Voltaire – Cândido ou O Otimismo CAPÍTULO I Como Cândido foi criado num lindo castelo e como foi dele expulso. Havia na Vestfália, no castelo do barão de Thunder-ten-tronckh, um jovem que a natureza tinha dotado dos mais brandos costumes. Sua fisionomia revelava sua alma. Dotado de bom senso, espírito simples, por essa razão, acredito, o chamavam de Cândido. Os antigos criados da casa desconfiavam que fosse filho da irmã do barão e de um bom e honrado cavalheiro da vizinhança, com quem esta moça jamais consentira em casar-se, porquanto ele só conseguira provar a legitimidade de setenta e um graus de geração, pois o resto de sua árvore genealógica havia sido destruído pelas injúrias do tempo. O barão era um dos mais poderosos senhores da Vestfália, pois seu castelo tinha uma porta e janelas. A sala nobre ostentava até uma tapeçaria. Todos os cães de suas dependências compunham, em caso de necessidade, uma matilha; seus palafreneiros eram seus supervisores; o vigário da aldeia era seu capelão especial. Todos o tratavam de monsenhor e riam quando contava casos. A senhora baronesa, que pesava cerca de trezentas e cinquenta libras, granjeava com isso elevada consideração e fazia as honras da casa com uma dignidade que a tornava ainda mais respeitável. Sua filha Cunegundes, de dezessete anos, era muito corada, viçosa, rechonchuda, apetitosa. O filho do barão parecia em tudo digno do pai. O preceptor Pangloss era o oráculo da casa e o pequeno Cândido escutava suas lições com toda a boa fé de sua idade e de seu caráter. Pangloss ensinava metafísico-teólogo-cosmolonigologia. Provava de modo admirável que não há efeito sem causa e que, neste que é o melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos e a senhora baronesa, a melhor das baronesas possíveis. "Está demonstrado, dizia, que as coisas não podem ser de outra forma, pois, uma vez que tudo é feito para um fim, tudo é necessariamente feito para o melhor dos fins. Reparem que o nariz foi feito para sustentar óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram formadas para serem talhadas e para construir castelos; por isso o senhor barão tem um castelo lindíssimo. O maior barão da província deve ter a melhor moradia. E ainda, como os porcos foram feitos para serem comidos, comemos porco o ano inteiro. Por conseguinte, aqueles que afirmaram que tudo está bem disseram uma tolice; deveriam, na realidade, dizer que tudo está da melhor forma possível." Cândido ouvia atentamente e, inocente, acreditava, pois achava a senhorita Cunegundes extremamente formosa, embora jamais tivesse tido a ousadia de dizer isso a ela. Concluía que, depois da ventura de ter nascido barão de Thunder-ten-tronckh, o segundo grau de felicidade era ser Cunegundes. O terceiro, vê-la todos os dias. E o quarto, ouvir o mestre Pangloss, o maior filósofo da província e, por conseguinte, de toda a terra. Um dia, ao passear nas cercanias do castelo, no pequeno bosque chamado parque, Cunegundes viu entre as moitas o doutor Pangloss dando uma aula de física experimental à camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e muito dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande inclinação para as ciências, observou, prendendo a respiração, as repetidas experiências de que foi testemunha. Viu claramente a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e retornou toda agitada, muito pensativa, totalmente dominada pelo desejo de ser sábia, pensando que bem poderia ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também poderia ser a dela. Ao voltar para o castelo, encontrou Cândido e enrubesceu. Cândido também corou. Ela lhe deu um bom dia com a voz embargada e Cândido falou com ela sem saber o que estava dizendo. No dia seguinte depois do jantar, ao deixar a mesa, Cunegundes e Cândido se encontraram atrás de um biombo. Cunegundes deixou cair o lenço. Cândido o apanhou e ela pegou-lhe inocentemente a mão. O jovem beijou inocentemente a mão da moça com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça toda peculiar. Suas bocas se encontraram, seus olhos se incendiaram, seus joelhos tremeram, suas mãos divagaram. O barão de Thunder-ten-tronckh passou perto do biombo e, vendo aquela causa e aquele efeito, expulsou Cândido do castelo com bons pontapés no traseiro. Cunegundes desmaiou. Foi esbofeteada pela senhora baronesa tão logo voltou a si. Houve grande consternação no mais belo e mais agradável dos castelos possíveis. CAPÍTULO II O que aconteceu a Cândido entre os búlgaros. Expulso do paraíso terrestre, Cândido andou por muito tempo sem saber para onde, chorando, erguendo os olhos para o céu, voltando-os seguidamente para o mais belo dos castelos que encerrava a mais bela das baronesinhas. Deitou-se sem jantar no meio das plantações entre dois sulcos. A neve caía em grandes flocos. Cândido, transido de frio, arrastou-se no dia seguinte até a cidade vizinha, chamada Waldberghoff-trarbck-dikdorff, sem dinheiro, morrendo de fome e de cansaço. Muito triste, parou à porta de uma taberna. Dois homens vestidos de azul repararam nele. - Camarada, disse um deles, aí está um jovem de bom porte e com a estatura requerida. Aproximaram-se de Cândido e, muito educadamente, convidaram-no para jantar. - Senhores, disse-lhes Cândido com uma modéstia encantadora, é muita honra para mim, mas não tenho com que pagar a minha conta. - Ah! Senhor, disse-lhe um dos azuis, pessoas de sua classe e mérito nunca pagam nada. Por acaso, não tem cinco pés e cinco polegadas de altura? - Sim, senhores, é minha altura, retrucou, com uma reverência. - Pois então, senhor, sente-se à mesa. Não somente o isentaremos de pagamento, como jamais suportaremos que um homem como o senhor fique sem dinheiro; os homens só foram feitos para se ajudarem uns aos outros. - Vocês têm razão, concordou Cândido. Foi o que Pangloss sempre me ensinou e posso ver que tudo está o melhor possível. Pedem-lhe que aceite alguns escudos. Ele os toma e quer assinar recibo. Recusam-no e o convidam a sentar-se à mesa: - Você não ama ternamente...? - Oh! Sim respondeu, amo ternamente a senhorita Cunegundes. - Não, disse um desses cavalheiros, estamos perguntando se você não ama ternamente o rei dos búlgaros. - De modo algum, retruca, pois jamais o vi. - Como! É o mais encantador dos reis e devemos beber à sua saúde. - Oh! Com muito prazer, senhores. E bebe. - É O que basta, dizem-lhe. Acaba de tornar-se o apoio, o sustentáculo, o defensor, o herói dos búlgaros. Sua fortuna está feita, sua glória garantida. Imediatamente lhe colocam correntes nos tornozelos e o levam para o regimento. Obrigam-no a volver à direita, à esquerda, a tirar a vareta, a repor a vareta, apontar, atirar, dobrar o passo, e lhe aplicam trinta chibatadas. No dia seguinte, faz o exercício não tão mal assim e só leva vinte chibatadas. No outro dia, só leva dez e seus camaradas já o olham como um prodígio. Cândido, totalmente estupefato, não atinava ainda muito bem como podia ser um herói. Um belo dia de primavera resolveu dar um passeio, andando sempre em frente, julgando que era um privilégio da espécie humana, assim como da espécie animal, servir-se das próprias pernas a seu bel-prazer. Não andara ainda duas léguas, quando outros quatro heróis de seis pés de altura o alcançam, o amarram e o levam para o calabouço. Foi-lhe perguntado juridicamente se preferia ser fustigado trinta e seis vezes por todo o regimento ou receber de uma só vez doze balas de chumbo nos miolos. De pouco adiantou dizer que a vontade é livre, que não queria nem uma coisa nem outra. Teve de fazer uma escolha. Resolveu, em virtude do dom de Deus que é chamado liberdade, submeter-se trinta e seis vezes às chibatadas. Aguentou dois turnos. O regimento era composto por dois mil homens. Isso lhe valeu quatro mil chibatadas que, desde a nuca até o traseiro, lhe puseram a descoberto os músculos e os nervos. Quando estavam se preparando para o terceiro turno, Cândido, que já não aguentava mais, pediu por misericórdia que tivessem a bondade de partir-lhe a cabeça. Esse favor lhe foi concedido. Vendam-lhe os olhos, põem-no de joelhos. Nesse momento, passa o rei dos búlgaros que se informa do crime do paciente. E como esse rei era dotado de um grande gênio, percebeu, por tudo o que soube a respeito de Cândido, que se tratava de um jovem metafísico, extremamente ignorante das coisas deste mundo e concedeu-lhe o perdão com uma clemência que será elogiada em todos os jornais e em todos os séculos. Um bom cirurgião curou Cândido em três semanas com emolientes receitados por Dioscórides. Já estava criando um pouco de pele e já podia caminhar, quando o rei dos búlgaros travou combate com o rei dos ábaros, CAPÍTULO III De que maneira Cândido escapou do meio dos búlgaros e o que aconteceu com ele. Nada era tão bonito, tão elegante, tão brilhante, tão bem ordenado como os dois exércitos. As trombetas, os pífaros, os oboés, os tambores, os canhões formavam uma harmonia como jamais existiu no inferno. Os canhões logo derrubaram cerca de seis mil homens de cada lado. Em seguida, a mosquetaria varreu do melhor dos mundos aproximadamente nove a dez mil patifes que lhe infestavam a superfície. A baioneta também foi a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens. O total podia muito bem somar umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, escondeu-se o melhor que pôde durante essa carnificina heroica. Finalmente, enquanto os dois monarcas mandavam cantar Te Deum, cada qual em seu campo de batalha, ele resolveu ir para outro lugar raciocinar sobre os efeitos e as causas. Passou por cima de pilhas de mortos e moribundos e logo chegou numa aldeia vizinha. Estava reduzida a cinzas. Era uma aldeia ábara que os búlgaros haviam incendiado, segundo as leis do direito público. Aqui, velhos crivados de golpes viam suas mulheres morrerem degoladas, apertando seus filhos contra seus seios ensanguentados; mais além, meninas destripadas, depois de terem saciado as necessidades naturais de alguns heróis, exalavam os últimos suspiros; outras, meio queimadas, gritavam para que lhes acabassem de vez com a vida. Miolos estavam espalhados pelo chão, ao lado de braços e pernas amputados. Cândido fugiu o mais depressa possível para outra aldeia. Pertencia aos búlgaros e os heróis ábaros lhe haviam conferido o mesmo tratamento. Sempre andando por sobre membros palpitantes ou entre ruínas, Cândido conseguiu finalmente deixar o teatro da guerra, levando algumas poucas provisões no alforje, sem nunca esquecer a senhorita Cunegundes. Quando chegou à Holanda, os mantimentos já haviam acabado. Mas como tinha ouvido dizer que todos eram ricos nesse país, e verdadeiramente cristãos, não duvidou que o haveriam de tratar tão bem como o fora no castelo do barão, antes de ser expulso de lá por causa dos lindos olhos da senhorita Cunegundes. Pediu esmola a várias pessoas sisudas e todas lhe responderam que, se continuasse a exercer esse ofício, fariam com que fosse internado numa casa de correção para ensinar-lhe a viver. Dirigiu-se em seguida a um homem que acabava de falar, unicamente ele, por uma hora sobre a caridade perante uma grande assembleia. Esse orador, olhando-o de soslaio, disse-lhe: - O que vem fazer aqui? Está aqui pela boa causa? - Não há efeito sem causa, respondeu modestamente Cândido, tudo está necessariamente encadeado e disposto da melhor maneira possível. Foi preciso que tivesse sido expulso de perto da senhorita Cunegundes, que tivesse sido submetido às chibatadas e agora é preciso que esmole meu pão até que possa ganhá-lo; tudo isso não poderia ser de outro modo. - Meu amigo, disse-lhe o orador, acredita que o Papa seja o Anticristo? - Ainda não tinha ouvido falar a respeito, respondeu Cândido, mas, que ele seja ou não, o fato é que me falta pão. - Você sequer merece comer pão, redarguiu o outro; vá embora, patife, vá, miserável, nunca mais se aproxime de mim! A mulher do orador, assomando à janela e reparando num homem que duvidava que o Papa fosse o Anticristo, despejou-lhe-na cabeça um... cheio. Oh! Céus! A que excessos chega o zelo religioso das senhoras! Um homem que não havia sido batizado, um bom anabatista, chamado Jacques, viu o modo cruel e ignominioso como estava sendo tratado um dos seus irmãos, um ser com dois pés e sem plumas, que tinha uma alma. Levou-o para casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, presenteou-o com dois florins e até quis ensiná-lo a trabalhar em suas manufaturas de tecidos da Pérsia, fabricados na Holanda. Cândido, quase prosternado diante dele, exclamava: - Bem me dizia mestre Pangloss que tudo está da melhor maneira possível neste mundo, pois me sinto infinitamente mais tocado por sua extrema generosidade do que pela dureza desse senhor de manto negro e da senhora sua esposa. No dia seguinte, ao passear, encontrou com um mendigo coberto de pústulas, os olhos sem vida, a ponta do nariz carcomida, a boca torta, os dentes pretos, e falando pela garganta, atormentado por uma tosse violenta e cuspindo um dente a cada esforço. CAPÍTULO IV De que maneira Cândido reencontrou seu antigo mestre de filosofia, o doutor Pangloss, e o que aconteceu. Cândido, mais tocado pela compaixão do que pelo horror, deu a esse espantoso mendigo os dois florins que recebera de seu honesto anabatista Jacques. O fantasma olhou-o fixamente, verteu lágrimas e pulou para abraça-lo, Cândido, apavorado, recuou. - Ah!, Diz o miserável ao outro miserável, então não reconhece mais seu caro Pangloss? - O que estou ouvindo? O senhor, meu caro mestre! O senhor, nesse estado horrível! Qual foi a desgraça que lhe aconteceu? Por que não está mais no mais lindo dos castelos? O que foi feito da senhorita Cunegundes, a pérola entre as moças, a obra-prima da natureza? - Não aguento mais, falou Pangloss. Cândido o levou imediatamente para o estábulo do anabatista, onde lhe deu de comer um pouco de pão. E quando Pangloss se refez: - E então, disse-lhe, e Cunegundes? - Morreu, respondeu o outro. Ao ouvir isso, Cândido desmaiou. Seu amigo fê-lo voltar a si com um pouco de vinagre ruim que, por acaso, se encontrava no estábulo. Cândido reabriu os olhos. - Cunegundes morreu! Ah! Melhor dos mundos, onde está você? Mas de que doença morreu? Não teria sido por ter-me visto ser expulso a pontapés do lindo castelo do senhor seu pai? - Não, disse Pangloss, foi estripada por soldados búlgaros, depois de ter sido violentada tantas vezes quanto possível. Arrebentaram a cabeça do barão que queria defendê-la. A senhora baronesa foi cortada em pedaços. Meu pobre pupilo foi tratado precisamente como a irmã. Quanto ao castelo, não sobrou pedra sobre pedra, nem um celeiro, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore. Mas fomos devidamente vingados, pois os ábaros fizeram o mesmo numa baronia vizinha que pertencia a um senhor búlgaro. Ao ouvir esse relato, Cândido desmaiou outra vez. Voltando a si e, tendo dito tudo o que tinha a dizer, quis saber da causa e do efeito e da razão suficiente que pusera Pangloss em tão lamentável estado. - Ai de mim!, Disse o outro, foi o amor. O amor, o consolador do gênero humano, o conservador do universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor. - Ah!, Disse Cândido, eu o conheci, esse amor, esse soberano dos corações, essa alma de nossa alma. Só me rendeu um beijo e vinte pontapés no traseiro. Como pôde essa tão bela causa produzir tão abominável efeito em você? Pangloss respondeu nesses termos: - Oh, meu caro Cândido! Você conheceu Paquette, essa bela acompanhante de nossa augusta baronesa. Saboreei em seus braços as delícias do paraíso que produziram esses tormentos do inferno que ora, como pode ver, me devoram. Ela estava infectada e talvez tenha morri do disso. Paquette recebera esse presente de um franciscano muito instruído que havia remontado às origens, pois o havia pegado de uma velha condessa que o tinha recebido de um capitão de cavalaria que o devia a uma marquesa que o pegara de um pajem, que o recebera de um jesuíta que, quando noviço, o herdara em linha direta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Quanto a mim, não o passarei para ninguém, pois estou morrendo. - Oh! Pangloss! Exclamou Cândido, que estranha genealogia! A origem disso não remontaria ao diabo? - De modo algum, retrucou o grande homem. Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um ingrediente necessário. De fato, se Colombo não a houvesse apanhado numa ilha da América, esta doença que envenena a fonte da geração, que muitas vezes impede até mesmo a geração e que é evidentemente o oposto da grande finalidade da natureza, não teríamos nem o chocolate, nem a cochonilha. Cumpre observar ainda que até hoje, em nosso continente, esta doença nos é peculiar, como a controvérsia. Os turcos, os indianos, os persas, os chineses, os siameses, os japoneses não a conhecem ainda. Mas há uma razão suficiente para que eles passem a conhecê-la por seu turno, dentro de alguns séculos. Enquanto isso, ela progrediu de modo maravilhoso entre nós, e sobretudo nesses grandes exércitos compostos de mercenários honestos, educados, que decidem do destino dos Estados. Podemos garantir que, quando trinta mil homens combatem em batalha cerrada contra tropas iguais em número, há aproximadamente vinte mil contaminados de cada lado. - Aí está uma coisa admirável, disse Cândido, mas você deve tratar-se. - De que jeito? Retrucou Pangloss. Estou sem um tostão, meu amigo, e, em toda a extensão deste globo, não se pode nem pedir uma sangria nem ser submetido a uma lavagem sem pagar ou sem que haja alguém que pague por nós. Estas últimas palavras levaram Cândido a tomar uma decisão. Foi lançar-se aos pés de seu caridoso anabatista Jacques e fez-lhe um retrato tão comovente do estado a que seu amigo estava reduzido, que o bondoso homem não hesitou em acolher o doutor Pangloss. Ordenou que fosse tratado a suas expensas. Com o tratamento, Pangloss só perdeu um olho e uma orelha. Escrevia bem e conhecia perfeitamente a aritmética. O anabatista Jacques fez dele seu contador. Ao cabo de dois meses, sendo obrigado a ir a Lisboa a negócios, embarcou em seu navio os dois filósofos. Pangloss explicou-lhe como tudo caminhava da melhor maneira possível. Jacques não compartilhava da mesma opinião. - Deve-se convir, dizia ele, que os homens corromperam um pouco a natureza, pois não nasceram lobos e se tornaram lobos. Deus não lhes deu nem canhão de vinte e quatro nem baionetas, mas fabricaram baionetas e canhões para se destruírem. Poderia ainda levar em conta as falências e a justiça que se apodera dos bens dos falidos para ludibriar os credores. - Tudo isso era indispensável, replicava o doutor caolho, e as desgraças particulares revertem no bem geral, de modo que, quanto mais desgraças particulares houver, maior o bem geral. Enquanto raciocinava, o ar escureceu, os ventos sopraram dos quatro cantos do mundo, e o navio foi batido pela mais horrível tempestade, à vista do porto de Lisboa. CAPÍTULO V Tempestade, naufrágio, terremoto, e o que aconteceu com o doutor Pangloss, Cândido e o anabatista Jacques. Metade dos passageiros, enfraquecidos, morrendo por causa dessas angústias inconcebíveis que o balanço do navio produz nos nervos e em todos os humores de corpos agitados em sentido contrário, sequer tinha forças para preocupar-se com o perigo. A outra metade soltava gritos e rezava. As velas estavam rasgadas, os mastros quebrados, o navio fendido. Trabalhava quem podia, ninguém se entendia, ninguém comandava. O anabatista ajudava um pouco nas manobras. Estava no convés. Um marujo enfurecido lhe desfere um murro e o deixa estendido no chão do convés. Mas por causa do golpe lhe aplicou, ele próprio sofreu um baque tão violento que foi atirado de cabeça para fora do navio. Ficou dependurado, agarrado a uma parte do mastro partido. O bom Jacques corre para socorrê-lo, ajuda-o a subir e, com o esforço que fez, é precipitado no mar na frente do marinheiro que o deixou morrer, sem ao menos dignar-se olhar para ele. Cândido se aproxima, vê seu benfeitor reaparecer por um instante e ser engolido para sempre. Quer jogar-se ao mar atrás dele. O filósofo Pangloss o impede, provando-lhe que a enseada de Lisboa havia sido formada expressamente para que esse anabatista nela se afogasse. Enquanto estava provando isso a priori, o navio se parte ao meio. Todos morrem, salvo Pangloss, Cândido e aquele brutamontes de marujo que afogara o virtuoso anabatista. O patife nadou com êxito até a praia, onde Pangloss e Cândido chegaram, agarrados a uma tábua. Depois de refazer-se um pouco, andaram em direção de Lisboa. Restava-lhes um pouco de dinheiro, com o qual esperavam safar-se da fome, após terem escapado da tempestade. Mal puseram os pés na cidade, chorando a morte de seu benfeitor, sentem a terra tremer sob seus passos. O mar, revolto, agiganta-se no porto e despedaça os navios ancorados. Turbilhões de chamas e cinzas cobrem as ruas e as praças públicas. As casas desmoronam, os tetos desabam sobre os alicerces que se espalham. Trinta mil habitantes de todas as idades e sexo são esmagados sob as ruínas. O marujo, assobiando e praguejando, dizia: - Deve haver alguma coisa para ganhar aqui. - Qual pode ser a razão suficiente deste fenômeno? Perguntava-se Pangloss. - O último dia do mundo chegou! Exclamava Cândido. O marujo corre imediatamente para o meio dos escombros, enfrenta a morte para encontrar dinheiro. Acha, pega-o, embebeda-se e, após ter curtido a ressaca, compra os favores da primeira moça de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas destruídas e no meio dos moribundos e mortos. Pangloss, no entanto, puxava-o pela manga. - Meu amigo, lhe dizia, isto não fica bem, está ofendendo a razão universal, está empregando mal seu tempo. _ Vá para o inferno! Respondeu o outro. Sou marujo, nasci na Batávia, andei quatro vezes em cima do crucifixo em quatro viagens ao Japão; e lá vem você, logo contra mim, com sua razão universal! Alguns estilhaços de pedra tinham ferido Cândido. Estava estirado na rua, coberto de destroços. Dizia a Pangloss: - Ai! Tente achar um pouco de vinho e óleo, que estou morrendo. - Este terremoto não é novidade, respondeu Pangloss. A cidade de Lima sofreu os mesmos abalos na América, no ano passado. Mesmas causas, mesmos efeitos. Certamente há uma corrente de enxofre debaixo da terra, desde Lima até Lisboa. - Nada mais provável, disse Cândido. Mas, pelo amor de Deus, um pouco de óleo e vinho. - Como, provável? Replicou o filósofo. Afirmo que a coisa está demonstrada. Cândido perdeu os sentidos e Pangloss lhe trouxe um pouco de água de uma fonte próxima. No dia seguinte, encontrando algumas provisões ao esgueirar-se entre os escombros, recobraram um pouco as forças. Em seguida, trabalharam como os outros para socorrer os habitantes que haviam escapado à morte. Alguns cidadãos socorridos por eles ofereceram-lhes o melhor jantar possível em meio a tamanho desastre. É verdade que a refeição foi servida em clima de tristeza. Os convivas regavam o pão com suas lágrimas, mas Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que não poderia ter sido de outra forma: - Porque, disse, tudo isto é o que há de melhor. De fato, se há um vulcão em Lisboa, não poderia estar em outro lugar, porquanto é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem. Um homenzinho de preto, funcionário de segundo escalão da Inquisição, que se encontrava a seu lado, educadamente tomou a palavra e disse: - Aparentemente, o senhor não acredita em pecado original, pois, se tudo está o melhor possível, então não houve nem queda nem castigo. - Peço humildemente perdão a Vossa Excelência, respondeu Pangloss, mais educadamente ainda, pois a queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis. - O senhor não acredita então na liberdade? Perguntou o representante da Inquisição. - Vossa Excelência há de me desculpar, disse Pangloss. A liberdade pode subsistir com a necessidade absoluta, pois era necessário que fôssemos livres, porquanto afinal a vontade determinada... Pangloss estava no meio da frase quando o representante da Inquisição acenou com a cabeça a seu criado que estava lhe servindo vinho do Porto ou d'Oporto. CAPÍTULO VI Como um belo auto de fé foi feito para impedir os terremotos e como Cândido foi açoitado. Depois do terremoto que havia destruído três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total que dar ao povo um belo auto de fé. Foi determinado pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimônia, é um segredo infalível para impedir a terra de tremer. Já tinham, para esse fim, prendido um biscainho que comprovadamente havia casado com sua comadre e dois portugueses que, ao comer um frango, tinham retirado a gordura. Depois do jantar, vieram prender o doutor Pangloss e seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter ouvido com ar de aprovação. Ambos foram levados separadamente para aposentos extremamente frescos, nos quais nunca eram incomodados pelo sol. Oito dias mais tarde, ambos foram vestidos com um sambenito e suas cabeças foram ornadas com mitras de papel. A mitra e o sambenito de Cândido estavam pintados com chamas invertidas e diabos desprovidos de cauda e garras, mas os diabos de Pangloss tinham garras e caudas e as chamas apontavam para cima. Nesses trajes, andaram em procissão e ouviram um sermão muito patético, seguido de uma bela música em fabordão. Cândido foi açoitado de modo cadenciado, enquanto cantavam. O biscainho e os dois homens que não haviam querido comer a gordura foram queimados, e Pangloss foi enforcado, embora não fosse esse o costume. No mesmo dia a terra tremeu de novo com um espantoso fragor. Cândido, espantado, estupefato, desvairado, todo ensanguentado, totalmente alvoroçado, dizia consigo mesmo: - Se este é o melhor dos mundos possíveis, o que será dos outros? Se eu tivesse sido tão somente açoitado, vá lá, já me aconteceu isso com os búlgaros. Mas, ó meu caro Pangloss, o maior dos filósofos, era preciso ver-te enforcado sem saber por quê? Oh! Meu caro anabatista, o melhor dos homens, era preciso que alguém te afogasse no porto! Oh! Senhorita Cunegundes, pérola entre as moças, era preciso que alguém te abrisse o ventre? Estava voltando, mal se equilibrando nas pernas, admoestado, açoitado, absolvido e abençoado, quando uma velha o abordou e lhe disse: - Meu filho, coragem, siga-me. CAPÍTULO VII Como uma velha tratou de Cândido e como ele reencontrou o objeto amado. Cândido se sentia sem coragem, mas acompanhou a velha até um casebre. Ela lhe deu um pote de pomada para passar no corpo, deixando-lhe também comida e bebida. Mostrou-lhe uma pequena cama bastante limpa, junta da qual havia uma muda de roupa completa. - Coma, beba, durma, disse-lhe, e que Nossa Senhora de Atocha, Santo Antônio de Pádua e São Tiago de Compostela cuidem bem de você. Voltarei amanhã. Cândido, ainda aturdido com tudo o que havia visto, com tudo o que havia sofrido e ainda mais com a caridade da velha, quis beijar-lhe a mão. - Não é a minha mão que você tem de beijar, disse a velha. Voltarei amanhã. Passe essa pomada, coma e durma. Apesar de tantas desgraças, Cândido comeu e dormiu. No dia seguinte, a velha lhe traz o café da manhã, examina-lhe as costas e ela própria o massageia com outra pomada. Mais tarde lhe traz o almoço. Retoma no final da tarde e traz o jantar. No terceiro dia, repete o ritual. - Quem é a senhora? Perguntava-lhe sempre Cândido. Quem lhe inspirou tanta bondade? Como posso agradecer-lhe? A bondosa mulher nunca respondia. Voltou à tardinha e não trouxe nada para o jantar. - Venha comigo, disse, e não diga uma palavra sequer. Toma-o pelo braço e sai andando com ele pelo campo por aproximadamente um quarto de milha. Chegam numa casa isolada, cercada de jardins e canais. A velha bate a uma pequena porta. Alguém abre. Por uma escada secreta, leva Cândido até um aposento dourado, deixa-o num sofá de brocardo, fecha a porta e vai embora. Cândido pensava estar sonhando e revia toda a sua vida como um pesadelo e o momento atual como um sonho agradável. A velha reapareceu logo. Amparava com dificuldade uma mulher trêmula, de porte majestoso, cintilante de pedrarias e coberta por um véu. - Tire esse véu, disse a velha para Cândido. O jovem se aproxima. Tira o véu com uma mão tímida. Que momento! Que surpresa! Acredita ver a senhorita Cunegundes. E a estava vendo de fato, era ela própria. Faltam-lhe forças, não consegue proferir uma palavra sequer, cai a seus pés. Cunegundes cai no sofá. A velha os asperge com águas preparadas. Recuperam os sentidos e se falam. De início são palavras entrecortadas, perguntas e respostas que se cruzam, suspiros, lágrimas, gritos. A velha recomenda-lhes para fazer menos barulho e os deixa em paz. - Como! É você, diz Cândido, você está viva! E encontro você em Portugal! Então não foi violentada? Não lhe rasgaram a barriga, como me havia assegurado o filósofo Pangloss? - É verdade, sim, disse a bela Cunegundes, mas nem sempre se morre desses dois acidentes. - Mas seu pai e sua mãe foram mortos? - É a pura verdade, disse Cunegundes chorando. - E seu irmão? - Meu irmão também foi morto. - E por que está em Portugal? E como soube que eu também estava? E por qual estranho acaso me trouxe até esta casa? - Dir-lhe-ei tudo isso, replicou a dama, mas antes terá que me contar tudo o que aconteceu com você desde o inocente beijo que me deu e os pontapés que levou. Cândido obedeceu com profundo respeito e, embora confuso, embora com voz fraca e trêmula, embora ainda lhe doessem as costas, contou-lhe da maneira mais singela tudo o que havia sofrido desde o momento da separação. Cunegundes erguia os olhos para o céu. Derramou lágrimas pela morte do bom anabatista e de Pangloss. Depois disso, falou nos seguintes termos a Cândido, que não perdia uma única palavra e que a devorava com os olhos: CAPÍTULO VIII História de Cunegundes. - Estava na minha cama e dormia profundamente, quando o céu achou por bem enviar os búlgaros a nosso lindo castelo de Thunder-ten-tronckh. Degolaram meu pai e meu irmão e cortaram minha mãe em pedaços. Um búlgaro alto, de seis pés de altura, percebendo que eu havia perdido os sentidos ao assistir a esse espetáculo, se pôs a estuprar-me. Isso fez com que voltasse a mim, recobrei os sentidos, gritava, me debati, mordi, arranhava, queria arrancar os olhos desse grande búlgaro, sem saber que tudo o que estava acontecendo no castelo de meu pai era coisa usual. O brutamontes me deu uma facada no lado esquerdo, da qual ainda guardo a cicatriz. - Ai! Espero poder vê-la, disse o ingênuo Cândido. - Você a verá, disse Cunegundes; mas continuemos. - Prossiga, disse Cândido. Retomou assim o fio da história: "Um capitão búlgaro entrou, viu-me toda ensanguentada, e o soldado não se importava. O capitão ficou furioso com a falta de respeito que aquele brutamontes lhe demonstrava, e matou-o em cima de meu corpo. Em seguida, mandou tratar meus ferimentos e me levou como prisioneira de guerra para seu acampamento. Passei a lavar as poucas camisas que ele possuía e cozinhava para ele. Devo confessá-lo, o capitão me achava muito bonita. De minha parte, não poderia negar que ele tinha um belo porte e uma pele branca e macia. Por outro lado, pouco espírito, pouca filosofia. Bem se via que não tinha sido educado pelo doutor Pangloss. Ao cabo de três meses, tendo perdido todo o seu dinheiro bem como o interesse por mim, vendeu-me a um judeu, chamado Dom Issacar, que traficava na Holanda e em Portugal e que era louco por mulheres. Esse judeu ficou muito apegado a mim, mas não conseguia vencer-me. Resisti-lhe melhor do que ao soldado búlgaro. Uma pessoa honrada pode ser violentada uma vez, mas com isso sua virtude fica fortalecida." "O judeu, para me domesticar, trouxe-me para esta casa de campo que está vendo. Até então acreditara que não havia no mundo nada mais belo que o castelo de Thunder-ten-tronckh; acabei me convencendo do contrário." "O grande inquisidor viu-me um dia na missa. Fitava-me seguidamente e mandou dizer que precisava falar comigo sobre assuntos secretos. Fui levada até o palácio dele. Revelei-lhe minhas origens e fez-me ver o quanto estava abaixo de minha linhagem pertencer a um israelita. Mandou propor a Dom Issacar que me cedesse ao monsenhor. Dom Issacar, que é banqueiro da corte e homem de crédito, não quis ceder. O inquisidor ameaçou-o com um auto de fé. Por fim, meu judeu, intimidado, selou um acordo, pelo qual a casa e eu pertenceríamos a ambos em comum. O judeu teria para ele as segundas, quartas e o dia de sábado e o inquisidor teria os outros dias da semana. Esta convenção já dura seis meses. Não correu sem controvérsias, pois muitas vezes houve indecisão para determinar se a noite de sábado para domingo pertencia à antiga ou à nova lei. Quanto a mim, resisti até agora a ambos, e acredito que é por essa razão que sempre fui amada pelos dois." "Enfim, para afastar o flagelo dos terremotos e para intimidar Dom Issacar, o monsenhor inquisidor achou por bem celebrar um auto de fé. Deu-me a honra de me convidar. Fiquei num ótimo lugar. Entre a missa e a execução, foram servidos refrescos para as damas. Na verdade, fiquei horrorizada ao ver queimarem aqueles dois judeus e o honrado biscainho que tinha casado com sua comadre. Mas qual não foi minha surpresa, meu espanto, minha perturbação ao ver, vestido com um sambenito e sob uma mitra, um vulto que se parecia com Pangloss! Esfreguei os olhos, olhei com atenção e o vi pendendo da forca. Cai desmaiada. Mal estava recobrando os sentidos, vi você totalmente despido. Foi o cúmulo do horror, da consternação, da dor, do desespero. Não poderia deixar de dizer que, na verdade, sua pele é ainda mais branca e de um rosado mais perfeito que a do meu capitão dos búlgaros. Essa visão redobrou todos os sentimentos que me atormentavam, que me devoravam. Comecei a gritar, quis dizer: “Parem com isso, bárbaros”!, mas minha voz falhou e meus gritos teriam sido inúteis. Depois que você repetidamente açoitado, dizia: "Como é possível que o adorável Cândido e o sábio Pangloss se encontrem em Lisboa, um para receber cem chicotadas, outro para ser enforcado por ordem de monsenhor o inquisidor, do qual sou amante”? Então Pangloss me enganou cruelmente, quando me dizia que tudo está da melhor maneira possível neste mundo." "Agitada, desvairada, ora fora de mim, ora prestes a morrer de fraqueza, tinha a cabeça totalmente tomada pelo massacre de meu pai, de minha mãe, de meu irmão, da insolência de meu maldito soldado búlgaro, da facada que me dera, de meu ofício de cozinheira, de meu capitão búlgaro, de meu detestável Dom Issacar, de meu abominável inquisidor, do enforcamento do doutor Pangloss, desse longo miserere em fabordão, durante o qual você era açoitado, e sobretudo do beijo que lhe dera atrás de um biombo, o dia em que o vi pela última vez. Louvava a Deus que trazia você de volta para mim, após tantas provações. Recomendei à minha velha que cuidasse de você e o trouxesse para cá assim que pudesse. Ela desempenhou seu papel de modo excelente e tive o prazer indizível de vê-lo novamente, de ouvi-lo, de falar com você. Deve estar com uma fome terrível, Eu estou com um apetite formidável. Comecemos pelo jantar." Ambos se sentam à mesa. Depois do jantar, se acomodam no belo sofá já mencionado. Estavam tranquilos, quando chegou Dom Issacar, um dos donos da casa. Era um sábado. Vinha gozar de seus direitos e demonstrar seu temo amor. CAPÍTULO IX O que aconteceu a Cunegundes, a Cândido, ao inquisidor e ao judeu. Esse Issacar era o hebreu mais colérico que já se viu em Israel desde o cativeiro da Babilônia. - Como! Disse, cadela de uma galileia, já não te basta o inquisidor? Este patife também tem que dividir comigo? Dizendo isso, puxou de um belo punhal, de que estava sempre munido, e sem pensar que o adversário estivesse armado, precipita-se sobre Cândido. Nosso bom vestfaliano, porém, havia recebido uma bela espada velha, junto com a indumentária completa. Puxa a adaga, embora fosse de gênio bem pacato, e estira o israelita rijo no chão, aos pés da bela Cunegundes. - Virgem Santa! Exclamou esta, o que será de nós? Um homem morto em minha casa! Se a justiça vier, estamos perdidos. - Se Pangloss não tivesse sido enforcado, disse Cândido, nos daria um bom conselho nesta emergência, pois era um grande filósofo. Na falta dele, consultemos a velha. Ela era muito prudente e começava a dar sua opinião, quando outra pequena porta se abriu. Já passava de uma hora da madrugada, começava o domingo. Esse dia pertencia ao senhor inquisidor. Ele entra e vê o açoitado Cândido de espada em punho, um morto estirado no chão, Cunegundes apavorada e a velha dando conselhos. Eis o que se passou, nesse momento, na alma de Cândido e como ele raciocinou: "Se este santo homem pedir socorro, me mandará infalivelmente para a fogueira; poderá fazer a mesma coisa com Cunegundes; mandou açoitar-me impiedosamente; é meu rival; posso matá-lo agora, não posso vacilar”. Esse raciocínio foi claro e rápido e, sem dar tempo ao inquisidor para refazer-se da surpresa, traspassa-lhe o corpo com a espada e joga-o ao lado do judeu. - Aí está mais um, disse Cunegundes. Agora não há mais remissão. Estamos excomungados, chegou nossa hora derradeira. Como é que você fez, nascido com caráter tão bom, para matar em dois minutos um judeu e um prelado? - Minha linda menina, respondeu Cândido, quando um homem está apaixonado, com ciúmes e açoitado pela inquisição, acaba perdendo o controle. A velha tomou então a palavra e disse: - Há três cavalos andaluzes na estrebaria, devidamente arreados. Que o bravo Cândido os prepare. A senhorita tem moedas de ouro e diamantes. Vamos montar depressa, embora eu só possa sentar numa só nádega, e vamos para Cádiz. Está um tempo maravilhoso, o melhor do mundo, e é um grande prazer viajar no frescor da noite. Cândido se apressa em encilhar os três cavalos. Cunegundes, a velha e ele percorrem trinta milhas de um fôlego. Enquanto estavam se afastando, a Santa Irmandade chega na casa. Enterram monesenhor numa linda igreja e jogam Issacar no monturo. Cândido, Cunegundes e a velha já estavam na pequena cidade de Avacena, no meio das montanhas de Sierra Morena, e assim falavam numa taberna: CAPÍTULO X Com que aflição Cândido, Cunegundes e a velha chegam em Cádiz, e seu embarque. - Quem poderia ter roubado minhas pistolas e meus diamantes? Dizia Cunegundes chorando. De que viveremos? Que faremos? Onde encontrar inquisidores e judeus que me deem outros? - Ai! Desconfio muito, disse a velha, de um reverendo padre franciscano que pousou ontem à noite na mesma hospedaria que nós em Badajoz. Deus me livre de fazer um julgamento temerário! Mas entrou duas vezes em nosso quarto e partiu muito antes de nós. - Ah! Disse Cândido, o bom Pangloss me havia provado com frequência que os bens terrestres são comuns a todos os homens, que cada um tem igual direito sobre eles. Esse franciscano devia sem dúvida, segundo seus princípios, deixar-nos o suficiente para concluir nossa viagem. Então não lhe sobrou absolutamente nada, minha linda Cunegundes? - Nem um maravedi, respondeu ela. - O que fazer então? Tomou a perguntar Cândido. - Vamos vender um dos cavalos, interveio a velha. Montarei na garupa atrás da senhorita, embora eu só possa me apoiar numa nádega, e chegaremos a Cádiz. Havia na mesma hospedaria um prior beneditino que comprou o cavalo por uma ninharia. Cândido, Cunegundes e a velha passaram por Lucena, Chillas, Labrija e chegaram finalmente em Cádiz. Lá estavam equipando uma frota e reunindo tropas para trazer à razão os reverendos padres jesuítas do Paraguai que eram acusados de incitar à revolta uma de suas hordas contra os reis da Espanha e Portugal, perto da cidade de Sacramento. Cândido, que havia servido com os búlgaros, fez o exercício búlgaro diante do general do pequeno exército com tanta graça, celeridade, destreza, altivez e agilidade, que lhe deram o comando de um pelotão de infantaria. Ei-lo capitão. Embarca com a senhorita Cunegundes, a velha, dois criados e os dois cavalos andaluzes que haviam pertencido ao grande inquisidor de Portugal. Durante toda a travessia, discutiram muito sobre a filosofia do pobre Pangloss. - Estamos indo para outro universo, dizia Cândido; deve ser nele, sem dúvida, que tudo está bem. De fato, temos de admitir que havia do que lastimar um pouco sobre o que acontece no nosso, sob o aspecto físico e também sob o moral. - Eu o amo de todo coração, dizia Cunegundes, mas minha alma ainda está chocada com tudo o que vi, com tudo o que senti. - Tudo vai correr bem, replicava Cândido. O mar deste novo mundo já vale mais que os mares de nossa Europa; é mais calmo, os ventos mais constantes. Com toda a certeza, é o novo mundo que é o melhor dos universos possíveis. - Deus o queira! Dizia Cunegundes. Mas fui tão horrivelmente infeliz no meu, que meu coração está quase fechado à esperança. - Estão se queixando, disse-lhes a velba, mas, ai!, Não passaram pelos infortúnios que passei. Cunegundes quase se pôs a rir e achou muita graça nessa boa mulher que pretendia ter sido mais infeliz que ela. - Ai, disse-lhe, minha querida, a menos que tenha sido violentada por dois búlgaros, que tenha sido esfaqueada por duas vezes na barriga, que tenham demolido dois de seus castelos, que tenham degolado sob seus olhos duas mães e dois pais e que tenha visto dois de seus amantes serem açoitados num auto de fé, não vejo como poderia ganhar de mim em desgraças. Acrescente a isso que nasci baronesa com setenta e dois quartéis de nobreza no brasão e fui cozinheira. - Senhorita, respondeu a velha, você não conhece minhas origens. E se eu lhe mostrasse meu traseiro, não falaria dessa maneira e suspenderia seus julgamentos. Essas palavras suscitaram uma extrema curiosidade na mente de Cunegundes e Cândido. A velha lhes falou nesses termos. CAPÍTULO XI História da velha. "Nem sempre tive os olhos injetados de sangue e as pálpebras avermelhadas. Nem sempre meu nariz encostou no meu queixo e nem sempre fui criada. Sou filha do Papa Urbano X e da princesa de Palestrina. Fui criada até os quatorze anos num palácio, perto do qual todos os castelos dos senhores alemães não serviriam de estábulo. E um só de meus vestidos valia mais que todas as magnificências da Vestfália. Crescia em beleza, em graça, em talentos, no meio dos prazeres, do respeito e das esperanças. Já inspirava amor, meus seios estavam se formando; e que seios! Brancos, firmes, talhados como aqueles da Vênus de Médicis. E que olhos! Que pálpebras! Que sobrancelhas negras! Que chamas brilhavam em minhas pupilas, que chegavam a obscurecer o cintilar das estrelas, como me diziam os poetas da vizinhança. As mulheres que me vestiam e me despiam ficavam em êxtase, quando me olhavam pela frente e pelas costas, e todos os homens teriam desejado estar no lugar delas. Fiquei noiva de um príncipe soberano de Massa Carrara. Que príncipe! Tão belo quanto eu, cheio de ternura e atenções, brilhante de espírito brilhante e ardente de amor. Amava-o como se ama pela primeira vez, com idolatria, com enlevo. As núpcias foram preparadas. Era uma pompa, uma magnificência inaudita. Eram festas, carrosséis, óperas-bufas contínuas e toda a Itália fez para mim sonetos, entre os quais não houve nenhum sofrível. Estava atingindo o momento de minha felicidade quando uma velha marquesa, que tinha sido amante de meu príncipe, convidou-o para tomar chocolate na casa dela. Morreu em menos de duas horas em terríveis convulsões. Mas isso ainda não foi quase nada. Minha mãe, desesperada e muito menos aflita que eu, resolveu retirar-se por algum tempo de moradia tão funesta. Possuía uma propriedade lindíssima perto de Gaeta. Embarcamos numa galera do país, dourada como o altar de São Pedro de Roma. Nisso, um corsário de Salé zarpa em nossa direção e nos aborda. Nossos soldados se defenderam como soldados do Papa: todos se ajoelharam, entregando as armas, e pediram para o corsário uma absolvição in articulo mortis. "Logo foram deixados nus como macacos, e minha mãe também, bem como nossas damas de honra e eu também. É coisa admirável a presteza com a qual esses senhores despem a todos. Mas o que me surpreendeu ainda mais é que meteram a todos o dedo num lugar onde, nós mulheres, geralmente só deixamos que introduzam seringas. Essa cerimônia me parecia muito estranha: desse modo é que julgamos tudo quando nunca saímos do país. Logo fiquei sabendo que era para verificar se não tínhamos escondido ali alguns diamantes; é um costume estabelecido desde tempos imemoráveis entre as nações civilizadas que singram os mares. Soube que os religiosos cavaleiros de Malta nunca deixam de fazer isso quando prendem turcos e turcas; é uma lei do direito das gentes que nunca foi derrogada. Não direi o quanto é duro para uma jovem princesa ser levada como escrava, com sua mãe, para o Marrocos. Podem imaginar tudo o que tive mos que sofrer no navio corsário. Minha mãe ainda era muito bonita; nossas damas de honra, até nossas criadas tinham mais charme do que se poderia encontrar por toda a África. Quanto a mim, eu era encantadora, tinha a beleza, a graça e era virgem. Não durou muito: essa flor que havia sido reservada para o belo príncipe de Massa-Carrara me foi arrebatada pelo capitão corsário. Era um negro abominável que ainda pensava fazer-me muita honra. Na verdade, a princesa de Palestrina e eu tivemos que ser muito fortes para resistir a todas as coisas pelas quais passamos até nossa chegada a Marrocos. Mas, paciência, são coisas tão comuns que não vale a pena falar delas. O Marrocos nadava em sangue quando chegamos. Dos cinquenta filhos do imperador Muley-Ismael cada um tinha um partido. Isso produzia, de fato, cinquenta guerras civis, de negros contra negros, de negros contra pardos, de pardos contra pardos, de mulatos contra mulatos. Era uma carnificina contínua em toda a extensão do império. Mal tínhamos desembarcado, negros de uma facção inimiga de nosso corsário apresentaram-se para arrebatar-lhe o fruto da rapina. Éramos nós, fora os diamantes e o ouro, o que ele tinha de mais precioso. Fui testemunha de um combate como nunca se costuma ver nos climas europeus. Os povos setentrionais não têm sangue bastante ardente. Não têm furor pelas mulheres como é comum na África. Parece que seus europeus têm leite nas veias; é vitríolo, é fogo que corre nas veias dos habitantes do monte Atlas e dos países vizinhos. Combateram com a fúria dos leões, dos tigres e das serpentes da região, para saber quem ficaria conosco. Um mouro agarrou minha mãe pelo braço direito, o lugar-tenente de meu capitão segurou-a pelo esquerdo; um soldado mouro pegou-a por uma perna, um de nossos piratas segurava-a pela outra. Nossas criadas viram-se quase todas, num momento, puxadas assim por quatro soldados. Meu capitão escondia-me atrás dele. Empunhava a cimitarra e matava tudo quanto se opunha à sua raiva. Por fim, vi todas nossas italianas e minha mãe cortadas, massacradas pelos monstros que as disputavam. Meus companheiros cativos, os que os tinham aprisionado, soldados, marujos, negros, pardos, brancos, mulatos e finalmente meu capitão, todos foram mortos. Fiquei agonizando sobre um monte de mortos. Cenas semelhantes se passavam, como se sabe, em toda a extensão de mais de trezentas léguas, sem que ninguém faltasse às cinco orações diárias ordenadas por Maomé. Desembaracei-me com muita dificuldade da multidão de cadáveres ensanguentados amontoados e arrastei-me para debaixo de uma grande laranjeira, à beira de um riacho próximo. Caí cheia de pavor, cansaço, horror, desespero e fome. Logo depois, meus sentidos exaustos se entregaram a um sono que mais parecia desmaio que repouso. Estava nesse estado de fraqueza e insensibilidade, entre a vida e a morte, quando me senti apertada por alguma coisa que se agitava sobre meu corpo. Abri os olhos, vi um homem branco e de boa aparência que suspirava e dizia entre os dentes: O che sciagura d'essere senza coglioni! (Oh, que desgraça, não ter mais colhões!). CAPÍTULO XII Continuação das desgraças da velha. Surpresa e encantada por ouvir a língua de minha pátria, e não menos surpresa pelas palavras esse homem proferia, respondi-lhe que havia piores desgraças do que aquela de que se queixava. Em poucas palavras contei-lhe os horrores pelos quais tinha passado e desfaleci novamente. Levou-me para uma casa vizinha, pediu para que me pusessem na cama, me dessem comida, serviu-me, consolou-me, elogiou-me, disse-me que nunca vira nada tão lindo como eu e que nunca havia lamentado tanto aquilo que ninguém podia devolver-lhe. - Nasci em Nápoles, disse-me, lá castram todo ano dois a três mil meninos. Uns morrem por causa disso, outros adquirem uma voz mais bela que a das mulheres, outros vão governar Estados. Fizeram essa operação em mim com grande sucesso e fui músico da capela da princesa de Palestrina. - De minha mãe! Exclamei. - De sua mãe! Gritou chorando. Como! Então você seria aquela princesinha que criei até a idade de seis anos e que já prometia ser tão bela quanto é agora? - Sou eu mesma. Minha mãe está a quatrocentos passos daqui, esquartejada, debaixo de um monte de mortos... Contei-lhe tudo o que me havia acontecido. Contou-me também suas aventuras e me relatou como fora mandado junto ao rei do Marrocos por uma potência cristã, a fim de concluir com esse monarca um tratado, pelo qual lhe seriam fornecidos pólvora, canhões e navios para ajudá-lo a exterminar o comércio dos outros cristãos. - Minha missão está cumprida, disse o honrado eunuco. Vou embarcar para Ceuta e a levarei de volta para a Itália. Ma che sciagura d'essere senta coglioni! Agradeci-lhe com enterneci das lágrimas e, em vez de me levar para a Itália, conduziu-me para Argel e vendeu-me ao bei dessa província. Mal fora vendida, essa peste que percorreu a África, a Ásia e a Europa se alastrou em Argel com violência. A senhorita já viu terremotos, mas já chegou a contrair a peste? - Nunca, respondeu a baronesa. - Se a tivesse contraído, retomou a velha, reconheceria que é muito pior que um terremoto. É muito comum na África; fui acometida. Imagine que situação para a filha de um Papa, com quinze anos, que em três meses conhecera a pobreza, a escravidão, havia sido violentada quase todos os dias, tinha visto sua mãe ser esquartejada, tinha enfrentado fome e guerra, e estava morrendo de peste em Argel. No entanto, não morri. Meu eunuco e o bei, porém, e quase todo o serralho de Argel pereceram. Quando as primeiras devastações dessa peste medonha haviam passado, os escravos do bei foram postos à venda. Um mercador me comprou e me levou para Túnis. Vendeu-me para outro mercador que me revendeu em Trípoli. De Trípoli fui novamente vendida em Alexandria, de Alexandria vendida em Esmirna, de Esmirna em Constantinopla. Pertenci finalmente a um aga dos janízaros que logo foi enviado para defender Azof contra os russos que a estavam sitiando. O aga, que era um cavalheiro muito fino, levou consigo todo o serralho e nos alojou num pequeno forte em Palus-Meotides, guardado por dois eunucos negros e vinte soldados. Mataram um número prodigioso de russos, mas eles nos pagaram na mesma moeda. Azof foi posta a fogo e sangue, e não perdoaram nem sexo nem idade. Só restou nosso pequeno forte. Os inimigos quiseram vencer-nos pela fome. Os vinte janízaros tinham jurado jamais render-se. Os limites da fome a que foram reduzidos os forçaram a comer nossos dois eunucos, por receio de quebrarem o juramento. Alguns dias mais tarde, resolveram comer as mulheres. Tínhamos um imame muito piedoso e compassivo que lhes pregou um belo sermão, por meio do qual os persuadiu a não nos matarem. - Cortem, disse ele, somente uma nádega de cada uma dessas mulheres, e já terão com que deleitar-se. Se for necessário mais, terão outro tanto dentro de alguns dias. O céu os recompensará por essa ação tão caridosa e receberão socorro. Era muito eloquente, conseguiu persuadi-los. Fizeram-nos essa horrível operação. O imame nos aplicou o mesmo bálsamo usado para os meninos que acabam de ser circuncidados. Estávamos todas à beira da morte. Mal os janízaros haviam terminado a refeição que lhes havíamos fornecido, chegam os russos em chatas. Nenhum janízaro escapou. Os russos não deram a mínima atenção ao estado em que nos encontrávamos. Cirurgiões franceses, os há por toda parte. Um deles, que era muito habilidoso, cuidou de nós. Ele nos curou e, por toda minha vida vou lembrar que, depois que minhas feridas ficaram bem cicatrizadas, me fez propostas. De resto; disse-nos a todas que nos consolássemos. Assegurou-nos que, em vários cercos, acontecera a mesma coisa e que era a lei da guerra. Assim que minhas companheiras puderam andar, mandaram-nos para Moscou. Passei a pertencer a um boiardo que fez de mim sua jardineira e que me aplicava vinte chibatadas por dia. Mas esse senhor, tendo sido supliciado dois anos depois com uns trinta boiardos por alguma intriga da corte, aproveitei dessa oportunidade e fugi. Atravessei toda a Rússia. Trabalhei por muito tempo como criada numa taberna em Riga, depois em Rostock, em Vismar, em Leipzig, em CasseI, em Utrecht, em Leyde, em Haia, em Róterdã. Envelheci na miséria e no opróbrio, com apenas a metade do traseiro, lembrando-me sempre que era filha de um Papa. Cem vezes quis matar-me, mas ainda amava a vida. Essa fraqueza ridícula talvez seja uma de nossas inclinações mais funestas. De fato, há coisa mais tola do que querer carregar continuamente um fardo que sempre queremos jogar no chão? Sentir horror por seu próprio ser e continuar apegada a ele? Enfim, acariciar a serpente que nos devora, até que nos tenha tragado o coração? Vi, nos países que a sorte me levou a percorrer e nas tabernas onde servi, um número prodigioso de pessoas que execravam sua própria existência, mas só vi doze que acabaram voluntariamente com a própria miséria: três negros, quatro ingleses, quatro genebrinos e um professor alemão chamado Robeck. Acabei como criada na casa do judeu Dom Issacar me encarregou de servi-la, minha bela senhorita. Liguei-me a seu destino e me preocupei mais com suas aventuras do que com as minhas. Nunca lhe teria falado de minhas desgraças, se não me tivesse melindrado um pouco e se não fosse costume, a bordo de um navio, contar histórias para espantar o tédio. Enfim, senhorita, tenho experiência, conheço o mundo. Faça algo que lhe dará prazer, convide cada passageiro a contar-lhe a própria história. Se encontrar um só que não tenha amaldiçoado muitas vezes a vida, que não tenha dito muitas vezes a si mesmo que era o mais infeliz dos homens, pode então atirar-me de cabeça ao mar. CAPÍTULO XIII Como Cândido foi obrigado a separar-se da bela Cunegundes e da velha. A bela Cunegundes, após ler ouvido a história da velha, lhe dispensou todas as atenções devidas a uma pessoa de sua posição e mérito. Aceitou a proposta. Convidou todos os passageiros, um após outro, a contar-lhe suas aventuras. Cândido e ela confessaram que a velha tinha razão. - É uma pena realmente, dizia Cândido, que o sábio Pangloss tenha sido enforcado, contra a tradição, num auto de fé. Ele nos diria coisas admiráveis sobre o mal físico e o mal moral que cobrem terra e mar, e sentiria bastante ânimo para ousar apresentar-lhe respeitosamente algumas objeções. À medida que cada um contava sua história, o navio avançava. Aportaram em Buenos Aires. Cunegundes, o capitão Cândido e a velha foram para a casa do governador Dom Fernando de Ibaraa y Figueroa y Mascarenes y Lampourdos y Souza. Esse senhor aparentava uma altivez que convinha a um homem com tantos nomes. Falava com os homens com o mais nobre desdém, empinando tanto o nariz, elevando tão implacavelmente a voz, adotando um tom tão imponente, afetando um andar tão altaneiro, que todos aqueles que o cumprimentavam sentiam vontade de bater nele. Gostava furiosamente de mulheres. Cunegundes pareceu-lhe a coisa mais bela que já tivesse visto. A primeira coisa que fez foi perguntar-lhe se não era esposa do capitão. A maneira como fez essa pergunta alarmou Cândido. Não ousou dizer que era sua mulher, porque de fato não o era. Não ousou dizer tampouco que era sua irmã, porque realmente não o era. Embora essa mentira oficiosa estivesse outrora muito na moda, entre os antigos e pudesse ser útil aos modernos, sua alma era demasiadamente pura para trair a verdade. - A senhorita Cunegundes, disse, deve conceder-me a honra de casar-se comigo e suplicamos a Vossa Excelência que se digne em celebrar nosso casamento. Don Fernando de Ibaraa y Figueroa y Mascarenes y Lampourdos y Souza sorriu amargamente, cofiando o bigode, e ordenou que o capitão Cândido fosse passar em revista seu pelotão. Cândido obedeceu e o governador permaneceu com a senhorita Cunegundes. Declarou sua paixão por ela, propôs-lhe que no dia seguinte poderiam casar-se segundo os rituais da Igreja, ou de outra forma, conforme melhor aprouvesse a seus encantos. Cunegundes pediu um quarto de hora para recolher-se, para consultar a velha e para tomar uma decisão. A velha disse para Cunegundes: - A senhorita tem setenta e dois quartéis no brasão e nem um tostão sequer. Só depende de você tornar-se a mulher do maior senhor da América meridional, que tem um bigode lindíssimo. Será que tem de teimar numa fidelidade a toda prova? Foi violentada pelos búlgaros, um judeu e um inquisidor já usufruíram de seus encantos. As desgraças conferem direitos. Confesso que, se eu estivesse em seu lugar, não teria nenhum escrúpulo em casar com o senhor Governador e fazer a fortuna do capitão Cândido. Enquanto a velha estava falando, com toda a prudência que a idade e a experiência conferem, viram entrar no porto um pequeno navio que trazia um alcaide e alvazis. Eis o que havia acontecido. A velha tinha adivinhado muito bem que tivesse sido um franciscano de mangas largas quem roubara o dinheiro e as joias de Cunegundes na cidade de Badajoz, quando ela estava fugindo às pressas com Cândido. Esse monge quis vender algumas das pedras preciosas a um joalheiro. O comerciante reconheceu-as como pertencentes ao grande inquisidor. Antes de ser enforcado, o franciscano confessou que as tinha roubado. Indicou as pessoas e a rota que haviam tomado. A fuga de Cunegundes e Cândido já era conhecida. Foram seguidos em Cádiz. Sem perder tempo, mandaram um navio em seu encalço. O navio já estava no porto de Buenos Aires. Espalhou-se o boato que um alcaide ia desembarcar e que estavam perseguindo os assassinos de monsenhor, o grande inquisidor. A prudente velha viu imediatamente tudo o que deveria ser feito. - Você não pode fugir, disse a Cunegundes, e não tem nada a temer. Não foi você quem matou monsenhor. Por outro lado, o governador, que a ama, não deixará que a maltratem. Fique. Corre imediatamente para Cândido: - Fuja, disse, ou dentro de uma hora será queimado. Não havia tempo a perder. Mas como separar-se de Cunegundes e onde buscar refúgio? CAPÍTULO XIV Como Cândido e Cacambo foram recebidos pelos jesuítas do Paraguai. Cândido trouxera de Cádiz um criado, como existem muitos nas costas da Espanha e nas colônias. Era um quarto de espanhol, nascido de um mestiço em Tucuman. Tinha sido coroinha, sacristão, marujo, monge, carregador, soldado, lacaio. Chamava-se Cacambo e gostava muito de seu amo porque seu amo era um homem muito bom. Selou às pressas os dois cavalos andaluzes. - Vamos, meu patrão, vamos seguir o conselho da velha. Vamos embora correndo, sem olhar para trás. Cândido derramou lágrimas: - Oh, minha querida Cunegundes! Será que tenho que abandoná-la quando o senhor Governador vai preparar nossas núpcias? Cunegundes, trazida de tão longe, que será de você? - Será o que tiver de ser, disse Cacambo. As mulheres nunca se enrascam; Deus provê. Vamos! - Para onde está me levando? Para onde vamos? Que faremos sem Cunegundes? Dizia Cândido. - Por São Tiago de Compostela, disse Cacambo. O senhor estava partindo para guerrear contra os jesuítas. Vamos combater ao lado deles. Conheço bastante bem os caminhos, vou levá-lo para o reino deles. Ficarão encantados por terem um capitão que faz exercícios à moda búlgara. Haverá de acumular uma fortuna prodigiosa. Quando não temos sucesso num mundo, procuramos por ele em outro. É um prazer muito grande ver e fazer coisas novas. - Então já esteve no Paraguai? Perguntou Cândido. - Já estive sim! Disse Cacambo. Fui empregado no colégio de Assunção e conheço o governo de Los Padres tão bem como as ruas de Cádiz. Esse governo é qualquer coisa de admirável. O reino já tem mais de trezentas léguas de diâmetro. Está dividido em trinta províncias. Nele, Los Padres têm tudo e o povo, nada. É a obra-prima da razão e da justiça. Eu pessoalmente, não vejo nada de tão divino nesses Los Padres que aqui movem guerra contra o rei da Espanha e contra o rei de Portugal e que na Europa confessam esses reis; que aqui matam espanhóis e que em Madri os mandam para o céu. Acho isso muito engraçado. Vamos adiante, você vai ser o mais feliz dos homens. Que prazer terão Los Padres quando souberem que está chegando um capitão que conhece exercícios búlgaros! Assim que chegaram à primeira barreira, Cacambo disse para a guarda avançada que um capitão pedia para falar com o monsenhor comandante. Mandaram avisar a guarda principal. Um oficial paraguaio correu aos pés do comandante para comunicar-lhe a notícia. Cândido e Cacambo foram primeiramente desarmados; tomaram seus dois cavalos andaluzes. Os dois estrangeiros foram introduzidos no meio de duas fileiras de soldados. O comandante estava na ponta, chapéu de três bicos na cabeça, batina arregaçada, espada à cinta, lança na mão. Fez um sinal e logo vinte e quatro soldados cercam os dois recém-chegados. Um sargento lhes diz que é preciso esperar, que o comandante não pode falar com eles, que o reverendo padre provincial não permite que nenhum espanhol abra a boca a não ser em sua presença, nem que permaneça mais de três horas no país. - E onde está o reverendo padre provincial? Perguntou Cacambo. - Está na parada depois de ter rezado a missa, respondeu o sargento, e só poderão beijar as esporas dele daqui a três horas. - Mas, continuou Cacambo, o senhor capitão, que está morrendo de fome como eu, não é espanhol, é alemão; será que não poderíamos almoçar, enquanto esperamos Sua Reverendíssima? O sargento foi imediatamente comunicar essas palavras ao comandante. - Deus seja louvado! Disse esse senhor. Já que é alemão, posso falar com ele. Levem-no para meu caramanchão. Cândido foi conduzido em seguida para um ambiente cheio de folhagens, cercado por uma linda colunata de mármore verde e ouro e por grades que encerravam periquitos, colibris, beija-flores, galinhas de angola e todas as aves, das mais raras. Um excelente almoço estava preparado, a ser servido em baixelas de ouro. E enquanto os paraguaios comiam milho em tigelas de madeira, ao ar livre, com o sol a pino, o reverendo padre comandante entrou no caramanchão. Era um belo jovem, de rosto cheio, muito branco, bem corado, sobrancelhas salientes, olhar vivo, orelhas rosadas, lábios rubros, ar altivo, mas de uma altivez que não era nem a de um espanhol, nem a de um jesuíta. As armas de Cândido e Cacambo, que haviam sido recolhidas, lhes foram devolvidas, bem como os dois cavalos andaluzes. Cacambo lhes deu aveia para comer, perto do caramanchão, sempre de olho neles, com medo de alguma surpresa. Cândido beijou primeiramente a orla da roupagem do comandante e, a seguir, tomaram lugar à mesa. - Pois então, o senhor é alemão? Lhe disse o jesuíta nessa língua. - Sou sim, reverendo padre, respondeu Cândido. Tanto um como outro, ao pronunciar essas palavras, se olhavam com extrema surpresa e uma emoção que não conseguiam dominar. - E de que região da Alemanha é? Perguntou o jesuíta. - Da maldita província da Vestfália, respondeu Cândido. Nasci no castelo de Thunder-ten-tronckh. - Ó céus! Não é possível! Exclamou o comandante. - Que milagre! Gritou Cândido. - Será que é mesmo o senhor? Disse o comandante. - Não é possível! Disse Cândido. Os dois recuam estupefatos, se beijam, derramam torrentes de lágrimas. - Como! Seria o senhor, meu reverendo padre? O senhor, irmão da bela Cunegundes! O senhor, que foi morto pelos búlgaros! O senhor, filho do barão! O senhor, jesuíta no Paraguai! Devo confessar que este mundo é uma coisa estranha. Ó Pangloss! Pangloss! Como você estaria feliz se não tivesse sido enforcado! O comandante mandou que se retirassem os escravos negros e os paraguaios que serviam bebidas em taças de cristal de rocha. Agradeceu mil vezes a Deus e a Santo Inácio. Abraçava fortemente Cândido. Os rostos de ambos estavam inundados de lágrimas. - Ficaria muito mais surpreso, mais comovido, mais fora de si, disse Cândido, se lhe falasse que a senhorita Cunegundes, sua irmã, que o senhor acreditou ter sido destripada, está cheia de saúde. - Onde? - Aqui bem próximo, na casa do senhor governador de Buenos Aires. E eu vinha aqui para guerrear contra o senhor! Cada palavra que pronunciavam nessa longa conversa acumulava prodígios sobre prodígios. A alma deles por inteiro voava na ponta da língua, permanecia atenta nos ouvidos e faiscava em seus olhos. Como eram alemães, ficaram muito tempo à mesa, esperando o reverendo padre provincial. E o comandante falou assim para seu querido Cândido: CAPÍTULO XV Como Cândido matou o irmão de sua amada Cunegundes. - Por toda a minha vida conservarei presente em minha memória o dia horrível em que vi matarem meu pai e minha mãe e violentarem minha irmã. Quando os búlgaros se retiraram, não foi possível encontrar aquela irmã adorável, e puseram numa carroça minha mãe, meu pai e eu, duas criadas e três meninos degolados, para nos enterrarem numa capela de jesuítas, a duas léguas do castelo de meus pais. Um jesuíta nos jogou água benta. Estava horrivelmente salgada. Umas gotas entraram em meus olhos. O padre percebeu que minhas pálpebras se mexeram levemente. Pôs a mão sobre o meu coração e o sentiu palpitar. Fui socorrido e, duas semanas mais tarde, estava totalmente refeito. Sabe, meu caro Cândido, que eu era muito bonito; fiquei mais bonito ainda. Por isso o reverendo padre Croust, superior da casa, sentiu-se tomado da mais tenra amizade por mim. Deu-me o hábito de noviço e, pouco tempo depois, fui enviado a Roma. O padre geral estava precisando de uma leva de jovens jesuítas alemães. Os soberanos do Paraguai evitam ao máximo receber jesuítas espanhóis. Preferem os estrangeiros que, assim pensam, podem dominar melhor. Fui julgado apto, pelo reverendo padre geral, para ir trabalhar nessa vinha. Partimos, um polonês, um tirolês e eu. Ao chegar, fui honrado com a função de subdiácono e com o posto de lugar-tenente. Hoje sou coronel e padre. Recebemos à altura as tropas do rei da Espanha. Posso garantir-lhe que serão excomungadas e derrotadas. A Providência o envia aqui para nos ajudar. Mas é realmente verdade que minha irmã Cunegundes estás nas proximidades, na casa do governador de Buenos Aires? Cândido jurou que nada era mais verdadeiro. As lágrimas começaram a rolar. O barão não se cansava de abraçar Cândido. Chamava-o de irmão, de salvador. - Ah! Quem sabe, meu caro Cândido, disse-lhe, não possamos entrar vitoriosos na cidade e retomar minha irmã Cunegundes. - É o que mais desejo, disse Cândido; pois pensava em desposá-la e ainda espero. - Seu insolente! Respondeu o barão, teria a impudência de se casar com minha irmã que tem setenta e dois quartéis no brasão! Parece-me muito atrevido em ousar falar comigo de tão temerário desígnio! Cândido, petrificado por essas palavras, lhe respondeu: - Meu reverendo padre, todos os quartéis do mundo não contam absolutamente nada agora. Arranquei sua irmã dos braços de um judeu e de um inquisidor. Ela me deve muitas obrigações e quer casar-se comigo. Mestre Pangloss sempre me disse que os homens são iguais e, com certeza, a desposarei. - É o que veremos, patife! Disse o jesuíta barão de Thunder-ten-tronckh, enquanto lhe desferia no rosto um violento golpe com folha da espada. No mesmo instante, Cândido puxa a sua e a enterra até a guarda na barriga do barão jesuíta. Mas ao retirá-la ainda banhada de sangue quente, caiu no choro: - Ah! Meu Deus, matei meu antigo amo, meu amigo, meu cunhado. Sou o melhor homem do mundo e já são três homens que mato. E desses três, dois eram padres. Cacambo, que montava guarda à entrada do caramanchão, acorreu. - Só nos resta vendermos caro nossa vida, lhe disse o amo. Certamente vão entrar no caramanchão, teremos de morrer de armas em punho. Cacambo, que já passara por outros apertos, não perdeu a cabeça. Tirou a roupa de jesuíta do barão, vestiu-a no corpo de Cândido, deu-lhe o chapéu quadrado do morto e fez montar a cavalo. Isso tudo num piscar de olhos. - A galope, meu amo! Todos vão pensar que é um jesuíta que vai dar ordens e teremos passado as fronteiras antes que possam sair a nosso encalço. Ao pronunciar essas palavras, já estava voando e gritando em espanhol: - Abram alas, deixem passar o reverendo padre coronel. CAPÍTULO XVI O que aconteceu com os dois viajantes com duas moças, dois macacos e os selvagens chamados Orelhudos. Cândido e seu criado passaram as barreiras e, no acampamento, ninguém sabia ainda da morte do jesuíta alemão. O vigilante Cacambo tivera o cuidado de encher o alforje de pão, chocolate, presunto, frutas, e alguns medidas de vinho. Com os cavalos andaluzes, penetraram no país desconhecido, onde não descobriram nenhuma estrada. Finalmente, apareceu diante deles uma linda pradaria cortada por riachos. Nossos dois viajantes deixam seus cavalos pastando. Cacambo propõe a seu amo comer e dá o exemplo. - Como quer você, dizia Cândido, que eu coma presunto, quando acabei de matar o filho do barão e me sinto condenado a não voltar a ver a bela Cunegundes de minha vida? De que me servirá prolongar meus miseráveis dias, já que tenho que arrastá-los longe dela, em remorsos e desespero? E o que vai dizer o jornal de Trévoux? Estava falando assim, mas nem por isso deixou de comer. O sol ia se pondo. Os dois desnorteados ouviram uns gritinhos que pareciam ser de mulheres. Não sabiam se eram gritos de dor ou de alegria, mas levantaram-se às pressas com aquela inquietação e aquela preocupação que, num país desconhecido, tudo inspira. Esses clamores vinham de duas moças inteiramente nuas que corriam soltas pelas bordas do prado, enquanto dois macacos as perseguiam, mordendo-lhes as nádegas. Cândido foi tocado pela compaixão. Aprendera a atirar com os búlgaros e teria alcançado uma avelã na árvore sem tocar nas folhas. Toma seu fuzil espanhol de dois canos e mata os dois macacos. - Deus seja louvado, meu caro Cacambo, livrei aquelas duas pobres criaturas de um grande perigo. Se cometi um pecado matando um inquisidor e um jesuíta, já o reparei agora, salvando a vida de duas moças. Talvez sejam duas meninas de boa família e esta feito pode trazer-nos grandes vantagens no país. Ia continuar, mas sua língua se paralisou quando viu aquelas moças abraçando carinhosamente os dois macacos, derretendo-se em lágrimas sobre seus corpos e enchendo o ar com os mais dolorosos gritos. - Nunca podia esperar tanta bondade, disse finalmente para Cacambo, o qual replicou: - Mas que bela obra-prima, meu amo! O senhor matou os dois amantes das moças. - Seus amantes! Como seria possível? Está zombando de mim, Cacambo? Como posso acreditar em você? - Meu caro amo, respondeu Cacambo, o senhor sempre fica espantado com tudo. Por que acha tão estranho que em alguns países existam macacos que obtenham os favores das mulheres? Eles são uma quarta parte de homem, como eu sou um quarto de espanhol. - Ah! Voltou a falar Cândido, lembro-me de ter ouvido mestre Pangloss dizer que antigamente incidentes semelhantes tinham acontecido e que essas misturas tinham produzido egipãs, faunos, sátiras, vistos por várias grandes personagens da antiguidade. Mas achava que isso não passava de lenda. - Agora deve estar convencido de que é verdade, disse Cacambo, e pode ver como se comportam as pessoas que não receberam certa educação. O que mais temo é que estas moças nos preparem alguma vingança. Essas sólidas reflexões levaram Cândido a deixar o prado e penetrar num bosque. Ali jantou com Cacambo. Depois de terem amaldiçoado o inquisidor de Portugal, o governador de Buenos Aires e o barão, ambos adormeceram na relva. Ao despertar, sentiram que não podiam se mexer. O motivo era que, durante a noite, os Orelhudos, habitantes da região, a quem as moças os tinham denunciado, os haviam amarrado com cordas feitas de casca de árvore. Estavam cercados por uns cinquenta Orelhudos; inteiramente nus, armados com flechas, porretes e machados de pedra. Alguns estavam esquentando um grande caldeirão. Outros preparavam espetos e todos gritavam: "É um jesuíta, é um jesuíta! Seremos vingados e comeremos muito bem. Vamos comer jesuíta, vamos comer jesuíta”! - Bem que avisei, meu bom amo, exclamou tristemente Cacambo, que essas duas moças iam nos pregar uma peça. Vendo o caldeirão e os espetos, Cândido gemeu: - Com toda a certeza, vamos ser assados ou fervidos. Ah! Que diria mestre Pangloss se visse como é feita a pura natureza? Tudo vai bem, pode ser, mas confesso que é muito cruel ter perdido a senhorita Cunegundes e ser assado no espeto por Orelhudos. Cacambo nunca perdia a cabeça. - Nunca se desespere, disse a um Cândido desolado; entendo alguma coisa do jargão desses povos, vou falar com eles. - Não se esqueça, disse Cândido, de explicar-lhes que é uma desumanidade descomunal cozinhar homens e o quanto isso é pouco cristão. - Senhores, disse Cacambo, estão certos de que vão do comer um jesuíta hoje. Muito bem! Nada mais justo do que tratar assim os inimigos. De fato, o direito natural nos ensina a matar nosso próximo e é assim que se faz no mundo inteiro. Se não fazemos uso do direito de comê-la, é porque já temos como comer muito bem de outra maneira. Mas os senhores não têm os recursos que nós temos. Com certeza, é melhor comer os inimigos que abandonar aos corvos e às gralhas o fruto da vitória. Entretanto, senhores, não gostariam de comer os amigos. Estão acreditando que vão espetar um jesuíta, mas é seu defensor, o inimigo dos seus inimigos que vão assar. Quanto a mim, nasci nesta terra; este senhor que estão vendo é meu amo e, longe de ser um jesuíta, acaba de matar um jesuíta e está vestindo a roupa dele. Este é o motivo do engano. Para verificar o que estou dizendo, peguem a roupa dele, levem-na até a primeira barreira do reino de Los Padres. Informem-se se meu amo não matou um oficial jesuíta. Levará pouco tempo. Poderão comer-nos depois, se descobrirem que menti. Mas, se eu disse a verdade, vocês conhecem demais os princípios do direito público, os costumes e as leis, para não nos poupar. Os Orelhudos acharam o discurso muito razoável. Escolheram dois notáveis para que fossem informar-se da verdade. Os dois emissários cumpriram sua missão a contento e voltaram logo, trazendo boas notícias. Os Orelhudos soltaram os dois prisioneiros, cercaram-nos de todo tipo de gentilezas, ofereceram-lhes moças, deram-lhes refrescos e conduziram-nos até os confins de seus Estados, gritando alegremente: "Não é jesuíta, não é jesuíta”! Cândido não se cansava de admirar o motivo de sua liberação. - Que povo! Dizia. Que homens! Que costumes! Se não tivesse tido a felicidade de dar uma grande estocada que atravessou o corpo do irmão da senhorita Cunegundes, teria sido comido sem remissão. Mas, afinal de contas, a pura natureza é boa, uma vez que esta gente, em vez de me comer, cumulou-me de mil gentilezas, tão logo soube que eu não era jesuíta. CAPÍTULO XVII Chegada de Cândido e de seu criado ao país do Eldorado e o que viram por lá. Quando chegaram às fronteiras dos Orelhudos, Cacambo disse a Cândido: - Está vendo que este hemisfério não vale mais que o outro. Acredite em mim, voltemos para a Europa pelo caminho mais curto. - Como voltar para lá? Retrucou Cândido. E para onde ir? Se eu for para meu país, os búlgaros e os ábaros estão degolando tudo. Se voltar para Portugal, vou ser queimado. Se ficarmos neste país, corremos o risco a todo momento de parar no espeto. Mas como decidir-me a deixar a parte do mundo onde mora a senhorita Cunegundes? - Vamos para Caiena, disse Cacambo. Lá encontraremos franceses, que andam por toda parte do mundo. Poderão nos ajudar. Talvez Deus tenha piedade de nós. Não era fácil ir para Caiena. Sabiam mais ou menos para que lado tinham de andar, mas montanhas, rios, precipícios, salteadores, selvagens, constituíam por toda parte terríveis obstáculos. Seus cavalos morreram de cansaço. As provisões tinham acabado. Alimentaram-se durante um mês inteiro com frutas selvagens e, finalmente, chegaram a um riacho margeado de coqueiros que passaram a sustentar suas vidas e esperanças. Cacambo, que sempre dava conselhos tão bons quanto os da velha, disse a Cândido: - Não podemos aguentar mais, já andamos bastante. Estou vendo uma canoa vazia na margem. Vamos enchê-la de cocos, pulemos nela e vamos deixar que a correnteza nos leve. Um rio sempre leva para algum lugar habitado. Se não encontrarmos coisas agradáveis, acharemos pelo menos coisas novas. - Vamos, disse Cândido, recomendemo-nos à Providência. Navegaram algumas léguas entre margens ora floridas, ora áridas, ora planas, ora escarpadas. O rio se alargava sempre mais. Finalmente, perdia-se debaixo de uma abóbada de rochedos espantosos que se erguiam até o céu. Os dois viajantes tiveram a temeridade de se deixarem levar pelas águas debaixo dessa abóbada. O rio, mais estreito naquele lugar, arrastou-os com uma rapidez e um barulho horrível. Ao cabo de vinte e quatro horas, viram novamente o dia. Sua canoa, porém, espatifou-se contra os escolhos. Tiveram de arrastar-se de rochedo em rochedo por uma légua inteira. Finalmente, descobriram um horizonte imenso, cercado de montanhas inacessíveis. O país era cultivado tanto por prazer como por necessidade. Por toda parte, o útil era agradável. Os caminhos eram cobertos, ou melhor, enfeitados por carruagens de forma e material brilhante, levando homens e mulheres de singular beleza, velozmente puxadas por grandes carneiros vermelhos que excediam em velocidade os mais belos cavalos da Andaluzia, de Tetuan e de Mequinez. - Aqui está realmente, disse Cândido, um país que vale mais que a Vestfália. Ele e Cacambo pararam perto da primeira aldeia que encontraram. Algumas crianças do vilarejo, vestidas de brocado de ouro todo rasgado, jogavam disco na entrada do povoado. Nossos dois homens do outro mundo se divertiram olhando-as. Os discos eram peças redondas bastante largas, amarelas, vermelhas, verdes, que emitiam um brilho singular. Os viajantes sentiram vontade de recolher alguns. Era ouro, eram esmeraldas, rubis, o menor dos quais teria sido o maior ornamento do trono do Mogol. - Sem dúvida, disse Cacambo, essas crianças são filhos do rei do país que estão jogando disco. O professor da aldeia apareceu nesse momento para chamá-las para dentro da escola. - Este deve ser, disse Cândido, o preceptor da família real. Os pequenos maltrapilhos abandonaram imediatamente o jogo, deixando no chão seus discos e tudo o que tinha servido para seu divertimento. Cândido os ajunta, corre ao preceptor a quem os apresenta humildemente, dando-lhe a entender, por sinais, que Suas Altezas Reais tinham esquecido seu ouro e pedrarias. O professor, sorrindo, jogou-os no chão, fitou por um momento o semblante de Cândido com muita surpresa e retomou seu caminho. Os viajantes não deixaram de recolher o ouro, os rubis e as esmeraldas. - Onde estamos? Exclamou Cândido. Os filhos dos reis deste país devem ser muito bem educados, porquanto são ensinados a menosprezar o ouro e as pedras preciosas. Cacambo estava tão surpreso quanto Cândido. Por fim, aproximaram-se da primeira casa da aldeia. Era construída como um palácio da Europa. Uma multidão se acotovelava à porta e mais ainda dentro da casa. Ouvia-se uma música muito agradável e sentia-se um delicioso cheiro de comida. Cacambo se aproximou da porta e ouviu que estavam falando peruano. Era sua língua materna, pois todos sabem que Cacambo nascera em Tucuman, numa aldeia onde só se conhecia esta língua. - Eu lhe sirvo de intérprete, disse para Cândido. Vamos entrar, é uma estalagem. Imediatamente, dois rapazes e duas moças da hospedaria, vestidos com tecidos dourados e com os cabelos presos por fitas, convidam-nos para sentar à mesa. Foram servidas quatro qualidades de sopa, cada uma delas acompanhada de dois papagaios, um condor cozido que pesava duzentas libras, dois macacos assados de excelente gosto, trezentos colibris numa travessa e seiscentos beija-flores em outra; refogados saborosíssimos, doces deliciosos. Tudo isso em pratos de uma espécie de cristal de rocha. Os rapazes e as moças da hospedaria serviam diversos licores feitos com cana-de-açúcar. Os convivas eram, em sua maioria, comerciantes e cocheiros, todos extremamente educados, que fizeram algumas perguntas a Cacambo, com a mais circunspecta discrição, e que responderam às dele de maneira satisfatória. Terminada a refeição, Cacambo acreditou, assim como Cândido, que ia pagar generosamente sua parte, jogando na mesa duas daquelas grandes peças de ouro que havia apanhado do chão. O dono e sua mulher desataram a rir e ficaram um bom tempo com as mãos apoiadas em seus flancos. Finalmente, se recompuseram: - Senhores, disse o hospedeiro, bem se vê que são estrangeiros. Não estamos acostumados a ver estrangeiros. Desculpem-nos se começamos a rir quando ofereceram como pagamento as pedras de nossas ruas. Sem dúvida, não devem ter a moeda do país, mas não é necessário tê-la para jantar aqui. Todas as hospedarias estabelecidas para a comodidade do comércio são pagas pelo governo. Certamente comeram mal aqui, porque é uma aldeia pobre, mas em qualquer outro lugar serão recebidos como merecem. Cacambo explicava a Cândido todas as palavras do hospedeiro e Cândido as ouvia com a mesma admiração e o mesmo espanto com que seu amigo Cacambo as traduzia. - Que país é este, diziam um ao outro, desconhecido de todo o resto da terra e onde toda a natureza é de uma espécie tão diferente da nossa? Provavelmente é o país onde tudo vai bem, pois é absolutamente necessário que haja um dessa espécie. E, apesar do que mestre Pangloss dizia, muitas vezes percebi que tudo ia mal na Vestfália. CAPÍTULO XVIII O que viram no país do Eldorado. Cacambo demonstrou a seu hospedeiro toda a sua curiosidade. Este lhe disse: - Sou muito ignorante e estou muito bem assim. Mas temos aqui um ancião retirado da corte que é o homem mais sábio do reino e o mais comunicativo. Imediatamente, leva Cacambo à casa do ancião. Cândido já estava ficando com um papel secundário e acompanhava seu criado. Entraram numa casa muito simples, pois a porta era apenas de prata e os revestimentos dos cômodos eram somente de amo, mas trabalhados com tanto gosto que os mais ricos revestimentos não os ofuscavam. A antecâmara, na verdade, era incrustada somente de rubis e esmeraldas, mas a ordem em que tudo estava arrumado compensava muito bem essa extrema simplicidade. O ancião recebeu os dois estrangeiros num sofá forrado com penas de colibris e mandou que lhes fossem servidos licores em taças de diamante. Depois disso, lhes satisfez a curiosidade nos seguintes termos: - Tenho setenta e dois anos de idade e aprendi com meu falecido pai, escudeiro do rei, as surpreendentes revoluções do Peru, de que fora testemunha. O reino em que estamos é a antiga pátria dos Incas que daqui saíram muito imprudentemente para ir subjugar uma parte do mundo e que acabaram sendo destruídos pelos espanhóis. Os príncipes de sua família que ficaram em seu país natal foram mais sábios. Com o consentimento da nação, ordenaram que nenhum habitante jamais saísse de nosso pequeno reino. E foi o que nos conservou a inocência e a felicidade. Os espanhóis tiveram desse país um conhecimento confuso, chamaram-no de El Dorado, e um inglês, chamado cavalheiro Raleigh, chegou até mesmo a aproximar-se dele há cerca de cem anos. Mas como estamos cercados de rochedos inacessíveis e precipícios, até agora sempre ficamos protegidos contra a cobiça das nações da Europa que têm uma loucura inconcebível pelas pedras e pela lama de nossa terra, e que, para se apoderarem delas, nos matariam até o último. A conversa foi longa. Versou sobre a forma de governo, sobre os costumes, as mulheres, os espetáculos públicos, as artes. Finalmente, Cândido, que sempre tivera gosto pela metafísica, perguntou, por meio de Cacambo, se havia uma religião no país. O ancião enrubesceu um pouco. - Como pode duvidar disso? Respondeu. Por acaso, acha que somos uns ingratos? Cacambo perguntou humildemente qual era a religião do Eldorado. O ancião corou de novo. - Será que pode haver duas religiões? Disse. Temos, creio, a religião de todo o mundo: adoramos Deus de manhã à noite. - Só adoram um Deus único? Disse Cacambo que continuava servindo de intérprete para as dúvidas de Cândido. - Aparentemente, disse o ancião, não há nem dois, nem três, nem quatro. Confesso que as pessoas de seu mundo fazem perguntas bastante singulares. Cândido não se cansava de fazer perguntas ao bom ancião. Quis saber como se orava a Deus no Eldorado. - Nós não o imploramos, disse o bom e respeitável sábio. Não temos nada para lhe pedir, uma vez que nos deu tudo o de que precisamos. Nós o agradecemos sem cessar. Cândido teve a curiosidade de ver os padres e mandou perguntar onde estavam. O bom ancião sorriu. - Meus amigos, disse, todos nós somos padres. O rei e todos os chefes de família entoam cânticos de ação de graças solenemente todas as manhãs e cinco ou seis mil músicos os acompanham. - Como? Não têm monges que ensinam, que discutem, que governam, que tramam e que mandam queimar as pessoas que não compartilham de sua opinião? - Só se fôssemos loucos, disse o ancião. Aqui somos todos da mesma opinião e não entendemos o que o senhor quer dizer com seus monges. Cândido ficava extasiado com todas essas informações e dizia consigo mesmo: Se nosso amigo Pangloss tivesse visto o Eldorado, teria deixado de dizer que o castelo de Thunder-ten-tronckh era o que tinha de melhor na terra; é verdade que é preciso viajar. Após essa longa conversa, o ancião mandou preparar uma carruagem com seis carneiros e cedeu doze de seus criados aos dois viajantes para levá-los à corte: - Desculpem-me, disse-lhes, se minha idade me priva da honra de acompanhá-los. O rei haverá de recebê-los de uma maneira que não os deixará descontentes e certamente haverão de perdoar os costumes do país, se alguns deles lhes desagradam. Cândido e Cacambo sobem na carruagem. Os seis carneiros voavam e, em menos de quatro horas, chegaram ao palácio do rei, situado num extremo da capital. O pórtico tinha duzentos e vinte pés de altura por cem de largura; é impossível dizer de que material era feito. Pode-se muito bem supor que superioridade prodigiosa deveria ter sobre esses seixos e essa areia a que chamamos de ouro e pedras preciosas. Vinte lindas moças da guarda receberam Cândido e Cacambo ao descerem da carruagem, levaram-nos para os banhos, vestiram-nos com roupas de um tecido de penugem de colibri. Depois disso, os grandes oficiais e as grandes oficiais da coroa os conduziram até o aposento de Sua Majestade, passando no meio de duas fileiras de mil músicos cada uma, segundo o costume usual. Quando se aproximaram da sala do trono, Cacambo perguntou a um grande oficial como deveria fazer para cumprimentar Sua Majestade; se era preciso ajoelhar-se ou colocar-se de bruços; se devia levar as mãos à cabeça ou às costas; se devia lamber o pó da sala; numa palavra, qual era o cerimonial. - O costume, disse o grande oficial, é abraçar e beijar o rei nas duas faces. Cândido e Cacambo se enlaçaram no pescoço de Sua Majestade, que os recebeu com toda simpatia imaginável e os convidou gentilmente para cear. Enquanto esperavam, mostraram-lhes a cidade, os edifícios públicos que subiam até as nuvens, os mercados ornamentados por mil colunas, as fontes de água pura, as fontes de água cor de rosa, aquelas de licores de cana de açúcar, que corriam continuamente em grandes praças, pavimentadas com uma espécie de pedras preciosas que exalavam um cheiro semelhante ao do cravo e da canela. Cândido pediu para ver o palácio de justiça, o parlamento. Disseram-lhe que não havia e que nunca havia julgamentos. Quis saber se havia prisões e disseram-lhe que não. O que mais o surpreendeu e que mais o agradou foi o palácio das ciências, no qual viu uma galeria de dois mil passos, cheia de instrumentos de matemática e física. Depois de terem percorrido, a tarde inteira, mais ou menos a milésima parte da cidade, foram reconduzi-os ao palácio do rei. Cândido sentou-se à mesa entre Sua Majestade, seu criado Cacambo e várias senhoras. Jamais se comeu melhor e nunca houve tanta demonstração de simpatia como a de Sua Majestade no jantar. Cacambo explicava as belas palavras do rei para Cândido e, embora traduzidas, sempre pareciam belas expressões. De tudo o que surpreendia Cândido, não era isso que menos o surpreendeu. Passaram um mês nessa hospedagem. Cândido não cessava de repetir a Cacambo: - Mais uma vez, meu amigo, é verdade que o castelo onde nasci não vale o país em que estamos. Mas, afinal de contas, a senhorita Cunegundes não está aqui e sem dúvida você deve ter alguma amante na Europa. Se ficarmos aqui, seremos apenas como os outros. Ao contrário, se retomarmos para nosso mundo com apenas doze carneiros carregados de pedregulhos do Eldorado, seremos mais ricos que todos os reis juntos, não teremos mais inquisidores a temer e poderemos facilmente resgatar a senhorita Cunegundes. Essas palavras agradaram a Cacambo. Todos gostam muito de correr mundo, de aparecer com vantagem entre os seus, de ostentar o que viram nas viagens, que os dois felizardos resolveram deixar de lado as aventuras e pediram permissão a Sua Majestade para deixar o país. - Estão fazendo uma tolice, disse-lhes o rei. Sei muito bem que meu país é pouca coisa, mas quando alguém se sente razoavelmente bem num lugar, deve permanecer nele. Certamente não tenho o direito de reter estrangeiros. É uma tirania que não faz parte de nossos costumes nem de nossas leis. Todos os homens são livres. Podem partir quando quiserem, mas a saída é muito difícil. É impossível remontar a rápida correnteza do rio pela qual chegaram por milagre e que corre sob abóbadas de rochedos. As montanhas que cercam todo meu reino têm dez mil pés de altura e estão a pique como muralhas. Cada uma delas ocupa um espaço de mais de dez léguas de largura. Só é possível descer por precipícios. Entretanto, já que fazem questão mesmo de partir, vou dar ordens aos intendentes das máquinas para fazerem uma que possa transportá-los confortavelmente. Quando os tiverem conduzido para o outro lado das montanhas, ninguém poderá acompanhá-los, pois meus súditos fizeram voto de nunca saírem de seu recinto e são muito sensatos para descumprir seu voto. Exceto isso, podem me pedir tudo o que lhes aprouver. - Só pedimos a Vossa Majestade, disse Cacambo, alguns carneiros carregados de víveres, seixos e lama do país. O rei sorriu. - Não posso entender, disse ele, esse gosto que sua gente da Europa tem por nossa lama amarela, mas podem levar quanto quiserem e que lhes seja de bom proveito. Ordenou imediatamente a seus engenheiros para que fizessem uma máquina para guindar aqueles dois homens extraordinários para fora do reino. Três mil bons físicos trabalharam no projeto. Ficou pronta ao cabo de quinze dias e não custou mais de vinte milhões de libras esterlinas, moeda do país. Puseram Cândido e Cacambo na máquina. Havia dois grandes carneiros vermelhos encilhados para lhes servir de montaria, tão logo tivessem ultrapassado as montanhas, mais vinte carneiros de carga carregados de víveres, trinta que levavam presentes de tudo o que o país tem de mais curioso e cinquenta carregados de ouro, pedras preciosas e diamantes. O rei abraçou carinhosamente os dois vagabundos. Foi um belo espetáculo a partida deles e o jeito engenhoso como foram içados, eles e seus carneiros, no topo das montanhas. Os físicos se despediram deles depois de os terem deixado em segurança. Cândido não teve outro desejo nem outro objetivo, senão o de apressar-se em ir apresentar seus carneiros para a senhorita Cunegundes. - Temos, disse ele, como pagar o governador de Buenos Aires, se a senhorita Cunegundes pudesse ser posta a prêmio. Vamos para Caiena, embarquemos e veremos depois que reino poderemos comprar. CAPÍTULO XIX O que aconteceu no Suriname e de que maneira Cândido conheceu Martim. O primeiro dia de nossos dois viajantes foi bastante agradável. Estavam animados com a ideia de ver-se possuidores de mais tesouros que a Ásia, Europa e África podiam reunir. Cândido, arrebatado, escreveu o nome de Cunegundes nas árvores. No segundo dia, dois de seus carneiros afundaram em pântanos e foram tragados junto com suas cargas. Outros dois carneiros morreram de cansaço alguns dias depois. Sete ou oito morreram em seguida de fome num deserto. Outros caíram em precipícios, ao fim de alguns dias. Enfim, depois de cem dias de marcha, só lhes sobraram dois carneiros. Cândido disse a Cacambo: - Meu amigo, vê como as riquezas deste mundo são perecíveis. Não há nada sólido, além da virtude e a ventura de rever a senhorita Cunegundes. - Concordo, disse Cacambo, mas ainda nos restam dois carneiros com mais tesouros que o rei da Espanha jamais poderá ter e estou vislumbrando ao longe uma cidade que desconfio que possa ser Suriname, pertencente aos holandeses. Chegamos ao fim de nossas dificuldades e ao início da nossa felicidade. Ao aproximar-se da cidade, encontraram um negro estendido no chão, com apenas metade da roupa, isto é, com umas calças de pano azul. Faltava àquele pobre homem a perna esquerda e a mão direita. - Meu Deus! Disse-lhe Cândido em holandês. Que fazes aqui, meu amigo, no estado horrível em que te vejo? - Estou esperando meu amo, senhor Vanderdendur, famoso negociante, respondeu o negro. - Foi o Sr. Vanderdendur, disse Cândido, que te tratou desse jeito? - Sim, Senhor, disse o negro, é o costume. Dão-nos como única roupa umas calças de lona duas vezes por ano. Quando trabalhamos nos engenhos e a mó nos agarra o dedo, cortam-nos a mão. Quando queremos fugir, nos cortam a perna. Foi meu caso nas duas vezes. É a esse preço que vocês comem açúcar na Europa. Entretanto, quando minha mãe me vendeu por dez escudos patagônicos na costa da Guiné, me dizia: Meu querido filho, dá graças a nossos fetiches, adora-os sempre, te farão viver feliz, tens a honra de ser escravo dos brancos, nossos senhores, e com isso fazes a fortuna de teu pai e de tua mãe. Infelizmente, não sei se fiz a fortuna deles, mas não fizeram a minha. Os cães, os macacos e os papagaios são mil vezes menos infelizes que nós. Os fetiches holandeses, que me converteram, dizem-me todos os domingos que somos todos filhos de Adão, brancos e negros. Não sou genealogista, mas se esses pregadores dizem a verdade, somos todos primos em primeiro grau. Ora, os senhores terão de reconhecer que não se pode agir com parentes de modo mais horrível. - Ó Pangloss! Exclamou Cândido. Você não tinha adivinhado esta abominação. Não tem jeito, terei finalmente de renunciar a teu otimismo. - O que é o otimismo? Perguntava Cacambo. - Ah! Disse Cândido, é a mania de sustentar que tudo está bem quando tudo está mal. E derramava lágrimas contemplando o negro e, chorando, entrou no Suriname. A primeira coisa que procuram saber é se há no porto algum navio que pudesse ser mandado para Buenos Aires. O homem a quem se dirigiram era justamente um comandante espanhol que se ofereceu para fazer com eles um contrato honesto. Marcou encontro numa taverna. Cândido e seu fiel Cacambo foram para lá, esperando-o com seus dois carneiros. Cândido, com o coração na boca, contou para o espanhol todas as suas aventuras e confessou-lhe que queria resgatar a senhorita Cunegundes. - Deus me livre de transportá-los para Buenos Aires, disse o comandante. Seria enforcado e você também. A bela Cunegundes é a amante favorita de monsenhor. Aquilo foi como um raio para Cândido. Chorou durante muito tempo. Finalmente, puxou Cacambo para um lado e disse: - Meu caro amigo, aí está que você tem de fazer. Cada um de nós tem no bolso cinco ou seis milhões em diamantes. Você é mais ágil que eu. Vá buscar a senhorita Cunegundes em Buenos Aires. Se o governador opuser alguma dificuldade, dê-lhe um milhão. Se não se render, dê-lhe dois. Você não matou nenhum inquisidor, não desconfiarão. Equiparei outro navio. Vou esperar você em Veneza que é um país livre, onde não há nada a temer dos búlgaros, dos ábaros, nem dos judeus ou dos inquisidores. Cacambo aplaudiu essa sábia resolução. Estava desesperado por ter de separar-se de um bom amo que se havia tornado seu amigo íntimo, mas o prazer de ser-lhe útil foi mais forte que a dor de deixá-lo. Abraçaram-se, em lágrimas. Cândido recomendou-lhe que não se esquecesse da boa velha. Cacambo partiu no mesmo dia. Esse Cacambo era um homem excelente. Cândido permaneceu ainda por algum tempo no Suriname e esperou que outro comandante se prontificasse a levá-lo para a Itália, com os dois carneiros que lhe sobravam. Contratou criados e comprou tudo o que era necessário para uma longa viagem. Por fim, o senhor Vanderdendur, comandante de um grande navio, foi procurá-lo. - Quanto o senhor quer, perguntou a esse homem, para levar-me diretamente para Veneza, eu, minha criadagem, minha bagagem e esses dois carneiros? O comandante fixou o preço em dez mil piastras. Cândido não hesitou. - Oh! Oh! Disse consigo o prudente Vanderdendur. Este estrangeiro dá dez mil piastras de uma vez! Deve ser muito rico. Voltando logo depois, veio dizer que não poderia partir por menos de vinte mil. - Pois bem, serão vinte, disse Cândido. - Oba! Murmurou bem baixinho o negociante, este homem dá vinte mil piastras tão facilmente quanto dez mil. Voltou mais uma vez e disse que não poderia levá-lo para Veneza por menos de trinta mil piastras. - Então terá as trinta mil piastras, respondeu Cândido. - Oh, oh! Disse novamente consigo o comerciante holandês, trinta mil piastras não são nada para esse homem. Sem dúvida, os dois carneiros devem estar carregando tesouros imensos. Não vamos insistir mais. Vamos cobrar primeiro as trinta mil piastras e depois veremos. Cândido vendeu dois pequenos diamantes, sendo que o menor valia mais que todo o dinheiro pedido pelo negociante. Pagou adiantado. Os dois carneiros foram embarcados. Cândido seguia num bote para alcançar o navio no ancoradouro. O comandante não perde tempo, põe a vela, larga as amarras. O vento está a favor. Cândido, fora de si e estupefato, logo o perde de vista. - Ah! Gritou, aí está um golpe digno do velho mundo. Volta para terra, imerso em dor, porque, afinal, havia perdido o equivalente para fazer a fortuna de vinte monarcas. Vai ter com. o juiz holandês e, como estava um pouco transtornado, bate à porta de maneira rude. Entra, expõe seu caso e grita um pouco mais do que convinha. O juiz começou por cobrar-lhe uma multa de dez mil piastras pelo barulho que fizera. Depois, ouviu-o pacientemente, prometeu-lhe examinar seu caso assim que o negociante retomasse e cobrou mais dez mil piastras correspondentes às despesas da audiência. Esse procedimento acabou por levar Cândido ao desespero. Na verdade, havia suportado desgraças mil vezes mais dolorosas, mas o sangue-frio do juiz, bem como o do comandante por quem fora roubado, afetou-lhe a bílis e o deixou mergulhado numa melancolia sombria. A maldade dos homens se apresentava em sua mente com toda a sua feiura. Só se alimentava com ideias tristes. Finalmente, como um navio francês estava prestes a partir para Bordéus e como não tinha mais carneiros carregados de diamantes para embarcar, alugou um camarote do navio por um preço razoável e mandou espalhar pela cidade que pagaria a passagem, a alimentação e daria duas mil piastras para o homem honrado que aceitasse fazer a viagem em sua companhia, sob a condição de que esse homem fosse o mais desgostoso de sua condição e o mais infeliz da província. Apresentou-se uma multidão de pretendentes que não teria cabido numa frota. Querendo escolher entre os mais distintos, Cândido selecionou umas vinte pessoas que lhe pareciam bastante sociáveis e que todas pretendiam merecer a preferência. Reuniu-as em sua estalagem, ofereceu-lhes um jantar, com a condição de que cada uma jurasse contar fielmente sua história, prometendo escolher aquele que lhe parecesse mais digno de compaixão e mais descontente com sua situação, e daria aos outros algumas gratificações. A sessão durou até as quatro da madrugada. Cândido, ao ouvir todas as suas aventuras, lembrava-se do que lhe dissera a velha a caminho de Buenos Aires e da aposta que fizera, de que não haveria ninguém no navio a quem não tivessem acontecido grandes desgraças. A cada aventura que lhe contavam, pensava em Pangloss. Esse Pangloss, dizia, teria muita dificuldade para demonstrar seu sistema. Gostaria que estivesse aqui. Com certeza, é no Eldorado e não no resto da terra que tudo vai bem. Finalmente decidiu-se por um Pobre sábio que trabalhara durante dez anos para os livreiros de Amsterdã. Entendeu que não havia no mundo profissão que possa inspirar mais desgosto. Esse sábio, que por outro lado era um homem bom, fora roubado pela mulher, espancado pelo filho e abandonado pela filha que fora raptada por um português. Acabava de ser privado de um modesto emprego, com o qual se sustentava. Além disso, os pregadores de Suriname o perseguiam porque pensavam que fosse sociniano. A bem da verdade, os outros eram pelo menos tão infelizes quanto ele, mas Cândido esperava que o sábio o haveria de distrair durante a viagem. Todos os outros rivais acharam que Cândido estava cometendo uma grande injustiça, mas ele os apaziguou dando a cada um cem piastras. CAPÍTULO XX O que aconteceu a Cândido e Martim durante a viagem por mar. O velho sábio, que se chamava Martim, embarcou então para Bordéus com Cândido. Ambos tinham visto e sofrido muito. Mesmo que o navio tivesse de zarpar do Suriname para o Japão, passando pelo cabo de Boa Esperança, teriam tido como se entreter sobre o mal moral e o mal físico durante toda a viagem. Entretanto, Cândido levava grande vantagem sobre Martim. Esperava ainda e sempre rever a senhorita Cunegundes, enquanto Martim não tinha nada a esperar. Além disso, tinha ouro e diamantes e, embora tivesse perdido cem gordos carneiros vermelhos carregados com os maiores tesouros da terra, embora estivesse ainda amargurado com a velhacaria comandante holandês, quando pensava no que lhe sobrava nos bolsos e quando falava de Cunegundes, principalmente no fim da refeição, sentia-se então inclinado para o sistema de Pangloss. - Mas e o senhor, Martim, perguntou ao sábio, o que pensa de tudo isso? Qual é sua opinião sobre o mal moral e o mal físico? - Senhor, respondeu Martim, os padres me acusaram de ser sociniano, mas a verdade é que sou maniqueísta. - Está zombando de mim, disse Cândido, não há mais maniqueístas no mundo. - Ainda existe um, que sou eu, disse Martim. Não sei o que fazer, mas não posso pensar de outro jeito. - Deve estar com o diabo no corpo, disse Cândido. - Ele se mete de maneira tão incisiva nas coisas deste mundo, disse Martim, que é bem possível que ele esteja no meu corpo, como está em toda parte. Mas confesso que, lançando um olhar sobre este globo ou, melhor dizendo, neste glóbulo, acho que Deus o abandonou a algum ser maléfico, sempre com a exceção do Eldorado. Praticamente não vi cidade que não desejasse a ruína da cidade vizinha, família que não quisesse exterminar alguma outra família, Por toda parte, os fracos odeiam os poderosos, diante dos quais rastejam, e os poderosos os tratam como rebanhos, dos quais vendem a lã e a carne. Um milhão de assassinos arregimentados, correndo de uma ponta à outra da Europa, promovem a chacina e o banditismo com disciplina para ganhar seu pão, porque não têm profissão mais honrada; e nas cidades, que parecem gozar de paz e onde florescem as artes, os homens são devorados por mais inveja, cuidados e inquietações do que experimenta em flagelos uma cidade sitiada. Os desgostos secretos são ainda mais cruéis que as misérias públicas. Numa palavra, vi tantas coisas e sofri tantas, que sou maniqueísta. - No entanto, há um lado bom, retrucava Cândido. - Pode ser, dizia Martim, mas não o conheço. No meio dessa conversa, ouviu-se um barulho de canhão. O ruído redobra a cada momento. Cada um deles toma sua luneta. Avistam dois navios que combatiam a uma distância de aproximadamente três milhas. O vento levou os dois tão perto do navio francês que tiveram o prazer de assistir ao combate totalmente à vontade. Finalmente, um dos dois navios desferiu uma descarga tão baixa e tão certeira que o afundou. Cândido e Martim divisaram nitidamente uma centena de homens no convés do navio que estava afundando. Todos levantavam as mãos para o céu e soltavam clamores pavorosos. Num instante, tudo foi tragado. - Pois bem, disse Martim, aí está como os homens se tratam uns aos outros. - É bem verdade, disse Cândido, que há qualquer coisa de diabólico nisso. Enquanto assim falava, percebeu algo de um vermelho vivo que nadava perto do navio. Desataram o bote para ver o que podia ser. Era um de seus carneiros. Cândido sentiu mais alegria ao achar aquele carneiro do que a aflição que havia provado ao perder cem deles, todos carregados de grandes diamantes do Eldorado. O capitão francês percebeu logo que o capitão do navio vencedor era espanhol e que aquele do navio submerso era um pirata holandês. Era precisamente o mesmo que havia roubado Cândido. As imensas riquezas de que esse celerado se apoderara foram sepultadas junto com ele no mar, e só se salvou um carneiro. - Está vendo, disse Cândido a Martim, que o crime às vezes é punido. Esse velhaco de comandante holandês teve a sorte que merecia. - Sim, disse Martim, mas os passageiros que estavam no navio dele tinham que morrer também? Deus castigou esse patife, o diabo afogou os outros. Entretanto, o navio francês e o espanhol seguiram caminho e Cândido continuou sua conversa com Martim. Discorreram quinze dias seguidos e, ao cabo de quinze dias, estavam tão adiantados como no primeiro. Mas pelo menos estavam falando, trocavam ideias, consolavam-se. Cândido acariciava seu carneiro. Já que te encontrei, disse, poderei encontrar também Cunegundes. CAPÍTULO XXI Cândido e Martim se aproximam da costa da França e continuam filosofando. Avistaram finalmente as costas da França. - Já esteve alguma vez na França, senhor Martim? Perguntou Cândido. - Já, respondeu Martim, percorri várias províncias. Há províncias onde a metade dos habitantes é louca, algumas onde as pessoas são muito espertas, outras onde as pessoas são geralmente bastante pacíficas e tontas, outras onde têm espírito; e em todas, a principal ocupação é o amor, a segunda é a maledicência e a terceira, dizer tolices. - Mas, senhor Martim, já esteve em Paris? - Sim, já vi Paris. Lá se encontra um pouco de tudo isso. É um caos, é um amontoado de gente, onde todos buscam o prazer e onde quase ninguém o encontra, pelo menos foi essa a impressão que tive. Passei pouco tempo em Paris; na chegada, uns larápios roubaram-me tudo o que eu tinha na feira de Saint-Germain, eu mesmo fui tomado por ladrão e fiquei oito dias na prisão. Depois disso, tornei-me revisor de tipografia para ganhar com que voltar a pé para a Holanda. Conheci a canalha escrevente, a canalha litigante e a canalha convulsionária. Dizem que há pessoas muito educadas naquela cidade; quero crer que assim seja. - Quanto a mim, disse Cândido, não tenho a mínima curiosidade de ver a França. Deve perceber facilmente que, quando alguém passou um mês no Eldorado, a única coisa que almeja ver na terra é a senhorita Cunegundes. Vou esperá-la em Veneza. Vamos atravessar a França para chegar à Itália. Não vai me acompanhar? - Com todo o prazer, disse Martim. Dizem que Veneza é boa unicamente para os nobres venezianos, mas dizem, no entanto, que os estrangeiros são muito bem recebidos por lá, quando têm muito dinheiro. Eu não tenho nada, o senhor tem, vou segui-lo por toda parte. - A propósito, disse Cândido, o senhor acha que a terra foi na origem um mar, como se afirma neste livro grosso que pertence ao capitão do navio? - Não acredito em nada disso, disse Martim, como também não acredito em nenhum dos devaneios que nos veem impingindo há algum tempo. - Mas para que fim foi então formado este mundo? Perguntou Cândido. - Para nos atormentar, respondeu Martim. - O senhor não fica admirado, prosseguiu Cândido, com o amor que aquelas duas moças do país dos Orelhudos tinham por aqueles dois macacos, conforme a aventura que lhe contei? - Absolutamente, disse Martim. Não vejo o que tem de estranho nessa paixão. Já vi tantas coisas extraordinárias, que para mim não há mais nada de extraordinário. - O senhor acha, perguntou Cândido, que os homens sempre se massacraram como o fazem hoje? Que sempre foram mentirosos, velhacos, pérfidos, ingratos, revoltados, fracos, volúveis, covardes, invejosos, glutões, beberrões, avarentos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, depravados, fanáticos, hipócritas e tolos? - O senhor acredita, disse Martim, que os gaviões tenham sempre devorado pombos quando lhes surgia a oportunidade? - Sem dúvida, disse Cândido. - Pois é, concluiu Martim, se os gaviões sempre tiveram o mesmo caráter, como quer que os homens tenham mudado o deles? - Oh! Disse Cândido, há muita diferença, pois o livre-arbítrio... Enquanto assim filosofavam, chegaram a Bordéus. CAPÍTULO XXII O que aconteceu na França com Cândido e Martim. Cândido só se deteve em Bordéus o tempo necessário para vender alguns pedregulhos do Eldorado e para comprar uma boa liteira de dois lugares, pois já não podia mais passar sem seu filósofo Martim. Só ficou muito chateado por ter de separar-se de seu carneiro, que o deixou para a Academia de Ciências de Bordéus, a qual propôs para tema do concurso daquele ano descobrir porque a lã daquele animal era vermelha. O prêmio foi adjudicado a um cientista do norte que demonstrou por A mais B, menos C dividido por Z, que o carneiro devia ser vermelho e morrer de sarna. Entrementes, todos os viajantes que Cândido encontrava nas estalagens do caminho lhe diziam: "Estamos indo a Paris." Esse alvoroço generalizado deu-lhe finalmente vontade de ver essa capital. Não seria desviar-se muito do caminho para Veneza. Entrou pelo subúrbio de Saint-Marceau e pensou estar na pior aldeia da Vestfália. Mal chegou à hospedaria, Cândido foi acometido por uma leve indisposição causada pelo cansaço. Como usava no dedo um diamante enorme e como tinham visto em sua bagagem um pequeno cofre incrivelmente pesado, teve logo junto de si dois médicos que não tinha mandado chamar, alguns amigos íntimos que não o deixaram e duas beatas que lhe preparavam caldos. Martim dizia: "Lembro-me de ter adoecido também em Paris, na minha primeira viagem. Era muito pobre, de modo que nunca tive amigos, nem beatas, nem médicos e fiquei bom”. Entretanto, à força de remédios e sangrias, a doença de Cândido acabou se tornando grave. Um padre da freguesia chegou com bons modos pedir-lhe uma promissória ao portador, pagável no outro mundo. Cândido não quis saber de nada. As beatas garantiram-lhe que era uma nova moda. Cândido respondeu que não era homem de modas. Martim quis jogar o padre pela janela. O clérigo jurou que não enterrariam Cândido. Martim jurou que enterraria o clérigo se continuasse a importuná-las. A briga esquentou. Martim agarrou-o pelos ombros e o expulsou rudemente. Isso causou grande escândalo, do qual foi lavrada ocorrência. Cândido sarou. Durante a convalescença, teve ótima companhia à mesa. Jogava-se alto. Cândido estranhou muito que os ases não caíam nunca em sua mão. Martim não estranhava nada. Entre aqueles que lhe faziam as honras da cidade, havia um padre baixinho de Périgord, um desses tipos solícitos, sempre alerta, sempre prestativos, descarados, grudentos, conciliadores, que ficam espreitando os estrangeiros quando chegam, contam a história escandalosa da cidade e lhe oferecem prazeres de todos os preços. Este levou primeiro Cândido e Martim ao teatro. Estava sendo apresentada uma tragédia nova. Cândido ficou sentado ao lado de algumas pessoas de gosto refinado. Nem por isso deixou de chorar em cenas perfeitamente interpretadas. Um dos críticos que estava a seu lado lhe disse num intervalo: - O senhor faz muito mal em chorar. Esta atriz é muito ruim, o ator que contracena com ela é pior ainda. A peça é ainda pior que os atores. O autor não sabe uma palavra de árabe e, no entanto, a cena se passa na Arábia. Além disso, é um homem que não acredita nas ideias inatas. Amanhã lhe trarei vinte folhetos contra ele. - Quantas peças de teatro há na França, meu senhor? Perguntou Cândido ao padre. - Cinco ou seis mil, respondeu este. - É muito, disse Cândido. Quantas são boas? - Quinze ou dezesseis, replicou o outro. - É muito, disse Martim. Cândido se agradou muito de uma atriz que fazia o papel da rainha Elisabeth numa tragédia bastante chata que é encenada de vez em quando. - Gosto muito dessa atriz, disse para Martim. Ela lembra Cunegundes. Gostaria muito de cumprimentá-la. O padre ofereceu-se para fazer as apresentações. Como fora educado na Alemanha, Cândido perguntou qual era a etiqueta e como eram tratadas na França as rainhas da Inglaterra. - É preciso fazer distinções, disse o padre. No interior, são levadas aos cabarés; em Paris, são respeitadas quando bonitas, e são jogadas no lixo quando morrem. - Rainhas no lixo! Disse Cândido. - É verdade, disse Martim, o padre tem razão. Eu estava em Paris, quando a senhorita Monime passou, como se diz, desta para a melhor. Recusaram-lhe o que o povo daqui chama de honras da sepultura, isto é, o direito de apodrecer com todos os mendigos do bairro num cemitério feio. Foi enterrada, no maior isolamento, na esquina da rua Barganha, o que deve ter-lhe causado imenso pesar, pois tinha pensamentos muito nobres. - Isto foi muita falta de educação, disse Cândido. - O que se pode fazer, disse Martim, o povo daqui é assim. Imagine todas as contradições, todas as incompatibilidades possíveis e poderá encontrá-las no governo, nos tribunais, nas igrejas, nos espetáculos desta extravagante nação. - É verdade que todos estão sempre rindo em Paris? Perguntou Cândido. - É, disse o padre, mas riem de raiva, pois aqui se queixam de tudo com grandes gargalhadas; até mesmo as mais detestáveis ações, as fazem rindo. - Quem era, disse Cândido, esse porco que falava tão mal da peça, na qual chorei tanto, e dos atores que tanto me agradaram? - É um pobre coitado, respondeu o padre, que ganha a vida falando mal de todas as peças e de todos os livros. Odeia todos aqueles que têm sucesso, como os eunucos odeiam os que gozam. É uma daquelas serpentes da literatura que se alimentam de lama e veneno. É um foliculário. - O que o senhor chama de foliculário? Perguntou Cândido. - É um fazedor de folhas, disse o padre, um Fréron. Era assim que Cândido, Martim e o padre de Périgord discorriam nas escadarias, vendo desfilar as pessoas que saíam do teatro. - Embora tenha muita pressa de reencontrar a senhorita Cunegundes, disse Cândido, gostaria de jantar com a senhorita Clairon, pois me pareceu admirável. O padre não era homem que se aproximasse da senhorita Clairon, que só frequentava boas companhias. - Esta noite já tem compromisso, disse, mas terei a honra de levá-lo à casa de uma senhora de qualidade e aí conhecerá Paris como se tivesse passado aqui quatro anos. Cândido, que era curioso por natureza, deixou-se levar à casa dessa senhora, no final do bairro Saint-Honoré. Estavam jogando faraó. Doze tristes parceiros seguravam cada um pequeno leque de cartas, registro amarrotado de seus infortúnios. Reinava profundo silêncio, a palidez se estampava no rosto dos parceiros, a preocupação naquele do banqueiro e a dona da casa, sentada perto daquele banqueiro implacável, observava com olhos de lince todas as manobras, todas as trapaças com que os jogadores marcavam as cartas. Pediam que não fizessem isso, com uma atenção severa mas educada, e não ficava zangada, com medo de perder os fregueses. A dama fazia-se tratar de marquesa de Parolignac. Sua filha, de quinze anos, estava entre os parceiros e denunciava com um piscar de olhos as trapaças daqueles coitados que tentavam compensar as crueldades da sorte. O padre, Cândido e Martim entraram. Ninguém se levantou, ninguém os cumprimentou nem olhou para eles. Todos estavam profundamente entretidos com as cartas. - A senhora baronesa de Thunder-ten-tronckh era mais civilizada, disse Cândido. Nisso, o padre aproximou-se do ouvido da marquesa, que se soergueu um pouquinho, concedeu a Cândido a honra de um sorriso gracioso e a Martim a de uma inclinação de cabeça extremamente nobre. Mandou oferecer uma cadeira e um baralho a Cândido que perdeu cinquenta mil francos em duas rodadas. Depois disso, todos cearam alegremente e todos ficaram surpresos que Cândido não se tivesse abalado com a perda. Os criados diziam entre si, em seu linguajar de criados: "Deve ser algum milorde inglês”. A ceia correu como a maioria das ceias parisienses. Primeiro, silenciosa, depois um rumor de palavras indistintas, mais tarde piadas quase todas insípidas, boatos, arrazoados equivocados, um pouco de política e muita maledicência. Falaram até de livros novos. - Já leram, perguntou o padre, o romance de Gauchat, doutor em teologia? - Já, respondeu um dos convivas, mas não consegui terminar de lê-lo. Temos uma multidão de escritos impertinentes, mas todos juntos não se aproximam da impertinência de Gauchat, doutor em teologia. Estou tão farto desse mar de livros detestáveis que nos inundam, que comecei a apostar no jogo do faraó. - E as Miscelâneas do arcediago T... , que me dizem delas? Indagou o padre. - Ah! Disse a marquesa de Parolignac, um tédio mortal! Como ele diz de maneira curiosa o que todo mundo já sabe! Como discorre pesadamente a respeito do que não vale a pena ser notado sequer de leve! Como se apropria sem imaginação do espírito dos outros! Como estraga o que plagia! Como me aborrece! Mas não voltará a aborrecer-me; basta ter lido algumas páginas do arcediago. Havia à mesa um homem sábio e de bom gosto que apoiou o que a marquesa dizia. Passou-se a seguir a falar de tragédias. A marquesa perguntou por que havia tragédias que eram encenadas de vez em quando e que não se podia ler. O homem de bom gosto explicou muito bem como uma peça podia ter algum interesse e não ter quase mérito nenhum. Provou em poucas palavras que não bastava descrever uma ou duas daquelas situações que se encontram nos romances e que sempre seduzem os espectadores, mas que é preciso ser novo sem ser bizarro, muitas vezes sublime e sempre natural; conhecer o coração humano e fazê-lo falar; ser grande poeta sem que nenhum personagem da peça jamais pareça poeta; conhecer perfeitamente a língua, falá-la com pureza, com uma harmonia contínua, sem que a rima jamais sacrifique o sentido. "Quem quer que seja, acrescentou, que deixe de observar todas essas regras, pode redigir uma ou duas tragédias aplaudidas no teatro, mas nunca será considerado bom escritor. Tragédias boas, são muito poucas. Algumas são idílios em diálogos bem escritos e bem rimados; outras, raciocínios políticos que dão sono ou amplificações que decepcionam; outras ainda, sonhos de energúmeno, em estilo bárbaro, ideias interrompidas, longas apóstrofes aos deuses porque não sabem falar com os homens, falsas máximas, lugares-comuns empolados." Cândido ouviu essas palavras com atenção e formou um alto conceito do orador. E, como a marquesa tivera o cuidado de colocá-lo a seu lado, aproximou-se de seu ouvido e tomou a liberdade de perguntar-lhe quem era aquele homem que falava tão bem. - É um sábio, disse a senhora, que não aposta no jogo e que o padre traz às vezes para cear. Entende perfeitamente de tragédias e livros; escreveu uma tragédia que foi vaiada e um livro cujo único exemplar a sair das prateleiras de seu livreiro foi aquele que me dedicou. - Que grande homem! Disse Cândido. É outro Pangloss. Então, virando-se para ele, falou: - Senhor, com certeza acha que tudo está pelo melhor no mundo físico e moral e que nada poderia ser diferente? - Eu, senhor, respondeu o sábio, não penso nada disso. Acho que tudo está errado entre nós; que ninguém sabe qual é a sua posição, nem qual é seu cargo, nem o que faz, nem o que deve fazer e que, exceto o jantar, que é bastante alegre e onde parece haver bastante união, todo o resto do tempo se passa em querelas impertinentes: jansenistas contra molinistas, parlamentares contra eclesiásticos, literatos contra literatos, cortesãos contra cortesãos, financistas contra o povo, mulheres contra maridos, parentes contra parentes; é uma guerra eterna. - Já vi coisa pior, replicou Cândido. Mas um sábio, que depois teve a infelicidade de ser enforcado, me ensinou que tudo isso ia às mil maravilhas; são sombras num belo quadro. - Seu enforcado estava zombando do mundo, disse Martim. Suas sombras são manchas horríveis. - São os homens que fazem as manchas, disse Cândido, e não podem deixar de fazê-las. - Então não é culpa deles, disse Martim. A maioria dos jogadores, que não entendia nada dessa linguagem, estava bebendo. Martim conversava com o sábio e Cândido contou uma parte de suas aventuras à dona da casa. Depois da ceia, a marquesa levou Cândido para sua sala e o fez sentar num canapé. - Então, disse, ainda está perdidamente apaixonado pela senhorita Cunegundes de Thunder-ten-tronckh? - Sim, senhora, respondeu Cândido. A marquesa replicou com um terno sorriso: - Você me responde como um jovem da Vestfália. Um francês me teria me dito: "É verdade que amei a senhorita Cunegundes, mas olhando para a senhora, acho que não a amo mais”. - Ah! Minha senhora, disse Cândido, responderei como a senhora quiser. - Sua paixão por ela, disse a marquesa, começou ao recolher o lenço dela; quero que apanhe minha liga. - De todo o coração, disse Cândido. E a apanhou. - Mas quero que a coloque de novamente em seu lugar, disse a dama. E Cândido a recolocou no lugar. - Deve entender, disse a senhora, o senhor é estrangeiro. Às vezes, deixo meus amantes de Paris penar por quinze dias, mas entrego-me ao senhor logo na primeira noite, porque é preciso fazer as honras do país a um rapaz da Vestfália. A bela, tendo percebido dois enormes diamantes nas mãos de seu jovem forasteiro, elogiou-os com tanta boa fé que dos dedos de Cândido passaram para os dedos da marquesa. Ao se retirar com seu padre de Périgord, Cândido sentiu remorsos por ter sido infiel à senhorita Cunegundes. O padre compartilhou de seu pesar. Só lhe cabia uma pequena parte das cinquenta mil libras perdidas no jogo por Cândido e no valor dos dois brilhantes, metade dados, metade extorquidos. Seu objetivo era aproveitar, quanto possível, das vantagens que suas relações com Cândido podiam proporcionar-lhe. Falou muito de Cunegundes e Cândido lhe disse que pediria perdão à bela por sua infidelidade, quando a visse em Veneza. O padre se desdobrava em polidez e atenção e mostrava um carinhoso interesse em tudo o que Cândido dizia, em tudo o que queria fazer. - Então, o senhor tem um encontro em Veneza? Disse-lhe. - Sim, padre, replicou Cândido. Preciso impreterivelmente ir encontrar a senhorita Cunegundes. Então, enlevado pelo prazer de falar daquilo de que gostava, contou, segundo seu costume, parte de suas aventuras com aquela ilustre vestfaliana. - Acho, disse o padre, que a senhorita Cunegundes tem muito espírito e deve escrever cartas encantadoras! - Nunca recebi uma carta sequer, disse Cândido, pois imagine que, tendo sido expulso do castelo por amor por ela, nunca pude escrever-lhe e que, pouco tempo depois, soube que ela tinha morrido, tornei a encontrá-la mais tarde, a perdi novamente, e mandei a duas mil e quinhentas léguas daqui um mensageiro cuja resposta estou esperando. O padre ouvia atentamente e parecia um pouco pensativo. Despediu-se logo dos dois estrangeiros, após tê-los abraçado afetuosamente. No dia seguinte, ao despertar, Cândido recebeu uma carta redigida nestes termos: "Meu senhor, meu caríssimo amante, faz oito dias que estou doente nesta cidade; fiquei sabendo que também estava aqui. Voaria para seus braços se pudesse me mexer. Soube de sua passagem por Bordéus; deixei lá o fiel Cacambo e a velha que devem juntar-se a mim em breve. O governador de Buenos Aires tirou-me tudo, mas ainda me resta seu coração. Venha, sua presença me devolverá a vida ou me fará morrer de prazer”. Essa carta encantadora, essa carta inesperada transportou Cândido numa alegria indizível, mas a doença de sua querida Cunegundes acabrunhou-o de dor. Dividido entre esses dois sentimentos, pega seu ouro e diamantes, e pede para ser levado com Martim à hospedaria onde estava a senhorita Cunegundes. Entra, tremendo de emoção, o coração palpitante, a voz embargada. Procura abrir as cortinas do leito, pede que tragam luz. - Não faça isso, por favor, disse a criada, a luz vai matá-la. E fecha a cortina bruscamente. - Minha querida Cunegundes, disse Cândido chorando, como está? Se não pode me ver, pelo menos fale comigo. - Não pode falar, disse a criada. A dama estende então para fora da cama uma mão gorducha que Cândido passa a regar com suas lágrimas e a encher de diamantes, deixando um saco cheio de ouro na poltrona. No meio de seus transportes, chega um oficial de polícia, seguido pelo padre de Périgord e por uma escolta. - Aqui estão, disse ele, os dois estrangeiros suspeitos? Manda-os prender na mesma hora, e ordena que seus soldados os levem para a prisão. - Não é assim que são tratados os viajantes no Eldorado, disse Cândido. - Sou mais maniqueísta que nunca, disse Martim. - Mas, senhor, para onde está nos levando, disse Cândido. - Para um calabouço, disse o oficial. Recobrando o sangue frio, Martim descobriu que a senhora que pretendia ser Cunegundes era uma vigarista; o padre de Périgord, um tratante que tinha mais que depressa abusado da inocência de Cândido, e o oficial, outro vigarista de quem haveria como livrar-se facilmente. Em vez de expor-se aos procedimentos jurídicos, Cândido, convencido pelos conselhos de Martim e, além disso, sempre impaciente por rever a verdadeira Cunegundes, oferece ao oficial três pequenos diamantes de mais ou menos três mil pistolas cada. - Ah! Senhor, disse o homem do bastão de marfim, ainda que tivesse cometido todos os crimes imagináveis, seria o homem mais honesto do mundo. Três diamantes! Cada um de três mil pistolas! Senhor! Daria minha vida pelo senhor, em vez de levá-lo para o calabouço. Estão prendendo todos os estrangeiros, mas deixe comigo. Tenho um irmão em Dieppe, na Normandia, vou levá-lo até lá. Se tiver algum diamante para dar a ele, cuidará do senhor tão bem quanto eu. - E por que estão prendendo os estrangeiros? Perguntou Cândido. O padre de Périgord tomou então a palavra para dizer: - É porque um miserável do país de Atrebácia ouviu dizer tolices, o que bastou para que cometesse um parricídio, não como aquele do mês de maio de 1610, mas como o do mês de dezembro de 1594, e igual a vários outros cometidos em outros anos e outros meses por outros miseráveis que também ouviram dizer tolices. O oficial explicou então do que se tratava. - Ah! Que monstros! Exclamou Cândido. O quê! Tamanhos horrores num povo que dança e que canta! Será que não poderei sair mais rápido deste país onde os macacos provocam os tigres? Vi ursos em meu país. Homens, só os vi no Eldorado. Em nome de Deus, senhor oficial, me leve para Veneza, onde devo esperar a senhorita Cunegundes. - Só posso levá-lo até a baixa Normandia, disse o chefe de polícia. Imediatamente, manda que lhe tirem os ferros, diz que se enganou, dispensa a escolta e leva Cândido e Martim para Dieppe, onde os deixa nas mãos de seu irmão. Havia no porto um pequeno navio holandês. O normando que, com a ajuda de três outros diamantes, tinha se tornado o mais prestativo dos homens, embarca Cândido e sua criadagem no navio que ia zarpar para Portsmouth, na Inglaterra. Não era o caminho de Veneza; mas Cândido acreditava ter-se livrado do inferno e contava retomar o caminho de Veneza na primeira oportunidade. CAPÍTULO XXIII Cândido e Martim vão para as costas da Inglaterra; o que veem por lá. - Ah! Pangloss! Pangloss! Ah! Martim! Martim! Ah, minha querida Cunegundes! Que mundo é este? Dizia Cândido no navio holandês. - Algo muito louco e abominável, respondia Martim. - Conhece a Inglaterra; será que por lá são tão loucos como na França? - É outro tipo de loucura, disse Martim. Sabe que essas duas nações estão em guerra por causa de alguns acres de neve lá pelo Canadá e que gastam nessa bela guerra muito mais do que vale todo o Canadá. Dizer-lhe precisamente se há mais gente para internar num país ou no outro, minhas fracas luzes não me permitem chegar até lá. Só sei que, de um modo geral, as pessoas que vamos ver são de todo coléricas. Enquanto assim falavam, aportaram em Portsmouth. Uma multidão cobria a orla e olhava atentamente um homem bastante gordo que estava ajoelhado, de olhos vendados, no convés de um dos navios da frota. Quatro soldados, postados na frente dele lhe atiraram cada um três balas no crânio, com a maior tranquilidade deste mundo, e toda a assembleia foi embora extremamente satisfeita. - O que vem a ser tudo isto? Perguntou Cândido. Que demônio é esse que exerce seu poder em toda parte? Perguntou ainda quem era aquele homem gordo que acabava de ser executado com toda a cerimônia. - É um almirante, responderam-lhe. - E por que mataram esse almirante? - Porque, disseram-lhe, não mandou matar bastante gente. Travou um combate com um almirante francês e acharam que não tinha se aproximado dele o suficiente. - Mas, disse Cândido, o almirante francês estava tão longe do almirante inglês quanto ele estava do outro! - Isto é incontestável, replicaram-lhe, mas neste país, é bom matar de vez em quando um almirante para encorajar os outros. Cândido ficou tão atordoado e tão chocado com que estava vendo e ouvindo, que nem quis pôr os pés em terra firme e entrou em acordo com o comandante holandês (correndo o risco de ser roubado por ele como havia sido por aquele de Suriname) para que o levasse sem demora para Veneza. O comandante ficou pronto dois dias depois. Costearam a França, passaram ao largo de Lisboa e Cândido estremeceu. Entraram no estreito e no Mediterrâneo. Finalmente, aportaram em Veneza. - Deus seja louvado! Disse Cândido, abraçando Martim. É aqui que vou voltar a ver a bela Cunegundes, Confio tanto em Cacambo como em mim mesmo. Tudo está bem, tudo vai bem, tudo vai da melhor maneira possível. CAPÍTULO XXIV Paquette e Frei Giroflée. Assim que chegou em Veneza, mandou procurar Cacambo em todas as tabernas, em todos os cafés, em todas as casas de mulheres, e não foi encontrado. Todos os dias mandava pedir informações em todos os navios e todos os barcos: nenhuma notícia de Cacambo. - Mas como! Dizia para Martim, tive tempo de passar do Surinarne para Bordéus, de ir de Bordéus a Paris, de Paris a Dieppe, de Dieppe a Portsmouth, de costear Portugal e Espanha, atravessar todo o Mediterrâneo, passar alguns meses em Veneza, e a bela Cunegundes ainda não chegou! Em lugar dela só encontrei uma espertalhona e um padre de Périgord! Sem dúvida, Cunegundes deve estar morta, só me resta morrer. Ah! Teria sido melhor ficar no paraíso do Eldorado em vez de voltar para esta maldita Europa. Como tem razão, caro Martim! Tudo não passa de ilusão e calamidade. Caiu em negra melancolia e não quis saber da ópera alla moda nem dos outros divertimentos do carnaval. Nenhuma mulher lhe causou a menor tentação. Martim lhe disse: - É muita ingenuidade sua, na verdade, pensar que um criado mestiço, com cinco ou seis milhões no bolso, vá procurar sua amante no fim do mundo e trazê-la para você aqui em Veneza. Se a encontrar, ficará com ela. Se não a encontrar, pegará outra. Aconselho-o a esquecer seu criado Cacambo e sua amada Cunegundes. Martim não era nada consolador. A melancolia de Cândido foi aumentando e Martim não cessava de provar-lhe que havia pouca virtude e felicidade na terra, salvo talvez no Eldorado, onde ninguém podia ir. Discorrendo sobre esse assunto importante e esperando Cunegundes, Cândido avistou um jovem teatino na praça de São Marcos, de braço dado com uma moça. O teatino parecia cheio de viço, rechonchudo, vigoroso. Tinha os olhos brilhantes, um ar seguro, porte altivo, andar altaneiro. A moça era muito bonita e estava cantando. Olhava apaixonadamente para seu teatino, e, de vez em quando, lhe beliscava as gordas bochechas. - Pelo menos se deve reconhecer que as pessoas daqui são felizes, disse Cândido a Martim. Até agora, em toda a terra habitável, exceto o Eldorado, só encontrei infelizes; mas esta moça e este teatino, aposto que são criaturas felizes. - Aposto que não, disse Martim. - É só convidá-los para jantar, disse Cândido, e verá se estou enganado. Na mesma hora, aborda-os, cumprimenta-os e os convida para ir até sua hospedaria para comer macarrão, perdizes da Lombardia, ovas de esturjão e beber vinho de Montepulciano, Lacrima Christi, Chipre e Samos. A moça enrubesceu, o teatino aceitou o convite e a moça acompanhou-o, olhando para Cândido com olhos de surpresa e confusão que algumas lágrimas vieram turvar. Mal entrou no quarto de Cândido, disse: "Então, o senhor Cândido não reconhece mais Paquette”! Ao ouvir essas palavras, Cândido, que ainda não a tinha olhado com atenção, pois só estava preocupado com Cunegundes, disse-lhe: - Ai!, Minha pobre menina, então foi você que pôs o doutor Pangloss no belo estado em que o vi? - Infelizmente, meu senhor, fui eu mesma, disse Paquette. Vejo que está a par de tudo. Soube das espantosas desgraças acontecidas a toda a casa da senhora baronesa e à bela Cunegundes. Juro que meu destino não foi realmente menos triste. Eu era muito inocente quando me conheceu. Um franciscano que era meu confessor não teve dificuldade em seduzir-me. As consequências foram horríveis. Fui forçada a deixar o castelo algum tempo depois que o senhor barão o mandou embora com pontapés no traseiro. Se um famoso médico não tivesse tido piedade de mim, teria morrido. Durante algum tempo, fui por gratidão a amante desse médico. Sua mulher, que era ciumenta como uma fera, batia em mim todos os dias, sem dó nem piedade; era uma fúria só. Aquele médico era o mais feio dos homens e eu a mais infeliz das criaturas por apanhar sem parar por causa de um homem que não amava. O senhor sabe como é perigoso, para uma mulher rabugenta, ser a esposa de um médico. Este, indignado com os modos de sua mulher, deu-lhe um dia, para tratar um pequeno resfriado, um remédio tão eficaz que ela morreu duas horas depois em terríveis convulsões. Os parentes da senhora abriram um processo criminal contra o médico. Ele fugiu e eu fui parar na prisão. Minha inocência não teria bastado para salvar-me, se não tivesse tido certa beleza. O juiz liberou-me com a condição dele ser o sucessor do médico. Fui logo suplantada por uma rival, expulsa sem compensação e obrigada a continuar essa profissão abominável que parece agradar tanto a vocês, homens, e que para nós não passa de um abismo de misérias. Fui exercer a profissão em Veneza. Ah! Senhor, se pudesse imaginar o que é ser obrigada a acariciar indiferentemente um velho comerciante, um advogado, um monge, um gondoleiro, um padre; ser exposta a todos os insultos, todas as humilhações; ficar muitas vezes reduzida a pedir uma saia emprestada para deixá-la levantar por um homem asqueroso; ser roubada por um daquilo que foi ganho com outro; ser extorquida por oficiais de justiça e só ter como perspectiva uma velhice horrível, um hospital e um monturo; com tudo isso, chegaria à conclusão que sou uma das criaturas mais infelizes do mundo. Paquette abria assim seu coração ao bom Cândido, numa sala reservada, na presença de Martim que dizia a Cândido: "Bem vê que já ganhei a metade da aposta”. Frei Giroftée tinha ficado na sala de jantar e estava bebendo um trago enquanto esperava a refeição. - Mas, disse Cândido a Paquette, parecia tão alegre, tão contente quando a encontrei; estava cantando, acariciando o teatino com um semblante tão natural; pareceu-me tão feliz quanto ora se julga infeliz, - Ah! Senhor, respondeu Paquette, é mais uma das misérias da profissão. Ontem, fui roubada e espancada por um oficial e hoje tenho que parecer bem humorada para agradar a um monge. Cândido não quis saber mais nada. Admitiu que Martim estava certo. Sentaram à mesa com Paquette e o teatino, a refeição foi bastante alegre e, já no final, falaram com alguma confiança. - Padre, disse Cândido ao monge, o senhor parece gozar de um destino que todos devem invejar. A flor da saúde brilha em seu semblante, sua fisionomia anuncia felicidade. Tem uma linda moça para sua diversão e parece muito contente com sua condição de teatino. - Palavra de honra, senhor, disse Frei Giroflée, gostaria que todos os teatinos estivessem no fundo do mar. Mais de cem vezes tive a tentação de atear fogo no convento e fazer-me turco. Com quinze anos, meus pais me obrigaram a vestir esta roupa detestável, para deixar mais fortuna para um maldito irmão mais velho que Deus confunda! O ciúme, a discórdia e a raiva residem no convento. É verdade que preguei alguns sermões medíocres que me valeram algum dinheiro, metade do qual me é roubado pelo prior; o resto serve para sustentar as moças. Mas quando à noite retorno ao mosteiro, minha vontade é de arrebentar a cabeça contra as paredes do dormitório. E todos os meus confrades estão na mesma situação. Martim, voltando-se para Cândido com seu sangue-frio costumeiro, disse: - E agora, será que não ganhei a aposta inteira? Cândido deu duas mil piastras a Paquette e mil piastras a frei Giroflée. - Respondo-lhe, disse, que com isso já os faço felizes. - Não acredito nem um pouco, disse Martim. Talvez os deixe bem mais infelizes ainda com essas piastras. - Seja o que puder ser, disse Cândido, mas uma coisa me consola. Vejo que muitas vezes reencontramos as pessoas que pensávamos não reencontrar nunca mais. É bem provável que, tendo reencontrado meu carneiro vermelho e Paquette, também encontre Cunegundes. - Espero, disse Martim, que ela, um dia, faça sua felicidade, mas tenho minhas sérias dúvidas a respeito. - O senhor é muito duro, disse Cândido. - É que eu já vivi muita coisa, retrucou Martim. - Mas veja só esses gondoleiros, disse Cândido. Não estão sempre cantando? - É que não os vê na casa deles, com mulher e filhos, disse Martim. O doge tem suas preocupações, os gondoleiros têm as deles. É verdade que, no fundo, a sorte de um gondoleiro é preferível à de um doge, mas acho a diferença tão medíocre que não vale a pena ser examinada. - Fala-se, disse Cândido, do senador Pococurante que mora naquele lindo palácio sobre a Brenta e que recebe muito bem os estrangeiros. Dizem que é um homem que nunca teve preocupações. - Gostaria de ver espécime tão raro, disse Martim. Imediatamente, Cândido mandou pedir permissão ao senhor Pococurante para visitá-lo no dia seguinte. CAPÍTULO XXV Visita ao senhor Pococurante, nobre veneziano. Cândido e Martim foram de gôndola pelo rio Brenta e chegaram ao palácio do nobre Pococurante. Os jardins eram bem traçados e ornamentados com belas estátuas de mármore; o palácio, de bela arquitetura. O dono da casa, homem de sessenta anos, muito rico, recebeu polidamente os dois curiosos, mas com pouca solicitude, o que desconcertou Cândido e não desagradou a Martim. Logo que entraram, duas moças bonitas e elegantemente vestidas serviram um chocolate bem espumado. Cândido não pôde deixar de elogiá-las por sua beleza, amabilidade e destreza. - São boas criaturas, disse o senador Pococurante. Levo-as, às vezes, para minha cama, pois estou farto das damas da cidade, de seus galanteios, de seus ciúmes, suas briguinhas, seus humores, sua mesquinhez, seu orgulho, suas tolices e dos sonetos que se deve encomendar para elas. Mas, afinal de contas, estas duas moças também estão começando a me aborrecer. Ao passear por uma galeria comprida depois do almoço, Cândido se surpreendeu com a beleza dos quadros. Perguntou quem era o autor dos dois primeiros. - São de Rafael, disse o senador. Comprei-os muito caro por vaidade, há alguns anos. Dizem que é o que há de mais belo na Itália, mas não gosto nada deles. A cor está sem brilho, as figuras não são bem arredondadas e não têm nenhum realce. As roupagens não se parecem em nada com um tecido. Numa palavra, apesar do que dizem, não vejo neles uma verdadeira imitação da natureza. Só gostarei de um quadro quando tiver a impressão de ver a própria natureza. Quadros desse tipo não existem. Tenho muitos quadros mas não olho mais para eles. Enquanto esperavam o jantar, Pococurante pediu um concerto. Cândido achou a música deliciosa. - Este barulho, disse Pococurante, pode divertir durante meia hora. Mas, se durar mais tempo, acaba cansando todo o mundo, embora ninguém ouse confessá-la. Hoje em dia, a música se resume à arte de interpretar coisas difíceis e o que é apenas difícil acaba cansando. Talvez eu gostasse mais de ópera, se não tivessem achado o segredo de fazer dela um monstro que me revolta. Quem quiser que vá ver tragédias musicadas ruins, onde as cenas só foram feitas para trazer, totalmente fora de propósito, duas ou três canções ridículas que fazem brilhar a goela de uma atriz; quem quiser ou quem puder, que vá derreter-se de prazer ao ver um castrado cantarolar o papel de César ou Catão e passear de maneira desajeitada num palco. Quanto a mim, há muito tempo desisti dessas pobrezas que hoje fazem a glória da Itália e que alguns soberanos pagam tão caro. Cândido discordou um pouco, mas discretamente. Martim se mostrou inteiramente de acordo com a opinião do senador. Sentaram-se à mesa e, após um excelente jantar, entraram na biblioteca. Ao ver um Homero magnificamente encadernado, Cândido elogiou o ilustríssimo por seu bom gosto. - Aí está um livro, disse, que deliciava o grande Pangloss, o melhor filósofo da Alemanha. - Não posso dizer o mesmo, disse friamente Pococurante. Fizeram-me acreditar outrora que sentia prazer ao lê-lo, mas aquela repetição contínua de lutas todas parecidas, aqueles deuses que estão sempre agindo sem nunca fazer nada decisivo, aquela Helena que é o motivo da guerra e que não passa de uma atriz da peça, aquela Tróia que sitiam e não tomam, tudo aquilo me causava o mais mortal dos tédios. Perguntei algumas vezes a eruditos se sentiam tanto tédio como eu com essa leitura. Todas as pessoas sinceras confessaram-me que o livro lhes caía das mãos, mas que era sempre necessário tê-lo na própria biblioteca, como um monumento da antiguidade e como aquelas medalhas enferrujadas que não podem ser negociadas. - Vossa Excelência não tem a mesma opinião de Virgílio? Perguntou Cândido. - Concordo, disse Pococurante, que o segundo, o quarto e o sexto livro de sua Eneida são excelentes, mas quanto a seu piedoso Enéias, ao forte Cloante, ao amigo Acates, ao pequeno Ascânio, ao imbecil rei Latino, à burguesa Amata e à insípida Lavínia, não acredito que haja algo mais frio e desagradável. Prefiro o Tasso e as histórias para dormir em pé de Ariosto. - Nem sei se deveria ousar perguntar-lhe, senhor, disse Cândido, se não sente muito prazer ao ler Horácio? - Há máximas, disse Pococurante, que um homem da sociedade pode aproveitar e que, condensadas em versos enérgicos, são gravadas mais facilmente na memória. Mas pouco me importa sua viagem a Brindisi, sua descrição de um jantar sem graça e a briga de carregadores de porto entre não sei que Pupilo, cujas palavras, disse, estavam cheias de pus e outro, cujas palavras eram puro vinagre. Só li com extremo desgosto seus versos grosseiros contra velhas e bruxas e não vejo que mérito pode ter em dizer a seu amigo Mecenas que, se este o colocar na lista dos poetas líricos, sua fronte sublime há de tocar os astros. Os tolos admiram tudo num autor estimado. Só leio para mim. Só gosto daquilo que me serve. Cândido, que tinha sido educado para nunca julgar nada por si próprio, estava muito surpreso com o que ouvia. Martim achava o modo de pensar de Pococurante bastante razoável. - Oh! Aí está um Cícero, disse Cândido. Quanto a esse grande homem, acredito que não se cansa de o ler. - Nunca o leio, respondeu o veneziano. O que me importa que ele tenha defendido a causa de Rabírio ou a de Cluêncio? Já me bastam os processos que tenho que julgar. Teria preferido as suas obras filosóficas, mas quando vi que duvidava de tudo, concluí que sabia tanto quanto ele e que não precisava de ninguém para ser ignorante. - Ah! Aqui estão oitenta volumes de compêndios de uma academia de ciências, exclamou Martim. Pode ser que haja algo interessante. - Haveria, disse Pococurante, se um único dos autores desses calhamaços tivesse inventado nem que fosse a arte de fazer alfinetes, mas em todos esses livros, só há sistemas vazios e nem uma só coisa útil. - Quantas peças de teatro vejo aqui! Disse Cândido. Em italiano, espanhol, francês! - Sim, disse o senador, há três mil e nem três dúzias prestam. Quanto a estas coletâneas de sermões, que todos juntos não valem uma página de Sêneca, e todos esses grossos volumes de teologia, podem muito bem imaginar que nunca os abro, nem eu, nem ninguém. Martim viu prateleiras repletas de livros ingleses. - Acho, disse, que um republicano deve gostar da maior parte dessas obras escritas com tanta liberdade. - Sim, respondeu Pococurante, é bonito escrever o que se pensa. É privilégio do homem. Em toda a nossa Itália, só se escreve o que não se pensa. Aqueles que residem na pátria dos Césares e dos Antoninos não ousam ter uma ideia sem a permissão de um dominicano. Ficaria satisfeito com a liberdade que inspira os gênios ingleses, se a paixão e o espírito de partido não corrompessem todo o valor dessa preciosa liberdade. Percebendo um Milton, Cândido perguntou-lhe se não considerava esse autor como um grande homem. - Quem? Disse Pococurante, este bárbaro que tece um longo comentário do primeiro capítulo do Gênesis em dez livros de versos duros? Este grosseiro imitador dos gregos, que desfigura a criação e, enquanto Moisés representa o Ser eterno produzindo o mundo pela palavra, faz o Messias retirar um grande compasso de um armário do céu para traçar sua obra? Como poderia dar valor àquele que estragou o inferno e o diabo do Tasso; que disfarça Lúcifer ora em sapo, ora em pigmeu; que põe cem vezes o mesmo discurso na boca dele; que o faz discutir sobre teologia; aquele que, imitando com seriedade a invenção cômica das armas de fogo de Ariosto, faz os diabos dispararem o canhão no céu? Nem eu, nem ninguém na Itália, conseguiu gostar dessas tristes extravagâncias. O casamento do pecado e da morte e as serpentes que o pecado gera, dão vontade de vomitar a todo homem que tenha um gosto um pouco apurado, e sua longa descrição de um hospital só é boa para um coveiro. Este poema obscuro, bizarro e enfadonho foi desprezado desde o início. Hoje o trato como foi tratado em sua pátria pelos contemporâneos. De resto, digo o que penso e pouco me importa que os outros pensem como eu. Cândido ficou aflito com essas palavras. Respeitava Homero, gostava um pouco de Milton. - Infelizmente, disse baixinho para Martim, receio que este homem possa ter um soberano desprezo por nossos poetas alemães. - Não haveria grande mal nisso, disse Martim. - Oh! Que homem superior! Dizia ainda Cândido entre os dentes. Que grande gênio este Pococurante! Nada pode agradá-lo. Após ter passado todos os livros em revista, desceram para o jardim. Cândido elogiou todas as suas belezas. - Nunca vi nada de tão mau gosto, disse o dono. Aqui só temos enfeites sem graça, mas amanhã mesmo vou mandar desenhar outro de gosto mais nobre. Quando os dois curiosos se despediram de Sua Excelência, Cândido disse a Martim: - Ora essa, há de convir que esse é o mais feliz dos homens, pois está acima de tudo o que possui. _ Então não vê que está desgostoso com tudo o que possui? Platão já disse, há muito tempo, que os melhores estômagos não são aqueles que rejeitam todos os alimentos. _ Mas, disse Cândido, será que não há prazer em criticar tudo, em sentir defeitos onde os outros homens pensam ver belezas? _ Quer dizer, respondeu Martim, que há prazer em não sentir prazer? _ Oh! Disse Cândido, então serei o único homem feliz, quando encontrar a senhorita Cunegundes. - Sempre é bom esperar, disse Martim. Enquanto isso, os dias, as semanas passavam. Cacambo não voltava e Cândido estava tão mergulhado em seu sofrimento que nem notou que Paquette e o frei Giroflée sequer tinham vindo para agradecer. CAPÍTULO XXVI Do jantar que Cândido e Martim tiveram com seis estrangeiros e quem eram estes. Uma noite em que Cândido, acompanhado de Martim, ia sentar à mesa com os estrangeiros que estavam hospedados na mesma estalagem, um homem com o rosto cor de fuligem abordou-o pelas costas e, segurando-o pelo braço, disse-lhe: - Apronte-se para ir embora conosco, não falte. Volta-se e vê Cacambo. Só a visão de Cunegundes poderia ter-lhe causado maior surpresa e agradá-lo mais ainda. Esteve a ponto de ficar louco de alegria. Abraça seu caro amigo. - Cunegundes sem dúvida deve estar aqui, onde está? Leve-me até ela, para morrer de alegria com ela. - Cunegundes não está aqui, disse Cacambo, está em Constantinopla. - Oh! Céus! Em Constantinopla! Mas, mesmo na China, vou voando, vamos partir! - Iremos depois do jantar, retrucou Cacambo. Não posso falar mais, sou escravo, meu amo está me esperando. Tenho de servi-lo à mesa. Não fale comigo. Coma e esteja pronto. Cândido, dividido entre a alegria e a dor, encantado por ter tomado a ver seu fiel agente, surpreso por vê-lo escravo, cheio de esperança de rever sua amante, o coração agitado, a mente transtornada, sentou-se à mesa com Martim, que via com sangue-frio todas essas aventuras, e com seis estrangeiros que tinham vindo passar o carnaval em Veneza. Cacambo, que estava servindo bebida a um desses seis estrangeiros, aproximou-se do ouvido de seu amo, já no final da refeição, e lhe disse: - Vossa Majestade poderá partir quando quiser, o navio está pronto. Pronunciando essas palavras, saiu. Os comensais, surpresos, olhavam-se sem proferir palavra, quando outro criado, aproximando-se de seu amo, lhe disse: - Majestade, a liteira de Vossa Majestade está em Pádua e o barco está pronto. O amo fez um sinal e o criado partiu. Todos os comensais voltaram a se olhar e a surpresa comum redobrou. Um terceiro criado, aproximando-se também de um terceiro estrangeiro, lhe disse: - Majestade, acredite, Vossa Majestade não deve ficar aqui mais tempo, vou preparar tudo. E desapareceu em seguida. Cândido e Martim não tiveram dúvida que fosse uma brincadeira de carnaval. Um quarto criado disse ao quarto amo: - Vossa Majestade poderá partir quando quiser. E saiu como os outros. O quinto criado disse a mesma coisa para o quinto amo. Mas o sexto criado falou de modo diferente para o sexto estrangeiro que estava perto de Cândido; disse: - Palavra de honra, Majestade, devo dizer que não estão mais querendo dar crédito a Vossa Majestade, nem a mim. Ambos poderemos ser presos esta noite. Vou tratar do que me compete. Adeus! Todos os criados tendo desaparecido, os seis estrangeiros, Cândido e Martim ficaram em profundo silêncio. Finalmente, Cândido o rompeu: - Senhores, que brincadeira singular! Por que todos são reis? Por mim, confesso que nem eu nem Martim somos reis. O amo de Cacambo tomou então a palavra e disse gravemente em italiano: - Não estou brincando, chamo-me Achmet III Fui durante vários anos sultão. Destronei meu irmão, meu sobrinho me destronou, degolaram meus vizires, estou terminando meus dias no velho serralho. Meu sobrinho, o sultão Mahmoud, me permite viajar às vezes por motivos de saúde e vim passar o carnaval em Veneza. Um jovem que estava ao lado de Achmet falou depois dele e disse: - Meu nome é Ivan, fui imperador de todas as Rússias. Fui destronado ainda no berço, meu pai e minha mãe foram encarcerados, fui criado na prisão. Tenho às vezes permissão para viajar, acompanhado por aqueles que me vigiam, e vim passar o carnaval em Veneza. O terceiro disse: - Sou Carlos Eduardo, rei da Inglaterra. Meu pai cedeu-me seus direitos ao reino, lutei para sustentá-los, oitocentos dos meus partidários tiveram o coração arrancado com o qual bateram-lhes no rosto. Fui jogado na cadeia. Vou a Roma visitar o rei meu pai, destronado como eu e meu avô, e vim passar o carnaval em Veneza. O quarto tomou então a palavra e disse: - Sou o rei dos polacos. A sorte da guerra privou-me de meus Estados hereditários, meu pai sofreu os mesmos reveses. Submeto-me à Providência como o sultão Achmet, o imperador Ivan e o rei Carlos Eduardo, a quem Deus dê longa vida, e vim passar o carnaval em Veneza. O quinto disse: - Também sou rei dos polacos. Perdi meu reino por duas vezes, mas a Providência deu-me outro Estado, no qual fiz muito mais bem que todos os reis dos sármatas juntos jamais conseguiram fazer nas margens do Vístula. Também resigno-me à Providência e vim passar o carnaval em Veneza. Faltava falar o sexto monarca: - Senhores, disse, não sou tão grande senhor quanto Vossas Majestades, mas afinal também fui rei como qualquer outro. Sou Teodoro. Elegeram-me rei na Córsega, chamaram-me de Vossa Majestade e agora mal me chamam de Senhor. Mandei cunhar moeda e não tenho um tostão, tive dois secretários de Estado e só tenho um criado, vi-me sentado num trono e depois fiquei muito tempo em Londres na prisão, dormindo sobre palha. Receio receber aqui o mesmo tratamento, embora tenho vindo como Vossas Majestades passar o carnaval em Veneza. Os outros cinco reis ouviram essas palavras com nobre compaixão. Cada um deles deu vinte sequins ao rei Teodoro para comprar roupas. Cândido lhe deu de presente um diamante de dois mil sequins. - Quem será, diziam os cinco reis, este simples cidadão que está em condições de dar cem vezes o que cada um de nós deu e que o dá? No momento em que se levantavam da mesa, chegaram à hospedaria quatro altezas sereníssimas que também haviam perdido seus Estados pela sorte da guerra e que vinham passar o resto do carnaval em Veneza. Mas Cândido nem reparou nos recém-chegados. Só se preocupava em partir para reencontrar sua querida Cunegundes em Constantinopla. CAPÍTULO XXVII Viagem de Cândido a Constantinopla. O fiel Cacambo já obtivera do capitão turco que ia reconduzir o sultão Achmet a Constantinopla a promessa que acolheria Cândido e Martim a bordo. Ambos foram para Já após terem se prosternado diante de Sua Miserável Alteza. No caminho, Cândido dizia a Martim: - Então encontramos seis reis destronados com quem jantamos e, entre esses seis reis, ainda houve um a quem dei esmola. Talvez haja muitos outros príncipes mais infelizes. Quanto a mim, só perdi cem carneiros e estou voando para os braços de Cunegundes. Meu caro Martim, mais uma vez, Pangloss estava certo: tudo está bem. - Assim espero, disse Martim. - Mas, disse Cândido, esta aventura que tivemos em Veneza é muito pouco verossímil. Nunca tinha visto nem ouvido contar que seis reis destronados tivessem jantado juntos numa estalagem. - Isso não é mais extraordinário, disse Martim, que a maioria das coisas que nos aconteceu. É muito comum que reis sejam destronados; quanto à honra que tivemos de jantar com eles, é uma bagatela que não merece nossa atenção. Apenas Cândido subiu no navio, lançou-se ao pescoço de seu antigo criado, seu amigo Cacambo. - E então, disse-lhe. O que Cunegundes está fazendo? Continua sendo um prodígio de beleza? Ainda me ama? Como está? Você deve ter lhe comprado um palácio em Constantinopla! - Meu querido amo, respondeu Cacambo, Cunegundes está lavando tigelas na beira da Propôntida, no palácio de um príncipe que tem muito poucas tigelas. É escrava na casa de um antigo soberano chamado Ragotski, a quem o Grão-Turco dá três escudos por dia no seu asilo, mas o mais triste é que perdeu a beleza e tornou-se horrivelmente feia. - Ah! Bonita ou feia, disse Cândido, sou homem honrado e meu dever é amá-la sempre. Mas como pôde ter sido reduzida a um estado tão miserável com os cinco ou seis milhões que você tinha levado? - Bem, disse Cacambo, então não tive que dar dois milhões para o senhor Dom Fernando de Ibaraa y Figueroa y Mascarenes y Lampourdos y Souza, governador de Buenos Aires, para ter a permissão de reaver a senhorita Cunegundes? E não houve um pirata que nos despojou de todo o resto? Esse pirata não nos levou para o cabo de Matapan, a Milo, a Nicária, a Samos, a Petra, a Dardanelos, a Mármora, a Scutari? Cunegundes e a velha estão servindo na casa desse príncipe de quem falei e eu sou escravo do sultão destronado. - Quantas espantosas calamidades encadeadas umas às outras! Disse Cândido. Mas, afinal de contas, ainda tenho alguns diamantes. Libertarei Cunegundes facilmente. É uma pena que tenha ficado tão feia. A seguir, voltando-se para Martim: - Quem acha, disse, que seja mais digno de compaixão, o imperador Achmet, o imperador Ivan, o rei Carlos Eduardo ou eu? - Não sei, disse Martim. Teria que penetrar no íntimo de cada um para sabê-lo. - Ah! Disse Cândido, se Pangloss estivesse aqui, ele saberia dizer. - Não sei, disse Martim, com que balanças seu Pangloss poderia ter pesado os infortúnios dos homens e apreciado seus sofrimentos. Tudo o que posso presumir é que existem milhões de homens na terra cem vezes mais infelizes que o rei Carlos Eduardo, que o imperador Ivan e o sultão Achmet. - Pode ser, disse Cândido. Em poucos dias chegaram no canal do mar Negro. Cândido começou por resgatar Cacambo por uma boa soma e, sem perder tempo, meteu-se numa galera com seus companheiros para ir na costa da Propôntida procurar Cunegundes, por mais feia que fosse. Havia nas galés dois condenados que remavam muito mal e a quem o capitão levantino aplicava de vez em quando umas chicotadas de nervo de boi nos ombros nus. Por um movimento natural, Cândido olhou-os mais atentamente que os outros e aproximou-se deles compadecido. Alguns traços de seus semblantes desfigurados pareceram-lhe ter alguma semelhança com Pangloss e com aquele jesuíta infeliz, aquele barão, irmão da senhorita Cunegundes. Essa ideia deixou-o comovido e triste. Fitou-os mais atentamente ainda. - Na verdade, disse para Cacambo, se não tivesse visto mestre Pangloss sendo enforcado, e se não tivesse tido a infelicidade de matar o barão, acreditaria que são eles que estão remando nesta galera. Ao nome do barão e de Pangloss, os dois condenados soltaram um grande grito, ficaram parados no banco e deixaram cair seus remos. O capitão levantino correu até eles e as chicotadas de nervo de boi redobraram. - Pare, pare, meu senhor, exclamou Cândido. Eu lhe darei todo o dinheiro que quiser. - Como? É Cândido! Dizia um dos condenados. - Como? É Cândido! Dizia o outro. - Será um sonho? Disse Cândido. Será que estou acordado? Será que estou nesta galera? Será que aquele é o barão que matei? Será que aquele é mestre Pangloss que vi sendo enforcado? - Somos nós mesmos, somos nós, respondiam. - Como? É este o grande filósofo? Dizia Martim. - Então, senhor capitão levantino, dizia Cândido, quanto quer para o resgate do senhor Thunder-ten-tronckh, um dos primeiros barões do Império, e do senhor Pangloss, o mais profundo metafísico da Alemanha? - Cachorro de cristão, respondeu o capitão levantino, já que esses dois cachorros de condenados cristãos são barões e metafísicos, o que deve ser uma grande dignidade no país deles, me pagarás por eles cinquenta mil cequins. - Vai recebê-los, senhor. Leve-me como um relâmpago para Constantinopla e será pago na mesma hora. Melhor não, leve-me para junto da senhorita Cunegundes. O capitão levantino, à primeira oferta de Cândido, já tinha voltado a proa para a cidade, e mandava remar mais rápido que um pássaro fendendo os ares. Cândido abraçou cem vezes o barão e Pangloss. - Mas como foi que não o matei, meu caro barão? E meu caro Pangloss, como pode estar em vida após ter sido enforcado? E por que estão ambos nas galés da Turquia? - É verdade mesmo que minha querida irmã está neste país? Dizia o barão. - Sim, respondia Cacambo. - Então estou revendo meu caro Cândido! Exclamava Pangloss. Cândido apresentava-lhes Martim e Cacambo. Todos se abraçavam, todos falavam ao mesmo tempo. A galera voava, já estavam no porto. Mandaram chamar um judeu, a quem Cândido vendeu por cinquenta mil cequins um diamante valendo cem mil, e que jurou por Abraão que não podia lhe dar mais. Pagou no ato o resgate do barão e de Pangloss. Este jogou-se aos pés de seu libertador e banhou-os de lágrimas. O outro agradeceu com um movimento de cabeça e prometeu-lhe devolver o dinheiro na primeira oportunidade. - Mas será possível que minha irmã esteja mesmo na Turquia? Dizia. - Nada mais possível, respondeu Cacambo, uma vez que está lavando a louça de um príncipe da Transilvânia. Imediatamente mandaram chamar dois judeus. Cândido vendeu mais diamantes e todos partiram em outra galera para ir libertar Cunegundes. CAPÍTULO XXVIII O que aconteceu a Cândido, Cunegundes, Pangloss, Martim, etc. - Perdão, mais uma vez, disse Cândido ao barão; perdão, meu reverendo padre, por aquela estocada que lhe atravessou o corpo. - Não falemos mais nisso, disse o barão. Fui um pouco ríspido demais, confesso, mas já que quer saber qual foi o acaso que me trouxe às galeras, lhe direi que, depois de minha ferida ter sido curada pelo irmão boticário do colégio, fui atacado e raptado por uma facção espanhola. Fiquei preso em Buenos Aires na época que minha irmã acabava de partir. Pedi para voltar a Roma para junto do padre geral. Fui nomeado para ir servir de capelão em Constantinopla, junto do senhor embaixador da França. Nem oito dias depois de ter assumido o cargo, encontrei à noite um jovem pajem muito bem feito. Fazia muito calor. O jovem quis tomar banho. Aproveitei a oportunidade para tomar banho também. Não sabia que fosse um crime capital para um cristão ser apanhado nu com um jovem muçulmano. Um cádi mandou que me castigassem com cem chibatadas na planta dos pés e condenou-me às galeras. Acho que nunca se cometeu mais horrenda injustiça. Mas gostaria muito de saber porque minha irmã está na cozinha de um soberano da Transilvânia refugiado na Turquia. - Mas e o senhor, meu caro Pangloss, perguntou Cândido, como é possível que eu o esteja vendo outra vez? - É verdade, disse Pangloss, que me viu sendo enforcado. Deveria naturalmente ter sido queimado, mas lembra que estava chovendo a cântaros quando iam me pôr para assar. A tempestade foi tão violenta que desistiram de acender o fogo. Fui enforcado porque não puderam fazer nada melhor. Um cirurgião comprou meu corpo, levou-me para sua casa e dissecou-me. Primeiro, praticou em mim uma incisão em forma de cruz desde o umbigo até a clavícula. Não era possível ter sido tão mal enforcado como eu o fora. O executor das grandes obras da santa Inquisição, que era subdiácono, na verdade queimava as pessoas maravilhosamente bem, mas não estava acostumado a enforcar. A corda estava molhada e não deslizou e se enroscou; enfim, ainda estava respirando. A incisão em cruz me fez soltar tamanho grito, que o cirurgião caiu para trás e, pensando que estava dissecando o diabo, fugiu morrendo de medo e caiu mais uma vez na fuga pela escada abaixo. Com o barulho, sua mulher acorreu de um aposento vizinho. Viu-me estirado em cima da mesa com minha incisão em cruz. Ficou com mais medo ainda que seu marido, fugiu e caiu por cima dele. Quando conseguiram se refazer um pouco, ouvi a cirurgiã dizer ao cirurgião: "Meu bem, o que deu em você de querer dissecar um herege? Não sabe que o diabo sempre está no corpo dessa gente? Vou correndo procurar um padre para exorcizá-lo." Ao ouvir essas palavras, tremi e juntei as poucas forças que me sobravam para gritar: "Tenham piedade de mim!" Por fim, o barbeiro português tomou coragem. Costurou minha pele. Até sua mulher cuidou de mim e fiquei bom em quinze dias. O barbeiro arranjou-me uma função e me fez lacaio de um cavaleiro de Malta que estava indo para Veneza, mas meu amo, não tendo com que me pagar, coloquei-me ao serviço de um mercador veneziano e acompanhei-o até Constantinopla. Um dia, deu-me na veneta de entrar numa mesquita. Só se encontrava ali um velho imame e uma jovem devota muito bonita que recitava seus padre-nossos e estava com seu peito inteiramente descoberto. Trazia entre seus grandes seios um ramalhete de tulipas, de rosas, anêmonas, ranúnculos, jacintos e orelhas de urso. Deixou cair o ramalhete, recolhi-o e o recoloquei com uma solicitude muito respeitosa. Demorei tanto para ajeitá-lo que o imame ficou furioso e, vendo que eu era cristão, gritou por socorro. Levaram-me para o cádi que mandou castigar-me com cem chibatadas na planta dos pés e mandou-me para as galeras. Fui acorrentado precisamente na mesma galera e no mesmo banco que o senhor barão. Nessa galera havia quatro jovens de Marselha, cinco padres napolitanos e dois monges de Corfu que nos contaram que semelhantes aventuras aconteciam todos os dias. O barão afirmava ter sido vítima de uma injustiça maior que a minha e eu afirmava que era muito mais lícito colocar um ramalhete de flores no peito de uma mulher que ficar nu com um pajem. Vivíamos discutindo e levávamos vinte chicotadas com nervo de boi por dia, quando o desenrolar dos acontecimentos deste universo trouxe você para nossa galera e nos resgatou. - Então, meu caro Pangloss, disse Cândido, quando foi enforcado, dissecado, espancado, e obrigado a remar nas galeras, continuou pensando que tudo neste mundo ia o melhor possível? - Mantenho minha opinião de sempre, respondeu Pangloss, pois afinal sou filósofo. Não convém desdizer-me, uma vez que Leibniz não pode estar errado e uma vez que a harmonia preestabelecida é, por outro lado, a coisa mais bela do mundo, assim como o são a totalidade e a matéria sutil. CAPÍTULO XXIX De que maneira Cândido reencontrou Cunegundes e a velha. Enquanto Cândido, o barão, Pangloss, Martim e Cacambo contavam suas aventuras, enquanto discorriam sobre os acontecimentos contingentes ou não contingentes deste universo e discutiam sobre os efeitos e as causas, sobre o mal moral e o mal físico, a liberdade e a necessidade, o consolo que se pode provar nas galeras da Turquia, chegaram à costa da Propôntida, na casa do príncipe da Transilvânia. As primeiras imagens que se apresentaram foram Cunegundes e a velha, ocupadas em estender toalhas no varal. O barão empalideceu com o espetáculo. O apaixonado Cândido, ao ver sua linda Cunegundes sem viço, olhos congestionados, peito seco, bochechas enrugadas, braços vermelhos e arranhados, recuou três passos, horrorizado, e voltou logo a adiantar-se por educação. Ela abraçou Cândido e seu irmão. Abraçaram a velha. Cândido resgatou as duas. Havia na vizinhança uma pequena granja. A velha propôs a Cândido que se acomodassem nela, até que todos encontrassem um destino melhor. Cunegundes não sabia que tinha ficado feia, pois ninguém lhe havia dito nada. Relembrou a Cândido suas promessas num tom tão absoluto que o bom Cândido não ousou esboçar a mínima recusa. Informou, portanto, ao barão que ia casar com sua irmã. - Jamais admitirei, disse o barão, tamanha baixeza da parte dela nem tamanha insolência da sua. Nunca poderão recriminar-me por essa infâmia. Os filhos de minha irmã não poderiam entrar nos capítulos da Alemanha. Não, minha irmã nunca se casará, a não ser com um barão do Império. Cunegundes atirou-se a seus pés e os regou de lágrimas. Ele permaneceu inflexível. - Doido varrido, disse-lhe Cândido, eu te salvei das galeras, paguei teu resgate, paguei o de tua irmã. Estava aqui lavando louça, está feia, tenho a bondade de fazer dela minha mulher, e tu ainda pretendes te opor! Se obedecesse à minha raiva, te mataria de novo. - Podes matar-me uma vez mais, disse o barão, mas não te casarás com minha irmã enquanto eu viver. CAPÍTULO XXX Conclusão. Cândido, no fundo do coração, não tinha a menor vontade de casar com Cunegundes. Mas a extrema impertinência do barão determinava-o a concluir o casamento e Cunegundes instava tão vivamente que não podia voltar atrás. Consultou Pangloss, Martim e o fiel Cacambo. Pangloss desenvolveu um belo memorando, pelo qual provava que o barão não tinha nenhum direito sobre a irmã e que ela podia, segundo todas as leis do Império, desposar Cândido com a mão esquerda. Martim concluiu que se devia jogar o barão ao mar. Cacambo decidiu que era preciso devolvê-lo ao capitão levantino e reenviá-lo às galeras; depois disso, seria mandado para Roma, ao padre geral, pelo primeiro navio. A proposta pareceu muito boa. A velha a aprovou. Nada foi dito à irmã, a coisa foi executada por meio de algum dinheiro e tiveram o prazer de enganar um jesuíta e punir o orgulho de um barão alemão. Era muito natural imaginar que, depois de tantos desastres, casado com sua amada e vivendo com o filósofo Pangloss, o filósofo Martim, o prudente Cacambo e a velha, tendo por outro lado trazido tantos diamantes da pátria dos antigos incas, Cândido levaria a vida mais agradável deste mundo. Mas foi tão explorado pelos judeus, que só lhe restou sua granja. Sua mulher, a cada dia mais feia, tornou-se rabugenta e insuportável. A velha estava enferma e ficou ainda mais mal-humorada que Cunegundes. Cacambo, que trabalhava na horta e que ia vender legumes em Constantinopla, estava sobrecarregado de trabalho e amaldiçoava seu destino. Pangloss estava desesperado por não poder brilhar em alguma universidade da Alemanha. Quanto a Martim, tinha a firme convicção que se estava igualmente mal em toda parte. Encarava tudo com paciência. Cândido, Martim e Pangloss discutiam às vezes metafísica e moral. Seguidamente viam passar debaixo das janelas da casa da granja navios carregados de efêndis, de paxás, de cádis que estavam sendo mandados para o exílio em Lemnos, Mitilene, Erzerum. Viam chegar outros cádis, outros paxás, outros efêndis que tomavam o lugar dos expulsos e eram expulsos por sua vez. Viam cabeças devidamente empalhadas que iam ser apresentadas diante da Sublime Porta. Esses espetáculos faziam redobrar as dissertações e, quando não estavam discutindo, o tédio era tamanho que um dia a velha atreveu-se a dizer: - Gostaria de saber o que é pior, se é ser violentada cem vezes por piratas negros, ter uma nádega extirpada, ter sido açoitado pelos búlgaros, ter sido chicoteado e enforcado num auto de fé, ter sido dissecado, remar nas galeras, provar enfim todas as misérias pelas quais passamos, ou então ficar aqui sem fazer nada? - É uma grande questão, disse Cândido. Essas palavras inspiraram novas reflexões e sobretudo Martim concluiu que o homem nasceu para viver nas convulsões da inquietude ou na letargia do tédio. Cândido não concordava, mas tampouco nada afirmava. Pangloss confessava que sempre sofrera horrivelmente, mas tendo sustentado uma vez que tudo estava da melhor maneira possível, sustentaria sempre o mesmo, embora não acreditasse nem um pouco. Uma coisa acabou confirmando Martim em seus detestáveis princípios, levando Cândido a hesitar mais do que nunca e incomodando Pangloss. É que viram chegar um dia na granja Paquette e frei Giroflée, que estavam na mais extrema miséria. Tinham devorado muito rápido suas três mil piastras, tinham se separado, reconciliado, tinham brigado, tinham ido parar na cadeia, tinham fugido e, finalmente, frei Giroflée se fizera turco. Paquette continuava com sua profissão por toda a parte e não ganhava mais nada. - Bem que eu previ, disse Martim a Cândido, que seus presentes seriam prontamente dissipados e só os deixariam mais miseráveis. Você e Cacambo já ficaram abarrotados de milhões de piastras e hoje não são mais felizes que frei Giroflée e Paquette. - Ah, ah! Disse Pangloss a Paquette, então os céus então te trazem de volta aqui entre nós, minha pobre menina! Sabes muito bem que me custaste a ponta do nariz, um olho e uma orelha? E agora em que estado te encontras! Vê como é este mundo! Essa nova aventura levou-os a filosofar mais do que nunca. Havia na redondeza um dervixe muito famoso que passava por ser o melhor filósofo da Turquia. Foram consultá-lo. Pangloss tomou a palavra e disse: - Mestre, vimos implorar que nos diga por que foi formado um animal tão estranho como o homem. - Com que estás te metendo? Disse o dervixe. Será que é de tua conta? - Mas, meu reverendo pai, disse Cândido, há tanto mal na terra. - O que importa, disse o dervixe, se há mal ou bem? Quando Sua Alteza manda um navio ao Egito, será que importa se os ratos a bordo estão à vontade ou não? - O que se deve fazer então? Perguntou Pangloss. - Ficar calado, respondeu o dervixe. - Desejava realmente, disse Pangloss, vir aqui discorrer um pouco com o senhor sobre os efeitos e as causas, o melhor dos mundos possíveis, a origem do mal, a natureza da alma e a harmonia preestabelecida. Ao ouvir essas palavras, o dervixe bateu-lhes a porta na cara. Durante essa conversa, espalhara-se a notícia de que acabavam de ser estrangulados em Constantinopla dois vizires e o mufti e que vários amigos deles haviam sido empalados. Essa catástrofe causou grande sensação em toda parte durante algumas horas. Na volta para a pequena granja, Pangloss, Cândido e Martim encontraram um bom velho que refrescava com a brisa na porta de casa, à sombra de um laranjal. Pangloss, que era tão curioso quanto discursador, perguntou-lhe como se chamava o mufti que acabavam de estrangular. - Não faço ideia, respondeu o bom velho. Nunca soube o nome de nenhum mufti nem de nenhum vizir. Ignoro totalmente o caso de que estão falando. Presumo que, de modo geral, aqueles que se metem nos negócios públicos perecem às vezes miseravelmente e é o que merecem. Mas nunca me informo do que está acontecendo em Constantinopla. Contento-me em mandar vender por lá os frutos do pomar que cultivo. Depois dessas palavras, convidou os estrangeiros para entrar em sua casa. Suas duas filhas e seus dois filhos apresentaram-lhes vários tipos de sorvetes feitos por eles mesmos, kaimak coberto de casca de cidra cristalizada, laranjas, limões, limas, abacaxis, pistaches, café de Moca que não estava misturado com o café ruim da Batávia e das ilhas. Depois disso, as duas filhas desse bom muçulmano perfumaram as barbas de Cândido, de Pangloss e de Martim. - O senhor deve ter, disse Cândido ao turco, uma vasta e magnífica propriedade. - Só tenho uns três alqueires, respondeu o turco. Cultivo-os com meus filhos. O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade. Na volta para sua granja, Cândido refletiu profundamente sobre as palavras do turco. Disse a Pangloss e a Martim: - Esse bom velho parece-me ter conseguido para ele um destino em muito preferível ao daqueles seis reis com quem tivemos a honra de jantar. - As grandezas, disse Pangloss, são muito perigosas, segundo o que dizem todos os filósofos, pois, afinal, Eglon, rei dos Moabitas, foi assassinado por Aod; Absalão foi suspenso pelos cabelos e perfurado por três dardos; o rei Nadab, filho de Jeroboão, foi morto por Baza; o rei Ela, por Zambri; Ocosias, por Jeú; Atalia, por Joiada; os reis Joaquim, Jeconias, Sedecias foram escravos. Sabem como morreram Creso, Astíages, Dario, Dionísio de Siracusa, Pirro, Perseu, Aníbal, Jugurta, Ariovisto, César, Pompeu, Nero, Otão, Vitélio, Domiciano, Ricardo II da Inglaterra, Eduardo II, Henrique VI, Ricardo III, Maria Stuart, Carlos I, os três Henriques da França, o imperador Henrique IV. Sabem... - Também sei, disse Cândido, que temos que cultivar nossa terra. - Tem razão, disse Pangloss, pois, quando o homem foi colocado no jardim do Éden, foi colocado ut operaretur eum, para que o trabalhasse, o que prova que o homem não nasceu para o descanso. - Trabalharemos sem filosofar, disse Martim. É o único meio de tornar a vida suportável. Toda a pequena sociedade se empenhou nesse louvável desígnio. Cada um se pôs a exercitar seus talentos. A pequena propriedade rendeu muito. Cunegundes era na verdade bem feia, mas se tornou excelente doceira. Paquette bordava. A velha passou a cuidar da roupa. Até frei Giroflée não se furtou ao serviço e se revelou um ótimo marceneiro e virou até mesmo um homem honesto. Pangloss dizia vez por outra a Cândido: - Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis, pois, afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo com uma saraivada de pontapés no traseiro por amor da senhorita Cunegundes, se não tivesse sido perseguido pela Inquisição, se não tivesse percorrido a América a pé, se não tivesse aplicado um belo golpe de espada no barão, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo doces de cidra cristalizada e pistaches. - Concordo plenamente, disse Cândido, mas devemos cultivar nosso terreno.