Jean-Jacques Rousseau – Ensaio Sobre a Origem das Línguas – No qual se fala da melodia e da imitação musical Índice Capítulo I - Dos vários meios de comunicar nossos pensamentos Capítulo II - De como a primeira invenção das palavras não vem das necessidades, mas das paixões Capítulo III - De como a primeira linguagem teve de ser figurada Capítulo IV - Dos caracteres distintivos da primeira língua e das mudanças que teve de sofrer Capítulo V - Da escrita Capítulo VI - Se é provável que Homero soubesse escrever Capítulo VII - Da prosódia moderna Capítulo VIII - Diferenças geral e local na origem das línguas Capítulo IX - Formação das línguas meridionais Capítulo X - Formação das línguas do norte Capítulo XI - Reflexões sobre essas diferenças Capítulo XII - Origem e relações da música Capítulo XIII - Da melodia Capítulo XIV - Da harmonia Capítulo XV - De como nossas mais vivas sensações frequentemente agem por meio de impressões morais Capítulo XVI - Falsa analogia entre as cores e os sons Capítulo XVII - Erro dos músicos, prejudicial à sua arte Capítulo XVIII - De como o sistema musical dos gregos não possuía relação alguma com o nosso Capítulo XIX - Como degenerou a música Capítulo XX - Relação entre as línguas e o governo CAPÍTULO I Dos vários meios de comunicar nossos pensamentos A palavra distingue os homens entre os animais; a linguagem, as nações entre si - não se sabe de onde é um homem antes de ter ele falado. O uso e a necessidade levam cada um a aprender a língua de seu país, mas o que faz ser essa língua a de seu país e não a de outro? A fim de explicar tal fato, precisamos reportar-nos a algum motivo que se prenda ao lugar e seja anterior aos próprios costumes, pois, sendo a palavra a primeira instituição social, só a causas naturais deve a sua forma. Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a ele próprio, o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isso. Tais meios só podem provir dos sentidos, pois estes constituem os únicos instrumentos pelos quais um homem pode agir sobre outro. Aí está, pois, a instituição dos sinais sensíveis para exprimir o pensamento. Os inventores da linguagem não desenvolveram esse raciocínio, mas o instinto sugeriu-lhes a consequência. Limitam-se a dois os meios gerais por via dos quais podemos agir sobre os sentidos de outrem: o movimento e a voz. A ação do movimento pode ser imediata, no tato, ou mediata, no gesto. A primeira, encontrando seu limite no comprimento do braço, não pode transmitir-se a distância, mas a outra alcança tão longe quanto o raio visual. Restam, pois, somente a vista e o ouvido como órgãos passivos da linguagem entre homens dispersos. Apesar de serem a linguagem do gesto e a da voz igualmente naturais, a primeira, todavia, parece mais fácil e depende menos de convenções, porquanto um maior número de objetos impressiona antes nossos olhos do que nossos ouvidos, e as figuras apresentam maior variedade do que os sons, mostrando-se também mais expressivas e dizendo mais em menos tempo. O amor, dizem, foi o inventor do desenho; pôde também inventar a palavra, porém com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para se exprimir. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer traçava a sua sombra! Que sons poderia empregar para traduzir esse movimento do braço? Nossos gestos nada significam além de nossa inquietação natural, mas não é desses gestos que desejo falar. Só os europeus gesticulam quando falam; dir-se-ia que toda a força de sua linguagem reside nos braços, e acrescentam-lhe ainda a dos pulmões, de nada lhes servindo tudo isso. Enquanto um francês se agita e martiriza o corpo dizendo muitas palavras, um turco tira por um momento o cachimbo da boca, diz a meia voz duas palavras e esmaga-o com uma sentença. Depois que aprendemos a gesticular, esquecemo-nos da arte das pantomimas, pelo mesmo motivo por que, possuindo muitas belas gramáticas, não entendemos mais os símbolos dos egípcios. O que os antigos diziam com maior vigor não exprimiam com palavras mas com sinais. Não o diziam, mostravam-no. Abri a História antiga e a encontrareis cheia desses meios de convencer os olhos, que nunca deixam de produzir efeito mais seguro do que o de todos os discursos que se poderia colocar em seu lugar. O objeto oferecido antes da palavra acorda a imaginação, excita a curiosidade, mantém o espírito em suspenso e na expectativa do que se vai dizer. Observei que os italianos e os provençais, entre os quais comumente o gesto precede o discurso, encontram assim um meio de se fazer ouvir melhor e até com mais prazer. Entretanto, a linguagem mais expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale. Tarquínio, Trasíbulo, decepando os botões de papoula, Alexandre apondo seu selo à boca do favorito, Diógenes passeando diante de Zenão, não falavam melhor do que com palavras? Qual o conjunto de palavras que teriam exprimido tão bem as mesmas ideias? Dario, com seu exército na Cítia, recebe do rei dos citas uma rã, um pássaro, um rato e cinco flechas. O mensageiro entrega silenciosamente o presente e parte. O terrível discurso foi compreendido, e Dario só se preocupou em alcançar, com a maior rapidez possível, o seu país. Substituí esses sinais por uma carta - quanto mais ameaçadora for, menos intimidará. Não passaria de uma fanfarronada, da qual Dario só teria de rir. Quando o levita Efraim quis vingar a morte de sua mulher, não escreveu às tribos de Israel; dividiu-lhe o corpo em doze pedaços que enviou a elas. A horrível visão, empunharam rapidamente as armas, gritando todos a uma só voz: Não! Nunca tal coisa aconteceu em Israel, desde o dia em que nossos pais saíram do Egito até hoje. E a tribo de Benjamim foi exterminada. Em nossos dias, o assunto, transformado em arrazoados, em discussões, até mesmo em brincadeiras, arrastar-se-ia, e permaneceria impune o mais tremendo dos crimes. O rei Saul, voltando da lavoura, também despedaçou os bois de seu arado e serviu-se de um sinal semelhante para fazer Israel socorrer a cidade de Jabés. Os profetas dos judeus, os legisladores dos gregos, oferecendo frequentemente ao povo objetos visíveis, falavam-lhe melhor com esses objetos do que o teriam feito com longos discursos, e o modo pelo qual Ateneu conta como o orador Hipérides fez absolver a cortesã Frinéia, sem alegar em sua defesa uma única palavra, constitui ainda uma eloquência muda, cujo efeito, em todos os tempos, não é raro. Assim se fala aos olhos muito melhor do que aos ouvidos. Não há uma só pessoa que não reconheça a verdade do juízo de Horácio a tal respeito. Compreende-se mesmo que os discursos mais eloquentes são aqueles em que se introduz o maior número de imagens e os sons nunca possuem maior energia do que quando fazem o efeito das cores. Temos coisa totalmente diversa, contudo, quando se trata de comover o coração e inflamar as paixões. A impressão sucessiva do discurso, que impressiona por meio de golpes redobrados, proporciona-vos emoção bem diversa da causada pela presença do próprio objeto, diante do qual, com um só golpe de vista, tudo já vistes. Suponde uma situação de dor perfeitamente conhecida - vendo a pessoa aflita, dificilmente vos comovereis até o pranto; dai-lhe, porém, tempo para dizer-vos tudo que sente e logo vos desmanchareis em lágrimas. Assim as cenas de tragédia conseguem efeito. Somente a pantomima, sem o discurso, deixar-vos-á quase tranquilo e o discurso, sem o gesto, arrancar-vos-á lágrimas. As paixões possuem seus gestos, mas também suas inflexões, e essas inflexões que nos fazem tremer, essas inflexões a cuja voz não se pode fugir, penetram por seu intermédio até o fundo do coração, imprimindo-lhe, mesmo que não o queiramos, os movimentos que as despertam e fazendo-nos sentir o que ouvimos. Concluamos que os sinais visíveis tornam a imitação mais exata e que o interesse melhor se excita pelos sons. Inclino-me, por isso, a pensar que, se sempre conhecêssemos tão só necessidades tísicas, bem poderíamos jamais ter falado, e entender-nos-íamos perfeitamente apenas pela linguagem dos gestos. Poderíamos ter estabelecido sociedades, pouco diversas do que são hoje, ou que alcançassem até melhor o seu objetivo. Teríamos podido instituir leis, escolher chefes, inventar artes, estabelecer o comércio e, numa palavra, fazer quase tantas coisas quantas fazemos com o auxílio da palavra. A língua epistolar dos "salames" transmite, sem temor dos ciumentos, os segredos da galantaria oriental para o interior dos haréns mais bem guardados. Os mudos do sultão se entendem entre si e compreendem por sinais tudo o que se lhes diz, tão bem quanto se poderia dizer-lhes por meio do discurso. O Sr. Pereyra e todos aqueles que, como ele, ensinam os mudos não somente a falar mas também a saber o que dizem, veem-se forçados a ensinar-lhes, antes, uma outra língua, não menos complicada, por meio da qual possam fazer com que entendam aquela. Chardin conta que, nas Índias, os mensageiros, um segurando a mão do outro e modificando as pressões de um modo que ninguém pode perceber, tratam assim, publicamente mas em segredo, de todos os negócios sem dizer uma só palavra. Suponde esses mensageiros cegos, surdos e mudos - não se entenderiam menos bem, mostrando tal fato que, dos dois sentidos pelos quais somos ativos, um só bastaria para formar-nos uma linguagem. Parece, ainda pelas mesmas observações, que a invenção da arte de comunicar nossas ideias depende menos dos órgãos que nos servem para tal comunicação do que de uma faculdade própria do homem, que o faz empregar seus órgãos com esse fim e que, caso lhe faltassem, o fariam empregar outros órgãos com o mesmo fim. Dai ao homem uma organização tão grosseira quanto possais imaginar: indubitavelmente, adquirirá menos ideias, mas, desde que haja entre ele e seus semelhantes qualquer meio de comunicação pelo qual um possa agir e o outro sentir, acabarão afinal por comunicar todas as ideias que possuem. Os animais dispõem, para essa comunicação, de uma organização mais do que suficiente e jamais qualquer deles utilizou-a. Com o que, segundo me parece, se firma uma diferença muito característica. Aqueles animais que trabalham e vivem em comum, como os castores, as formigas e as abelhas, possuem - não duvido - alguma língua natural para se comunicarem entre si. Há mesmo razão para crer-se que a língua dos castores e a das formigas se compõem de gestos, falando somente aos olhos. De qualquer modo, justamente por serem naturais, tanto uma quanto outra dessas línguas não são adquiridas: os animais, que as falam, já as possuem ao nascer; todos as têm e em todos os lugares são as mesmas; absolutamente não as mudam e nelas não conhecem qualquer progresso. A língua de convenção só pertence ao homem e esta é a razão por que o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e por que os animais não o conseguem. Essa distinção, por si só, pode levar-nos longe. Dizem que se explica pela diferença de órgãos. Gostaria de conhecer tal explicação. CAPÍTULO II De como a primeira invenção das palavras não vem das necessidades, mas das paixões Pode-se, pois, crer que as necessidades ditam os primeiros gestos e que as paixões arrancaram as primeiras vozes. Seguindo a trajetória dos fatos com base nessas distinções, seria talvez preciso raciocinar sobre a origem das línguas de um modo totalmente diverso do que se fez até hoje. O gênio das línguas orientais, as mais antigas que conhecemos, desmente por completo a marcha didática que se imagina para a sua composição. Essas línguas nada possuem de metódico e raciocinado; são vivas e figuradas. Apresentam-nos a linguagem dos primeiros homens como línguas de geômetras e verificamos que são línguas de poetas. Assim devia ser. Não se começou raciocinando, mas sentindo. Pretende-se que os homens inventaram a palavra para exprimir suas necessidades; tal opinião parece-me insustentável. O efeito natural das primeiras necessidades consistiu em separar os homens e não em aproxima-los. Era preciso que assim acontecesse para que a espécie acabasse por esparramar-se e a terra se povoasse com rapidez, pois sem isso o gênero humano ter-se-ia amontoado num canto do mundo e todo o resto ficaria deserto. Daí se conclui, por evidência, não se dever a origem das línguas às primeiras necessidades dos homens; seria absurdo que da causa que os separa resultasse o meio que os une. Onde, pois, estará essa origem? Nas necessidades morais, nas paixões. Todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes. Os frutos não fogem de nossas mãos, é possível nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a presa que se quer comer; mas, para emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais antigas palavras inventadas, eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas. Tudo isso não será indistintamente verdadeiro, porém dentro em pouco voltarei ao assunto. CAPÍTULO III De como a primeira linguagem teve de ser figurada Como os primeiros motivos que fizeram o homem falar foram paixões, suas primeiras expressões foram tropos. A primeira a nascer foi a linguagem figurada e o sentido próprio foi encontrado por último. Só se chamaram as coisas pelos seus verdadeiros nomes quando foram vistas sob sua forma verdadeira. A princípio só se falou pela poesia, só muito tempo depois é que se tratou de raciocinar. Bem sei que, neste ponto, o leitor me interromperá e me perguntará como pode uma expressão ser figurada antes de ter um sentido próprio, se a figura consiste na translação do sentido. Concedo-o; mas, para me compreenderem, será preciso substituir a palavra que transpomos pela ideia que a paixão nos oferece - só se transpõem as palavras porque se transpõem também as ideias, pois de outro modo a linguagem figurada nada significaria. Respondo, portanto, com um exemplo. Um homem selvagem, encontrando outros, inicialmente ter-se-ia amedrontado. Seu terror tê-lo-ia levado a ver esses homens maiores e mais fortes do que ele próprio e a dar-lhes o nome de gigantes. Depois de muitas experiências, reconheceria que, não sendo esses pretensos gigantes nem maiores nem mais fortes do que ele, à sua estatura não convinha a ideia que a princípio ligara à palavra gigante. Inventaria, pois, outro nome comum a eles e a si próprio, como, por exemplo, o nome homem e deixaria o de gigante para o falso objeto que o impressionara durante sua ilusão. Aí está como a palavra figurada nasce, antes da própria, quando a paixão nos fascina os olhos e a primeira ideia que nos oferece não é a da verdade. O que disse a respeito das palavras e dos nomes aplica-se sem dificuldade aos torneios de frases. Apresentando-se, em primeiro lugar, a imagem ilusória oferecida pela paixão, a linguagem que lhe corresponderia foi também a primeira inventada; depois tornou-se metafórica quando o espírito esclarecido, reconhecendo seu próprio erro, só empregou as expressões para as próprias paixões que as produziram. CAPÍTULO IV Dos caracteres distintivos da primeira língua e das mudanças que teve de sofrer Os sons simples saem naturalmente da garganta, permanecendo a boca, naturalmente, mais ou menos aberta. Mas as modificações da língua e do palato, que fazem a articulação, exigem atenção e exercícios; não as conseguimos sem desejar fazê-las. Todas as crianças têm necessidade de aprendê-las e inúmeras não o conseguem com facilidade. Em todas as línguas, as exclamações mais vivas são inarticuladas. Os gritos e gemidos são vozes simples; os mudos, ou seja, os surdos, só lançam sons inarticulados. O Padre Lamy não concebe mesmo que os homens pudessem jamais inventar outros sons, se Deus não os ensinasse expressamente a falar. As articulações são poucas, os sons são inúmeros e os acentos- o, que os distinguem, podem do mesmo modo multiplicar-se. Todas as notas musicais são outros tantos acentos. É verdade que só temos três ou quatro na palavra, porém os chineses possuem muitos mais e, em compensação, possuem menos consoantes. A essa fonte de combinações acrescentai a do tempo ou da quantidade e tereis não somente mais palavras, porém mais sílabas diversificadas do que necessitará a mais rica dás línguas. Não duvido que, independentemente do vocabulário e da sintaxe, a primeira língua, caso ainda existisse, não houvesse conservado caracteres originais que a distinguiriam de todas as demais. Não somente todos os torneios dessa língua deveriam fazer-se por imagens, sentimentos e figuras, como também, na sua parte mecânica, deveriam corresponder a seu primeiro objeto e apresentar, aos sentidos e ao entendimento, as impressões quase inevitáveis da paixão que se procura comunicar. Como as vozes naturais são inarticuladas, as palavras possuiriam poucas articulações; algumas consoantes interpostas, destruindo o hiato das vogais, bastariam para torná-las correntes e fáceis de pronunciar. Em compensação, os sons seriam muito variados, a diversidade dos acentos multiplicaria as vozes; a quantidade, o ritmo, constituiriam novas fontes de combinações, de modo que as vozes, os sons, o acento, o número, que são da natureza, deixando às articulações, que são convenções, bem pouco a fazer, cantar-se-ia em lugar de falar. A maioria dos radicais seriam sons imitativos, quer do acento das paixões, quer do efeito dos objetos sensíveis - a onomatopeia, nesse caso, apresentar-se-ia continuamente. Essa língua possuiria muitos sinônimos para exprimir o mesmo ser em suas várias relações e poucos advérbios e palavras abstratas para exprimir essas mesmas relações. Compreenderia inúmeros aumentativos, diminutivos, palavras compostas, partículas expletivas para dar a cadência aos períodos e tornar fluentes as frases; contaria muitas irregularidades e anomalias; descuidaria da analogia gramatical para se prender à eufonia, ao número, à harmonia e à beleza dos sons. Em lugar de arrazoados, teria sentenças; persuadiria sem convencer e descreveria sem raciocinar; parecer-se-ia, em certos aspectos, com a língua chinesa, em outros, com a grega e, ainda em outros, com a árabe. Prolongai essas ideias em todas as suas implicações e vereis que o Crátilo de Platão não é tão ridículo quanto parece ser. CAPÍTULO V Da escrita Quem quer que estude a história e o progresso das línguas, verificará que, quanto mais se tornam monótonas as vozes, mais se multiplicam as consoantes, e que as inflexões que desaparecem e as qualidades que se igualam são substituídas por combinações gramaticais e por novas articulações. Somente, porém, o decorrer do tempo pode trazer tais mudanças. Na medida em que as necessidades crescem, os negócios se complicam, as luzes se expandem, a linguagem muda de caráter. Toma-se mais justa e menos apaixonada, substitui os sentimentos pelas ideias, não fala mais ao coração, senão à razão. Por isso mesmo, o acento se extingue e a articulação progride; a língua fica mais exata, mais clara, porém mais morosa, mais surda e mais fria. Tal progresso parece-me perfeitamente natural. Outro meio de comparar as línguas e julgar de sua antiguidade encontra-se na escrita, e na razão inversa da perfeição dessa arte. Quanto mais grosseira for a escrita, mais antiga a língua. A primeira maneira de escrever não consiste em pintar os sons mas os próprios objetos, seja diretamente, como o faziam os mexicanos, seja por figuras alegóricas, como o fizeram outrora os egípcios. Esse estado corresponde à língua apaixonada e já supõe algo de sociedade e de necessidades suscitadas pelas paixões. A segunda maneira consiste em representar as palavras e as proposições por caracteres convencionais, o que só pode sobrevir quando a língua se formou inteiramente e quando todo um povo se une por leis comuns, pois já vai nisso uma convenção dupla. Tal é a escrita dos chineses e consiste, realmente, em pintar os sons e falar aos olhos. O terceiro modo é a decomposição da voz falada num certo número de partes elementares, sejam vogais, sejam articuladas, com as quais se possam formar todas as palavras e todas as sílabas imagináveis. Esse modo de escrever, que é o nosso, com certeza foi imaginado por povos comerciantes que, viajando em inúmeros países e tendo de falar diversas línguas, se viram forçados a inventar caracteres que pudessem ser conhecidos de todos. Não se trata, precisamente, de escrever a palavra, mas de analisá-la. Esses três modos de escrever correspondem, exatamente, aos três diferentes estados em que se pode considerar os homens reunidos em nações. A pintura dos objetos convém aos povos selvagens; os sinais das palavras e das proposições, aos povos bárbaros; e o alfabeto, aos povos policiados. Não se deve, pois, pensar que esta última invenção constitua uma prova da grande antiguidade do povo inventor. Pelo contrário, é provável que o povo que a encontrou tivesse em mira a comunicação mais fácil com outros povos que falassem outras línguas, os quais eram, pelo menos, seus contemporâneos e poderiam ser mais antigos do que ele. Não se pode dizer o mesmo dos outros dois métodos. Confesso, no entanto, que, se nos ativermos à História e aos fatos conhecidos, a escrita pelo alfabeto parece remontar tão alto quanto qualquer outra. Não surpreende, contudo, que não tenhamos monumentos dos tempos em que não se escrevia. É pouco verossímil que os primeiros a terem a ideia de resolver a palavra em sinais elementares conseguissem desde o início divisões bastante exatas. Quando depois perceberam a insuficiência de sua análise, uns, como os gregos, multiplicaram os caracteres de seu alfabeto, e outros contentaram-se em variar o sentido e o som por meio de posições ou combinações diferentes. Desse modo parecem ser escritas as inscrições das ruínas de Tchelminar, das quais Chardin nos oferece éctipos. Não se distinguem neles senão duas figuras ou caracteres, porém de tamanhos diferentes e colocadas em vários sentidos. Essa língua desconhecida e de uma antiguidade quase espantosa, todavia, deveria ser, a seu tempo, bem formada, se a julgarmos pela perfeição das artes patenteada pela beleza dos caracteres e pelos monumentos admiráveis em que se acham tais inscrições. Não sei por que se fala tão pouco dessas ruínas impressionantes. Quando li a sua descrição por Chardin, pensei estar-me transportando para outro mundo. Parece-me que tudo isso leva à reflexão apaixonada. A arte de escrever não se liga à de falar. Prende-se a necessidades de outra natureza que, mais cedo ou mais tarde, aparecem, de acordo com circunstâncias totalmente independentes da duração dos povos, e que jamais poderiam ter surgido no seio de nações muito antigas. Não se sabe por quanto tempo a arte dos hieróglifos constituiu talvez a única escrita dos egípcios. Que tal escrita pode bastar a um povo policiado prova-o o exemplo dos mexicanos, que possuíam uma ainda menos cômoda. Comparando-se o alfabeto copta com o siríaco ou com o fenício, conclui-se, com facilidade, que um vem do outro. E não causaria espanto que fosse este último o original, nem que, nesse ponto, o povo mais moderno tivesse instruído o mais antigo. Também é certo que o alfabeto grego vem do fenício; compreende-se mesmo que devesse vir. Não se sabe se Cadmo ou qualquer outro o trouxe da Fenícia, mas o certo é que os gregos não o foram procurar e que os próprios fenícios o trouxeram, pois, dos povos da Ásia e da África, foram os primeiros e quase os únicos que comerciaram na Europa e chegaram à Grécia muito antes de irem os gregos às suas terras. O que não prova, em absoluto, que o povo grego não seja tão antigo quanto o fenício. A princípio, os gregos não só adotaram os caracteres dos fenícios mas ainda a direção de suas linhas, da direita para a esquerda. A seguir, imaginaram escrever em sulcos, isto é, voltando da esquerda para a direita e, depois desta para a esquerda, alternativamente. Por fim, escreveram como o fazemos hoje, recomeçando todas as linhas da esquerda para a direita. Esse progresso não apresenta nada de natural, pois a escrita em sulcos é irretorquivelmente a mais cômoda de ler. Fico até admirado de não se ter restabelecido com a imprensa; sendo, porém, difícil de ser escrita a mão, teve de ser abolida quando os manuscritos se multiplicaram. Mas, ainda que o alfabeto grego venha do fenício, não se conclui daí que a língua grega resulte da fenícia. Uma dessas proposições não implica a outra e parece que a língua grega já era muito velha, enquanto a arte de escrever ainda era recente, até imperfeita, entre os gregos. Até o sítio de Tróia, só possuíam dezesseis letras, se na verdade as tinham. Diz-se que Palamedes acrescentou quatro, e Simônides, quatro outras. Tudo isso permanece um pouco longínquo. Pelo contrário, o latim, língua mais moderna, quase desde seu nascimento contou com alfabeto completo, do qual, no entanto, os primeiros romanos não se utilizaram, porquanto começaram a escrever a sua história muito tarde e os lustros eram assinalados apenas com cravos. Ademais, não há uma quantidade precisamente determinada de letras ou elementos da palavra: uns possuem-nas mais, outros menos, segundo as línguas e as diversas modificações que se dão às vozes e às consoantes. Os que só conhecem cinco vogais muito se enganam: os gregos escreviam sete, os primeiros romanos seis; os Senhores de Port-Royal contam dez, o Sr. Duelos dezessete. Não duvido de que se pudesse descobrir outras mais, se o hábito tivesse tornado o ouvido mais sensível e a boca mais exercitada às várias modificações de que são suscetíveis. Na medida da delicadeza do órgão, encontrar-se-á mais ou menos modificações entre o a agudo e o o grave, entre o i e o e aberto, etc. É o que cada um pode provar passando, com voz contínua e nuançada, de uma para outra vogal. Pode-se fixar um número maior ou menor dessas nuanças e assinalá-las por caracteres particulares na medida em que, pelo hábito, se possui uma sensibilidade mais ou menos aprimorada, dependendo esse hábito das espécies de vozes usadas na linguagem, às quais os órgãos insensivelmente se adaptam. A mesma coisa se pode dizer, aproximadamente, das letras articuladas ou consoantes. A maioria das nações, porém, não agiu desse modo. Tomaram o alfabeto umas às outras e representaram, por meio dos mesmos caracteres, vozes e articulações muito diferentes, o que determinou, por mais exata que seja a ortografia, que se leia sempre ridiculamente outra língua que não a sua, salvo no caso de se ter muita prática. A escrita, que parece dever fixar a língua, é justamente o que a altera; não lhe muda as palavras, mas o gênio; substitui a expressão pela exatidão. Quando se fala, transmitem-se os sentimentos, e quando se escreve, as ideias. Ao escrever, é-se obrigado a tomar todas as palavras em sua acepção comum, porém aquele que fala varia suas acepções pelos tons, determina-as como lhe aprazo Menos preocupado em ser claro, dá maior importância à força; não é possível que uma língua escrita guarde por muito tempo a vivacidade daquela que só é falada. Escrevem-se as vozes e não os sons. Ora, numa língua acentuada são os sons, os acentos, as inflexões de toda sorte que constituem a maior energia da linguagem, que tornam uma frase, fora daí comum, adequada unicamente ao caso em que se encontra. Os meios que se utilizam para substituir esse recurso estendem, alongam a língua escrita e, passando dos livros para o discurso, enfraquecem a própria palavra. Dizendo-se tudo como se escreve não se faz mais do que ler falando. CAPÍTULO VI Se é provável que Homero soubesse escrever Apesar do que se diz sobre a invenção do alfabeto grego, eu a considero muito mais moderna do que se julga, e é principalmente no caráter da língua que fundamento tal opinião. Muitas vezes veio a meu espírito a dúvida não só de que Homero soubesse ler, mas até de que no seu tempo se escrevesse. Sinto muito que tal dúvida tão formalmente seja desmentida pela história de Belerofonte na Ilíada e, como tenho a infelicidade de ser, como o Padre Hardouin, um pouco obstinado em meus paradoxos, sentir-me-ia bastante tentado, se fosse menos ignorante, a estender minhas dúvidas até sobre essa história e de acusá-la de ter sido, sem muito exame, interpolada pelos compiladores de Homero. Não somente encontram-se, no resto da Ilíada, poucos traços dessa arte, mas ouso afirmar que toda a Odisseia é um conjunto de idiotices e de inépcias que uma ou duas letras teriam reduzido a fumo, enquanto que se pode tornar esse poema razoável e mesmo muito bem conduzido supondo-se que seus heróis tenham ignorado a escrita. Se a Ilíada tivesse sido escrita seria muito menos cantada, os rapsodos menos procurados e menos multiplicados. Nenhum outro poeta foi tão cantado, salvo Tasso em Veneza e, assim mesmo, só pelos gondoleiros, que não são grandes leitores. Outro preconceito bastante enraizado concerne à quantidade de dialetos empregados por Homero. Os dialetos, distinguidos pela palavra, aproximam-se e confundem-se na escrita; tudo, insensivelmente, se liga a um modelo comum. Quanto mais uma nação lê e se instrui, mais desaparecem seus dialetos e, por fim, só permanecem como gíria no seio do povo, que lê pouco e nunca escreve. Ora, sendo esses dois poemas posteriores ao sítio de Tróia, não é absolutamente certo que os gregos, que realizaram o sítio, conhecessem a escrita e que o poeta que o cantou tivesse ciência dela. Esses poemas por muito tempo permaneceram inscritos unicamente na memória dos homens; foram reunidos por escrito muito mais tarde e com grande dificuldade. Foi quando começaram a abundar na Grécia os livros e as poesias escritas que se sentiu, por comparação, todo o encanto da de Homero. Os outros poetas escreviam, só Homero tinha cantado, e só se deixou de ouvir com encantamento esses cantos divinos quando a Europa se encheu de bárbaros que se meteram a julgar o que não podiam sentir. CAPÍTULO VII Da prosódia moderna Não sabemos de uma língua sonora e harmoniosa que fale tanto pelos sons quanto pelas vozes. Enganamo-nos quando julgamos substituir o acento pela acentuação. Só se inventa a acentuação quando o acento já se perdeu. Ainda há mais. Cremos ter acentos e não os possuímos; nossos pretensos acentos não passam de vogais ou de sinais de quantidade, não assinalam nenhuma variedade de sons. A prova está em que todos esses acentos se revelam ou por tempos desiguais ou por modificações dos lábios, da língua, do palato, que determinam a diversidade das vozes; nenhum pelas modificações da glote, que é o que determina a diversidade de sons. Assim, quando o nosso acento circunflexo não é uma voz simples, é uma longa, ou então nada é. Vejamos, agora, o que acontecia entre os gregos. Dionísio de Halicarnasso diz que a elevação do tom no acento agudo e o abaixamento no grave formavam uma quinta; assim também o acento prosádico era musical, sobretudo o circunflexo, no qual a voz, depois de ter subido uma quinta, descia, na mesma silaba, uma quinta. Por esse trecho e pelo mais a que se refere, vê-se que o Sr. Duelos não reconhece qualquer acento musical em nossa língua, mas unicamente o acento prosódico e o vocal. Acrescenta-se-lhe um acento ortográfico que em nada influencia a voz, o som ou a quantidade, mas que às vezes indica uma letra suprimida, como o circunflexo, e, outras vezes, fixa o sentido equívoco de um monossílabo, como o pretenso acento grave que distingue ou advérbio de lugar de ou partícula disjuntiva e a usado como artigo de a como verbo. Acento que distingue esses monossílabos somente à vista, não determinando nenhum efeito na pronúncia. Assim, a definição de acento adotada geralmente pelos franceses não convém a quaisquer dos acentos da sua língua. Estou certo de que muitos de seus gramáticos, preocupados em marcarem nos acentos uma elevação ou um abaixamento de voz, acusarão, também neste ponto, um paradoxo e, por não recorrerem suficientemente à experiência, acreditarão poder determinar por modificações da glote esses mesmos acentos que se emitem tão só variando a abertura da boca ou as posições da língua. Eis, porém, o que tenho a dizer-lhes para comprovar a experiência e tornar irreplicável a minha prova. Assumi com a voz exatamente o uníssono de um instrumento musical e, sobre esse uníssono, pronunciai exatamente todas as palavras francesas mais diversamente acentuadas que puderdes reunir. Como não se trata, nesse caso, do acento oratório, mas somente do gramatical, não é sequer necessário que as várias palavras formem um sentido contínuo. Falando desse modo, observai se não marcais sobre esse som todos os acentos tão sensível e nitidamente quanto os pronunciáveis sem dificuldade, variando vosso tom de voz. Ora, posto esse fato, que é incontestável, eu asseguro que, exprimindo-se todas as vossas inflexões no mesmo tom, não assinalam sons diferentes. Não imagino o que se possa responder a isso. Toda língua, em que se pode colocar inúmeras árias musicais sobre as mesmas palavras, não possui um acento musical determinado. Fosse ele determinado e a ária também o seria; desde que o canto é arbitrário, o acento nada vale. As línguas modernas da Europa estão, todas, mais ou menos no mesmo caso. Não excetuo sequer a italiana. A língua italiana, tanto quanto a francesa, não é em si mesma musical. A diferença reside unicamente em que unia se presta à música e outra não. Tudo isso leva à confirmação do princípio que diz deverem todas as línguas escritas, por um progresso natural, mudar de caráter e perder força, ganhando clareza; que quanto mais se procurar aperfeiçoar a gramática e a lógica, mais se acelerará esse progresso; e que, para rapidamente tornar uma língua fria e monótona, basta estabelecer academias no seio do povo que a fala. Conhecem-se as línguas derivadas pela diferença entre a ortografia e a pronúncia. Quanto mais antigas e originais são as línguas, menos arbitrariedade existe no modo de pronunciá-las e, consequentemente, menos complicação de caracteres para determinar a sua pronúncia. Todos os sinais prosódicos dos antigos, diz o Sr. Duelos, supondo-se que seu emprego estivesse bem fixado, não tinham ainda valor igual ao do uso. Acrescentaria, mais, que foram substitutivos, Os antigos hebreus não possuíam quaisquer pontos ou acentos, nem mesmo vogais. Quando as outras nações se resolveram a falar hebreu e os judeus falaram outras línguas, a sua perdeu o seu acento; tornaram-se necessários pontos e sinais para regulamentá-la e isso antes restabeleceu o sentido das palavras do que a pronúncia da língua. Os judeus de hoje, falando hebreu, não mais seriam compreendidos por seus antepassados. Para saber o inglês é preciso aprendê-lo duas vezes - uma a ler e outra a falar. Se um inglês lê em voz alta e um estrangeiro lança os olhos sobre o livro, o estrangeiro não percebe ligação alguma entre o que vê e o que ouve. Por que assim acontece? Porque, tendo sido a Inglaterra sucessivamente conquistada por vários povos, as palavras sempre foram escritas do mesmo modo, enquanto o modo de pronunciá-las mudou frequentemente. Há muita diferença entre os sinais que determinam o sentido da escrita e aqueles que regulamentam a pronúncia. Seria muito fácil criar, unicamente com consoantes, uma língua muito clara para ser escrita, mas que não se poderia falar. A álgebra possui algo dessa língua. Quando uma língua é mais clara por sua ortografia do que por sua pronúncia, isso constitui sinal de ser mais escrita do que falada. Assim poderia ser a língua erudita dos egípcios e assim são, para nós, as línguas mortas. Naquelas que são sobrecarregadas de consoantes inúteis, parece que a escrita precedeu a palavra - quem não diria estar o polonês nesse caso? Se fosse verdade, a língua polonesa deveria ser a mais fria de todas as línguas. CAPÍTULO VIII Diferenças geral e local na origem das línguas Tudo o que afirmei até agora se refere em geral às línguas primitivas e ao progresso que resulta de sua duração, mas não explica nem a sua origem nem as suas diferenças. A principal causa que as distingue é local, resulta dos climas em que nascem e da maneira pela qual se formam. A tal causa deve-se recorrer para conceber a diferença geral e característica que se nota entre as línguas do sul e as do norte. O grande defeito dos europeus consiste em sempre filosofarem sobre as origens das coisas baseando-se no que se passa à sua volta. Nunca deixam de nos apontar os primeiros homens, habitando uma terra ingrata e rude, morrendo de frio e de fome, impelidos a conseguirem um abrigo e roupas; veem em todos os lugares somente a neve e os gelos da Europa, sem se lembrarem de que a espécie humana, como todas as outras, nasceu nas regiões quentes, e que em dois terços do globo pouco se conhece o inverno. Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar em torno de si, mas, para estudar o homem, importa que a vista alcance mais longe; impõe-se começar observando as diferenças, para descobrir as propriedades. O gênero humano, nascido nas regiões quentes, daí passa para as frias; nestas se multiplica e, depois, volta às regiões quentes. Dessa ação e reação resultam as revoluções da terra e a agitação contínua de seus habitantes. Esforcemo-nos, nas nossas pesquisas, para seguir a própria ordem da natureza. Inicio uma longa digressão sobre um assunto tão repisado quanto trivial, mas ao qual sempre se tem necessidade de voltar, mesmo quando já muito se tenha dito, a fim de encontrar a origem das instituições humanas. CAPÍTULO IX Formação das línguas meridionais Nos primeiros tempos, os homens esparsos na superfície da terra não possuíam outra sociedade que não a da família, outras leis que não as da natureza, e, por língua, apenas o gesto e alguns sons inarticulados. Não se ligavam por qualquer ideia de fraternidade comum e, possuindo como único árbitro a força, acreditavam-se inimigos uns dos outros. Essa opinião era-lhes comunicada por sua fraqueza e ignorância. Nada conhecendo, tudo temiam: atacavam para se defenderem. Deveria ser um animal feroz esse homem abandonado sozinho na superfície da terra, à mercê do gênero humano. Estava pronto a fazer aos outros todo o mal que neles temia. As fontes da crueldade são o temor e a fraqueza. As afeições sociais só se desenvolvem em nós com nossas luzes. A piedade, ainda que natural ao coração do homem, permaneceria eternamente inativa sem a imaginação que a põe em ação. Como nos deixamos emocionar pela piedade? - Transportando-nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor. Só sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é em nós, mas nele, que sofremos. Figuremo-nos quanto de conhecimentos adquiridos supõe tal transposição. Como poderia eu imaginar males dos quais não formo ideia alguma? Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesse que ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? Aquele que nunca refletiu, não pode ser clemente, justo, ou piedoso, nem tampouco mau e vingativo. Quem nada imagina não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano. A reflexão nasce das ideias comparadas; a pluralidade dessas ideias é que leva à comparação. Quem vê um único objeto não pode fazer comparações. Quem vê somente um pequeno número de objetos e, desde a infância, sempre os mesmos, também não os compara, porque o hábito de vê-los impede a atenção necessária para examiná-los. À medida, porém, que nos impressiona um objeto novo, queremos conhecê-lo e procuramos relações entre ele e os que já conhecemos. Assim aprendemos a conhecer o que está sob nossos olhos e somos levados, pelo que nos é estranho, a examinar aquilo que nos interessa. Aplicai essas ideias aos primeiros homens e encontrareis os motivos de sua barbárie. Sempre vendo tão só o que estava à sua volta, nem mesmo isso conheciam, nem sequer conheciam a si próprios. Tinham a ideia de um pai, de um filho, de um irmão, porém não a de um homem. Sua cabana continha todos os seus semelhantes: para ele, era a mesma coisa um estrangeiro, um animal, um monstro. Além de si mesmos e de sua família, todo o universo nada significava para eles. Resultam daí as contradições aparentes que se notam entre os pais das nações. Tanta naturalidade e tanta desumanidade; costumes tão ferozes e corações tão ternos; tanto amor pela própria família e tanta aversão pela sua espécie. Todos os seus sentimentos, concentrados nos seres próximos, adquiriam maior energia. Tudo o que conheciam lhes era caro. Inimigos do resto do mundo, que não viam e ignoravam, odiavam-se porque não podiam conhecer-se. Esses tempos de barbárie foram a Idade de Ouro, não porque os homens estivessem unidos, mas porque estavam separados. Cada um, dizem, julgava-se o senhor de tudo. Pode ser que sim, mas ninguém conhecia e desejava senão o que estava sob a sua mão; suas necessidades, em lugar de aproxima-lo de seus semelhantes, distanciavam-no. Os homens, se quiserem, atacavam-se quando se encontravam, mas encontravam-se muito raramente. Em todos os lugares dominava o estado de guerra e a terra toda estava em paz. Os primeiros homens foram caçadores ou pastores e não lavradores; os primeiros bens se constituíram de rebanhos e não de campos. Antes de repartir-se a propriedade da terra, ninguém pensava em cultivá-la. A agricultura é uma arte que exige instrumentos; semear para colher é uma precaução que exige previdência. O homem em sociedade procura espalhar-se, o homem isolado se limita. Fora do alcance de sua vista e de até onde pode alcançar seu braço, para ele não existe direito, nem propriedade. Quando o ciclope rola a pedra até a entrada de sua caverna, tanto seus rebanhos quanto ele ficam em segurança. Mas quem defenderá as colheitas daquele em cujo favor as leis não vigiam? Dir-me-ão que Caim foi lavrador e que Noé plantou a vinha. Por que não? Estavam sós; a quem temeriam? Aliás, o argumento nada diz contra mim, pois já expliquei, mais acima, o que entendia por primeiros tempos. Tornando-se fugitivo, Caim viu-se obrigado a abandonar a agricultura; a vida errante dos descendentes de Noé levou-os também a esquecê-la. Precisaram povoar a terra antes de cultivá-la; essas duas coisas muito dificilmente se fazem ao mesmo tempo. Não mais houve agricultura durante a primeira dispersão do gênero humano, enquanto a família não se assentou e o homem não fixou habitação. Os povos que não se fixam não podem cultivar; assim foram outrora os nômades, os árabes que viviam sob tendas, os citas em carroças e assim, ainda hoje, são os tártaros errantes e os selvagens da América. Geralmente, entre todos os povos cuja origem conhecemos, os primeiros bárbaros mostram-se mais vorazes e carnívoros do que agricultores e granívoros. Os gregos citam quem primeiro os ensinou a cultivar a terra e parece que só bem tarde conheceram essa arte. Quando dizem, porém, que antes de Triptólemo só viviam de bolotas, afirmam algo que não pode ser verdadeiro e que é desmentido pela sua própria história, pois ao tempo de Triptólemo comiam carne, tanto que ele os proibiu de comê-la. De resto, não se sabe que tenham levado em grande consideração tal proibição. Nos festins de Homero matava-se um boi para regalar os hóspedes, como hoje se mataria um leitãozinho. Lendo-se que Abraão serviu um bezerro a três pessoas, que Eumeu mandou assar dois cabritos para o jantar de Ulisses e que o mesmo fez Rebeca para o de seu marido, pode-se imaginar que tremendos devoradores de carne eram os homens daqueles tempos. Para conceber como eram as refeições dos antigos, basta ver a dos selvagens de hoje - quase disse: a dos ingleses. O primeiro bolo que se comeu foi a comunhão do gênero humano. Quando os homens começaram a se fixar, surribaram um pouco de terra em torno da cabana: era mais um jardim do que uma lavoura. O pouco de grão colhido era moído entre duas pedras; dele se faziam alguns bolos que eram cozidos sob a cinza ou sobre a brasa ou, ainda, sobre uma pedra aquecida, e só eram comidos durante os festins. Esse uso antigo, que foi consagrado pela Páscoa entre os judeus, conserva-se ainda hoje na Pérsia e nas Índias. Aí só se come pão sem fermento, e esses pães, feitos em folhas delgadas, cozinham-se e comem-se em cada refeição. Só se lembraram de fermentar o pão quando se precisou de uma quantidade maior, pois a fermentação não se processa bem numa quantidade pequena. Sei que já no tempo dos patriarcas se pode encontrar a agricultura em larga escala. A proximidade do Egito cedo a terá levado para a Palestina. O livro de Jó, talvez o mais antigo de todos os livros existentes, fala da cultura dos campos; cita quinhentas juntas de bois entre as riquezas de Jó. A palavra "junta" mostra que esses bois eram assim jungidos para o trabalho. Fica claramente dito que esses bois trabalhavam quando os sabeus os roubaram e pode-se imaginar qual a extensão de terra que quinhentos pares de bois deviam cultivar. Tudo isso é verdadeiro, porém não confundamos os tempos. A época patriarcal, que conhecemos, está bem longe da primeira idade. A Escritura enumera, entre uma e outra, dez gerações, naqueles séculos em que os homens viviam muito. Que fizeram durante essas dez gerações? Nada sabemos. Vivendo separados e quase sem sociedade, apenas falavam - como poderiam escrever? E, na uniformidade de sua vida isolada, que acontecimentos poderiam comunicar? Adão falava, Noé falava - seja. Adão foi instruído pelo próprio Deus. Ao se dividirem, os filhos de Noé abandonaram a agricultura e a língua comum pereceu com a primeira sociedade. Tal coisa aconteceria ainda que nunca tivesse existido uma Torre de Babel. Sabe-se de solitários esquecerem, em ilhas desertas, a sua própria língua. Bem raramente os homens conservam, depois de muitas gerações fora de seu país, a sua própria língua, mesmo trabalhando em comum e vivendo, entre si, em sociedade. Esparsos no vasto deserto do mundo, os homens tornaram a cair na estupidez bárbara em que se encontrariam se tivessem nascido da terra. Aceitando-se essas ideias, tão naturais, torna-se fácil conciliar a autoridade da Escritura com a dos monumentos antigos, não se ficando reduzido a tratar como fábulas tradições tão antigas quanto os povos que no-las transmitiram. Nesse estado de embrutecimento, tinha-se, contudo, de viver. Os mais ativos e robustos, aqueles que sempre andavam à freme, não podiam viver somente de frutos e da caça. Tornaram-se caçadores, violentos, sanguinários; depois, com o decorrer dos tempos, guerreiros, conquistadores, usurpadores. A História enodoou seus monumentos com os crimes desses primeiros reis; a guerra e a conquista não passam de caça de homens. Depois de tê-los conquistado, só faltava devorá-los - foi o que aprenderam a fazer seus sucessores. O maior número, menos ativo e mais pacífico, desde que pôde, parou, reuniu gado, cercou-o e tornou-o dócil ao homem; para alimentar-se, aprendeu a guardá-lo, a multiplicá-lo, e assim se iniciou a vida pastoril. A indústria humana desenvolve-se segundo as necessidades que determinam o seu aparecimento. Dos três modos de viver possíveis para o homem, ou seja: a caça, o trato dos rebanhos e a agricultura - a primeira adestra o corpo para a força, para a habilidade, para a corrida, e a alma para a coragem, a astúcia, enrijecendo o homem e tornando-o feroz. A região dos caçadores não continua sendo, por muito tempo, a da caça. É preciso seguir de longe a presa, e daí vem a equitação. É preciso alcançar a mesma presa que foge, e daí as armas leves como a funda, a flecha e o dardo, A arte pastoril, mãe do repouso e das paixões ociosas, é aquela que melhor se basta a si mesma. Oferece ao homem, quase sem trabalho, alimento e roupa; dá-lhe até moradia. As tendas dos primeiros pastores se faziam com peles de animais. Era também de peles o teto da arca e do tabernáculo de Moisés. Quanto à agricultura, que demorou mais para nascer, liga-se a todas as artes; leva à propriedade, ao Governo, às leis e, pela mesma via, à miséria e aos crimes, que são inseparáveis, para a nossa espécie, da ciência do bem e do mal. Por isso os gregos não consideram Triptólemo unicamente como o inventor de uma arte útil, mas também como um instituidor e um sábio a quem deviam sua primeira disciplina e suas primeiras leis. Moisés, pelo contrário, parece formar sobre a agricultura um juízo de desaprovação, dando-lhe por inventor um mau e considerando desprezíveis suas oferendas aos olhos de Deus. Dir-se-ia que o primeiro lavrador denunciou, em seu caráter, os maus resultados de sua arte. O autor do Gênesis viu bem mais longe do que Heródoto. Prendem-se à precedente divisão os três estados do homem considerado em relação à sociedade. O selvagem é caçador; o bárbaro, pastor; o homem civilizado, agricultor. Quer, pois, procurando a origem das artes, quer observando os primeiros costumes, veremos que tudo se liga, em seu princípio, aos meios de atender à subsistência e, no que concerne àqueles desses meios que reúnem os homens, que são eles determinados pelo clima e pela natureza do solo. Será, pois, também pelas mesmas causas que se deve explicar a diversidade das línguas e a oposição de seus caracteres. Os climas amenos, os territórios abundantes e férteis foram os primeiros a se povoarem e os últimos onde se formaram nações porque neles os homens podiam com maior facilidade passar uns sem os outros e ainda porque as necessidades, que determinaram o nascimento da sociedade, aí se fizeram sentir mais tarde. Suponde uma eterna primavera na terra; em todos os lugares, suponde água, gado, pastos; suponde os homens, saindo das mãos da natureza, e depois de dispersar-se num tal meio - não posso imaginar como um dia renunciariam à sua liberdade primitiva e deixariam a vida isolada e pastoril, tão conveniente à sua indolência natural, para desnecessariamente impor-se a escravidão, os trabalhos e as misérias inseparáveis do estado social. Aquele que quis que o homem fosse sociável pôs o dedo no eixo do globo e o inclinou sobre o eixo do universo. Com esse leve movimento, vejo a face da terra mudar-se e decidir-se a vocação do gênero humano; ouço ao longe os gritos insensatos de uma louca multidão; vejo construírem-se os palácios e as cidades; vejo nascerem as artes, as leis e o comércio; vejo os povos formarem-se, espalharem-se, sucederem-se como ondas do mar; vejo os homens reunidos em alguns pontos de seu território para aí se devorarem mutuamente e transformarem o resto do mundo num tremendo deserto, monumento digno da união social e da utilidade das artes. A terra nutre os homens, mas, quando as primeiras necessidades os dispersam, outras necessidades os reúnem e somente então falam e fazem falar de si. Para não cair em contradição, preciso que me deem tempo para que possa explicar-me. Quando se procura saber em que lugares nasceram os pais do gênero humano, de onde saíram as primeiras colônias, de onde vieram as primeiras emigrações, não podereis enumerar os climas agradáveis da Ásia Menor, da Sicília ou da África, nem mesmo o Egito; citareis as areias da Caldeia e os rochedos da Fenícia. Em todos os tempos encontrareis a mesma situação. A China, por mais que se povoe de chineses, povoa-se também de tártaros; os citas inundaram a Europa e a Ásia; as montanhas da Suíça atualmente lançam sobre nossas regiões férteis uma perpétua colônia que promete nunca se esgotar. Dir-se-á natural que os habitantes de uma região hostil a deixem para ocupar uma melhor. Muito bem; mas, por que essas regiões melhores, em lugar de formigarem de habitantes seus, se transformam em asilo dos outros? Para sair de uma região hostil é preciso estar nela e por que, então, nascem aí preferencialmente tantos homens? Parece mais razoável que devessem as regiões ingratas povoar-se unicamente com o excedente das férteis e vemos acontecer justamente o contrário. A maioria dos povos latinos dizia-se aborígine, enquanto a magna Grécia, muito mais fértil, só era povoada por estrangeiros; todos os povos gregos originavam-se de várias colônias, salvo aquele cujo solo era o pior, o povo ático, que se dizia autóctone ou nascido de si mesmo. Finalmente, sem penetrar na noite dos tempos, os povos modernos oferecem uma observação decisiva, pois qual o clima mais triste do mundo senão o considerado como a fábrica do gênero humano? As associações de homens são, em grande parte, obra dos acidentes da natureza - os dilúvios particulares, os mares extravasados, as erupções dos vulcões, os grandes terremotos, os incêndios despertados pelo raio e que destroem as florestas, tudo que atemorizou e dispersou os selvagens de uma região, depois os reuniu para reparar em conjunto as perdas comuns. As tradições das desgraças da terra, tão frequentes nos tempos antigos, mostram de quais instrumentos se serviu a Providência para forçar os seres humanos a se unirem. Depois que se estabeleceram as sociedades, cessaram esses grandes acidentes ou então se tornaram raros. Parece que isso continuará a acontecer - as mesmas infelicidades que reuniram os homens esparsos dispersaram aqueles que se reuniram. As mudanças das estações representam outra causa, mais geral e mais permanente, que deve produzir o mesmo efeito nos climas expostos a tal variação. Forçados a se abastecerem para o inverno, veem-se os habitantes na contingência de se auxiliar mutuamente, coagidos a estabelecer entre si uma espécie de convenção. Quando se tornam impossíveis as expedições e o rigor do frio os faz parar, o tédio liga-os tanto quanto a necessidade. Os lapões, enterrados nos gelos, e os esquimós, que são o mais selvagem de todos os povos, no inverno reúnem-se nas suas cavernas e, no verão, não se conhecem mais. Se o seu grau de desenvolvimento e as suas luzes vierem a aumentar um pouco só, reunir-se-ão para sempre. O estômago e o intestino do homem não são feitos para digerir carne crua e, em geral, não é ela do agrado do paladar. Com a talvez única exceção dos esquimós, de quem acabo de falar, até os próprios selvagens tostam as carnes. O fogo, além de ser útil para cozinhá-las, ainda apraz à vista e seu calor é agradável ao corpo. A visão das chamas, que faz os animais fugirem, atrai o homem. Reúnem-se em torno de uma fogueira comum, aí se fazem festins, aí se dança. Os agradáveis laços do hábito aí aproximam, insensivelmente, o homem de seus semelhantes e, nessa fogueira rústica, queima o fogo sagrado que leva ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade. Nas regiões quentes, as fontes e os rios desigualmente espalhados são outros pontos de reunião, tanto mais necessários quanto os homens menos podem viver sem água do que sem fogo. Sobretudo os bárbaros, que vivem de rebanhos, têm necessidade de bebedouros comuns e a história dos mais antigos tempos nos conta ter sido neles que se iniciaram tanto os seus tratados quanto as suas disputas. A abundância de água pode retardar o estabelecimento da sociedade entre habitantes - de lugares bem irrigados. Nas regiões áridas, pelo contrário, tiveram de se reunir para furar poços e para abrir canais a fim de dessedentar os animais. Nelas veem-se homens associados desde tempos quase imemoriais, pois ou a região continuaria deserta ou então o trabalho humano a tornaria habitável. Entretanto, nossa tendência a tudo relacionar com nossos próprios usos desperta, a tal respeito, algumas reflexões necessárias. O primeiro estado da terra diferia muito daquele em que se encontra hoje, quando a vemos ornamentada ou desfigurada pela mão do homem. Reinava nas suas produções o caos que os poetas imaginaram nos elementos. Nesses tempos remotos, nos quais frequentemente sobrevinham revoluções, nos quais mil acidentes mudavam a natureza do solo e os aspectos do terreno, tudo crescia em confusão - árvores, legumes, arbustos, verduras -, espécie alguma tinha tempo de tornar para si o terreno que mais lhe convinha e nele asfixiar as demais; separaram-se lentamente, pouco a pouco, e depois sobreveio a confusão que tudo misturou. Existe tal relação entre as necessidades do homem e as produções da terra que basta povoar-se esta para que tudo subsista. Antes, porém, que os homens reunidos estabelecessem, por meio de seus trabalhos comuns, um equilíbrio entre as suas produções, teve a natureza de se incumbir sozinha desse equilíbrio que a mão dos homens hoje conserva - mantinha-o ou restabelecia-o por meio de revoluções, como os homens a mantêm ou restabelecem por sua inconstância. A guerra, que ainda não reinava entre eles, parecia reinar entre os elementos: os homens não queimavam cidades, não cavavam minas, nem abatiam árvores, mas a natureza acendia vulcões, excitava tremores de terra e o fogo do céu consumia as florestas. Um raio, um dilúvio, uma exalação conseguiam em poucas horas mais do que atualmente cem mil braços de homens no decorrer de um século. Sem isso, não vejo como o sistema pôde subsistir e o equilíbrio manter-se. Nos dois reinos organizados, com o decorrer dos tempos, as grandes espécies haveriam de absorver as pequenas, a terra toda em pouco tempo ficaria recoberta tão só de árvores e de animais ferozes e, afinal, tudo teria perecido. As águas aos poucos perderiam a circulação que vivificava a terra. As montanhas abatem-se e diminuem, os rios carreiam, o mar enche-se e eleva-se, tudo, insensivelmente, tende ao nível, porém a mão do homem retém essa tendência e retarda esse progresso; sem eles, tudo aconteceria mais rapidamente e a terra já estaria talvez sob as águas. Antes do trabalho humano, as fontes, mal distribuídas, espalhavam-se mais desigualmente, fertilizavam menos a terra e saciavam com maior dificuldade os seus habitantes. Os rios frequentemente eram inacessíveis, com bordas escarpadas ou pantanosas; como a arte humana não os retinha nos seus leitos, comumente abandonavam-nos, extravasavam para a direita e para a esquerda, mudando a direção e o curso, dividindo-se em inúmeros braços. Às vezes secavam, às vezes areias movediças impediam de abordá-las e, assim, morria-se de sede no meio das águas. Quantas regiões áridas só são habitáveis devido aos sangradouros e aos canais que os homens tiraram dos rios! Quase toda a Pérsia só subsiste graças a esse artifício; a China formiga de gente com o auxílio de numerosos desses canais; sem os dos Países Baixos, estes seriam inundados pelos rios, como o seriam pelo mar, sem os diques. O Egito, a região mais fértil da terra, só é habitável devido ao trabalho do homem; nas grandes planícies, desprovidas de rios e cujo solo não possui uma inclinação suficiente, só se pode recorrer aos poços. Se, pois, os primeiros povos, a que se faz menção na História, não habitavam regiões férteis ou margens acessíveis, não é porque esses sítios acolhedores fossem desérticos, mas porque seus numerosos habitantes, podendo ignorar-se uns aos outros, por mais tempo viveram no seio de suas famílias, isolados e sem comunicação. Mas, nas regiões áridas, nas quais só os poços forneciam água, tiveram de reunir-se para cavá-las, ou, pelo menos, combinarem o seu uso. Terá sido essa a origem das sociedades e das línguas nas regiões quentes. Aí se formaram os primeiros laços de família e aí se deram os primeiros encontros entre os dois sexos. As moças vinham procurar água para a casa, os moços para dar de beber aos rebanhos. Olhos habituados desde a infância aos mesmos objetos, começaram aí a ver outras coisas mais agradáveis. O coração emocionou-se com esses novos objetos, uma atração desconhecida tornou-o menos selvagem, experimentou o prazer de não estar só. A água, insensivelmente, tornou-se mais necessária, o gado teve sede mais vezes: chegava-se açodadamente e partia-se com tristeza. Nessa época feliz, na qual nada assinalava as horas, nada obrigava a contá-las, e o tempo não possuía outra medida além da distração e do tédio. Sob velhos carvalhos, vencedores dos anos, uma juventude ardente aos poucos esqueceu a ferocidade. Acostumaram-se gradativamente uns aos outros e, esforçando-se por fazer entender-se, aprenderam a explicar-se. Aí se deram as primeiras festas - os pés saltavam de alegria, o gesto ardoroso não bastava e a voz o acompanhava com acentuações apaixonadas; o prazer e o desejo confundidos faziam-se sentir ao mesmo tempo. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos - do puro cristal das fontes saíram as primeiras chamas do amor. Mas, como? Nesse tempo os homens nasciam da terra? Sucediam-se as gerações sem que os dois sexos se unissem e sem que ninguém se entendesse? Não. Havia famílias, mas não havia nações; havia línguas domésticas, mas nenhuma língua popular; havia casamentos, mas não amor. Cada família bastava-se a si mesma e perpetuava-se unicamente pelo sangue; os filhos nascidos dos mesmos pais cresciam juntos e aos poucos encontravam meios de se explicarem entre si; os sexos com a idade se distinguiam, a inclinação natural era suficiente para uni-los, o instinto ocupava o lugar da paixão, o hábito o da preferência, passava-se a marido e esposa sem deixar de ser irmão e irmã. Não havia nisso nada de muito estimulante para desembrulhar a língua, nada que pudesse com bastante frequência arrancar os acentos das paixões ardentes a fim de transformá-los em instituições e o mesmo se pode dizer das necessidades raras e pouco exigentes que poderiam levar certos homens aos trabalhos comuns. Um começava a bacia da fonte e o outro a acabava a seguir, frequentemente sem necessidade de qualquer acordo e, algumas vezes, até sem se terem visto. Numa palavra, nos climas amenos, nos terrenos férteis, precisou-se de toda a vivacidade das paixões agradáveis para levar os seus habitantes a começarem a falar. As primeiras línguas, filhas do prazer e não da necessidade, durante muito tempo carregaram o ensinamento de seu pai: o seu acento sedutor só desapareceu com os mesmos sentimentos que o tinham despertado, quando novas necessidades introduzidas entre os homens obrigaram cada um a só pensar em si mesmo e a fazer com que seu coração ficasse só dentro de si mesmo. CAPÍTULO X Formação das línguas do norte Com o decorrer dos tempos, todos os homens se tornam semelhantes, porém é diferente a ordem de seu progresso. Nos climas meridionais, onde a natureza é pródiga, as necessidades nascem das paixões; nas regiões frias, onde ela é avara, as paixões nascem das necessidades, e as línguas, tristes filhas da necessidade, ressentem-se de sua áspera origem. Ainda que o homem se habitue com as intempéries, com o frio, com a penúria e até com a fome, há, contudo, um ponto em que a natureza sucumbe - nas garras dessas provações cruéis tudo que é débil perece e tudo mais se fortalece. Não há um ponto intermediário entre o vigor e a morte. Por isso os povos setentrionais são tão robustos, pois o são não porque o clima os fez assim, mas porque só respeitou os que assim eram, não sendo de admirar que os filhos conservassem a boa constituição dos pais. Compreende-se, desde logo, que os homens mais robustos devem possuir órgãos menos delicados, suas vozes devem ser mais ásperas e mais fortes. Aliás, que diferença enorme existe entre as inflexões comovedoras que resultam dos frêmitos da alma e os gritos arrancados pelas necessidades físicas! Nesses tremendos climas, nos quais durante nove meses do ano tudo está morto, o sol só aquece o ar durante poucas semanas, parecendo que o faz unicamente para dizer aos habitantes de que bens estão privados e para acentuar-lhes a miséria; nesses lugares em que a terra nada dá, senão com muito trabalho, e onde a fonte da vida parece estar muito mais nos braços do que no coração, os homens, ocupados incessantemente em atender à subsistência, dificilmente pensavam em laços mais doces: tudo se limitava ao impulso físico - a ocasião determinava a escolha, e a facilidade, a preferência. A ociosidade, que alimenta as paixões, cedeu lugar ao trabalho, que as recalca. Antes de pensar em viver feliz, tinha-se de pensar em viver. A sociedade só se formou pela indústria, porquanto a necessidade mútua unia muito mais os homens do que o teria feito o sentimento. Sempre presente, o perigo de perecer não permitia que se limitassem à língua do gesto, e entre eles a primeira palavra não foi amai-me, mas ajudai-me. Esses dois termos, embora muito semelhantes, são pronunciados em tom bem diferente. Nada se tinha a fazer sentir e tudo a fazer compreender; não se tratava de energia, mas de clareza. O acento, que o coração não fornecia, foi substituído por articulações fortes e sensíveis e, se houve na forma da linguagem alguma impressão natural, tal impressão contribuiu ainda mais para a sua dureza. Com efeito, os homens setentrionais não deixam de possuir paixões, mas as possuem de outro tipo. As das regiões quentes são voluptuosas, prendendo-se ao amor e à ternura. A natureza faz tanto pelos habitantes que estes quase não sentem necessidade de fazer algo. Para um asiático sentir-se satisfeito, basta ter mulher e repouso, mas no norte, onde os habitantes consomem muito num solo ingrato, os homens submetidos a tantas necessidades mostram-se fáceis de irritar. Tudo que sucede à sua volta os inquieta e, como só subsistem com dificuldade, quanto mais pobres são tanto mais questão fazem do pouco que possuem. Abordá-los equivale a atentar contra sua vida. Daí resulta o seu temperamento irascível, tão predisposto a se transformar em fúria contra quantos os atingem. Por isso, os seus sons mais naturais são os da cólera e das ameaças, e essas vozes sempre se acompanham de articulações fortes, que as tornam ásperas e estridentes. CAPÍTULO XI Reflexões sobre essas diferenças Tais são, na minha opinião, as causas físicas mais gerais da diferença característica das línguas primitivas. As do sul tiveram de ser vivas, sonoras, acentuadas, eloquentes e frequentemente obscuras, devido à energia. As do norte surdas, rudes, articuladas, gritantes, monótonas e claras, devido antes à força das palavras do que a uma boa construção. As línguas modernas, centenas de vezes misturadas e refundidas, ainda conservam alguma coisa dessas diferenças: o francês, o inglês e o alemão são a linguagem particular dos homens que se auxiliam, que raciocinam com sangue-frio, ou de pessoas coléricas que brigam, porém os ministros dos deuses anunciando os mistérios sagrados, os sábios dando leis ao povo, os chefes arrastando a multidão, devem falar árabe ou persa. Nossas línguas valem mais escritas do que faladas; leem-nos com mais prazer do que nos escutam. Pelo contrário, as línguas orientais perdem, escritas, sua vida e calor. O sentido só em parte está nas palavras, toda a sua força reside nos acentos. Julgar o gênio dos orientais pelos seus livros é querer pintar um homem tendo por modelo seu cadáver. Para apreciar as ações dos homens, impõe-se levar em consideração todas as suas relações, coisa que jamais nos ensinam a fazer: quando nos colocamos no lugar dos outros, o fazemos tal como já somos, modificados, e não como devem ser eles, e, quando pensamos julgá-los baseados na razão, só conseguimos comparar seus preconceitos com os nossos. Alguém, por saber ler um pouco de árabe, sorri ao folhear o Alcorão, mas, se tivesse ouvido Maomé a proclamá-lo, em pessoa, nessa língua eloquente e cadenciada, com aquela voz sonora e persuasiva que seduzia o ouvido antes de seduzir o coração e animando incessantemente suas sentenças com o acento do entusiasmo, prostrar-se-ia ao solo, gritando: "Grande profeta, enviado de Deus! Levai-me até a glória e o martírio; desejamos vencer ou morrer por vós". O fanatismo sempre nos pareceu ridículo porque não encontra entre nós uma voz para se fazer ouvir. Os nossos fanáticos não são verdadeiros fanáticos: não passam de espertalhões ou de loucos. Nossas línguas, em vez de possuírem inflexões convenientes aos inspirados, só têm gritos para os possuídos pelo diabo. CAPÍTULO XII Origem e relações da música Com as primeiras vozes formaram-se as primeiras articulações ou os primeiros sons, segundo o gênero das paixões que ditavam estes ou aquelas, A cólera arranca gritos ameaçadores, que a língua e o palato articulam, porém a voz da ternura, mais doce, é a glote que modifica, tornando-a um som. Sucede, apenas, que os acentos são nela mais frequentes ou mais raros, as inflexões mais ou menos agudas, segundo o sentimento que se acrescenta. Assim, com as sílabas nascem a cadência e os sons: a paixão faz falarem todos os órgãos e dá à voz todo o seu brilho; desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm origem comum. À volta das fontes de que falei, os primeiros discursos constituíram as primeiras canções; as repetições periódicas e medidas do ritmo e as inflexões melodiosas dos acentos deram nascimento, com a língua, à poesia e à música, ou melhor: tudo isso não passava da própria língua naqueles felizes climas e encantadores tempos em que as únicas necessidades urgentes que exigiam o concurso de outrem eram as que o coração despertava. Foram em verso as primeiras histórias, as primeiras arengas, as primeiras leis. Encontrou-se a poesia antes da prosa, e haveria de assim suceder, pois que as paixões falaram antes da razão. A mesma coisa aconteceu com a música. A princípio não houve outra música além da melodia, nem outra melodia que não o som variado da palavra; os acentos formavam o canto, e as quantidades, a medida; falava-se tanto pelos sons e pelo ritmo quanto pelas articulações e pelas vozes. Segundo Estrabão, outrora dizer e cantar eram o mesmo, o que mostra, acrescenta ele, que a poesia é a fonte da eloquência. Seria melhor dizer que tanto uma quanto outra tiveram a mesma fonte e a princípio foram uma única coisa. Levando-se em consideração o modo pelo qual se ligaram as primeiras sociedades, pode sentir-se surpreendido pelo fato de terem sido as primeiras histórias escritas em verso e que se cantassem as primeiras leis? Será motivo de admiração terem os primeiros gramáticos submetido sua arte à música e serem, ao mesmo tempo, professores de uma e de outra? Uma língua que não tenha, pois, senão articulações e vozes possui somente a metade de sua riqueza; na verdade, transmite ideias, mas, para transmitir sentimentos e imagens, necessitam-se ainda de ritmos e de sons, isto é, de uma melodia: eis o que a língua grega possuía, e falta à nossa. Sempre nos admiramos com os efeitos prodigiosos da eloquência, da poesia e da música entre os gregos; tais efeitos não mais se combinam em nossas cabeças porque não mais atingimos coisas semelhantes, e o máximo que conseguimos de nós mesmos, ao vê-los tão bem expostos, é fingir acreditar neles para não desgostar os nossos sábios. Burette, tendo traduzido, como pôde, em notas de nossa música alguns trechos de música grega, teve a ingenuidade de fazer executá-los na Academia de Letras e os acadêmicos tiveram a paciência de ouvi-los. Admiro-me dessa experiência num país cuja música é indecifrável para qualquer outra nação. Mandai músicos estrangeiros de vossa escolha executar um monólogo de ópera francesa e vos desafio a reconhecê-lo. Não obstante, são esses mesmos franceses que pretendiam julgar a melodia de uma ode de Píndaro posta em música há dois mil anos! Li que, outrora, na América, os índios, vendo os efeitos surpreendentes das armas de fogo, recolheram do chão as balas de mosquetão e depois, lançando-as com a mão ao mesmo tempo que produziam forte ruído com a boca, surpreendiam-se por não matarem ninguém. Assemelham-se a esses índios os nossos oradores, músicos e sábios. O prodígio não está em que não consigamos o que faziam os gregos com sua música, mas estaria, sim, em produzir, com instrumentos tão diversos, os mesmos efeitos. CAPÍTULO XIII Da melodia Ninguém duvida que o homem seja modificado pelos seus sentidos, mas, por não podermos distinguir tais modificações, confundimos-lhes as causas. Reconhecemos um domínio excessivo, mas também insuficiente das sensações, não percebendo que frequentemente não só nos afetam como sensações mas ainda como sinais e imagens, e que seus efeitos morais também possuem causas morais. Tal como os sentimentos despertados em nós pela pintura não vêm das cores, o império que a música possui sobre nossa alma não é obra dos sons. Belas cores bem graduadas agradam à vista, mas tal prazer é uma sensação pura. São o desejo e a imitação que conferem vida e alma a essas cores, são as paixões por elas reveladas que comovem as nossas, são os objetos por elas representados que nos afetam. O interesse e o sentimento não dependem das cores. Os traços de um quadro tocante também tocam numa estampa. Tirai os traços de um quadro e as cores nada serão. A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho representa na pintura - assinala traços e figuras, nos quais os acordes e os sons não passam de cores. Mas, dir-me-ão, a melodia não passa de uma sucessão de sons. Sem dúvida, mas o desenho também nada mais é do que um arranjo de cores. Um orador serve-se da tinta para escrever suas obras, porém isso significará ser a tinta um licor de forte eloquência? Suponde um país em que não se tenha qualquer ideia do desenho, mas no qual muita gente, que passasse os dias combinando, misturando e matizando as cores, se considerasse em primeira plana na pintura. Essas pessoas julgariam a nossa pintura exatamente como fazemos com a música dos gregos. Quando lhes falassem da emoção despertada em nós por belos quadros e de como é admirável comover-se com um assunto patético, seus sábios imediatamente aprofundar-se-iam na matéria, comparariam suas cores com as nossas, examinariam se nosso verde é mais suave ou o vermelho mais brilhante, procurariam quais os acordes de cor que podem despertar o pranto, quais os que podem encolerizar. Os Burette de tal país reuniriam em trapos velhos alguns fragmentos desfigurados de nossos quadros e depois perguntariam, surpreendidos, o que existe de tão maravilhoso nesse colorido. Se, em qualquer nação vizinha, se começasse a formar um traço qualquer, certo esboço, uma figura ainda imperfeita, tudo isso passaria por garatujas, por uma pintura caprichosa e barroca, e se apegariam, para preservar o gosto, a esse belo simples que, na verdade, nada exprime, mas que faz esplender matizes bonitos, grandes planos bem coloridos e vastas gradações de tons sem qualquer linha. Finalmente, devido ao progresso, chegar-se-ia talvez à experiência do prisma. Logo algum artista célebre nela basearia um esplêndido sistema. "Senhores", diria aos demais, "para filosofar impõe-se recorrer às causas físicas. Aí estão a decomposição da luz, todas as cores primitivas, suas relações, proporções e os verdadeiros princípios do prazer que a pintura desperta em vós. Palavras misteriosas, como desenho, representação, figura, são mera charlatanice dos pintores franceses que, por suas imitações, esperam despertar não sei que movimentos na alma, quando se sabe que nela só existem as sensações. Já vos disseram maravilhas sobre seus quadros; vede, porém, minhas cores. "Os pintores franceses", continuaria, "observaram talvez o arco-íris e colheram da natureza certo gosto das gradações e algum instinto do colorido. Eu, de minha parte, mostrei-vos os grandes e verdadeiros princípios da arte. Que digo? Da arte? Não! De todas as artes, senhores, de todas as ciências. Somente a análise das cores, o cálculo das refrações do prisma podem dar-vos as relações exatas que estão na natureza e a regra de todas essas relações. Ora, tudo no universo não é senão relação. Sabe-se tudo, pois, quando se sabe pintar: sabe-se tudo quando se sabe juntar as cores." Que diríamos de um pintor tão desprovido de sentimentos e de gosto para assim raciocinar, limitando estupidamente ao aspecto físico de sua arte o prazer despertado em nós pela pintura? Que diríamos do músico que, cheio de preconceitos semelhantes, acreditasse ver unicamente na harmonia a fonte dos grandes efeitos da música? Mandaríamos o primeiro colorir painéis e condenaríamos o outro a compor óperas francesas. Como, pois, a pintura não é a arte de combinar algumas cores de um modo agradável à vista, também a música não é a arte de combinar os sons de uma maneira que agrade ao ouvido. Se só fossem isso, tanto uma quanto outra figurariam entre as ciências naturais e não entre as belas-artes. Somente a imitação as eleva até esse grau. Ora, que faz da pintura uma arte de imitação? - o desenho. E da música? - a melodia. CAPÍTULO XIV Da harmonia A beleza dos sons pertence à natureza; seu efeito é puramente físico e resulta do concurso de várias partículas de ar postas em movimento pelo corpo sonoro e por todas as suas alíquotas, talvez ao infinito, dando esse conjunto uma sensação agradável. Todos os homens do universo experimentarão prazer ouvindo belos sons, mas, se inflexões melodiosas que lhes sejam familiares não os animarem, esse prazer não será delicioso, nem se transformará em voluptuosidade. Os mais belos cantos ao nosso gosto sempre impressionarão mediocremente um ouvido não acostumado a eles. São uma língua cujo dicionário se precisa conhecer. A harmonia propriamente dita encontra-se em situação ainda menos favorável. Possuindo apenas belezas de convenção, jamais agrada a ouvidos que não se instruíram a esse respeito e só com reiterado hábito poder-se-á senti-la e saboreá-la. Os ouvidos rústicos só ouvem ruídos em nossas consonâncias. Quando se alteram as proporções naturais, não é de espantar que não exista mais o prazer natural. Um som traz consigo todos os sons harmônicos concomitantes, naquelas relações de força e de intervalos que devem ter entre si para causar a mais perfeita harmonia desse mesmo som. Juntai-lhe uma terça ou uma quinta, ou qualquer outra consonância, e não a estareis juntando, mas sim redobrando-a, pois estareis conservando a relação intervalar, porém alterando a de força. Reforçando uma consonância e não as outras, rompeis a proporção. Desejando fazer melhor do que a natureza, fazeis pior. Vossos ouvidos e vosso gosto estragaram-se por uma arte mal compreendida. Naturalmente, só existe a harmonia do uníssono. O Sr. Rameau pretende que os timbres altos de certa simplicidade sugerem naturalmente seus baixos e que um homem possuidor de bom ouvido, embora não exercitado, naturalmente entoará esse baixo. Eis um preconceito de músico, desmentido por toda e qualquer experiência. Não somente aquele que não tiver escutado nem o baixo nem a harmonia não poderia por si só encontrar essa harmonia ou esse baixo, como também desagradá-lo-iam caso os ouvisse, pois gostaria muito mais do simples uníssono. Mesmo que se calculasse, durante milhares de anos, as relações dos sons e as leis da harmonia, como se poderia fazer um dia dessa arte uma arte de imitação? Onde está o princípio dessa pretensa imitação? De que é sinal a harmonia? E o que existe de comum entre os acordes e nossas paixões? Fazendo-se a mesma pergunta quanto à melodia, a resposta virá por si mesma: já está de antemão no espírito dos leitores. A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma. Não só imita como fala, e Sua linguagem, inarticulada mas viva, ardente e apaixonada, possui cem vezes mais energia do que a própria palavra. Disso provém a força das imitações musicais e nisso reside o império do canto sobre corações sensíveis. Em certos sistemas, a harmonia pode concorrer para tanto, ligando a sucessão de sons por algumas leis de modulação, tornando as entonações mais justas e levando ao ouvido um testemunho fidedigno dessa justeza, aproximando e fixando inflexões inapreciáveis a intervalos consonantes e ligados. Mas, oferecendo também embaraços à melodia, tira-lhe a energia e a expressão, apaga a acentuação apaixonada para substituí-la pelo intervalo harmônico: submete-nos unicamente a dois únicos modos de cantar, quando deveria haver tantos quantos são os tons oratórios; apaga e destrói multidões de sons ou de intervalos que não entram no seu sistema; em uma palavra, de tal modo separa o canto da palavra que essas duas linguagens se combatem, se contrariam, tiram uma da outra qualquer caráter de verdade e, num tema patético, não podem unir-se sem absurdo. Por isso, o povo sempre acha ridículo exprimir-se em canto as paixões fortes e sérias, pois sabe que em nossas línguas essas paixões não têm inflexões musicais e que os homens do norte, como os cisnes, não morrem cantando. A harmonia sozinha é, em si mesma, insuficiente para as expressões que parecem depender unicamente dela. A tempestade, o murmúrio das águas, os ventos, as borrascas, não são bem transmitidos por simples acordes. De qualquer modo que se faça, somente o ruído nada diz ao espírito, tendo os objetos de falar para se fazerem ouvir e sendo sempre necessário, em qualquer imitação, que uma espécie de discurso substitua a voz da natureza. Engana-se o músico que quer reproduzir o ruído pelo próprio ruído. Desconhece tanto a força quanto a fraqueza de sua arte, formando juízos sem gosto e sem discernimento. Ensinai-lhe que precisa produzir o ruído pelo canto; que, se quisesse fazer as rãs coaxarem, seria preciso fazê-las cantar, pois não lhe basta imitar: impõe-se emocionar e agradar. Sem isso, sua imitação enfadonha nada será e, não despertando interesse em ninguém, não causa qualquer impressão. CAPÍTULO XV De como nossas mais vivas sensações frequentemente agem por meio de impressões morais Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que despertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da música, nem noção de seu poder sobre os corações. Os sons, na melodia, não agem em nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse modo despertam em nós os movimentos que exprimem e cuja imagem neles reconhecemos. Até entre os animais se percebe qualquer coisa desse efeito moral. O latido de um cão chama outro. Se meu gato me ouve imitar um miado, logo o vejo atento, inquieto e agitado, mas, percebendo ser eu quem estava imitando a voz de seu semelhante, acalma-se e fica em repouso. Por que essa diferença de impressão, uma vez que tal diferença não existe na excitação das fibras, pois o próprio gato enganou-se a princípio? Se o maior dos impérios que sobre nós possuem as nossas sensações não advém de causas morais, por que então somos nós tão sensíveis a impressões que são nulas para os bárbaros? Por que as nossas músicas mais comovedoras não passam, ao ouvido de um caraíba, de um ruído qualquer? Seus nervos são de natureza diversa da dos nossos? Por que não são também eles atingidos? Ou por que essas mesmas comoções afetam tanto a uns e tão pouco a outros? Cita-se, como prova do poder físico dos sons, a cura das picadas de tarântula. Tal exemplo prova justamente o contrário. As pessoas picadas por esse inseto, para se curar, não precisam nem de sons absolutos nem mesmo de árias, mas sim de árias cuja melodia lhes seja conhecida e cujas frases compreendam. Os italianos necessitam de árias italianas; os turcos, de árias turcas. Cada um só é afetado pelos acentos que lhe são familiares, seus nervos só se prestam a isso quando seu espírito os dispõe para tal - impõe-se que compreendam a língua que lhes falam, para que o que lhes dizem os ponha em movimento. Contam que as cantatas de Bernier curaram a febre de um músico francês. Elas dariam febre a um músico de qualquer outra nação. Nos outros sentidos, até no mais grosseiro de todos, podem-se observar as mesmas diferenças. Que mudança de impressão se produz quando um homem, tendo posta a mão e fixado o olho no mesmo objeto, acredita-o sucessivamente animado e inanimado, ainda que os sentidos sejam atingidos do mesmo modo? O arredondado, a brancura, a firmeza, o doce calor, a resistência elástica, o arfar repetido, não lhe oferecem mais do que uma impressão agradável, porém insípida, se não acreditar sentir um coração cheio de vida a palpitar por sob tudo isso. Só conheço um sentido em cujas sensações não se mistura nada de moral - é o paladar. Também a gulodice só é vício dominante naqueles que nada sentem. Quem desejar filosofar sobre a força das sensações, comece, pois, por afastar, das impressões puramente sensuais, as impressões intelectuais e morais que recebemos por via dos sentidos, mas das quais estes só são causas ocasionais; evite o erro de conferir aos objetos sensíveis um poder que não possuem ou derivados das afeições da alma que nos sugerem. As cores e os sons têm grande poder como representações e sinais, porém pequeno como simples objetos dos sentidos. Conjuntos de sons e de acordes talvez me distraiam por um momento, mas, para encantar-me e comover-me, esses conjuntos precisam oferecer-me algo que não seja nem acorde nem som e que, apesar de mim mesmo, me emocione. Até os cantos, quando só são agradáveis e nada dizem, também cansam, pois não é tanto o ouvido que leva o prazer ao coração quanto este que o conduz até ao ouvido. Creio que se desenvolvêssemos melhor estas ideias, poupar-se-iam muitos raciocínios tolos sobre a música antiga. Mas, neste século em que se esforçam por materializar todas as operações da alma e destituir os sentimentos de qualquer moralidade, muito me enganarei se a nova filosofia não se tornar tão funesta ao bom gosto quanto à virtude. CAPÍTULO XVI Falsa analogia entre as cores e os sons Não há espécie de absurdo que as observações físicas não tenham propiciado nas considerações sobre as belas-artes. Na análise dos sons encontraram-se as mesmas relações que na da luz. Encareceu-se imediatamente essa analogia, sem se dar atenção à experiência e à razão. O espírito de sistema tudo confundiu e, como não se soubesse pintar para os ouvidos, resolveu-se cantar para os olhos. Vi aquele famoso cravo no qual se pretendia fazer música com cores. Tal fato resultava de um conhecimento assaz errôneo das operações da natureza e de não se reconhecer que o efeito das cores reside na sua permanência e o dos sons na sua sucessão. Todas as riquezas do colorido expõem-se ao mesmo tempo na face da terra; ao primeiro golpe de vista, vê-se tudo. Mas, quanto mais se olha, mais se fica encantado, tem-se somente de admirar e contemplar continuamente. Tal não acontece com o som. A natureza não o analisa e não o separa dos harmônicos: ao contrário, esconde-os sob a aparência do uníssono ou, se por vezes os separa no canto modulado do homem e no gorjeio de alguns pássaros, o faz sucessivamente, um após outro, inspirando cantos e não acordes, ditando a melodia e não a harmonia. As cores são o adorno dos seres inanimados, toda a matéria é colorida, mas os sons anunciam o movimento, e a voz, um ser sensível. Só os corpos animados cantam. Não é o flautista automático que toca a flauta, mas o mecânico que mediu o sopro e fez os dedos se moverem. Assim, cada sentido possui seu próprio campo. O campo da música é o tempo; o da pintura, o espaço. Multiplicar os sons ouvidos ao mesmo tempo ou desenvolver as cores umas após outras será mudar-lhes a economia, colocar o olho no lugar do ouvido e vice-versa. Dizeis: como cada cor se determina pelo ângulo de refração do raio que a dá, também cada som é determinado pelo número das vibrações do corpo sonoro, num dado tempo. Ora, sendo as mesmas as relações desses ângulos e desses números, é evidente a analogia. Pode ser, mas tal analogia é racional e não sensível; o problema é outro. Em primeiro lugar, o ângulo de refração é sensível e mensurável, e o número de refrações não o é. Os corpos sonoros, submetidos à ação do ar, incessantemente mudam de dimensões e de sons. As cores são duradouras, os sons acabam e nunca se pode ter a certeza de que aqueles que renascem sejam os mesmos que se extinguiram. Ademais, cada cor é absoluta, independente, enquanto para nós cada som só é relativo e só pode ser distinguido por comparação. Um som não possui em si mesmo qualquer caráter absoluto que contribua para o seu reconhecimento. É grave ou agudo, forte ou suave em relação a outro; em si mesmo não é nada disso. No sistema harmônico, um som qualquer naturalmente também nada é; não é tônico, dominante, harmônico ou fundamental, porque todas essas propriedades não passam de relações e, podendo o sistema inteiro variar do grave ao agudo, cada som muda de ordem e de lugar dentro do sistema, na medida em que este muda de grau. As propriedades dos corpos, no entanto, não consistem em relações. O amarelo é amarelo independentemente do vermelho ou do azul, sendo em todos os lugares sensível e reconhecível, e, uma vez fixado o ângulo de refração que o determinou, pode-se ter a certeza de sempre obter o mesmo amarelo em todos os tempos. As cores não estão nos corpos coloridos, mas na luz; para que se veja um objeto é preciso que esteja iluminado. Os sons também têm necessidade de um motor e, para que existam, o corpo sonoro deve ser vibrado. Isso representa outra vantagem em favor da vista, pois a emanação perpétua dos astros é o instrumento natural que age sobre ela, enquanto a natureza, por si mesma, poucos sons engendra e, a menos que se admita a harmonia das esferas celestes, seres vivos precisam produzi-la. Por aí se vê estar a pintura mais próxima da natureza, e a música, da arte humana. Percebe-se também que uma interessa mais do que a outra, justamente porque aproxima mais o homem do homem e sempre nos dá alguma ideia de nossos semelhantes. A pintura frequentemente é morta e inanimada; pode transportar-vos ao fundo de um deserto. Desde, porém, que os sinais vocais atinjam vosso ouvido, anunciam um ser semelhante a vós. São, por assim dizer, os órgãos da alma e, embora também possam representar a solidão, dizem que não estais só. Os pássaros trinam, somente o homem canta. E não se pode ouvir canto ou sinfonia sem se dizer imediatamente: "Outro ser sensível está aqui". Uma das maiores vantagens do músico consiste em poder pintar as coisas que não se poderiam ouvir, enquanto o pintor não pode representar aquelas que não se podem ver, e o maior prodígio de uma arte, que só age pelo movimento, consiste em poder formar até a imagem do repouso. O sono, a calma da noite, a solidão e o próprio silêncio entram nos quadros da música. Sabe-se que o ruído pode produzir o efeito do silêncio, e este, o efeito daquele, como quando adormecemos em meio a uma leitura igual e monótona e acordamos no momento em que cessa. A música, porém, age mais intimamente sobre nós, excitando, por intermédio de um sentido, sensações semelhantes àquela que se pode excitar por outro e, como a relação só pode tornar-se sensível quando há impressão forte, a pintura, destituída dessa força, não pode dar à música as imitações que a música dela extrai. A natureza toda pode estar adormecida, mas aquele que a contempla não dorme, consistindo a arte do músico em substituir a imagem insensível do objeto pela dos movimentos que sua presença excita no coração do contemplador. Não somente agitará o mar, animará as chamas de um incêndio, fará os rios correrem, cair a chuva e aumentarem as torrentes, como também pintará o horror de um deserto tremendo, enegrecerá as paredes de uma prisão subterrânea, acalmará a tempestade, tornará o ar tranquilo e sereno, e, da orquestra, lançará uma nova frescura nos bosques. Não representará diretamente tais coisas, mas excitará na alma os mesmos sentimentos que se experimenta vendo-as. CAPÍTULO XVII Erro dos músicos, prejudicial à sua arte Vede como tudo sempre nos leva aos efeitos morais de que vos falei e como os músicos, que só consideram o poder dos sons segundo a ação do ar e o vibrar das fibras nervosas, estão longe de saber em que consiste a força dessa arte. Quanto mais a aproximam das impressões puramente físicas, tanto mais se distanciam de sua origem, e mais lhe diminuem, também, a primitiva energia. Abandonando o acento oral e atendendo unicamente às instituições harmônicas, a música se torna mais ruidosa ao ouvido e menos agradável ao coração. Deixou já de falar e logo não cantará mais; então, com todos os seus acordes e toda a sua harmonia, não terá mais efeito algum sobre nós. CAPÍTULO XVIII De como o sistema musical dos gregos não possuía relação alguma com o nosso Como se deram tais mudanças? Por uma mudança natural do caráter das línguas. Sabe-se que nossa harmonia é uma invenção gótica. Zombam de nós aqueles que pretendem encontrar o sistema dos gregos no nosso. Aquele sistema só era harmônico, segundo o sentido que damos à palavra, no respeitante à afinação dos instrumentos por consonâncias perfeitas. Todos os povos que possuem instrumentos de cordas são forçados a afiná-los por meio de consonâncias, mas aqueles que não os têm possuem nos seus cantos inflexões que consideramos desafinadas por não entrarem no nosso sistema e por não podermos grafa-las. Observou-se isso nos cantos dos selvagens da América e isso também deveria ter-se observado em diversos intervalos da música dos gregos, caso se tivesse estudado essa música com menos preconceitos oriundos da nossa. Os gregos dividiam o seu diagrama em tetracordes, como dividimos o nosso teclado em oitavas, e as mesmas divisões em cada tetracorde para eles se repetiam exatamente como se repetem, para nós, em cada oitava, semelhança que não se poderia conservar na unidade do modo harmônico e que não se teria sequer imaginado. Como, porém, no falar se passa por intervalos menores do que quando se canta, foi natural que observassem a repetição dos tetracordes na sua melodia oral, como obedecemos à repetição das oitavas na nossa melodia harmônica. Só reconheceram como consonância aquelas que denominamos consonâncias perfeitas, excluindo desse número as terças e as sextas. Por quê? Porque, ignorando o intervalo do tom menor ou pelo menos proscrevendo-o da prática e não sendo as suas consonâncias temperadas, todas as suas terças maiores eram uma coma mais fortes, sendo em outro tanto mais fracas suas terças menores e, consequentemente, alterando-se reciprocamente suas sextas maiores e menores na mesma medida. Imagine-se, agora, que noções de harmonia se pode ter e que modos harmônicos se pode estabelecer excluindo do número de consonâncias as terças e as sextas. Se as próprias consonâncias, que admitiam, resultassem de um verdadeiro sentimento de harmonia, têlas-iam pelo menos subentendidas por sob seus cantos, e a consonância tácita das marchas fundamentais emprestaria seu nome às marchas diatônicas que lhes sugerissem. Longe de possuírem menos consonâncias do que nós, têlas-iam em maior número e, por exemplo, preocupados com o baixo dó-sol, chamariam consonância à segunda dó-ré. Perguntar-se-á, contudo, por que duas marchas diatônicas. Por causa de um instinto que, numa língua acentuada e cantante, nos leva a escolher as inflexões mais cômodas, pois, entre as modificações demasiado fortes que se precisa dar à glote para entoar continuamente os grandes intervalos das consonâncias e a dificuldade de controlar a entonação nas relações demasiado compostas dos intervalos menores, o órgão escolheu um meio-termo e naturalmente caiu em intervalos menores do que as consonâncias e mais simples do que as comas. Tal não impediu que intervalos menores fossem empregados em gêneros mais patéticos. CAPÍTULO XIX Como degenerou a música À medida que a língua se aperfeiçoou, a melodia, impondo-se a si mesma novas regras, insensivelmente perdeu algo de sua antiga energia e substituiu o cálculo dos intervalos pela delicadeza das inflexões. Foi assim, por exemplo, que aos poucos se aboliu a prática do gênero enarmônico. Quando os teatros se apresentaram mais regularmente, só se cantou de modo prescrito e, à medida que se multiplicavam as regras da imitação, a língua imitativa se enfraquecia. Tendo o estudo da filosofia e o progresso do raciocínio aperfeiçoado a gramática, excluíram também da língua aquele tom vivo e apaixonado que a princípio a tornara tão cantante. Desde os tempos de Menalípides e de Filóxeno, os sinfonistas, que a princípio eram mantidos por poetas e só executavam sob sua direção e, por assim dizer, sob seu ditado, tornaram-se independentes e dessa libertação é que a Música se lastima tão amargamente numa comédia de Ferécrates, em trecho citado por Plutarco. Assim, a melodia, começando a não permanecer tão intimamente ligada ao discurso, insensivelmente tomou uma existência à parte e a música se tornou mais independente das palavras. Cessaram, então, também, pouco a pouco, esses prodígios que produzira quando não passava de acento e de harmonia da poesia e que lhe dava, sobre as paixões, o império que, depois, a palavra deixou de possuir sobre a razão. E, desde que a Grécia se encheu de sofistas e de filósofos, não conheceu mais nem poetas, nem músicos célebres. Cultivando a arte de convencer, perdeu a de comover. O próprio Platão, enciumado de Homero e de Euripides, difamou um e não pôde imitar o outro. Logo a servidão juntou sua influência à da filosofia. A Grécia sob grilhões perdeu aquele fogo, que só anima as almas livres, e não encontrou mais, para louvar seus tiranos, o tom com o qual cantara seus heróis. A mistura dos romanos enfraqueceu ainda mais o que restava de harmonia e de acento na linguagem. O latim, língua mais surda e menos musical, fez mal à Música ao adotá-la. O canto empregado na capital pouco a pouco alterou o das províncias. Os teatros de Roma prejudicaram os de Atenas. Quando Nero ganhava prêmios, a Grécia deixara de merecê-los e a mesma melodia, dividida entre duas línguas, conveio menos a uma do que à outra. Por fim, aconteceu a catástrofe que destruiu os progressos do espírito humano sem afastar os vícios que eram obra sua. A Europa, inundada de bárbaros e subjugada por ignorantes, perdeu ao mesmo tempo suas ciências, suas artes e o instrumento universal tanto de umas quanto de outras, isto é, a língua harmoniosa e aperfeiçoada. Esses homens grosseiros, engendrados pelo norte, habituaram insensivelmente todos os ouvidos à rudeza de seus órgãos: sua voz, dura e destituída de acentuação, era ruidosa, sem ser sonora. O Imperador Juliano comparava o falar dos gauleses ao coaxar das rãs. Sendo todas as articulações tão ásperas quanto eram nasais e surdas suas vozes, não podiam senão comunicar a seu canto uma espécie de brilho, que consistia em reforçar o som das vogais para esconder a abundância e dureza das consoantes. Esse canto ruidoso, juntando-se à inflexibilidade do órgão, obrigou esses recém-chegados e os povos subjugados que os imitaram a alongarem todos os sons para fazer-se compreendidos. A articulação penosa e os sons reforçados concorreram também para expulsar da melodia qualquer sentimento de medida e de ritmo. Como a passagem de um som a outro era sempre a mais difícil de pronunciar, não se podia fazer nada de melhor senão deter-se em cada um deles o mais que se podia, ampliá-lo e levá-lo a produzir o maior ruído possível. O canto logo passou a ser somente uma sequência aborrecida e lenta de sons arrastados e gritados, sem doçura, cadência e graça, e, se alguns sábios afirmavam a necessidade de observar-se no canto latino as longas e as breves, é certo pelo menos que se cantaram os versos como se fossem prosa e não mais se cuidou de pés, de ritmo ou de qualquer outra espécie de canto medido. Despojado de qualquer melodia e formado unicamente pela força e pela dureza dos sons, o canto sugeriu por si mesmo, finalmente, o meio de tornar-se ainda mais sonoro com o auxílio das consonâncias. Várias vozes, incessantemente arrastando em uníssonos sons de uma dureza ilimitada, encontraram por acaso alguns acordes que, pelo reforço do ruído, passaram a lhes parecer agradáveis - assim se iniciou a prática do descanto e do contraponto. Ignoro durante quantos séculos os músicos giraram em torno de questões inúteis suscitadas pelo efeito conhecido de um princípio ignorado. O leitor mais infatigável não suportaria, em Jean de Muris, o palavrório de oito ou dez grandes capítulos para saber se, no intervalo de oitava dividido em duas consonâncias, é a quinta ou a quarta que deverá ficar no grave e, quatrocentos anos depois, ainda encontramos em Bontempi não menos tediosas enumerações de todos os baixos que devem comportar a sexta em lugar da quinta. A harmonia, no entanto, tomou insensivelmente a direção que a análise lhe prescrevia, até que por fim a invenção do modo menor e das dissonâncias introduziu aquele elemento arbitrário de que está cheia e que somente o preconceito nos impede de perceber. Esquecida a melodia e voltando-se inteiramente a atenção do músico para a harmonia, aos poucos tudo se dirigiu para esse novo objeto. Os gêneros, os modos, a escala, tudo, enfim, adquiriu novos aspectos e as sucessões harmônicas passaram a regular o movimento das partes. Tendo o movimento usurpado o nome da melodia, não se pôde com efeito desconhecer nessa nova melodia os traços da mãe e tornando-se assim de modo gradual, puramente harmônico nosso sistema musical, não é de admirar que o acento oral com isso tenha sofrido e a música perdido quase toda a sua energia. Eis como o canto aos poucos se tornou uma arte inteiramente separada da palavra, da qual se origina, como as harmônicas dos sons determinaram o esquecimento das inflexões da voz e como, por fim, limitada ao efeito puramente físico do concurso de vibrações, viu-se a música privada dos efeitos morais, que produzira quando era duplamente a voz da natureza. CAPÍTULO XX Relação entre as línguas e o governo Tais progressos não são nem fortuitos nem arbitrários; prendem-se às vicissitudes das coisas. As línguas se formam naturalmente baseadas nas necessidades dos homens, mudam e se alteram de acordo com as mudanças dessas mesmas necessidades. Nos tempos antigos, quando a persuasão constituía uma força pública, impunha-se a eloquência. De que serviria hoje, quando a força pública substitui a persuasão? Não se tem necessidade nem de arte nem de figura para dizer: assim o quero. Qual é o discurso, pois, que ainda resta a fazer ao povo reunido? Sermões. E qual o interesse daqueles que os fazem, em persuadir o povo, se não é o povo quem distribui mercês? As línguas populares tornaram-se, também para nós, tão perfeitamente inúteis quanto a eloquência. As sociedades tomaram sua última forma: nela nada mais se muda senão com o canhão e com a moeda, e como nada se tem a dizer ao povo, a não ser: dai dinheiro, diz-se por meio de cartazes nas esquinas ou de soldados nas casas. Para tanto não se precisa reunir ninguém; pelo contrário, convém manter os súditos esparsos - tal a primeira máxima da política moderna. Existem línguas favoráveis à liberdade, são as sonoras, prosódicas, harmoniosas, cujo discurso de bem longe se distingue. As nossas são feitas para o sussurro dos sofás. Nossos pregadores se atormentam, suam nos templos, sem que se saiba nada do que disseram. Depois de se esgotarem gritando durante uma hora, saem quase mortos do púlpito. Certamente não valia a pena cansarem-se tanto. Entre os antigos, podia-se ser ouvido com facilidade na praça pública; falava-se durante um dia inteiro sem grande incômodo. Os generais arengavam suas tropas, eram ouvidos e de modo algum se esgotavam. Os historiadores modernos, que quiseram inserir arengas nas suas histórias, só despertaram zombaria. Suponha-se um homem arengando, em francês, o povo de Paris na Praça Vendôme; mesmo que grite com toda força, não se distinguirá uma única palavra. Heródoto lia sua história aos povos da Grécia reunidos ao ar livre e tudo ressoava com aplausos. Hoje o acadêmico que, num dia de assembleia pública, lê uma memória, é ouvido com dificuldade no fundo da sala. Os charlatães de feira abundam menos em França do que na Itália, não por serem menos ouvidos aqui, mas somente por serem menos compreendidos. O Sr. d'Alembert crê que se poderia dizer o recitativo francês à italiana: seria preciso, então, dizê-lo ao ouvido, senão nada se entenderia. Afirmo ser uma língua escravizada toda aquela com a qual não se consegue ser ouvido pelo povo reunido. É impossível que um povo permaneça livre e fale tal língua. Terminarei estas reflexões superficiais, mas que podem suscitar outras mais profundas, com o trecho que mas sugeriu: Constituiria matéria para um exame acentuadamente filosófico observar nos fatos e demonstrar pelos exemplos como o caráter, os costumes e os interesses de um povo influenciam sua língua.