Baruch Spinoza - Correspondência CARTA N.° 2 Ao mui nobre e sábio Henrich Oldenburg Ilustríssimo senhor, Podeis julgar por vós mesmo quão grata é para mim vossa amizade, desde que vossa modéstia permita que vos volteis para vossas inúmeras qualidades. E, contudo, quando as considero sinto-me culpado de orgulho querendo tornar-me vosso amigo, sobretudo se essa comunidade concernir principalmente às coisas do espírito. Essa amizade deve ser atribuída mais à vossa modéstia e benevolência do que a mim. Pelo excesso de uma, quisestes rebaixar-vos, e pela abundância da outra, engrandecer-me. Aceitarei sem medo essa forte amizade que me prometestes e em cuja troca pedistes a minha, e esforçar-me-ei para cultivá-la. Quanto aos dons de espírito que me atribuís, se eu possuísse algum, colocá-lo-ia ao vosso dispor, mesmo que mais tarde isso resultasse em grande dano para mim. Mas, para não acreditardes que recuso aquilo que me pedistes por amizade, tentarei explicar meu modo de entender aquelas coisas sobre as quais conversamos, mas não creio que sem vossa benevolência isso possa nos unir mais estreitamente. Começarei falando brevemente sobre Deus, que defino como um ente constituído por infinitos atributos, cada um dos quais infinito (isto é, sumamente perfeito) em seu gênero. Deve-se notar que entendo por atributo tudo o que é concebido em si e por si, de sorte que seu conceito não envolva o conceito de outra coisa. Por exemplo, a extensão é concebida por si e em si, mas o movimento não, pois é concebido em outra coisa e seu conceito envolve a extensão. Esta é a verdadeira definição de Deus, porque entendemos por Deus o ente sumamente perfeito e absolutamente infinito. Que tal ente existe é fácil demonstrar por sua definição, mas aqui não é o lugar para essa demonstração. O que deverei demonstrar aqui para satisfazer à vossa primeira questão são as proposições seguintes: Primeiro: que na natureza das coisas não podem existir duas substâncias que não diferissem pela totalidade de suas essências. Segundo: uma substância não pode ser produzida, mas é de sua própria essência existir. Terceiro: que toda substância deve ser infinita, isto é, sumamente perfeita em seu gênero. Estas proposições estando demonstradas, podeis ver, Ilustre Senhor, o que pretendo, desde que presteis atenção à definição de Deus, de sorte que não é preciso falar mais longamente sobre isso. Para demonstrar essas proposições breve e claramente, considerei que nada seria melhor do que submetê-las ao vosso exame usando a maneira geométrica para provar. Envio-as separadamente e esperarei vossa apreciação. Em segundo lugar, perguntais que erros observo nas filosofias de Descartes e de Bacon. Embora não seja meu costume assinalar os erros dos outros, quero também satisfazer ao vosso desejo. O primeiro e maior de seus desvios é o de terem permanecido muito longe do conhecimento das primeiras causas e origem de todas as coisas. O segundo, de não terem conhecido a verdadeira natureza da mente. O terceiro, o de jamais terem conseguido determinar a causa do erro. Somente os homens desprovidos de dedicação pelo estudo ignoram que o conhecimento desses três pontos seja o mais necessário. Ademais, que esses autores tenham se desviado do conhecimento da causa primeira e da mente humana, é o que decorre facilmente da verdade das três proposições que enumerei acima. Por isso passo à elucidação do terceiro engano. Direi pouco sobre Bacon, que fala muito confusamente dessas coisas, que nada prova, mas muito discorre. Em primeiro lugar, supõe que o intelecto humano falha não apenas por causa dos enganos dos sentidos, mas por causa de sua própria natureza, que forja ideias em analogia consigo mesmo e não em analogia com o universo: o intelecto seria uma espécie de espelho, refletindo desigualmente os raios luminosos, e mesclando sua própria natureza com a natureza das coisas. Em segundo lugar, o intelecto humano, naturalmente levado à abstração, forja como constante aquilo que flui. Em terceiro lugar, considera que o intelecto humano move-se demais e nunca pode firmar-se ou repousar. Estas causas do erro e outras que indica podem ser facilmente reduzidas à causa única fornecida por Descartes: a de que a vontade humana é livre e mais ampla do que o intelecto, ou, como diz o próprio Verulano, numa linguagem mais confusa (Af. 49): A luz do intelecto não é seca, mas está embebida nas infusões da vontade (deve-se notar que Verulano toma o intelecto pela mente, no que difere de Descartes). Sem me preocupar com outras causas do erro, porque são sem importância, mostrarei que essa apresentada acima é falsa, o que ambos teriam facilmente visto se tivessem observado que entre a vontade e esta ou aquela volição há a mesma relação que entre a brancura e este ou aquele branco, a humanidade e este ou aquele homem, de sorte que é tão impossível considerar a vontade como causa desta ou daquela volição como considerar que a humanidade é a causa de Pedro e de Paulo. Portanto, como a vontade é apenas um ente de Razão e não pode ser dita causa desta ou daquela volição, e, ademais, como as volições particulares precisam de uma causa para existir, não se pode dizer que sejam livres: são necessariamente o que são pela causa que as determina. Enfim, segundo o próprio Descartes, os erros são volições particulares, donde segue-se necessariamente que os erros não são livres, mas determinados por causas externas e não pela vontade, como vos prometi demonstrar. Baruch Spinoza CARTA N.° 4 Ao mui nobre e sábio Henrich Oldenburg Ilustríssimo senhor, Quando partia para Amsterdam, a fim de passar uma ou duas semanas, tive o prazer de receber vossa carta e vi as objeções que fazeis às três proposições que vos enviei. Responderei apenas a essas objeções, deixando o restante por falta de tempo. No que concerne à primeira, digo que da definição de alguma coisa não decorre a existência dela, mas (como demonstrei no comentário anexado às três proposições) que a existência decorre apenas da definição ou da ideia de um Atributo (como expliquei amplamente na definição de Deus), isto é, de uma coisa que é concebida em si e por si. Aliás, no mesmo comentário, dei a razão dessa diferença de maneira bastante clara, sobretudo para um filósofo. Pois supõe-se que este não ignora a diferença que existe entre uma ficção e um conceito claro e distinto, como também não ignora a verdade desse axioma, que afirma que toda definição, isto é, toda ideia clara e distinta, é verdadeira. Se tudo isto for observado, não vejo o que ainda deixa a desejar a resposta à primeira questão. Passo pois, á segunda. Pareceis admitir que, se o pensamento não pertence à natureza da extensão, então esta não poderá ser limitada por aquele, de modo que vossa dúvida nasce do exemplo que foi dado. Mas observai o seguinte, peço-vos. Se se diz que a extensão não é limitada pela extensão, mas pelo pensamento, isto não significa, então, que a extensão não é absolutamente infinita, mas (infinita) apenas enquanto extensão? Ou seja, é-me concedido que a extensão não é absolutamente infinita, mas infinita em seu gênero. Mas, dizeis, talvez o pensamento seja um ato do corpo. Seja, mas eu não o admito de jeito algum. Pelo menos, não negareis que a extensão, enquanto extensão, não é o pensamento, e isto é suficiente para explicar minha definição e demonstrar a terceira proposição. Em terceiro lugar, objetais que os axiomas que enunciei não devem ser colocados entre as noções comuns. Não discuto esse ponto. Mas pareceis duvidar de sua verdade e, mesmo, quereis mostrar que as afirmações contrárias são mais verossímeis. Mas prestai atenção à definição que dei da substância e do acidente, de onde retiro todas as conclusões. Com efeito, visto que entendo por substância aquilo que é concebido por si e em si, isto é, cujo conceito não envolve o conceito de outra coisa; por modificação ou acidente aquilo que está em outra coisa e por ela é concebido, aparece claramente que: primeiro, por natureza a substância é anterior aos seus acidentes, pois estes não podem ser nem ser concebidos sem ela; segundo, que exceto a substância e seus atributos nada é dado na realidade, isto é, fora do intelecto, pois tudo o que é dado é concebido por si ou por outro, e seu conceito ou envolve o de outra coisa, ou não envolve. Terceiro, que as coisas que possuem atributos diferentes nada têm em comum entre si, pois o atributo, tal como o expliquei, é aquilo cujo conceito não envolve o de outra coisa. Quarto, enfim, que, se duas coisas nada têm em comum entre si, uma não pode ser causa da outra, pois, nada havendo no efeito em comum com a causa, aquilo que ele tivesse deveria tê-lo tirado do nada. Quanto ao que dizeis, que Deus nada tem em comum formalmente com as coisas cria das, foi o contrário que pus em minha definição, Com efeito, disse que Deus é o ente constituído por infinitos atributos, cada um dos quais é infinito, isto é, supremamente perfeito em seu gênero. Quanto ao que objetais à minha primeira proposição, considerai, meu amigo, que os homens não são cria dos mas engendrados e que seus corpos existia m antes, embora numa outra forma. Na verdade, o que se conclui, e que também reconheço de bom grado, é que se uma única parte da matéria se aniquilasse, imediatamente toda a extensão desapareceria. A segunda proposição, por sua vez, não faz muitos deuses, mas apenas um, constituído de infinitos atributos, etc. Baruch Spinoza CARTA N.° 9 Ao mui sábio jovem Simon de Vries Meu querido amigo. Recebi tuas cartas há tanto esperadas e agradeço-te por me teres escrito e por teu afeto. Tua longa ausência não me é menos penosa do que para ti e, entretanto, estou feliz porque o fruto de minhas vigílias tem sido útil para ti e para nossos amigos. Assim, apesar de retirado, mesmo ausente falarei convosco. Não deves invejar Caseário: ninguém me é mais desagradável do que ele e não há pessoa de quem eu desconfie mais do que dele. Por isso quero que saibas, bem como nossos amigos, que nenhuma de minhas opiniões deve ser-lhe comunicada antes que alcance certa maturidade. É ainda muito criança e muito inconstante, mais interessado pela novidade do que pela verdade. Mas espero que se corrigirá desses defeitos com o passar dos anos, direi mais: pelo que posso julgar de seu espírito, estou certo de que isto acontecerá. Por isso sua índole leva-me a amá-lo. Quanto às questões propostas por teu colégio (muito sabiamente instituído), vejo que tu e nossos amigos não distinguis os gêneros de definições. Com efeito, deve-se explicar a diferença entre a definição que serve para investigar a essência de uma coisa, e que é somente dubitativa, daquela que é proposta apenas para ser examinada. Com efeito, a primeira, porque tem um objeto determinado, deve ser verdadeira, mas o mesmo não pode ser dito da segunda. Por exemplo, se me pedem uma descrição do templo de Salomão, devo dar uma descrição verdadeira, a menos que queira me divertir. Mas se em minha mente tracei o plano de um templo que desejo edificar e de cuja descrição concluo que preciso de certo tipo de terreno, de milhares de pedras e de outros materiais, uma pessoa sã de espírito poderá dizer-me que minha conclusão é má porque provém de uma definição bastante falsa que dei? Alguém poderá exigir que eu prove a verdade de minha definição? Isto seria o mesmo que dizer que não concebi o que concebi, ou exigir que eu prove que concebi aquilo que concebi, o que é simplesmente ridículo. Assim, ou a definição explica uma coisa que está fora do intelecto e, então, deve ser verdadeira e não difere de uma proposição ou de um axioma, a não ser pelo fato de que a definição se aplica apenas às essências ou às afecções das coisas, enquanto o axioma tem maior extensão, aplicando-se a verdades eternas. Ou, então, a definição explica uma coisa tal como é ou como pode ser concebida por nós. Neste caso, a definição difere de um axioma e de uma proposição porque deve-se exigir somente que seja absolutamente concebida e não, como um axioma, como uma verdade. Por isso a má definição é aquela que não se concebe. Para me fazer entendido, tomarei um exemplo de Borellio: duas linhas retas encerrando um espaço são chamadas figuradoras, isto é, constituem uma figura. Se por uma linha reta entendo o que outros entendem por linha curva, a definição é boa. Esta definição permitirá compreender uma figura como ou outra similar, desde que daí por diante não se entendam por "linha reta" as figuras quadradas ou outras similares. Mas se por linha reta entende-se o que se entende comumente, a coisa é inteiramente inconcebível e não há, portanto, definição alguma. Tudo isto é confundido por Borellio, cuja opinião tu e nossos amigos pareceis admitir. Acrescento outro exemplo. Se digo que cada substância tem apenas um atributo, tem-se uma simples proposição que exige demonstração. Mas se digo: entendo por substância aquilo que é constituído por um único atributo, a definição será boa, desde que daí por diante as coisas constituídas por vários atributos sejam designadas por outro nome que não seja o de substância. Quanto ao que disseste, que não demonstrei que a substância (ou o ente) pode ter vários atributos, isto talvez provenha de que não quiseste prestar atenção nas demonstrações. Com efeito, dei duas. Primeira: nada é mais evidente para nós do que todo ente que é concebido sob algum atributo, e quanto mais um ente tem realidade ou ser, tanto mais lhe devem ser atribuídos mais atributos. Consequentemente, um ente absolutamente infinito deve ser definido, etc. Segunda (e que considero melhor): quanto mais atributos atribuo a um ente, tanto mais sou obrigado a atribuir-lhe existência, isto é, tanto mais o concebo verdadeiramente, o que seria inteiramente o contrário se tivesse forjado uma quimera ou algo similar. Quanto ao que disseste, que tu e nossos amigos só concebeis o pensamento sob a forma de ideias porque, suprimindo-as, suprimis o pensamento, creio que isso vos acontece porque separais de um lado vosso ser como coisa pensante e de outro vossos pensamentos e conceitos. Assim, não é de espantar que, pondo à parte todos os vossos pensamentos, não vos reste nada em que possais pensar. Quanto à própria questão, considero ter demonstrado de maneira bastante clara e evidente que o intelecto, embora infinito, pertence à Natureza Naturada e não à Natureza Naturante. Acrescento que não vejo qual a relação disto com a terceira definição e por que esta vos detém. A definição que vos enviei diz: "Entendo por substância aquilo que é em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não envolve o conceito de outra coisa. Por atributo entendo a mesma coisa, a não ser que o atributo é dito com relação ao intelecto que atribui à substância certa natureza". Esta definição, digo eu, explica bastante claramente o que quero entender por substância ou por atributo. Contudo, queres, embora eu veja pouca utilidade nisso, que eu explique através de um exemplo como uma só e mesma coisa pode ser designada por dois nomes. Para não parecer que me abstenho, darei dois exemplos. Primeiro: digo que por Israel entendo o terceiro patriarca e que entendo por Jacó o mesmo homem a quem tal nome foi imposto porque agarrou o calcanhar de seu irmão. Segundo: por plano entendo aquilo que reflete todos os raios luminosos sem modificá-los; a mesma coisa entendo por branco, a não ser que o plano é dito branco com relação ao homem que olha para ele. Baruch de Espinosa CARTA N.° 10 (Rijnsburg, março de 1663) Ao jovem mui sábio Simon de Vries Caro amigo. Tu me perguntas se precisamos da experiência para saber se a definição de um atributo é verdadeira. Respondo que nunca precisamos da experiência, a não ser para aquilo que não podemos concluir da definição da coisa. Como, por exemplo, a existência dos modos, pois esta não pode ser deduzida dá definição da coisa. Mas nunca precisamos da experiência para aquelas coisas cuja existência não se distingue da essência e que, portanto, se conclui de sua definição. Mais ainda, nenhuma experiência pode ensinar-nos isto, pois a experiência nunca nos ensina a essência das coisas — o máximo que pode fazer é determinar nossa mente a pensar apenas acerca de certas essências das coisas. E assim como a existência dos atributos não difere de sua essência, nenhuma experiência poderá fazer com que a aprendamos. Perguntas, ainda, se as coisas reais e suas afecções são verdades eternas. Digo que o são sob todos os aspectos. Se retrucares: por que, então, não as chamas de verdades eternas? Respondo: para distingui-las, como todos costumam fazê-lo, daquelas que não explicam coisas e afecções das coisas, como por exemplo, "nada vem do nada". Tais proposições, e outras semelhantes, são chamadas verdades eternas num sentido absoluto, e com isto o que se quer dizer é que só têm morada no intelecto. Baruch Spinoza CARTA N.° 12 (Rijnsburg, 20 de abril de 1663) Ao mui sábio e experiente Lodewijik Meijer, doutor em Medicina Meu excelente amigo, Recebi duas cartas tuas, uma de 11 de janeiro (que me foi entregue por nosso amigo N.N.) e outra de 20 de março (envia da de Leyden por um amigo desconhecido). Ambas me encheram de alegria, sobretudo porque compreendi que tudo vai muito bem para ti e que te lembras de mim. Agradeço-te pela bondade e pela consideração com que me honras; peço-te para creres que também te sou muito devotado e que me esforçarei para mostrá-lo sempre que a ocasião e minhas fracas forças o permitirem. Para começar, tentarei responder ao que me perguntas nas cartas. Pedes também que te comunique o que penso sobre o infinito. Fá-lo-ei de bom grado. A questão do infinito sempre pareceu dificílima para todos, até mesmo inextricável, porque não distinguiram entre aquilo que é infinito por sua natureza, ou pela força de sua definição, e aquilo que não tem fim, não pela força de sua essência, mas pela sua causa. E também porque não distinguiram entre aquilo que é dito infinito porque não tem fim, e aquilo cujas partes, embora conheçamos o máximo e o mínimo, não podem ser explicadas ou representadas apenas por um número. Enfim, porque não distinguiram entre aquilo que só pode ser inteligido, mas não imaginado, e aquilo que também podemos imaginar. Se tivessem prestado atenção nisso, jamais teria m sido esmagados sob o peso de tantas dificuldades. Com efeito, teria m claramente compreendido qual infinito não se divide em partes (ou que não tem partes) e qual, ao contrário, pode ser dividido em partes sem contradição. Também teria m compreendido qual infinito pode ser concebido como maior do que outro sem qualquer contradição, e qual não pode ser concebido assim. É o que mostrarei claramente a seguir. Antes, porém, devo dizer alguma coisa sobre quatro pontos: a substância, o modo, a eternidade e a duração. Eis o que se deve considerar acerca da substância: em primeiro lugar, que a existência pertence à sua essência, isto é, que sua existência decorre de sua essência apenas e de sua definição. Se não me falha a memória, penso que te demonstrei esse ponto de viva voz e sem recorrer a outras proposições. Em segundo lugar (e como consequência do anterior), que não existem múltiplas substâncias de mesma natureza, mas que a substância é única quanto à sua natureza. Enfim, em terceiro lugar, que uma substância só pode ser compreendida como infinita. Chamo de modo as afecções da substância, e sua definição, na medida em que não é a definição da própria substância, não pode envolver qualquer existência. Por isso, embora os modos existam, podemos concebê-los como não existentes, donde se segue que, quando consideramos apenas a essência dos modos e não a ordem da Natureza toda, não podemos concluir, da existência presente deles, que deverão existir ou não existir posteriormente, ou que tivessem existido ou não existido anteriormente. Como se vê claramente, concebemos a existência dos modos como totalmente diversa da existência da substância. Origina-se aí a diferença entre a eternidade e a duração — por esta só podemos explicar a existência dos modos; mas a existência da substância só pode ser explicada pela eternidade, isto é, como fruição infinita do existir (existendi), ou, para usar um barbarismo, como fruição infinita do ser (infinitam essendifruitionem). De tudo o que foi dito vê-se claramente que quando consideramos (o que sucede frequentemente) apenas a essência dos modos e da duração, mas não a ordem da Natureza, podemos (sem destruir os conceitos que deles temos) determinar à vontade sua existência e sua duração, concebê-las como maiores ou menores, dividi-las em partes. Mas no que concerne à eternidade e à substância, visto que só podem ser concebidas como infinitas, não podem ser submetidas a tais operações sem que destruamos seus conceitos. Só por brincadeira, para não dizer por insanidade, alguns consideram a substância extensa como composta de partes, isto ê, em corpos realmente distintos. Seria como se alguém quisesse, pela junção e acumulação de círculos, compor um quadrado, um triângulo ou qualquer outra coisa de essência totalmente diversa. Por isso destrói-se por si mesma aquela miscelânea de argumentos que os filósofos habitualmente oferecem para mostrar que a substância extensa é finita, pois supõem uma substância corporal composta de partes. Da mesma maneira, muitos outros, depois de se persuadirem que a linha é composta de pontos, puderam encontrar vários argumentos para mostrar que a linha não é divisível ao infinito. Contudo, se perguntares por que estamos propensos por um impulso natural a dividir a substância extensa, responder-te-ei que a quantidade pode ser concebida por nós de duas maneiras: abstrata ou superficialmente, como nos é dada na imaginação com o auxílio dos sentidos; ou como uma substância e, portanto, concebida apenas pelo intelecto. Por isso, se consideramos a quantidade tal como é na imaginação (o que é mais frequente e mais fácil), acharemos que é divisível, finita, composta de partes e múltipla. Se, ao contrário, a consideramos tal como é no intelecto e se percebemos a coisa tal como é em si mesma (o que é dificílimo), então, como já te demonstrei anteriormente, descobrimos que é infinita, indivisível e única. A origem do tempo e da medida decorre de que podemos determinar à vontade a duração e a quantidade, quando concebemos esta abstraída da substância e aquela separada da maneira como flui das coisas eternas. O tempo serve para delimitar a duração, e a medida para delimitar a quantidade, de tal sorte que podemos imaginá-las facilmente tanto quanto seja possível. O número surge depois porque separamos as afecções da substância da própria substância e as repartimos em classes para poder imaginá-las facilmente, e o número serve para que as determinemos. Vê-se claramente, portanto, que a medida, o tempo e o número são apenas modos de pensar, ou melhor, de imaginar. Por isso, não é de espantar que todos aqueles que se esforçaram para compreender a marcha (progressum) da Natureza com o auxílio de tais noções, elas também mal compreendidas, se embaraçaram em dificuldades inextricáveis, de onde só puderam sair destruindo tudo e admitindo absurdos ainda maiores. Com efeito, como há muitas coisas que só podemos alcançar pelo intelecto e não pela imaginação, como por exemplo a substância, a eternidade, aqueles que se esforçam para explicá-las por meio de noções que são auxílios da imaginação só podem desatinar (insaniat) com sua imaginação. Os modos da substância também não podem ser corretamente compreendidos com tais entes de Razão ou auxiliares da imaginação. Ao fazermos essa confusão, nós os separamos da substância e da maneira como escoam da eternidade, e sem elas não podem ser compreendidas corretamente. Para que vejas com mais clareza, dou um exemplo. Se se conceber abstratamente a duração, confundindo-a com o tempo, começa-se a dividi-la em partes e torna-se impossível compreender, por exemplo, como uma hora pode passar. Para que passe, com efeito, é preciso que primeiro passe a metade, depois a metade do resto e em seguida a metade do novo resto; e se continuarmos retirando infinitamente a metade do resto, nunca poderemos chegar ao fim da hora. Por isso muitos que não costumam distinguir entre os entes de Razão e os entes reais ousaram asseverar que a duração é composta de momentos e caíram em Silas ao tentarem evitar Caribdes. Compor a duração com momentos é o mesmo que compor o número apenas pela adição de zeros. Ademais, pelo que foi dito, está muito patente que o número, a medida e o tempo, por serem auxiliares da imaginação, não podem ser infinitos, pois senão o número não seria mais número, a medida, medida, e o tempo, tempo. Por isso se vê claramente por que muitos, que confundem esses três entes de imaginação com entes reais, porque ignoram a verdadeira natureza das coisas, negam o infinito em ato. Mas, para avalia r quão mísero é o seu raciocínio, dirijamo-nos aos matemáticos, que nunca se deixaram embaraçar com argumentos desse tipo nas coisas que percebem clara e distintamente. Com efeito, além de terem encontrado muitas grandezas que não podem ser expressas pelo número (o que é suficiente para estabelecer o defeito do número para determinar todas as coisas), também encontraram grandezas que não podem ser igualadas a nenhum número, mas ultrapassam todo número que possa ser assinalado. Entretanto, não concluem que tais grandezas ultrapassam todo número pela multiplicidade de suas partes, mas porque, para eles, tais grandezas não podem ser submetidas ao número sem evitar uma contradição manifesta. Por exemplo, a soma das distâncias desiguais AB, CD interpostas entre os dois círculos não concêntricos e a de todas as variações que pode sofrer a matéria em movimento nesse espaço ultrapassam todo número. Mas isto não provém da extraordinária grandeza das distâncias interpostas, pois, por menor que seja a porção que suponhamos, a soma das proporções desiguais ultrapassa todo número. Mas isto também não provém (como pode acontecer em outros casos) de que não tenhamos máximo e mínimo para essas distância s, pois no exemplo temos um máximo AB e um mínimo CD. Tudo decorre apenas de que a natureza do espaço compreendido entre os dois círculos não concêntricos não pode admitir um número determinado de distâncias desiguais. Portanto, se se quisesse determinar com um número certo todas essas desigualdades, dever-se-ia simultaneamente fazer com que um círculo não fosse um círculo. Assim, também, para voltarmos ao nosso assunto, se se quisesse determinar todos os movimentos da matéria que existiram até hoje, reduzindo-os, bem como sua duração a um número e a um tempo certos, seria como se se esforçasse para privar a substância corporal de suas afecções, substância que só podemos conceber como existente, e, assim, fazer com que não tenha a natureza que tem. Poderia, ainda, demonstrar claramente outros pontos em que toquei nesta carta, se não os julgasse supérfluos. De tudo o que foi dito, vê-se claramente que certas coisas são infinitas por sua natureza e não podem ser concebidas de outra maneira; que algumas outras são infinitas pela força da causa que lhes é inerente, e, no entanto, quando são concebidas abstratamente, podem ser divididas em partes e ser consideradas finitas; que outras, enfim, podem ser ditas infinitas, ou, se preferires, indefinidas, porque não podem ser igualadas a nenhum número, embora possamos concebê-las como maiores ou menores, e por isso não é necessário que coisas que não podemos igualar a um número sejam iguais entre si, como está bastante claro no exemplo dado e em muitos outros. Enfim, coloquei diante de teus olhos, de maneira breve, as causas dos erros e confusões surgidos acerca da questão do infinito e, se não me engano, expliquei todas elas de sorte que não há qualquer coisa acerca desta questão que eu não tenha abordado aqui, ou que não possa ser facilmente resolvida pelo que foi dito. E, assim, julgo que não vale a pena ainda te reter nesse assunto. Gostaria, entretanto, de observar, ainda, que julgo que os peripatéticos mais recentes compreenderam mal uma demonstração dada pelos mais antigos para tentar mostrar a existência de Deus. É assim que a encontro enuncia da num judeu chamado Rab Ghasdj: se houver um progresso ao infinito das causas, tudo o que é será causado, mas nenhuma coisa causada pode existir necessariamente pela força de sua natureza; logo, nada há na Natureza a cuja essência pertença uma existência necessária. Mas isto é absurdo; logo, a premissa também o é. A força do argumento não se situa em que seja impossível haver um infinito em ato ou um progresso das causas ao infinito, mas apenas em que se supõe que as coisas que não existem necessariamente por sua natureza não são determinadas a existir por uma coisa que existe necessariamente por sua natureza. Deveria passar agora para tua segunda carta, mas ser-me-á mais fácil responder a questões nela contidas quando me vieres visitar. Peço-te, assim, que venhas o mais breve possível, porque o tempo de minha partida se aproxima. Passa bem e recorda-te de mim, que sou teu amigo devotado. Baruch Spinoza CARTA N.° 21 Ao mui sábio e cultivado Wilhelm Blyenbergh Meu senhor amigo, Quando li vossa primeira carta, acreditei que nossas opiniões estavam de acordo. A segunda (que me chegou às mãos no dia 21 de janeiro), porém, fez-me compreender que estamos bem longe disso, pois vejo que discordamos não somente quanto às consequências mais afastadas dos primeiros princípios, mas quanto a estes próprios princípios. Não creio, portanto, que nossa troca epistolar possa servir para nos instruirmos mutuamente. Percebi, com efeito, que nenhuma demonstração, mesmo a mais sólida segundo as leis, tem valor para vós, a não ser que concorde com a explicação que vós ou os teólogos que conheceis atribuís às Sagrada Escrituras. Ora, se admitis que Deus fala nas Sagradas Escrituras com mais clareza e eficácia do que na luz natural do intelecto — que também nos foi concedida por ele e que é conservada firme e incorruptivelmente por sua divina sabedoria —, tendes razões válidas para curvardes vosso intelecto às opiniões que atribuís às Sagradas Escrituras, e eu faria o mesmo em vosso lugar. Contudo, confessarei, sem maiores circunlóquios, que não compreendo as Sagradas Escrituras, apesar de ter-me dedicado a estudá-las durante vários anos, e sei que não posso, quando disponho de uma demonstração sólida, chegar a pensamentos que me façam duvidar delas. Aceito sem qualquer suspeita tudo aquilo que meu intelecto me mostra, sem temer que possa enganar-me ou que as Escrituras o possam contradizer, embora eu não investigue os Livros Sagrados, porque a verdade não pode contradizer a verdade, e o fruto que retirei do exercício de meu poder natural de compreender, que nunca me deixou cair no falso, fez de mim um homem afortunado. Realmente desfruto esta felicidade e procuro atravessar a vida não na tristeza e nos gemidos, mas na tranquilidade, na alegria e no contentamento, e incessantemente subo mais um grau. Não deixo de reconhecer que todas as coisas são feitas pela potência do Ser sumamente perfeito e por seu decreto imutável —-a isto devo minha total satisfação e a tranquilidade de minha alma. Voltando à vossa carta, digo que vos sou extremamente grato por me terdes mostrado abertamente e em tempo vossa maneira de filosofar; mas não vos agradeço de jeito nenhum pelas consequências que imaginais tirar de minha carta. O que havia nessa carta, eu vos pergunto, que vos autorizasse a atribuir-me opiniões como estas: os homens são semelhantes aos animais, morando e perecendo da mesma maneira que eles, nossas obras desagradam a Deus, etc.? Aliás, quanto a este último ponto devo notar que discordamos completamente, pois não percebo o que entendeis quando dizeis que Deus se compraz com nossas obras, como alguém que, buscando um certo fim, alegra-se por ver que a coisa acontece de acordo com seu voto. De minha parte, disse claramente que os justos honram a Deus e se tornam mais perfeitos honrando-o. Amam a Deus. Em que fiz os homens semelhantes aos animais, ou perecendo como eles, ou, enfim, seres cujas obras desagradam a Deus? Se tivésseis lido minha carta com maior atenção, teríeis visto claramente que nosso desacordo repousa num único ponto: as perfeições adquiridas pelos justos lhes são comunicadas por Deus enquanto Deus, isto é, absolutamente e sem atributos humanos (assim penso) ou por Deus enquanto juiz. Esta é vossa posição e por isso não quereis que os ímpios, agindo contrariamente ao decreto de Deus, sirvam a Deus tanto quanto os piedosos. Mas não se pode retirar tais conclusões daquilo que vos disse, pois não apresento Deus como um juiz e estimo as obras por sua qualidade e não pela potência do obreiro e, para mim, a recompensa decorre da obra, e decorre dela tão necessariamente quanto decorre da natureza do triângulo que a soma de seus ângulos seja igual a dois retos. E isto é compreendido por qualquer um que tenha compreendido que nossa beatitude consiste no amor a Deus e que este amor nasce necessariamente do conhecimento de Deus, que é tão precioso para nós. É fácil demonstrar isto de uma maneira mais geral, desde que se reflita sobre a natureza do decreto divino, como o explico nos Pensamentos Metafísicos. Mas admito que todos aqueles que confundem a natureza divina com a humana são incapazes de chegar a essa compreensão. Tinha intenção de terminar minha carta por aqui, a fim de não vos importunar mais com essas coisas que, por vossa carta pude perceber, são motivo de chacota e riso e sem qualquer utilidade para ninguém. Entretanto, para não deixar vosso pedido sem resposta, explicarei as palavras privação e negação, e depois exporei rapidamente o que é necessária saber para que possais compreender o que vos disse anteriormente. Em primeiro lugar, portanto, digo que a privação não é o ato de privar, mas apenas a simples e mera carência que em si mesma nada é. É apenas um ente de Razão ou modo de pensar que formamos quando comparamos as coisas entre si. Por exemplo, dizemos que o cego está privado da visão porque o imaginamos mais facilmente como vidente, seja porque o comparamos com outros videntes, seja porque comparamos seu estado presente com seu estado passado. Afirmamos, então, que a visão pertence à sua natureza e por isso dizemos que está privado dela. Mas, se considerarmos o decreto de Deus e a natureza desse decreto, não podemos mais afirmar que esse homem está privado da visão, assim como não podemos dizê-lo a respeito de uma pedra, pois nesse momento seria tão contraditório que a visão lhe pertencesse como seria contraditório que pertencesse à pedra, porque nada pertence a esse homem, nem pode ser considerado seu a não ser aquilo que o intelecto e a vontade de Deus lhe atribuíram. E, assim, Deus não é a causa da não visão desse homem como não o é da não visão da pedra: trata-se de uma pura negação. Do mesmo modo, também, quando consideramos a natureza de um homem impelido por um apetite libidinoso e comparamos tal apetite presente nele com aquele que existe nos homens probos, ou com aquele que se encontrava nesse mesmo homem noutro momento, afirmamos, então, que esse homem está privado de um apetite melhor porque julgamos que para ele seria mais conveniente um apetite virtuoso. Mas não podemos fazer isso se considerarmos o intelecto de Deus e a natureza do decreto divino, pois, com relação a eles, esse apetite melhor, nesse momento, pertence à natureza desse homem tanto quanto à do diabo ou à da pedra. Nesse caso não há privação, mas negação. Em suma, há privação apenas quando se nega a uma coisa algo que julgamos pertencer à sua natureza, e há negação apenas quando se nega a uma coisa algo que julgamos não pertencer à sua natureza. Vê-se claramente que o apetite de Adão pelas coisas terrenas era mau apenas com relação ao nosso intelecto e não com relação ao intelecto de Deus. Com efeito, embora Deus conhecesse tanto o estado presente quanto o estado passado de Adão, nem por isso considerava Adão privado de seu estado passado, isto é, que seu estado passado pertencia à sua natureza, pois então Deus conceberia algo contrário à sua vontade, ou seja, ao seu intelecto. Se tivésseis apreendido bem esse ponto e se também tivésseis percebido (como Lodewijk Meijer atestou em meu nome no prefácio dos Princípios da Filosofia Cartesiana) que não admito de maneira alguma a liberdade que Descartes confere à mente, não encontraríeis qualquer contradição em minhas palavras. Mas agora vejo que teria sido melhor, quando vos escrevi, se eu tivesse conservado a linguagem de Descartes, alegando que não podemos saber como nossa liberdade e tudo que dela depende concordam com a providência divina (foi assim, aliás, que me exprimi em várias passagens dos Pensamentos Metafísicos)? Assim, não podemos achar que nossa liberdade implica contradição porque nos é impossível compreender como Deus criou as coisas ou, o que dá no mesmo, como as conserva. Mas eu julgava que havíeis lido o prefácio de L. Meijer e que eu trairia a amizade oferecida se não vos respondesse segundo minha convicção profunda. Mas deixemos isso de lado. Como vejo que não compreendestes bem o pensamento de Descartes, peço-vos que considereis os dois pontos seguintes: Primeiro: nem eu nem Descartes nunca dissemos que pertence à nossa natureza conter nossa vontade nos limites de nosso intelecto, mas apenas que Deus nos deu um intelecto determinado e uma vontade indeterminada, de sorte que ignoramos para que fim nos criou. Dissemos, também, que uma vontade assim indeterminada ou perfeita não somente nos torna mais perfeitos, mas, como vos mostrarei a seguir, é-nos indispensável. Segundo: nossa liberdade não consiste numa certa contingência nem numa certa indiferença, mas numa maneira de afirmar ou de negar. Quanto menos indiferentes formos ao afirmarmos ou negarmos, mais livres seremos. Por exemplo, se a natureza de Deus é conhecida por nós, afirmar que Deus existe decorre necessariamente de nossa natureza, como decorre da natureza do triângulo que seus ângulos sejam iguais a dois retos. E assim nunca somos tão ou mais livres do que quando afirmamos tais coisas dessa maneira. Como essa necessidade nada mais é do que o decreto de Deus (como mostrei claramente nos Pensamentos Metafísicos), podemos, pois, compreender desse modo como agimos livremente e como somos causa de uma coisa, não obstante agirmos necessariamente segundo o decreto de Deus. Ou seja, podemos compreender isso quando afirmamos aquilo que percebemos clara e distintamente. E, ao contrário, quando afirmamos aquilo que não entendemos clara e distintamente, isto é, quando suportamos (patimur) que nossa vontade se estenda para além dos limites de nosso intelecto, não podemos, então, compreender essa necessidade e os decretos de Deus, mas percebemos nossa liberdade, que é sempre envolvida por nossa vontade (é somente nesse sentido que nossas obras podem ser chamadas de boas ou más). E se nos esforçamos para conciliar nossa liberdade com o decreto de Deus e com a criação contínua, confundimos aquilo que compreendemos clara e distintamente com aquilo que não percebemos dessa maneira e por isso nos esforçamos inutilmente. É-nos suficiente, portanto, saber que somos livres e que, não obstante o decreto de Deus, podemos sê-lo, e que somos a causa do mal no sentido de que um ato só pode ser chamado mau com relação à nossa liberdade. Eis aí o que estabelece Descartes para vos demonstrar que não há qualquer contradição em sua linguagem. Agora ocupar-me-ei com aquilo que diz respeito à minha própria opinião, salientando a consequência vantajosa que dela advém porque estabelece que nosso intelecto oferece nosso corpo e nossa alma a Deus sem recorrer à superstição. Não nego que as preces nos sejam úteis, pois, meu intelecto sendo pequeno, não posso determinar todos os meios de que Deus dispõe para levar os homens a amá-lo, isto é, a salvarem-se. Entretanto, isto não faz com que minha opinião seja nociva, mas, ao contrário, é o único meio que conduz à suprema beatitude todos aqueles que não estão preocupados com preconceitos ou com superstições pueris. Ao dizerdes que ao fazer os homens dependentes de Deus eu os reduzo a elementos brutos, a plantas e a pedras, revelais vossa total incompreensão quanto à minha opinião e confundis as coisas que o intelecto estabelece com a imaginação delas. Com efeito, se tivésseis percebido pelo puro intelecto o que é depender de Deus, certamente não pensaríeis que as coisas, enquanto dependem de Deus, sejam mortas, corpóreas e imperfeitas (quem já ousou falar do Ente sumamente perfeito em termos assim tão vis?). Pelo contrário, compreenderíeis que são perfeitas por causa disso mesmo e enquanto dependem de Deus. Por isso compreendemos da melhor maneira essa dependência e a operação necessária do decreto divino quando consideramos, não troncos e plantas, mas as criaturas mais perfeitas e mais inteligíveis, como aparece claramente no pensamento de Descartes que relembramos anteriormente e ao qual deveríeis ter prestado mais atenção. Não posso esconder meu grande espanto quando dizeis: se Deus não punisse o delito (isto é, como um juiz diante de uma pena que não é inferida do próprio delito; e é esta a nossa única questão), que razão vos impediria de cometer avidamente qualquer crime? Na verdade, aquele que se abstém de um crime por causa do castigo (e espero que vosso caso não seja este) não age por amor nem possui qualquer virtude. Quanto a mim, se me abstenho ou me esforço por abster-me de um crime, é porque este repugna à minha natureza singular e me afasta do amor e do conhecimento de Deus. Ademais, se tivésseis levado em conta, mesmo que pouco, a natureza do homem e a do decreto divino, tais como as expliquei nos Pensamentos Metafísicos, e se tivésseis percebido como uma coisa deve ser deduzida antes de chegar à conclusão, não teríeis dito temerária mente que minha opinião nos reduzia a troncos de árvores ou outras coisas semelhantes. E também não me teríeis atribuído tantos absurdos que só existem em vossa imaginação. Afirmo que, embora não atribua às Escrituras o tipo de verdade que pareceis querer encontrar nelas, contudo creio que reconheci sua autoridade tanto ou até mais do que os outros e fui muito mais cauteloso do que outros que se acautelam para não introduzir nelas opiniões pueris ou absurdas que ninguém pode fornecer, a menos que tenha compreendido extremamente bem a filosofia ou que tenha tido revelações divinas. Por isso não me perturbo muito com as explicações que certos teólogos vulgares dão das Escrituras, sobretudo se são daquela laia que se consagra á mera letra e ao sentido exterior. Nunca encontrei entre os teólogos, exceto os socinianos, algum tão crasso que não compreendesse que as Escrituras falam de Deus dum modo humano e que exprimem seu sentido por meio de parábolas. Quanto à contradição que vos esforçais para mostrar (e que em minha opinião não conseguis), creio que provém do fato de que entendeis por parábola algo totalmente diferente daquilo que vulgarmente se entende. Quem já ouviu dizer que exprimir seus conceitos por meio de parábolas é dar-lhes um sentido errôneo? Quando Miquélas disse ao rei Acab que vira Deus sentado num trono, com os exércitos celestes de pé ã sua direita e à sua esquerda, e que ouvira Deus perguntar-lhes qual dentre eles enganaria Acab, isto certamente era uma parábola por cujo intermédio o profeta se exprimia de maneira suficientemente clara, estando encarregado sobretudo de manifestar-se em nome de Deus (e não de ensinar os dogmas mais sublimes da teologia ). E, ao usar uma parábola, o profeta não deu um sentido errôneo ao que queria dizer. Assim também outros profetas, sob a ordem de Deus, tornaram manifesto seu verbo usando o meio que lhes parecia melhor para conduzir o povo ao projeto das Escrituras e que consiste, segundo o próprio Cristo, em amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Creio, pois, que as altas especulações não concernem em nada às Santas Escrituras. Quanto a mim, nunca aprendi nem pude aprender nada sobre os atributos eternos de Deus a partir dos Livros Sagrados. Afirmo que os profetas exprimiram a palavra de Deus da maneira como mostrei porque a verdade não é contrária ã verdade. E para demonstrá-lo só me resta demonstrar que as Escrituras são a verdadeira palavra revelada de Deus. Contudo, não posso fornecer uma demonstração matemática na falta de uma revelação divina. Por isso disse: creio, mas não sei de modo matemático, que as revelações de Deus aos profetas, etc. Com efeito, creio firmemente, mas não sei matematicamente, que os profetas foram conselheiros íntimos e legados fiéis de Deus. Portanto, não há qualquer contradição naquilo que afirmei, mas há muita naquilo que se diz contra minha afirmação. Quanto ao prefácio de L. Meijer, nele fica bem claro o que Descartes deveria ter provado para chegar a uma demonstração sólida do livre arbítrio, e, ao mesmo tempo, L. M. mostra que sustento uma opinião contrária à cartesiana, e como a sustento. Talvez um dia eu desenvolva esse assunto, mas agora não tenho a intenção de fazê-lo. Para falar a verdade, aquele meu trabalho sobre Descartes já me saiu do pensamento e não me ocupei mais dele após a tradução holandesa. Eu tinha razões para isso, mas não vale a pena falar sobre elas. Baruch Spinoza CARTA N.° 32 (Voorburg, 20 de novembro de 1665) Ao mui nobre e sábio Henrich Oldenburg Ilustríssimo senhor, Agradeço a vós e ao nobre Dr. Boyle por me estimularem bondosamente a continuar filosofando, o que tenho feito tanto quanto posso, não duvidando de vossa ajuda e benevolência. Quando me perguntais: "Como conhecemos de que maneira cada uma das partes da Natureza concorda (convenlat) com seu todo e como se vincula (cohaeret) às restantes?", julgo que perguntais quais as razões que nos persuadem desse acordo (convenire) e desse vínculo (cohaerere), pois em minha última carta eu vos disse que ignorava como conhecer de maneira absoluta de que modo as partes se vinculam reciprocamente e de que modo cada uma concorda com seu todo. Para poder conhecer isto, seria preciso conhecer a natureza inteira e todas as suas partes. Portanto, esforçar-me-ei apenas para mostrar a razão que me obriga a afirmar o vínculo e o acordo das partes. Entretanto, quero primeiro vos advertir que não atribuo beleza, disformidade, ordem ou confusão à Natureza, pois é somente com relação à imaginação que as coisas são ditas belas ou disformes, ordenadas ou confusas. Por vínculo (cohaerentla ) entre as partes entendo apenas aquilo que faz com que as leis ou a natureza de cada uma das partes se ajustem (accommodant) às leis ou à natureza de cada uma das outras, de tal modo que não haja entre elas a menor contradição (contrarientur). Acerca do todo e das partes, considero as coisas como partes de certo todo enquanto a natureza de cada uma delas se ajusta, na medida do possível, à das outras, de maneira a se conformarem (consentiant) umas às outras. Mas enquanto essas coisas são discrepantes entre si, cada uma delas forma uma ideia distinta em nossa mente, e devem, então, ser consideradas cada uma como um todo e não como uma parte. Por exemplo, enquanto o movimento das partículas de linfa, de quilo, etc., se ajusta reciprocamente em razão de sua grandeza e figura, de sorte que se conformam entre si de maneira completa e constituem um só líquido, a linfa, o quilo, etc., serão considerados como parte de um mesmo todo, o sangue. Mas, enquanto concebemos as partículas linfáticas diferindo das de quilo em razão da figura e do movimento, consideramo-las como um todo e não como uma parte. Inventemos, se quiserdes, um vermezinho vivendo no sangue. Suponhamos que seja capaz de distinguir pela vista as partículas do sangue, da linfa, etc., e de observar como cada parte vem encontrar outra ou é repelida por outra, ou lhe comunica seu movimento, etc. Esse vermezinho, vivendo no sangue como nós vivemos numa parte do universo, consideraria cada parte do sangue como um todo e não como uma parte e, assim, não poderia saber como todas as partes são governadas pela natureza global (universalis) do sangue, e como são obrigadas por ela a se ajustarem reciprocamente para que se estabeleça certa relação (certa ratione) entre elas. Se supusermos que não há qualquer causa exterior ao sangue que comunique novos movimentos às partes, e que não há qualquer espaço exterior ao sangue, nem outros corpos aos quais as partes pudessem transferir seu movimento, é certo, então, que o sangue permaneceria sempre em seu estado e que suas partículas não sofreria m qualquer variação, fora aquelas que podem ser concebidas a partir da natureza do sangue, isto é, de um movimento que o sangue pode comunicar à linfa, ao quilo, etc. E, assim, o sangue deveria ser sempre considerado como um todo e não como uma parte. Mas, como há muitas causas que governam de certa maneira a natureza do sangue, e que por sua vez dependem da natureza dele, têm origem nesse líquido outros movimentos e outras variações que não dependem apenas das relações (ex ratione) do movimento recíproco das partes, mas das relações (ex ratione) recíprocas do movimento sanguíneo e das causas exteriores. Sob essa relação (ex hac ratione), o sangue é uma parte e não um todo. Aí está o que eu tinha a dizer sobre o todo e a parte. Podemos e devemos conceber todos os corpos da Natureza do mesmo modo que fizemos com o sangue: com efeito, todos os corpos estão circundados por outros e se determinam reciprocamente para existir e operar em relações determinadas, mantendo sempre constante em todos os corpos (isto é, no universo inteiro) a mesma relação de movimento e de repouso. Decorre daí que todo corpo, enquanto existe modificado de certa maneira, deve ser considerado como uma parte do universo que concorda com seu todo e se vincula com o resto. E como a natureza do universo não é limitada como a natureza do sangue, mas é absolutamente infinita, suas partes são dirigidas de infinitas maneiras e estão submetidas, por esta potência infinita, a infinitas variações. Quanto à substância, concebo a união de cada uma de suas partes com seu todo de uma maneira ainda mais íntima, pois decorre da natureza infinita da substância que cada uma das partes pertence à natureza da substância corporal e sem ela não pode ser nem ser concebida. Estais vendo, portanto, como e por que considero o corpo humano como uma parte da Natureza. E também considero a mente humana como uma parte da Natureza. Estabeleço, com efeito, que há na Natureza uma potência infinita de pensar que, enquanto infinita, contém em si objetivamente toda a Natureza e cujos pensamentos se encadeia m do mesmo modo que as partes da Natureza de que são evidentemente o ideado. Em seguida estabeleço que a mente humana é essa mesma potência, não enquanto esta é infinita e percebe a natureza inteira, mas enquanto é finita e percebe o corpo humano. Por isso estabeleço que a mente humana é uma parte desse intelecto infinito. Contudo, não posso demonstrar e explicar detalhadamente aqui todas essas coisas e tudo que se refere a elas, pois há muito que dizer e não penso que estejais esperando isso de mim neste momento. Aliás, não estou bem certo de ter percebido suficientemente vosso pensamento e se respondi ao que me haveis perguntado. Gostaria de saber qual é vossa opinião. Em vossa carta dizeis que apontei as leis cartesianas do movimento como falsas, mas, se bem lembro, o que fiz foi apontar a opinião de Huygens sobre elas. De minha parte, afirmei apenas a falsidade da Sexta Regra e que Huygens também se engana sobre ela. Naquela ocasião eu vos pedia para que me comunicásseis a experiência feita na Sociedade Real de Londres, partindo de tal hipótese, e penso que não o podeis, visto que não me respondestes. Huygens, como sempre, se consagra inteiramente ao polimento de lentes e construiu uma bela máquina (fabricam) que permite fabricar lentes no torno. Não sei nem quero saber quais os resultados que obteve. A experiência mostra-me suficientemente que as lentes esféricas podem ser polidas muito melhor com a mão e mais seguramente do que com qualquer máquina (machina). Quanto ao sucesso dos pêndulos e à época de sua transferência para a França (por Huygens), nada posso escrever ao certo. O bispo de Munster, mal aconselhado, depois de haver entrado imprudentemente na Frísia como o cervo de Esopo no poço, nada mais pode fazer. E a menos que a estação dos nevoeiros e das tempestades se atrase, não sairá de lá sem grandes danos. Não há dúvida de que seguiu o conselho de algum traidor para ter ousado perpetrar esse crime. Mas tudo isso já é velho para escrever como se fosse novidade. Há mais de quinze dias nada ocorre que valha a pena mencionar. Não se vê qualquer esperança de paz com a Inglaterra, embora tenha corrido um boato a esse respeito: pretendia-se que um embaixador holandês havia sido envia do à França; dizia-se também que a gente de Over-Yssel, que se esforça para colocar o príncipe de Orange no poder (menos para si próprios e mais contra os holandeses), tinha conjeturado em mandar à Inglaterra o referido príncipe como media dor. Mas a situação é bem outra. Os holandeses nem sonham fazer a paz, a não ser, talvez, que as circunstâncias os levem a comprá-la. As intenções da Suécia permanecem obscuras. Alguns dizem que cobiça Metz, outros, a Holanda. Mas tudo isso é apenas conjetura. Escrevi esta carta na semana passada, mas não pude enviá-la porque não tive tempo para ir até Haia. Peço-vos que envieis meus cumprimentos ao Dr. Boyle e que não esqueçais vosso amigo devotado Baruch Spinoza P. S. Gostaria de saber se todos os astrônomos julgam que tenha havido dois cometas porque o deduzem de seus movimentos ou porque se apoiam na hipótese de Kepler. Adeus. CARTA N.° 34 (Voorburg, 7 de janeiro de 1666) Ao mui nobre e sábio Hudde Nobre senhor, Diversas ocupações me impediram de vos enviar mais cedo a demonstração da unidade de Deus, fundada na implicação da existência pela natureza necessária de Deus, princípio que aceitais tanto quanto eu. Para chegar à demonstração, é preciso supor: 1.° que a definição verdadeira de uma coisa qualquer inclui apenas a simples natureza da coisa definida e nada mais. Donde se segue: 2.° que nenhuma definição envolve ou exprime uma pluralidade ou um certo número de indivíduos, mas apenas a natureza da coisa tal como é em si mesma, e nada mais. Por exemplo, a definição do triângulo não inclui nada além da simples natureza do triângulo, e não certo número de triângulos. Assim, também, a definição da mente como coisa pensante ou de Deus como Ente perfeito inclui apenas a natureza da mente e de Deus e não certo número de mentes ou de deuses; 3.° que para toda coisa existente deve haver uma causa positiva graças à qual existe; 4.° que esta causa deve ser posta ou na natureza e na definição da própria coisa (porque a existência pertence à natureza da própria coisa ou porque a inclui necessariamente), ou fora da coisa. Desses pressupostos segue-se que, se existir na natureza certo número de indivíduos, deve haver uma ou várias causas que possam produzir esse número de indivíduos, nem mais, nem menos. Se, por exemplo, existem vinte homens na Natureza (para evitar confusão, suporei que existem simultânea e primitivamente), para dar conta de sua existência não é suficiente investigar a causa da natureza humana em geral, mas também é preciso investigar por que razão existem vinte homens, nem mais, nem menos. Pois (de acordo com a terceira hipótese) é preciso dar a causa e a razão por que existe cada um destes homens. Mas esta causa (de acordo com a segunda e a terceira hipóteses) não está contida na natureza do homem, pois a definição do homem não envolve o número vinte homens. Assim (de acordo com a quarta hipótese), a causa da existência desses vinte homens, e consequentemente de cada um em particular, deve estar fora deles. Deve-se, então, concluir absolutamente que todos os entes que concebemos existindo como uma multiplicidade numérica devem necessariamente ser produzidos por causas exteriores e não pela força de sua própria natureza. Mas, como (de acordo com a segunda hipótese) a existência necessária pertence à natureza de Deus, é necessário que sua definição inclua a existência necessária e por isso sua existência necessária deve ser deduzida apenas de sua definição. Mas de sua definição verdadeira não se pode deduzir (como demonstrei na segunda e terceira hipóteses) a existência necessária de muitos deuses. Dela decorre apenas, portanto, a existência de um único Deus. QED (Quod erat demonstrandum) - Como se queria demonstrar. Eis, ilustre senhor, o que considerei como o melhor método para demonstrar essa proposição. Anteriormente demonstrei-a apoia do na distinção entre a essência e a existência, mas, levando em conta aquilo que me havíeis dito, preferi enviar-vos esta outra. Espero que fiqueis satisfeito e espero vosso julgamento. Baruch Spinoza CARTA N.° 35 (Voorburg, 10 de abril de 1666) Ao mui sábio e nobre Hudde Ilustríssimo senhor, Aquilo que havia permanecido obscuro para mim, em vossa carta de 10 de fevereiro, ficou perfeitamente claro pela do dia 30 de março. Agora que conheço vosso problema, vou recolocá-lo em vossos próprios termos, a saber: se há somente um ente que subsiste pela sua própria suficiência ou força. Não apenas afirmo isto, mas também o demonstro apoiando-me no fato de que sua natureza envolve a existência necessária. Também se poderia partir do intelecto divino ou de outros atributos de Deus. Para começar, mostrarei previa mente e de maneira breve que propriedades deve ter um ente que envolve a existência necessária. A saber: 1.° É eterno. Com efeito, se lhe fosse atribuída uma duração determinada fora dessa duração, seria preciso conceber esse ente ou como não existindo, ou como não envolvendo a existência necessária, o que contraria sua definição. 2.°É simples e não composto de partes. Com efeito, seria preciso que as partes componentes fossem anteriores ao composto na natureza e no conhecimento, o que não tem lugar quando se trata de um ente eterno por sua natureza. 3.°Deve ser concebido somente como infinito e não como determinado. Com efeito, se a natureza desse ente fosse determinada e se fosse concebida como tal, seria preciso que fora desses limites (términos) esse ente fosse concebido como não existente, o que contraria sua definição. 4.°E indivisível. Com efeito, se fosse divisível, poderia ser dividido em partes de mesma natureza que ele ou de natureza diversa à dele. Neste segundo caso, seria destruído e poderia não existir, o que é contrário à sua definição. No primeiro caso, uma parte qualquer envolveria uma existência necessária e poderia, portanto, existir e ser concebida sem as outras e por si só, e compreendida como uma natureza finita, mas pelo que precede isto é contrário à definição. Pode-se ver, portanto, que, se quisermos atribuir qualquer imperfeição a esse ente, cairemos imediatamente em contradição. Com efeito, essa imperfeição que lhe queríamos atribuir consistiria em algum defeito ou limite de sua natureza, ou, então, em alguma mudança que sofreria pela ação de causas exteriores por um defeito de suas forças. Voltamos sempre a dizer que o ente que envolve a existência necessária não existe ou não existe necessariamente. Concluo, então: 5.° Tudo aquilo que envolve a existência necessária não pode ter em si qualquer imperfeição, mas só deve exprimir a perfeição. 6.° Mas visto que é somente da perfeição que pode provir um ente que exista por sua suficiência e força, segue-se que, se supusermos um ente que exista por sua natureza e não exprima todas as perfeições, também deveremos supor que existe o ente que contém (comprehendit) em si todas as perfeições. Com efeito, se um ente dotado de certa potência pode existir por sua suficiência, um ente dotado de maior potência pode ainda mais. Para chegarmos, enfim, ao assunto, afirmo que só há um único ente cuja existência pertence à sua natureza e denomino Deus o Ente que possui em si todas as perfeições. Com efeito, se pusermos algum ente, a cuja natureza pertence a existência, tal ente não pode conter em si qualquer imperfeição, mas deve exprimir toda perfeição (conforme o item 5.°). Também tal natureza deve pertencer a Deus (que devemos estabelecer que existe pelo item 6.°), que possui em si todas as perfeições e nenhuma imperfeição. E essa natureza não pode existir fora de Deus, porque neste caso, então, uma mesma e única natureza que implica a existência necessária existiria duas vezes, o que é absurdo pela demonstração precedente. Por conseguinte, somente Deus implica a existência necessária. QED Eis aí, ilustre senhor, o que posso oferecer como demonstração neste momento. Baruch Spinoza CARTA N. ° 36 (Voorburg, junho de 1666) Ao ilustríssimo e mui sábio senhor Hudde Caro senhor. Não me foi possível responder antes à vossa carta de 19 de maio. Como vejo que suspendeis vosso juízo porque minha demonstração vos parece muito obscura, tentarei explicá-la mais claramente. Em primeiro lugar, enumerei quatro propriedades que deve ter todo ser existente por sua suficiência e força. No item 5.° reduzi essas quatro propriedades a uma só. Em seguida, a fim de deduzir apenas da suposição primitiva tudo o que é necessário para a demonstração, esforcei-me para demonstrar a existência de Deus na 6° hipótese, usando apenas aquilo que fora suposto. E, enfim, concluí aquilo que precisava ser estabelecido pressupondo apenas o simples sentido das palavras. Tal foi meu propósito e minha finalidade. Vou agora explicar o sentido de cada uma das partes de meu raciocínio e começarei pelas propriedades que servem de premissas. Não encontrais dificuldade alguma na primeira nem na segunda, que é um axioma. Com efeito, por simples entendo apenas que não é composto, seja de partes diferentes por sua natureza, seja de partes concordantes por sua natureza. A demonstração certamente é universal. Compreendestes perfeitamente o sentido da terceira (onde mostro que, se um ente é pensamento, não pode ser concebido como determinado enquanto pensamento; se é extensão, não pode ser concebido como determinado enquanto extensão, mas só pode ser concebido como indeterminado), contudo negais haver compreendido a conclusão. No entanto, ela está fundada na consideração de que é contraditório conceber algo que envolve a existência ou (o que é o mesmo) que afirma a existência sob a forma de negação da existência. E visto que a determinação não denota algo positivo, mas somente uma privação da existência na natureza de uma coisa concebida como determinada, segue-se que aquilo cuja definição afirma a existência não pode ser concebido como determinado. Por exemplo, se o termo extensão envolve a existência necessária, será tão impossível conceber a extensão sem existência quanto conceber a extensão sem extensão. Se isto for estabelecido, será também impossível conceber que a extensão seja determinada. Se, com efeito, for concebida como determinada, deve ser determinada por sua própria natureza, isto é, pela extensão, e esta, pela qual a outra seria determinada, deveria ser concebida sob a negação da existência. O que manifestamente contradiz a hipótese. Na quarta, quis demonstrar apenas o seguinte: tal ente não pode ser dividido em partes de mesma natureza, nem em partes de natureza diversa, nem em partes que envolvem a existência necessária, nem muito menos em partes que não envolvem a existência necessária. Com efeito, se se admitir esta última hipótese, o ente é destruído, pois é destruir um ente dividi-lo em partes que não exprimem a natureza do todo. Mas, se se admitir a primeira hipótese, esta será contrária às três primeiras propriedades já expostas. Na quinta pressupus apenas que a perfeição é o ser e que a imperfeição é a privação do ser. Digo privação, pois, embora, por exemplo, a extensão por sua própria natureza negue o pensamento, nem por isso há nela qualquer imperfeição. Mas se, em troca, a extensão estivesse privada da extensão, haveria uma imperfeição nela. Isto ocorreria se estivesse determinada, ou se carecesse de duração, de lugar, etc. Admitis absolutamente a sexta, mas dizeis que toda a dificuldade permanece (trata-se de saber por que não pode haver vários entes existentes por si e diferentes quanto à sua natureza; do mesmo modo, o pensamento e a extensão são de natureza diversa, mas podem subsistir por sua própria suficiência). Vossa objeção só é compreensível se tiverdes dado à minha proposição um sentido completamente diferente daquele que lhe dei. Creio perceber como a compreendestes, mas, para ir mais depressa, só darei o sentido que lhe atribuo. Na sexta, digo apenas que se pusermos algo que é indeterminado e perfeito exclusivamente em seu gênero, que existe por sua própria suficiência, então deve-se admitir a existência de um ente absolutamente indeterminado e perfeito e que chamo Deus. Se, por exemplo, quisermos estabelecer que a extensão e o pensamento (que podem ser perfeitos em seu gênero, isto é, num certo gênero de ente) existem por sua própria suficiência, então também será preciso admitir a existência de Deus, absolutamente perfeito, isto é, absolutamente indeterminado. Gostaria de relembrar o que já disse sobre a palavra imperfeição: significa apenas que falta a uma coisa algo que, entretanto, lhe pertence por natureza. Por exemplo, só se pode dizer que a extensão é imperfeita do ponto de vista da duração, da quantidade e do lugar, porque não dura mais longamente, porque não tem maior dimensão, porque não se mantém num lugar, etc. Mas não se pode dizer que é imperfeita porque não pensa, pois sua natureza não lhe exige tal coisa. Sua natureza consiste apenas na extensão, isto é, num certo gênero de ente, e é exclusivamente desse ponto de vista que se pode dizer que é determinada ou indeterminada, imperfeita ou perfeita. E visto que a natureza de Deus não consiste num certo gênero de ente, mas num ente absolutamente indeterminado, sua natureza exige tudo aquilo que o ser exprime perfeitamente; de outra maneira, sua natureza seria determinada e deficiente. E se assim é, só pode haver um único ente, isto é, Deus, que existe por sua própria força. Se, por exemplo, admitimos que a extensão envolve a existência, é preciso que seja eterna e indeterminada, não exprima absolutamente qualquer imperfeição mas somente a perfeição, então a extensão pertencerá a Deus ou será algo que exprime de uma certa maneira a natureza de Deus, pois Deus é o Ente cuja essência é indeterminada e onipotente absolutamente e não somente sob um certo aspecto. O que acabo de dizer sobre a extensão (que tomei como um exemplo) deve ser dito de tudo aquilo que quisermos colocar como tendo existência necessária. Concluo, portanto, como na carta anterior, que fora de Deus nada subsiste por si e que isto só é verdadeiro para Deus. Creio que isto é suficiente para esclarecer o sentido do que foi dito precedentemente e assim podereis julgá-lo melhor. Baruch Spinoza CARTA N.° 50 (Haia, 2 de junho de 1674) Ao mui bondoso e prudente senhor Jarig Jelles Caro amigo. Tu me perguntas qual é a diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha. Respondo-te: a diferença consiste em que mantenho sempre o direito natural e que considero que o magistrado supremo, em qualquer cidade, só tem direitos sobre os súditos na medida em que seu poder seja superior ao deles; coisa que sempre ocorre no estado natural. Quanto à afirmação que faço nos Pensamentos Metafísicos de que só impropriamente Deus pode ser chamado de uno ou de único, respondo que uma coisa não pode ser dita una ou única com respeito à essência, mas somente com respeito à existência: com efeito, só concebemos as coisas sob o número depois de havê-las reunido num gênero comum. Por exemplo, quem tem nas mãos um sestércio ou um imperial não pensa no número dois, a não ser que coloque o sestércio e o imperial sob a mesma denominação, isto é, a de moeda. Só então poderá dizer que tem duas moedas, porque o sestércio e o imperial estarão indicados (insignit) por esse nome. Portanto, como se vê claramente, coisa alguma pode ser chamada de una ou de única, a não ser depois que se tenha concebido alguma outra que concorde (convenit) com ela. Visto que a existência de Deus é sua própria essência e que, portanto, não podemos formar uma ideia universal dessa essência, certamente dizer que Deus é uno e único revela que não se tem uma ideia verdadeira dele, ou que se fala impropriamente dele. No que concerne ao problema da figura, digo que não é algo positivo, mas uma negação. É manifesto que a matéria em sua integridade não pode ter figura e deve ser considerada indefinida, a figura só existindo nos corpos finitos ou determinados. Com efeito, quem diz que percebe uma figura indica somente que concebe uma coisa determinada e de que maneira ela o é. Esta determinação, portanto, não pertence ao ser da coisa, mas indica o seu não ser (ejus non esse). Portanto, a figura é apenas a determinação e a determinação é negação e, assim, ela não pode ser algo, mas só uma negação. Vi na vitrina de um livreiro o livro que um professor de Utrecht escreveu contra o meu e que apareceu um dia depois da morte do autor: o pouco que eu lera anteriormente me fez julgar que esse livro não merecia leitura e, menos ainda, uma refutação. Por isso larguei o livro e o autor. Acho que os mais ignorantes são sempre os mais temerários e os mais dispostos a escrever. Parecem expor sua mercadoria para venda como os mascates que mostram primeiro o que têm de pior. Diz-se que ninguém é mais manhoso do que o Diabo, mas acho que ele é deixado para trás quando comparado a esses tipos astuciosos. Adeus. Baruch Spinoza