzes, sejam-me propícias para sempre. - Após dizer isso, sentou-se à mesa sem olhar para Setoc. - O que está fazendo? - indagou Setoc, pasmo. - Faço como o meu amo; adoro essas luzes e negligencio aquele que é senhor delas, e meu senhor também. Setoc compreendeu o profundo sentido desse apólogo. Penetrou-lhe na alma a sabedoria de seu escravo; não mais ofereceu incenso às criaturas, e adorou o Ser eterno que as criou. Naquela época existia então na Arábia um horrível costume, originário da Cítia, e que, estabelecido na Índia pelos brâmanes, ameaçava invadir todo o Oriente. Quando morria um homem casado e a sua amada esposa desejava ser santa, fazia-se ela queimar em público, sobre o corpo do marido. Era uma festa denominada "a fogueira da viuvez". A tribo em que houvesse mais mulheres queimadas era a mais admirada de todas. Ora, tendo morri do um homem da tribo de Setoc, sua viúva, chamada Almona, que era muito devota, deu a conhecer o dia e a hora em que se lançaria às chamas, ao som de tambores e trombetas. Zadig observou a Setoc quanto era contrário ao bem do gênero humano esse terrível hábito de deixar que se queimassem, todos os dias, viúvas jovens que poderiam dar filhos ao Estado, ou pelo menos criar os seus; e fez-lhe ver que deveria, se possível, abolir costume tão bárbaro. - Faz mais de mil anos - argumentou Setoc - que as mulheres têm o direito de queimar-se. Qual de nós ousaria mudar uma lei consagrada pelo tempo? Haverá coisa mais respeitável do que um antigo uso? - A razão é mais antiga - rebateu Zadig. - Dirija-se aos chefes das tribos, e eu irei me encontrar com a viúva. Fez-se apresentar a ela; e, depois de haver-se insinuado em seu espírito com louvores a sua beleza e ter-lhe dito como era lastimável entregar ao fogo tantos encantos, ainda lhe elogiou a constância e a coragem. - Com certeza amava demais seu marido, não? - Eu? Que nada! - respondeu a mulher. - Ele era bruto e ciumento, um homem insuportável, mas eu estou firmemente decidida a lançar-me às chamas. - Decerto, então, deve ser delicioso ser queimada viva... - Oh! Até arrepia a natureza - declarou a mulher. - Mas tem-se de passar por isso. Eu sou devota; e perderia a reputação, e todo mundo riria de mim se eu não me queimasse. Zadig, tendo-lhe demonstrado que ela se queimava por causa dos outros e por vaidade, falou-lhe longamente, de modo a fazê-la amar um pouco a vida e chegando até a lhe inspirar alguma benevolência por aquele que assim lhe falava. - Que faria, enfim, a senhora, se lhe passasse essa vaidade de ser queimada? - Ah! - respondeu a dama. - Creio que lhe pediria que se casasse comigo. Muito preocupado ainda estava Zadig com Astartéia para que se deixasse impressionar com essa declaração. Mas foi logo ao encontro dos chefes de tribo, contou-lhes o que ocorria e os aconselhou a fazerem uma lei que só permitiria a uma viúva ir para a fogueira depois de haver falado durante uma hora, a sós, com um homem jovem. E a partir desse tempo, nenhuma viúva árabe se lançou às chamas. Assim se deveu a Zadig o ter sido abolido, em um só dia, tão cruel hábito, que durava havia séculos. Tornou-se, pois, o benfeitor da Arábia. 12. A Ceia Setoc, que não tinha meio de separar-se daquele homem em quem morava a sabedoria, levou-o à grande feira de Basra, onde compareceriam os maiores comerciantes do mundo habitável. Significou para Zadig um conforto espiritual ver reunidos no mesmo lugar tantos homens das mais diversas regiões. Parecia-lhe que o Universo era uma grande família que se reunia em Basra. No segundo dia encontrou-se à mesa com um egípcio, um gangárida, um chinês, um grego, um celta e vários outros estrangeiros que, nas suas frequentes viagens ao golfo arábico, aprenderam o suficiente de árabe para se fazerem entender. O egípcio parecia muito irado. - Que terra abominável! - exclamou ele. - Recusam-me aqui mil onças de ouro por conta do melhor artigo do mundo. - Que artigo é esse? - quis saber Setoc. - O corpo de minha tia - respondeu o egípcio. - Ela era a mais corajosa mulher de todo o Egito. Acompanhava-me sempre; morreu durante uma viagem; mandei fazer dela uma das mais belas múmias que já tivemos; na minha terra eu conseguiria empenhá-la por quanto quisesse. É estranho que aqui não me queiram emprestar pelo menos mil onças de ouro por conta de um artigo tão sólido. Enquanto se desesperava dessa forma, preparava-se para servir-se de uma excelente galinha assada, quando o indiano segurou-lhe a mão e exclamou, alarmado: - Oh! O que vai fazer? - Comer essa galinha - respondeu o homem da múmia. - Oh! Não faça isso! Imagine que a alma de sua tia se tenha encarnado nessa galinha... e o senhor certamente não vai se arriscar a devorar a sua tia! Ah, assar galinhas é um ultraje à natureza. - Ora, não me venha com essa história de natureza e galinhas! - rebateu o irado egípcio. - Nós adoramos um boi, mas nem por isso deixamos de comê-los. - Vocês adoram um boi? Como é possível?! - estranhou o homem do Ganges. - Nada mais possível. Faz 135 mil anos que o fazemos e ninguém entre nós achou nada que objetar. - Ah! Cento e trinta e cinco mil anos é exagero! - protestou o indiano. - Só faz 80 mil anos que a Índia é habitada e sem dúvida alguma somos o povo mais antigo do mundo; e Brahma nos proibiu de comer bois muito antes que os senhores se lembrassem de os colocarem nos altares e no espeto. - Belo animal esse Brahma para ser comparado com Ápis! Que diabo fez ele que se aproveitasse? - Foi ele quem ensinou os homens a ler e escrever, e a ele é que deve o mundo a invenção do xadrez - respondeu o brâmane. - Pois estão muito enganados - aparteou um caldeu. - É ao peixe Oanes que devemos tantos benefícios, e só a ele é correto rendermos homenagens. Todos dirão aos senhores que era um ser divino, que possuía uma cauda dourada, uma bela cabeça de homem, e que todos os dias saía das águas para vir pregar em terra durante três horas. Teve vários filhos, que foram reis, como todos sabem. Tenho em casa a sua imagem, que eu venero como é devido. Pode-se comer quantos bois se queira, mas é sem dúvida uma grande impiedade cozinhar peixes. Aliás, os senhores todos são de origem muito pouco nobre e muito recente. A nação egípcia conta apenas 135 mil anos, e os hindus só se vangloriam de 80 mil, ao passo que nós temos almanaques de 4 mil séculos. Renunciem a tais loucuras, e eu darei a cada um dos senhores uma bela imagem de Oanes. O chinês tomou então a palavra: - Respeito muito os egípcios, os caldeus, os gregos, os celtas, Brahma, o boi Ápis, o belo peixe Oanes; mas talvez o Li ou o Tien, como queiram chamá-las, valham tanto quanto os bois e os peixes. Nada direi a respeito do meu país; é tão grande como o Egito, a Caldeia e a Índia juntos. De antiguidade não discuto, pois basta ser feliz, e é bem pouca coisa ser antigo; mas, se fôssemos falar em almanaques, eu diria que toda a Ásia copia os nossos, e os tínhamos excelentes antes que conhecessem aritmética na Caldeia. - Os senhores são grandes ignorantes! - exclamou o grego. - Será possível que não saibam que o caos é o pai de tudo, e que a forma e a matéria colocaram o mundo no estado em que se encontra? Esse grego falou por muito tempo; mas foi interrompido finalmente pelo celta que, havendo bebido bastante enquanto discutiam, julgou-se então mais sábio que todos os outros e disse, praguejando, que, além de Teutates e do agárico de carvalho, nada mais havia digno de menção neste mundo; que ele levava sempre um agárico no bolso; que os citas, seus antepassados, foram os únicos homens de bem que existiram sobre a face da Terra; que algumas vezes, em verdade, tinham devorado homens, mas isso não impedia que se dedicasse o máximo respeito a sua nação; e que, enfim, se alguém falasse mal de Teutates, iria haver-se com ele. A discussão ficou acalorada e Setoc viu o momento em que o sangue correria pela mesa. Zadig, que havia se mantido em silêncio durante toda a disputa, finalmente levantou-se: dirigiu-se primeiro ao celta, que era o mais furioso; disse-lhe que ele estava com a razão, e pediu-lhe o agárico. Elogiou a eloquência do grego e acalmou os ânimos exaltados. Poucas palavras disse ao chinês, pois este tinha sido o mais sensato de todos. Em seguida disse-lhes: - Os meus caros amigos iriam brigar por coisa nenhuma, já que, afinal, possuem todos a mesma opinião. A essas palavras, ergueu-se um protesto geral. - Não é verdade - disse Zadig ao celta - que o senhor não adora este agárico, mas aquele que fez o agárico e o carvalho? - Sem dúvida - respondeu o celta. - E o senhor - disse ao egípcio - não adora, sob a aparência de determinado boi, aquele que nos deu os bois? - Sim - concordou o egípcio. - O peixe Oanes - prosseguiu Zadig - deve ceder diante daquele que fez o mar e os peixes. - Concordo - respondeu o caldeu. - O indiano - acrescentou - e o chinês reconhecem, como os senhores, um primeiro princípio; não entendo muito bem as coisas admiráveis que disse o grego, mas tenho certeza de que ele também admite um Ser supremo, de que dependem a forma e a matéria. O grego, a quem admiravam, declarou que Zadig compreendera muito bem seu pensamento. - Portanto, todos têm a mesma opinião - concluiu Zadig -, e não há razões para disputas. E todos o abraçaram. Setoc, após ter vendido bem caro as mercadorias, reconduziu o amigo Zadig até sua tribo. Ao chegar, Zadig ficou sabendo que o tinham processado durante a sua ausência e que seria queimado em fogo lento. 13. As Entrevistas Enquanto Zadig se encontrava em Basra, os sacerdotes das estrelas haviam decidido puni-lo. A eles pertenciam de direito as joias e os adornos das viúvas a quem condenavam à fogueira; não era excessivo que mandassem queimar Zadig pelo problema que havia lhes arranjado. Acusaram-no de alimentar sentimentos errados a respeito do Exército Celeste; depuseram contra ele e juraram que o ouviram dizer que as estrelas não se punham no mar. Essa terrível blasfêmia fez estremecer os juízes; estiveram a ponto de rasgar as vestes quando ouviram essas cruéis palavras, e com certeza o teriam feito se Zadig possuísse com que lhas pagar. Mas, no auge do desespero, contentaram-se em condená-lo a ser queimado em fogo lento. Setoc, entregue ao desespero, usou em vão toda a sua influência para salvar o amigo; foi logo obrigado a calar-se. A jovem viúva Almona, que havia tomado muito gosto à vida e que devia isso a Zadig, decidiu livrá-lo da fogueira, cujo absurdo ele lhe mostrara. Remoeu seu plano, sem contá-lo para ninguém. Zadig devia ser executado no dia seguinte; ela dispunha apenas da noite para tentar salvá-lo. Eis o que fez, como mulher caridosa e cuidadosa. Perfumou-se, realçou sua beleza com os mais ricos e galantes ornamentos, e foi solicitar uma audiência secreta ao chefe dos sacerdotes das estrelas. Quando se viu em presença do venerável ancião, falou-lhe nos seguintes termos: - Filho primogênito da grande ursa, irmão do touro, do grande cão (eram os títulos do pontífice), aqui venho confiar-vos meus escrúpulos. Estou com muito medo de ter cometido um enorme pecado, não me queimando na pira do meu querido marido. Com efeito, que possuía eu para conservar? Uma carne perecível, e que já vai murchando... Ao dizer essas palavras, retirou das longas mangas de seda os seus braços nus, admiráveis de contorno e deslumbrantes de brancura. - Vede - declarou ela - o pouco que isto vale. O pontífice achou, no íntimo do coração, que aquilo valia muito. Disseram-no os seus olhos, e a sua boca o confirmou: jurou que jamais, em sua vida, havia visto braços mais bonitos. - Ai! - suspirou a viúva. - Os braços pode ser que estejam menos mal que o resto, mas haveis de confessar que o colo não é digno da minha estima. Deixou ver então os seios mais encantadores que a natureza já produzira. Um botão de rosa sobre um pomo de marfim nada seria em comparação, e os cordeiros recém-saídos do lavadouro pareceriam de um amarelo sujo. Aqueles seios, seus grandes olhos negros e lânguidos, brilhando suavemente num carinhoso ardor, suas faces animadas da mais bela púrpura misturada ao branco do mais puro leite, o seu nariz, que não era como a torre do monte Líbano, os seus lábios, que eram como estojos de coral, contendo as mais belas pérolas do mar da Arábia, tudo isso convenceu o velho de que tinha vinte anos. Fez-lhe, balbuciando, uma declaração amorosa. Almona, vendo-o inflamado, pediu-lhe o perdão de Zadig. - Ah! Minha bela dama - disse ele -, mesmo que eu lhe concedesse o perdão, minha indulgência de nada serviria; é necessário que seja assinado por três outros colegas meus. - Assinai assim mesmo - insistiu Almona. - Com muito prazer - declarou o sacerdote -, sob a condição de que seus favores sejam o prêmio da minha felicidade. - Muita honra me concedeis - falou Almona. - Dignai-vos em vir a meu quarto depois que o sol se puser, e logo que a reluzente estrela Sheat se erguer no horizonte. E então encontrar-me-eis num sofá cor-de-rosa, e podereis dispor de vossa serva como bem quiserdes. Ela então retirou-se, levando consigo a assinatura, e deixando o velho cheio de amor e desconfiança de suas próprias forças. Empregou ele o resto do dia em banhar-se; tomou um licor composto de canela do Ceilão e preciosas especiarias de Timor e Ternate, e esperou com impaciência que surgisse a estrela Sheat. Entrementes, a bela Almona foi procurar o segundo pontífice. Este lhe assegurou que o Sol, a Lua e todos os reluzentes astros do firmamento não passavam de fogos-fátuos em comparação com os seus encantos. Almona pediu-lhe o mesmo favor, e ele lhe propôs o mesmo preço. Ela deixou-se vencer, e marcou encontro com o segundo pontífice ao surgir da estrela Algenib. Em seguida dirigiu-se à casa do terceiro e do quarto sacerdotes, sempre recebendo uma assinatura e marcando encontro de estrela em estrela. Mandou então pedir aos juízes que comparecessem a sua residência, para um assunto importante. Ali chegados, mostrou-lhes os quatro nomes e disse-lhes por que preço haviam os sacerdotes vendido o perdão a Zadig. Cada um deles chegou à hora marcada, e cada qual se espantou de ali encontrar os seus colegas, e mais os juízes, diante dos quais ficou provada a sua vergonha. Zadig foi salvo. Quanto a Setoc, ficou tão enlevado com a habilidade de Almona que a desposou. Zadig partiu depois de haver-se jogado aos pés da sua bela salvadora. Setoc e ele separaram-se chorando, jurando eterna amizade e prometendo um ao outro que o primeiro dos dois que conseguisse uma grande fortuna relataria o fato ao outro. Zadig se dirigiu para os lados da Síria, sempre pensando na infeliz Astartéia, e refletindo sobre o destino que teimava em ludibriá-lo e perseguir. "Meu Deus!", dizia ele para si mesmo. "Quatrocentas onças de ouro por causa da passagem de uma cadela! Condenado à decapitação por quatro maus versos em louvor do rei! Quase estrangulado porque a rainha possuía chinelas da cor do meu barrete! Reduzido à escravidão por haver acudido uma mulher que estava sendo surrada! E a ponto de ser queimado por haver salvo a vida de todas as viúvas árabes!" 14. O Assaltante Ao alcançar a fronteira que separa a Arábia Pétrea da Síria, e quando passava por um castelo muito fortificado, saíram deste alguns árabes de arma em punho, que o cercaram, gritando: - Tudo o que você tem nos pertence. E sua pessoa pertence ao nosso chefe. Em resposta, Zadig puxou da espada; seu criado, que era corajoso, fez o mesmo. Estenderam mortos os primeiros árabes que se atreveram a lhes pôr a mão; o número dos assaltantes dobrou; eles não se assustaram com isso e decidiram morrer lutando. Viam-se dois homens defendendo-se contra a multidão; tal combate não poderia durar muito tempo. O senhor do castelo, de nome Arbogad, que assistia de uma janela aos prodígios de coragem praticados por Zadig, encheu-se de estima por ele. Desceu apressadamente e veio em pessoa afastar seus homens e livrar os dois viajantes. - Tudo que passa pelas minhas terras é meu - declarou ele -, mas você me parece tão bom homem que eu o dispenso da lei comum. - Fez Zadig entrar no castelo, dando ordens para que o tratassem bem, e, à noite, fez questão de cear com seu hóspede. O senhor do castelo era um desses árabes que denominam "ladrões"; mas, às vezes, em meio a um grande número de ações perversas, acontecia-lhe praticar algumas boas; roubava com furiosa rapacidade, e sabia doar com liberalidade. Corajoso na ação, bastante tratável em sociedade, imoderado à mesa, alegre nas brincadeiras, e principalmente cheio de franqueza, apreciou muito Zadig. A conversação, que se animou, prolongou a refeição. Por fim, ele disse ao seu hóspede: - Meu conselho é que se aliste com a minha gente; é o que pode fazer de melhor. Esse ofício, afinal de contas, não é mau, e um dia você poderá chegar ao que eu sou. - Permita-me perguntar-lhe - falou Zadig -, desde quando exerce essa nobre profissão? - Desde rapazinho - respondeu o senhor do castelo. - Servia de criado a um árabe muito sagaz; e essa situação me era insuportável. Desesperava-me ver que em toda a terra, que pertence a todos os homens, o destino não tivesse me reservado a parte a que eu tinha direito. Confiei as minhas lamúrias a um velho árabe, que me disse: "Não se desespere, meu filho, era uma vez um grão de areia que se lamentava de ser um átomo ignorado no deserto; ao término de alguns anos transformou-se em diamante, e é agora o mais belo adorno da coroa do rei das Índias". Tais palavras me causaram profunda impressão. Eu era o grão de areia, e decidi tornar-me diamante. Comecei roubando dois cavalos; depois associei a mim alguns camaradas; fiquei em condições de assaltar pequenas caravanas; e assim extingui pouco a pouco a desproporção que no começo existia entre mim e os outros homens. Tive a minha parte nos bens deste mundo, e fui até mesmo excessivamente compensado: alcancei grande consideração; tornei-me senhor bandoleiro; adquiri este castelo por direito de conquista. O sátrapa da Síria quis despojar-me, mas eu já era bastante rico para não recear o que quer que fosse: dei dinheiro ao sátrapa, conservando assim este castelo, e aumentei os meus domínios; ele nomeou-me tesoureiro dos impostos que a Arábia Pétrea pagava ao rei dos reis. Desempenhei o meu cargo de recebedor, desdenhando o de pagador. O grande desterham de Babilônia mandou para cá, em nome do rei Moabdar, um pequeno sátrapa, para que me fizesse estrangular. Esse homem chegou com a ordem real; eu estava sabendo de tudo; mandei estrangular na sua presença as quatro pessoas que ele havia trazido para me apertarem o laço; feito isso, perguntei-lhe quanto lhe renderia a incumbência de estrangular-me. Respondeu-me que os seus honorários poderiam montar a 300 moedas de ouro. Dei-lhe claramente a entender que comigo poderia ganhar muito mais. Nomeei-o subassaltante, e hoje ele é um dos meus melhores oficiais, e dos mais ricos. Palavra que o amigo há de vencer como ele! Para roubar, acredite, nunca esteve melhor a temporada, depois que Moabdar foi morto e tudo é balbúrdia em Babilônia. - Morto, Moabdar?! - exclamou Zadig. - E o que aconteceu com a rainha Astartéia? - Não sei - respondeu Arbogad. - Só o que sei é que Moabdar enlouqueceu, que o mataram, que Babilônia é um pandemônio, que todo o império está assolado, que ainda há belos golpes a dar e que eu, de minha parte, os dei admiráveis. - Mas... e a rainha? - insistiu Zadig. - Por favor, não sabe mesmo nada a respeito do destino da rainha? - Falaram-me de um príncipe da Hircânia; é provável que ela esteja entre as suas concubinas, se é que não foi morta no tumulto. Mas eu estou mais interessado nos saques do que por novidades. Apoderei-me de várias mulheres em minhas excursões; não conservo nenhuma; vendo-as caro quando são bonitas, sem me importar quem elas sejam. Ninguém compra posições: uma rainha feia não seria arrematada. Talvez eu tenha vendido a rainha Astartéia, talvez ela esteja morta; mas pouco se me dá, e acho que isso não o deve preocupar mais do que a mim. Assim falando, bebia com tanta avidez e confundia de tal maneira todas as ideias que Zadig não pôde conseguir nenhum esclarecimento. Permanecia interdito, aniquilado, imóvel. Arbogad não parava de beber, inventava histórias, repetia sem cessar que era o mais feliz de todos os homens, encorajando Zadig a tornar-se tão feliz quanto ele. Por fim, entorpecido pelos vapores do vinho, foi dormir um sono tranquilo. Zadig passou a noite na mais violenta agitação. - Como?!, exclamava ele. - O rei enlouqueceu! Foi assassinado! Não posso deixar de lamentar isso. O império foi arrasado, e esse ladrão está feliz. Ó destino! Um ladrão é feliz, e o que de mais amável criou a natureza talvez tenha morrido de um modo horrível ou vive num estado pior que a morte. Ó Astartéia! O que é feito de você? Logo ao amanhecer, Zadig interrogou todos aqueles que encontrou pelo castelo; mas todos estavam ocupados, ninguém lhe respondia: tinham feito novas conquistas durante a noite e repartiam os despojos. A única coisa que conseguiu, naquela tão grande confusão, foi a permissão de partir. Aproveitou-a sem demora, mais concentrado do que nunca em seus tristes pensamentos. Zadig seguia inquieto, agitado, pensando na infeliz Astartéia, no rei de Babilônia, em seu fiel amigo Cador, no feliz ladrão Arbogad, naquela mulher tão caprichosa que os babilônios haviam detido nos confins do Egito; enfim, em todos os contratempos e infortúnios pelos quais havia passado. 15. O Pescador Algumas léguas depois do castelo de Arbogad, Zadig chegou à margem de um ribeirão, sempre se lamentando da sua sorte e julgando-se o modelo da desgraça. Viu um pescador que segurava frouxamente a rede, que parecia estar abandonando, enquanto erguia os olhos para o céu. - Não há dúvida de que sou o mais infeliz dos homens - bradava o pescador. - Por consenso geral, fui considerado o mais famoso comerciante de queijo de toda Babilônia, e fiquei arruinado. Tinha a mais linda mulher que um homem jamais possuiu, e ela me traiu. Restava-me uma modesta casa, que foi assaltada e destruída. Busquei refúgio numa choupana, tendo a pesca como único recurso, e não apanho nenhum peixe. Ó minha rede, não mais a lançarei, eu é que devo lançar- me à água. Ao proferir essas palavras, ergue-se e avança, na atitude de um homem que se fosse jogar para dar cabo em sua vida. "Como!", pensou Zadig. "Existem, então, outros mais infelizes do que eu?!" O impulso de salvar a vida daquele homem foi tão rápido quanto essa reflexão. Ele corre, segura-o, interroga-o com um ar comovido e animador. As pessoas se julgam menos infelizes quando não o são sozinhas. Mas isso, segundo Zoroastro, não significa maldade; é somente uma necessidade. Sentimo-nos atraídos então para um infeliz, como para semelhante nosso. A alegria de um homem venturoso se nos afiguraria como um insulto; mas dois desgraçados são como dois frágeis arbustos que, apoiando-se um no outro, fortalecem-se contra a tempestade. - Por que está se entregando às suas desventuras? - perguntou Zadig ao pescador. - É que não vejo solução para elas - respondeu o outro. - Fui o homem mais considerado da aldeia de Derlback, e fabricava, com a ajuda de minha mulher, os melhores queijos de todo o império. A rainha Astartéia e o famoso ministro Zadig os apreciavam imensamente. Tinha-lhes fornecido seiscentos queijos. Fui um dia a Babilônia receber o pagamento; ao chegar soube que a rainha e Zadig haviam desaparecido. Corri até a casa do Sr. Zadig, a quem jamais eu vira; ali encontrei os arqueiros do grande desterham, que, munidos de um edito real, a estavam saqueando dentro da lei. Fui correndo às cozinhas da rainha; alguns dos despenseiros me disseram que ela havia morrido; outros, que estava presa; outros, que fugira; mas todos me asseguravam que não receberia o pagamento dos meus queijos. Em companhia de minha mulher, fui falar com o Sr. Orcan, que era um dos meus fregueses, e pedimos-lhe proteção em nossa desgraça; ele a concedeu a minha mulher, e a recusou a mim. Era ela mais branca que os meus queijos, que deram início a minha desgraça; e o esplendor da púrpura de Tiro não era mais brilhante que o carmim que animava aquela brancura. Foi o que fez com que Orcan a mantivesse com ele e me escorraçasse da sua casa. Escrevi a minha querida esposa uma carta desesperada. "Ah! sim", disse ela ao portador, "sei quem é esse homem que me escreve, já ouvi falar nele: dizem que fabrica excelentes queijos; tragam-me alguns e não se esqueçam de lhes pagar." Na minha desgraça, decidi recorrer à Justiça. Restavam-me 6 onças de ouro: tive de dar duas ao legista que consultei, duas ao advogado que se encarregou do meu caso e duas ao secretário do primeiro-juiz. Depois de tudo isso, o meu processo ainda não tinha sido iniciado, e eu já havia gasto mais dinheiro do que valiam os meus queijos e a minha mulher. Regressei a minha aldeia, com o objetivo de vender a casa para conseguir minha mulher de volta. Minha casa valia umas 60 onças de ouro, mas sabiam que eu estava pobre e necessitado de dinheiro. O primeiro a quem me dirigi ofereceu-me 30 onças; o segundo, 20, e o terceiro, 10. Estava em via de liquidar tudo, tão cego me encontrava, quando um príncipe da Hircânia veio a Babilônia e destruiu tudo a sua passagem. Minha casa foi primeiro saqueada e depois reduzida a cinzas. Foi assim que perdi o meu dinheiro, minha mulher e a minha casa; retirei-me para esta região onde o senhor me vê. Procurei viver do ofício de pescador: os peixes zombam de mim, como os homens. Não apanho nenhum, morro de fome; e, se não fosse a sua intervenção, excelso consolador, iria afogar-me no ribeirão. A narrativa acima, o pescador não a fez sem interrupção, pois a todo momento Zadig, comovido e arrebatado, dizia-lhe: - Como! Não sabe nada a respeito do destino da rainha? - Não, meu senhor, mas eu sei que a rainha e Zadig não me pagaram os meus queijos, que me roubaram a minha mulher, e que estou desesperado. - Penso - disse Zadig - que não irá perder todo o seu dinheiro. Ouvi falar desse Zadig; é um sujeito honesto e, se voltar a Babilônia, como pretende, há de lhe pagar mas do que lhe deve. Porém, a respeito de sua esposa, que não é honesta, aconselho-o a não tentar recuperá-la. Vá a Babilônia; lá estarei antes de você, porque ando a cavalo e você a pé. Dirija-se ao ilustre Cador; diga-lhe que encontrou o seu amigo; espera-me na casa dele. Ande, vá; talvez você não seja sempre desafortunado. Ó possante Orosmade - prosseguiu Zadig -, tu que te serves de mim para consolar esse homem, de quem te servirás para consolar-me? Assim falando, entregou ao pescador metade de todo o dinheiro que havia trazido da Arábia, e o pescador, confuso e maravilhado, beijou-lhe os pés dizendo: - É o meu anjo salvador! Enquanto isso, Zadig continuava a pedir informações e desfazia-se em lágrimas. - Como?! - exclamou o pescador. - Você, que pratica o bem, será assim tão desventurado? - Cem vezes mais desventurado do que você - respondeu Zadig. - Mas como pode ser - estranhava o homem - que aquele que dá seja mais digno de pena do que aquele que recebe? - É que a sua maior desgraça - explicou Zadig - era a necessidade; e, quanto a mim, sou desventurado pelo coração. - Será que Orcan roubou a sua mulher? - perguntou o pescador. Essas palavras lembraram a Zadig todas as suas aventuras: relembrava a lista de suas desditas, desde a cadela da rainha até a chegada ao castelo do ladrão Arbogad. - Ah! - disse ele. - Orcan merece ser punido. Mas em geral é essa gente que o destino ajuda. Em todo caso, vá se encontrar com Cador, e espere-me. Despediram-se. O pescador começou a caminhar, abençoando o seu destino, e Zadig a correr, amaldiçoando o seu. 16. O Basilisco Ao chegar a uma bonita campina, Zadig viu muitas mulheres que procuravam com afã alguma coisa. Tomou a liberdade de se aproximar de uma delas e perguntar-lhe se não poderia ter a honra de ajudá-las. - Não faça isso - respondeu-lhe a síria. - O que nós estamos procurando só pode ser tocado por mulheres. - Eis uma coisa deveras estranha - disse Zadig. - Não seria indiscreto de minha parte perguntar-lhe que coisa é essa em que só as mulheres podem tocar? - É um basilisco - explicou ela. - Um basilisco, senhora? Mas por que procuram um basilisco? - É para o nosso senhor e amo Ogul, cujo castelo se avista da margem desse rio, no fundo do campo. Somos as suas humildes escravas; o Sr. Ogul está doente; o médico receitou-lhe um basilisco cozido em água de rosas, e como é um animal muito raro, que só se deixa apanhar por mulheres, o Sr. Ogul prometeu escolher, para esposa bem-amada, aquela dentre nós que encontrasse um basilisco. Agora deixe-me procurar, por favor, pois me sairia muito caro se as minhas companheiras o achassem antes de mim. Zadig deixou aquela e as outras sírias em busca do seu basilisco e continuou a caminhar pela campina. Ao chegar à margem de um riacho, ali encontrou uma mulher sentada na relva e que não procurava nada. Seu talhe parecia majestoso, mas o rosto encontrava-se coberto por um véu. Estava inclinada para o riacho, e saíam-lhe do peito profundos suspiros. Tinha na mão uma varinha, com a qual traçava caracteres na fina areia da margem. Zadig teve curiosidade de ver o que escrevia aquela mulher. Aproximou-se; viu a letra Z, depois um A; espantou-se. Em seguida apareceu um D; ele estremeceu. Nunca existiu surpresa igual a sua quando viu as duas últimas letras de seu nome. Permaneceu algum tempo imóvel; e, por fim, quebrou o silêncio com voz entrecortada: - Ó generosa dama! Perdoai que um estrangeiro, um infeliz, ouse perguntar-lhe por que espantoso motivo vejo aqui o nome de Zadig escrito por sua mão divina. A essa voz, a essas palavras, a dama ergueu o véu com mão trêmula, fitou Zadig, lançou um grito de surpresa e de alegria e, sucumbindo aos diversos sentimentos que lhe assaltavam ao mesmo tempo a alma, caiu desmaiada nos braços dele. Era a própria Astartéia, era a rainha de Babilônia, era aquela que Zadig adorava, e que se inculpava por adorar; era aquela por quem tanto chorara e por cujo destino tanto temera. Viu-se, por um instante, privado do uso dos sentidos; e quando fixou os olhos nos de Astartéia, que se abriam com uma mescla de languidez, confusão e ternura, disse: - Ó potências divinas! Vós que regeis o destino dos frágeis humanos, então me devolveis Astartéia? Em que tempo, em que lugar, em que estado a revejo! Jogou-se de joelhos diante de Astartéia, tocando com a fronte a poeira de seus pés. A rainha de Babilônia o ergueu e fez sentar-se a seu lado, à margem daquele riacho; enxugava por várias vezes os olhos, cujas lágrimas continuavam rolando. Tentou iniciar por vinte vezes frases que os gemidos interrompiam; interrogava-o sobre o acaso que os reunira e impedia-lhe a resposta com outras perguntas. Começava a narrativa de suas desventuras, e queria saber as de Zadig. Tendo ambos, por fim, acalmado um pouco o tumulto interior, contou-lhe Zadig, em poucas palavras, por que acasos se encontrava naquele campo. - Mas como, ó infeliz e respeitável rainha, vos encontro eu neste remoto lugar, vestida de escrava e acompanhada de outras mulheres escravas que procuram um basilisco a fim de cozinhá-lo em água de rosas, por prescrição médica? - Enquanto elas procuram o basilisco - respondeu a bela Astartéia -, vou lhe contar o que sofri e tudo o que perdoo ao céu desde que tornei a ver você. Sabe que o rei, meu marido, reagiu mal ao fato de que você fosse o mais amável dos homens; e, por esse motivo, decidiu, uma noite, mandar estrangulá-lo, e a mim, envenenar-me. Sabe como o céu permitiu que o meu pequeno mudo me avisasse da ordem de Sua Sublime Majestade. O fiel Cador, logo que obrigou você a me obedecer e partir, teve a intrepidez de entrar durante a noite em meus aposentos, por uma passagem secreta. Raptou-me e levou-me até o templo de Orosmade, onde o mago, seu irmão, me encerrou numa estátua colossal cuja base toca os alicerces do templo e cuja cabeça atinge a abóbada. Ali fiquei como sepultada, mas cuidada pelo mago, e não me faltava nenhuma coisa necessária. Ao raiar do dia, o boticário de Sua Majestade entrou no meu quarto, com uma poção de meimendro, ópio, cicuta, heléboro-negro e aconita; e outro oficial foi até a sua casa com um laço de seda azul. Não encontraram ninguém. Cador, para melhor enganar o rei, fingiu vir acusar-nos a ambos. Disse que você havia tomado o caminho da Índia e eu, de Mênfis: enviaram capangas ao nosso encalço. - Astartéia fez uma breve pausa, depois prosseguiu: - Os mensageiros que me procuravam não me conheciam, pois eu nunca havia mostrado o meu rosto senão a você, em presença e por ordem de meu marido. Correram a minha procura, confiando no retrato que lhes haviam traçado da minha pessoa. Encontraram na fronteira com o Egito uma mulher do mesmo corpo que eu, e que talvez tivesse mais encanto. Estava desamparada, errante. Não duvidaram de que fosse a rainha de Babilônia, e a levaram a Moabdar. Diante de tal engano, o rei entrou em violenta cólera; mas depois, observando mais de perto a tal mulher, achou-a bastante bonita, e se consolou. Chamava-se Missuf. Disseram, depois, que esse nome significa, em língua egípcia, "a bela caprichosa". E ela era mesmo, mas tinha tanta arte quanto capricho. Agradou a Moabdar. Subjugou-o a ponto de fazer com que fosse declarada sua esposa. Seu caráter, então, manifestou-se livremente; entregou-se, sem empecilhos, a todas as loucuras da imaginação. Quis obrigar o chefe dos magos, que era velho e sofrendo de gota, a dançar diante dela; e, ante a recusa do mago, desencadeou violenta perseguição contra ele. Mandou o grande escudeiro fazer-lhe uma torta de confeitos. Por mais que o homem retrucasse que não era confeiteiro, foi obrigado a fazê-la; e, como a tivesse deixado queimar, foi sumariamente demitido. Deu o cargo de grande escudeiro ao seu anão, e o de chanceler a um pajem. Foi assim que governou Babilônia. Todos lamentavam a minha falta. O rei, que havia sido bastante justo até o momento em que resolveu envenenar-me e estrangular você, parecia ter afogado as suas virtudes no extraordinário amor que dedicava à bela caprichosa. Compareceu ao templo no grande dia do fogo sagrado. Vi-o implorar aos deuses por Missuf, ao pé da estátua onde eu me encontrava encerrada. Ergui a voz e gritei-lhe: "Os deuses recusam os votos de um rei que se transformou em tirano e quis matar uma mulher sensata para desposar uma louca". Moabdar ficou tão confuso ao ouvir essas palavras, que sua mente se perturbou. O oráculo que eu proferia e a tirania de Missuf bastaram para lhe fazer perder o juízo. Enlouqueceu em poucos dias. Sua loucura, que se afigurou um castigo do céu, foi o sinal da revolta. Ergueram-se em armas. Babilônia, por tanto tempo mergulhada em ociosa apatia, foi teatro de terrível guerra civil. Retiraram-me do interior da estátua e puseram-me à frente de um partido. Cador correu até Mênfis a fim de reconduzir você de volta para Babilônia. O príncipe de Hircânia, tendo ficado a par dessas terríveis notícias, voltou com o seu exército para formar um terceiro partido na Caldeia. Atacou o rei, que correu ao seu encontro com a sua extravagante egípcia. Moabdar morreu varado de golpes. Missuf tombou nas mãos do vencedor. Quis a desgraça que eu também fosse aprisionada pelo exército hircaniano e que me conduzissem perante o príncipe ao mesmo tempo em que lhe levavam Missuf. Você ficará sem dúvida lisonjeado ao saber que o príncipe me achou mais bonita que a egípcia; mas ficará triste ao saber que ele me destinou ao seu harém. Disse-me que logo que regressasse de uma expedição que iria empreender, viria ter comigo. Imagine qual não foi a minha dor! Meus laços com Moabdar estavam rompidos, eu poderia pertencer a você, e caía nas mãos daquele bárbaro. Respondi-lhe com toda a altivez que comportavam a minha posição e os meus sentimentos. Sempre ouvira dizer que o céu concedia às pessoas da minha qualidade uma espécie de grandeza que, com uma palavra ou um olhar, compeliam ao mais profundo respeito os temerários que ousavam infringi-lo. Falei como rainha; mas fui tratada como aia. O hircaniano, sem ao menos se dignar dirigir-me a palavra, disse ao eunuco negro que eu era uma impertinente, mas que me achava linda. Ordenou-me que cuidasse de mim e me submetesse ao regime das favoritas, a fim de me suavizar a cútis e me tornar mais digna dos seus favores, no dia em que lhe aprouvesse honrar-me com eles. Eu lhe disse que me mataria; ele replicou, rindo, que ninguém se matava por isso, que estava acostumado a tais cenas, e deixou-me como um homem que acabasse de meter um papagaio no seu viveiro. Que situação para a primeira rainha do Universo e, direi mais, para um coração que pertencia a você! Ao ouvir essas palavras, Zadig jogou-se aos joelhos de Astartéia e banhou-os de lágrimas. Astartéia ergueu-o carinhosamente, e assim prosseguiu: - Estava eu em poder de um bárbaro, e como rival de uma louca, com quem me encontrava presa. Ela me contou a sua aventura no Egito. Pelos traços com que descrevia você, pelo tempo, pelo dromedário que montava, por todas as circunstâncias, compreendi que havia sido você que combatera por ela. Não duvidei de que estivesse em Mênfis, e decidi partir para lá. "Bela Missuf”, eu lhe disse então, "você é bem mais sedutora do que eu, e saberá divertir o príncipe de Hircânia. Facilite a minha fuga, e reinará sozinha; e assim fará a minha felicidade, ao mesmo tempo em que se livra de uma rival”. Missuf arquitetou comigo o plano da fuga. Parti, então, em segredo, como uma escrava egípcia. Eu me encontrava próxima da Arábia, quando um famoso salteador, chamado Arbogard, raptou-me e vendeu-me a mercadores que me trouxeram a este castelo, de propriedade do Sr. Ogul. Este me comprou sem saber quem eu era. É um homem voluptuoso, que só procura passar bem e que acredita que Deus o pôs no mundo para banquetear-se. É de uma gordura excessiva, que sempre parece a ponto de sufocá-lo. Seu médico, que pouca fé lhe merece quando ele, Ogul, digere bem, governa-o como um tirano quando sofre de indigestão. Convenceu-o de que o curaria com um basilisco cozido em água de rosas. O Sr. Ogul prometeu casar-se com a escrava sua que lhe conseguisse um basilisco. Bem vê que eu as deixo se esforçarem à vontade por merecer tal honra, e nunca tive menos desejo de encontrar esse basilisco do que depois que o céu permitiu que eu tornasse a ver você. Astartéia e Zadig disseram-se, então, tudo o que os sentimentos longamente retidos, tudo o que as suas desgraças e amores podiam inspirar aos corações mais nobres e mais apaixonados; e os gênios que presidem o amor levaram suas palavras até a esfera de Vênus. As mulheres se recolheram sem haver encontrado nenhum basilisco. Zadig fez-se apresentar a Ogul e falou-lhe nos seguintes termos: - Que a saúde imortal desça do céu para tomar a seu cuidado todos os vossos dias! Sou médico; acorri ao saber da vossa doença, e trouxe-vos um basilisco cozido em água de rosas. Não que eu pretenda desposar-vos, claro. Só vos peço a liberdade de uma jovem escrava de Babilônia que tendes há alguns dias em vosso poder; e aceito ficar como escravo em seu lugar, se não tiver a ventura de curar o magnífico Sr. Ogul. A proposta foi aceita. Astartéia partiu para Babilônia com o criado de Zadig, prometendo enviar-lhe continuamente um correio, a fim deixá-lo a par de tudo o que ocorresse. A despedida foi tão terna como o reencontro. O momento em que tornamos a encontrar a pessoa amada e o momento em que nos separamos dela são as duas maiores épocas da vida, como diz o grande livro do Zend-Avesta. Zadig amava a rainha tanto quanto lhe jurava amá-la, e a rainha amava Zadig mais do que lhe dizia. Enquanto isso, assim falou Zadig a Ogul: - Senhor, o meu basilisco não é de comer; toda a sua virtude deve penetrar em vós pelos poros. Coloquei-o num odre bem inflado e recoberto de fina pele: é preciso que arremesseis esse odre com toda a força e que eu vo-lo rebata numerosas vezes; e, em poucos dias de regime, vereis o que pode a minha arte. Ogul, logo no primeiro dia, sentiu-se sem respiração e achou que fosse morrer de fadiga. No segundo, cansou-se menos e dormiu melhor. Em oito dias, recuperou toda a força, saúde, leveza e alegria de sua juventude. - Jogastes bola e fostes sóbrio - disse-lhe Zadig. - Sabei, senhor, que não há basilisco na natureza, que sempre nos damos bem com sobriedade e exercícios e que a arte de combinar a glutonaria com a saúde é uma arte tão ilusória quanto a pedra filosofal, a astrologia judiciária e a teologia dos magos. O primeiro-médico de Ogul, reconhecendo quanto aquele homem era perigoso para a medicina, uniu-se com o boticário da congregação para mandar Zadig procurar basiliscos no outro mundo. Assim, depois de ter sido sempre castigado por haver agido direito, estava na iminência de ser morto por haver curado um senhor glutão. Convidaram-no para uma excelente ceia. Ele seria envenenado no segundo prato; porém recebeu um recado de Astartéia durante o primeiro. Retirou-se da mesa e partiu. "Quando somos amados por uma bela mulher", afirmou o grande Zoroastro, "sempre nos livramos de dificuldades neste mundo." 17. Os Combates Astartéia foi acolhida em Babilônia com o entusiasmo que sempre infundia uma bonita e infeliz rainha. Babilônia dava a impressão agora de ser mais tranquila. O príncipe de Hircânia havia sido morto em combate. Os babilônios, vencedores, declaravam que Astartéia se casaria com aquele que escolhessem para rei. Não queriam que a mais alta posição do mundo, que seria a de marido de Astartéia e de monarca de Babilônia, dependesse de intrigas e cabalas. Juravam reconhecer como rei o mais corajoso e mais sábio. A algumas léguas da cidade, preparavam uma grande arena cercada de um anfiteatro magnificamente enfeitado. Os combatentes deviam comparecer armados com apuro. Cada qual devia ter, atrás do anfiteatro, um apartamento separado, onde não poderia ser visto por ninguém. Haveria quatro jogos preliminares. Aqueles que tivessem a ventura de vencer quatro cavaleiros deveriam combater em seguida uns contra os outros; de forma que aquele que ficasse por último senhor do campo seria proclamado campeão dos jogos. Deveria voltar quatro dias depois, com as mesmas armas, e decifrar os enigmas apresentados pelos magos. Se não os resolvesse, não seria rei, e recomeçariam as disputas, até que se encontrasse um homem que fosse vencedor nas duas competições; pois queriam exclusivamente para o rei o mais destemido e o mais sábio. A rainha, ao longo de todo esse tempo, deveria ser estritamente guardada: apenas lhe seria concedido assistir aos espetáculos coberta com um véu; mas não lhe seria permitido falar com nenhum dos pretendentes, a fim de que não houvesse favorecimento nem injustiça. Foi isso o que a rainha fez saber ao seu apaixonado, esperando que este demonstrasse por ela mais valor e espírito do que ninguém. Zadig partiu, rogou a Vênus que lhe fortalecesse a coragem e esclarecesse o espírito. Chegou à margem do rio Eufrates na véspera do grande dia. Inscreveu sua divisa entre as dos competidores, escondendo o rosto e o nome, como mandava a lei, e foi descansar no apartamento que lhe coubera por sorte. Seu amigo Cador, que havia regressado a Babilônia depois de havê-la procurado inutilmente pelo Egito, mandou levar-lhe aos aposentos uma armadura completa enviada pela rainha. Mandou-lhe também o mais belo cavalo da Pérsia. Zadig reconheceu o dedo de Astartéia em tais presentes, dos quais sua coragem e amor receberam novas forças e esperanças. No dia seguinte, estando a rainha alojada sob um dossel de pedrarias, e repleto o anfiteatro de todas as damas e todas as ordens de Babilônia, os contendores entraram na arena. Cada qual foi colocar sua divisa aos pés do grande mago. Tiraram à sorte as divisas; a de Zadig foi a última. O primeiro que avançou era um senhor muito rico, chamado Itobad, extremamente vaidoso, de pouca coragem, muito inábil e fraco de espírito. Seus familiares o haviam persuadido de que um homem como ele merecia ser rei, e Itobad lhes replicara: "Um homem como eu deve reinar". De modo que o haviam armado minuciosamente. Trazia uma armadura de ouro com esmaltes verdes, um penacho verde, uma lança enfeitada com fitas verdes. Viu-se logo, pela forma como Itobad cavalgava, que não era a um homem como ele que o céu reservara o cetro de Babilônia. O primeiro cavaleiro que o atacou lhe fez perder os estribos; o segundo derrubou-o sobre a anca do cavalo, com as duas pernas para o ar e os braços estendidos. Itobad ergueu-se, mas tão sem jeito que todo o anfiteatro se pôs a rir. Um terceiro nem sequer se dignou usar a lança; mas em hábil manobra, agarrou-o pela perna direita e, fazendo-o dar meia-volta, derrubou-o na arena; os escudeiros dos jogos acorreram, rindo, e o recolocaram sobre a sela. O quarto combatente agarrou-lhe a perna esquerda e fez cair do outro lado. Levaram-no, sob vaias, para o seu alojamento onde, de acordo com a lei, iria passar a noite; e Itobad, andando com dificuldade, pensava: "Que aventura para um homem como eu!". Os outros cavaleiros tiveram melhor desempenho. Houve alguns que venceram dois cavaleiros sucessivamente; outros chegaram a três. Somente o príncipe Otame venceu o quarto. Finalmente, chegou a vez de Zadig; este desmontou quatro cavaleiros com a maior desenvoltura possível. Viu-se, então, que a competição se restringiria a Otame e Zadig. O primeiro usava armas azuis e ouro, com um penacho das mesmas cores; as de Zadig eram brancas. Todos os votos se dividiam entre o cavaleiro azul e o cavaleiro branco. A rainha, com o coração disparado, rezava pela branca. Os dois campeões fizeram manobras com tanta agilidade, trocaram tão belos golpes de lança, tão firmes estavam nos estribos que todos, exceto a rainha, desejavam que houvesse dois reis em Babilônia. Por fim, exaustos os dois cavalos e quebradas as duas lanças, Zadig usou de um expediente. Passou por trás do príncipe azul, saltou em sua garupa, agarrou-o pela cintura, jogou-o no chão, montou na sela em seu lugar e cavalgou ao redor de Otame estendido na arena. Todo o anfiteatro gritou: - Vitória ao cavaleiro branco! Otame, revoltado, levantou-se e puxou da espada; Zadig apeou de sabre em punho. Estão os dois na arena, empenhados em novo combate, em que vencem alternadamente a agilidade e a força. As plumas dos capacetes, os pregos dos braçais, as malhas das armaduras saltam ao longe, sob mil golpes violentos. Eles golpeiam de ponta e de fio, à direita, à esquerda, na cabeça, no peito; avançam, medem-se, chocam-se, enlaçam-se, enroscam-se como serpentes, atracam-se como leões; a todo instante saltam chispas dos golpes mutuamente vibrados. Enfim Zadig, refazendo-se um momento, estaca, faz uma finta, derriba Otame, desarma-o. E Otame exclama: "Ó cavaleiro branco! És tu que deves reinar em Babilônia". A rainha estava no auge da alegria. Conduziram o cavaleiro azul e o cavaleiro branco a seus respectivos alojamentos, bem como a todos os outros, conforme a lei. Mudos vieram servi-los e trazer-lhes alimentos. Logo se vê que foi o pequeno mudo da rainha quem atendeu a Zadig. Em seguida, deixaram-nos dormir até a manhã do dia seguinte, quando o vencedor devia levar sua divisa ao grande mago, para conferi-la e dar-se a conhecer. Zadig dormiu bem, embora estivesse apaixonado, tão exausto se encontrava. Itobad, que ocupava o alojamento próximo, não pregou olho. Ergueu-se durante a noite, penetrou no quarto do vizinho, tomou as armas brancas de Zadig, juntamente com a sua divisa, e pôs sua armadura verde no lugar da de ouro. Ao amanhecer, compareceu orgulhosamente diante do grande mago, declarando que um homem como ele era o vencedor. Ninguém o esperava; mas foi proclamado como tal enquanto Zadig ainda dormia. Astartéia, surpresa, e com o desespero no coração, regressou a Babilônia. O anfiteatro já estava quase vazio quando Zadig acordou. Procurou as suas armas, e só encontrou aquela armadura verde. Viu-se obrigado a usá-la, pois não tinha mais nada junto de si. Pasmo e indignado, vestiu-a com ódio e avançou. Todos os que ainda se encontravam no anfiteatro e no circo receberam-no com vaias. Rodeavam-no e insultavam-no. Jamais homem algum experimentou tão humilhantes mortificações. Perdeu então a paciência; dispersou a golpes de sabre o populacho que ousava ultrajá-lo; mas não sabia que partido tomar. Não podia encontrar-se com a rainha; não podia reclamar a armadura branca que ela lhe enviara: seria comprometê-la. Assim, enquanto se encontrava ela abismada na dor, estava Zadig cheio de furor e inquietação. Passeava ele às margens do Eufrates, convencido de que a sua estrela o destinava a ser irremediavelmente infeliz, e repassando no espírito todas as suas desventuras, desde o caso da mulher que odiava os caolhos até a da sua armadura. "Aí está no que deu", pensava ele, "eu ter despertado tarde; se tivesse dormido menos, seria o rei de Babilônia e possuiria Astartéia. As ciências, o caráter, a coragem só serviram para a minha desgraça." Escapou-lhe por fim murmurar contra a Providência, e foi tentado a acreditar que tudo era governado por um destino cruel que oprimia os bons e fazia prosperar os cavaleiros verdes. Um de seus pesares era carregar aquela armadura verde que lhe atraíra tamanha vergonha. Vendeu-a barato a um comerciante que passava e comprou-lhe uma túnica e um capuz. Trajado dessa maneira, passeava à margem do Eufrates, desesperado e acusando em segredo a Providência, que não parava de persegui-lo. 18. O Ermitão Em sua caminhada encontrou um ermitão, cuja venerável barba branca chegava-lhe à cintura. Estava mergulhado na leitura de um livro. Zadig parou e lhe fez uma profunda reverência. O ermitão cumprimentou-o com um jeito tão nobre e benévolo que Zadig teve vontade de conversar com ele. Perguntou-lhe que livro estava lendo. - É o livro dos destinos - respondeu o ermitão. - Quer ler um pouco? Entregou o livro a Zadig, que, embora conhecesse várias línguas, não conseguiu decifrar uma única letra. Isso fez aumentar ainda mais a sua curiosidade. - Parece profundamente triste - disse-lhe o velho. - Motivos não me faltam! - exclamou Zadig. - Se me permite que o acompanhe - falou o ermitão -, talvez eu possa lhe ser útil: tenho às vezes derramado sentimentos de consolação na alma dos infelizes. Zadig sentiu-se tomado de respeito ante o ar, as barbas e o livro de ermita. Achou-lhe superiores luzes na conversação. Falava o ermitão a respeito do destino, da justiça, da moral, do supremo bem, da fraqueza humana, das virtudes e dos vícios, com tão viva e emocionante eloquência que Zadig sentiu-se atraído para ele por invencível encanto. Pediu-lhe com insistência que fosse com ele até chegarem a Babilônia. - O mesmo favor eu lhe peço - disse-lhe o velho. - Jure por Orosmade que não se separará de mim, por mais estranhos que lhe pareçam os meus atos. Zadig jurou, e partiram juntos. Alcançaram os dois viajantes um magnífico castelo. O ermitão pediu hospitalidade para si e para o jovem que o acompanhava. O porteiro, que poderia ser tomado por um grão-senhor, introduziu-os com uma espécie de desdenhosa complacência. Foram apresentados ao criado-mor, que lhes mostrou os magníficos apartamentos do amo. Permitiram-lhes que se sentassem à extremidade da mesa deste, durante a ceia, sem que o senhor do castelo se dignasse honrá-los ao menos com um olhar; mas foram servidos, como os outros, com refinamento e abundância. Fizeram com que se lavassem numa bacia de ouro, guarnecida de esmeraldas e rubis. Levaram-nos para dormir em um belo apartamento, e no dia seguinte um criado entregou a cada um deles uma moeda de ouro; em seguida foram dispensados. - O dono da casa - disse Zadig no caminho - parece- me um homem generoso, apesar de um pouco orgulhoso; exerce nobremente a hospitalidade. Ao proferir essas palavras, percebeu que uma espécie de bolsa muito grande usada pelo ermitão parecia distendida e inflada: viu ali a bacia de ouro guarneci da de pedrarias, que o velho havia furtado. Não ousou falar nada; mas sentia-se tomado de estranha surpresa. Ao meio-dia o ermitão apresentou-se à porta de uma casa muito pequena, onde morava um rico avarento; pediu hospitalidade por algumas horas. Um velho criado malvestido recebeu-os com rudeza e fez entrar o ermitão e Zadig na estrebaria, onde lhes serviram algumas azeitonas podres, pão duro e cerveja estragada. O ermitão bebeu e comeu com um ar tão contente como na véspera. Depois, dirigindo-se ao velho criado, que os observava para ver se não furtavam nada e insistia para que eles partissem, deu-lhe as duas moedas de ouro que havia recebido de manhã e agradeceu-lhe muito as suas atenções. - Peço-lhe - acrescentou - que me leve à presença do seu amo. O criado, pasmo, introduziu os dois viajantes. - Magnífico senhor - declarou o ermitão -, não posso deixar de agradecer-vos humildemente a nobre maneira como nos recebestes: dignai-vos aceitar esta bacia de ouro como uma modesta prova da minha gratidão. O avarento quase caiu para trás. Sem lhe dar tempo para que voltasse a si da surpresa, o ermitão partiu às pressas com o seu jovem companheiro. - Senhor, eu não entendo! - disse-lhe Zadig. - Não parece em nada com os outros homens: furta uma bacia de ouro guarnecida de pedrarias a um senhor que o recebe magnificamente e a dá de presente a um avarento que o trata de maneira indigna. - Meu filho - respondeu o velho -, esse homem magnífico, que só recebe os estranhos por vaidade e para fazê-los admirar as suas riquezas, irá se tornar mais sensato; o avarento aprenderá a praticar a hospitalidade; não se espante com nada e siga-me. Zadig não sabia se tratava com o mais louco ou o mais sábio dos homens; mas o ermitão falava com tanta autoridade que Zadig, ligado aliás pelo juramento, não pôde deixar de segui-lo. Chegaram de noite a uma casa de aspecto agradável, porém simples, onde nada denunciava generosidade ou avareza. O dono era um filósofo que se retirara do mundo, que cultivava em paz a sabedoria e a virtude, e que, contudo, não se aborrecia. Construíra aquele retiro, onde recebia os visitantes com uma nobreza que nada tinha de ostentação. Foi em pessoa ao encontro dos dois viajantes, os quais fez descansar num cômodo apartamento. Algum tempo depois veio convidá-los para uma refeição sadia e variada, durante a qual referiu-se discretamente às últimas revoluções de Babilônia. Pareceu sinceramente devotado à rainha e mostrou-se desejoso de que Zadig tivesse comparecido ao torneio para disputar a coroa. - Mas os homens - acrescentou - não merecem um rei como Zadig. - Este enrubescia e sentia aumentarem seus sofrimentos. Concordaram, na conversação, em que as coisas deste mundo não eram sempre do agrado dos mais sensatos. O ermitão sustentava que não se conheciam os caminhos da Providência, e que os homens faziam mal em julgar um todo de que só divisavam a parte mais ínfima. Falaram em seguida a respeito das paixões. - Ah! Como são funestas! - exclamou Zadig. - São como os ventos que inflam as velas do barco - rebateu o ermitão. - Às vezes o fazem afundar; mas, sem a sua ajuda, o barco não poderia navegar. A bílis nos torna coléricos e doentes, mas sem a bílis não poderíamos viver. Tudo é perigoso neste mundo, e tudo é necessário. Falou-se do prazer, e o ermitão provou que é um presente da divindade: - Pois - disse ele - o homem não pode dar a si próprio nem sensações nem ideias, recebe tudo; a dor e o prazer lhe vêm de fora, como a sua existência. Zadig admirava-se de como um homem que havia praticado atos tão extravagantes pudesse raciocinar tão bem. Enfim, depois de uma palestra tão instrutiva quanto agradável, o proprietário conduziu os hóspedes ao quarto, bendizendo o céu por lhe haver enviado dois homens tão sábios e virtuosos. Ofereceu-lhes dinheiro de uma maneira natural e nobre, que não podia ofender. O ermitão recusou-o e despediu-se, dizendo que partiria para Babilônia antes do nascer do dia. A separação foi comovente; Zadig, principalmente, sentia-se cheio de estima e simpatia por aquele homem tão amável. Quando o ermitão e ele ficaram sozinhos no apartamento, fizeram durante muito tempo o elogio de seu hospedeiro. O velho, em plena madrugada, acordou Zadig. - Precisamos partir - disse ele. - Porém, enquanto estão todos dormindo, quero deixar a esse homem um testemunho de minha estima e afeição. Dizendo tais palavras, tomou um archote e ateou fogo à casa. Zadig, horrorizado, começou a gritar, e quis impedi-lo de praticar ato tão revoltante. O ermitão arrastava-o com uma força superior; a casa ardia em chamas. Quando já se encontrava suficientemente distante com o companheiro, o velho pôs-se a observar tranquilamente o incêndio. - Graças a Deus! - exclamou ele. - Eis a casa do nosso querido hospedeiro completamente destruída! Que homem feliz! Ao ouvir essas palavras, Zadig viu-se tentado a dar gargalhadas, e ao mesmo tempo a encher de injúrias o venerável ancião, a bater nele e a fugir, mas não fez nada disso, e, sempre dominado pela influência do ermitão, seguiu-o, contrariado, até a próxima pousada. Era em casa de uma viúva caridosa e virtuosa que tinha um sobrinho de catorze anos, cheio de atrativos, e que era a sua única esperança. Fez, da melhor forma possível, as honras da casa. No dia seguinte, de manhã, ordenou ao sobrinho que acompanhasse os viajantes até uma ponte que, por estar meio estragada, tornara-se de passagem perigosa. O jovem, solícito, marchava à frente deles. Ao chegarem à ponte, disse-lhe o ermitão: - Venha até aqui, que eu devo dar uma prova de gratidão a sua tia. Agarrou-o então pelos cabelos e o jogou no rio. O menino afundou, veio por um instante à tona, e em seguida foi levado pela correnteza. - Seu monstro! Seu criminoso! - gritou Zadig. - Você me havia prometido mais paciência - retrucou o ermitão - Fique sabendo que, debaixo das ruínas daquela casa que a Providência incendiou, o proprietário encontrou um tesouro imenso. Convém que saiba que esse jovem, a quem a Providência matou afogado, teria assassinado a sua tia dentro de um ano, e a você daqui a dois anos. - Quem lhe contou essas coisas, seu bárbaro? - gritou Zadig. - E mesmo que tivesse lido esse acontecimento no seu livro dos destinos, por acaso lhe será permitido afogar uma criança que não lhe fez mal algum? Enquanto falava, Zadig percebeu que o velho já não tinha barba, que o seu rosto adquiria as feições da juventude. Desapareceu-lhe o traje de ermitão; quatro belas asas recobriam um corpo majestoso e resplandecente de luz. - Ó enviado do céu! Ó anjo divino! - exclamou Zadig, ajoelhando-se. - Desceu então do empíreo para ensinar um simples mortal a submeter-se às ordens eternas? - Os homens - disse o anjo Jesrad - julgam tudo sem nada conhecer: era você, entre todos os homens, quem mais merecia ser iluminado. Zadig pediu licença para falar. - Desconfio de mim próprio - declarou -, mas ousarei pedir-lhe que me elucide uma dúvida: não seria melhor corrigir esse menino, e torná-lo virtuoso, em vez de afogá-lo? - Se ele tivesse sido virtuoso e continuasse vivendo - respondeu Jesrad -, o seu destino seria o de ser assassinado junto à mulher com quem iria se casar e com o filho que iriam ter. - Como?! - exclamou Zadig. - É então necessário que existam crimes e maldades, e que as maldades caiam sobre as pessoas de bem? - Os maus - respondeu Jesrad - são sempre infelizes: servem para pôr à prova um diminuto número de justos espalhados sobre a Terra, e não existe mal de que não provenha um bem. - Mas - retomou Zadig -, e se só existisse o bem e nenhum mal? - Então - retrucou Jesrad -, este mundo seria outro; o encadeamento dos fatos obedeceria a outra ordem de sabedoria; e essa outra ordem, que seria perfeita, só pode existir na morada eterna do Ser Supremo, de quem o mal não pode aproximar-se. Criou ele milhões de mundos, nenhum dos quais pode ser semelhante a outro. Essa enorme variedade é um atributo de seu desmedido poder. Não existem nem duas folhas de árvores na Terra, nem dois astros no espaço infinito do céu, que sejam semelhantes; e tudo o que você vê sobre o pequeno átomo em que nasceu devia estar no seu lugar e no seu tempo fixo, de acordo com as ordens imutáveis daquele que tudo abrange. Os homens pensam que esse menino que acaba de morrer caiu no rio por acaso: tudo é prova, ou punição, ou recompensa, ou providência. Lembra-se daquele pescador que se julgava o mais infeliz dos homens? Orosmade enviou você a fim de mudar-lhe o destino. Frágil mortal, pare de verberar contra aquilo que deve adorar. - Mas... - disse Zadig. E, enquanto dizia "mas", o anjo alçava voo para a décima esfera. Zadig, de joelhos, adorou a Providência e se sujeitou. O anjo gritou-lhe das alturas: - Vá para Babilônia. 19. Os Enigmas Zadig, transtornado, e como um homem a cujos pés tivesse caído um raio, caminhava a esmo. Entrou em Babilônia no dia em que aqueles contra quem lutara se encontravam reunidos no vestíbulo do palácio a fim de decifrar os enigmas e responder às perguntas do grande mago. Todos os cavaleiros haviam chegado, exceto o da armadura verde. Logo que Zadig apareceu na cidade, o povo se reuniu em torno dele; os olhos não se saciavam de vê-lo, as bocas de abençoá-lo, os corações de desejar-lhe o império. O invejoso o viu passar, estremeceu e virou o rosto; o povo o levou até o local da assembleia. A rainha, a quem haviam avisado da sua chegada, sentia-se agitada de receios e esperanças; a inquietação a consumia: não podia compreender nem como Zadig estava desarmado, nem como Itobad trazia a armadura branca. À vista de Zadig, ergueu-se um confuso murmúrio. Estavam surpresos e encantados de tornar a vê-lo; mas só aos cavaleiros que haviam lutado era permitido ingressar na assembleia. - Lutei como qualquer outro - disse ele. - Mas alguém está usando aqui as minhas armas; e, enquanto espero a honra de prová-lo, peço licença para apresentar-me no concurso de enigmas. Colocaram a proposta em votação: tão enraizada estava nos espíritos a sua reputação de honestidade que ninguém hesitou em admiti-lo. O grande mago propôs primeiro a seguinte questão: - Qual é, de todas as coisas do mundo, a mais longa e a mais curta, a mais veloz e a mais lerda, a mais divisível e a mais extensa, a mais negligenciada e a mais irreparavelmente lamentada, que devora tudo o que é pequeno e que anima tudo o que é grande? Cabia a Itobad responder. Respondeu que um homem como ele nada entendia de enigmas e que lhe bastava haver vencido os adversários com as armas. Responderam alguns que a chave do enigma era a fortuna; outros, a terra; outros, a luz. Zadig declarou que era o tempo. - Nada é mais longo - acrescentou ele -, já que ele é a medida da eternidade; nada é mais curto, sendo que falta a todos os nossos projetos; nada é mais lento para quem espera; nada mais veloz para quem usufrui a vida; estende-se, em grandeza, até o infinito; em pequenez, divide-se até o infinito; todos os homens o negligenciam, todos lhe lamentam a perda; nada se faz sem ele; faz esquecer tudo o que é indigno das gerações futuras, e imortaliza as grandes coisas. - A assembleia deu razão a Zadig. Foi perguntado em seguida: - Qual é a coisa que se recebe sem agradecer, que se usufrui sem saber como, que damos aos outros quando não sabemos onde é que nos encontramos, e que perdemos sem o perceber? Cada um deu a sua resposta. Somente Zadig adivinhou que se tratava da vida. Resolveu todos os outros enigmas com a mesma facilidade. Itobad dizia sempre que nada era mais fácil e que ele também o descobriria, se se tivesse dado o trabalho de fazê-lo. Propuseram questões sobre justiça, o supremo bem, a arte de reinar. As propostas de Zadig foram consideradas as mais concretas. - É pena - diziam - que tão bom espírito seja tão mau cavaleiro. - Ilustres senhores - declarou Zadig -, tive a honra de vencer na disputa. É a mim que pertence a armadura branca. O Sr. Itobad se apossou dela durante o meu sono: com certeza achou que lhe sentaria melhor do que a verdade... Estou disposto a provar perante todos, com esta túnica e esta espada, contra toda essa armadura branca que ele me tomou, que fui eu quem teve a honra de vencer o valente Otame. Itobad aceitou o desafio com toda a confiança. Não duvidava de que, estando de capacete, couraça e braçais, facilmente venceria a um sujeito de camisola e barrete de dormir. Zadig puxou da espada e saudou a rainha, que o observava plena de felicidade e medo; Itobad puxou a sua, sem saudar ninguém. Avançou contra Zadig como homem que nada tivesse a recear. Estava a ponto de lhe cortar a cabeça. Zadig soube aparar o golpe, opondo o que se chama o forte da espada ao fraco do adversário, de forma que a espada de Itobad se quebrou. Então Zadig agarrou o inimigo e o derrubou; e, colocando a ponta da espada na fenda da couraça, disse-lhe: - Deixe-me desarmá-lo, ou eu o mato. - Itobad, sempre surpreso das desgraças que aconteciam a um homem como ele, deixou que Zadig lhe tirasse tranquilamente o magnífico capacete, a soberba couraça, os belos braçais, os brilhantes coxotes. Zadig os vestiu e, equipado dessa maneira, correu a ajoelhar-se diante de Astartéia. Cador provou com facilidade que a armadura pertencia a Zadig. Foi proclamado rei com a concordância de todos, e principalmente de Astartéia, que, depois de tantas adversidades, gozava da doçura de ver o seu apaixonado digno, perante o Universo, de ser seu esposo. Itobad foi fazer-se chamar de senhor em sua própria casa. Zadig foi rei, e rei feliz. Tinha presente no espírito o que lhe havia dito o anjo Jesrad. Recordava-se até do grão de areia transformado em diamante. A rainha e ele adoraram a Providência. Zadig deixou a bela e caprichosa Missuf correr mundo. Mandou chamar o salteador Arbogad, a quem entregou um honroso posto em seu Exército, com a promessa de elevá-lo às mais altas dignidades se se comportasse como legítimo guerreiro, e de enforcá-lo se se entregasse às atividades de salteador. Setoc foi chamado dos confins da Arábia, com a bela Almona, para dirigir o comércio de Babilônia, Cador obteve a posição e estima que mereciam seus serviços; era o amigo do rei; e Zadig foi o único soberano da Terra que teve um amigo. O pequeno mudo não foi olvidado. O pescador ganhou uma bela casa. Orcan foi condenado a pagar-lhe uma grande soma e a devolver-lhe a esposa; mas o pescador, que adquirira juízo, ficou apenas com o dinheiro. Nem a bonita Semira se consolava de haver julgado que Zadig era caolho, nem Azora parava de chorar por haver querido cortar-lhe o nariz. Zadig diminuiu a tristeza das duas com maravilhosos presentes. O invejoso morreu de raiva e de vergonha. O império desfrutou a paz, a glória e a fartura; foi o mais ditoso século da Terra: era esta governada pela justiça e pelo amor. Agradeciam a Zadig, e Zadig agradecia ao céu. 20. A Dança Setoc precisava ir, a fim de tratar de assuntos comerciais, até a ilha de Serendib; mas o primeiro mês de seu casamento, que é, como é sabido, a lua de mel, não lhe consentia deixar a esposa, nem presumir que alguma vez pudesse deixá-la: pediu então a Zadig que fizesse a viagem em seu lugar. "Ai!", pensava este, suspirando. "Terei de colocar ainda maior distância entre mim e a bela Astartéia?! Mas tenho o dever de servir aos meus Benfeitores”. Dizendo isso, lamentou e partiu. Não demorou muito em Serendib para ser estimado como homem extraordinário. Tornou-se juiz de todas as disputas entre os comerciantes, amigo dos sábios e conselheiro do diminuto número de pessoas que aceitam conselhos. O rei expressou desejo de o ver e ouvir. Reconheceu logo o valor de Zadig; confiou na sua sabedoria e tornou-o seu amigo. A amizade e a estima do rei o fizeram estremecer. Dia e noite lembrava-se dos males que lhe haviam causado as boas graças de Moabdar. "Se agrado ao rei", pensava Zadig, "não estarei arruinado?" Não obstante, não podia evitar as gentilezas da Sua Majestade: pois é preciso esclarecer que Nabussan, rei de Serendib, filho de Nussanab, filho de Nabassun, filho de Sanbusná, era um dos melhores monarcas da Ásia, e que, quando se conversava com ele, tornava-se difícil deixar de apreciá-lo. Esse bom rei era sempre louvado, enganado e roubado; esforçavam-se para ver quem mais lhe assaltava os tesouros. O tesoureiro-mor da ilha de Serendib dava o exemplo, seguido fielmente pelos outros. O rei estava a par: por isso havia mudado várias vezes de tesoureiro; mas não pudera mudar o hábito estabelecido de dividir os proventos do rei em duas partes, a menor das quais cabia sempre a Sua Majestade, e a maior, aos administradores. O rei Nabussan confiou seus cuidados ao sábio Zadig. - Você, que sabe tão belas coisas - disse-lhe ele -, não saberia encontrar para mim um tesoureiro que não roube? - Sem dúvida - respondeu Zadig. - Conheço um meio infalível de conseguir-lhe um homem de mãos limpas. O rei, encantado, perguntou-lhe, abraçando-o, como deveria agir. - É só fazer dançar todos aqueles que se candidatam ao cargo de tesoureiro, e aquele que dançar com mais leveza será, sem dúvida alguma, o homem mais honrado. - Está zombando de mim! - exclamou o soberano. - Essa é uma forma muito estranha de escolher um tesoureiro... Como? Acredita, então, que aquele que fizer melhor um entrechat será o tesoureiro mais honesto e competente? - Não garanto que seja o mais competente -, mas asseguro que será com certeza o mais honesto. Falava Zadig com tanta segurança que o rei achou que ele possuísse algum segredo sobrenatural para reconhecer os bons tesoureiros. - Não aprecio o sobrenatural - disse Zadig. - Sempre detestei as pessoas e livros mágicos: se Vossa Majestade me deixar executar a prova que estou vos propondo, há de se convencer de que o meu segredo é a coisa mais simples e mais fácil deste mundo. Nabussan, rei de Serendib, ficou muito mais surpreso ao ouvir que esse segredo era simples do que se Zadig o tivesse apresentado como um milagre. - Está bem - concordou ele -, faça como bem entender. - Deixe o caso comigo - respondeu Zadig -, e Vossa Majestade ganhará com essa experiência muito mais do que imagina. No mesmo dia mandou afixar que todos os pretendentes ao cargo de tesoureiro-mor dos dinheiros de Sua Graciosa Majestade Nabussan, filho de Nussanab, deveriam apresentar-se, trajados de seda leve, na primeira lua do crocodilo, na antecâmara do rei. Ali compareceram 64 candidatos. Haviam sido reunidos violinistas num salão vizinho; estava tudo pronto para o bailado; mas a porta desse salão encontrava-se fechada, e, para ali entrar, era preciso passar por uma pequena galeria deveras escura. Um guarda vinha buscar e introduzir cada candidato, um após outro, naquela passagem, onde o deixava sozinho por alguns minutos. O rei, que estava a par de tudo, colocara em exposição todos os seus tesouros na referida galeria. Depois que todos os pretendentes chegaram ao salão, Sua Majestade mandou-os dançarem. Nunca se dançou tão pesadamente e com menos graça; tinham todos a cabeça baixa, o tronco encolhido, as mãos coladas ao corpo. - Que bandidos! - dizia Zadig em voz baixa. Um só dentre eles dançava com agilidade, de cabeça alta, olhar seguro, braços estendidos, corpo direito e joelhos firmes. - Ah! Que homem honrado! Que excelente homem! - dizia Zadig. O soberano abraçou aquele bom dançarino, proclamou-o tesoureiro, e todos os outros foram punidos e multados com a maior justiça do mundo: pois cada qual, durante o tempo em que estivera na galeria, enchera os bolsos e mal podia andar. Muito envergonhado se sentiu o rei com a natureza humana pelo fato de haver, entre aqueles 64 dançarinos, 63 ladrões. A galeria escura foi denominada "o corredor da tentação". Se fosse na Pérsia, teriam empalado aqueles 63 senhores; em outros países, formariam um tribunal de justiça que consumiria, com as custas do processo, o triplo do dinheiro roubado e que nada reporia nos cofres do rei; em outro reino, os 63 se justificariam plenamente e fariam cair em descrédito aquele dançarino tão leviano; em Serendib, só foram condenados a engordar o tesouro público, visto que Nabussan era bastante indulgente. Era também muito reconhecido: deu a Zadig uma importância mais considerável do que qualquer tesoureiro jamais roubara ao seu senhor o rei. Zadig se utilizou da quantia para enviar correios a Babilônia, que deviam informá-lo a respeito do destino de Astartéia. A voz tremeu-lhe ao dar essa ordem, o sangue lhe refluiu para o coração, seus olhos cobriram-se de trevas, a alma esteve a ponto de abandoná-lo. O mensageiro partiu, Zadig o viu embarcar; entrou no palácio, sem querer ver ninguém, como se estivesse sozinho em seu quarto, e proferindo a palavra "amor". - Ah! O amor - declarou o rei -, é precisamente do que se trata; adivinhaste a minha pena. Você é um grande homem! Espero que me ensine a descobrir uma mulher acima de qualquer suspeita, como me fez encontrar um tesoureiro honesto. Zadig, voltando a si, prometeu servi-lo no amor como o fizera nas finanças, apesar de a coisa lhe parecer bem mais difícil. 21. Olhos Azuis - O corpo e o coração... - principiou o soberano. Ao ouvir tais palavras, o babilônio não pôde deixar de interrompê-lo: - Sou-lhe muito grato por Sua Majestade não ter dito "o espírito e o coração"! Já que só se ouvem estas palavras nas conversas em Babilônia; só se veem livros sobre o coração e o espírito, escritos por pessoas que não possuem nem uma coisa nem outra; mas tenha a bondade de prosseguir, senhor. E Nabussan prosseguiu: - O corpo e o coração estão, em mim, consagrados ao amor; a primeira dessas duas potências tem todos os motivos para estar satisfeita. Possuo aqui cem mulheres a meu serviço, todas bonitas, complacentes, solícitas, sensuais até, ou que fingem sê-lo comigo. Quanto ao meu coração, já não é tão feliz. Tenho percebido que agradam muito o rei de Serendib e pouco se interessam por Nabussan. Não é que eu considere infiéis as minhas mulheres; mas desejaria encontrar uma alma que fosse minha; daria por esse tesouro as cem belezas cujos encantos possuo; veja se você pode, dentre as cem sultanas, encontrar-me uma por quem eu possa ter certeza de ser amado. Zadig respondeu como no caso do tesoureiro: - Deixe tudo por minha conta, senhor; mas permita primeiro que eu disponha do que Vossa Majestade expôs na galeria da tentação; eu lhe darei conta de tudo e não perderá nada. O rei deixou-o como senhor absoluto. Zadig escolheu em Serendib 33 pequenos corcundas dos mais feios que pôde encontrar, 33 pajens dos mais bonitos, e 33 sacerdotes dos mais eloquentes e dos mais fortes. Concedeu a todos plena liberdade de entrarem nas celas das sultanas. Cada corcundinha ficou com 4 mil moedas de ouro a seu dispor, e logo no primeiro dia todos eles foram felizes. Os pajens, que nada tinham a dar exceto a sua própria pessoa, só tiveram sucesso ao fim de dois ou três dias. Os sacerdotes tiveram um pouco mais de trabalho; mas, por fim, 33 devotas se renderam a eles. O rei, por janelinhas que davam para todas as celas, assistiu a todas essas provas, e maravilhou-se. Das suas cem mulheres, 99 sucumbiram diante de seus próprios olhos. Só restava uma jovem, bem novinha, de quem Sua Majestade nunca havia se aproximado. Enviaram-lhe um, dois, três corcundas, que lhe ofereceram até 20 mil moedas; ela foi incorruptível, e não pôde deixar de rir do fato de que aqueles corcundas achassem que o dinheiro os tornaria mais benfeitos de corpo. Apresentaram-lhe os dois pajens mais bonitos; ela disse que considerava o soberano ainda mais bonito. Deixaram-na com o mais eloquente dos sacerdotes, e em seguida com o mais corajoso; ela julgou o primeiro um papagaio e nem se dignou supor o mérito do segundo. - O coração é tudo - dizia ela. - Jamais cederei, nem ao ouro de um corcunda, nem às graças de um jovem pajem, nem à sedução de um sacerdote; amarei unicamente Nabussan, filho de Nussanab, e esperarei que ele se digne amar-me. O monarca ficou enlevado de alegria, de surpresa e de ternura. Recolheu todo o dinheiro que havia causado o sucesso dos corcundas e deu-o de presente à bela Falide; era esse o nome da jovem. Deu-lhe o seu coração: ela bem o merecia. Nunca foi tão viçosa a flor da juventude, nunca tiveram tanta sedução os encantos da beleza. Que ela não sabia fazer direito a reverência, é coisa que a verdade histórica não permite ocultar; em compensação dançava como as fadas, falava como as sereias e cantava como as graças: era cheia de predicados e virtudes. Nabussan, ao sentir-se amado, adorou-a; mas Falide tinha olhos azuis, e foi isso a fonte das maiores desgraças. Existia uma antiga lei que proibia aos reis amarem uma dessas mulheres que os gregos depois chamaram de boópis. Fazia mais de 5 mil anos que o supremo sacerdote estabelecera essa lei; tinha sido com o objetivo de tomar a amante do primeiro rei da ilha de Serendib que esse supremo sacerdote introduzira o anátema dos olhos azuis na Constituição do Estado. Todas as ordens do império vieram advertir o rei. Dizia-se publicamente que eram chegados os últimos dias do reino, que a execração alcançara o auge, que toda a natureza estava ameaçada de uma catástrofe; que, numa palavra, Nabussan, filho de Nussanab, amava dois grandes olhos azuis. Os corcundas, os financistas, os sacerdotes e as morenas encheram o reino com suas reprovações. Os povos selvagens que habitam o norte de Serendib aproveitaram-se do desgosto geral. Promoveram invasões nos Estados do bom Nabussan. Este pediu ajuda financeira aos súditos; os sacerdotes, que possuíam metade das rendas do Estado, contentaram-se em erguer as mãos ao céu e recusaram-se a enfiá-las no cofre para auxiliar o soberano. Fizeram belas preces com música, e deixaram o Estado à mercê dos bárbaros. - Ó meu caro Zadig, será que ainda poderá me salvar desse terrível problema?! - exclamou penosamente Nabussan. - Com todo o prazer - respondeu Zadig. - Vossa Majestade terá dos sacerdotes todo o dinheiro que quiser. Deixe desguarnecidas as terras onde se situam os castelos deles, e defenda unicamente os de Vossa Majestade. Nabussan assim fez; os sacerdotes vieram jogar-se aos pés do rei e implorar-lhe ajuda. O monarca respondeu-lhes com uma bela canção, cuja letra era uma prece pela conservação de suas terras. Os sacerdotes finalmente deram seu dinheiro e o rei encerrou a guerra vitoriosamente. Dessa maneira Zadig, com os seus sábios e apropriados conselhos, e pelos bons e grandes serviços que prestava, havia atraído a irreconciliável inimizade dos homens mais poderosos do reino. Os sacerdotes e as morenas prometeram a sua perdição; os financistas e os corcundas não mais o pouparam; tornaram-no suspeito ao bom Nabussan. Os serviços prestados ficam muita vez na antecâmara, e as suspeitas entram no gabinete, de acordo com a sentença de Zoroastro: eram todos os dias novas acusações; a primeira é repelida, a segunda roça a pele, a terceira fere, a quarta mata. Zadig, amedrontado, já que havia cuidado dos negócios de seu amigo Setoc e lhe salvara o dinheiro, só se preocupou em partir da ilha, e decidiu ir pessoalmente saber notícias de Astartéia. "É que", pensava ele, "se permaneço em Serendib, os sacerdotes me farão empalar; mas para onde ir? Serei escravizado no Egito; queimado, segundo todas as aparências, na Arábia; enforcado em Babilônia. Porém, eu preciso saber como está Astartéia; vou partir, e verei o que me reserva o meu triste destino”. O MUNDO COMO ESTÁ Visão de Babuc, Escrita por Ele Mesmo Entre os espíritos que dirigem os impérios do mundo, Ituriel ocupa um dos primeiros lugares, e tem sob a sua responsabilidade o departamento da Alta Ásia. Desceu certa manhã até a moradia do citado Babuc, à margem do Oxus, e disse-lhe: - Babuc, as insânias e os excessos dos persas provocaram a nossa ira. Reuniu-se ontem uma assembleia dos gênios da Alta Ásia a fim de decidir se se deve castigar Persépolis ou aniquilá-la. Vá até essa cidade, observe tudo, relate-me com fidelidade o que vir, e eu decidirei, de acordo com a sua descrição, emendar a cidade ou destruí-la. - Mas, senhor - observou com humildade Babuc -, eu jamais estive na Pérsia; não conheço ninguém por lá. - Melhor assim - retrucou o anjo -, dessa forma não será parcial; você recebeu do céu a faculdade de discernir, e eu acrescento-lhe o dom de inspirar confiança; ande, olhe, ouça, observe, e não receie nada: será bem recebido em todos os lugares. Babuc montou em seu camelo e partiu com os seus criados. Ao término de alguns dias, deparou, nas planícies de Senaar, com o exército persa, que ia lutar contra o exército indiano. Foi falar primeiro com um soldado que se encontrava sozinho. Perguntou-lhe qual era o motivo da guerra. - Por todos os deuses! - respondeu o soldado. - Eu não sei. Isso não é da minha conta; o meu ofício é matar e ser morto para ganhar a vida; não importa a quem sirva. Poderia até passar amanhã mesmo para o lado dos indianos, já que dizem que pagam aos seus soldados, por dia, cerca de meia dracma de cobre a mais do que recebemos neste maldito Exército persa. Se quer saber o motivo pelo qual lutamos, converse com o meu capitão. Após entregar um pequeno presente ao soldado, Babuc entrou no acampamento. Logo travou conhecimento com o capitão e indagou-lhe a respeito do motivo da guerra. - Como quer que eu saiba? - respondeu o capitão. - E que me importa o motivo? Moro a 200 léguas de Persépolis; ouvi dizer que foi declarada guerra; abandonei em seguida a família e fui procurar, conforme o nosso costume, a glória ou a morte, já que não podia fazer mais nada. - Mas os seus camaradas - argumentou Babuc - não estarão um pouco mais informados do que o senhor? - Não - respondeu o oficial -, apenas os nossos principais sátrapas é que sabem exatamente por que nos matamos. Babuc, assombrado, introduziu-se entre os generais, conquistando-lhes a confiança. - A causa desta guerra, que há vinte anos devasta a Ásia - disse-lhe por fim um deles -, origina-se de uma disputa entre o eunuco de uma das mulheres do grande rei da Pérsia e um funcionário do grande rei da Índia. Tratava-se de uma taxa de cerca da trigésima parte de um darico. O primeiro-ministro da Índia e o nosso defenderam com dignidade os direitos de seus senhores. De ambas as partes armou-se um exército de 1 milhão de soldados. Anualmente, se faz necessário recrutar, para esse exército, cerca de 400 mil homens. Aumentam os assassinatos, os incêndios, as ruínas, as devastações; o mundo sofre, e a sanha continua. Nosso primeiro-ministro e aquele da Índia protestam continuamente que só se trata da felicidade do gênero humano; e, a cada protesto, há sempre algumas cidades destruídas e algumas províncias arruinadas. No dia seguinte, por causa de um boato que se espalhara de que iria ser assinada a paz, o general persa e o general indiano deram-se pressa em travar batalha; esta foi sangrenta. Babuc presenciou-lhe todos os erros e os atos execráveis; testemunhou as manobras dos principais sátrapas, que fizeram de tudo para que o seu chefe tombasse. Viu oficiais mortos pelas próprias tropas; viu soldados que acabavam de matar os camaradas agonizantes, para lhes arrancar alguns despojos ensanguentados, rasgados e cobertos de lama. Entrou nos hospitais para onde levavam os feridos, cuja maioria perecia por causa da desumana negligência daqueles mesmos que o rei da Pérsia pagava regiamente a fim de os socorrerem. - Serão homens - exclamou Babuc - ou animais ferozes?! Ah! Bem vejo que Persépolis será destruída. Mergulhado nesses pensamentos, dirigiu-se ao acampamento dos indianos. Foi ali tão bem recebido como no dos persas, em conformidade com o que lhe fora predito; mas viu os mesmos excessos que o haviam enregelado de horror. "Oh! Oh!", pensou, "se o anjo Ituriel pretende exterminar os persas, também o anjo da Índia deve exterminar os indianos." Informando-se depois, com mais detalhes, do que havia se passado nos dois exércitos, soube de atos de desprendimento, de grandeza de alma, de humanidade, que o assombraram e comoveram. - Incompreensíveis humanos! - exclamou. - Como podem conter tanta baixeza e grandeza, tantas virtudes e crimes? A paz foi assinada. Os dois chefes inimigos, nenhum dos quais havia obtido a vitória, mas que, em seu exclusivo interesse, derramaram o sangue de tantos homens seus semelhantes, correram para as respectivas cortes, a fim de conseguir recompensas. Celebrou-se a paz em éditos públicos que anunciavam nada menos que a volta da virtude e da felicidade sobre a face da Terra. - Graças a Deus! - disse Babuc. - Persépolis será a morada da esclarecida inocência; não será arrasada, como o desejavam esses mesquinhos gênios: corramos sem demora até a capital da Ásia. Chegou a essa enorme cidade pela antiga entrada, que tinha um horrível aspecto e uma desagradável incivilidade que ofendiam a visão. Toda essa área da cidade sofria as consequências do tempo em que havia sido construída; pois, apesar da obstinação dos homens em louvar o antigo em detrimento do moderno, cumpre confessar que, em tudo, as primeiras tentativas são sempre malfeitas. Babuc juntou-se a uma multidão formada do que havia de mais sujo e feio em ambos os sexos. Essa multidão precipitava-se com ar estúpido em um amplo e escuro recinto. Pelo contínuo vozerio e movimento que ali notou, pelo dinheiro que algumas pessoas davam a outras para terem o direito de sentar-se, julgou encontrar-se num mercado onde vendiam cadeiras de palha; mas logo em seguida, vendo que várias mulheres se punham de joelhos, fingindo olhar fixamente para a frente e olhando os homens de esguelha, compreendeu que estava num templo. Vozes agudas, roucas, selvagens e dissonantes, faziam a abóbada retumbar de sons mal articulados, que produziam o mesmo efeito da voz dos jumentos quando respondem à trompa de corno que os chama. Babuc tapou os ouvidos; mas quase tapou também os olhos e o nariz, quando viu entrarem alguns operários com ferramentas. Ergueram uma grande laje e jogaram à direita e à esquerda uma terra que exalava um odor pestilento; depositaram em seguida um cadáver naquela abertura e colocaram-lhe uma pedra em cima. "Mas como?", estranhou Babuc. "Então esse povo enterra os mortos no mesmo lugar onde adoram a divindade?! Então os seus templos são pavimentados de cadáveres?! Não mais me admiro dessas pestes que costumam assolar Persépolis. A corrupção dos mortos e a de tantos vivos reunidos e acotovelados no mesmo local são capazes de envenenar o globo terrestre. Cidade imunda, esta Persépolis! Não há dúvida de que os anjos querem destruí-la para construir outra mais bonita e povoá-la de habitantes menos sujos e que cantem melhor. A Providência deve ter as suas razões: deixemos que Ela aja." Enquanto isso, o sol aproximava-se do ápice de seu caminho. Babuc iria jantar na outra extremidade da cidade, na casa de uma dama a quem levava uma carta do marido, oficial do Exército. Mas antes deu várias voltas por Persépolis; viu outros templos mais bem construídos e enfeitados, repletos de pessoas educadas e onde se ouviam belas melodias; admirou fontes públicas que, apesar de mal localizadas, agradavam pela beleza; praças onde pareciam respirar em bronze os maiores reis que governaram a Pérsia; outras praças onde ouvia o povo exclamar: "Quando veremos aqui o senhor a quem queremos?". Admirou as magníficas pontes que atravessavam o rio, os cais majestosos e cômodos, os palácios erigidos de um lado e outro, um enorme edifício onde, todos os dias, velhos soldados feridos e vencedores rendiam graças ao Deus do Exército. Chegou enfim à casa da dama, que o esperava para jantar, em companhia de distintas pessoas. A casa era limpa e arrumada; a dama era jovem, bela, simpática, atenciosa, e a companhia, digna dela; e Babuc pensava a todo momento: "O anjo Ituriel zomba do mundo em pretender arrasar uma cidade tão agradável". Percebeu, contudo, que a dama, que havia começado por pedir-lhe ternamente notícias do marido, conversava ainda mais ternamente, no final da refeição, com um jovem mago. Viu um juiz que, embora estivesse com sua esposa, assediava ostensivamente uma viúva, e esta, tolerante, enlaçava com uma mão o pescoço do juiz, ao mesmo tempo que estendia a outra para um jovem cidadão muito belo e modesto. A esposa do juiz foi quem primeiro se ergueu da mesa, para ir falar, num gabinete vizinho, com o seu confessor, que havia chegado atrasado e a quem haviam esperado para jantar; e este, homem eloquente, falou-lhe, naquele gabinete, com tanta veemência e sentimento de piedade que a mulher, ao voltar, estava com os olhos úmidos, o rosto rubro, o passo inseguro e a voz vacilante. Foi então que Babuc começou a temer que o anjo Ituriel estivesse com a razão. O seu dom de angariar confiança o fez conhecer no mesmo dia os segredos da dama. Ela lhe confessou a atração que sentia pelo jovem mago e assegurou-lhe que em todas as moradias de Persépolis ele encontraria o mesmo que havia visto na sua. Babuc chegou à conclusão de que uma sociedade assim não poderia continuar a existir; de que o ciúme, a discórdia e a vingança deviam assolar todos os lares; de que todos os dias deviam escorrer lágrimas e sangue; de que sem dúvida os maridos matariam os amantes de suas esposas, ou seriam mortos por estes; e de que, por fim, Ituriel agia muito bem em arrasar para sempre uma cidade entregue a tantos desregramentos. Encontrava-se absorto nessas tétricas ideias, quando se apresentou à porta um homem sério, de manto negro, que pediu humildemente para falar com o jovem juiz. Este, sem se erguer, sem olhá-lo, entregou-lhe, com altivez e ar distraído, alguns papéis, e o dispensou. Babuc perguntou quem era aquele homem. - É um dos melhores advogados da cidade - respondeu-lhe, em voz baixa, a dona da casa. - Faz cinquenta anos que estuda as leis. O juiz, que só tem 25 anos e que é sátrapa de lei há somente dois dias, encarregou-o de fazer o resumo de um processo que deve julgar, e que ainda não leu. - Esse jovem imprudente faz muito bem - declarou Babuc - em pedir conselho a um velho; mas por que não é esse velho juiz? - O senhor está brincando - retrucou a dama. - Os que envelheceram em empregos trabalhosos e subalternos nunca alcançam as honrarias. Esse jovem exerce um alto cargo porque seu pai é rico, e aqui o direito de distribuir justiça é comprado como se compra um terreno. - Ó costumes! Ó infeliz cidade! - exclamou Babuc. - Esse é o cúmulo da desordem. Aqueles que compraram o direito de julgar com toda a certeza vendem os seus julgamentos. Não diviso aqui a não ser abismos de perversidade. Por estar dessa forma externando a sua dor e surpresa, disse-lhe um jovem guerreiro, que chegara naquele dia do exército: - Por que não quer o senhor que se comprem os cargos da justiça? Quanto a mim, comprei o direito de afrontar a morte à frente de 2 mil homens que comando; desembolsei 40 mil daricos de ouro este ano, para dormir no chão duro trinta noites seguidas, e receber duas belas flechadas de que ainda sinto o efeito. Se me arruíno para servir ao imperador persa, a quem nunca vi, o senhor sátrapa de toga pode muito bem pagar o que quiser para ter o prazer de dar audiência a litigantes. Babuc, indignado, não pôde deixar de condenar, no íntimo, um país onde se punham em leilão as dignidades da paz e da guerra; concluiu precipitadamente que ali deviam ignorar de todo a guerra e as leis e que, mesmo que Ituriel não os exterminasse, morreriam por obra da sua detestável administração. Sua péssima opinião agravou-se quando da chegada de um homem corpulento que, depois de saudar familiarmente todas as pessoas, aproximou-se do jovem oficial e disse-lhe: - Só lhe posso emprestar 50 mil daricos de ouro, pois, na verdade, as alfândegas do império me renderam só 300 mil este ano. - Babuc informou-se a respeito daquele homem que se queixava de ganhar tão pouco; soube que existiam em Persépolis quarenta reis plebeus que arrendavam o império da Pérsia, e que entregavam um pouco do dinheiro ao soberano. Foi mais tarde visitar um dos mais magníficos templos da cidade; sentou-se em meio a um grupo de mulheres e homens que ali foram passar o tempo. Num elevado balcão apareceu um mago, que falou longamente sobre o vício e a virtude. Esse mago dividiu em várias partes o que não tinha necessidade de ser dividido; provou metodicamente tudo o que era claro, ensinou tudo o que já se sabia. Apaixonou-se a frio, e saiu suando e sem fôlego. Toda a assembleia então despertou e julgou ter assistido a uma instrução. "Aí está um homem", pensou Babuc, "que fez o melhor que pôde para aborrecer a duzentos ou trezentos de seus conterrâneos; mas a sua intenção era boa e por isso não há motivos para destruir Persépolis”. Após sair desse templo, levaram-no a assistir a uma festa pública que era celebrada todos os dias; o lugar era uma espécie de basílica, ao fundo da qual se via um palácio. As mais belas cidadãs de Persépolis, os mais consideráveis sátrapas, colocados em ordem, constituíam um espetáculo tão bonito que Babuc julgou a princípio que aquilo era toda a festa. Duas ou três pessoas, que pareciam reis e rainhas, apareceram logo depois no vestíbulo daquele palácio; sua linguagem, muito diferente da do povo, era medida, harmoniosa e sublime. Ninguém dormia, todos escutavam em profundo silêncio, só quebrado pelos testemunhos de sensibilidade e admiração. O dever dos reis, o amor da virtude, os perigos das paixões eram expressos em tiradas tão vivas e comoventes que Babuc rompeu em pranto. Não duvidou de que aqueles heróis e heroínas, aqueles reis e rainhas que ele acabava de ouvir, fossem os predicadores do império; fez até mesmo o propósito de exortar Ituriel a vir ouvi-los, certo de que tal espetáculo o reconciliaria para sempre com a cidade. Terminada a festa, ele quis ir visitar a principal rainha, que havia declamado naquele belo palácio uma moral tão nobre e tão pura; fez-se apresentar a Sua majestade; levaram-no, por uma estreita escada, até um apartamento mal mobiliado do segundo andar, onde encontrou uma mulher malvestida, que lhe disse com um ar nobre e patético: - Este ofício não é suficiente para viver; um dos príncipes que o senhor viu me engravidou; em breve darei à luz; não tenho dinheiro, e sem dinheiro não se pode ter filhos. Babuc deu-lhe 100 daricos de ouro, dizendo para si mesmo: "Se houvesse apenas esse mal na cidade, Ituriel não teria por que se incomodar tanto". Saiu dali e foi passar a noite no estabelecimento de alguns vendedores de magníficas ninharias, para onde o levou um homem inteligente com quem havia travado relações. Escolheu o que lhe agradou, que lhe venderam polidamente por muito mais do que valia. Seu amigo, na volta, fez Babuc compreender como o enganaram. Babuc escreveu nas suas tabuinhas o nome do comerciante, para indicá-lo a Ituriel no dia da punição da cidade. Enquanto escrevia bateram em sua porta: era o próprio comerciante, que vinha trazer-lhe a bolsa que ele esquecera sobre o balcão. - Como se explica - estranhou Babuc - que o senhor se mostre tão honesto e generoso, quando não teve vergonha de vender-me bugigangas quatro vezes acima do seu valor? - Não há nesta cidade nenhum comerciante mais ou menos conhecido - respondeu-lhe o outro - que não viesse devolver-lhe a bolsa; mas muito o enganaram ao dizer-lhe que eu lhe vendi artigos quatro vezes mais caro do que valiam: vendi-os por dez vezes mais. E tanto isso é verdade que, se daqui a um mês o senhor quiser revendê-los, não obterá nem essa décima parte. Mas nada mais justo: é a fantasia dos homens que fixa o preço dessas coisas fúteis; é essa fantasia que sustenta cem operários que eu emprego, é ela que me dá uma bela casa, uma carruagem cômoda, cavalos; é ela que impulsiona a indústria, que mantém o gosto, a circulação da riqueza e a abundância. Às nações vizinhas eu vendo essas quinquilharias muito mais caro que ao senhor, e assim sou útil ao império. Após meditar um pouco, Babuc o riscou das suas tabuinhas. Babuc, muito inseguro a respeito do que deveria pensar de Persépolis, decidiu encontrar-se com os magos e os letrados: pois uns estudam a sabedoria, e os outros, a religião; e esperava que esses pudessem salvar o resto do povo. Na manhã seguinte dirigiu-se para um colégio de magos. O reitor confessou-lhe que possuía 100 mil escudos de renda por haver feito voto de pobreza, e que exercia uma autoridade muito grande em vista do seu voto de humildade; depois do que, deixou Babuc aos cuidados de um irmão menor, que lhe fez as honras da casa. Ao mesmo tempo em que esse irmão lhe mostrava a grandiosidade daquela casa de penitência, espalhou-se o rumor de que Babuc havia ido ali para reformar todos aqueles estabelecimentos. Começaram então a chegar-lhe memoriais de cada uma das referidas casas; todos esses memoriais diziam, em substância: "Conserve-nos e destrua todas as outras". A julgar por suas apologias, essas sociedades eram todas necessárias. Mas, a julgar por suas acusações recíprocas, mereciam ser todas destruídas. Admirava-se de como não havia nenhuma delas que, para edificar o Universo, não lhe quisesse conseguir o império. Apresentou-se então um homenzinho que era um semimago, o qual lhe disse: - Vejo que os tempos vão cumprir-se, pois Zerdust regressou à Terra; as meninas profetizam recebendo chicotadas. Pedimos, pois, vossa proteção contra o grão-lama. - O quê! - exclamou Babuc. - Contra o pontífice-rei que mora no Tibete? - Ele mesmo. - Então vocês lhe declararam guerra e arregimentam exércitos contra ele? - Não, mas o grão-lama diz que o homem é livre, coisa em que nós não acreditamos; escrevemos panfletos, atacando-o, mas ele não os lê; quando muito, ouviu apenas falar de nós, e limitou-se a condenar-nos como um proprietário ordena que destruam as lagartas da sua horta. Babuc estremeceu diante da demência daqueles homens que faziam profissão de sabedoria, das intrigas daqueles que diziam haver renunciado ao mundo, da orgulhosa ambição e cobiça daqueles que pregavam a humildade e o desinteresse; e chegou à conclusão de que Ituriel possuía boas razões para aniquilar toda aquela espécie. De volta à casa, Babuc mandou procurar livros novos para suavizar suas penas e convidou alguns letrados para jantar, com o intuito de distrair-se. Veio o dobro do que convidara, como abelhas atraídas pelo mel. Esses parasitas não faziam mais que comer e falar; louvavam duas espécies de pessoas, aos mortos e a si próprios, e jamais a seus contemporâneos, exceto ao dono da casa. Se algum deles proferia uma boa frase, os outros baixavam os olhos e mordiam os lábios de inveja por não lhes haver ocorrido isso. Eram menos fingidos que os magos, pois não tinham tão grandes ambições. Cada qual disputa um lugar de lacaio e uma reputação de grande homem; diziam-se cara a cara coisas insultuosas, que consideravam frases de espírito. Tinham algum conhecimento da missão de Babuc. Um deles pediu-lhe em segredo que arruinasse um autor que não o havia louvado suficientemente cinco anos antes. Outro solicitou a desgraça de um cidadão que jamais tinha rido nas suas comédias. Um terceiro pediu a extinção da academia, porque nunca conseguira ser nela admitido. Terminado o almoço, cada qual se retirou sozinho, pois não havia em todo o grupo dois homens que se pudessem suportar, nem falar-se, a não ser na casa dos ricos que os convidavam para a sua mesa. Babuc concluiu que não se perderia nada se toda aquela corja morresse em meio à destruição geral. Logo após livrar-se deles, começou a ler alguns dos novos livros, nos quais reconheceu a mentalidade de seus comensais. Viu principalmente com indignação essas gazetas de maledicência, esses arquivos do mau gosto, que a inveja, a baixeza e a fome ditaram; essas covardes sátiras onde se poupa o abutre e se destroça a pomba; esses romances desprovidos de imaginação, onde se veem tantos retratos de mulheres que o autor desconhece. Jogou no fogo todos aqueles detestáveis escritos e saiu para dar um passeio. Apresentaram-lhe um velho letrado, que não havia ido engrossar o número daqueles parasitas. Esse letrado sempre fugia da multidão, conhecia os homens, o que muito o ajudava, e falava com discrição. Babuc falou-lhe amargamente do que havia lido e ouvido. - O senhor leu coisas bastante desprezíveis - disse-lhe o sábio letrado. - Mas em todas as épocas e em todos os países, e em todos os gêneros, sempre abunda o mau e escasseia o bom. E se o senhor recebeu em casa o refugo do pedantismo é porque, em todas as profissões, o que há de mais indigno de aparecer é sempre o que se apresenta com maior impudor. Os verdadeiros sábios vivem retirados e tranquilos; existem ainda, em nosso meio, homens e livros dignos de lhe ocupar a atenção. Enquanto aquele assim falava, veio juntar-se outro letrado; e o que disseram ambos foi tão agradável e instrutivo, tão acima dos preconceitos e tão de acordo com a virtude que Babuc confessou nunca ter ouvido nada semelhante. - Eis aí homens - murmurava ele -, em que o anjo Ituriel não ousará tocar, a menos que seja muito cruel. Apaziguado em relação às letras, continuava porém irado contra o resto da nação. - O senhor é estrangeiro - dizia-lhe o sensato homem -, de forma que os maus costumes se lhe apresentam em grande número, e passa-lhe despercebido o bem que está oculto e às vezes resulta desses mesmos maus costumes. Babuc soube então que, entre os letrados, existiam alguns que não eram invejosos e que, até entre os magos, existiam aqueles virtuosos. Compreendeu que aquelas grandes sociedades que pareciam, em seus entrechoques, preparar a destruição, eram no fundo instituições salutares; que cada agrupamento de magos era um freio aos seus rivais; que, se divergiam em algumas opiniões, esses rivais pregavam todos a mesma moral; que instruíam o povo e viviam submetidos às leis, como fazem os preceptores que vigiam os filhos da casa, enquanto os donos vigiam a eles. Conversou com muitos desses magos e descobriu almas celestiais. Reconheceu até que, entre os dementes que pretendiam combater o grão-lama, havia homens eminentes. Suspeitou enfim de que, com os costumes de Persépolis poderia acontecer o mesmo que com os edifícios: alguns lhe pareciam dignos de compaixão, outros lhe causavam admiração. Disse, então, ao seu amigo letrado: - Reconheço que esses magos, que eu havia julgado tão perniciosos, são, com efeito, muito úteis, principalmente quando um sábio governo os impede de se tornarem por demais necessários; mas ao menos confesse que os seus jovens juízes, que compram um cargo de juiz logo que aprendem a montar a cavalo, devem revelar nos tribunais tudo o que a impertinência possui de mais ridículo e a iniquidade, de mais perverso; melhor seria entregar gratuitamente esses cargos aos velhos jurisconsultos que passaram a vida toda a pesar os prós e os contras. - Antes de chegar a Persépolis - retrucou o letrado -, viu o senhor o nosso exército; sabe que os nossos oficiais combatem muito bem, apesar de terem comprado as divisas; da mesma forma há de ver que os nossos jovens juízes não julgam mal, embora tenham pago para isso. Levou-o no dia seguinte ao tribunal, onde iria ser proferida importante sentença. A causa era conhecida de todos. Os velhos advogados que a discutiam pareciam oscilar em suas opiniões; alegavam cem leis, nenhuma das quais era aplicável à questão; consideravam o assunto por cem pontos de vista, nenhum deles o adequado; os juízes decidiram em menos tempo do que aquele que gastaram os advogados em hesitar. O veredicto foi quase unânime; julgaram bem, porque seguiam as luzes da razão, e os outros haviam opinado mal, porque só tinham consultado os livros. Babuc concluiu que às vezes havia excelentes coisas nos abusos. Viu no mesmo dia que as riquezas dos financistas, que tanto o revoltaram, podiam redundar num ótimo efeito; pois, tendo o imperador necessidade do dinheiro, encontrou, no espaço de uma hora, por intermédio deles, o que não havia conseguido em seis meses pelas vias ordinárias; viu que aquelas grossas nuvens, infladas do orvalho da terra, devolviam em forma de chuva o que haviam recebido. Aliás, os filhos desses homens jovens, não raro mais bem-educados que os de famílias mais antigas, valiam às vezes muito mais; pois nada impede que se seja um bom juiz, um corajoso guerreiro, um hábil homem de Estado, quando se tem um pai bom calculista. Insensivelmente, perdoava Babuc a cobiça do financista, que não é, no fundo, mais cobiçoso que os outros homens, e que é necessário. Desculpava a demência dos que se arruinavam para julgar e lutar, demência que produz grandes juízes e heróis. Passava por alto sobre a inveja dos letrados, entre os quais se encontravam homens que esclareciam o mundo; reconciliava-se com os magos ambiciosos e intrigantes, entre os quais havia maiores virtudes do que pequenos vícios. Mas ainda lhe restava muito que censurar; sobretudo as galanterias femininas e suas prováveis consequências o enchiam de inquietação e medo. Por desejar estudar todas as condições humanas, fez-se conduzir a um ministro; mas, no caminho, continuava temendo que alguma mulher fosse assassinada na sua presença pelo marido. No gabinete do ministro, esperou duas horas na antecâmara antes de ser anunciado, e mais duas horas depois de havê-lo sido. Nesse intervalo, considerou recomendar ao anjo Ituriel esse ministro e seus insolentes assessores. A sala de espera estava repleta de mulheres de todas as condições, de magos de todas as cores, de juízes, de comerciantes, de militares, de gente pedante; todos se queixavam do ministro. O avarento e o usurário diziam: "Com toda certeza, esse homem rouba as províncias"; o caprichoso lhe estranhava a esquisitice; "Ele só pensa nos prazeres", dizia o libertino; o intrigante suspirava vê-lo em breve perdido por um cabala; as mulheres esperavam que nomeassem em breve um ministro mais jovem. Babuc, que ouvia todos eles, não pôde deixar de pensar: "Eis aí um homem bastante feliz; tem todos os seus inimigos na antecâmara; domina com o seu poder aqueles que o invejam; vê a seus pés os que o odeiam". Finalmente entrou: viu um velhinho curvado pelo peso dos anos e do trabalho, mas ainda cheio de espírito. Babuc agradou-lhe, e pareceu a Babuc um homem agradável. A conversação tornou-se interessante. Confessou-lhe o ministro que era muito infeliz; que passava por homem rico, e era pobre; que o consideravam todo-poderoso, e era desobedecido; que só havia prestado serviço a ingratos, e que, num trabalho contínuo de quarenta anos, mal tivera um momento de satisfação. Babuc ficou comovido e pensou que, se aquele homem havia cometido faltas e o anjo Ituriel o quisesse punir, não precisava aniquilá-lo, mas apenas conservá-lo naquele cargo. Enquanto conversava com o ministro, de repente entrou a bonita dama em cuja residência Babuc jantara. Em seus olhos e na fronte viam-se os sintomas da dor e da ira. Explodiu em censuras contra o político; chorou; queixou-se amargamente de terem recusado a seu marido um lugar a que o seu sangue permitia aspirar e que os seus serviços e ferimentos mereciam; expressou-se com tanta veemência, colocou tanta graça em suas queixas, rebateu tão habilmente as contestações, apresentou com tanta eloquência as suas razões que não saiu do gabinete sem ter conseguido a fortuna do marido. Babuc estendeu-lhe a mão. - Será possível, minha senhora - ele disse -, que se tenha dado todo esse trabalho por um homem a quem não ama e de quem tem tudo a recear? - Um homem a quem não amo?! - exclamou a mulher. - Pois fique sabendo que meu marido é o melhor amigo que eu tenho no mundo, que não existe nada que eu não sacrifique por ele, exceto o meu amante, e que ele faria tudo por mim, menos abandonar a sua amante. Quero que a conheça; é uma mulher encantadora, cheia de espírito, e possui o melhor caráter do mundo; cearemos juntas essa noite com meu marido e o meu mago; venha compartilhar a nossa felicidade. A mulher levou Babuc até a moradia dela. O marido, que havia chegado imerso em dor, recebeu a esposa com arrebatamentos de alegria e gratidão; beijava sucessivamente a amante, a esposa, o mago e Babuc. A união, a alegria, o espírito e a felicidade foram a alma daquela ceia. - Saiba - disse a Babuc a bonita dama - que aquelas a quem às vezes culpam de serem desonestas têm quase sempre os méritos que constituem um homem honrado; e, para convencer-se disso, vá amanhã jantar comigo na casa da bela Teone. Existem algumas velhas vestais que a maltratam; mas Teone pratica maior bem que todas elas juntas. Seria incapaz de cometer uma pequena injustiça pelo maior dos interesses; só dá ao seu amante conselhos generosos; este enrubesceria diante dela se deixasse fugir alguma oportunidade de fazer o bem; pois nada impele mais às ações virtuosas do que ter, como testemunha e juiz, uma amante cuja estima se procura merecer. Babuc não deixou de ir ao encontro. Viu uma moradia em que imperavam todas as atrações; Teone reinava sobre elas; sabia conversar com cada pessoa com sua própria linguagem. Seu comportamento natural punha à vontade o dos outros; agradava quase sem querer; era amável e bondosa; e, o que valorizava ainda mais todas as suas boas qualidades era a sua beleza. Babuc, por mais cita e mensageiro celestial que fosse, sentiu que, se permanecesse por mais tempo em Persépolis, esqueceria Ituriel por causa de Teone. Estava se afeiçoando à cidade, cujo povo era educado, pacífico e benévolo, apesar de leviano, falador e vaidoso. Receava que Persépolis fosse condenada; receava até o relatório que precisaria fazer. Eis como fez para apresentar esse relatório. Encomendou, ao melhor fundidor da cidade, uma estatueta composta de todos os metais, das terras e pedras mais preciosas e mais reles; e a entregou a Ituriel. - Destruiria - indagou ele - esta linda estátua porque não é toda feita de ouro e brilhantes? Ituriel compreendeu; nem mesmo pensou em emendar Persépolis, e decidiu deixar o mundo como era. Porque, declarou ele, se nem tudo está bem, tudo é tolerável. Permitiu, então, que Persépolis subsistisse; e Babuc nem pensou em se lamentar, como fez Jonas, que se irritou por não haverem arrasado Nínive. Mas após ter permanecido três dias dentro de uma baleia, ninguém está de tão bom humor como depois de haver à ópera, ao teatro de comédia, e de haver ceado em excelente companhia. MEMNON ou A SABEDORIA HUMANA Um dia Memnon formou em seu espírito o louco plano de ser perfeitamente sábio. Não existe homem a quem essa insensatez não tenha alguma vez ocorrido. "Para ser muito sábio e, portanto, muito feliz", pensou Memnon, é suficiente não ter paixões; e nada é mais fácil. Em primeiro lugar, nunca amarei mulher alguma, pois, ao deparar com uma beleza perfeita, direi para mim mesmo: Esse rosto se enrugará um dia; esses lindos olhos se ornarão de vermelho; esses seios firmes se tornarão flácidos e caídos; essa bonita cabeça perderá os cabelos. Basta olhá-la agora como a verei no futuro, e essa cabeça não há de virar a minha. "Em segundo lugar, serei moderado. Por mais que seja tentado por boa comida, por excelentes vinhos, pela sedução da sociedade, será suficiente imaginar as consequências dos excessos, a cabeça pesada, a dor de estômago, a perda da razão, da saúde e do tempo: só comerei por necessidade; minha saúde será sempre igual, minhas ideias sempre puras e brilhantes. Tudo isso é tão fácil que não existe mérito algum em obtê-lo”. "Depois", pensava Memnon, "devo me preocupar um pouco com a minha fortuna. Meus desejos são comedidos; meus bens estão solidamente colocados nas mãos do tesoureiro-mor das finanças de Nínive; possuo com que viver com independência; e é esse o maior dos bens. Nunca me verei na terrível necessidade de frequentar a corte: não invejarei ninguém, e não serei invejado por ninguém. Tudo isso é também muito fácil. Possuo amigos", prosseguia ele pensando, "e os conservarei, porque nada terão que disputar comigo. Jamais me indisporei com eles, nem eles comigo. Isso não é nada difícil”. Havendo assim engendrado, no interior do quarto, seu pequeno plano de sabedoria, Memnon foi até a janela. Viu duas mulheres passeando debaixo dos plátanos, próximo da sua casa. Uma era velha e dava a impressão de não estar pensando em nada. A outra era jovem, bela, e parecia bastante preocupada. Suspirava, chorava, e com isso só fazia aumentar seus atrativos. O nosso filósofo ficou impressionado, não com a beleza da mulher (tinha certeza de não ceder a tais fraquezas), mas com a aflição em que a via. Desceu à rua e abordou a jovem, com o propósito de consolá-la sabiamente. A linda criatura contou-lhe, com a mais comovente ingenuidade do mundo, todo o mal que lhe causava um tio que ela não tinha; com que artifícios ele havia lhe roubado uns bens que ela nunca possuíra; e quanto temia a violência dele. - O senhor me parece um homem tão sábio - disse-lhe ela -, que se me fizesse o obséquio de me acompanhar até a minha casa e examinar os meus negócios, tenho certeza de que me tiraria da terrível dificuldade em que me encontro. Memnon não vacilou em segui-la a fim de examinar com sabedoria os seus negócios e dar-lhe um bom conselho. Aflita, a dama levou-o para um salão perfumado e o fez sentar-se educadamente num largo sofá, onde os dois se postaram, com as pernas cruzadas, um diante do outro. A jovem falou de olhos baixos, de onde saíam lágrimas de vez em quando, e os quais, ao se erguerem, cruzavam sempre com o olhar do sábio Memnon. As palavras dela eram repletas de uma ternura que crescia toda vez que os dois se olhavam. Memnon examinava os negócios da jovem com grande seriedade, e cada vez mais sentia aumentar o desejo de auxiliar aquela criatura tão honesta e tão infeliz. No calor da conversação, deixaram, sem perceber, de estar um diante do outro. As suas pernas descruzaram-se. Memnon aconselhou-a tão próximo dela, deu-lhe conselhos com tanta ternura que nenhum dos dois podia falar de negócios, e não sabiam mais onde se encontravam. E quando se achavam em tal situação, apareceu o tio, como era de esperar; estava armado até os dentes; e a primeira coisa que disse foi que iria matar o sábio Memnon e a sobrinha; a última que proferiu foi que ainda poderia relevar aquilo por meio de uma boa quantia. Memnon foi forçado a entregar tudo o que tinha em seu poder. Davam-se por muito felizes, naquela época, poderem livrar-se com tão pouco; a América ainda não fora descoberta e as damas aflitas não eram tão perigosas como nos dias de hoje. Envergonhado e desesperado, Memnon voltou para casa; encontrou um bilhete convidando-o para ir jantar com alguns amigos íntimos. "Se eu ficar sozinho em casa", pensou ele, "meu espírito estará preocupado com a minha triste aventura, não comerei e acabarei adoecendo. É melhor ir fazer, com os meus amigos, uma refeição frugal. Esquecerei, na serenidade do seu convívio, a asneira que cometi esta manhã." Compareceu à reunião; acharam-no um pouco calado. Fizeram-no beber para expulsar a tristeza. Um pouco de vinho tomado com moderação é um remédio para a alma e o corpo. É assim que pensa o sábio Memnon; e embebedou-se. Depois lhe propuseram uma partida. Um joguinho entre amigos é um passatempo honesto. Ele jogou; perdeu tudo o que tinha na bolsa, e quatro vezes mais sob palavra. No meio do jogo surgiu uma discussão; os ânimos se exaltaram: um de seus amigos íntimos lançou-lhe no rosto um copo de dados e lhe vazou um olho. Carregaram para casa o sábio Memnon, bêbado, sem dinheiro e com um olho de menos. Cozinhou um pouco o seu vinho; e, quando se viu com a cabeça mais livre, mandou o criado conseguir dinheiro com o tesoureiro-mor de Nínive, para poder pagar seus amigos íntimos: contaram-lhe que, de manhã, seu credor abrira falência fraudulenta, deixando cem famílias em pânico. Memnon, consternado, dirigiu-se à corte com um emplastro no olho e um memorial na mão, para pedir justiça ao rei contra o falido. Encontrou num salão várias damas que trajavam saias de 24 pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia um pouco, exclamou, olhando-o de esguelha: - Ah, que horror! Outra, que o conhecia melhor, disse-lhe: - Boa tarde, Sr. Memnon. Estou muito encantada de vê-lo, Sr. Memnon. A propósito, Sr. Memnon, como foi que perdeu um olho? - E passou adiante, sem esperar resposta. Memnon escondeu-se a um canto, esperando pelo momento em que pudesse se jogar aos pés do rei. Chegado esse momento, beijou três vezes o chão e apresentou seu memorial. Sua Graciosa Majestade o recebeu bastante favoravelmente e entregou o memorial a um dos sátrapas, para informar. O sátrapa chamou Memnon à parte e disse-lhe com altivez, rindo amargamente: - Belo caolho me saiu você, dirigindo-se ao rei, e não a mim! E, além disso, ousa pedir justiça contra um honesto falido a quem honro com a minha proteção e que é sobrinho de uma camareira da minha amante. Quer saber de uma coisa? Desista disso, meu amigo, se quer conservar o olho que lhe resta... Memnon, havendo assim renunciado, pela manhã, às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo, a qualquer discussão, e principalmente à corte, tinha sido, antes de anoitecer, enganado e roubado por uma bonita mulher, embebedara-se, jogara, metera-se numa discussão, perdera um olho e recorrera à corte, onde zombaram dele. Petrificado de espanto, esmorecido de dor, voltou para a sua residência com a morte no coração. Quis entrar em casa: ali encontrou oficiais de Justiça que o estavam despejando em nome dos credores. Quase desmaiado, sentou-se embaixo de um plátano; ali encontrou-se com a bonita dama da manhã, que passeava com o querido tio, e que se pôs a rir ao ver Memnon com o seu emplastro. Caiu a noite; Memnon deitou-se na palha junto dos muros de sua casa. Veio-lhe a febre; assim adormeceu; e um espírito celeste lhe apareceu em sonho. Era todo resplandecente de luz. Possuía seis belas asas, mas nem pés, nem cabeça, nem cauda, e não se parecia com coisa alguma. - Quem é você? - indagou Memnon. - O seu bom gênio - respondeu-lhe o outro. - Devolva-me então o olho, a saúde, o dinheiro e a sabedoria - pediu-lhe Memnon. Em seguida contou-lhe como havia perdido tudo aquilo em um só dia. - Essas são aventuras que jamais nos ocorrem no mundo que habitamos - declarou o espírito. - E que mundo você habita? - perguntou o infeliz. - A minha morada está situada a quinhentos milhões de léguas do Sol, numa pequena estrela perto de Sírio, que você enxerga daqui. - Que belo lugar! - exclamou Memnon. - Quer dizer que lá não existem finórias que enganem um pobre homem, nem amigos íntimos que lhe ganhem o dinheiro e lhe vazem um olho, nem falidos, nem sátrapas que zombem de nós, recusando-nos justiça? - Não - respondeu o habitante de outro mundo -, nada disso. Jamais somos enganados pelas mulheres, porque não as temos; não nos entregamos a excessos à mesa, porque não comemos; não temos falidos, porque não há entre nós nem ouro nem prata; não nos podem vazar os olhos, porque não possuímos corpos à maneira dos de vocês; e os sátrapas jamais nos fazem injustiça, porque no nosso mundo todos são iguais. - Sem mulheres e sem dinheiro - disse Memnon -, como passam então o tempo? - Vigiando os outros mundos que nos são confiados - respondeu o gênio; e eu vim para consolá-lo. - Ah! - suspirou Memnon. - Por que não veio na noite anterior, a fim de me impedir de cometer tantas insanidades? - Eu me encontrava com Assan, seu irmão mais velho - respondeu o ser celeste. - Ele é mais merecedor de compaixão que você. Sua Graciosa Majestade, o rei da Índia, em cuja corte ele tem honra de servir, mandou-lhe vazar os dois olhos, por causa de uma pequena indiscrição, e Assan encontra-se agora numa prisão, com ferros nos pulsos e tornozelos. - Então, que adianta ter um gênio na família se, de dois irmãos, um está caolho, o outro cego, um dormindo na palha, o outro na prisão? - A sua sorte vai mudar - retrucou o ente da estrela. - É verdade que você continuará caolho; mas, exceto isso, ainda será muito feliz, desde que não faça o ingênuo plano de ser perfeitamente sábio. - Significa que é algo impossível de conseguir? - indagou Memnon, suspirando. - Tão impossível- respondeu o outro - como ser perfeitamente hábil e perfeitamente feliz. Nós mesmos estamos muito distantes disso. Existe um astro em tais condições; mas nos cem milhões de mundos espalhados pela imensidão, tudo se encadeia por gradações. Há menos sabedoria e prazer no segundo do que no primeiro, menos no terceiro do que no segundo. E assim até o último, onde todos são completamente loucos. - O meu receio - disse Memnon - é que este nosso pequeno planeta terráqueo seja exatamente o hospício do Universo do qual me dá a honra de falar. - Não chega a isso - respondeu o espírito -, mas se aproxima: tudo está em seu devido lugar. - Ah! - exclamou Memnon. - Bem se vê que certos poetas e certos filósofos não têm razão alguma em declarar que tudo está bem. - Ao contrário, eles têm toda a razão - replicou o filósofo das alturas -, levando-se em conta o arranjo de todo o Universo. - Ah! Eu só vou acreditar nisso - retrucou o pobre Memnon - quando deixar de ser caolho. MICRÔMEGAS História Filosófica 1 Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno Em um dos planetas que giram ao redor da estrela denominada Sírio, vivia um jovem de muito espírito que eu tive a honra de conhecer em ocasião da última viagem que ele fez a este nosso diminuto formigueiro: chamava-se Micrômegas, nome muito apropriado a todos os grandes. Possuía 8 léguas de altura: entendo, por 8 léguas, 24 mil passos geométricos de 5 pés cada um. Alguns matemáticos, pessoas sempre úteis ao público em geral, pegarão logo a pena e, considerando que o Sr. Micrômegas, habitante do país de Sírio, mede da cabeça aos pés 24 mil passos, isto é, 20 mil pés, e que nós, cidadãos da Terra, não medimos além de 5 pés de altura, e o nosso planeta tem 9 mil léguas de circunferência, esses matemáticos, dizia eu, calcularão que é necessário, absolutamente, que o astro que o produziu seja 21.600 mil vezes maior que a nossa minúscula Terra. Nada mais simples nem mais comum na natureza. Os territórios de alguns Estados da Alemanha ou da Itália, cuja volta pode ser realizada em meia hora, comparados ao império da Turquia, de Moscóvia ou da China são uma débil imagem das extraordinárias diferenças que a natureza colocou em todos os seres. Por ser Sua Excelência da altura que eu afirmei, todos os nossos escultores e pintores concluirão sem dificuldade que a sua cintura pode medir 50 mil pés, o que é uma bela proporção. A respeito do seu espírito, ele é um dos mais ricos que há; sabe muitas coisas e inventou algumas outras: ainda não contava 250 anos e já estudava, de acordo com o costume, no colégio dos jesuítas de seu planeta, quando adivinhou, só pelo poder de seu espírito, mais de cinquenta proposições de Euclides - ou seja, dezoito a mais que Blaise Pascal, o qual, depois de haver adivinhado 32, por brincadeira, conforme dizia sua irmã, tornou-se mais tarde um geômetra bem medíocre e um péssimo metafísico. Lá pelos seus 450 anos, ao sair da infância, dissecou muitos desses pequenos insetos com apenas 100 pés de diâmetro e que se esquivam dos microscópios ordinários; escreveu sobre a matéria um livro muito curioso, mas que lhe acarretou alguns problemas. O mufti do seu país, sujeito minucioso e ignorantíssimo, encontrou em seu livro asserções suspeitas, dissonantes, temerárias, heréticas, e o perseguiu sem descanso: tratava-se de saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era a mesma que a dos caracóis. Micrômegas defendeu-se com inteligência; conquistou o apoio das mulheres; o processo durou 220 anos. No fim o mufti fez condenar o livro por jurisconsultos que não o tinham lido, e o autor recebeu a ordem de não aparecer na corte durante oitocentos anos. Pouco se importou ele de ser expulso de uma corte onde só havia intrigas e mesquinharias. Compôs uma canção muito engraçada contra o mufti, a que este não deu importância; e começou a viajar de planeta em planeta, para terminar de formar o espírito e o coração, como se diz. Os que só viajam de cadeira de posta e coche ficarão com certeza espantados com os equipamentos de lá: pois nós, nesta pequena bola de lama, nada concebemos além de nossos hábitos. O nosso viajante conhecia às maravilhas as leis da gravitação e todas as forças atrativas e repulsivas. Utilizava-as tão de acordo que, ou por meio de um raio de sol, ou graças à comodidade de um cometa, ia de planeta em planeta, ele e os seus, como um pássaro voa de galho em galho. Em pouco tempo percorreu a Via láctea; e vejo-me forçado a confessar que ele jamais divisou, em meio às estrelas de que é formada, esse lindo céu empíreo que o ilustre vigário Derham se vangloria de haver enxergado na ponta de sua luneta. Não que eu afirmar que o Sr. Derham tenha visto mal, Deus me livre! Mas Micrômegas esteve no local, é um bom observador, e eu não quero contradizer ninguém. Micrômegas, após dar muitas voltas, chegou ao planeta Saturno. Por mais habituado que estivesse a ver coisas novas, não conseguiu, ante o diminuto tamanho daquele planeta e de seus habitantes, evitar esse sorriso de superioridade que às vezes escapa aos mais sábios. Já que, afinal, Saturno não é mais que novecentas vezes maior que a Terra, e os seus cidadãos não passam de anões que têm apenas umas 1.000 toesas de altura. A princípio, ele zombou um pouco da sua gente, mais ou menos como um músico italiano ri da música de Lulli, quando chega à França. Mas o siriano, com seu espírito justo, compreendeu que uma criatura pensante poderia muito bem não ser ridícula apenas por ter 6.000 pés de altura. Acostumou-se com os saturninos, depois de tê-los assustado. Fez grande amizade com o secretário da Academia de Saturno, homem de muito espírito e que, na verdade, não havia inventado nada, mas prestava excelente conta das invenções dos outros, e fazia sofríveis pequenos versos e grandes cálculos. Reproduzirei aqui, para alegria dos leitores, uma notável conversação que Micrômegas manteve um dia com o senhor secretário. 2 Conversação do habitante de Sírio com o de Saturno Depois que Sua Excelência se deitou, o secretário aproximou-se de seu rosto: - É preciso confessar - declarou Micrômegas -, que a natureza é bem variada. - Sim - disse o saturnino -, a natureza é como um canteiro cujas flores... - Ah! - exclamou o outro. - Deixe o canteiro em paz. - Ela é - manifestou-se de novo o secretário - como uma reunião de loiras e morenas cujos ornamentos... - O que eu tenho a ver com as suas morenas? - É então como uma coleção de pinturas cujos traços... - Ora! - atalhou o viajante. - De uma vez por todas: a natureza é como a natureza. Para que procurar-lhe comparações? - Para agradar a você - respondeu o secretário. - Eu não quero que me agradem - rebateu o viajante. - Quero que me ilustrem. Comece por me dizer quantos sentidos possuem os homens do seu planeta. - Temos 72 - respondeu o acadêmico. - E todos os dias nos queixamos de serem tão poucos. A nossa imaginação vai além das nossas necessidades; julgamos que, com os nossos 72 sentidos, o nosso anel, as nossas cinco luas, somos muito limitados; e, malgrado toda a nossa curiosidade e o grande número de paixões que procedem dos nossos 72 sentidos, ainda temos tempo de sobra para nos aborrecermos. - Não duvido - declarou Micrômegas -, pois no nosso planeta temos cerca de mil sentidos, e ainda nos sobra não sei que impreciso desejo, não sei que inquietação que continuamente nos avisa do pouco que somos e de que existem seres muito mais perfeitos. Andei viajando um pouco; vi mortais muito abaixo de nós; vi muito superiores; mas não vi nenhum que não tivesse mais desejos do que reais necessidades, e mais necessidades do que satisfação. Talvez algum dia eu chegue ao país em que não falta nada; mas até este momento, ninguém me deu notícias desse país. O saturniano e o siriano estenderam-se então em suposições; porém, após muitos raciocínios tão engenhosos quanto incertos, foi preciso voltar aos fatos. - Quanto tempo vivem vocês? - perguntou o siriano. - Ah! Pouquíssimo - respondeu o homenzinho de Saturno. - Exatamente como nós - disse o siriano. - Vivemos nos queixando que é pouco. Deve ser uma lei universal da natureza. - Ai! - suspirou o saturniano. - Nós vivemos somente quinhentas grandes revoluções do Sol (o que, pela nossa forma de contar, resulta em cerca de 15 mil anos). Bem se vê que é quase o mesmo que morrer no instante em que se nasce; a nossa vida é um ponto; sua duração, um instante; o nosso planeta, um átomo. Logo que começamos a nos instruir um pouco, chega a morte, antes que tenhamos obtido experiência. Quanto a mim, não ouso fazer nenhum plano; sou como uma gota de água num oceano imenso. Sinto-me envergonhado, sobretudo diante de você, do papel ridículo que faço neste mundo. - Se o amigo não fosse filósofo - respondeu Micrômegas -, eu recearia angustiá-lo dizendo-lhe que a nossa vida é setecentas vezes mais longa que a sua. Mas também sabe que, quando somos obrigados a devolver o corpo aos elementos e tonificar a natureza sob outra forma (que é o que chamamos morrer), quando chega esse momento de metamorfose, ter vivido muitos anos ou um dia é exatamente a mesma coisa. Estive em países onde se vivia mil vezes mais tempo do que no meu, e vi que mesmo assim eles se queixavam. Mas existe em todos os lugares pessoas de bom senso, que sabem compreender e agradecer ao criador da natureza. Espalhou ele pelo Universo uma quantidade infinita de variedades, com uma extraordinária espécie de uniformidade. Por exemplo, todos os seres pensantes são diferentes, e no fundo todos se parecem, pelo dom do pensamento e dos desejos. A matéria está em todos os lugares, mas possui em cada planeta propriedades diferentes. Quantas dessas propriedades vocês computam na sua matéria? - Se está aludindo - disse o saturniano - a essas propriedades sem as quais consideramos que este planeta não poderia existir da forma como é, computamos trezentas, como a extensão, a impenetrabilidade, a gravitação, a divisibilidade etc. - Aparentemente - falou o viajante -, basta esse pequeno número para os desígnios do Criador em relação à pequena morada de vocês. Em tudo admiro a Sua sabedoria. Percebo por toda parte diferenças, mas também proporções. Pequeno é o seu planeta e também seus habitantes; vocês têm poucas sensações, sua matéria possui poucas propriedades: tudo isso é obra da Providência. De que cor é o sol de vocês? - De um branco muito amarelado - respondeu o saturniano. - E ao dividirmos um de seus raios, vemos que contém sete cores. - O nosso sol tende para o vermelho - informou o siriano - e apresenta 39 cores primitivas. Dentre os sóis de que me aproximei, não existem dois que se pareçam, como não existe entre vocês um rosto que não seja diferente de todos os outros. Depois de várias perguntas dessa natureza, perguntou quantas substâncias essencialmente diferentes existiam em Saturno. Soube que não existiam mais que umas trinta, como Deus, o espaço, a matéria, os seres extensos que sentem e pensam, os seres pensantes que não possuem extensão, os que se penetram, os que não se penetram, e o resto. O siriano, em cuja pátria havia trezentas, e que havia descoberto outras 3 mil em suas viagens, deixou o filósofo de Saturno espantado. Afinal, após terem participado um ao outro um pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, após terem permutado ideias durante uma revolução do Sol, decidiram empreender juntos uma breve viagem filosófica. 3 Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno Estavam os nossos dois filósofos prontos para embarcar na atmosfera de Saturno, com um bom estoque de instrumentos matemáticos, quando a amante do saturniano, ao tomar conhecimento disso, veio queixar-se aos prantos. Era uma linda moreninha de somente seiscentas toesas, mas que compensava com numerosos encantos seu diminuto tamanho. - Ah, cruel! - bradava ela. - Depois de lhe haver resistido durante 1.500 anos, quando finalmente começava a render-me, quando passei somente cem anos nos seus braços, você me abandona para ir viajar com um gigante de outro mundo! Vá, você não passa de um curioso, jamais teve amor; se fosse um verdadeiro saturniano, seria fiel. Por onde vai correr? O que pretende? As nossas cinco luas são menos errantes que você, o nosso anel é menos mutável. Pronto! Nunca mais amarei ninguém. O saturniano, por mais que fosse filósofo, beijou-a, chorou com ela, e a moça, após ter desfalecido, foi consolar-se com um janota do país. Os nossos dois curiosos partiram; saltaram primeiro sobre o anel, que julgaram bastante plano, como bem o adivinhou um ilustre habitante do nosso diminuto planeta; continuaram, depois, de lua em lua. Visto que um cometa passou bem perto da última, lançaram-se sobre ele, com todos os seus criados e instrumentos. Depois de haverem percorrido aproximadamente 150 milhões de léguas, encontraram os satélites de Júpiter. Nesse planeta demoraram-se um ano todo, durante o qual descobriram belos segredos, que seriam agora publicados se não fossem os senhores inquisidores, que consideraram algumas asserções um pouco arrojadas. Mas na biblioteca eu li o manuscrito do ilustre arcebispo de ***, que me permitiu examinar seus livros, com uma generosidade e benevolência nunca suficientemente louvadas. Mas voltemos aos nossos viajantes. Após deixarem Júpiter, atravessaram um espaço de cerca de 100 milhões de léguas, e passaram pelo planeta Marte, que, como se sabe, é cinco vezes menor que a nossa diminuta Terra; viram as duas luas desse planeta e que escaparam aos olhos dos nossos astrônomos. Eu sei que o padre Castel escreverá, inclusive com bastante espírito, contra a existência dessas duas luas; mas eu aludo àqueles que raciocinam por analogia. Sabem esses bons filósofos como seria difícil ao planeta Marte, que se encontra tão distante do Sol, não possuir pelo menos duas luas. Seja como for, o caso é que os nossos amigos o acharam tão pequeno, que temeram não encontrar pousada, e seguiram adiante, como dois viajantes que desprezam um mau albergue de aldeia e continuam até a cidade vizinha. Mas o siriano e seu companheiro logo se arrependeram disso. Viajaram por muito tempo sem nada encontrar. Por fim avistaram um pequeno clarão; era a Terra; coisa de causar dó à gente que provinha de Júpiter. Contudo, com receio de se arrependerem pela segunda vez, decidiram desembarcar aqui mesmo. Deslocaram-se para a cauda do cometa e, procurando intencionalmente uma aurora boreal, entraram nela, chegando à Terra pelo norte do mar Báltico, em 5 de julho de 1737. 4 Que lhes aconteceu sobre a face da Terra Após haverem descansado um pouco, almoçaram duas montanhas, que os criados lhes prepararam com esmero. Quiseram depois fazer um reconhecimento do diminuto país onde se encontravam. Inicialmente caminharam de norte a sul. Os passos normais do siriano e do seu pessoal eram de 30 mil pés aproximadamente; o anão de Saturno seguia de longe, ofegando, pois ele precisava dar uns doze passos correndo enquanto o outro dava um: imaginem (se é consentida tal comparação) um cãozinho de madame que tivesse de acompanhar um capitão da guarda do rei da Prússia. Visto que os dois estrangeiros caminhavam muito depressa, deram a volta ao mundo em 36 horas; o Sol, na verdade, ou melhor, a Terra, faz igual viagem em 24; mas deve-se considerar que é mais cômodo girar sobre o próprio eixo do que caminhar, movendo um pé depois do outro. Ei-los portanto de regresso ao ponto de partida, após terem visto esse pântano, quase imperceptível para eles, que se chama mar Mediterrâneo, e esse outro pequeno charco que, sob o nome de Grande Oceano, contorna o formigueiro. A água jamais havia passado das canelas do anão, enquanto o outro só molhara os calcanhares. Fizeram tudo o que puderam, caminhando em todas as direções, para descobrir se este planeta era habitado ou não. Agacharam-se, deitaram-se, apalparam por toda parte; porém, como os seus olhos e mãos não eram proporcionados aos pequenos seres que por aqui se arrastam, não perceberam o mínimo indício que os fizesse suspeitar de que nós, e os nossos demais companheiros habitantes deste planeta, tivéssemos a honra de existir. O anão, que às vezes raciocinava muito açodadamente, concluiu que a Terra não possuía habitantes. Seu primeiro argumento era de que não tinha visto ninguém. Micrômegas, educadamente, mostrou-lhe que ele não estava raciocinando direito: - Pelo fato de não divisar, com os seus olhinhos, certas estrelas de quinquagésima grandeza que eu vejo perfeitamente, conclui disso que essas estrelas não existem? - Mas - retrucou o anão - eu apalpei bem. - Mas sentiu - respondeu o outro. - Mas este planeta é tão mal construído - contrapôs o anão -, é tudo tão irregular e de uma forma tão ridícula! Aqui, tudo parece um completo caos: não está vendo esses regatos que nunca correm em linha reta, esses charcos que não são nem redondos, nem quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular? E todos esses grãozinhos pontiagudos de que está arrepiado este planeta e que me arranharam os pés? (Queria aludir às montanhas.) Repare ainda na forma de todo o planeta, como é achatado nos polos, e a sua maneira inadequada de girar ao redor do Sol, de forma que a região dos polos fica obrigatoriamente estéril? Em verdade, o que me faz pensar que aqui não existe ninguém é a convicção de que gente de bom senso não moraria num lugar como este. - Pois bem - disse Micrômegas -, talvez os que aqui vivem não sejam seres de bom senso. Mas existem probabilidades de que isso não tenha sido feito à toa. As coisas aqui lhe parecem irregulares porque em Saturno e Júpiter tudo é feito com régua e compasso. É precisamente por esse motivo que há aqui um pouco de confusão. Mas eu já não lhe disse que nas minhas viagens sempre encontrei variedade? O saturniano rebateu todas essas razões. E a discussão nunca teria um fim se, por felicidade, Micrômegas, no calor da disputa, não tivesse rompido o seu colar de brilhantes. Estes caíram ao chão. Eram lindas pedras de tamanho variado, possuindo as maiores 400 libras de peso e as menores, 50. O anão apanhou algumas; ao aproximá-las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, serviam como excelentes microscópios. Tomou, pois, um pequeno microscópio de 160 pés de diâmetro, que aplicou à pupila; e Micrômegas escolheu um de 2 500 pés. Eram ótimos; porém, no início, nada notaram com a sua ajuda: era necessário se acostumares. Finalmente, o habitante de Saturno viu algo quase imperceptível que se movia na superfície do mar Báltico: era uma baleia. Pegou-a cuidadosamente com o dedo mínimo e, colocando-a sobre a unha do polegar, mostrou-a a Micrômegas, que começou a rir do ínfimo tamanho dos habitantes do nosso planeta. O saturniano, persuadido de que o nosso mundo é habitado, imaginou que o era apenas por baleias; e, como era um grande adepto do logicismo, quis adivinhar de onde um ser tão diminuto tirava seu movimento, e se possuía ideias, vontade e liberdade. Micrômegas sentiu-se muito atrapalhado: examinou o animal com inesgotável paciência, e o resultado da análise foi que era impossível crer que ali se hospedasse uma alma. Portanto, estavam os dois viajantes propensos a pensar que não existe espírito em nosso mundo, quando, com a ajuda do microscópio, perceberam algo maior que uma baleia e que flutuava sobre as águas. Sabe-se que, naquela época, um grupo de sábios estava de regresso do Círculo Polar Ártico, aonde haviam ido realizar observações que a ninguém tinham ocorrido até então. Noticiaram os jornais que o seu navio naufragou na costa da Bótnia e que se salvaram com grande dificuldade; mas neste mundo nunca se sabe o reverso da moeda. Contarei ingenuamente como aconteceram as coisas, sem nada adicionar por conta própria, o que não significa pouco esforço para um historiador. 5 Experiências e raciocínios dos dois viajantes Com muito cuidado, Micrômegas estendeu a mão para o lugar onde se encontrava o objeto, e, avançando dois dedos e retirando-os com medo de errar, e depois abrindo-os e fechando-os, pegou com todo o jeito o navio que carregava os tais sábios e colocou-o sobre a unha, sem apertá-lo muito, para evitar não esmagá-lo. - Aqui está um animal bastante diferente do primeiro - disse o anão de Saturno; o siriano colocou o suposto animal na palma da mão. Os passageiros e os tripulantes, que pensavam estar sendo erguidos por um furacão, e que acreditavam encontrar-se sobre algum tipo de rochedo, começaram a se movimentar; os marinheiros pegaram pipas de vinho e as jogaram sobre a mão de Micrômegas, e depois fugiram. Os geômetras pegaram seus esquadros, seus setores e nativas da Lapônia, e pularam para os dedos de Micrômegas. Tanto fizeram que este sentiu finalmente mover-se algo que lhe provocava cócegas nos dedos: era um bastão com ponta de ferro que lhe enfiavam no indicador; achou, por aquilo, que havia saído alguma coisa do pequeno animal que ele segurava. Mas não desconfiou de mais nada. O microscópio, que mal fazia distinguir uma baleia de um navio, não alcançava seres tão insignificantes como os homens. Não tenho o intuito de chocar a vaidade de ninguém, mas sou forçado a pedir às pessoas importantes que me acompanhem numa pequena observação: considerando a homens com aproximadamente 5 pés de altura, não fazemos, na superfície da Terra, maior figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse a sexcentésima milésima parte de uma polegada. Imaginem uma entidade que conseguisse sustentar a Terra na mão, e que possuísse órgãos na mesma proporção dos nossos (e pode ser que existam muitas dessas entidades): considerei, então, o que elas pensariam dessas batalhas que nos custaram duas aldeias que foi necessário devolver. Se algum capitão de granadeiros ler algum dia esta obra, não duvido que mande aumentar, ao menos em dois pés, os capacetes da sua tropa; mas fica avisado de que, por mais que faça, jamais passarão, ele e os seus homens, de infinitamente pequenos. Que extraordinária habilidade não foi necessária ao nosso filósofo de Sírio para perceber os átomos de que acabo de falar! Quando Leuwenhoek e Hartsoeker viram pela primeira vez, ou pensaram ver, a semente de que nos formamos, não fizeram tão espantosa descoberta. Que prazer não sentiu Micrômegas ao ver moverem-se aquelas pequenas máquinas, examinando-lhes todos os movimentos, seguindo-as em todas as operações! Que exclamações! Com que alegria ele entregou um dos seus microscópios ao companheiro de viagem! - Vejo-os! - exclamavam os dois ao mesmo tempo. - Repare como carregam volumes, como se levantam, como se abaixam! Assim falando, suas mãos tremiam pelo prazer de ver objetos tão novos e pelo temor de perdê-los. O saturniano, passando de um excesso de desconfiança para um excesso de credulidade, pensou que eles estivessem trabalhando na propagação da espécie. - Ah! - exclamou ele. - Apanhei a natureza em flagrante. Mas estava sendo enganado pelas aparências, o que acontece muitas vezes, quer a gente utilize ou não microscópios. 6 Que lhes aconteceu com os homens Observador mais eficiente que o anão, Micrômegas percebeu com clareza que os átomos conversavam entre si; e o fez notar ao companheiro que, envergonhado do seu engano a respeito da geração, não quis acreditar que tal espécie pudesse trocar ideias. Possuía o dom das línguas, como o siriano; não ouvia os nossos átomos falarem, e presumia que não falavam. Aliás, como poderiam aquelas criaturas imperceptíveis ter os órgãos da voz, e que teriam para se dizer? Para falar, é necessário pensar, ou quase; porém, se pensavam, possuíam então o equivalente de uma alma. Ora, atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas parecia-lhe absurdo. - Mas - observou Micrômegas -, há pouco você imaginava que eles praticavam o amor. Será que acha que se possa praticar o amor sem pensar e sem pronunciar alguma palavra, ou pelo menos sem se fazer compreender? Acredita, aliás, que seja mais difícil elaborar um raciocínio do que fazer um filho? Para mim, uma e outra coisa constituem profundos mistérios. - Eu já não ouso nem acreditar nem negar - respondeu o anão -, não possuo mais opinião. Vamos primeiro examinar esses insetos, em seguida discutiremos a respeito. - Muito bem pensado - concordou Micrômegas. Depois tirou do bolso uma tesourinha, com que cortou as unhas e, com uma lasca da unha do polegar, fabricou uma espécie de trompa acústica, que era como um grande funil cujo bico aplicou no ouvido. A boca do funil envolvia o navio e toda a tripulação. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de forma que, graças a sua habilidade, lá do alto, o filósofo conseguiu ouvir perfeitamente o zumbido dos insetos aqui embaixo. Em poucas horas foi capaz de distinguir as palavras, e por fim compreender o francês. O anão fez a mesma coisa, porém com maiores dificuldades. O assombro dos viajantes aumentava a cada instante. Ouviam insetos falarem com muito bom senso: esse capricho da natureza parecia-lhes inexplicável. Podem muito bem imaginar como Micrômegas e o seu anão ardiam de impaciência para conversar com os átomos. Receavam que as suas vozes de trovão, principalmente a de Micrômegas, ensurdecessem os insetos, sem serem ouvidas. Era preciso diminuir-lhes a potência. Colocaram na boca umas espécies de palitos cujas pontas afiadas chegavam perto do navio. O siriano tinha o anão sobre os joelhos, e o navio com a tripulação sobre uma unha. Inclinava a cabeça e falava baixinho. Por fim, por intermédio desses e de outros cuidados, iniciou assim o seu discurso: - Insetos invisíveis, que a mão do Criador se deleitou em fazer brotar do abismo do infinitamente pequeno, agradeço a Deus por se haver dignado desvendar-me os segredos que pareciam impenetráveis. Na minha corte, talvez não se dignem olhá-los, mas eu não desprezo ninguém e lhes ofereço a minha proteção. Se alguém chegou ao extremo assombro, foram sem dúvida as pessoas que ouviram essas palavras. Não conseguiam saber de onde provinham. O capelão de bordo fez exorcismos, os marinheiros praguejaram, e os sábios do navio aventaram hipóteses; contudo, por mais hipóteses que apresentassem, não descobriam quem estava lhes falando. O anão de Saturno, cuja voz era mais suave que a de Micrômegas, informou-lhes então com quem estavam lidando. Contou-lhes sobre a partida de Saturno, disse-lhes quem era o Sr. Micrômegas, e, após haver lamentado por eles serem tão diminutos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela miserável condição tão próxima do aniquilamento, o que faziam num planeta que parecia pertencer às baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se possuíam alma, e mil outras questões dessa natureza. Um sábio do grupo, mais corajoso que os outros e ofendido por duvidarem da existência de sua alma, observou o interlocutor por meio de pínulas assestadas sobre um esquadro, fez duas miras e, na terceira, assim lhe falou: - Acredita então, senhor, só pelo fato de medir mil toesas da cabeça aos pés, que é um... - Mil toesas! - exclamou o anão. - Meu Deus! Como é possível ele saber a minha altura? Mil toesas! Não se engana nem de uma polegada. Esse átomo me mediu! É geômetra, conhece as minhas dimensões; e eu, que o enxergo por meio de um microscópio, ainda não conheço as dele. - Sim, eu o medi - declarou o físico -, e medirei também o seu enorme companheiro. Aceita a proposta, deitou-se Sua Excelência ao comprido; pois, se ficasse de pé, sua cabeça se encontraria muito acima das nuvens. Os sábios plantaram-lhe uma grande árvore num lugar que o Dr. Swift designaria pelo nome, mas que eu me recuso a nomear, por causa do meu grande respeito às damas. Em seguida, por uma sequência de triângulos, concluíram que aquilo que eles estavam vendo era um jovem de 120 mil pés de altura. Micrômegas proferiu então estas palavras: - Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por seu tamanho aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que aparentam ser tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que existam seres ainda menores que estes, podem possuir um espírito superior ao daqueles presunçosos animais que vi no céu e cujo pé seria suficiente para cobrir o planeta em que desci. Respondeu-lhe um dos sábios que ele poderia, com a máxima segurança, acreditar que existem seres inteligentes muitíssimo menores que o homem. Contou-lhe não tudo o que Virgílio diz de estupendo a respeito das abelhas, mas o que Swammerdam descobriu, e o que Réaumur dissecou. Disse-lhe, finalmente, que existem animais que estão para as abelhas como as abelhas estão para os homens, e que Micrômegas estava para aqueles descomunais animais a que se referia como eles estão para outras substâncias diante das quais não passam de átomos. Pouco a pouco a conversa se tornava interessante, e Micrômegas assim falou. 7 Conversação com os homens - Ó átomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se deleitou em manifestar seu engenho e poder, devem sem dúvida gozar das maiores alegrias sobre o seu planeta; pois, possuindo tão pouca matéria e parecendo puro espírito, devem passar a vida a amar e a pensar, que é o que constitui a verdadeira existência dos espíritos. A verdadeira felicidade, que não vi em parte alguma, com certeza aqui existe. Ao ouvir essas palavras, todos os sábios menearam a cabeça; e um deles, mais sincero que os outros, confessou de boa-fé que, exceção feita a um pequeno número de habitantes muito pouco considerados, o resto não passa de uma assembleia de loucos, maus e infelizes. - Nós possuímos mais matéria do que precisamos - disse ele - para causar muito mal, se o mal provém da matéria, e possuímos espírito em excesso, se o mal provém do espírito. Não sabem, por exemplo, que no momento em que lhes falo, existem cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que são massacrados por estes, e que, quase por toda a Terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais? O siriano estremeceu e indagou qual poderia ser a causa dessas terríveis pendências entre tão mesquinhos animais. - Trata-se - respondeu o sábio - de uma porção de lama do tamanho do seu calcanhar. Não que alguns desses milhões de homens que se exterminam pretendam um palmo que seja dessa lama. Trata-se somente de saber se pertencerá a certo homem a que denominam Sultão, ou a outro homem a que chamam de César, não sei por quê. Nenhum dos dois viu, e nunca verá, o pedacinho de terra em questão, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam já viu algum dia o animal pelo qual se degolam. - Infelizes! - exclamou o siriano, indignado. - Pode-se por acaso imaginar mais furiosa loucura? Estou até com vontade de dar três passos e esmagar esse formigueiro de ridículos assassinos. - Não se dê a esse incômodo; eles já trabalham o suficiente para a sua própria desgraça. Fique sabendo que, depois de dez anos, já não restará nem a centésima parte desses miseráveis, e, mesmo que não tivessem usado a espada, a fome, a fadiga ou a intemperança os levam a quase todos. Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários que, do fundo dos seus gabinetes, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida agradecem solenemente a Deus. O viajante sentia pena da pequena raça humana, na qual estava descobrindo tão assombrosos contrastes. - Já que pertencem ao diminuto número de sábios - disse-lhes ele - e aparentemente não matam ninguém por dinheiro, digam-me em que se ocupam então. - Dissecamos moscas - respondeu o sábio -, medimos linhas, juntamos números, concordamos a respeito de dois ou três pontos que entendemos, e discutimos sobre dois ou três mil que não entendemos. O siriano e o companheiro tiveram então a ideia de interrogar aqueles átomos pensantes sobre coisas que ambos conheciam. - Quanto contam - perguntou Micrômegas - da estrela de Canícula à grande estrela de Gêmeos? - Trinta e dois graus e meio - responderam todos ao mesmo tempo. - Quanto contam daqui até a Lua? - Sessenta semidiâmetros da Terra, em números redondos. - Quanto pesa o ar de vocês? Pretendia confundi-los nesse ponto, mas todos responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que igual volume de água e 19 mil menos que o ouro. O anão de Saturno, pasmo com as respostas deles, sentiu-se tentado a considerar feiticeiros aqueles mesmos a quem havia negado uma alma quinze minutos antes. Por fim, disse-lhes Micrômegas: - Já que sabem tão bem o que se encontra fora de vocês, com certeza sabem ainda melhor o que possuem por dentro. Digam-me o que é a sua alma e como constroem as suas ideias. Os sábios falaram todos ao mesmo tempo, como antes, porém foram de diferentes opiniões. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes; este falava em Malebranche, aquele em Leibniz, um outro em Locke. Um velho peripatético disse em voz alta com toda a segurança: - A alma é uma enteléquia, razão pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre etc. - Não entendo muito bem o grego - disse o gigante. - Nem eu tampouco - replicou o inseto filosófico. - Então por que - tornou o siriano - cita certo Aristóteles em grego? - É que - respondeu o sábio - convém citar aquilo de que não se compreende nada na língua que menos se entende. O cartesiano tomou a palavra e disse: - A alma é um espírito puro, que recebeu no ventre da mãe todas as ideias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo o que tão bem sabia e que não sabe mais! - Então não valia a pena - retrucou o ser de 8 léguas - que a sua alma fosse tão sábia no ventre de sua mãe, para ser tão ignorante quando tivesses barba no queixo. Mas que entende por espírito? - Bela pergunta! - exclamou o raciocinador. - Não tenho a mínima ideia disso: dizem que não é matéria. - Mas pelo menos sabe o que é a matéria? - Perfeitamente - respondeu o sábio. - Por exemplo, esta pedra é cinzenta e possui determinada forma, tem as suas três dimensões, é pesada e divisível. - Pois bem - disse o siriano -, e essa coisa que lhe parece divisível, pesada e cinzenta, saberá dizer-me exatamente o que é? Você lhe vê alguns atributos; mas o fundo da coisa, por acaso o conhece? - Não - respondeu o outro. - Então não sabe o que é a matéria. Em seguida o Sr. Micrômegas, dirigindo a palavra a outro sábio, a quem equilibrava sobre o polegar, perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia. - Absolutamente nada - respondeu o filósofo malebranchista -, é Deus que faz tudo por mim. Eu vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe. - É o mesmo que se você não existisse - tornou o sábio de Sírio. - E você, meu amigo - disse a um leibniziano que ali se encontrava -, o que vem a ser a sua alma? - Ela é - respondeu o leibniziano - um ponteiro que indica as horas, enquanto o meu corpo toca o carrilhão; ou, se quiser, é ela quem toca o carrilhão, enquanto o meu corpo marca a hora; ou então, é a minha alma o espelho do Universo, e o meu corpo, a moldura do espelho: isso é bem claro. Um minúsculo partidário de Locke estava ali perto; e quando afinal lhe dirigiram a palavra, respondeu: - Eu não sei como é que penso, mas sei que nunca pude pensar sem a ajuda dos meus senti dos. Não duvido que existam substâncias imateriais e inteligentes; mas também não nego que Deus possa transmitir pensamento à matéria. Venero o poder eterno, não me cabe limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que existem mais coisas possíveis do que julgamos. O ser de Sírio sorriu: não considerou aquele o menos sábio; e o anão de Saturno teria abraçado o seguidor de Locke, se não o impedisse a enorme desproporção entre os dois. Porém, por desgraça, havia ali um animal microscópico de capuz que cortou a palavra a todos os animais microscópicos filosofantes: declarou que sabia o segredo de tudo, o qual se encontrava na Suma, de Santo Tomás; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; afirmou-lhes que as suas pessoas, seus mundos, sóis e estrelas, tudo fora criado unicamente em função do homem. Ao ouvir isso, os nossos dois viajantes caíram um nos braços do outro, sufocados pelo riso irreprimível que, de acordo com Homero, é próprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se, e, devido a essas convulsões, o navio que Micrômegas trazia na unha caiu no bolso da calça do saturniano. Os dois o procuraram por muito tempo; finalmente o encontraram e rearranjaram tudo convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-lhes de novo com muita bondade, embora no íntimo se sentisse um tanto irritado de ver que os infinitamente pequenos possuíam um orgulho quase infinitamente grande. Prometeu-lhes que escreveria um belo livro de filosofia, com letras bem miúdas, para uso deles, e que, nesse livro, veriam o fim de todas as coisas. De fato, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciências de Paris. Porém, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em branco. - Ah! Bem que eu desconfiava... - declarou ele. HISTÓRIA DAS VIAGENS DE SCARMENTADO Escrita por Ele Mesmo Nasci em 1600 na cidade de Cândia, da qual meu pai era governador. Um poeta medíocre compôs alguns maus versos em meu louvor, pelos quais eu descendia diretamente do rei Minos; porém, tendo meu pai caído em desgraça, ele escreveu outros versos, de acordo com os quais eu descendia apenas de Pasífae e seu amante. Péssimo homem, esse Iro, e o maior patife de toda ilha. Quando fiz quinze anos, meu pai enviou-me a Roma para estudar. Cheguei com a esperança de aprender todas as verdades, porque até então haviam me ensinado exatamente o contrário, de acordo com o costume neste mundo, desde a China até os Alpes. Monsenhor Profondo, a quem eu fora recomendado, era um homem singular e um dos mais terríveis sábios que já existiram sobre a Terra. Pretendeu ensinar-me as categorias de Aristóteles, e quase me incluiu na categoria de seus mignons: safei-me a tempo. Vi procissões, exorcismos e alguns assaltos. Diziam, porém falsamente, que a Sra. Olímpia, pessoa de grande comedimento, vendia muita coisa que não deve ser vendida. Eu tinha uma idade em que tudo isso me parecia bastante divertido. Uma jovem dama de hábitos muito brandos, de nome Sra. Fatelo, apaixonou-se por mim. Faziam-lhe a corte os padres Poignardini e Acomiti, jovens professores de uma ordem que não existe mais: ela os pôs em seus devidos lugares, concedendo-me os seus favores; mas eu corria o risco de ser excomungado e envenenado. De forma que parti, muito feliz com a arquitetura de São Pedro. Viajei pela França; era na época do reinado de Luís, o Justo. A primeira coisa que me perguntaram foi se, para o almoço, eu não queria uma porção do Marechal d'Ancre, cuja carne o povo havia assado e que era vendida a preço módico a quem desejasse. A França era continuamente assolada por guerras civis, algumas por causa de um posto no Conselho, outras devido a duas páginas de controvérsia. Havia mais de sessenta anos que aquele fogo, ora tapado, ora assoprado com força, devastava aqueles belos climas. Eram as liberdades da Igreja Galicana. "Apesar disso", suspirava eu, "esse povo nasceu tranquilo: quem pode ter transformado dessa forma o seu gênio? Ele diverte-se e faz São Bartolomeus. Ditosos os dias em que não fizer outra coisa a não ser divertir-se!" Fui à Inglaterra: as mesmas discussões provocavam ali as mesmas fúrias. Santos católicos haviam decidido, para o bem da Igreja, mandar pelos ares a pólvora, o rei, a família real e todo o Parlamento, e livrar a Inglaterra dos heréticos. Mostraram-me o lugar onde a bem-aventurada rainha Maria, filha de Henrique VIII, tinha mandado queimar mais de quinhentos dos seus súditos. Um padre garantiu-me que era uma boníssima ação: primeiro, porque os que haviam sido queimados eram ingleses; segundo, porque não utilizavam água benta e não acreditavam no buraco de São Patrício. Admirava-se de que ainda não houvessem canonizado a rainha Maria; mas esperava-o para logo, quando o cardeal-sobrinho pudesse dispor de tempo. Viajei para a Holanda, onde tinha esperança de encontrar maior tranquilidade no seio de um povo mais impassível. Quando cheguei a Haia, iam cortar a cabeça a um venerável ancião. Era a cabeça calva do primeiro-ministro Barneveldt, o homem que mais fizera por merecer da república. Cheio de piedade, indaguei qual tinha sido seu crime e se ele traíra o Estado. - Fez muito pior - respondeu-me um pregador de manto negro. - Esse homem crê que as pessoas podem salvar-se pelas boas ações da mesma forma que pela fé. Como pode ver, se opiniões como essa se fortalecessem, nenhuma república poderia se manter, e é preciso que existam leis severíssimas para reprimir esses escândalos. Um importante político do lugar disse-me suspirando: - Ah! Meu senhor, os bons tempos não serão para sempre. É apenas por acaso que este povo se mostra agora tão diligente; o cerne do seu caráter é inclinado ao execrável dogma da tolerância; esse dia chegará: é o que me faz tremer. Quanto a mim, enquanto não chegavam esses sinistros dias da moderação e da indulgência, deixei o mais rápido possível um país onde a severidade não era abrandada por nenhum atrativo. Então embarquei em direção à Espanha. A Corte localizava-se em Sevilha; os galeões haviam chegado; tudo revelava abundância e alegria na mais bonita estação do ano. No final de uma alameda com laranjeiras e limoeiros, vi uma espécie de pista enorme, cercada de gradis cobertos de ricos tecidos. O rei, a rainha, os infantes, as infantas estavam acomodados embaixo de um suntuoso pálio. Em frente a essa venerável família, erguia-se outro trono, mas bastante mais alto. Dirigi-me a um de meus companheiros de viagem: - A não ser que esse trono seja reservado para Deus, não sei a quem possa servir... - Essa minha indiscrição foi ouvida por um valente espanhol e me custou muito caro. Eu julgava que fôssemos assistir a alguma cavalhada ou corrida de touros, quando o grande inquisidor surgiu naquele trono, de onde abençoou o rei e o povo. Em seguida entrou um exército de padres, em formação de dois, brancos, negros, cinzentos, calçados, descalços, barbudos, sem barba, encapuzados, sem capuz; atrás deles vinha o carrasco; depois, no meio dos esbirros, viam-se aproximadamente quarenta pessoas vestidas de sacos, nos quais haviam pintado demônios e chamas. Eram judeus que não quiseram renunciar a Moisés, cristãos que haviam se casado com as próprias comadres, ou que não tinham adorado Nossa Senhora de Atocha, ou que não quiseram desfazer-se de seus negócios em favor dos frades jeronimitas. Cantaram com devoção bonitas orações, em seguida queimaram todos os culpados em fogo lento, com o que a família real pareceu extremamente edificada. À noite, quando eu ia me deitar, chegaram dois oficiais da Inquisição com a Santa Hermandad; beijaram-me afetuosamente e levaram-me, sem dizer palavra, para um calabouço muito fresco, mobiliado com uma esteira e um bonito crucifixo. Permaneci ali seis semanas, ao fim das quais o reverendo padre inquisidor mandou-me pedir que fosse conversar com ele: apertou-me durante algum tempo entre os braços, com uma afeição paternal; disse-me que se sentia sinceramente preocupado por ter sabido que eu me encontrava tão mal acomodado; mas que todos os apartamentos da casa estavam ocupados e ele esperava que, da próxima vez, eu me sentisse mais à vontade. Depois perguntou-me cordialmente se eu não sabia por que motivo me encontrava lá. Respondi ao reverendo que era provavelmente pelos meus pecados. - Certo, meu caro filho, mas por qual pecado? Fala-me com toda a confiança. Por mais que tentasse, não pude descobrir; ele caridosamente me ajudou. Até que lembrei das minhas indiscretas palavras, pelas quais fui condenado à submissão e a uma multa de 30 mil reales. Levaram-me a saudar o grande inquisidor: era um homem educado, que me perguntou o que eu achara da sua festinha. Disse-lhe que a havia achado deliciosa, e fui insistir com os meus companheiros de viagem para que saíssemos daquele país, por mais bonito que fosse. Tiveram eles tempo de informar-se a respeito de todas as grandes coisas que os espanhóis haviam realizado em prol da religião. Leram as memórias do famoso bispo de Chiapa, pelas quais fica-se sabendo que degolaram, ou queimaram, ou afogaram 10 milhões de infiéis na América, com o intuito de convertê-los. Pensei que o bispo estivesse exagerando; porém, mesmo reduzindo-se tal sacrifício a 5 milhões de vítimas, seria igualmente extraordinário. Perseguia-me ainda a vontade de viajar. Pretendia terminar minha excursão europeia pela Turquia; pusemo-nos a caminho. Decidi nunca mais opinar a respeito de festas a que assistisse. - Esses turcos - dizia eu aos meus companheiros - são incrédulos, não foram batizados, e, consequentemente, devem ser bem mais cruéis que os reverendos padres inquisidores. Vamos ficar calados quando estivermos entre os maometanos. Fui, pois, ter com eles. Muito me admirei ao perceber que na Turquia existiam mais igrejas cristãs do que em Cândia. Vi até vários grupos de monges aos quais permitiam rezar em plena liberdade à Virgem Maria e amaldiçoar Maomé, estes em grego, aqueles em latim, outros em armênio. - Boa gente esses turcos! - exclamei. Os cristãos gregos e os cristãos latinos eram inimigos mortais em Constantinopla; esses escravos perseguiam-se uns aos outros, como cães que se mordem na rua e a quem os donos separam com pauladas. O grão-vizir protegia então os gregos. O patriarca grego acusou-me de haver ceado com o patriarca latino, e eu fui condenado, em plena sala do Conselho, a cem chicotadas na sola do pé, resgatáveis por 500 cequins. No dia seguinte, o grão-vizir foi estrangulado; e, no outro dia, o seu sucessor, que era partidário dos latinos, e que só foi estrangulado um mês depois, condenou-me à mesma multa por haver ceado com o patriarca grego. Vi-me na triste contingência de não frequentar nem a igreja grega nem a latina. Para consolar-me, tomei a meu serviço uma linda circassiana, que era mais carinhosa das criaturas na intimidade, e a mais devota na mesquita. Uma noite, no doce enlevo do seu amor, exclamou, beijando-me: - Alla, llla, Alla! São as palavras sacramentais dos turcos. Pensei que fossem palavras de amor, e exclamei também, com toda a ternura: - Alla, llla, Alla! - Ah! Louvado seja Deus misericordioso - disse ela. - Agora você é turco. Eu disse-lhe que a abençoava por haver-me dado a força de um turco, e me considerei muito feliz. De manhã, chegou o imã para circuncidar-me; e, como eu me recusasse, o cádi do bairro, homem leal, propôs que me empalassem: salvei o meu prepúcio e o meu traseiro com 1.000 cequins, e fugi às carreiras para a Pérsia, decidido a não mais ouvir missa grega nem latina na Turquia, e a nunca gritar Alla, llla, Alla em um encontro amoroso. Quando cheguei a Ispahan, perguntaram-me se eu preferia o Carneiro Preto ou o Carneiro Branco. Respondi que isso me era indiferente, desde que o carneiro fosse macio. É preciso esclarecer que as facções do Carneiro Branco e do Carneiro Preto ainda dividiam os persas. Acharam que eu estivesse zombando dos dois partidos, de maneira que, já às portas da cidade, vi-me envolvido numa violenta discussão: custou-me ainda numerosos cequins livrar-me dos carneiros. Fui para a China com um intérprete, que me garantiu que nesse país vivia-se alegre e livremente. Os tártaros agora o governavam, após haver subjugado tudo a ferro e fogo; e os reverendos padres jesuítas de uma parte, como os reverendos padres dominicanos da outra, diziam que ali pescavam almas para Deus, sem que ninguém tomasse conhecimento. Nunca se viram conversores tão diligentes: viviam perseguindo-se uns aos outros. Escreviam para Roma volumes e volumes de calúnias; tratavam-se de infiéis e de prevaricadores por causa de uma alma. Existia sobretudo uma terrível disputa entre eles acerca da maneira de fazer a reverência. Queriam os jesuítas que os chineses saudassem a seus pais e mãe à maneira da China, e os dominicanos queriam que os saudassem à maneira de Roma. Aconteceu que os jesuítas me tomassem por um dominicano. Fizeram-me passar aos olhos de Sua Majestade tártara por espião do papa. O conselho supremo encarregou um primeiro mandarim, que deu ordem a um sargento, o qual mandou quatro esbirros me prenderem e me amarrarem com todo o cerimonial. Fui conduzido, depois de 140 genuflexões, diante de Sua Majestade. Fez indagar-me se eu era espião do papa e se era verdade que esse príncipe viria em pessoa destroná-lo. Respondi que o papa era um sacerdote de setenta anos; que vivia a 4 mil léguas de Sua Majestade tártaro-chinesa; que possuía cerca de 2 mil soldados que montavam guarda com um guarda-sol; que não destronava ninguém, e que Sua Majestade podia dormir em paz. Foi a aventura menos sinistra da minha vida. Enviaram-me para Macau, de onde embarquei com destino à Europa. Meu navio teve de ser reparado no litoral de Golconda. Aproveitei esse tempo para ir visitar a corte do grande Aureng-Zeb, de quem diziam maravilhas. Encontrava-se ele em Délhi. Tive o consolo de vê-lo no dia da faustosa cerimônia durante a qual recebeu o celestial presente que lhe enviava o alcaide de Meca. Era a vassoura com que haviam varrido a casa santa, a Caaba, a Beth Allah. Essa vassoura é o símbolo que varre todas as impurezas da alma. Aureng-Zeb não parecia ter necessidade desse objeto; era o homem mais piedoso de todo o Hindustão. É verdade que havia degolado um de seus irmãos e envenenado o próprio pai. Vinte rayas e outros tantos omrahs haviam sido mortos em suplícios; mas isso não era nada, e só se falava da devoção de AurengZeb. Não o comparavam senão à sagrada majestade do sereníssimo imperador do Marrocos, Muley-Ismael, que mandava decepar cabeças todas as sextas-feiras, depois da oração. Quanto a mim, não dizia uma palavra sequer; as viagens me haviam formado o espírito, e eu achava que não me cabia decidir entre esses dois veneráveis soberanos. Mas confesso que um jovem francês meu companheiro faltou com respeito ao imperador das Índias e ao do Marrocos. Ele disse que havia na Europa soberanos muito piedosos que governavam bem os seus Estados, e até frequentavam as igrejas, sem contudo matar seus pais e irmãos, nem decepar a cabeça de seus súditos. O nosso intérprete transmitiu em hindi as ofensivas palavras do meu jovem amigo. Com a experiência do passado, fiz logo selarem os nossos camelos e partimos, o francês e eu. Soube depois que, na mesma noite, os oficiais do grande Aureng-Zeb haviam ido prender-nos e encontraram apenas o intérprete. Executaram-no em praça pública, e todos os cortesãos confessaram, sem fingido louvor, que a sua morte havia sido muito justa. Restava-me ver a África, para usufruir todos os encantos do nosso continente. De fato, eu a vi. Meu navio foi capturado por piratas negros. Nosso capitão protestou veementemente; perguntou-lhes por que desrespeitavam daquela forma as leis internacionais. - Vocês têm nariz comprido - respondeu-lhe o capitão negro -, e o nosso é chato. Os seus cabelos são lisos, o nosso é encarapinhado. Vocês têm pele cinzenta, e a nossa é da cor do ébano. Devemos, portanto, pelas leis sagradas da natureza, ser sempre inimigos. Vocês nos compram, nas feiras da costa de Guiné, como a animais de carga, para obrigar-nos a trabalhar em não sei que serviços tão penosos quanto humilhantes. Fazem-nos cavar montanhas, a golpes de chicote, para extrair uma espécie de terra amarela que, por si mesma, não presta para nada, e que não vale uma boa cebola do Egito. De forma que, quando nós os encontramos e somos os mais fortes, logo escravizamos vocês todos e os obrigamos a cultivar os nossos campos, ou então lhes cortamos o nariz e as orelhas. Nada podíamos retrucar a tão sábias palavras. Fui cultivar o campo de uma negra velha, para conservar minhas orelhas e meu nariz. Resgataram-me depois de um ano. Eu tinha visto tudo o que existe de bonito, de bom e de admirável sobre a face da Terra: decidi não ver mais que a minha família. Casei-me na minha terra; ganhei um par de pimpolhos, e vi que era essa a vida mais tranquila que existia. HISTÓRIA DE UM BRÂMANE Durante as minhas viagens encontrei um velho brâmane - homem muito sábio, cheio de espírito e erudição; além do mais, era rico, e portanto mais sábio ainda, já que, como não lhe faltava nada, não precisava enganar ninguém. Sua casa era otimamente governada por três lindas mulheres que faziam de tudo para agradá-lo; e quando não se divertia com elas, sua ocupação era filosofar. Perto de sua moradia, que era bonita, bem decorada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu, muito devota, imbecil e extremamente pobre. - Quem me dera não ter nascido! - disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe por quê. - Faz quarenta anos que eu estudo - respondeu-me -, e foram quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tanta humilhação e desgosto que faz com que minha vida seja insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; encontro-me num ponto no meio das duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima ideia do que seja a eternidade. Sou feito de matéria, penso, e nunca pude saber o que é que produz o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de caminhar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não apenas o princípio de meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio dos meus movimentos: não sei por que existo. Não obstante, cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo depois de haver falado. O pior é quando me perguntam se Brama foi produzido por Vixnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. "Ah! Meu reverendo", imploram-me, "dizei-me como é que o mal inunda toda a Terra." Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que foram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco; retiro-me abatido pela sua curiosidade e pela minha ignorância. Vou consultar nossos antigos livros, e estes duplicam minha escuridão. Vou consultar meus companheiros: respondem-me alguns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros acreditam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo contribui para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Às vezes me sinto à beira do desespero, quando penso que, depois de todas as minhas pesquisas, não sei nem de onde venho nem para onde vou nem no que me transformarei. O estado desse excelente homem me causou verdadeira compaixão: ninguém tinha mais senso e boa-fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento e mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele. Vi no mesmo dia a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez havia ficado aflita por querer saber como era a sua alma. Ela nem entendeu a minha pergunta: jamais em sua vida refletira um instante sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, considerava-se a mais feliz das mulheres. Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei ao meu filósofo e lhe disse: - Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta um velho autômato que não pensa em nada e vive feliz? - Tens razão - respondeu-me ele. - Mil vezes eu disse a mim mesmo que seria feliz se fosse tão tolo como a minha vizinha, contudo não desejaria tal felicidade. Essa resposta me impressionou mais que todo o resto; consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil. Apresentei a questão a filósofos, e eles concordaram com a minha opinião. "Contudo", dizia eu, "existe uma terrível contradição nessa maneira de pensar". Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, então, ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo mesmos estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não têm tanta certeza de raciocinar bem. "É claro", dizia eu, "que se deveria preferir não ter senso comum, desde que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar." Todos concordaram comigo, porém não encontrei ninguém que aceitasse se tornar imbecil para se sentir contente. Daí concluí que, se damos muito valor à felicidade, damos mais ainda à razão. Contudo, pensando bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como explicar, então, tal contradição? E também todas as outras. Há muito a discutir a respeito disso. O BRANCO E O PRETO Com certeza não existe, na província de Candahar, quem não conheça a aventura do jovem Rustan. Era filho único de um mirzá, título que corresponde a marquês entre nós, ou a barão entre os alemães. O mirzá, seu pai, possuía uma grande fortuna honestamente adquirida. Deviam casar o jovem Rustan com uma dama, ou mirzesa, da sua categoria. As duas famílias o desejavam muito. Rustan devia ser o consolo dos pais, tornar sua esposa feliz e ser feliz com ela. Porém, por infelicidade, ele vira a Princesa da Caxemira na feira de Cabul, que é a feira mais importante do mundo, e incomparavelmente mais frequentada que as de Basra e Astracã. E eis por que o Príncipe da Caxemira havia ido à feira com sua filha. Ele havia perdido as duas mais raras peças de seu tesouro: uma era um diamante do tamanho de um polegar e no qual fora gravada a efígie de sua filha, com uma arte que os hindus possuíam então e que depois se perdeu; a outra era uma azagaia que ia por si própria aonde a gente o desejava, coisa não muito extraordinária entre nós, mas que o era na Caxemira. Um faquir de Sua Alteza tinha lhe roubado essas duas preciosidades e entregara-as à princesa. "Guardai cuidadosamente estes dois objetos", disse-lhe ele. "Deles depende o vosso destino." Partiu então, e nunca mais voltaram a vê-lo. O Príncipe da Caxemira, desesperado, e ignorando que ambas as coisas se encontravam em poder da filha, resolveu ir à feira de Cabul, para ver se entre os mercadores que ali acorriam dos quatro cantos do mundo não haveria algum que tivesse o seu diamante e a sua arma. Levava a filha consigo em todas as viagens que fazia. Trazia esta o diamante bem escondido no cinto; quanto à azagaia, que não podia esconder tão bem, guardara-a cuidadosamente na Caxemira, no seu grande cofre chinês. Rustan e ela viram-se em Cabul; eles se amaram com toda a boa-fé da sua idade e toda a ternura da sua terra. A princesa, em penhor de seu amor, deu-lhe o diamante, e Rustan, ao despedir-se, prometeu ir vê-la secretamente na Caxemira. O jovem mirzá tinha dois favoritos que lhe serviam de secretários, escudeiros, mordomos e criados de quarto. Um chamava-se Topázio; era bonito, benfeito, branco como uma circassiana, dócil e serviçal como um armênio, sábio como um guebro. O outro chamava-se Ébano; era um negro muito bonito, mais ativo, mais laborioso que Topázio, e que não considerava nada difícil. Cornunicou-lhes o seu projeto de viagem. Topázio procurou dissuadi-lo com o zelo circunspecto de um servo que não queria desagradar-lhe; fez-lhe ver tudo o que arriscava. Como deixar duas famílias em desespero? Como cravar um punhal no coração de seus pais? Chegou a abalar Rustan; mas Ébano o estimulou e dissipou-lhe todos os escrúpulos. Porém faltava-lhe dinheiro para tão longa viagem. O sábio Topázio não faria com que lho emprestassem; Ébano o conseguiu. Sem que o patrão o soubesse, apoderou-se do diamante e mandou fazer uma imitação, que pôs no seu lugar, empenhando o verdadeiro a um armênio, por alguns milhares de rupias. Quando o mirzá se viu de posse das suas rupias, tudo ficou pronto para a partida. Carregaram um elefante com a bagagem; montaram a cavalo. Topázio disse ao amo: - Tomei a liberdade de fazer algumas críticas à vossa empresa; porém, depois de criticar, cumpre-me obedecer; eu vos pertenço, eu vos estimo, hei de seguir-vos até o fim do mundo; mas, no caminho, consultemos o oráculo que fica a duas parasangas daqui. Rustan concordou. O oráculo respondeu: - Se fores ao Oriente, estarás no Ocidente. Rustan não entendeu nada dessa resposta. Topázio sustentou que não augurava nada de bom. Ébano, sempre complacente, convenceu-o de que ela era bastante favorável. Havia ainda outro oráculo em Cabul; foram também consultá-lo. O oráculo de Cabul respondeu nos seguintes termos: - Se possuis, não possuirás; se és vencedor, não vencerás; se és Rustan, não o serás. Esse oráculo pareceu-lhes ainda mais ininteligível que o outro. - Cuidado! - avisava-o Topázio. - Nada temais - dizia Ébano, e este ministro, como era de prever, tinha sempre razão perante o senhor, a quem estimulava a paixão e a esperança. Ao deixarem Cabul, embrenharam-se numa grande floresta; sentaram-se na relva para comer, soltando os cavalos no pasto. Preparavam-se para descarregar o elefante que trazia os víveres e o serviço, quando perceberam que Topázio e Ébano não mais se achavam com a pequena caravana. Chamam-nos; ecoa a floresta com os nomes de Ébano e Topázio. Os criados procuram-nos por todas as direções e enchem a floresta com os seus gritos; voltam sem nada ter visto, sem que ninguém lhes tenha respondido. - Só encontramos - disseram a Rustan - um abutre que lutava com uma águia e que lhe arrancava todas as penas. A narrativa desse combate espicaçou a curiosidade de Rustan; dirigiu-se a pé até o local; não avistou nem abutre nem águia, mas viu o seu elefante, ainda com a carga, que era assaltado por um grande rinoceronte. Um investia com o chifre, o outro com a tromba. O rinoceronte, à vista de Rustan, abandonou a presa; recolheram o elefante, mas não puderam encontrar os cavalos. - Estranhas coisa acontecem quando se viaja pela floresta! - exclamou Rustan. Os servos estavam consternados, e o amo desesperado por haver perdido ao mesmo tempo os seus cavalos, o seu caro negro e o sábio Topázio, ao qual tinha grande amizade, embora este nunca fosse da sua opinião. Consolava-se na esperança de em breve se ver aos pés da bela Princesa da Caxemira, quando encontrou um grande asno malhado, que um vigoroso e brutal camponês enchia de pauladas. Nada mais belo, nem mais raro, nem mais veloz na corrida do que os asnos dessa espécie. Aos golpes do vilão, o asno reagia com coices de arrancar um carvalho. O jovem mirzá tomou o partido do asno, que era uma criatura encantadora. O camponês fugiu, dizendo ao asno: - Tu me pagarás. - O asno agradeceu ao libertador na sua linguagem, aproximou-se, deixou-se acariciar, acariciou. Depois da refeição, Rustan monta no asno e encaminha-se para a Caxemira com seus criados, que seguem, uns a pé, outros montados no elefante. Mal se havia ele acomodado no lombo do asno, quando este animal se volta na direção de Cabul, em vez de seguir o rumo da Caxemira. Por mais que o cavaleiro torcesse a rédea e apertasse os joelhos, por mais que o sofresse, por mais que lhe metesse o relho e as esporas, o teimoso animal corria sempre direito para Cabul. Rustan suava, debatia-se, exasperava-se, quando encontrou um vendedor de camelos que lhe disse: - Bastante patife é este seu burro, que o leva aonde o senhor não pretende ir; não quer trocá-lo por quatro de meus camelos, à escolha? Rustan agradeceu à Providência por lhe haver proporcionado tão bom negócio. "Muito enganado estava Topázio", pensava ele, "em me dizer que a minha viagem não seria feliz." Montou no melhor camelo, os três outros o seguiram; alcançou a sua caravana e viu-se a caminho da felicidade. Mal havia percorrido quatro parasangas, quando foi detido por uma torrente profunda, larga e impetuosa, que rolava de rochedos brancos de espuma. As duas margens eram horríveis precipícios, que turbavam a vista e gelavam o sangue; nenhum meio de atravessar, nenhum meio de tomar pela direita ou pela esquerda. - Começo a recear - disse Rustan - que Topázio tinha razão em censurar minha viagem, e que eu tenha feito muito mal em partir; se ao menos ele estivesse aqui, poderia dar-me alguns bons conselhos. Se aqui estivesse Ébano, haveria de consolar-me e encontraria alguma solução; mas tudo me falha. Seu embaraço era aumentado pelo desalento da caravana: a noite era sem estrelas, passaram-na a lamentar-se. Afinal a fadiga e o abatimento adormeceram o enamorado viajante. Acordou ao raiar do dia e viu uma bela ponte de mármore erguida sobre a torrente, de uma margem a outra. E foram exclamações, gritos de espanto e de alegria. - Será possível? Não será um sonho? Que encantamento! Teremos coragem de passar? - Punham-se todos de joelhos, erguiam-se, dirigiam-se à ponte, beijavam a terra, olhavam o céu, estendiam as mãos, avançavam o pé a tremer, voltavam, extasiavam-se; e Rustan murmurava: - Sem dúvida o céu me favorece; Topázio não sabia o que dizia; os oráculos eram em meu favor; Ébano tinha razão; mas por que ele não está aqui? Mal a caravana atravessou a torrente, eis que a ponte cai nas águas com terrível fragor. - Melhor assim! Melhor assim! - exclamou Rustan. - Louvado seja Deus! Ele não quer que eu regresse para a minha terra, onde não passaria de simples fidalgo; quer que eu despose aquela a quem amo. Serei Príncipe da Caxemira; é assim que, possuindo a minha amada, não possuirei o meu pequeno marquesado de Candahar. Serei Rustan, e não o serei, visto que vou tornar-me um grande príncipe: eis aí, claramente explicada, em meu favor, grande parte do oráculo; o resto se explicará por si mesmo; hei de ser muito feliz. Mas, por que Ébano não se encontra comigo? Lamento-o muito mais do que a Topázio. Percorreu mais algumas parasangas em grande alegria; mas, ao escurecer, uma cadeia de montanhas mais abruptas que uma muralha e mais altas do que o seria a torre de Babel, se a tivessem terminado, barrou inteiramente a apavorada caravana. - Deus quer que morramos aqui! - exclamavam todos. - Ele só afundou a ponte para nos tirar toda a esperança de regresso; e ergueu a montanha para nos privar de qualquer meio de seguir avante. Ó Rustan! Ó infeliz mirzá! Nunca veremos a Caxemira, jamais voltaremos à terra de Candahar. A mais cruciante dor, o mais pesado abatimento sucediam-se, na alma de Rustan, à imoderada alegria que sentira, às esperanças com que se embriagara. Bem longe estava agora de interpretar as profecias em seu favor. - Ó Céus! Ó Deus bondoso! Por que fui perder meu amigo Topázio?! Como proferisse tais palavras com profundos suspiros e derramando lágrimas, em meio da comitiva em desespero, eis que a base da montanha se abriu, e um longo túnel, iluminado por 100 mil archotes, apresentou-se-lhes às vistas ofuscadas. É Rustan a exclamar, e sua gente a cair de joelhos, a tombar de espanto, a proclamar milagre! E a dizer: - Rustan é o favorito de Vixnu, o bem-amado de Brama; será o senhor do mundo. Rustan acreditava nisso, estava fora de si, erguido acima de si mesmo. - Ah! Ébano, meu querido! Onde estás, que não vens testemunhar estas maravilhas? Como te fui perder? E quando, bela Princesa da Caxemira, quando tornarei a admirar os teus encantos? Avançou, com seus criados, com o seu elefante, com o seu camelo, por debaixo da abóbada da montanha, ao fim da qual penetrou em um vale florido e cortado por regatos; e além do prado, alamedas a perder de vista; e além das alamedas, um rio, em cujas margens se erguiam mil casas de recreio, com deliciosos jardins. Ouviu, por toda parte, cantos e instrumentos; viu gente dançando; apressou-se em atravessar uma das pontes; perguntou ao primeiro que lindo país era aquele. Aquele a quem se dirigia respondeu-lhe: - Esta é a província da Caxemira; os habitantes entregam-se agora à alegria e aos folguedos, celebrando as núpcias da nossa bela princesa, que vai casar com o Sr. Barbabu, a quem o pai a prometeu; que Deus lhes perpetue a felicidade. Ao ouvir essas palavras Rustan caiu desmaiado, e o senhor da Caxemira julgou-o sujeito a ataques epiléticos; mandou levá-lo para sua casa, onde se conservou por muito tempo sem sentidos. Mandou chamar os dois médicos mais famosos do lugar; tomaram o pulso ao doente, que, tendo-se refeito um pouco, lançava soluços e revirava os olhos, exclamando de tempos em tempos: - Topázio, Topázio, tu tinhas razão! Um dos médicos disse ao senhor da Caxemira: - Vejo, pelo sotaque, que é um jovem de Candahar, a quem este clima não convém; deixe-o comigo, que o levarei de volta à sua pátria e curarei. Assegurou o outro médico que Rustan só estava doente de desgosto, que deviam levá-lo ao casamento da princesa e fazê-lo dançar; os dois médicos foram dispensados e Rustan ficou a sós com o seu hóspede. - Senhor - disse ele -, peço-lhe perdão por haver desmaiado na sua presença, sei que isso não é nada educado; queira aceitar meu elefante como prova de reconhecimento pela bondade com que me honrou. Contou-lhe em seguida todas as aventuras, evitando referir-se ao objetivo da viagem. - Mas - indagou ele -, em nome de Vixnu e Brama, diga-me quem é esse feliz Barbabu que vai casar com a Princesa da Caxemira, por que seu pai o escolheu para genro e por que a princesa o aceitou como marido? - Senhor, a princesa de maneira alguma aceitou Barbabu; pelo contrário, está chorando, enquanto toda a província celebra com alegria o seu casamento; fechou-se na torre do palácio; não quer assistir a nenhum dos festejos que fazem em sua honra. Rustan, ao ouvir essas palavras, sentiu-se renascer; o brilho de suas cores, que a dor fanara, reapareceu-lhe nas faces. - Queira dizer-me - continuou ele - por que o Príncipe da Caxemira teima em dar sua filha a Barbabu, que ela detesta? - Não sabe o senhor que o nosso augusto príncipe perdeu um valioso diamante e uma azagaia de grande estimação? - Ah! Eu sei. - Pois saiba que o nosso príncipe, desesperado por não ter notícias dessas preciosidades, depois de as ter mandado procurar por toda a Terra, prometeu a mão da filha a quem lhe trouxesse qualquer um dos dois objetos. Apareceu o Sr. Barbabu, munido do diamante, e amanhã vai casar com a princesa. Rustan empalideceu, balbuciou um cumprimento, despediu-se, e correu de dromedário à capital, onde devia realizar-se a cerimônia. Chegou ao palácio do príncipe; alegou que tinha coisas importantíssimas para lhe comunicar; pediu uma audiência; responderam-lhe que o príncipe estava ocupado nos preparativos do casamento. - É por isso mesmo que quero falar-lhe. E tanto insistiu que foi introduzido. - Senhor - disse ele ao príncipe -, que Deus coroe todos os vossos dias de glória e magnificência! Vosso genro é um trapaceiro. - Como?! Um trapaceiro? Atreve-se a dizê-lo? É assim que se fala a um príncipe da Caxemira do genro que ele escolheu? - Sim, um trapaceiro. E para o provar a Vossa Alteza é que trago aqui vosso diamante. O príncipe, admirado, comparou os dois diamantes e, como não entendia de pedras preciosas, não pôde descobrir qual era o verdadeiro. - Aqui estão dois diamantes - disse ele -, e só tenho uma filha: eis-me numa estranha situação! Mandou chamar Barbabu e perguntou-lhe se não o enganara. Barbabu jurou que comprara o seu diamante a um armênio; o outro não dizia de quem houvera o seu, mas propôs um expediente: que aprouvesse a Sua Alteza fazê-lo combater em seguida contra o rival. - Não basta que vosso genro dê um diamante - disse ele -, é preciso que também dê provas de valor. Não achais bem que aquele que matar o outro despose a princesa? - Excelente - respondeu o príncipe -, será um belo espetáculo para a corte; batei-vos depressa os dois; o vencedor tomará as armas do vencido, segundo o costume da Caxemira, e desposará minha filha. Os pretendentes desceram logo à pista. Havia na escada uma pega e um corvo. O corvo gritava: - Lutem, lutem. - E a pega: - Não lutem. Isso fez o príncipe rir; os dois rivais não lhes deram atenção e começaram o combate; todos os cortesãos formavam o círculo em torno deles. A princesa, sempre encerrada na torre, não quis assistir ao espetáculo; longe estava de imaginar que o seu apaixonado se encontrava na Caxemira, e tinha tamanho horror a Barbabu que nada queria ver. O combate desenvolveu-se o melhor possível; Barbabu foi logo morto e o povo ficou feliz, pois Barbabu era feio e Rustan muito bonito: é o que decide quase sempre do favor público. O vencedor vestiu a cota de malha, a cinta e o capacete do vencido e foi, ao som das fanfarras e seguido de toda a corte, apresentar-se sob as janelas da bem-amada. - Bela princesa - gritavam todos -, vinde ver vosso belo marido, que matou seu feio rival. - As aias repetiam tais palavras. A princesa, por desgraça, pôs a cabeça à janela, e, avistando a armadura do homem a quem abominava, correu desesperada ao cofre chinês e retirou a azagaia fatal, que foi ferir o seu querido Rustan na fenda da couraça; este lançou um grito e a princesa reconheceu a voz de seu infeliz amado. Desceu desgrenhada, com a morte nos olhos e no coração. Rustan, coberto de sangue, jazia tombado nos braços do rei. Ela o viu: Ó momento! Ó espetáculo! Ó reconhecimento de que não se pode expressar nem a angústia nem a ternura nem o horror! Jogou-se sobre ele e o beijou. - Tu recebes - disse-lhe - os primeiros e os últimos beijos da tua amada e da tua assassina. - Retirou o dardo da ferida, mergulhou-o no próprio coração e morreu sobre aquele a quem adorava. O pai, fora de si, alucinado, pronto a morrer com ela, tentou em vão chamá-la à vida; a pobre não mais existia; ele amaldiçoou aquele dardo fatal, quebrou-o em pedaços, lançou ao longe aqueles dois diamantes funestos; e, enquanto preparavam os funerais da filha em vez de seu casamento, mandou transportar para o palácio Rustan ensanguentado, que tinha ainda uns restos de vida. Colocaram-no em uma cama. A primeira coisa que viu, aos dois lados daquele leito de morte, foi Topázio e Ébano. A surpresa lhe devolveu um pouco as forças. - Ah! Cruéis - disse ele -, por que me abandonastes? Talvez a princesa ainda vivesse, se estivésseis perto do infeliz Rustan. - Eu nunca vos abandonei um único instante - respondeu Topázio. - Sempre estive perto de vós - afirmou Ébano. - Ah! O que dizeis? Por que insultar meus últimos momentos? - disse-lhes Rustan com voz fraca. - Podeis acreditar-me - falou Topázio -; bem sabeis que nunca aprovei essa viagem fatal, da qual previa as horríveis consequências. Era eu a águia que lutou com o abutre; era o elefante que sumiu com a bagagem, para forçar-vos a voltar à pátria; era eu o asno malhado que vos reconduzia para a casa paterna; fui eu quem dispersou vossos cavalos; fui eu quem formou a torrente que vos impedia a passagem; fui eu quem ergueu a montanha que vos fechava o caminho tão funesto; era o médico que vos aconselhava o clima natal; era eu a pega que vos gritava que não lutásseis. - E eu - disse Ébano - era o abutre que lutou com a águia, eu era o rinoceronte que dava chifradas no elefante, o vilão que castigava o asno malhado, o mercador que vos cedia camelos para a vossa perda; construí a ponte sobre a qual passastes; cavei a galeria que atravessastes; era o médico que vos animava a seguir, o corvo que vos gritava que lutásseis. - Lembrai-vos dos oráculos - disse Topázio. - Se vais ao Oriente, estarás no Ocidente. - Sim - confirmou Ébano -, aqui enterram os mortos com o rosto voltado para o Ocidente. O oráculo era claro. Como não o compreendestes? Tu possuías e não possuías: pois tínheis o diamante, mas era falso, e o ignoráveis. Sais vencedor e morreis; sois Rustan e deixais de o ser; tudo foi cumprido. Enquanto assim falava, quatro asas brancas cobriram o corpo de Topázio, e quatro asas negras o de Ébano. - Que vejo?! - exclamou Rustan. Topázio e Ébano responderam juntos: - Vedes os vossos gênios. - Ai! - gemeu o infeliz Rustan. - Para que vos metestes nisso? E para que dois gênios para um pobre homem? - É a lei - declarou Topázio. - Cada homem tem os seus dois gênios, foi Platão quem primeiro o disse, e outros depois o repetiram; bem vedes que nada é mais verdadeiro: eu, que vos falo, sou o vosso bom gênio, e o meu encargo era velar por vós até o último instante da vossa vida; desempenhei fielmente o meu papel. - Mas - disse o moribundo -, se a tua função era servir-me, sou pois de uma natureza superior à tua; e depois como ousas afirmar que és o meu bom gênio, quando deixaste enganarem-me em tudo o que empreendi, e deixas-nos morrer miseravelmente, a mim e à minha bem-amada? - Era o vosso destino - respondeu Topázio. - Se é o destino que faz tudo - observou o moribundo -, para que serve então o meu gênio? E tu, Ébano, com as tuas quatro asas negras, és, pelo que se vê, o meu gênio mau? - Vós o dissestes - respondeu Ébano. - Então eras também o gênio mau da minha princesa? - Não, a princesa tinha o seu, e eu o ajudei perfeitamente. - Ah! Maldito Ébano, se és tão mau assim, não pertences então ao mesmo senhor que Topázio? São ambos formados por dois princípios diferentes, dos quais um é bom e o outro é mau por natureza? - Não é uma consequência - respondeu Ébano -, mas uma grande dificuldade. - Não é possível - tornou o moribundo - que um ser favorável tenha criado um gênio tão funesto. - Possível ou não - rebateu Ébano -, a coisa é como vos digo. - Ah! Meu pobre amigo - declarou Topázio -, não vedes que esse velhaco tem ainda a malícia de vos fazer discutir, para assanhar vosso sangue e apressar a hora da vossa morte? - Vai-te, não estou mais contente contigo do que com ele - disse tristemente Rustan. - Ele ao menos confessa que me quis fazer mal; e tu, que pretendias defender-me, não me serviste de nada. - Lamento-o muito - desculpou-se o bom gênio. - E eu também - afirmou o moribundo. - Há nisso tudo alguma coisa que eu não compreendo. - Nem eu tampouco - disse o bom gênio. - Mas daqui a um instante saberei tudo - afirmou Rustan. - É o que veremos - concluiu Topázio. Então tudo desapareceu. Rustan encontrou-se na casa de seu pai, de onde não havia saído, e na sua cama, onde dormira durante uma hora. Acordou sobressaltado, banhado de suor, perdido; apalpou-se, chamou, gritou, puxou a sineta. Seu criado Topázio acorreu, de carapuça e bocejando. - Estou morto? Estou vivo? - perguntou Rustan. - E a bela Princesa da Caxemira? Será que vai se salvar? - O meu senhor está sonhando? - indagou friamente Topázio. - Ah! - clamou Rustan. - Onde está esse maldito Ébano, com as suas quatro asas negras? Foi ele quem me fez morrer de morte tão cruel. - Senhor, deixei-o lá em cima, a roncar. Faço-o descer também? - O perverso! Faz seis meses que me persegue. Foi ele quem me levou a essa feira azarenta de Cabul. Foi ele quem surrupiou o diamante que me deu a princesa. É ele o culpado da minha viagem, da morte da minha princesa e do golpe da azagaia de que morro na flor da idade. - Tranquilizai-vos - falou Topázio. - Nunca estivestes em Cabul; não existe nenhuma Princesa da Caxemira; vosso pai possui apenas dois filhos homens, que estão atualmente no colégio. Nunca tivestes diamante; a princesa não pode estar morta, porque não nasceu; e a vossa saúde é perfeita. - Como?! Não é verdade que assistias à minha morte no leito do Príncipe da Caxemira? Não me confessaste que, para me preservar de tantos males, havias sido águia, elefante, asno malhado, médico e pega? - Sonhastes tudo isso, senhor: as nossas ideias não dependem mais de nós no sono do que na vigília. Quis Deus que esse desfile de ideias vos passasse pela cabeça, para vos dar com certeza alguma instrução, de que tirareis proveito. - Zombas de mim - retrucou Rustan. - Quanto tempo dormi? - Senhor, não dormistes nem uma hora. - Pois então, maldito argumentador, como queres tu que, em uma hora, tenha eu estado há seis meses na feira de Cabul, de lá tenha voltado e ido à Caxemira, e que estejamos mortos, Barbabu, a princesa e eu? - Não há nada mais fácil nem mais comum senhor; realmente poderíeis ter dado a volta ao mundo e tido mais aventuras em muito menos tempo. Não é verdade que podeis ler em uma hora o compêndio da história dos persas, escrito por Zoroastro? No entanto, esse compêndio abrange 800 mil anos. Todos esses acontecimentos passam, um depois do outro, diante de vossos olhos, durante uma hora. E haveis de concordar que é tão fácil a Brama comprimi-los todos no espaço de 800 mil anos; é exatamente a mesma coisa. Imaginai que o tempo gira sobre uma roda cujo diâmetro é infinito. Nessa roda imensa existe uma incontável multidão de rodas, umas dentro das outras; a do centro é imperceptível e dá um número infinito de voltas precisamente no mesmo tempo em que a grande roda completa uma volta. É claro que todos os acontecimentos, desde o início do mundo até o seu fim, podem acontecer sucessivamente em muito menos tempo que a centésima milésima parte de um segundo; e pode-se afirmar que a coisa é mais ou menos assim. - Não entendo - declarou Rustan. - Se quiserdes - disse Topázio -, tenho um papagaio que vos fará facilmente entender isso tudo. Nasceu algum tempo antes do Dilúvio; estava na Arca; viu muitas coisas; contudo, tem apenas um ano e meio: ele vos contará a sua história, que é muito interessante. - Traze-me já o teu papagaio - ordenou Rustan. - Ele me divertirá até que eu possa adormecer de novo. - Está com minha irmã religiosa - disse Topázio. - Vou buscá-lo, gostareis dele; sua memória é precisa, e ele conta com simplicidade, sem procurar mostrar espírito a respeito de tudo. - Melhor assim - observou Rustan -, é dessa maneira que me agradam as histórias. Foi trazido o papagaio, o qual assim falou: N.B.: Mademoiselle Catherine Vadé jamais conseguiu encontrar a história do papagaio entre os papéis de seu falecido primo Antoine Vadé, autor deste conto. O que é uma pena, dado o tempo em que vivera o papagaio. JEANNOT E COLIN Muitas pessoas dignas de confiança viram Jeannot e Colin na escola da cidade de Issoire, no Auvergne, famosa em todo o mundo por seus colégios e seus tachos. Jeannot era filho de um conhecido vendedor de mulas, e Colin devia seus dias a um valoroso camponês dos arredores, que cultivava a terra com quatro animais e que, após haver pago a talha, os impostos, o imposto adicional, o soldo por libra, a capitação e os vigésimos, não se encontrava lá muito rico no final do ano. Jeannot e Colin eram muito bonitos; gostavam muito um do outro e tinham dessas pequenas intimidades, dessas pequenas confidências que a gente sempre relembra com agrado, quando torna a encontrar-se mais tarde. Estava para terminar o tempo de seus estudos, quando um alfaiate trouxe a Jeannot um traje de veludo de três cores, com uma jaqueta leonesa de excelente gosto: vinha tudo acompanhado de uma carta para o Sr. de La Jeannotière. Colin admirou a roupa, sem sentir inveja; mas Jeannot assumiu um ar de superioridade que preocupou Colin. A partir desse momento Jeannot não estudou mais, olhava-se ao espelho e desprezava todo mundo. Algum tempo depois, chegou um criado de diligência e trouxe uma segunda carta para o Sr. Marquês de La Jeannotière: era uma ordem do senhor seu pai para que o senhor seu filho se dirigisse a Paris. Jeannot subiu na carruagem e estendeu a mão a Colin com um nobre sorriso protetor. Colin sentiu o seu próprio nada e chorou. Jeannot partiu com toda a pompa da sua glória. Os leitores que gostam de instruir-se devem saber que o Sr. Jeannot pai havia obtido uma fortuna imensa nos negócios. Quereis saber como se fica assim tão rico? Uma simples questão de sorte. O Sr. Jeannot era bem parecido, sua mulher também, e ainda estava bastante viçosa. Foram os dois para Paris, devido a um processo que os arruinava, quando a sorte, que eleva e rebaixa os homens a seu bel-prazer, apresentou-os à esposa de um empreiteiro dos hospitais militares, homem de grande talento e que podia gabar-se de haver liquidado mais soldados em um ano do que o canhão em dez. Jeannot agradou a madame, a mulher de Jeannot agradou a monsieur. Em breve Jeannot participava da empresa; meteu-se em outros negócios. Quando se está na correnteza, é só deixar-se carregar; e constrói-se sem esforço uma fortuna imensa. Os pobres que, da margem, nos veem vogar a todo o pano, arregalam os olhos; não entendem como pudemos vencer; invejam-nos pura e simplesmente e escrevem, contra nós, panfletos que não lemos. Foi o que aconteceu a Jeannot pai, que em breve se transformou em Sr. de La J eannotiêre e que, tendo adquirido um marquesado ao cabo de seis meses, retirou da escola o senhor marquês, seu filho, para introduzi-lo na alta sociedade de Paris. Colin, sempre terno, escreveu uma carta de cumprimentos a seu antigo amigo, enviando-lhe "estas linhas para congratular-se..." O marquesinho não lhe respondeu. Colin adoeceu de tristeza. O pai e a mãe deram primeiro um preceptor ao jovem marquês: esse preceptor, que era um homem da alta e que nada sabia, não pôde ensinar coisa alguma a seu pupilo. Monsieur queria que o filho aprendesse latim, madame não queria. Tomaram por árbitro um autor que era então famoso por obras agradáveis. Convidaram-no para jantar. O dono da casa começou por lhe dizer: - O senhor, que sabe latim e que é um homem da corte... - Eu, senhor, latim?! Não sei uma palavra de latim e me dou muito bem com isso: é claro que se fala muito melhor a própria língua quando não se divide a aplicação entre ela e as línguas estrangeiras. Veja todas as nossas damas: possuem um espírito mais agradável que o dos homens; suas cartas têm cem vezes mais graça; e, se nos levam essa vantagem, é porque não sabem latim. - Pois eu não tinha razão? - disse madame. - Eu quero que meu filho seja um homem de espírito, que obtenha sucesso na sociedade; e bem se vê que, se soubesse latim, estaria perdido. Por acaso se representam comédias e óperas em latim? Discute-se em latim, quando se tem um processo? Ama-se em latim? Monsieur, ofuscado com essas razões, cedeu, e ficou assentado que o jovem marquês não desperdiçaria tempo em conhecer Cícero, Horácio e Virgílio. - Mas, então, o que ele aprenderá? - insistiu. - Pois é preciso que saiba alguma coisa. Não se poderia ministrar-lhe um pouco de geografia? - Para que lhe serviria? - retrucou o preceptor. - Quando o senhor marquês for visitar suas terras, porventura os mensageiros não saberão o caminho? Com certeza não vão extraviá-lo, Não se tem necessidade de um esquadro para viajar, e vai-se muito comodamente de Paris ao Auvergne sem que seja preciso tirar a latitude. - Tem razão - concordou o pai. - Mas ouvi falar de uma bela ciência que se chama, creio eu, astronomia. - O quê! - exclamou o preceptor. - Quem é que se guia pelos astros neste mundo? E será preciso que o senhor marquês se mate em calcular um eclipse quando o encontra indicado no almanaque, o qual, ainda por cima, o informa das festas móveis, da idade da lua e de todas as princesas da Europa? Madame concordou totalmente com o preceptor. O marquesinho estava no auge da alegria; o pai hesitava. - Mas o que se deve então ensinar a meu filho? - indagava ele. - A ser amável- respondeu o amigo a quem consultavam. - E, se conhece os meios de agradar, conhecerá tudo: é uma arte que aprenderá com a senhora sua mãe, sem que nenhum dos dois se dê o mínimo trabalho. Madame, ao ouvir essas palavras, beijou o gracioso ignorante e disse-lhe: - Bem se vê que o senhor é o homem mais sábio do mundo; meu filho lhe ficará devendo toda a sua educação. Imagino que não ficaria mal se ele soubesse um pouco de história. - Mas para que serve isso, madame? Só é agradável e útil a história do dia. Todas as histórias antigas, como o dizia um de nossos sábios, são apenas fábulas admitidas; e, quanto às modernas, são um verdadeiro caos que não se pode destrinchar. Que importa ao senhor seu filho que Carlos Magno tenha instituído os doze pares da França e o seu sucessor fosse gago? - Muito bem! - exclamou o preceptor. - Abafa-se o espírito das crianças sob esse amontoado de conhecimentos inúteis; mas, de todas as ciências, a mais absurda, a meu ver, e a mais capaz de abafar toda espécie de gênio, é sem dúvida a geometria. Essa ciência ridícula tem por objeto superfícies, linhas e pontos que não existem na natureza. Faz-se passar, em espírito, 100 mil linhas curvas entre um círculo e uma linha reta que o toca, embora na realidade não se lhe possa meter um fio de linha. A geometria, na verdade, não passa de uma brincadeira de mau gosto. Monsieur e madame não compreendiam muito bem o que queria dizer o preceptor, mas estavam de pleno acordo. - Um senhor como o jovem marquês - continuou ele - não deve espremer o cérebro nesses estudos inúteis. Se um dia tiver necessidade de um sublime geômetra para fazer o levantamento de suas terras, manda medi-las contra pagamento. Se quiser evidenciar a antiguidade de sua nobreza, que remonta aos mais afastados tempos, mandará buscar um beneditino. O mesmo acontece com todas as artes. Um jovem senhor de bom nascimento não é nem pintor nem músico nem arquiteto nem escultor; mas faz florescer todas as artes, animando-as com a sua generosidade. Mais vale sem dúvida protegê-las que exercê-las; basta que o senhor marquês tenha bom gosto; compete aos artistas trabalharem para ele; eis por que há muita razão em dizer-se que as pessoas de qualidade (refiro-me às bastante ricas) sabem tudo sem nada ter aprendido, pois, com o tempo, são capazes de julgar todas as coisas que encomendam e pagam. O amável ignorante tomou então a palavra e disse: - Madame observou muito bem que o grande objetivo do homem é triunfar na sociedade. Porém, falando com sinceridade, será com as ciências que se obtém esse triunfo? Alguém já se lembrou de falar sobre geometria na boa sociedade? Por acaso se pergunta a um homem que astro se ergue hoje com o sol? Quem é que se informa, numa ceia, se Clódio, o cabeludo, atravessou o Reno? - Claro que não! - exclamou a Marquesa de La Jeannotière, cujos encantos a tinham às vezes introduzido na alta sociedade. - E o senhor meu filho não deve abafar seu engenho no estudo de toda essa barafunda. Mas, afinal, o que lhe mandaremos ensinar? Pois é bom que um jovem fidalgo possa brilhar de vez em quando, como diz o senhor meu marido. Ouvi um padre dizer que a mais agradável das ciências era uma coisa de que esqueci o nome, mas que começa por b. - Por b, madame? Não será botânica? - Não, não era de botânica que ele me falava; começava por b e acabava por ões. - Ah! Compreendo, madame; trata-se da ciência dos brasões: é na verdade uma ciência muito profunda; mas passou de moda depois que se perdeu o costume de mandar pintar as armas nas portas da carruagem: era o que poderia haver de mais útil num Estado devidamente civilizado. Aliás, esses estudos não terminaram nunca; hoje em dia não existe barbeiro que não tenha o seu escudo; e madame bem sabe que o que se torna comum é pouco apreciado. Afinal, depois de examinadas as vantagens e desvantagens das ciências, ficou resolvido que o marquês aprenderia a dançar. A natureza, que faz tudo, dera-lhe um talento que logo se desenvolveu com extraordinário sucesso: o de cantar agradavelmente vaudevilles. As graças de mocidade, aliadas a esse dote superior, fizeram-no ser considerado um dos jovens de melhor futuro da cidade. Foi amado pelas mulheres, e, tendo a cabeça cheia de canções, as compôs às centenas para as suas namoradas. Pilhava Bacchus et l'Amour em um vaudeville, La Nuit et le Jour em outro, Les Charmes et les Larmes num terceiro. Mas, como sempre havia em seus versos alguns pés de mais ou de menos do que deveria, mandava-os corrigir a vinte luíses por produção: e foi colocado na Année Littéraire, ao lado dos La Fare, dos Chaulieu, dos Hamilton, dos Sarrasin e dos Voiture. A senhora marquesa julgou então ser mãe de um bel esprit, e deu para oferecer jantares a todos os beaux esprits de Paris. Isso logo virou a cabeça do jovem, que adquiriu a arte de falar sem entender e aperfeiçoou-se no hábito de não prestar para coisa alguma. O pai, quando o viu tão eloquente, sentiu não havê-lo mandado aprender latim, pois nesse caso lhe compraria um alto cargo na Justiça. A mãe, que possuía sentimentos mais nobres, encarregou-se de solicitar um regimento para o filho; e este, enquanto o regimento não vinha, dedicava-se ao amor. O amor é às vezes mais caro que um regimento. Gastou muitíssimo, enquanto seus pais tampouco olhavam as despesas, para viverem como grandes senhores. Tinham eles como vizinha uma viúva moça e nobre, que decidiu salvar a fortuna do Sr. e da Sra. de La Jeannotière, apropriando-se dela e casando com o jovem marquês. Soube atraí-lo à sua casa, deixou-se amar, deu-lhe a entender que não lhe era indiferente, dominou-o pouco a pouco, encantou-o, subjugou-o sem dificuldade. Ora o elogiava, ora lhe dava conselhos; tornou-se a melhor amiga do pai e da mãe. Uma velha vizinha propôs o casamento; os pais, deslumbrados com tal aliança, aceitaram com alegria a proposta: deram o seu filho único à sua amiga íntima. O jovem marquês iria casar com uma mulher a quem adorava e por quem era amado; os amigos da casa o felicitavam: iam redigir as cláusulas, enquanto se trabalhava no enxoval e no poema nupcial. Estava ele, certa manhã, aos joelhos da encantadora esposa que o amor, a estima e a amizade lhe iam dar; gozavam, num terno e animado diálogo, as primícias de sua aventura; planejavam uma vida deliciosa, quando entrou, alarmado, um camareiro da senhora mãe. - Diferentes notícias lhes trago - ele assim os interrompeu. - Os oficiais de Justiça despejam a casa de monsieur e de madame; tudo está sendo sequestrado pelos credores; fala-se até de prisão, e eu vou tomar providências para que me paguem os meus ordenados. - Espera! Que me dizes? Que história é essa?! - exclamou o marquês. - Anda, vai já punir esses malandros! - incitou-o a viúva. Ele correu, chegou à casa: o pai já estava preso, todos os criados haviam fugido, cada um para o seu lado, carregando tudo o que podiam. A mãe encontrava-se sozinha, sem amparo, sem consolação, afogada em pranto: nada mais lhe restava que a lembrança da sua fortuna, da sua beleza, das suas faltas e das loucas despesas. O filho, após chorar longamente com a mãe, por fim lhe disse: - Não desesperemos, a viúva me ama loucamente, é ainda mais generosa que rica, respondo por ela; espere, que vou buscá-la. Voltou, então, à casa da noiva: encontrou-a conversando com um jovem oficial muito amável. O marquês, atônito, com a cólera no coração, foi procurar o antigo preceptor, derramou-lhe no peito as suas dores e pediu-lhe conselhos. Este lhe propôs fazer-se, como ele, preceptor de meninos. - Ai de mim! Nada sei; o senhor não me ensinou coisa alguma, e foi a primeira causa da minha desgraça. - E rompeu em soluços, enquanto lhe falava. - Escreva romances - disse um bel esprit que se encontrava presente. - É um ótimo ofício em Paris. O jovem, mais desesperado do que nunca, correu ao confessor de sua mãe. Era um frade muito acreditado, que só dirigia senhoras da alta sociedade. Logo que avistou Jeannot, precipitou-se para este: - Meu Deus, senhor marquês! Onde está a sua carruagem? Como passa a respeitável senhora marquesa sua mãe? O pobre infeliz contou-lhe o desastre da família. À medida que ele se explicava, o frade assumia um ar mais grave, mais alheado, mais imponente: - Meu filho, eis aonde Deus queria chegar: as riquezas só servem para corromper o coração. Então Deus concedeu à sua mãe a graça de reduzi-la à mendicância? - Sim, meu padre. - Tanto melhor: agora ela pode ter certeza da sua salvação. - Mas, meu padre, enquanto se espera, não haveria meio de obter alguma ajuda neste mundo? - Adeus, meu filho; uma dama da corte está à minha espera. O marquês esteve a ponto de desmaiar; seus amigos trataram-no mais ou menos da mesma maneira e, numa só tarde, aprendeu melhor a conhecer o mundo do que em todo o resto da sua vida. Estando assim acabrunhado pelo desespero, viu que se aproximava uma carruagem antiga, espécie de aranha coberta, com cortinas de couro, seguida de quatro enormes carroças completamente carregadas. Encontrava-se na carruagem um homem grosseiramente trajado; tinha um rosto redondo e fresco que emanava brandura e alegria. Sua mulherzinha, morena, e também rusticamente agradável, era sacudida a seu lado. O veículo não corria como a carruagem de um janota. O viajante teve tempo de sobra para observar o marquês imóvel, imerso na dor. - Meu Deus! - exclamou ele. - Acredito que seja Jeannot. Ao ouvir seu nome, o marquês ergueu o olhar, a carruagem parou. - É Jeannot mesmo. É Jeannot! E o homenzinho rechonchudo correu, de um salto, a abraçar o seu antigo amigo. Jeannot reconheceu Colin; a vergonha e as lágrimas cobriram-lhe as faces. - Tu me abandonaste - disse Colin -, mas, por mais fino que estejas agora, eu sempre te estimarei. Jeannot, confuso e enternecido, contou-lhe, entre soluços, uma parte da sua história. - Vá comigo até a hospedaria para contar-me o resto - disse-lhe Colin -, abraça a minha mulherzinha e vamos jantar juntos. Seguiram os três a pé, seguidos da bagagem. - Que trazes aí? Tudo isso é teu? - Meu e de minha mulher. Venho do interior; dirijo uma boa manufatura de ferro estanhado e cobre. Casei com a filha de um rico negociante de utensílios necessários aos grandes e aos pequenos; trabalhamos muito; Deus nos ajuda; não mudamos de condição, estamos bem, e ajudaremos o nosso amigo Jeannot. Não sejas mais marquês; as grandezas deste mundo não valem um bom amigo. Retornarás comigo à nossa terra, aprenderás meu ofício; não é muito difícil; eu te darei sociedade, e viveremos alegremente no pedaço de terra onde nascemos. Jeannot, confuso, sentia-se dividido entre a dor e a alegria, a ternura e a vergonha; e pensava: "Todos os meus amigos da alta me traíram; somente Colin, a quem desprezei, vem em minha ajuda. Que lição!". A magnanimidade de Colin animou as generosas inclinações de Jeannot, que a sociedade ainda não havia destruído. Sentiu que não podia abandonar o pai e a mãe. - Cuidaremos de tua mãe - disse Colin -, e, quanto ao velho, que está preso, eu entendo um pouco de negócios; seus credores, vendo que ele não tem mais nada, irão se contentar com pouco; deixa a coisa comigo. Tanto fez Colin que tirou o pai do amigo da prisão. Jeannot voltou para a sua terra, com os pais, que retomaram a sua primeira profissão. Jeannot casou com a irmã de Colin, a qual, tendo o mesmo gênio do irmão, o fez muito feliz. E Jeannot pai, e Jeannot mãe, e Jeannot filho viram que a riqueza não se encontra na vaidade. O HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS Um velho, que sempre deplora o presente e elogia o passado, dizia-me: - A França, meu amigo, não é tão rica hoje como no tempo de Henrique IV. E por quê? Porque as terras já não são tão bem cultivadas; os homens se retiram da terra e, tendo o diarista encarecido o trabalho, vários proprietários deixam as suas fazendas incultas. - Do que se origina essa falta de trabalhadores? - É que todos aqueles que possuem alguma habilidade abraçaram os ofícios de tecelão, relojoeiro, procurador ou teólogo. "Acontece que a revogação do Edito de Nantes abriu um grande vácuo no reino; multiplicaram-se as religiosas e os mendigos; e, enfim, cada um fugiu, o mais que pôde, ao penoso trabalho da lavoura, para o qual Deus nos criou, e que tornamos vergonhoso, de tão insensatos que somos”. "Outra causa da nossa pobreza reside nas novas necessidades. Temos de pagar a nossos vizinhos 4 milhões por um artigo, e 5 ou 6 por outro, para enfiarmos nas narinas um pó fedido vindo da América; o café, o chá, o chocolate, a cochonilha, o anil, as especiarias nos custam mais de 60 milhões por ano. Tudo isso era desconhecido no tempo de Henrique IV, exceto as especiarias, cujo consumo, contudo, era bem menor do que hoje. Queimamos cem vezes mais velas, e compramos mais de metade da nossa cera no Exterior, porque negligenciamos as colmeias. Vemos cem vezes mais diamantes nas orelhas, pescoço e mãos das cidadãs de Paris e de nossas grandes cidades do que os possuíam todas as damas da corte de Henrique IV, inclusive a rainha. E essas coisas supérfluas foram pagas quase todas à vista. "Considere sobretudo que pagamos aos estrangeiros mais de 15 milhões das rendas do palácio da Prefeitura e que Henrique IV, ao subir ao trono, tendo encontrado cerca de 2 milhões ao todo nesse palácio imaginário, embolsou sensatamente uma parte para aliviar o Estado desse fardo. "Considere que as nossas guerras civis tinham derramado na França os tesouros do México, quando Don Phelippo, el Discreto, queria comprar a França, e que, desde então, as guerras estrangeiras nos aliviaram da metade do nosso dinheiro. "Eis as causas da nossa pobreza. Nós a disfarçamos sob lambris envernizados e com o artifício das modistas: somos pobres com bom gosto. Existem financistas, empreiteiros, comerciantes muito ricos; seus filhos, seus genros são muito ricos; a nação, em geral, não o é." Corretas ou erradas, as razões desse velho me causaram profunda impressão; pois o cura da minha paróquia, que sempre foi meu amigo, ensinou-me um pouco de geometria e história, e começo agora a refletir, coisa muito rara na minha província. Não sei se ele estava com a razão em tudo; porém, sendo eu bem pobre, não me foi difícil acreditar que possuía muitos companheiros. (Madame de Maintenon, que era em tudo um espírito muito aberto, salvo nos assuntos em que consultava o esperto e trapaceiro padre Gobelin, seu confessor, Madame de Maintenon, dizia eu, faz em uma de suas cartas o cálculo das despesas de seu irmão, mais a sua cunhada, no ano de 1680. O casal alugava uma casa confortável; os criados eram dez; possuíam quatro cavalos e dois cocheiros, um bom almoço todos os dias. Madame de Maintenon avalia o total em 9 mil francos por ano, e adiciona 3 mil libras para o jogo, o teatro, as fantasias e o luxo do casal. Seria agora preciso mais de quarenta mil libras para levar tal vida em Paris; bastariam seis mil no tempo de Henrique IV. Esse exemplo prova que o bom do velho não dizia nenhum disparate. Nota do Autor) 1. Falência do Homem dos Quarenta Escudos Comunico ao Universo que sou proprietário de uma terra que me proporcionaria uma renda líquida de quarenta escudos, se não fosse a taxa a que está sujeita. Surgiram vários decretos de algumas pessoas que, vivendo no ócio, governam o Estado do canto da sua lareira. O preâmbulo desses decretos dizia que "os poderes legislativo e executivo nasceram coproprietários da minha terra, por direito divino", e que eu lhes devo pelo menos metade do que como. Diante da enormidade do estômago do legislativo e do executivo, fiz um grande sinal da cruz. Que seria se esses poderes, que presidem à "ordem essencial das sociedades", possuíssem a minha terra toda? Um é ainda mais divino que o outro. Bem sabe o senhor inspetor-geral que eu pagava ao todo apenas doze libras; que era um fardo muito pesado para mim, e que eu teria sucumbido se Deus não me houvesse provido do talento de fazer cestos de vime, que me ajudavam a suportar a miséria. Como, pois, poderei entregar de uma só vez vinte escudos ao rei? Os novos ministros diziam, no seu preâmbulo, que só se devem taxar as terras, já que tudo vem da terra, até a chuva, e, por conseguinte, são somente os frutos da terra que devem imposto. Um de seus funcionários veio à minha casa por ocasião da última guerra; pediu-me, como minha cota de contribuição, três sesteiros de trigo e um saco de favas, num total de vinte escudos, para sustentar a guerra que faziam e cujo motivo eu nunca chegara a conhecer, tendo apenas ouvido dizer que, na tal guerra, nada havia a ganhar para o meu país, e muito a perder. Como então eu não tivesse nem trigo nem favas nem dinheiro, o legislativo e o executivo me colocaram na prisão; e fizeram a guerra do jeito que foi possível. Ao sair da prisão, não tendo mais que a pele em cima dos ossos, encontrei um homem rechonchudo e corado, numa carruagem de seis cavalos; tinha seis lacaios e pagava de ordenado a cada um o dobro da minha renda. Seu mordomo, tão vermelho quanto ele, recebia 2 mil francos, e roubava-lhe, por ano, 20 mil. Sua amante lhe custava 40 mil escudos em seis meses; eu o havia conhecido em outras épocas, no tempo em que ele possuía menos do que eu: confessou-me, para me consolar, que tinha 400 mil libras de renda. - Então pagas 200 mil libras ao Estado - eu lhe disse - para ajudar a vantajosa guerra que sustentamos; pois eu, que tenho exatamente 120 libras, devo pagar a metade delas. - Eu? Contribuir para as necessidades do Estado?! - exclamou ele. - Estás brincando, meu amigo: herdei de um tio que havia ganho 8 milhões em Cádiz e Surata; não possuo uma polegada de terra; todos os meus haveres consistem em contratos, em títulos; nada devo ao Estado: é a ti que compete entregar metade da tua subsistência, pois és um proprietário rural. Não compreendes que, se o ministro das Finanças exigisse de mim alguma ajuda para a pátria, não passaria de um imbecil incapaz de calcular? Pois tudo vem da terra; o dinheiro e os títulos não passam de símbolos: em lugar de arriscar no faraó cem sesteiros de trigo, cem bois, mil carneiros e duzentos sacos de aveia, jogo rolos de ouro que representam esses gêneros incômodos. Se, depois de cobrado o imposto único sobre esses gêneros, ainda me viessem pedir dinheiro, não vês que seria uma dupla operação, que seria exigir duas vezes a mesma coisa? Meu tio vendeu em Cádiz uns 2 milhões do vosso trigo e uns 2 milhões de tecidos fabricados com a vossa lã; ganhou mais de cem por cento nesses dois negócios. Bem compreendes que esse lucro foi auferido de terras já taxadas: o que o meu tio vos comprava aqui por dez soldos, vendia-o por mais de cinquenta francos no México, e, descontadas as despesas, voltou com 8 milhões. Percebe-se que seria uma terrível injustiça pedir-lhe alguns impostos sobre os dez soldos que ele vos deu. Se vinte sobrinhos como eu, cujos tios tivessem ganho, nos bons tempos, 8 milhões cada um, no México, em Buenos Aires, em Lima, em Surata ou Pondichéry, emprestassem cada um ao Estado apenas 200 mil francos, para as necessidades urgentes da pátria, isso somaria 4 milhões: que horror! Paga, pois, meu amigo, tu que desfrutas em paz de uma renda segura e líquida de quarenta escudos; serve bem à tua pátria, e vem algumas vezes cear com os meus servos. Essas razoáveis considerações muito me fizeram meditar, porém não me trouxeram nenhum consolo. 2. Conversação com um Geômetra Às vezes se dá que não se pode responder nada, embora não se esteja de acordo. Fica-se vencido mas não convencido. Sente-se no fundo da alma um escrúpulo, uma repugnância que nos impede de acreditar no que nos provaram. Demonstrou-nos um geômetra que, entre um círculo e uma tangente, podemos fazer passar uma infinidade de linhas curvas, mas não uma linha reta. Os nossos olhos, a nossa razão nos dizem o contrário. O geômetra respondeu-nos gravemente que se trata de um infinito de segunda ordem. Ficamos calados e nos retiramos estupefatos, sem nenhuma ideia nítida, sem nada compreender e sem nada replicar. Fomos então consultar um geômetra da maior confiança, que nos explicou o mistério. - Imaginamos - disse ele - o que não pode existir na natureza linhas que têm comprimento, mas não largura; é impossível, fisicamente falando, que uma linha real penetre outra. Nenhuma curva, ou nenhuma reta real, pode passar entre duas linhas reais que se tocam: trata-se de jogos do entendimento, de quimeras ideais; e a verdadeira geometria é a arte de medir as coisas existentes. Fiquei muito contente com a confissão desse sábio matemático, e comecei a rir, na minha desgraça, ao saber que havia charlatanismo até na ciência a que chamam de "alta ciência". O meu geômetra era um filósofo que se dignara conversar algumas vezes comigo na minha cabana. - O senhor tentou - disse-lhe eu - esclarecer os tolos de Paris quanto ao que mais interessa aos homens, a duração da vida humana. Só pelo senhor ficou sabendo o ministério o que deve dar aos rendeiros vitalícios, segundo as diferentes idades. Propôs-se fornecer às casas da cidade a água que lhes falta e salvar-nos enfim da vergonha e do ridículo de ouvirmos sempre clamar por água e de vermos mulheres, fechadas num arco, carregarem dois baldes de água, de quinze libras cada um, até um quarto andar. Tenha a bondade de dizer-me quantos animais de duas mãos e de dois pés existem na França. O Geômetra: - Calcula-se que existam aproximadamente 20 milhões, e eu prefiro adotar esse cálculo bastante provável, (Baseado nos memoriais dos intendentes, no final do século XVII, em combinação com o censo por domicílio, efetuado em 1753 por ordem do Sr. conde de Argenson, e principalmente com a obra deveras precisa do Sr. de Messance, efetuada sob as vistas do Sr. intendente de La Michaudiêre, um dos homens mais esclarecidos do seu tempo. Nota do Autor) à espera de que o verifiquem, o que seria fácil, e ainda não fizeram porque nunca se lembram de tudo. O Homem dos Quarenta Escudos: - Quantas jeiras calcula o senhor para o território de França? O Geômetra: - Cento e trinta milhões, sendo quase metade em estradas, cidades, vilas, landas, charnecas, pântanos, areias, terras estéreis, conventos inúteis, parques mais agradáveis que úteis, terrenos incultos, maus terrenos mal cultivados. Poder-se-iam reduzir as terras de boa produção a 75 milhões de jeiras quadradas; mas digamos 80 milhões: impossível fazer mais pela pátria. O Homem dos Quarenta Escudos: - Quanto pensa que cada jeira produz em média, num ano normal, em trigo, grãos de toda espécie, vinhos, madeiras, metais, gado, frutas, lã, leite e azeite, todas as despesas feitas, sem contar os impostos? O Geômetra: - Se produzir, cada uma, 25 libras, já é muito; consideremos, no entanto, trinta libras, para não desanimar os nossos cidadãos. Existem jeiras que produzem valores contínuos estimados em 300 libras; outras produzem três libras. A média proporcional entre três e trezentas é trinta: pois bem vê que três está para trinta como trinta está para trezentos. É verdade que, se existissem muitas jeiras de três libras e pouquíssimas de 300 libras, a nossa conta não valeria; mas, ainda uma vez, não quero fazer trapaça. O Homem dos Quarenta Escudos: - Então, senhor, quanto rendem, calculando em dinheiro, os 80 milhões de jeiras? O Geômetra: - Rendem, anualmente, 2 bilhões e 400 milhões de libras, ao câmbio atual. O Homem dos Quarenta Escudos: - Li que Salomão, só em dinheiro, possuía 25 bilhões; e com certeza não existem 2 bilhões e 400 milhões em circulação em França, que me consta ser muito maior e mais rica que o país de Salomão. O Geômetra: - Aí é que está o mistério: existem agora no reino talvez uns 900 milhões em circulação, e esse dinheiro, passando de mão em mão, dá para pagar todos os gêneros e todos os trabalhos; o mesmo escudo pode passar mil vezes do bolso do cultivador para o do taberneiro e o do funcionário. O Homem dos Quarenta Escudos: - Compreendo. Mas o senhor não me disse que somos 20 milhões de habitantes, entre homens e mulheres, crianças e velhos? Quanto cabe a cada um? O Geômetra: - Cento e vinte libras, ou quarenta escudos. O Homem dos Quarenta Escudos: - O senhor adivinhou a minha renda: possuo quatro jeiras que, entre os anos de descanso e os de produção, me valem 120 libras; é pouco. Mas se cada um possuísse uma parte igual, como na idade de ouro, não teria cada um senão cinco luíses de ouro por ano? O Geômetra: - Não mais, segundo o nosso cálculo, que eu arredondei um pouco. Tal é a condição humana. A vida e a fortuna são muito limitadas; em média, só se vive, em Paris, de 22 a 23 anos; e em média, só se dispõe de 120 libras por ano para gastar; isso significa que o seu alimento, o seu vestuário, a sua casa, os seus móveis são representados pela quantia de 120 libras. O Homem dos Quarenta Escudos: - Que é isso? Que lhe fiz eu, para que assim o senhor me tire a fortuna e a vida? É verdade que só tenho 23 anos de vida, a menos que roube a parte dos meus camaradas? O Geômetra: - Isso é incontestável na boa cidade de Paris; mas desses 23 anos, devem-se subtrair pelo menos dez anos da infância; pois a infância não é uma função da vida, é uma preparação: é o átrio do edifício, é a árvore que ainda não deu frutos, é a aurora de um dia. Subtraia dos treze anos que lhe restam o tempo do sono e do tédio, é pelo menos a metade; sobram seis anos e meio que o senhor gastará nos aborrecimentos, nas dores, em alguns prazeres e na esperança. O Homem dos Quarenta Escudos: - O seu cálculo só concede três anos de existência suportável. O Geômetra: - A culpa não é minha. Pouco se preocupa a natureza com os indivíduos. Existem insetos que só vivem um dia, mas cuja espécie dura para sempre. A natureza é como esses grandes príncipes que não levam em conta a perda de 400 mil homens, contanto que cheguem ao fim de seus augustos desígnios. O Homem dos Quarenta Escudos: - Quarenta escudos e três anos de vida! Que medida imagina o senhor contra essas suas maldições? O Geômetra: - Quanto à vida, seria preciso tornar mais puro o ar de Paris, que os homens comessem menos e fizessem mais exercícios, que as mães amamentassem os filhos, que as pessoas não fossem tão mal avisadas para temer a inoculação: é o que já tenho dito; e, quanto à fortuna, é só casar e fazer filhos. O Homem dos Quarenta Escudos: - Como? Quer dizer que o meio de viver comodamente é associar minha miséria à de outra pessoa? O Geômetra: - Cinco ou seis misérias juntas constituem uma situação bastante tolerável. Arranje uma boa mulher, dois rapazes e duas meninas apenas, o que renderá 720 libras para a sua casa, na hipótese de que haja justiça e cada indivíduo tenha 120 libras de renda. Seus filhos, quando pequenos, não lhe custam quase nada; grandes, vão aliviá-lo; seus auxílios mútuos lhe cobrem quase todas as despesas, e o senhor viverá muito venturosamente com toda a filosofia, contanto que esses senhores que governam o Estado não cometam a barbárie de extorquir a cada um vinte escudos por ano; mas a desgraça é que não mais estamos na idade de ouro, em que os homens, nascidos todos iguais, tinham igual parte nos generosos produtos de uma terra não cultivada. Já é muito que, hoje, cada criatura de duas mãos e dois pés possua um fundo de 120 libras de renda. O Homem dos Quarenta Escudos: - Ah! O senhor nos arruína. Dizia a pouco que, num país onde existem 80 milhões de jeiras de terra bastante boa e 20 milhões de habitantes, deve cada qual gozar de 120 libras de renda, e agora o senhor as tira de nós! O Geômetra: - Eu calculava pelos dados do século de ouro, quando se deve calcular pelo século de ferro. Existem muitos habitantes que não têm senão dez escudos de renda, outros que só têm quatro ou cinco, e mais de 6 milhões de homens que não têm absolutamente nada. O Homem dos Quarenta Escudos: - Mas esses morreriam de fome em três dias. O Geômetra: - De forma alguma; os outros, que possuem a sua porção, nos fazem trabalhar e a dividem com eles; é o que paga o teólogo, o confeiteiro, o boticário, o procurador, o comediante, o pregador e o cocheiro. O senhor se julga digno de lástima por não ter senão 120 libras para gastar anualmente, reduzidas e oito libras devido à taxa de doze francos; mas considere os soldados que dão o sangue pela pátria: a quatro soldos por dia, só dispõem de 73 libras, com as quais vivem alegremente, agrupando-se em alojamentos. O Homem dos Quarenta Escudos: - Quer dizer então que um ex-jesuíta ganha cinco vezes mais que um soldado. No entanto, os soldados prestaram mais serviços ao Estado, à vista do rei, em Fontenoy, em Laufelt, no cerco de Friburgo, do que jamais o fez o reverendo padre La Valette. O Geômetra: - Nada mais verdadeiro; e ainda assim, cada jesuíta tornado livre tem mais que gastar do que custava ao convento: existem até mesmo alguns que ganharam muito dinheiro fazendo brochuras contra os parlamentos, como o reverendo padre Patouillet e o reverendo padre Nonnotte. Cada qual se esforça neste mundo: um dirige uma fábrica de tecidos, outro de porcelana; aquele se dedica à ópera; este redige um jornal eclesiástico; este outro uma tragédia burguesa ou um romance ao gosto inglês; mantém o papeleiro, o vendedor de tinta, o livreiro, o mascate, que, não fora ele, estariam pedindo esmola. Afinal, é a devolução das 120 libras aos que nada possuem que faz florescer o Estado. O Homem dos Quarenta Escudos: - Bela maneira de florescer! O Geômetra: - Não existe outra: em todo país, o rico faz pobre viver. Eis a única fonte da indústria, do comércio. Quanto mais trabalhadora a nação, mais ganha do estrangeiro. Se conseguíssemos do estrangeiro 10 milhões anuais pelo comércio, dentro de vinte anos haveria 200 milhões a mais no Estado: seriam mais dez francos para distribuir lealmente a cada um; quer dizer que os negociantes fariam ganhar a cada pobre dez francos a mais, na esperança de obter lucros ainda mais substanciais. Mas o comércio tem seus limites, como a fertilidade da terra: a não ser assim, a progressão iria ao infinito; por outro lado, não é seguro que a balança comercial nos seja sempre favorável; há tempos em que perdemos. O Homem dos Quarenta Escudos: - Ouvi falar muito em população. Que aconteceria se nos puséssemos a fazer o dobro dos filhos que habitualmente fazemos, se a nossa pátria fosse povoada ao dobro, se tivéssemos 40 milhões de habitantes em vez de 20? O Geômetra: - Aconteceria que cada um só teria em média vinte escudos para gastar, ou seria preciso que a terra rendesse o dobro do que rende, ou houvesse o dobro de pobres, ou necessitaria haver o dobro de indústria e ganhar o dobro do estrangeiro, ou enviar metade da nação para a América, ou que metade da nação comesse a outra. O Homem dos Quarenta Escudos: - Contentemo-nos pois com os nossos 20 milhões de homens e as nossas 120 libras por cabeça, repartidas como Deus quer; mas essa situação é triste, e bem duro o seu século de ferro. O Geômetra: - Não existe nação alguma que esteja em melhores condições, e outras há que estão muito pior. Acredita que haja no norte com que dar o equivalente de 120 libras a cada habitante? Se possuíssem o equivalente, não teriam os hunos, godos, vândalos e francos desertado a sua pátria para estabelecer-se em outros lugares, a ferro e fogo. O Homem dos Quarenta Escudos: - Se o deixasse falar, o senhor em breve me convenceria de que eu sou muito feliz com os meus 120 francos. O Geômetra: - Se o senhor pensasse que é feliz, nesse caso o serra. O Homem dos Quarenta Escudos: - Impossível que alguém imagine ser o que não é, a menos que esteja louco. O Geômetra: - Já disse que o senhor, para sentir-se mais a gosto e mais feliz do que é, deveria tomar mulher; mas acrescentarei que esta também deverá ter 120 libras de renda, isto é, quatro jeiras a dez escudos a jeira. Os antigos romanos não tinham senão três. Seus filhos, se forem trabalhadores, poderão ganhar o mesmo cada um, trabalhando para os outros. O Homem dos Quarenta Escudos: - De modo que não poderão eles ter dinheiro sem que outros o percam? O Geômetra: - É a lei de todas as nações; só se respira por esse preço. O Homem dos Quarenta Escudos: - E ainda será preciso que minha mulher e eu entreguemos, cada um, metade da nossa colheita aos poderes legislativo e executivo, e que os novos ministros de Estado nos arrebatem metade do preço do nosso suor e da subsistência de nossos pobres filhos antes que possam ganhar a vida?! Diga-me a quanto monta o dinheiro de direito divino que os nossos ministros carregam para os cofres do rei. O Geômetra: - Paga o senhor vinte escudos por quatro jeiras que rendem quarenta. O rico que possui 400 jeiras pagará, por essa nova tarifa, 2 mil escudos, e os 80 milhões de jeiras renderão, para o rei, anualmente, 1 bilhão e 200 milhões de libras, ou 400 milhões de escudos. O Homem dos Quarenta Escudos: - Isso me parece impraticável e impossível. O Geômetra: - O senhor tem toda a razão, e tal impossibilidade é uma demonstração geométrica de que existe um vício fundamental de raciocínio nos planos dos novos ministros. O Homem dos Quarenta Escudos: - Não está também evidente uma prodigiosa injustiça no fato de me tomarem metade do meu trigo, do meu cânhamo, da lã de meus carneiros etc., e não exigirem nenhuma contribuição daqueles que terão ganho 10 ou 20 ou 30 mil libras de renda com o meu cânhamo, daqueles que fabricaram o tecido com a minha lã, daqueles que fizeram cobertas com o meu trigo, que terão vendido mais caro do que compraram? O Geômetra: - Tão evidente é a injustiça dessa administração quanto errôneo o seu cálculo. Cumpre que a indústria seja favorecida, mas cumpre que a indústria opulenta socorra o Estado. Essa indústria sem dúvida lhe tirou uma parte das suas 120 libras e delas se apropriou vendendo-lhe camisas e roupa vinte vezes mais caro do que lhe custariam se o senhor mesmo as tivesse feito. O fabricante, que enriqueceu à custa do senhor, deu, confesso-o, um salário aos respectivos operários, que nada possuíam de seu; mas reteve para si próprio, anualmente, uma soma que lhe valeu afinal 30 mil libras de renda: foi, pois, à custa do senhor que ele adquiriu a sua fortuna; o senhor nunca lhe poderá vender os seus gêneros tão caro que possa indenizar-se do que ele ganhou nas suas costas; pois, se tentasse essa alta, ele compraria no estrangeiro a preço mais conveniente. Uma prova de que isso é verdade é que ele continua sempre no gozo das suas 30 mil libras de renda, ao passo que o senhor fica com as suas 120 libras, que, longe de aumentar, seguidamente diminuem. É, portanto, necessário e justo que a indústria refinada do negociante pague mais do que a indústria grosseira do lavrador. O mesmo se dá com o recebedor dos juros públicos. Sua taxa era de doze francos antes que os nossos grandes ministros lhe tivessem tomado vinte escudos. Sobre esses doze francos ficava o publicano com dez soldos. Se há na sua província 500 mil almas, terá ele ganho 250 mil francos anuais. Que gaste cinquenta, é claro que ao fim de dez anos possuirá 2 milhões. É muito justo que ele contribua proporcionalmente, sem o que tudo estaria pervertido e desequilibrado. O Homem dos Quarenta Escudos: - Agradeço-lhe por haver taxado esse financeiro, isso alivia a minha imaginação. Mas, visto que ele aumentou tão lindamente o seu supérfluo, como poderei eu fazer para também aumentar minha pequena fortuna? O Geômetra: - Já lhe disse: casando-se, trabalhando, procurando tirar de sua terra mais alguns feixes do que ela lhe proporciona. O Homem dos Quarenta Escudos: - Na hipótese de que eu tenha trabalhado bastante, que toda a nação haja feito o mesmo, que o legislativo e executivo tenham angariado com isso maior tributo, quanto a nação terá ganho no fim do ano? O Geômetra: - Nada, a menos que tenha feito um útil comércio exterior: mas terá vivido mais comodamente. Cada qual, em proporção, terá tido mais vestuários, mais camisas, mais móveis do que antes. Terá havido no Estado uma circulação mais abundante, os salários terão sido aumentados, com o tempo, mais ou menos em proporção ao número das medas de trigo, das mãos de lã, dos couros de bois, cervos e cabras que tenham sido aproveitados, dos racimos que tenham ido para o lagar. Ter-se-á pago ao rei mais valores de gêneros e dinheiro, e o rei terá devolvido valores aos que houver feito trabalhar sob as suas ordens; mas não haverá um escudo a mais no reino. O Homem dos Quarenta Escudos: - Que restará então ao poder no fim do ano? O Geômetra: - Nada; é o que acontece a todo poder: não entesoura; foi alimentado, vestido, alojado, mobiliado; todo o mundo também o foi, cada qual conforme a sua condição. E, caso entesoure, arranca à circulação tanto dinheiro quanto acumulou; fez tantos desgraçados quantas porções de quarenta escudos meteu no cofre. O Homem dos Quarenta Escudos: - Mas esse grande Henrique IV não passava então de um vilão, de um grande ladrão, de um larápio; pois contaram-me que enfurnara na Bastilha mais de 50 milhões na moeda atual. O Geômetra: - Era um homem tão bom, tão prudente quão valoroso. Ia fazer uma guerra justa e, acumulando nos seus cofres 22 milhões na moeda da época, tendo ainda a receber mais outros vinte que deixava circular, poupava ao povo mais de cem milhões que lhe custaria se não houvesse tomado essas úteis medidas. Tornava-se moralmente seguro do sucesso contra um inimigo que não tomara as mesmas precauções. O cálculo das probabilidades era prodigiosamente em seu favor. Seus vinte e dois milhões entesourados provavam que havia então no reino o valor de vinte e dois milhões de excedente nos bens da terra; assim ninguém era prejudicado. O Homem dos Quarenta Escudos: - Bem que o meu velhote me havia dito que se era relativamente mais rico sob a administração do Duque de Sully que sob a dos novos ministros, que lançaram o imposto único e me tomaram vinte escudos sobre quarenta. Diga-me, há alguma nação no mundo que goze desse belo benefício do imposto único? O Geômetra: - Nenhuma nação opulenta. Os ingleses, que não riem nunca, puseram-se a rir quando souberam que pessoas inteligentes haviam proposto entre nós esse sistema. Os chineses exigem uma taxa de todos os vassalos negociantes que abordam em Cantão; os holandeses, quando admitidos no Japão, pagam tributo em Nagasáqui, sob o pretexto de que não são cristãos. Os lapões e samoenses são na verdade submetidos a um imposto único, em peles de marta; a República de São Marino só paga dízimos para sustentar o esplendor do Estado. Há na Europa uma nação famosa por sua equanimidade e valor, que não paga nenhuma taxa. É o povo helvético; mais eis o que aconteceu: esse povo pôs-se no lugar dos duques de Áustria e de Zeringue; os pequenos cantões são democráticos e muito pobres, cada habitante paga uma soma bastante módica, para as necessidades da pequena república. Nos cantões ricos, devem-se ao Estado os tributos que os arquiduques da Áustria e os senhores latifundiários exigiam; os cantões protestantes são o dobro mais ricos que os católicos, pois ali o Estado possui os bens que pertenceriam aos padres. Os que eram súditos dos duques da Áustria, dos duques de Zeringue e dos padres, hoje o são da pátria; pagam à pátria os mesmos dízimos, os mesmos direitos, os mesmos laudêmios que pagavam aos antigos senhores; e, como os súditos em geral têm pouco comércio, o negócio não é sujeito a nenhum tributo, exceto pequenos direitos de entrepostos: o que faz entrar algum dinheiro no seu país à nossa custa; exemplo tão único no mundo civilizado como o imposto estabelecido por nossos novos legisladores. O Homem dos Quarenta Escudos: - De modo que os suíços não são despojados da metade de seus bens por direito divino, e o que possui quatro vacas não entrega duas ao Estado? O Geômetra: - Não, com certeza. Num cantão, sobre treze tonéis de vinho, entrega-se um e bebem-se doze. Num outro cantão, paga-se a duodécima parte e bebem-se as onze restantes. O Homem dos Quarenta Escudos: - Ah! Que me façam suíço! Maldito esse iníquo imposto único, que me reduziu a pedir esmola! Mas trezentos ou quatrocentos impostos, que até os nomes é impossível reter e pronunciar, são acaso mais justos e honestos? Já houve legislador que, ao fundar um Estado, tenha imaginado delegados reais aferidores de carvão, avaliadores de vinho, inspetores de lenha, examinadores de porcos, fiscais de manteiga? Sustentar um exército de pândegos duas vezes mais numeroso que o de Alexandre, comandado por sessenta generais que requisitam tudo, que todos os dias conseguem assinaladas vitórias, que fazem prisioneiros e que às vezes os sacrificam no ar num tablado, como faziam os antigos citas, pelo que me disse o cura. Tal legislação, contra a qual se elevavam tantos clamores e que fazia derramar tantas lágrimas, acaso valia mais do que essa que de repente me tira, sem cerimônia, metade da minha subsistência? O Geômetra: Iliacos intra muros peccatur et extra. Est modus in rebus, caveas ne quid nimis. O Homem dos Quarenta Escudos: - Aprendi um pouco de história e geometria, mas não sei latim. O Geômetra: - Isso significa mais ou menos que o mal está de ambos os lados, que em tudo se deve guardar o meio-termo: nada de excessos. O Homem dos Quarenta Escudos: - Sim, nada de excessos; é o que acontece comigo; mas sucede que não tenho o suficiente. O Geômetra: - Convenho em que o senhor morrerá de fome, e eu também, e o Estado também, caso a nova administração dure apenas uns dois anos; mas é de esperar que Deus se compadeça de nós. O Homem dos Quarenta Escudos: - Passa-se a vida esperando e depois se morre. Adeus, o senhor me esclareceu, mas fiquei com o coração partido. O Geômetra: - É muitas vezes o fruto da ciência. 3. Aventura com um Carmelita Após agradecer convenientemente os esclarecimentos que me foram dados pelo sócio da Academia de Ciências, retirei-me maravilhado, porém murmurando entre os dentes estas tristes palavras: "Somente vinte escudos com que viver, e apenas 22 anos! Meu Deus, quem dera que a nossa vida fosse ainda mais curta, já que é tão infeliz!". Logo me encontrei diante de uma casa magnífica. Já sentia fome; não tinha nem ao menos a centésima vigésima parte do que toca, de direito, a cada indivíduo; mas quando me disseram que aquele palácio era o convento dos reverendos carmelitas descalços, enchi-me das maiores esperanças e disse com os meus botões: "Visto que esses santos são tão humildes a ponto de andar descalços, hão de ser bastante caridosos para me darem de comer". Bati; apareceu um carmelita: - Que desejas, meu filho? - Pão, meu reverendo; os novos editos me tiraram tudo. - Meu filho, nós pedimos esmola, não a damos. - Como?! Então o vosso santo instituto vos ordena não usar sapatos, e tendes uma casa principesca, e ainda me recusais comida?! - É verdade que não usamos sapatos nem meias, meu filho, é uma despesa a menos; mas não sentimos mais frio nos pés do que nas mãos; e, se o nosso santo instituto nos tivesse ordenado que andássemos de bunda de fora, não sentiríamos frio no traseiro. Quanto à nossa bela casa, construímo-la com toda a facilidade, pois temos 100 mil libras de renda em casas na mesma rua. - Ah, ah! Então me deixam morrer de fome e possuem 100 mil libras de renda?! Quer dizer então que pagam 50 mil ao novo governo? - Deus nos livre de pagar um óbolo! Só o produto da terra cultivada por mãos laboriosas, endurecidas de calos e molhadas de lágrimas, é que deve tributos aos poderes legislativo e executivo. As esmolas que nos foram dadas habilitaram-nos a construir essas casas das quais auferimos 100 mil libras anuais. Mas essas esmolas provêm dos frutos da terra, que já pagaram tributo, e o tributo não deve ser pago duas vezes. Tais esmolas santificaram os fiéis que empobreceram enriquecendo-nos; e nós continuamos a pedir esmola e a pôr em contribuição o Faubourg Saint-Germain, para santificar ainda mais os fiéis. Após dizer isso, o carmelita fechou a porta na minha cara. Passei pelo quartel dos mosqueteiros; contei a história a um desses senhores: eles me deram um bom almoço e um escudo. Um deles propôs que incendiassem o convento; mas um mosqueteiro mais sensato provou-lhe que ainda não era chegada a hora, e pediu-lhe para esperar uns dois ou três anos. 4. Audiência do Sr. Inspetor-Geral Decidi, com o meu escudo, apresentar um requerimento ao Sr. inspetor-geral, que concedia audiência naquele dia. Sua antessala estava cheia de pessoas de toda espécie. Havia sobretudo rostos ainda mais rechonchudos, barrigas mais empinadas, fisionomias mais altivas que as do meu homem dos 8 milhões. Não ousava aproximar-me; via-os, e eles não me viam. Um monge, grande dizimeiro, intentara um processo contra cidadãos a quem chamava de "seus camponeses". Tinha mais rendimentos que a metade de seus paroquianos; e ainda por cima era o senhor feudal. Pretendia que seus vassalos, tendo transformado com grande dificuldade os pântanos em vinhedos, deviam-lhe a décima parte do vinho que produziam, o que constituía, contando o preço do trabalho e do material, mais da quarta parte da colheita. - Mas como as dízimas - dizia ele - são de direito divino, peço o quarto da renda dos meus camponeses em nome de Deus. - Bem vejo - disse o ministro - quanto o senhor é caridoso. Disse então um arrendatário de impostos, muito hábil no seu ofício: - Senhor, essa aldeia nada pode dar a esse monge; pois, tendo ele obrigado os paroquianos a pagar, no ano passado, 32 impostos sobre o vinho, condenando-os em seguida a pagar o excesso de consumo, acham-se os pobres completamente arruinados. Fiz com que vendessem os animais e os móveis, e ainda são meus devedores. Oponho-me às pretensões do reverendo padre. - Tem razão de ser seu rival- replicou o ministro. - Tanto um como o outro amam o próximo, e ambos me edificam. Um terceiro, monge e senhor, cujos camponeses são inalienáveis, esperava também uma decisão do conselho que o tornas-se possuidor de todos os bens de um indivíduo de Paris, que, tendo, por inadvertência, permanecido um ano e um dia numa casa sujeita àquela servidão e encravada nos Estados dele, padre, ali falecera. O ministro achou o monge tão justo e brando de coração como os dois primeiros. Um quarto, que era fiscal do domínio, apresentou um belo memorial, com que se justificava de haver reduzido vinte famílias à miséria. Tinham elas herdado de tios ou tias, irmãos ou primos; fora preciso pagar os competentes direitos. O senhor generosamente lhes provou que não tinham avaliado com exatidão a sua herança; que eram muito mais ricas do que supunham; e, tendo-as, por conseguinte, condenado à multa do triplo, arruinando-as nas custas, e prendendo os chefes de família, compara-lhes as melhores propriedades, sem desembolsar coisa alguma. Disse-lhe então o inspetor-geral (em um tom na verdade um pouco amargo): - Euge! Fiscal bone et fidelis, quia super pauca fuisti fidelis rendeiro geral te constituam. (Fiz com que um sábio de quarenta escudos me explicasse tais palavras, que muito me divertiram. Nota do Autor) Mas cochichou a um referendário que se encontrava a seu lado: - Essas sanguessugas, sagradas ou profanas, devem ser obrigadas a vomitar: já é tempo de aliviar o povo, que, se não fosse a nossa assistência e equidade, nunca teria com que viver senão no outro mundo. (Caso semelhante ocorreu na província onde moro, tendo sido o fiscal do domínio obrigado a restituir; mas não foi punido. Nota do Autor) Homens de gênio profundo apresentaram-lhe projetos. Imaginara um lançar impostos sobre a inteligência. - Todos - dizia ele - se apressarão a pagar, pois ninguém quer passar por tolo. - Declaro-o isento do imposto - retrucou-lhe o ministro. Outro propôs estabelecer o imposto único sobre as canções e o riso, visto que a nação era a mais alegre do mundo e que uma canção a consolava de tudo. Mas o ministro observou que havia tempo que não faziam canções alegres, e mostrou-se receoso de que, para escapar ao imposto, todo mundo se tornasse demasiado sério. Surgiu um sábio e excelente cidadão que planejava fazer com que o rei recebesse três vezes mais, pagando o povo três vezes menos. O ministro aconselhou-o a que fosse aprender aritmética. Um quarto provava ao rei, por amizade, que este não podia recolher senão 75 milhões, mas que ele lhe iria proporcionar 225. - Isso muito nos beneficiará - respondeu o ministro - quando tivermos pago as dívidas do Estado. Chegou por fim um representante do novo autor que torna o poder legislativo coproprietário de todas as nossas terras, por direito divino, e que garantia ao rei 1 bilhão e 200 milhões de renda. Reconheci o homem que havia me mandado para a prisão por não ter pago os meus vinte escudos. Joguei-me aos pés do Sr. inspetor-geral e pedi-lhe justiça; ele deu uma gargalhada e disse-me que me haviam pregado uma peça. Ordenou àqueles brincalhões de mau gosto que me dessem 100 escudos de indenização, e dispensou-me da taxa para o resto da vida. - Deus o abençoe, senhor! - eu lhe disse. 5. Carta ao Homem dos Quarenta Escudos Apesar de eu ser três vezes mais rico que o senhor, ou seja, apesar de ter 360 libras ou francos de renda, escrevo-lhe de igual para igual, sem aparentar o orgulho das grandes fortunas. Li a história do seu desastre e da justiça que lhe fez o inspetor-geral. Meus cumprimentos. Mas por azar acabo de ler Le Financier Citoyen, apesar da repugnância que me causara o título, que a muita gente parece contraditório. Esse cidadão lhe tira vinte francos da sua renda e a mim, sessenta: apenas concede cem francos a cada indivíduo, na totalidade dos habitantes. Mas, em compensação, um homem não menos ilustre eleva as nossas rendas até 150 libras; vejo que o seu geômetra preferiu o meio-termo. Não é desses magníficos senhores que, com uma penada, povoam Paris de 1 milhão de habitantes, e fazem circular pelo reino 1 bilhão e meio de metal sonante, depois de tudo o que perdemos nas últimas guerras. Como sei que é um grande leitor, emprestar-lhe-ei Le Financier Citoyen. Mas não confie nele em tudo: cita o testamento do grande ministro Colbert, e não sabe que se trata de uma rapsódia ridícula feita por tal Gatien de Courtilz; cita a Dízima do marechal de Vauban, e não sabe que é de um tal Boisguibert; cita o testamento do cardeal de Richelieu, e não sabe que é do abade de Bourzeís. Supõe haver dito esse cardeal que "quando a carne encarece, paga-se mais ao soldado". Contudo, a carne subiu muito sob o seu ministério, e o pagamento do soldado não aumentou; o que prova, independentemente de cem outras provas, que esse livro, tido por apócrifo ao aparecer, e depois atribuído ao próprio cardeal, é tanto seu como os testamentos do cardeal Alberoni e do marechal de Belle-Isle. Desconfie sempre dos testamentos e dos sistemas; já fui vítima deles como o senhor. Se os Sólons e Licurgos modernos zombaram do senhor, ainda mais zombaram de mim os novos Triptólemos; e, não fosse uma pequena herança que me reanimou, teria eu morri do de miséria. Possuo 120 jeiras na mais bela região da natureza e no solo mais ingrato. Cada jeira, na minha terra, descontadas as despesas, só rende um escudo de três libras. Mal vi nos jornais que um famoso agricultor inventara uma nova semeadeira, e que lavrava as suas terras por tabuleiros a fim de que, semeando menos, colhesse mais, apressei-me em tomar dinheiro emprestado, comprei uma semeadeira, lavrei por tabuleiros; perdi o dinheiro e o trabalho, bem como o ilustre agricultor, que não mais semeia por tabuleiros. Quis a minha má sorte que eu lesse o Journal Économique, que se vende no Boudot, em Paris. Dei com os olhos na experiência de um engenhoso parisiense que, para se distrair, mandara lavrar quinze vezes o seu jardim, ali plantando trigo, em vez de tulipas: fez uma colheita abundantíssima. Arranjei mais dinheiro emprestado. "Basta fazer quinze lavras", dizia eu comigo, "e terei o dobro da colheita desse digno parisiense que descobriu princípios de agricultura na ópera e na comédia, e eis-me enriquecido com as suas lições e o seu exemplo”. Na minha terra, lavrar quatro vezes que seja é uma coisa impossível; o rigor e as súbitas mudanças das estações não o permitem; por outro lado, a desgraça de semear por tabuleiro, como o ilustre agricultor de que falei, forçara-me a vender a minha atrelagem. Mandei lavrar trinta vezes as minhas 120 jeiras por todas as charruas de quatro léguas ao redor. Três lavouras para cada jeira me custaram 120 libras: a das minhas 120 jeiras importou em 14.400 libras. Minha colheita, que monta, num ano normal, em minha maldita terra, a trezentos sesteiros, subiu, é verdade, a 330, o que, a vinte libras o sesteiro, me rendeu 6.600 libras: perdi 7.800 libras. Estava arruinado, perdido, se não fora uma velha tia que um grande médico despachou para o outro mundo, raciocinando tão bem em medicina como eu em agricultura. Quem diria que eu ainda havia de ter a fraqueza de me deixar seduzir pelo Journal de Boudot? Esse homem, afinal de contas, não havia jurado a minha perdição. Li na referida publicação que bastava inverter 4 mil francos para conseguir 4 mil libras de renda em alcachofras. Ora, pois, com certeza Boudot me devolverá em alcachofras o que me fez perder em trigo. E eis os meus 4 mil francos despendidos e as minhas alcachofras devoradas pelas ratazanas. Fui vaiado no meu cantão como o diabo de Papefiguière. Escrevi uma violenta carta de censura a Boudot. Como única resposta, o bandido divertiu-se à minha custa, no seu Journal. Negou-me impudentemente que os caraíbas fossem vermelhos. Vi-me obrigado a enviar-lhe o testemunho de um antigo procurador do rei de Guadalupe, de como Deus fez vermelhos os caraíbas, como fez pretos os negros. Mas essa pequena vitória não me impediu de perder, até o último centavo, toda a herança de minha tia, por haver acreditado demasiadamente nos novos sistemas. Cuidado, meu caro senhor, cuidado com os charlatães. 6. Novas Contrariedades Causadas pelos Novos Sistemas (Trecho extraído dos manuscritos de um velho solitário) Noto que, se bons cidadãos se divertiram em governar os Estados e colocar-se no lugar dos reis, se outros julgaram Triptólemos e Ceres, outros existiram, mais ambiciosos, que se puseram sem cerimônia no lugar de Deus e criaram o Universo com a pena, como Deus criou outrora o verbo. Um dos primeiros que se apresentaram à minha adoração foi um descendente de Tales, chamado Téliamed, que me fez saber que as montanhas e os homens são produzidos pelas águas do mar. Houve primeiro belos homens marinhos, que depois se tornaram anfíbios. A sua bela cauda bipartida se transformou em pernas. Estava eu ainda sob a impressão das Metamorfoses, de Ovídio, e de um livro onde se demonstrava que a raça dos homens era bastarda de uma raça de babuínos: tanto me importava descender de um peixe como de um macaco. Com o tempo, vieram-me dúvidas quanto a essa genealogia e até no que diz respeito à formação das montanhas. - Como?! - disse-me ele. - Não sabe então que as correntes marinhas, que amontoam continuamente areia a dez ou doze pés de altura quando muito, produziram, no decorrer de longos séculos, montanhas de 20 mil pés de altura, as quais não são de areia? Fique sabendo que o mar já cobriu necessariamente toda a superfície do globo. A prova está em que se viram âncoras de navio sobre o monte São Bernardo, que ali se encontravam vários séculos antes que os homens tivessem navios. Imagine que a terra é um globo de vidro que foi por muito tempo todo coberto de água. Quanto mais ele me doutrinava, mais incrédulo eu me tornava. - Pois então não viu - disse-me ele - o fálum de Touraine, a 36 léguas do mar? É um acúmulo de conchas com as quais se aduba a terra, como com esterco. Ora, se o mar depositou, na sucessão dos tempos, uma mina inteira de conchas a trinta e seis léguas do oceano, por que não se terá estendido até 3 mil léguas, durante vários séculos, sobre nosso globo de vidro? - Sr. Téliamed - respondi-lhe -, há pessoas que fazem quinze léguas por dia a pé, mas não podem fazer cinquenta. Não creio que o meu jardim seja de vidro, e, quanto ao seu fálum, continuo a duvidar de que seja um leito de conchas marinhas. Bem podia ser que não passasse de um depósito de pequenas pedras calcárias que tomam facilmente a forma de fragmentos de conchas, como há pedras que tomaram a configuração de línguas e que não são línguas; de estrelas, e que não são astros; de serpentes enroscadas, e que não são serpentes; e de partes naturais do belo sexo, e que no entanto não são despojos das damas. Veem-se dendritos, pedras figuradas, que representam árvores e casas, sem que jamais essas pequenas pedras tenham sido casas e carvalhos. Se o mar depositou tantos leitos de conchas na Touraine, por que teria negligenciado a Bretanha, a Normandia, a Picardia, e todas as outras costas? Receio que esse fálum tão gabado provenha tanto do mar como os homens. E, mesmo que o mar se expandisse trinta e seis léguas, não quer dizer que o tenha feito até três mil, ou trezentas mil, e que todas as montanhas foram produzidas pelas águas. Tanto faz dizer que o Cáucaso formou o mar como pretender que o mar formou o Cáucaso. - Mas que me diz, senhor incrédulo, das ostras petrificadas que foram encontradas no cume dos Alpes? - Direi, senhor criador, que não vi mais ostras petrificadas que âncoras de navio no alto do monte Cinéreo. Direi o que já se disse, que se encontraram conchas de ostras (as quais facilmente se petrificam) a grandes distâncias do mar, como se desenterraram medalhas romanas a cem léguas de Roma; e prefiro acreditar que peregrinos de St. Jacques abandonaram algumas conchas a caminho de St. Maurice a imaginar que o mar formou o monte São Bernardo. Há conchas por toda a parte; mas não se poderá afirmar que são despojos de testáceos e crustáceos dos nossos lagos, tanto como de pequenos animais marinhos? - Senhor incrédulo, olhe que o porei a ridículo no mundo que me proponho criar! - Senhor criador, faça o que bem entender; cada qual é senhor no seu mundo; mas nunca me fará acreditar que este em que estamos seja de vidro, nem que algumas conchas sejam prova de que o mar produziu os Alpes e o monte Taurus. Bem sabe que não há nenhuma concha nas montanhas da América. Com certeza não foi o senhor quem criou aquele hemisfério, e deve contentar-se em haver formado este velho mundo: já é bastante. - Senhor, senhor, se não descobriram conchas nas montanhas da América, haverão de descobri-las. - Isso é que é falar como criador, que conhece o seu segredo e está seguro do que faz. Deixo-lhe, pois, o seu fálum, desde que o senhor me deixe as minhas montanhas. Aliás declaro-me humilde e obediente servo de Vossa Providência. Senhor no tempo em que assim me instruía com Téliamed, um jesuíta irlandês disfarçado de homem, aliás grande observador, e que tinha bons microscópios, fez enguias com farinha de trigo mofado. Não mais se duvidou então de que fosse possível fazer homens com farinha de bom trigo. Logo se criaram partículas orgânicas que constituíram homens. Por que não? O grande geômetra Fatio havia ressuscitado mortos em Londres; com a mesma facilidade podiam-se fazer criaturas vivas, em Paris, com partículas orgânicas; mas, havendo infelizmente desaparecido as novas enguias de Nedhan, os novos homens também desapareceram e fugiram para as mônadas que encontraram em meio da matéria sutil, globulosa e estriada. Não que esses criadores de sistemas não hajam prestado grandes serviços à física; Deus me livre de menosprezar os seus trabalhos! Já os compararam a esses alquimistas que, fabricando ouro (que não se fabrica), descobriram bons remédios ou pelo menos coisas bastante curiosas. Pode alguém ser um homem de raro mérito e enganar-se quanto à formação dos animais ou à estrutura do globo. Os peixes transformados em homens, as águas transformadas em montanhas não me haviam causado tanto mal quanto o Sr. Boudot; limitava-se tranquilamente a duvidar, quando um lapônio me tomou sob a sua proteção. Era um profundo filósofo, mas que jamais perdoava aos que não pensavam como ele. Fez-me, a princípio, ver claramente o futuro, exaltando minha alma. Fiz tão prodigiosos esforços de exaltação, que adoeci; mas ele curou-me, untando-me de piche da cabeça aos pés. Mal me vi em condições de andar, propôs-me uma viagem às terras austrais, para ali dissecar cabeças de gigantes, o que nos faria conhecer claramente a natureza da alma. Como eu não podia suportar o mar, teve a bondade de levar-me por terra. Mandou cavar um grande túnel no globo terráqueo: esse túnel ia dar direito na Patagônia. Partimos; quebrei uma perna à entrada do túnel; tiveram enorme dificuldade em encaná-la: formou-se um calo que me aliviou bastante. Já falei de tudo isso em uma de minhas diatribes, para instruir o Universo atento a essas grandes coisas. Estou muito velho; gosto às vezes de repetir as minhas histórias, para melhor as inculcar na cabeça dos meninos, para os quais trabalho há tanto tempo. 7. Casamento do Homem dos Quarenta Escudos Já suficientemente instruído, e tendo amealhado uma pequena fortuna, o Homem dos Quarenta Escudos casou com uma linda moça que possuía cem escudos de renda. Sua esposa logo ficou grávida. Ele foi procurar o seu geômetra, e perguntou-lhe se ela lhe daria um menino ou uma menina. Respondeu-lhe o geômetra que as parteiras e as criadas em geral o sabiam, mas que os físicos, que predizem os eclipses, não eram tão esclarecidos quanto elas. Quis saber depois se o seu filho ou filha já possuía uma alma. O geômetra disse-lhe que isso não era da sua competência e que fosse falar com o teólogo da esquina. O Homem dos Quarenta Escudos, que já o era no mínimo dos duzentos, perguntou em que local se encontrava seu filho. - Numa pequena bolsa - disse-lhe o amigo - entre a bexiga e o intestino reto. - Santo Deus! - exclamou ele. - A alma imortal de um filho nascida e alojada entre a urina e algo pior! - Sim, meu caro vizinho, a alma de um cardeal não teve outro berço; e com tudo isso ainda se fazem de arrogantes e dão-se ares. - Ah, senhor sábio, não me poderia me dizer como se formam os filhos? - Não, meu amigo; mas, se quiser, dir-lhe-ei o que os filósofos imaginaram, ou seja, como os filhos não se formam. Em primeiro lugar o reverendo padre Sánchez, no seu excelente livro De Matrimonio, é da mesma opinião de Hipócrates; crê, como artigo de fé, que os dois veículos fluidos do homem e da mulher se lançam e unem-se e que, em tal momento, o filho é concebido por essa união; tão convencido está desse sistema físico, tornado teológico, que o examina no capítulo XXI do livro segundo: "Uterum virgo Maria semen emiserit in copulatione cum Spiritu Sancto". - Ai, senhor, já lhe disse que não entendo latim; explique-me em francês o oráculo do padre Sánchez. O geômetra lhe traduziu o texto e ambos fremiram de horror. O recém-casado, achando Sánchez prodigiosamente ridículo, ficou, contudo, muito satisfeito com Hipócrates; e estimava que sua mulher houvesse preenchido todas as condições impostas por aquele médico para fazer um filho. - Infelizmente - disse-lhe o vizinho -, há muitas mulheres que não expandem nenhum licor, que só recebem com aversão as carícias maritais, e no entanto têm filhos. Só isso decide contra Hipócrates e Sánchez. De resto, tudo leva a crer que a natureza age sempre nos mesmos casos pelos mesmos princípios; ora, há muitas espécies de animais que engendram sem cópula, como os peixes escamados, as ostras, os pulgões. Tiveram pois os físicos de procurar uma mecânica de gerações que conviesse a todos os animais. O famoso Harvey, que primeiro demonstrou a circulação, e que era digno de descobrir o segredo da natureza, julgou tê-lo encontrado nas galinhas: estas põem ovos; ele concluiu que as mulheres também os punham. Os gracejadores de mau gosto disseram que era por isso que os burgueses, e até alguns cortesãos, chamam a mulher, ou a amante, de "minha franguinha", e quando se diz que as mulheres são galantes, é porque elas desejariam que os galos lhes arrastassem a asa. Apesar dessas zombarias, Harvey não mudou de opinião, e ficou estabelecido em toda a Europa que nós nos originamos de um ovo. O Homem dos Quarenta Escudos: - Mas o senhor me disse que a natureza é sempre semelhante a si mesma, que age sempre pelo mesmo princípio no mesmo caso: as mulheres, as éguas, as mulas, as enguias não põem; o senhor está brincando. O Geômetra: - Elas não põem para fora, mas põem para dentro; têm ovários como todas as aves; as éguas, as enguias também os têm. Um ovo se destaca do ovário; é chocado na matriz. Veja todos os peixes escamados, as rãs; lançam ovos que o macho fecunda. As baleias e os outros animais marinhos dessa espécie fazem brotar os ovos na matriz. As traças, os mais vis insetos, são visivelmente formados de um ovo: tudo vem de um ovo; e o nosso globo é um grande ovo que contém todos os outros. O Homem dos Quarenta Escudos: - Palavra! Esse sistema tem todas as características da verdade; é simples, é uniforme, é claro em mais de metade dos animais. Estou satisfeito, não quero outro. Nada me é mais caro do que os ovos de minha mulher. O Geômetra: - Afinal, cansaram-se desse sistema: e começaram a fazer filhos de outra forma. O Homem dos Quarenta Escudos: - E por quê? Essa forma não é tão natural? O Geômetra: - É que pretenderam que as nossas mulheres não têm ovários, mas somente pequenas glândulas. O Homem dos Quarenta Escudos: - Com certeza pessoas que tinham outro sistema preparado quiseram desacreditar os ovos. O Geômetra: - Pode ser. Dois holandeses deram para examinar, ao microscópio, o licor seminal do homem e de vários animais e julgaram perceber animais já formados que corriam com inconcebível rapidez. Descobriram-nos até no fluido seminal do galo. Julgou-se então que os machos faziam tudo e as fêmeas, nada; estas só serviam para carregar o tesouro que o macho lhes confiara. O Homem dos Quarenta Escudos: - É muito estranho isso. Tenho algumas dúvidas sobre todos esses animaizinhos que se agitam tão prodigiosamente em um licor, para ficarem em seguida imobilizados nos ovos dos pássaros, e não menos imóveis durante nove meses (fora alguns solavancos) no ventre da mulher; isso não me parece consequente. Não é essa (pelo que posso julgar) a marcha da natureza. E como são esses homenzinhos que nadam tão bem no licor de que me fala? O Geômetra: - São como vermes. Havia sobretudo um médico chamado Andry que via vermes por toda a parte e que queria absolutamente destruir o sistema de Harvey. Teria, se pudesse, acabado com a circulação do sangue, porque o outro a havia descoberto. Enfim, dois holandeses e o Sr. Andry, à força de cair no pecado de Onan e examinar coisas no microscópio, reduziram o homem a lagarta. Somos, no princípio, um verme, como ela; depois, no nosso invólucro, tornamo-nos, como ela, durante nove meses, uma verdadeira crisálida, que os campônios chamam "fava". Em seguida, se a lagarta se torna borboleta, nós nos tornamos homens: eis as nossas metamorfoses. O Homem dos Quarenta Escudos: - E a coisa parou aí? Não veio depois nova moda? O Geômetra: - O pessoal se cansou de ser lagarto. Um filósofo extremamente divertido descobriu, em uma Vênus Física, que a atração é que fazia os filhos, eis como a coisa funciona. Tombado o germe na matriz, o olho direito atrai o olho esquerdo, que chega para se unir a ele na qualidade de olho; mas é impedido pelo nariz, que topa no caminho, e que o obriga a colocar-se à esquerda. O mesmo acontece com os braços e pernas. É difícil explicar, em tal hipótese, a situação dos mamilos e das nádegas. Esse grande filósofo não admite nenhum desígnio do Ser criador na formação dos animais. Está longe de acreditar que o coração seja feito para receber o sangue e expeli-lo, o estômago para digerir, os olhos para ver, os ouvidos para ouvir: isso lhe parece demasiado vulgar; tudo se faz por atração. O Homem dos Quarenta Escudos: - Um louco varrido, é evidente. Espero que ninguém haja adotado uma teoria tão extravagante. O Geômetra: - Riram muito, até; mas o triste é que esse insensato se assemelhava aos teólogos, que perseguem o mais que podem aqueles a quem fazem rir. Outros filósofos imaginaram outras maneiras, que não fizeram muito sucesso: não é mais o braço que vai procurar o braço, não mais a coxa que corre atrás da coxa; são pequenas moléculas, pequenas partículas de braço e coxa que se colocam umas sobre as outras. Pode ser que um dia, depois de tanto tempo perdido, sejamos obrigados a voltar aos ovos. O Homem dos Quarenta Escudos: - Estimo muito; mas qual foi o resultado de todas essas disputas? O Geômetra: - A dúvida. Se a questão fosse debatida entre teólogos, haveria excomunhões e derramamento de sangue; mas, entre físicos, logo se estabelece a paz; cada qual foi deitar com a respectiva mulher, sem se preocupar absolutamente com os seus ovários ou as suas trompas de Falópio. As mulheres engravidaram, sem ao menos perguntar como se dá esse mistério. É assim que semeamos trigo e ignoramos como o trigo germina na terra. O Homem dos Quarenta Escudos: - Oh! Eu sei; disseram-me há muito tempo: é por apodrecimento. Mas às vezes me dá vontade de rir de tudo o que me disseram. O Geômetra: - É uma excelente disposição. Aconselho-o a duvidar de tudo, salvo de que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos e que os triângulos que têm igual base e igual altura são iguais entre si, ou outras proposições semelhantes, como, por exemplo, que dois e dois são quatro. O Homem dos Quarenta Escudos: - Sim, acredito que seja muito sensato duvidar; mas eu me sinto curioso depois que fiz fortuna e que disponho de lazeres. Gostaria, quando a minha vontade move o meu braço ou a minha perna, de descobrir a mola que os move. Sinto-me às vezes perplexo diante do fato de poder erguer e baixar os olhos e não poder mover as orelhas. Eu penso, e desejaria conhecer um pouco... isto aqui... tocar com o dedo o meu pensamento. Deve ser muito interessante. Pergunto-me se penso por mim mesmo, se Deus me dá as minhas ideias, se minha alma veio para o meu corpo no prazo de seis semanas ou de um dia, e como se alojou no meu cérebro; se penso muito quando durmo profundamente, e quando estou letárgico. Rebento os miolos para saber como um corpo produz outro corpo. As minhas sensações não me espantam menos: encontro nelas algo de divino, e principalmente no prazer. Às vezes me esforço para imaginar um novo sentido, e nunca consegui. Os geômetras sabem todas essas coisas; tenha a bondade de me instruir. O Geômetra: - Ai de nós, somos tão ignorantes quanto o senhor: dirija-se à Sorbonne. 8. O Homem dos Quarenta Escudos Torna-se Pai e Discorre a Respeito dos Monges Ao se tornar pai de um menino, o Homem dos Quarenta Escudos começou a achar que tinha algum peso no Estado; esperava fornecer pelo menos dez súditos ao rei, e todos úteis. Era o melhor cesteiro do mundo, e sua esposa, uma ótima costureira. Ela havia nascido nas proximidades de uma grande abadia de 100 mil libras de renda. Um dia seu marido me perguntou por que razão aqueles senhores, que eram tão pouco numerosos, tinham embolsado tantas porções de quarenta escudos. - Eles são mais úteis à pátria do que eu? - Não, meu caro vizinho. - Contribuem, como eu, para o povoamento do país? - Não, ao menos aparentemente. - Cultivam a terra? Defendem o Estado quando este sofre uma agressão? - Não, rezam pelo senhor. - Pois bem! Eu rezarei por eles, e dividamos. Quantos desses úteis indivíduos, entre homens e mulheres, guardam os conventos do reino? - Segundo os memoriais dos intendentes de fins do século passado, existiam cerca de 90 mil. - Por nossa velha conta, a quarenta escudos por cabeça, eles só deveriam possuir 10 milhões e 800 mil libras. Quanto possuem? - Uns 50 milhões, contando as missas e coletas dos monges mendicantes, que na verdade oneram bastante o povo. Um irmão pedinte de um convento de Paris vangloriou-se publicamente de que a sua sacola fornecia 80 mil libras de renda. - E divididos os 50 milhões pelas 90 mil cabeças tonsuradas, quando toca a cada uma? - Quinhentas e cinquenta e cinco libras. É uma soma considerável numa sociedade numerosa, em que as despesas diminuem devido à própria quantidade dos consumidores; pois custa muito menos a dez pessoas viverem juntas do que se cada uma tivesse o teto e a mesa separadamente. - E os ex-jesuítas, a quem dão hoje 400 libras de pensão, perderam então nesse negócio? - Não acredito: pois estão quase todos morando com parentes que os ajudam; vários dizem missa em troca de dinheiro, o que não faziam antes; outros se tornaram preceptores, outros são sustentados por devotas, e cada qual se arranjou à sua maneira; e talvez poucos existam hoje que, tendo experimentado o mundo e a liberdade, queiram retomar as antigas cadeias. A vida monacal, por mais que se diga, não é de todo invejável. É máxima bastante conhecida que os monges são criaturas que se unem sem conhecer-se, vivem sem estimar-se e morrem sem se lamentarem. - Acha então que se lhes prestaria um grande serviço desfradando-os a todos? - Ganhariam bastante, sem dúvida, e o Estado ainda mais; seriam devolvidos à pátria cidadãos e cidadãs que sacrificaram temerariamente a sua liberdade em uma época em que as leis não permitem que se disponha de um fundo de dez soldos de renda; esses cadáveres seriam tirados dos túmulos: seria uma verdadeira ressurreição. As suas casas seriam prefeituras, hospitais, escolas, fábricas. A população aumentaria e todas as artes seriam mais bem cultivadas. Poder-se-ia ao menos limitar o número dessas vítimas voluntárias, fixando o número de noviços. A pátria teria mais homens úteis e menos infelizes. É o parecer de todos os magistrados, é o desejo unânime do público, desde que os espíritos se esclareceram. O exemplo da Inglaterra, e de tantos outros Estados, é uma prova evidente da necessidade de tal reforma. Que seria hoje da Inglaterra se, em vez de 40 mil marinheiros, tivesse 40 mil padres? Quanto mais se multiplicam as artes, mais necessário é o número de súditos laboriosos. Há sem dúvida pelos claustros muitas inteligências sepultas, que estão perdidas para o Estado. É preciso, para que um reino floresça, o mínimo possível de padres e o máximo possível de artesãos. A ignorância e a barbaria de nossos pais, longe de constituir uma regra para nós, não são mais que um aviso para fazermos o que eles fariam, se estivessem em nosso lugar, com as nossas luzes. - Quer dizer que não é por ódio aos monges que o senhor deseja aboli-los? É por piedade deles? É por amor à pátria? Sou do seu parecer. Não desejaria que meu filho fosse padre. E, se sonhasse que iria ter filhos para o claustro, não me deitaria com minha mulher. - Qual é, a bem da verdade, o bom pai de família que não chora ao ver seu filho ou filha perdidos para a sociedade? Chamam a isso "salvar-se"; mas um soldado que se salva quando deve combater é punido. Somos todos soldados do Estado; estamos a soldo da sociedade, e nos tornamos desertores quando a abandonamos. Que digo? Os monges são parricidas que aniquilam uma posteridade inteira. Noventa mil enclausurados, que berram ou fanhoseiam latim, poderiam dar, cada um, dois súditos ao Estado: o que soma 180 mil homens que eles fazem perecer ainda em germe. Ao cabo de cem anos, a perda é imensa, coisa que se demonstra por si própria. - Por que então prevaleceu o monaquismo? - Porque o governo, desde Constantino, foi, quase por toda parte, detestável e absurdo; porque o Império Romano teve mais sacerdotes que soldados; porque só no Egito havia 100 mil; porque eram isentos de trabalho e impostos; porque os chefes das nações bárbaras que destruíram o Império, tendo-se feito cristãos para governar cristãos, exerceram a mais horrível tirania; porque as pessoas se lançavam em multidão aos claustros para escapar ao furor desses tiranos, e mergulhavam numa escravidão para evitar outra; porque os papas, instituindo tantas ordens diferentes de mandriões sagrados, constituíram outros tantos súditos nos outros Estados; porque um camponês prefere ser chamado "meu reverendo padre" e distribuir bênçãos a conduzir a charrua; porque não sabe que a charrua é mais nobre que a batina; porque gosta mais de viver à custa dos tolos do que por um trabalho honrado; enfim, porque não sabe que, fazendo-se monge, reserva para si mesmo dias infelizes, tecidos de tédio e arrependimento. - Basta, pois, de monges, para felicidade nossa e dos próprios monges. Mas me causa aflição ouvir ao senhor de minha aldeia, pai de quatro filhos e três filhas, que não saberá como os estabelecer se não mandar as filhas para um convento. - Essa alegação, tantas vezes repetida, é inumana, antipatriótica e destrutora da sociedade. Todas as vezes em que se possa dizer de uma condição, qualquer que seja: "Se todos se submetessem a esta condição, o gênero humano estaria perdido", está demonstrado que essa condição não vale nada e que aquele que a abraça prejudica o gênero humano. Ora, é claro que, se todos os jovens de ambos os sexos se enclausurassem, o mundo pereceria; já só por isso, a fradaria é inimiga da natureza humana, independentemente dos terríveis males que algumas vezes lhe causou. - Não se poderia dizer o mesmo dos soldados? - Claro que não: pois, se cada cidadão se exercita nas armas, como antigamente em todas as repúblicas, e sobretudo na de Roma, não deixa o soldado de ser melhor camponês; o soldado cidadão casa-se, e combate pela mulher e pelos filhos. Quisera Deus que todos os lavradores fossem soldados e esposos! Seriam assim excelentes cidadãos. Mas um monge só serve, como monge, para devorar a substância de seus compatriotas. Não há verdade mais reconhecida. - Mas e as filhas dos fidalgos pobres, que não podem casar, que farão elas? - Farão, como já se disse mil vezes, o que fazem as da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda, da Suíça, da Holanda, de metade da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Tartária, da Turquia, da África, e de quase todo o resto da Terra. Serão melhores esposas e mães quando os homens se tiverem acostumado, como acontece na Alemanha, a tomar esposas sem dote. Uma mulher trabalhadeira e afeita às labutas domésticas será mais útil numa casa do que a filha de um financista, que, só em futilidades, gasta mais do que trouxe ao marido. É necessário que existam casas de retiro para a velhice, para a invalidez, para a deformidade. Mas, devido ao mais detestável dos abusos, só existem fundações para a juventude e para as pessoas bem conformadas. Começa-se, nos claustros, por obrigar os noviços de ambos os sexos a mostrar sua nudez, apesar de todas as leis do pudor; são detidamente examinados pela frente e por trás. Vá uma velha corcunda apresentar-se para entrar num convento, e será vergonhosamente expulsa, exceto que contribua com um dote enorme. Que digo? Toda religiosa deve trazer seu dote, sem o que se transformará no refugo do convento. Jamais se viu abuso mais intolerável. - Bem, senhor, juro-lhe que as minhas filhas nunca serão religiosas. Aprenderão a fiar, a coser, a fazer renda, a bordar, a ser úteis, enfim. Considero os votos um atentado contra a pátria e contra nós mesmos. E como se explica que um dos meus amigos, para contrariar o gênero humano, alegue que os monges são muito úteis à população de um Estado, porque suas casas têm melhor comida que as dos senhores, e as suas terras melhor cultivo? - E que amigo é esse, que faz uma afirmação tão estranha? - É o Amigo dos Homens, ou melhor, dos monges. - Certamente estava brincando; bem sabe ele que dez famílias, cada uma com 5 mil libras de rendas da terra, são cem vezes, mil vezes mais úteis do que um convento que desfruta de uma renda de 50 mil libras e que possui sempre um tesouro secreto. Louva as belas casas construídas pelos monges, e é exatamente o que irrita os cidadãos; é motivo das queixas da Europa. O voto de pobreza condena os palácios, como o voto de humildade se opõe ao orgulho, e como o voto de aniquilar a própria raça está em contradição com a natureza. - Começo a acreditar que se deve desconfiar dos livros. - Deve-se fazer com eles como se faz com os homens: escolher os mais razoáveis, examiná-los, e só se render à evidência. 9. Os Impostos Pagos ao Estrangeiro Há cerca de um mês, veio procurar-me o Homem dos Quarenta Escudos, dando verdadeiras barriga das de riso, e com tanto gosto que eu também caí na risada, sem saber do que se tratava, de tal forma é o homem imitador por natureza, tanto nos senhores ia o instinto, tão contagiosas são as grandes expansões da alma. Ut ridentibus arrident, ita flentibus adflent Humani vultus. Depois que riu à larga, contou-me que acabava de encontrar um homem que se dizia protonotário da Santa Sé, e que esse homem remetia considerável soma, a trezentas léguas daqui, a um italiano, em nome de um francês a quem o rei havia doado um pequeno feudo, e que esse francês jamais poderia gozar do benefício do rei se não remetesse ao referido italiano seu primeiro ano de renda. - A coisa é verdadeira - disse-lhe eu -, mas não é tão divertida assim. Essas pequenas contribuições custam à França umas 400 mil libras anuais; e, durante os dois séculos e meio que vem durando esse hábito, já descarregamos na Itália uns 80 milhões. - Santo Deus! - exclamou ele. - Quantas vezes quarenta escudos? Quer dizer então que esse italiano nos subjugou há dois séculos e meio e nos impôs esse tributo? - Na verdade, ele nos taxava outrora muito mais onerosamente. Isso não passa de uma migalha em comparação com o que ele por muito tempo tirou da nossa pobre nação e das outras pobres nações da Europa. Contei-lhe então como se haviam estabelecido essas santas usurpações. Ele sabe um pouco de história; tem bom senso: compreendeu facilmente que éramos ex-escravos aos quais ainda restava uma ponta de grilhões. Por muito tempo, falou energicamente contra tal abuso, mas com que respeito pela religião em geral! Como venerava os bispos! Como lhes desejava muitos e muitos quarenta escudos, a fim de que os gastassem em obras pias nas respectivas dioceses! Queria também que todos os vigários de aldeia tivessem um número suficiente de quarenta escudos, para que pudessem viver decentemente. - É triste - dizia ele - que um vigário se veja obrigado a disputar três medas de trigo ao seu rebanho, e não seja largamente remunerado pela província. É vergonhoso que estejam sempre em demanda com os seus senhores. Essas eternas querelas por direitos imaginários e dízimas destroem a consideração que lhes devemos. O infeliz camponês, que já pagou aos prepostos a sua dízima, e os dois soldos por libra, e a talha, e a capitação, e o resgate pelo alojamento de militares, depois de já os ter alojado etc., etc., etc., esse desgraçado, dizia eu, que ainda vê o seu próprio vigário arrancar-lhe o décimo da sua colheita, não mais o considera seu pastor, mas sim seu esfolador, que lhe arranca o pouco de pele que lhe resta. Compreende que, ao lhe arrebatarem a décima meda de direito divino, têm a crueldade diabólica de não levar em conta o que lhe custou para produzir aquela meda. Que sobra para ele e a família? O pranto, a necessidade, o desânimo, o desespero, e acaba morrendo de fadiga e miséria. Se o vigário fosse pago pela província, seria o consolo de seus paroquianos, em vez de ser olhado por eles como um inimigo. O bom homem sensibilizava-se ao proferir essas palavras; amava a pátria e era idólatra do bem público. E exclamava às vezes: "Que grande nação a França, se nós o quiséssemos!". Fomos ver seu filho, a quem a mãe, muito asseada, apresentava um farto seio alvo. O menino era muito bonito. - Aqui estás tu - disse o pai -, e só tens direito a 23 anos de vida e a quarenta escudos! 10. As Proporções O produto dos extremos é igual ao produto dos meios; mas dois sacos de trigo roubado não estão, para aqueles que os subtraíram, na mesma relação em que está a perda da sua vida para os interesses da pessoa prejudicada. O prior de D***, a quem dois criados roubaram dois sesteiros de trigo, acaba de fazer enforcar os dois delinquentes. Tal execução custou-lhe mais do que lhe havia rendido toda a colheita, e desde esse tempo não encontra empregados. Se a lei dispusesse que aqueles que roubam o trigo do patrão lhe lavrassem a terra durante toda a vida, com ferros nos pés, e uma campainha ao pescoço, presa à gola, muito teria ganho o citado prior. É necessário inibir o crime, na verdade; mas o trabalho forçado e a vergonha permanente intimidam mais do que a morte. Há alguns meses, em Londres, foi um malfeitor condenado a ir trabalhar com os negros, nos engenhos de açúcar da América. Todos os criminosos, na Inglaterra, como em muitos outros países, têm direito de dirigir-se ao rei, para pedir comutação ou abrandamento da pena. Quanto a este, pediu para ser enforcado. Alegou que odiava mortalmente o trabalho e que preferia ser estrangulado num minuto a fabricar açúcar por toda a vida. Podem outros pensar de modo diferente, e cada qual a seu gosto; mas já se disse, e cumpre repetir, que um enforcado não serve para coisa alguma, e que os castigos devem ser úteis. Há alguns anos, na Tartária, dois jovens foram condenados à empalação por terem assistido, de chapéu na cabeça, a uma procissão de lamas. O imperador da China, que é homem de muito espírito, disse que os teria condenado a marchar em procissão, sem chapéu, durante três meses. "Que as penas sejam proporcionais aos delitos", já o disse o marquês de Beccaria; mas os que fizeram as leis não eram geômetras. Se o padre Guyon, ou Coger, ou o ex-jesuíta Nonnotte, ou o ex-jesuíta Patouillet, ou o pregador La Beaumelle, fazem miseráveis libelos, em que não há nem verdade, nem razão, nem espírito, vamos nós enforcá-los, como o fez o prior de D*** com os seus dois serviçais, e isso sob o pretexto de que os calunia dores são mais culposos que os ladrões? Condenaremos o próprio Fréron às galés, por haver insultado o bom gosto, e por ter mentido toda a vida na esperança de pagar o vendeiro? Levaremos o Sr. Larcher ao pelourinho, por ser muito indigesto, por haver acumulado erro sobre erro, porque nunca soube distinguir nenhum grau de probabilidade, por afirmar que, numa antiga e imensa cidade, famosa por sua severidade e pelo zelo dos maridos, em Babilônia enfim, onde as mulheres eram guardadas por eunucos, todas as princesas iam devotamente ao templo, entregar-se por dinheiro aos estrangeiros? Não, contentemo-nos em mandá-lo também fazer a vida; sejamos moderados em tudo; estabeleçamos proporção entre os delitos e as penas. Perdoemos a esse pobre Jean-Jacques quando só escreve para contradizer-se; quando, depois de haver apresentado uma comédia vaiada em Paris, injuria aqueles que fazem representar comédias a cem léguas dali; quando procura protetores, e os ultraja; quando clama contra os romances, e faz romances cujo herói é um tolo preceptor que recebe esmola de uma suíça na qual fez um filho, e que vai gastar o dinheiro num bordel de Paris; deixemo-lo acreditar que ultrapassou Fénelon e Xenofonte, educando um jovem de qualidade no ofício de marceneiro; essas extravagantes chatices não merecem uma ordem de detenção; basta o hospício, com bons caldos, sangrias e regime. Odeio as leis de Drácon, que puniam igualmente os crimes e as faltas, a maldade e a loucura. Não tratemos o jesuíta Nonnotte, que só é culpado de haver escrito tolices e injúrias, como foram tratados os jesuítas Malagrida, Oldcorn, Garnet, Guiznard, Guéret, e como se devia tratar o jesuíta Le Tellier, que enganou o seu rei e perturbou a França. Distingamos sobretudo em todo processo, em todo litígio, em toda querela, o agressor e o ultrajado, o opressor e o oprimido. A ofensiva parte do tirano; aquele que se defende é um homem justo. Estava eu mergulhado nessas reflexões, quando chegou, em lágrimas, o Homem dos Quarenta Escudos. Perguntei-lhe, alarmado, se seu filho, que deveria viver 23 anos, por acaso tinha morrido. - Não - respondeu ele -, o pequeno vai muito bem, e minha mulher também. Mas fui chamado, como testemunha, contra um marceneiro que foi submetido à tortura e é inocente. Vi-o desmaiar no suplício; ouvi estalarem-lhe os ossos; ainda ouço os seus gemidos e gritos; eles me perseguem, eu choro de piedade e tremo de horror. Pus-me também a chorar e a tremer, pois sou extremamente sensível. Veio-me então à memória a espantosa aventura dos Calas, uma mãe virtuosa posta a ferros, seus filhos desvairados e fugitivos, a casa pilhada, um respeitável pai de família torturado, agonizando na roda e morrendo nas chamas, um filho nos grilhões, arrastado perante os juízes, um dos quais lhe disse: "Acabamos de levar seu pai à roda e faremos o mesmo com você". Lembro-me da família Sirven, que um de meus amigos encontrou nas montanhas cobertas de neve, quando fugia da perseguição de um juiz tão iníquo como ignorante. - Esse juiz - disse-me ele - condenou ao suplício toda aquela inocente família, na suposição, sem o mínimo de prova, de que o pai e a mãe, ajudados por duas de suas filhas, haviam estrangulado e afogado a terceira, de medo que ela fosse à missa. Eu via, ao mesmo tempo, nos julgamentos dessa espécie, o cúmulo da estupidez, da injustiça e da barbaridade. O Homem dos Quarenta Escudos e eu lamentávamos a natureza humana. Tinha eu no bolso o discurso de um advogado do Delfinado, que se referia em parte a essa interessante matéria. Li em voz alta os seguintes trechos: "Foram por certo verdadeiramente grandes os homens que primeiro ousaram encarregar-se do governo de seus semelhantes e impor-se o fardo da felicidade pública; que, pelo bem que queriam fazer aos homens, impuseram-se à sua ingratidão e, para o repouso de um povo, renunciaram ao seu; que se colocaram, por assim dizer, entre os homens e a Providência, para lhes conseguir, por artifício, uma ventura que esta parecia haver-lhes recusado". Que magistrado, um pouco sensível a seus deveres, à simples humanidade, poderia sustentar tais ideias? Poderá ele, na solidão do gabinete, sem estremecer de horror e de piedade, lançar os olhos sobre esses papéis, infelizes monumentos do crime ou da inocência? Não lhe parecerá brotarem gementes vozes desses fatais escritos, a instá-lo para decidir da sorte de um cidadão, de um esposo, de um pai, de uma família? Que impiedoso juiz (se for encarregado de um único processo) poderá passar de sangue-frio em frente a uma prisão? - Sou eu então - dirá ele - que mantenho, nessa detestável morada, meu semelhante, talvez meu igual, meu concidadão, um homem enfim?! Sou eu que todos os dias o agrilhôo, que fecho sobre ele essas odiosas portas?! Talvez o desespero se haja apoderado da sua alma; lança aos céus o meu nome, de envolta com maldições; e sem dúvidas atesta contra mim o grande Juiz que nos observa e que nos deve julgar a ambos. "E eis que terrível espetáculo se me apresenta aos olhos: o juiz cansa-se de interrogar com a palavra, quer interrogar com os suplícios: impaciente das suas pesquisas, e, talvez irritado com a sua inutilidade, manda trazer tochas, correntes, alavancas e todos esse instrumentos inventados para a dor. Um carrasco se vem ajuntar às funções da magistratura, e termina pela violência um interrogatório iniciado pela liberdade. "Doce filosofia, tu, que só buscas a verdade com a atenção e a paciência, esperavas que, no teu século, empregassem tais instrumentos para descobri-la?” "É mesmo verdade que as nossas leis aprovam esse método inconcebível e que o uso o consagra?” "Suas leis imitam seus preconceitos; as punições públicas são tão cruéis quanto as vinganças particulares, e os atos da sua razão não são menos impiedosos que os das suas paixões. Qual, pois, a causa dessa estranha oposição? É que os nossos preconceitos são antigos e a nossa moral é recente; é que somos tão compenetrados de nossos sentimentos quão desatentos às nossas ideias; é que a avidez dos prazeres nos impede de refletir sobre as necessidades, e mais nos empenhamos em viver do que em conduzir-nos. É que, numa palavra, nossos costumes são amáveis, e não são bons; é que somos polidos, e nem ao menos somos humanos." Esses fragmentos que a eloquência ditaria à piedade encheram de suave consolo o coração do meu amigo. Ele admirava, comovido. - Como! - dizia em seus arrebatamentos. - Fazem-se obras-primas na província! Haviam-me dito que só existia Paris no mundo. - Só em Paris - respondi-lhe - é que se fazem óperas cômicas; mas existem hoje na província muitos magistrados que pensam com a mesma virtude e se exprimem com a mesma força. Antigamente, os oráculos da justiça, bem como os da moral, não eram senão ridículos. O Dr. Balouard declamava na tribuna e Arlequim, no púlpito. Pôs-se enfim a filosofar e disse: "- Falei em público apenas para dizer verdades novas e úteis, com a eloquência do sentimento e da razão”. "- Mas se não tivermos nada de novo a dizer?" - indagaram os palradores. "- Calem-se então - respondeu a filosofia. - Todos esses inúteis discursos de aparato, que só contêm frases, são como os fogos de São João, acesos no dia em que a gente menos necessidade tem de aquecer-se; não causam nenhum prazer, e não lhes sobram nem as cinzas”. "Que toda a França leia bons livros. Porém, malgrado os progressos do espírito humano, lê-se muito pouco; e, dentre aqueles que querem às vezes instruir-se, a maioria lê muito mal. Meus vizinhos jogam, após o jantar, um jogo inglês que tenho muita dificuldade em pronunciar, pois o chamam de wisk. Muitos bons burgueses, muitas grandes cabeças, que se julgam boas cabeças, dizem, com ar importante, que os livros não servem para nada. Mas não sabem, esses vândalos, que não são governados a não ser por livros? Não sabem que o código civil, militar e os Evangelhos são livros dos quais dependem continuamente? Leiam, esclareçam-se; só pela leitura se fortifica a alma; a conversação a dissipa, o jogo a limita". - Eu possuo pouco dinheiro - respondeu-me o Homem dos Quarenta Escudos -, contudo, se algum dia reunir uma pequena fortuna, comprarei livros no Marc-Michel Rey. 11. A Sífilis O Homem dos Quarenta Escudos morava num pequeno cantão, onde havia uns 150 anos não acampavam soldados. Os costumes, naquele desconhecido recanto, eram mais puros do que o ar que o banha. Não se sabia que em outros lugares o amor pudesse ser infeccionado de um veneno destrutivo, que as gerações fossem atacadas no seu germe, e que a natureza, contradizendo-se a si mesma, pudesse tornar a carícia horrível e o prazer, medonho; entregavam-se ao amor com a segurança da inocência. Chegaram tropas, e tudo mudou. Dois tenentes, o esmoler do regimento, um cabo e um recruta proveniente do seminário bastaram para envenenar doze aldeias em menos de três meses. Duas primas do homem de quarenta escudos viram-se cobertas de pústulas; caíram-lhes os lindos cabelos; sua voz tornou-se rouca; as pálpebras de seus olhos fixos e apagados tomaram uma cor lívida, e não mais se fecharam para permitir repouso aos membros deslocados, que uma cárie secreta começava a roer como aos do árabe Job, embora Job jamais tivesse tido semelhante doença. O cirurgião-mor do regimento, homem de grande experiência, foi obrigado a pedir auxílio à corte, para curar todas as moças da região. O ministro da Guerra, sempre inclinado a aliviar o belo sexo, enviou uma leva de recrutas, que estragaram com uma das mãos o que endireitaram com a outra. O Homem dos Quarenta Escudos lia então a história filosófica de Cândido, traduzido do alemão e de autoria do Dr. Ralph, que prova evidentemente que tudo está bem, e que era absolutamente impossível, no melhor dos mundos possíveis, que a sífilis, a peste, os cálculos, as areias, as escrófulas, a câmara de Valência e a Inquisição não entrassem na composição do Universo, desse Universo unicamente feito para o homem, rei dos animais, e imagem de Deus, ao qual bem se vê que se assemelha como duas gotas de água. Lia, na história verdadeira de Cândido, que o famoso Dr. Pangloss perderia no tratamento um olho e uma orelha. - Ai! E as minhas primas, as minhas pobres primas, ficarão também tortas e desorelhadas? - Não - respondeu-lhe o major, confortando-o. - Os alemães têm mão pesada; mas, quanto a nós, curamos as moças prontamente, seguramente e agradavelmente. E, com efeito, as duas lindas primas livraram-se do mal ficando com a cabeça inchada com um balão durante seis semanas, perdendo metade dos dentes, botando uma língua de meio palmo, e morrendo do peito ao cabo de seis meses. Durante a operação, o primo e o cirurgião-mor assim discorreram: O Homem dos Quarenta Escudos: - Será possível, senhor, que a natureza tenha munido tão espantosos tormentos a um prazer tão necessário, tanta vergonha e tanta glória, e que haja mais riscos em fazer um filho do que em matar um homem? Será ao menos verdade, para consolação nossa, que esse mal vai diminuindo um pouco pelo mundo e cada dia se torna menos perigoso? O Cirurgião-mor: - Pelo contrário, alastra-se cada vez mais por toda a Europa cristã; está disseminado até a Sibéria; vi morrer disso quinhentas pessoas, inclusive um grande general e um excelente ministro. São poucos os fracos do peito que resistem à doença e ao remédio. As duas irmãs, a varíola e a sífilis, uniram-se ainda mais que os monges para destruir o gênero humano. O Homem dos Quarenta Escudos: - Mais uma razão para abolir os monges, a fim de que, recolocados entre os homens, eles reparem um pouco o mal que fazem as duas irmãs. E diga-me uma coisa: os animais também têm as duas irmãs? O Cirurgião: - Nem a varíola nem a sífilis nem os monges são conhecidos entre eles. O Homem dos Quarenta Escudos: - Convenhamos então que são mais felizes e mais prudentes do que nós no melhor dos mundos. O Cirurgião: - Disso eu nunca duvidei; possuem menos doenças do que nós; seu instinto é muito mais seguro do que a nossa razão: jamais se atormentam com o passado nem com o futuro. O Homem dos Quarenta Escudos: - O senhor, que já foi cirurgião do embaixador francês na Turquia: há muita sífilis em Constantinopla? O Cirurgião: - Os franceses a levaram para o bairro de Pera, onde residem. Conheci ali um capuchinho que estava devorado por ela como Pangloss; mas o flagelo não alcançou a cidade propriamente dita, onde os franceses quase nunca dormem. Não há quase mulheres públicas naquela enorme cidade. Cada homem rico tem mulheres, escravas circassianas, sempre guardadas, sempre vigiadas, e cuja beleza não pode ser perigosa. Os turcos chamam a sífilis de mal cristão, o que redobra o profundo desprezo que dedicam à nossa teologia. Mas, em compensação, eles têm a peste, doença do Egito, de que fazem pouco caso e que nunca se dão ao trabalho de prevenir. O Homem dos Quarenta Escudos: - Em que época julga que começou esse flagelo na Europa? O Cirurgião: - Pelo ano de 1494, quando Cristóvão Colombo regressou da sua primeira viagem às nações inocentes que não conheciam nem a avareza nem a guerra. Aquelas nações simples e justas estavam contaminadas desse mal desde tempos imemoriais, como a lepra reinava entre os árabes e os judeus, e a peste entre os egípcios. O primeiro fruto que colheram os espanhóis, dessa conquista do Novo Mundo, foi a sífilis; expandiu-se mais rapidamente que a prata do México, que só circulou na Europa muito tempo depois. A razão era que, em todas as cidades, havia então belas casas públicas, chamadas bordéis, cujo estabelecimento era autorizado pelos soberanos para preservar a honra das damas. Os espanhóis trouxeram o veneno para essas casas privilegiadas de onde os príncipes e bispos requisitavam as raparigas que lhes eram necessárias. Havia em Constança 718 dessas mulheres, para o serviço do Concílio que tão devotamente mandou queimar João Huss e Jerônimo de Praga. Só por isso se pode julgar com que rapidez o mal percorreu todos os países. O primeiro senhor que veio a morrer desse mal foi o ilustríssimo e reverendíssimo bispo e vice-rei da Hungria, em 1499, e que Bartolomeu Montanagua, grande médico de Praga, não conseguiu salvar. Assegura Gualtieri que o arcebispo de Mogúncia, Bertold de Henneberg, acometido de sífilis, entregou sua alma a Deus em 1504. Sabe-se que disso morreu o nosso rei Francisco L Henrique lII a adquiriu em Veneza, mas o jacobino Jacques Clément preveniu os efeitos do mal. O Parlamento de Paris, sempre zeloso do bem público, foi o primeiro que baixou um edito contra a sífilis, isso em 1497. Proibiu a todos os contaminados que permanecessem em Paris, sob pena de enforcamento. Mas, como não era fácil convencer juridicamente os burgueses e as burguesas de que estavam em delito, não teve esse dito maior efeito do que aqueles que foram depois baixados contra a emética; e, apesar do Parlamento, continuava aumentando o número de culpados. É verdade que, se os tivessem exorcizado em vez de enforcá-los, não mais os haveria hoje sobre a face da Terra; mas infelizmente nunca se pensou em tal coisa. O Homem dos Quarenta Escudos: - É então verdade o que li em Cândido, que, entre nós, quando entram em campo dois exércitos de 30 mil homens cada um, pode-se apostar que existem 20 mil contaminados de cada lado? O Cirurgião: - Nada mais verdadeiro. O mesmo acontece com o pessoal da Sorbonne. O que quer que façam jovens bacharéis a quem a natureza fala mais alto e mais firme do que a teologia? Posso-lhe jurar que, guardadas as proporções, meus confrades e eu temos tratado mais jovens sacerdotes do que jovens oficiais. O Homem dos Quarenta Escudos: - Não haveria algum meio de eliminar esse mal que assola a Europa? Já se tratou de enfraquecer o veneno da varíola; nada se poderá tentar contra a sífilis? O Cirurgião: - Só existirá um meio: que todos os príncipes da Europa se unissem como nos tempos de Godofredo de Bulhão. Certamente uma cruzada contra a sífilis seria muito mais razoável do que aquelas que outrora tão infelizmente se fizeram contra Saladino, Melecsala e os albigenses. Melhor seria combinarmo-nos para expulsar o inimigo comum do gênero humano do que andarmos continuamente a espiar o momento azado para devastar a terra e cobrir os campos de cadáveres, com o fim de arrebatar ao vizinho duas ou três cidades e algumas aldeias. Falo contra os meus próprios interesses, pois a guerra e a sífilis me fazem viver; mas cumpre ser homem antes de ser cirurgião-mor. Era assim que o Homem dos Quarenta Escudos ia formando, como se diz, o espírito e o coração. Não só herdou das duas primas, que morreram em seis meses, mas ainda lhe coube a sucessão de um parente afastado, que fora subarrendatário dos hospitais do Exército, e que engordara bastante pondo em dieta os soldados feridos. Esse homem nunca havia querido casar-se; tinha um belo harém. Não reconheceu nenhum de seus parentes, viveu na libertinagem, e morreu de indigestão em Paris. Era, como se vê, um homem muito útil ao Estado. O nosso novo filósofo viu-se obrigado a ir a Paris receber a herança do parente. Primeiro os rendeiros do domínio lha disputavam. Teve a felicidade de ganhar o processo e a generosidade de dar aos pobres do cantão, que não haviam conseguido o seu quinhão de quarenta escudos de renda, uma parte dos desejos do ricaço. Depois do que, pôs-se a satisfazer a sua grande ambição de formar uma biblioteca. Lia todas as manhãs, fazia excertos, e à noite consultava os sábios para saber: em que língua falara a serpente à nossa boa mãe; se a alma está localizada no corpo caloso ou na glândula pineal; se São Pedro permanecera 25 anos em Roma; que diferença específica existe entre um trono e uma dominação; e por que motivo os negros têm nariz chato. Propôs-se, aliás, jamais governar o Estado e nunca escrever brochuras contra as peças novas. Chamavam-no de Sr. André, que era o seu nome de batismo. Aqueles que o conheceram fazem justiça à sua modéstia e às suas qualidades, tanto adquiridas como naturais. Construiu uma casa confortável no seu antigo domínio de quatro jeiras. Seu filho alcançará em breve a idade escolar, mas ele quer mandá-lo para o colégio de Harcourt e não para o Mazarino, por causa do prof. Coger, que faz libelos, e porque um professor de colégio não os deve fazer. Madame André deu-lhe uma filha bem bonita, que ele pretende casar com um conselheiro, desde que esse magistrado não tenha a doença que o cirurgião-mor tem a intenção de eliminar da Europa cristã. 12. Grande Contenda Durante a estada do Sr. André em Paris, houve ali uma importante contenda. Tratava-se de saber se Marco Antonino fora um homem de bem, e se estava no inferno, ou no purgatório, ou no limbo, à espera da ressurreição. Todas as pessoas sensatas tomaram a defesa de Marco Antonino. "Marco Antonino", diziam, "sempre foi justo, sóbrio, casto, generoso. É verdade que não possui no paraíso um lugar como o de Santo Antônio: pois é necessário guardar as proporções, como bem sabemos; mas é fora de dúvida que a alma do imperador Antonino não foi para o espeto, no inferno. Se está no purgatório, é preciso tirá-la dali; é só mandar rezar missas por ele. Os jesuítas não têm mais que fazer; que rezem três mil missas pelo descanso da alma de Marco Antonino; a quinze soldos cada uma, ganharão com isso 2 250 libras. De resto, deve-se respeito a uma cabeça coroada; não se deve condená-la levianamente”. Os adversários dessas boas criaturas pretendiam, pelo contrário, que não se deveria ter consideração alguma para com Marco Antonino; que este era um herege; que os carpocracianos e os alogianos não eram tão maus quanto ele; que morrera sem confissão; que era preciso darem um exemplo; que era bom condená-lo para dar uma lição aos imperadores da China e do Japão, aos da Pérsia, da Turquia e do Marrocos, aos reis da Inglaterra, da Suécia, da Dinamarca, da Prússia, ao stathouder da Holanda, e aos avoyers do cantão de Berna, que também não se confessavam, como o imperador Marco Antonino; e que, afinal de contas, é um indizível prazer baixar decretos contra soberanos mortos, quando é impossível lançá-los contra os vivos, por amor às próprias orelhas. A contenda tornou-se tão séria como outrora a das ursulinas com as anunciadas, que disputavam para ver quem carregaria por mais tempo ovos quentes entre as nádegas, sem os quebrar. Temia-se um cisma, como nos tempos da carochinha e de certas promissórias pagáveis ao portador no outro mundo. Coisa terrível um cisma, pois significa divisão das opiniões, e, até aquele momento fatal, todos os homens haviam pensado da mesma maneira. O Sr. André, que é um excelente cidadão, convidou, para cear, aos chefes de cada um dos partidos. É ele dos melhores companheiros de mesa com que contamos; seu gênio é brando e alerta, sua alegria não é ruidosa; é simples e franco; não possui essa espécie de espírito que parece querer abafar o dos outros; a autoridade que se concilia só é devida às suas graças, à sua moderação, e a uma fisionomia aberta e persuasiva. Seria capaz de fazer cearem alegremente juntos um corso e um genovês, um representante de Genebra e um negativo, um mufti e um arcebispo. Anulou habilmente os primeiros golpes que trocaram os adversários, desviando a conversa e contando uma história muito agradável, que divertiu igualmente os danadores e os danados. Afinal, quando o vinho começou a subir, fez com que assinassem que a alma do imperador Marco Antonino permaneceria in statu quo, ou seja, não se sabe onde, aguardando o julgamento definitivo. As almas dos doutores voltaram tranquilamente para os seus limbos, após a ceia; tudo ficou em paz. Esse arranjo trouxe grande consideração ao Homem dos Quarenta Escudos; e todas as vezes que se erguia uma contenda muito acesa, muito virulenta, entre letrados ou não letrados, dizia-se para ambas as partes: "Senhores, ide cear com o Sr. André". Sei de duas ferozes facções que, por não terem ido cear em casa do Sr. André, só causaram desgraças. 13. A Expulsão de um Crápula A reputação que estava adquirindo o Sr. André, de apaziguar as contendas oferecendo boas ceias, atraiu-lhe na semana passada uma singular visita. Um homem de preto e malvestido, curvo, a cabeça inclinada para um lado, de olhar mau e mãos sujas, veio conclamá-lo para que o convidasse para cear com os seus inimigos. - Quem são seus inimigos? - indagou-lhe o Sr. André. - E quem é o senhor? - Ai! Confesso, senhor, confesso que me tomam por um desses crápulas que escrevem libelos para ganhar a vida e que clamam: "Deus, Deus, Deus, religião, religião", para arranjar algum pequeno benefício. Acusam-me de ter caluniado os cidadãos mais verdadeiramente religiosos, os mais sinceros adoradores da Divindade, as pessoas mais honradas do reino. É verdade, senhor, que no calor da composição, escapam às vezes às pessoas do meu ofício pequenas inadvertências que são tomadas por erros grosseiros, lapsos que são qualificados de impudentes mentiras. O nosso zelo é considerado uma terrível mescla de velhacaria e fanatismo. Asseguram que, apesar de iludirmos a boa-fé de algumas velhas imbecis, somos alvo de desprezo e execração de todas as pessoas honradas que sabem ler. Meus inimigos são os principais membros das mais ilustres academias da Europa, escritores famosos, cidadãos úteis. Acabo de publicar uma obra que intitulei Antifilosófica. As minhas intenções eram boas, mas ninguém quis comprar o livro. Aqueles a quem o dei jogaram-no no fogo, dizendo-me que era não só anti-razoável, mas anti-honesto. - Pois então - disse o Sr. André -, imite-os, jogue no fogo o seu libelo, e não falemos mais nisso. Estimo o seu arrependimento, porém me é impossível fazê-lo cear com homens de espírito que não podem ser inimigos seus, sendo que nunca o lerão. - Não poderia ao menos, senhor - retrucou o crápula -, reconciliar-me com os parentes do falecido Sr. de Montesquieu, de quem ultrajei a memória para glorificar o reverendo padre Routh, que veio assediar seus últimos momentos e foi expulso do seu quarto? - Ora! - retrucou o Sr. André. - Faz muito tempo que o padre Routh está morto; vá cear com ele. O Sr. André não é homem de meias medidas, quando é obrigado a lidar com gente dessa espécie. Compreendeu que o crápula só queria cear em sua casa com homens de mérito para provocar uma contenda, para ir em seguida caluniá-los, para escrever contra eles, para imprimir novas mentiras. Escorraçou-o de sua casa, como haviam escorraçado Routh do apartamento do presidente Montesquieu. É impossível enganar ao Sr. André. Tão simples e ingênuo era quando não passava de o Homem dos Quarenta Escudos, como se tornou esperto após conhecer os homens. 14. O Bom Senso do Sr. André Como aumentou o bom senso do Sr. André desde que ele passou a ter uma biblioteca! Trata os livros como aos homens; escolhe-os; e jamais se deixa levar pelos nomes. Que prazer instruir-se e enobrecer a alma por um escudo, sem sair de casa! Felicita-se por ter nascido numa época em que a razão humana começa a aperfeiçoar-se. "Como eu seria infeliz", diz ele, "se vivesse no tempo do jesuíta Garasse, do jesuíta Guinard, ou do dr. Boucher, do dr. Aubry, do dr. Guincestre, ou no tempo em que condenavam às galés os que escreviam contra as categorias de Aristóteles!" Se a miséria havia enfraquecido as molas vitais do Sr. André, o bem-estar lhe devolveu a elasticidade. Existem no mundo centenas de Andrés aos quais só faltou uma volta da roda da fortuna para os tornar homens de verdadeiros méritos. Está hoje a par de todos os negócios da Europa, e principalmente dos progressos do espírito humano. - Parece - dizia-me ele na última terça-feira - que a Razão viaja por pequenas etapas, do norte para o sul, com suas duas amigas íntimas, a Experiência e a Tolerância. É acompanhada pela Agricultura e o Comércio. Apresentou-se na Itália, mas a Congregação do Índice a rechaçou. O máximo que ela pôde fazer foi enviar secretamente alguns de seus emissários, que não se cansam de fazer o bem. Alguns anos mais, e o país dos Cipiões deixará de ser o dos Arlequins encapuzados. "Consegue, de tempos em tempos, cruéis inimigos na França; mas conta aqui com tantos amigos que afinal acabará sendo primeiro-ministro”. "Quando se apresentou na Baviera e na Áustria, encontrou dois ou três figurões de peruca, que a fitaram com um olhar estúpido e assustado. E disseram-lhe: - Nunca ouvimos falar na senhora; não a conhecemos. - Senhores - ela lhes respondeu -, com o tempo, hão de conhecer-me e estimar-me. Fui muito bem recebida em Berlim, em Moscou, em Copenhague, em Estocolmo. Faz muito que, por obra de Locke, Gordon, Trenchard, Milorde Shaftesbury, e tantos outros, recebi carta de naturalização na Inglaterra. Também aqui um dia ma concederão. Sou filha do Tempo, e tudo espero de meu pai. "Ao passar pelas fronteiras da Espanha e de Portugal, deu graças a Deus por ver que já não se acendiam com tanta frequência as fogueiras da Inquisição. Ficou muito esperançosa com a expulsão dos jesuítas. Mas receou que, purgando a terra das raposas, deixassem-na exposta aos lobos”. "Se ainda fizer tentativas para entrar na Itália, acredita-se que começará por estabelecer-se em Veneza, e que estacionará no reino de Nápoles, apesar de todas as liquefações dessa terra, que lhe dão vapores. Acredita-se que a Razão possua um segredo infalível para desembaraçar os cordões de uma coroa que se enredaram, não sei como, aos de uma tiara, e para impedir que os pôneis façam reverência às mulas!" Em suma, a conversação do Sr. André me agrada bastante; e quanto mais convivo com ele, mais o admiro. 15. Uma Bela Ceia na Casa do Sr. André Ceamos ontem com um doutor da Sorbonne, o Sr. Pinto, famoso judeu, o capelão da Igreja reformada do embaixador batavo, o secretário do Sr. Príncipe Galitzin, do rito grego, um capitão suíço calvinista, dois filósofos e três damas de espírito. A ceia se estendeu muito, mesmo assim não se discutiu a respeito de religião, como se nenhum dos comensais jamais tivesse alguma; o que significa que nos tornamos educados, e por isso tanto mais receamos contristar os outros, à mesa. O que não acontece com o regente Coger, e o ex-jesuíta Nonnotte, e o ex-jesuíta Patouillet, e o ex-jesuíta Rotalier, e todos os animais dessa espécie. Esses sórdidos nos dizem mais tolices numa brochura de duzentas páginas do que se pode dizer de agradável e instrutivo durante uma ceia de quatro horas. E o mais estranho é que eles não se atreveriam a dizer a ninguém o que têm a impudência de imprimir. A conversa girou a respeito de um gracejo das Cartas Persas, onde se repete, segundo várias personagens, que o mundo não só vai piorando, mas também despovoando-se cada vez mais; de sorte que, se o provérbio "Quanto mais loucos, mais riso" tem alguma dose de verdade, o riso será banido da Terra. O doutor da Sorbonne assegurou que, com efeito, o mundo estava reduzido a quase nada. Citou o padre Petau, que nos demonstra que, em menos de trezentos anos, um só dos filhos de Noé (não sei se Jafé ou Sem) procriara uma série de filhos que subia a 623 bilhões, 612 milhões e 358 mil fiéis, no ano 285 após o dilúvio universal. O Sr. André perguntou por que no tempo de Filipe, o Belo, ou seja, cerca de trezentos anos após Hugo Capeto, não havia 623 bilhões de príncipes da casa real. "É que a fé diminuiu", respondeu o doutor da Sorbonne. Falou-se muito de Tebas das cem portas e do milhão de soldados que saía por essas portas, com 20 mil carros de combate. - Diminuam, diminuam - dizia o Sr. André. - Desconfio, desde que comecei a ler, de que o mesmo gênio que escreveu Gargântua escrevia a história antigamente. - Mas afinal - disse-lhe um dos comensais -, Tebas, Mênfis, Babilônia, Nínive, Tróia, Selêucia eram grandes cidades e não existem mais. - Isso é verdade - respondeu o secretário do Sr. Príncipe Galitzin -, mas Moscou, Constantinopla, Londres, Paris, Amsterdã, Lyon, que valem mais que Tróia, e todas as cidades de França, da Alemanha, da Espanha e do norte eram então desertos. O capitão suíço, homem muito instruído, confessou-me que, quando os seus antepassados deixaram as montanhas e precipícios natais, para apoderar-se, como era justo, de uma região mais agradável, César, que viu com os seus próprios olhos o desfile desses emigrantes, calculou-os em 368 mil, contando os velhos, as mulheres e as crianças. Hoje, só o cantão de Berna possui esse número de habitantes: não é nem metade da Suíça, e eu posso assegurar que os treze cantões contam além de 720 mil almas, computando os nativos que trabalham ou negociam em país estrangeiro. Depois disso, senhores sábios, façam cálculos e sistemas; serão tão falsos uns quanto os outros. Em seguida, procurou-se saber se os burgueses de Roma, no tempo dos Césares, eram mais ricos que os burgueses de Paris, no tempo do Sr. Silhouette. - Ah! Isso é comigo - declarou o Sr. André. - Fui por muito tempo o Homem dos Quarenta Escudos; quero crer que os cidadãos romanos possuíam mais. Esses ilustres ladrões de estrada tinham pilhado os mais belos países da Ásia, África e Europa. Viviam esplendidamente do fruto de suas rapinas; porém, em todo caso, existiam miseráveis em Roma. E estou convencido de que, entre esses vencedores do mundo, havia muita gente reduzida a quarenta escudos de renda, como eu. - Não sabe o senhor - disse-lhe um sábio da Academia das Inscrições e Belas-Letras - que Lúculo gastava, em cada ceia que dava no salão de Apolo, 39.372 libras e treze soldos da nossa moeda corrente? Mas que Ático, o famoso epicurista Ático, não gastava por mês, para a sua mesa, além de 235 libras? - Se assim é - disse eu -, era digno de presidir a confraria da sovinice, estabelecida há pouco na Itália. Li, como o senhor, em Florus, essa incrível anedota; mas com certeza Florus nunca havia ceado em casa de Ático, ou o seu texto foi corrompido, como tantos outros, pelos copistas. Jamais Florus me fará acreditar que o amigo de César e de Pompeu, de Cícero e de Antônio, que muitas vezes comiam na sua casa, se arranjasse com pouco menos de dez luíses de ouro por mês. E eis justamente como se escreve a história A Sra. André, tomando a palavra, disse ao sábio que, se este lhe orçasse a mesa por dez vezes mais, muito grata lhe ficaria. Tenho certeza de que aquele serão do Sr. André bem valia um mês de Ático; e as damas não acreditavam que as ceias de Roma fossem mais agradáveis que as de Paris. A conversação foi muito divertida, apesar de um tanto quanto erudita. Não se falou nem das moedas novas nem dos ridículos alheios nem do escândalo do dia. A questão do luxo foi examinada a fundo. Tratava-se de esclarecer se tinha sido o luxo que havia destruído o Império Romano, e ficou provado que os dois impérios do Ocidente e do Oriente só foram destruídos pela controvérsia e pelos monges. Com efeito, quando Alarico tomou Roma, só se ocupavam de disputas teológicas; e, quando Maomé II tomou Constantinopla, os monges muito mais defendiam a eternidade da luz do Tabor, que viam no umbigo, do que a cidade contra os turcos. Um dos nossos sábios fez uma reflexão que me impressionou muito: é que esses dois grandes impérios foram aniquilados, mas as obras de Virgílio, Horácio e Ovídio subsistem. Do século de Augusto para o de Luís XIV não foi mais que um salto. Uma dama perguntou, com bastante espírito, por que não se escreviam hoje obras de gênio. O Sr. André respondeu que era porque já as haviam escrito no século passado. Essa ideia era fina, porém verdadeira; foi devidamente estudada. Em seguida caíram de rijo sobre um escocês que se apressara a dar regras de gosto e a criticar os mais admiráveis trechos de Racine, sem saber francês. (Esse Sr. Home, árbitro escocês, ensina como se deve fazer falar com espírito os heróis de uma tragédia; e eis aqui um notável exemplo que extrai da tragédia Henrique IV, do divino Shakespeare. Assim introduz o divino Shakespeare a Milorde Falstaff, que acaba de prender o cavaleiro Jean Coleville, e o apresenta ao rei: "Sire, ei-lo, eu vo-lo entrego; suplico a Vossa Graça mandardes registrar este feito de armas entre os outros desta jornada, ou, por Deus, eu o mandarei pôr numa balada, com o meu retrato à frente; verão Coleville a beijar-me os pés. Eis o que farei, se não tornardes a minha glória tão brilhante como uma dourada peça de dois soldos; e então me vereis, no claro céu da fama, empanar vosso esplendor, como a luz cheia apaga os carvões extintos do elemento do ar, que não aparecem em torno dela senão como cabeças de alfinete". É essa absurda e abominável mixórdia, tão frequente no divino Shakespeare, que o Sr. Jean Home propõe como modelo de bom gosto e de espírito na tragédia. Mas o Sr. Home, em compensação, acha Ifigênia e Fedra, de Racine, profundamente ridículas. Nota do Autor) Trataram ainda mais severamente a um italiano, chamado Denina, que denegriu, sem o compreender, o Espírito das Leis, e que sobretudo havia censurado o que mais se aprecia nessa obra. Fez isso lembrar o afetado desprezo que Boileau dedicava a Tasso. Um dos comensais afirmou que Tasso, com todos os seus defeitos, estava tão acima de Homero quanto Montesquieu, com os seus defeitos ainda maiores, estava acima da miscelânea de Grotius. Protestaram contra essas críticas ditadas pelo ódio nacional e o preconceito. O Signor Denina foi tratado como merecia, e como o são os pedantes pelas pessoas de espírito. Observaram com finura que a maioria das obras literárias do século atual, bem como as conversações, são dedicadas ao exame das obras-primas do século passado. O nosso mérito consiste em discutir o seu. Somos como filhos deserdados que fazem o cômputo dos bens de seus pais. Confessou-se que a filosofia havia feito grandes progressos, mas que a língua e o estilo se corromperam um pouco. É comum em todas as conversações passar de um assunto a outro. Todos esses objetos de curiosidade, de ciência e de gosto logo desapareceram diante do grande espetáculo que a imperatriz da Rússia e o rei da Polônia davam ao mundo. Acabavam de reerguer a humanidade aniquilada e de estabelecer a liberdade de consciência numa parte da Terra muito mais vasta do que jamais o foi o Império Romano. Esse serviço prestado ao gênero humano, esse exemplo dado a tantas cortes que se julgam políticas foi celebrado como merecia. Bebeu-se à saúde da imperatriz, do rei filósofo e do primaz filósofo, desejando-lhes muitos imitadores. Até o doutor da Sorbonne os admirou, pois existem algumas pessoas de bom senso naquele corpo, como houve outrora gente de espírito entre os beócios. O secretário russo nos espantou com a narrativa de todos os grandes estabelecimentos que se faziam na Rússia. Perguntaram por que se gostava mais de ler a história de Carlos XII, que passara a vida a destruir, do que a de Pedro, o Grande, que havia consumido a sua a criar. Concluímos que a fraqueza e a frivolidade são causa dessa preferência; que Carlos XII foi o Dom Quixote do Norte, como Pedro foi o Sólon; que os espíritos superficiais preferem o heroísmo extravagante aos grandes projetos de um legislador; que os pormenores da fundação de uma cidade lhes agradam menos do que a temeridade de um homem que enfrenta 10 mil turcos, apenas com os seus serviçais; e que enfim a maioria dos leitores gosta mais de se divertir do que de instruir-se. Daí vem que há cem mulheres que leem as Mil e Uma Noites contra uma que lê dois capítulos de Locke. Do que não se falou naquela ceia, de que por muito tempo hei de lembrar-me! Afinal também se disse algo dos atores e atrizes, assunto eterno das conversações de mesa em Versalhes e Paris. Concluiu-se que um bom declamador era tão raro quanto um bom poeta. A ceia terminou com uma bonita canção que um dos comensais compôs para as damas. Quanto a mim, confesso que o banquete de Platão não me causaria mais prazer do que o do Sr. e da Sra. André. Os nossos homens janotas e nossas mulheres afetadas sem duvida se aborreceriam ali; eles pretendem ser a boa companhia; porém o Sr. André e eu nunca ceamos com essa boa companhia.