Erasmo de Rotterdam – A Civilidade Pueril PREÂMBULO Se, fazer-se de tudo para todos, e por três vezes, a fim de se tomar útil não mortificou aquele grande Paulo, quanto menos eu me sentiria apoucado em voltar, vez por outra, ao nível dos jovens por amor da juventude ansiosa de instrução. Do mesmo modo que, em outra oportunidade, acomodei-me à pré-adolescência de teu irmão Maximiliano com o fito de ensinar-lhe o modo de falar adequado aos jovens, assim, agora, disponho-me a transmitir os preceitos de civilidade pueril adaptadas a tua idade de criança. Não é porque tenhas já grande necessidade de tais normas. Desde o berço foste educado entre os áulicos e recebeste, já ao nascer, um preceptor hábil que te repassava as primeiras lições. No entanto, tudo que passamos a prescrever, embora de exígua utilidade para tua pessoa, filho que és de príncipes e fadado ao poder, será acolhido, mais prazerosamente, por todos os outros meninos bem porque dedicado a uma criança de classe tão alta e de grande futuro. Aliás, não seria de negligenciar o incentivo que daí advém para o mundo das crianças pelo fato de verem os filhos dos príncipes imbuídos dos mesmos estudos e exercitados na mesma aprendizagem. A arte de instruir criança consta de diversas etapas. A primeira e a principal consiste em fazer com que o espírito ainda tenro receba as sementes da piedade; a segunda que tome amor pelas belas artes e aprenda bem; a terceira, que seja iniciada nos deveres da vida; a quarta, que se habitue, desde cedo, com as regras da civilidade. É desta última etapa que, agora, proponho tratar. Das demais fases, muitos outros já se ocuparam, inclusive minha pessoa tem escrito a respeito com frequência. Muito embora, sejam as corretas atitudes do corpo espontâneas numa índole boa, não raro ocorre constatar que, por falta de disciplina, elas ficam a desejar em certos indivíduos honestos e eruditos. Não nego que a civilidade seja a parte mais modesta de toda a Filosofia, mas, ela tem, hoje, o condão de captar benevolência e predispor para a aceitação alheia nossas qualidades mais prestantes. É de todo conveniente que o ser humano seja bem composto nas atitudes, nos gestos e no modo de trajar-se. A modéstia cabe bem em criança, principalmente nos filhos dos nobres. A bem dizer, há de se reputar por nobre todo aquele que cultiva seu espírito com a prática das belas artes. Não falta quem faça pintar leões, águias, touros e leopardos em seus brasões, mas, só possui a verdadeira nobreza quem pode esculpir suas insígnias com tantos emblemas quantas as artes liberais que cultivou. Erasmo Capítulo I ATITUDES CORRETAS E INCORRETAS Os olhos Para que a boa índole da criança seja transparente (e nada como os olhos para revelá-la), convém que o olhar seja plácido, respeitoso e circunspecto. De fato, olho ameaçador é sinal de violência, enquanto olho perverso traduz maldade. Olho erradio e perdido, no espaço, sugere demência. Que não se olhe obliquamente porque isso é próprio dos desconfiados ou dos maquinadores de ciladas. Não estejam os olhos, desmensuradamente, abertos porquanto isso evoca imbecilidade. Cerrar as pálpebras e piscar expressam inconstância. Não é de se terem os olhos pasmados, já que isso é típico dos atordoados. Enquanto olhos penetrantes denotam irascibilidade, os olhos vivos e muito loquazes veiculam lascívia. Importa, que os olhos sejam o reflexo de um espírito tranquilo com respeitosa afetuosidade. Realmente, não foi, por acaso, que a sabedoria dos antigos dizia que a alma tem sua sede nos olhos. As pinturas antigas nos dão a entender que olhos semicerrados eram sinal de peculiar modéstia. Também para os espanhóis olhar para alguém, baixando, ligeiramente, as pálpebras, é tido na conta de polidez e amizade. Aprendemos ainda das pinturas que, em outros tempos, os lábios unidos e cerrados falavam retidão. Em todo caso, o que é decoroso por natureza, há de ser tido assim por todos. Isso não obstante, temos que imitar os polvos e adequar-nos aos usos e costumes de cada povo. Há, a propósito, certas posturas de olhares que são peculiaridades conferidas pela natureza a cada indivíduo e enquanto tais extrapolam o alcance de nossos preceitos. Apenas realçamos o fato que, de modo geral, qualquer postura feia deforma não só os próprios olhos senão ainda toda a aparência física e a beleza do porte. Ao invés, os movimentos espontâneos e comedidos imprimem graça e, se não cancelam os defeitos, pelos menos, podem ocultar e até atenuá-los. É, por certo, indecoroso olhar com uma vista aberta e a outra fechada. Que é isso senão fazer-se zarolho? Deixemos semelhantes trejeitos para o atum e certos artesões. As sobrancelhas As sobrancelhas devem ficar naturalmente distendidas e não franzidas porque então projetam um aspecto ameaçador. Não empurradas para cima porque assim modelam um tipo de arrogante, nem mesmo caídas sobre os olhos porque pressagiariam pensamentos malévolos. Afronte Que a fronte seja ridente e descontraída. Assim ela dá a imagem de uma boa consciência e de um espírito de lealdade. Quando a fronte está sulcada de rugas, revela velhice, mas, se for movediça, então recorda o ouriço. Se torva, caracteriza o touro. O nariz Nariz sujo e mucosa pituitária são sinais de indivíduo desasseado. Aliás, houve quem reprovasse o filosófico Sócrates por tal defeito. Assoar o nariz no barrete ou com a franja da roupa, nada mais chulo. Limpar o nariz no braço ou sobre o cotovelo é próprio de salgadores. Não é bonito também limpar o nariz com as mãos e, depois, esfregá-las nas vestes. Bem mais decente seria fazer uso do lenço, virando-se um pouco de lado, quando em presença de pessoas de mais respeito. Quando se assoa o nariz, apertando-o com dois dedos e o muco nasal cai no chão, é necessário então passar o pé em cima. Certamente não é correto assoar o nariz de modo rumoroso. Isso denota um temperamento irrequieto. Produzir zunidos, desde que seja habitual, é sinal de demência furiosa. Tal defeito é escusável nos asmáticos porque carecem de correta respiração. Ridículo mesmo é emitir a voz pelo nariz. Assim fazem os caprinos e os elefantes. Encrespar as narinas é esgar de palhaço e histrião. Espirro Se, na presença de outras pessoas, Ocorre um espirro, é de bom-tom virar o dorso. Uma vez passado o acesso, há de se fazer o sinal da cruz sobre os lábios e, a seguir, tirando o barrete, fazer um cumprimento às pessoas que disseram "saúde" ou que, pelo menos, deveriam tê-lo dito. O bocejo como o espirro perturbam, de todo, a audição, daí a necessidade de desculpar-se ou de agradecer. É de bom respeito saudar a quem espirra e, quando se trata de gente mais idosa que saúda pessoa de maior categoria social, homem ou mulher, é dever da criança descobrir a cabeça. Aos farsantes apraz emitir espirros estridentes e em série para ostentar, por certo, o seu vigor físico. O rosto As maçãs do rosto sejam de cor natural e sem afetação. Em todo caso nunca calha bem pintar as faces ou passar corante avermelhado. Isso não obstante, seja o rosto devidamente cuidado, sem descambar para o ridículo ou para a idiotice ou ainda, como diz o provérbio, cair no quarto grau de insanidade. Acontece existir gente com tamanha predisposição para tais coisas que ela se toma motivo de mofa. Para corrigir tais excentricidades convém acostumar a criança a conviver com os mais velhos e iniciá-la na representação de comédias. Inflar as bochechas é típico de pessoa arrogante e deixá-las pendentes é sinal de desespero. Se aquela atitude exterioriza um Traso, esta lembra um Judas, o traidor. Os lábios Não se devem premir os lábios como se temesse aspirar o hálito dos outros. Igualmente não se pode estar de boca aberta como um paspalho. O certo é que os lábios estejam aproximados um do outro, tocando-se de leve. Não é elegante empurrar, de tempo em tempo, os lábios para fora, de modo a modular um assobio. Tal trejeito poder-se-ia tolerar nos nobres já adultos, quando passeiam por entre as multidões. Aliás, tudo se permite aos nobres, mas, aqui, estamos a educar uma criança. O bocejo Se te sobrevém um bocejo irreprimível e não podes nem virar ao lado nem te afastar, então cobre a boca com o lenço ou com a palma da mão e, depois, faze o sinal da cruz. O riso Rir de tudo o que se faz ou é dito eis coisa de bobalhão, mas, não rir de nada já é estupidez. Rir de palavra ou gesto obsceno espelha um caráter malicioso. A explosão de risada, aquela que mexe o corpo inteiro e que os gregos denominavam "sacudir", não cabe bem em idade alguma e muito menos em criança. Rir como imitando o relincho de cavalo não é decente. Igualmente indecoroso aquele que ri, escancarando a boca e arregaçando as faces com os dentes em amostra, a guisa de um esgar canino ou de sorriso sardônico. A face deve irradiar alegria sem deformar os traços da boca nem sugerir devassidão. Somente os tolos exclamam: "Ah! Eu enlouqueço de tanto rir! Eu estou caindo de risada! Morro de rir!". Se calha mesmo algo de tão hilariante e irresistível, mesmo para os desinteressados, então que se cubra o rosto com um lenço ou com a mão. Rir sozinho e sem motivo aparente é coisa tida como amostra de tolice e de desequilíbrio. Se tal ocorrer, prescrevem os bons modos que se decline a razão da hilaridade. Na hipótese de não convir dar o motivo, necessário se faz inventar qualquer pretexto a fim de evitar a suspeita de que alguém está a rir da pessoa dele. Os lábios Nada tem de bom gosto morder, com os dentes superiores, o lábio inferior. Isso sugere ameaças. Também não se deve morder o lábio superior com os dentes inferiores. Lamber as bordas dos lábios, alongando a língua, é típico do desajustado. Aprumar os lábios como se fosse para beijar foi, outrora entre os germanos, um gesto de simpatia. Tal costume consta das pinturas. Chasquear alguém, mostrando a língua, é atitude de farsante. Cuspir Deve virar-se para o lado, quando vai alguém cuspir. Assim se evita borrifar ou conspurcar o outro. Se cair por terra parte da secreção mucos a, há de se colocar o pé em cima, como, aliás, já foi dito acima, pois não se deve provocar náusea em ninguém. O certo mesmo é cuspir no lenço. Não é de bom tom engolir saliva. Muito menos, tal como se vê em pessoas que, sem necessidade e mais por costume, apenas pronunciam três palavras e já estão a cuspir. Tossir Outros há que, não por necessidade e sim por mera mania, tossem enquanto estão a falar. Isso é peculiar de mentirosos e de quantos tentam por inventar o que devem falar. Não é de menor indecorosidade o costume de, apenas pronunciadas algumas palavras, pôr-se a emitir arrotos. Quando tal hábito é adquirido, na infância, ele persiste até a idade adulta. O mesmo seja dito a respeito do costume de escarrar. Aliás, Clitofão, em certa comédia de Terêncio, é criticado pelo seu escravo tanto por um como por outro destes defeitos. Surpreendido por um ímpeto de tosse, cuida de não expelir o ar na face alheia. Do mesmo modo não convém tossir com mais veemência do que necessário. Vômito Para vomitar procura distância, pois vomitar não é delito. O execrável é predispor-se ao vômito por gulodice. Os dentes Deves ter o cuidado de manter os dentes limpos, mas estar a polir os dentes, servindo-se de certos pós é coisa afeminada. Esfregar com sal ou alume prejudica as gengivas. Típico da moda espanhola é enxaguar os dentes com urina. Se entre os dentes restar algum detrito, não é necessário retirá-lo com a ponta da faca nem com as unhas como fazem os cães e os gatos. Também não uses o guardanapo para tal finalidade. O certo é servir-se de uma ponta de lentisco, de uma pena ou daqueles pequenos ossos tirados das tíbias dos gatos e das galinhas. A boca Lavar a boca, de manhã cedo, com água fresca, é tão higiênico quanto saudável. Fazê-lo, repetidas vezes, não tem utilidade. No lugar certo, ainda falaremos da língua e de seu uso correto. Cabelo Não se pentear demonstra desleixo. Cuidar da limpeza não é imitar a faceirice da menina. Longe de ti a sordidez dos piolhos e lêndeas. Ajustar os cabelos, frequentemente, perante os outros, é deprimente. Igualmente desajeitado é estar a arranhar com as unhas outras partes do corpo, ainda mais quando tal costume resulta de mera mania, sem necessidade alguma. Os cabelos não cubram a fronte nem estejam esvoaçando sobre os ombros. Vez por outra, ajeitar o cabelo, com uma sacudidela de cabeça, é próprio de cavalo garboso. Ajeitar o cabelo da frente para esquerda, da fronte para o alto da cabeça; nada elegante. Melhor mesmo é fazer uso das mãos para reparti-lo. Busto Abaixar o pescoço e ficar de ombros caídos é sinal de preguiça. Ressupinar o corpo traduz porte orgulhoso. É preferível estar ereto sem rigidez. Pescoço O pescoço não fique pendente nem para a direita nem para a esquerda, a menos que seja para um colóquio ou para outro motivo. Assim se evitam cenas de comediantes. Ombros É conveniente manter os ombros em perfeito equilíbrio de modo a não levantar um e abaixar o outro como as antenas (de navio). Defeitos de tal espécie podem até ser perdoados nas crianças, mas, se habituais, acabam por deformar a simetria corpórea a despeito da natureza. Quem, por indolência, toma a mania de curvar o corpo, adquire uma corcunda que não herdou da natureza. Quem anda de cabeça inclinada, se persiste em tal postura, quando adulto, em vão tentará a correção. Os corpos tenros são como plantas novas que podem inflectir para qualquer direção com a ajuda de amarilhos, mas, assim, elas crescem e enrijecem. Braços Cruzar os braços, entrelaçados um no outro, equivale à pose de preguiçoso ou de quem lança um desafio. Não é correto estar de pé ou assentado e ter uma mão sobre a outra. Há quem pensa que tal gesto seja elegante ou espelha o estilo belicoso, porém tudo que agrada aos tolos não é exatamente urbano. Correto mesmo é atender a natureza das coisas e a razão. Ainda dissertaremos sobre o modo de conversar e de tomar refeições. Partes pudendas Os membros aos quais a natureza outorgou o pudor, descobri-los sem necessidade, eis o que deve ficar alheio a uma índole liberal. Quando, onde a necessidade compele, seja feito sob guarda da pudicícia, mesmo que não observado. Aliás, sempre estão presentes os anjos. Eles se comprazem com pudor, guardião e companheiro da pudicícia. Se o pudor ordena que se subtraiam aquelas partes aos olhares dos outros, por muito menos se deve oferecê-las para contato alheio. A urina Reter a urina é prejudicial para a saúde. É de bom costume vertê-la em lugar reservado. Flatulência Há quem aconselha que a criança deve apertar as nádegas para reprimir a flatulência. Nada de educação nisso. Pode até parecer urbanidade, mas, estás a provocar uma disfunção. Se for possível afastar-se um pouco, então alivie-se isoladamente. Caso contrário, de acordo com um antigo costume, dissimula, com a tosse, a crepitação. De outro lado, por que não preceituar que se esvazie o intestino, já que retardar tal situação é mais danoso que comprimir o ventre? As pernas Ficar assentado com os joelhos abertos ou estar de pé com as pernas distanciadas uma das outras e tortas, tudo isso são modos dos Trauseos. O correto seria, ao assentar-se, ter os joelhos juntos e, ao ficar de pé, aproximar as pernas uma da outra ou, pelo menos, deixar pouco espaço entre elas. Há quem se assenta, mantendo a perna apoiada sobre o outro joelho. Outros há que ficam de pé com as pernas cruzadas em forma de "X". Enquanto a atitude anterior espelha inquietude, a segunda resvala para a imbecilidade. Era costume dos reis antigos, ao tomarem assento, pôr o pé direito sobre a coxa esquerda, porém tal postura não é mais aprovada. Na Itália, há gente que, para prestar homenagem, posta-se com um pé pisando o outro e, quando está de pé, fica apoiado em uma única perna tal como as cegonhas. Não saberia se aquela posição é bonita para as crianças. Genuflexão O mesmo vale para o costume de fazer cumprimentos, flexionando os joelhos. Para uns é correto e para outros não. Existe a prática de dobrar os dois joelhos ao mesmo tempo, mas mantendo o corpo ereto. Outros acrescentam uma curvatura do dorso. Segundo alguns, a flexão dos dois joelhos fica bem para as senhoras. Para outros o correto seria, ficar firme e, primeiro, flexionar o joelho direito e, em seguida, o esquerdo. Aliás, isso é muito apreciado para a juventude, entre os ingleses. Por sua vez, os franceses dobram apenas o joelho direito, completando o rito com um elegante semigiro do corpo. Os usos e costumes, na sua diversidade, nada tendo que firam a decência, a moda podes, livremente, segui-los, quer sejam os locais, quer sejam de fora. Fato é que os ademanes oriundos de outro país têm um charme especial. O passo Que o passo não seja nem muito lânguido nem muito apressado. O primeiro é próprio dos efeminados. O outro caracteriza os furiosos. Sem dúvida que andar cadenciando o corpo é atitude inepta. Deixem isso para os soldados suíços e para aqueles que se orgulham de portar plumas no chapéu. Fato é que até bispos se comprazem com semelhante afetação. Os pés Movimentar os pés, estando assentado, evoca o gesto de bobalhão. As mãos Igualmente, gesticular com as mãos desperta suspeita de alguma anomalia. Capítulo II A ELEGÂNCIA DOS TRAJES Falamos, sumariamente, do corpo. Sejam, algumas observações para o modo de vestir- se. A roupa A roupa, de certo modo, é o corpo. Isso porque externa as disposições interiores do indivíduo. Não há como estabelecer, aqui, normas rígidas, já que nem todos possuem igual riqueza nem a mesma categoria social. Além do mais, a elegância varia de lugar para lugar, sem esquecer que as preferências mudam ao longo do tempo. Tal como em muitas outras coisas, neste particular, é mister saber adaptar-se, como diz o provérbio, aos costumes e à região e, diria eu, também ao tempo como os sábios ordenam respeitar. Com efeito, em toda diversidade há coisas que são convenientes por si e outras que não, tais como aquelas que já não têm serventia. Senhoras que arrastam longas caudas no vestido, nada mais ridículo. Igualmente é desaprovado tal costume nos homens. Deixo para outros opinarem se isso convém ou não para cardeais e bispos! O uso de tecidos leves não faz boa figura nem nos homens nem nas mulheres. Convém então usar com outro tecido de reforço de modo a ocultar aquelas partes que ficariam, impudicamente, expostas. Outrora foi tido como pouco viril dispensar os cintos. Hoje, ninguém é recriminado porque o uso de camisas, calças e gibões não deixam à vista as partes mais reservadas do corpo, principalmente, quando a veste andeja com o vento. Em todo caso, a veste curta demais para ocultar, quando o indivíduo se abaixa, o que deve de ser protegido pelo pudor, nunca é sinal de bons modos em país algum. Rasgar a roupa é coisa de doido. Roupa variegada ou multicor evoca os saltimbancos e os símios, Em consonância com as partes e o status, respeitando ainda usos e costumes de cada região, deve-se ater à limpeza da roupa. Não é conveniente chamar a atenção nem por causa do desleixo nem do luxo que demonstra ou vaidade ou lascívia. O asseio Um pouco de negligência nas vestes é perdoável nos jovens, porém, sem chegar à imundície. Há gente que mancha, com pingos de urina, as bordas dos gibões e das camisas ou ainda incrustam o forro das mangas com nódoas feias não de giz, mas de escarro e pituita. Mantelete Não falta quem deixa o mantelete caído só de um lado; em outros ainda fica jogado para trás à altura dos rins. Há, sim, quem veja elegância nisso. Tal como é decente manter as vestes limpas e bem cuidadas também é de rigor que elas sejam adequadas ao tipo de corpo. Se teus pais te presenteiam com roupas bonitas, não fiques a voltar os olhos sobre ti mesmo em contemplação nem te ponhas a gesticular de alegria nem te apresentes para ser admirado pelos outros. Isso seria o mesmo que imitar os macacos ou o pavão. Que os outros te observem enquanto fazes por ignorar que estás sendo alvo de atenção. Quanto maior a riqueza tanto mais amada há de ser a modéstia. Convém não tirar dos desafortunados o conforto de alegrarem-se um pouco consigo mesmos. Os ricos que ostentam o fausto das vestes tanto humilham a pobreza dos demais quanto incitam para sentimentos de inveja. Capítulo III DE COMO SE PORTAR NA IGREJA Sempre que adentrares os umbrais de uma igreja, descobre a cabeça e, genofletando, ligeiramente, com o rosto voltado para o altar, saúda o Cristo e os Santos. Imagens e templos Tenhas igual procedimento quando te defrontares com a imagem do Crucificado, seja na cidade, seja no campo. Nunca passes à frente de um lugar sacro sem fazer algum ato de devoção ainda que seja apenas uma breve oração, sempre com a cabeça descoberta e com os joelhos dobrados. A Missa Quando está sendo celebrada a Eucaristia, manifesta recolhimento em toda a tua postura. Pensa então que Cristo está, ali, presente. Ele e incontáveis legiões de anjos. Se alguém dirige a palavra a um rei, cercado de seus cortesãos, e se descuida de tirar o chapéu ou de ajoelhar-se, por certo, será tido não só por vilão, mas até por atrevido, quanto mais então ter a cabeça coberta e não cair de joelhos dentro de um recinto, onde habita o eterno Rei dos reis, o Senhor Imortal, cercado de adoradores invisíveis. Importa não o fato que não os vês e, sim, que eles te estão vendo. Não é porque não os vês com teus olhos que eles deixam de estar, ali, presentes. De fato, o certo mesmo é que os olhos da fé enxergam melhor que os olhos da carne. Não fica bem transitar pelo recinto da igreja como os peripatéticos. Lugar de passeio são as galerias e as praças públicas, mas não igrejas que foram consagradas para fins de evangelização, para a celebração dos mistérios da fé e para a oração. Volta os olhos para o pregador, com ouvidos abertos e com total atenção. Dá atenção respeitosa a tudo o que ele está a dizer. Não é a um simples homem que escutas e, sim, ao próprio Deus que te fala pela boca de um homem. Quando se lê o Evangelho, levanta-te e, se logras ouvir, escuta religiosamente. Ao canto do "Creio", na altura do "Ele se fez homem", ajoelha-te, com humildade, em homenagem à divindade. Aquele, que residia além dos céus, desceu ao mundo para tua Salvação, dignando-se, embora Deus, tornar-se homem a fim de fazer de ti um deus. Enquanto está em curso a celebração da missa, demonstra respeito religioso e cuida de ter o rosto dirigido para o altar e a mente para O Cristo. Tocar o piso do pavimento com um único joelho, enquanto o outro permanece apenas como apoio, reproduz o gesto da ímpia soldadesca que blefava do Cristo e vociferava: "Salve, ó Rei dos Judeus!". Eis então que deves dobrar os dois joelhos com todo respeito. Nesse ínterim, lê alguma passagem de teu livro de missa ou faze alguma leitura de salutar doutrina ou então eleva o espírito com alguma prece mental. Cochichar, naqueles momentos, aos ouvidos do vizinho é próprio só de quem não dá crédito à presença do Cristo. Ficar a repassar os olhos de um canto para outro é atitude de pessoa abobada. Guarda o seguinte: é inútil ires a uma igreja, se dali não saíres melhor e mais puro. Capítulo IV Os BANQUETES E AS REFEIÇÕES À mesa é de regra estar bem-humorado. Não significa isso ser provocante. Antes das refeições Nunca se assentar sem ter lavado as mãos, porém, limpa, primeiro, as unhas. Que elas não escondam sujeiras senão podes levar o apelido de "unhas encardidas". Antes ainda cuida de urinar, à parte; e, se necessário, esvazia o intestino. Se te incomoda o cinto apertado, trata de folgar a fivela. Fazer isso, já assentado, não cai bem. Ao enxugar as mãos, afasta todo tipo de pensamento melancólico de tua mente. Durante a refeição, não deves aparentar tristeza como não entristecer a ninguém. A oração antes do repasto Se pedirem a ti para abençoar a comida, assume uma atitude de recolhimento total, seja com as mãos, seja na fisionomia. De frente para a pessoa de maior respeito, ali, presente ou voltado para a imagem do Cristo, se houver. Chegado ao nome de Jesus e de sua mãe, a Virgem Maria, faze flexão com os dois joelhos. Caso seja tal função confiada a outrem, ouve e responde com a mesma devoção. Lugar de honra De bom grado, cede para algum outro o lugar de honra. Se fores convidado para ocupar um espaço de mais destaque, escusa-te com amabilidade. Se há firme insistência e repetida por várias vezes, sendo que quem roga é uma autoridade, cedas com simplicidade. Deixar de anuir já não seria cortesia e, sim, obstinação. Posição das mãos Uma vez assentado, pousa as duas mãos sobre a mesa, mas não juntas nem sobre o prato. Igualmente deseducado é ficar com uma ou com as duas mãos sobre o peito. Posição do corpo Não se perdoa a mania de pôr um ou dois cotovelos sobre a mesa. Isso passa despercebido nos velhos e nos doentes. Cortesãos há refinados que se permitem tais posturas. Não dês atenção a eles nem os imites. Entrementes, sê atento para não incomodar com os cotovelos a quem está assentado ao teu lado. Também não, com os pés, a quem está a tua frente. Não fiques a balançar sobre a cadeira, apoiando-te, ora sobre uma das nádegas, ora sobre a outra. Tal atitude sugere o trejeito de quem está para liberar gases do tubo digestivo ou, pelo menos, se esforça para tanto. O correto é ficar de corpo direito, em equilíbrio estável. O guardanapo Se te oferecem o guardanapo, coloca-o ao ombro esquerdo ou sobre o braço do mesmo lado. O chapéu Sendo indeclinável estar à mesa em companhia de pessoas mais gradas, posto que tens os cabelos bem penteados, dispensa então o chapéu, a menos que o costume do lugar aconselhe diversamente ou haja exigência em contrário por parte da autoridade do anfitrião ao qual não seria airoso contrariar. Regiões há onde o costume obriga que criança, junto de adultos, tome a refeição na ponta da mesa, tendo a cabeça coberta. Em todo caso, a criança não se aproxime da mesa a não ser que expressamente convidada. Também não pode permanecer junto da mesa até o final da refeição. Logo assim que se alimentou, suficientemente, tome do prato e retire-se, após ter saudado os convivas, fazendo uma leve genuflexão máxime àqueles de maior categoria. Talheres O copo fica à direita como também a faca, devidamente asseada, para talhar a carne. O pão à esquerda. O pão Alguns cortesãos se distraem em apertar o pão com a palma da mão para depois parti-lo em pedaços com as pontas dos dedos. Tu, porém, deves cortá-lo, normalmente, com a faca, sem tirar a côdea ao derredor, mas indo de um lado a outro. Isso sim revela modo de gente refinada. Os antigos, durante a refeição, tinham um rito religioso de manusear o pão como se fosse objeto sacro. Daí veio o costume de beijá-lo, se ocorre de cair sobre o piso. Bebida Principiar a refeição bebendo é hábito dos alcoólatras que bebem não por sede e, sim, por impulso. Isso, além de inconveniente, prejudica a saúde. Não há necessidade alguma de tomar líquido logo depois de ter tomado sopa ou bebido leite. Aliás, beber mais de duas ou três vezes, no decorrer da refeição, não é elegante nem saudável para as crianças. Bebam uma única vez ao começar o segundo prato, principalmente se for um assado. Depois, no final da refeição, bebam, mas sorvendo o líquido com moderação, não engolindo de um sorvo nem fazendo aquele rumor típico de cavalo. O vinho e a cerveja, que têm igual teor inebriante, prejudicam a saúde das crianças e depravam os costumes. Preferível mesmo é que a juventude, por ser mais acalorada, beba apenas água. De acordo com a idade dos menores é mais adequado tomar água ferventada. Se tal não se adequar ao clima e a outras coisas mais, então bebam cerveja menos forte ou vinho mais suave diluído em água. Pelo mais, eis alguns dos prêmios que contemplam pessoas dadas ao vinho: dentes amarelados, pálpebras caídas, olhos embaciados, estupor mental, velhice prematura. Antes de beber, engole a comida. Nunca aproximar o copo dos lábios sem, primeiro, tê-lo limpado com o guardanapo ou com o lenço, principalmente se um dos convivas te apresenta o próprio copo ou se todos bebem da mesma taça. Reparar nos outros Girar os olhos enquanto se bebe a fim de observar os outros, nada é mais indiscreto. Também é impróprio o costume de inclinar o pescoço para trás, à guisa de cegonhas, a fim de esvaziar o copo até a última gota. Brinde Se alguém levanta um brinde a tua saúde, retribui com cortesia e, tocando os lábios com o copo, limita-te só a umedecê-los, fingindo beber. Isso é quanto basta para também atender ao festivo conviva. Se o indivíduo insiste como vilão, retruca, dizendo que, um dia, como adulto lhe darás troco adequado. Sofreguidão em comer Há gente que, mal se aproxima da mesa, mete a mão nas travessas. Isso é coisa de lobo ou de quem devora as carnes da panela antes mesmo de serem feitas as libações aos deuses, como diz o provérbio. Não tocar, de imediato, no prato servido, não só para não ostentar gula, mas ainda por causa do perigo, por vezes, conexo. Se introduzido na boca, sem o devido cuidado, alimento muito quente, resulta ser necessário ou cuspir fora ou queimar a goela. Ambas as reações são tão ridículas quanto mortificantes. Aguarda um pouco. É vantajoso ir-se acostumando ao controle do apetite. Em virtude de tal conselho, e não por causa da idade, que Sócrates sempre declinava tomar da primeira taça. Precedência Quando uma criança toma lugar à mesa em companhia de pessoas mais velhas, seja a última a servir-se da travessa, e mesmo assim, após ter sido convidada. É gesto grosseiro enfiar os dedos no molho. Pega com a colher ou o garfo o que te apetecer. Ao invés de pôr-te a escolher dentre todas as porções da travessa, à moda de guloso, retira aquela parte que está bem à tua frente. A propósito, aprendamos de Homero, onde é frequente este verso: "eles estendiam as mãos para aqueles pedaços de carne cozida que estavam diante deles". Se um pedaço for mais apetecível, deixa-o para outrem e serve-te de outra porção próxima. Posto que remexer o conteúdo da travessa inteira passa por gulodice, o simples movimento para girar a travessa a fim de selecionar as melhores partes não deixa de ser descortês. Se te oferecem uma porção de melhor aspecto, então agradece com cortesia e aceita. Em seguida, tendo separado uma parte pequena para ti, devolve o restante a quem te apresentou o prato ou então o passa ao vizinho. O que não pode ser segurado com os dedos, seja posto no prato. Se te for oferecido um pedaço de bolo ou de torta, pega-o com o talher, coloca-o no prato e devolve o talher. Se for algo de mais mole, recebe para degustar e devolve a colher depois de limpa na toalha de mão. Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo. Modo de deglutir Deglutir bocados inteiros, apressadamente, é próprio das cegonhas e dos histriões. Quando alguém está a separar uma fatia, não fica bem já aproximar a mão ou o prato antes que o garçom ofereça. Então parece que queres pegar o que estava sendo destinado para outra pessoa. O que te for oferecido, segura-o com três dedos ou apresenta o prato para receber. Se o que foi oferecido não agrada ao teu paladar, não vás dizer como Clitifones da comédia: "Pai, não aguento!". Pelo contrário, agradece com suave sorriso. Essa é a maneira elegante de refugar. Dado que o ofertante insiste, replica, com cortesia, que o prato não te apraz ou que já te sentes suficientemente atendido. Modo de cortar a carne Recomendável é que, desde logo, as crianças, sem aquela afetação de certos indivíduos, aprendam a técnica de cortar com a devida propriedade. Assim, paleta não se corta como perna de carneiro; nem pescoço como costela. Por sua vez, frango, faisão, perdiz e pato, todos eles são dissecados de maneira diversificada. Outras precauções em banquetes Longe de ti passar para os outros um bocado já comido pela metade. É costume de caipira estar a imergir no caldo o pão mordido. Nada mais repugnante que repor, no prato, o alimento já mastigado, retirando-o da goela. Se ocorrer que algo, já na boca, não deve ser deglutido, então, voltando-se para trás, trata de retirá-lo de qualquer jeito, discretamente. Tem-se como de mau gosto repor, no prato, alimento já provado ou ossos descarnados. Não jogar para debaixo da mesa ossos e outros detritos a fim de não conspurcar o pavimento. Também não depositar sobre a toalha da mesa nem dentro da travessa de serviços. O certo é deixar, num canto, dentro do teu prato ou no pires que, segundo o costume corrente, destina-se a receber os restos. Revela inépcia quem tira alimento da mesa para dá-lo aos cães dos outros. Pior ainda é estar a acariciá-los. É ridículo retirar a casca do ovo, usando as unhas ou o polegar. Também detestável é servir-se da língua para descascá-lo. O correto é o uso da faca. Roer os ossos fica bem só para cães. Gente educada sabe como descamar os ossos com a faca. Mancha de três dedos no saleiro, como se diz por escárnio, são as pegadas do caipira. A regra manda pegar o sal com a faca. Se o saleiro estiver distante, pede por favor e apresenta o prato. É coisa de felinos e não de humanos lamber, com a língua, prato ou tigelas onde ficou aderente o mel ou resíduo açucarado. Primeiro, corta a carne em fatias dentro do prato; a seguir, junto com o pão, mastiga por algum tempo e depois podes engolir. Tal procedimento é preceituado não só pela boa educação como ainda pela saúde. Indivíduos há que, ao comer, mais parecem devorar e assim se assemelham aos que estão para serem, incontinenti, encarcerados. Tal sofreguidão revela o ladrão. Outros engolfam tanta coisa na boca que estufam as cavidades do rosto. Alguns, ao mastigar, abrem de tal modo a boca que chegam a grunhir como suíno. Não falta quem come com tal avidez que aspira com se estivesse sendo sufocado. Beber e falar com a boca cheia, sobre ser mal-educado, é também perigoso. Convém que as ceias prolongadas tenham intervalos para a conversação descontraída. Muita gente há que bebe e come sem fazer pausa ou tomar fôlego, não por causa da fome ou da sede, mas porque não é capaz de ficar sossegada. São indivíduos impulsivos que, ora coçam a cabeça, ora limpam os dentes ou gesticulam, ora brincam com a faca, ora tossem ou escarram e cospem. Tais cacoetes tanto demonstram o desajustamento dos rústicos como podem até ser indício de anomalias. Convém esconder o enfado, quando escutas a conversa dos outros sem ter chance de falar. Não há utilidade alguma em sentar-se à mesa e ficar meditabundo. São até vistos indivíduos tão concentrados que, além de nada ouvirem de quanto os outros falam, não percebem que estão a comer. Se forem chamados pelo nome, tomam o ar de despertados do sono. Isso porque estão de olhos pregados nos pratos. Feio mesmo é ficar de olho vivo no vizinho para observar o que ele come. Também não é elegante assestar os olhos, fixamente, em determinada pessoa. Igualmente pouco polido é olhar de soslaio para aqueles que estão ao lado. Pior de tudo é girar a cabeça para trás a fim de ver o que acontece em outra mesa. Mexericos a respeito do que é dito e feito entre um copo e outro, não fica bem para ninguém e muito menos para um menino. Criança, à mesa com pessoas mais velhas, deve ficar em silêncio, a não ser que tenha necessidade de dizer alguma coisa, ou seja, solicitada a falar. Rir, moderadamente, de alguma palavra chistosa, nada de errado, porém, em ocasião alguma rir motivado por palavra obscena. Sequer levantes as sobrancelhas, se quem a proferiu é pessoa de classe. Ao invés, deves tomar o jeito de quem nada ouviu ou, ainda melhor, fazer que não entendeu. Se o silêncio é ornamento para a mulher, muito mais para a criança. Há quem responde bem antes que o interlocutor tenha findado a frase. Acontece então que, dando resposta, provoca risada e enseja recordar o velho provérbio: "Eu te pedia o ancinho”. Aliás, certo rei de grande sabedoria tinha na conta de idiotice o hábito de responder antes de ter ouvido a pergunta. Com efeito, não se ouviu o que não foi entendido. Se não entendeste bem a pergunta, fica, por um instante, em silêncio até que o interlocutor, espontaneamente, tome a interrogar. Se ele não o faz e mesmo assim insiste na resposta, então a criança, com uma amável escusa, pede que repita o que foi dito. Dado que a pergunta foi entendida, ocorre pensar um pouco e depois responder com brevidade e de modo simpático. Durante o convívio não deixes escapar nada que prejudique o clima de alegria. É desairosa a prática de falar mal de pessoas ausentes. Não é de louvor recordar para algum dos convivas qualquer de seus pesares. Criticar o que está servido na mesa, além de deseducado, revela ainda ingratidão para com o anfitrião. Quando os gastos com o banquete saírem de tua posse, é gentil pedir compreensão pela exiguidade de fartura, porém, elogiar e proclamar os gastos é o pior dos condimentos para os convivas. Se, durante a ceia, alguém for grosseiro por ignorância, é de relevar o episódio, ao invés de zombar. Afinal, beber em companhia implica certa liberdade. Em todo caso é cruel estar a propalar, lá fora, como, aliás, já advertia Horácio, algo que escapou do controle, durante a festa. O que, aliás, foi falado e acontece deve passar com o vinho. Caso contrário, ter-se-ia que ouvir o ditado: "Odeio o conviva de boa memória". Se o convívio se prorroga além do tolerável para a idade juvenil e vai se encaminhando para descomedimentos, então, apenas satisfeito o apetite, retira-te, discretamente, ou depois de pedir licença. Aqueles que submetem crianças à dieta, no meu pensar, são indivíduos tão desmiolados quanto aqueles que os fazem comer em demasia. Realmente, se o regime debilita a resistência de organismos ainda tenros, o excesso de alimentos atordoa o vigor mental. Eis porque, desde cedo, a criança deve aprender a temperança. O corpo de criança deve estar alimentado aquém da plena saturação. É preferível comer diversas vezes a empanturrar-se. Há indivíduos que desconhecem os limites do empanzinamento a não ser quando estão a perigo de explodir ou de rejeitar, com o vômito, a sobrecarga. É sinal de desamor pelas crianças permitir a tão tenra idade participar de ceias que se prorrogam pela noite adentro. Se for necessário retirar-te da ceia, que se delonga por horas a fio, toma contigo o prato com as sobras e, depois de ter feito uma saudação ao convidado de maior destaque, em seguida, afasta-te com outros convivas, mas retoma bem logo, a fim de que não pensem que estivesses a fazer gracejos ou qualquer coisa de pior. Ao voltar à mesa, serve-te, se ainda necessitas de algo ou então toma lugar e fica em respeitosa espera de qualquer ordem. Em todo caso, seja ao trazer para a mesa qualquer coisa, seja ao tirar, cuida para não sujar a veste. Final do banquete Se fores apagar as velas, primeiro, afasta-as da mesa, e, apenas extinta a chama, submerge-a em areia ou pisoteia-a sob a sandália para que o odor desagradável não seja causa de irritação para os outros. Quando for para pegar ou entornar alguma coisa, cuida para não te servir da mão esquerda. Se te for pedido para fazer a oração final de agradecimento, toma a atitude adequada para demonstrar que estás pronto ao rito, enquanto aguardas o momento oportuno para executá-lo em meio ao silêncio dos convivas. Enquanto esperas, mantém o rosto voltado, respeitosamente, para quem preside a refeição. Capítulo V OS ENCONTROS E CONVERSAS Respeito a adultos e a autoridades Se encontrar, pelo caminho, alguém digno de respeito por causa da idade ou de reverência por ser da classe dos religiosos ou pela distinção da categoria ou em razão de qualquer outro título, deve a criança afastar-se da trilha, tirar o chapéu, respeitosamente, fletindo de leve o joelho. Que não lhe ocorra pensar: "Que me importa tal desconhecido!". A deferência não é tributada a um homem ou aos seus títulos e, sim, ao próprio Deus. Com efeito, ordenou Deus pela boca de Salomão que se deve levantar ante uma pessoa idosa! Igualmente, Deus ordenou, pela palavra de Paulo, que se preste honra dupla aos presbíteros. Vale dizer, deve-se honrar a quem o merece independentemente de sua etnia. Se os turcos, que Deus não permita, viessem a dominar a Europa, seria uma ofensa a Deus recusar-lhes o acatamento devido a sua autoridade pública. Deixo de falar a respeito dos pais que, após Deus, merecem respeito preferencial. Não menor respeito se deve aos mestres que, bem pelo fato de contribuírem na formação da personalidade, de certo modo, são também seus genitores. No relacionamento entre pessoas do mesmo nível, vale aquela norma ditada pelo apóstolo Paulo: cada qual cuide em antecipar-se nas cortesias mútuas. Quem se antecipa em saudar pessoa do mesmo nível ou inferior, não está a rebaixar-se, antes demonstra maior civilidade e por isso granjeia mais respeito. Atitudes externas na conversação Com os mais idosos: a regra manda falar pouco e com respeito; com gente da mesma faixa etária, de modo afetuoso e cortês. Ao conversar, segura o chapéu com a mão esquerda, apoiando de leve a direita à altura do umbigo. O que, aliás, ficaria mais correto é ter o chapéu seguro pelas duas mãos juntas, ficando os dedos polegares, à vista, de modo a esconder a região do púbis. Sobraçar um livro ou o barrete pelas axilas é de mau gosto. O pudor nunca pode faltar, mas seja aquele que adorna o visual e nunca aquele que o deprime. Os olhos estejam dirigidos para a pessoa com quem conversas, mas seja um olhar calmo e natural. Nada de olhos atrevidos ou maliciosos. Fixar os olhos no chão, tal como o touro Catopleba sugere más intenções. Olhar para alguém à socapa é sinal de hostilidade. Girar o rosto de um lado para outro traduz volubilidade. Não é simpático imprimir, na fisionomia, imagens variadas, ora enrugando o nariz, ora encrespando a fronte, ora levantando o sobrolho, ora torcendo os lábios, ora abrindo e fechando, bruscamente, a boca. Todos esses esgares revelam um tipo volúvel como Proteu. Também não é conveniente: ajustar o cabelo com movimentos da cabeça; tossir à toa; escarrar; coçar a cabeça com a mão, limpar os ouvidos e assoar o nariz; afagar o rosto como se fosse para desfazer o rubor da vergonha; esfregar a nuca; empinar os ombros, aliás, mania generalizada entre alguns italianos; dizer não com movimento rotatório da cabeça ou chamar com gesto reduzido da mesma. Dar ênfase a tudo, falando com gestos e acenos, não calha bem aos meninos, muito embora possa até ser tolerado nos adultos. É vulgar agitar os braços e gesticular com os dedos bem como mexer com os pés, expressar-se menos com palavras e mais com o corpo todo. Isso fica bem só nas rolas, nas alvéolas e nas pegas. O tom da voz A voz da criança seja suave e calma. Nunca gritada como a voz dos roceiros, mas nem tão fraca que não se faça escutar. O modo de falar não deve ser precipitado como se antecipado ao pensamento, mas sim lento e claro. Destarte corrige-se, senão de todo ao menos em boa parte, a gaguice e a hesitação. Por sua vez, o falar rápido provoca, com frequência, defeitos que a natureza não deu. O titulo no tratamento Durante o colóquio é de cortesia repetir, vez por outra, o título da pessoa com a qual se conversa. Título nenhum é mais honorífico e amável que o de pai e mãe tal como nenhum mais afetuoso que o de irmão e irmã. Se não te ocorre o título específico de determinadas pessoas, então recorda-te do seguinte: teus preceptores são sempre mestres; todos os sacerdotes e monges são padres reverendos; todos teus camaradas são irmãos e amigos. Em suma, todos, aos quais não conheces, deves tratar como senhores e senhoras. Juramento e palavras obscenas É torpeza inaudível o juramento na boca de criança, seja por mero gracejo, seja com propósito de seriedade. Nada tão execrável quanto o mau hábito, na moda, em muitas regiões, onde se aprova que os meninos e até meninas, mal pronunciam duas ou três palavras para dizer pão, vinho, candeia, e já fazem algum juramento. Criança inocente não deve emprestar sua língua para palavras obscenas nem aplicar os ouvidos às mesmas. Afinal, tudo quanto se desnuda como vergonhoso para os olhos humanos é também indecente para os ouvidos. Se for necessário designar pelo nome alguma parte pudenda do corpo, que então seja usado eufemismo. Se, de novo, ocorre a necessidade de dizer alguma palavra que provoca nojo a quem escuta, como vômito, latrina, excremento, então que, antes, seja pedido desculpas. Outros cuidados com a palavra No caso de ser preciso refutar alguma afirmação, cuida de não dizer: "Mentira", ainda mais quando estás conversando com pessoas mais velhas. Mil vezes preferível, após pedir escusa, dizer: "Aquilo já me foi contado em outra versão por outra pessoa!". Menino educado não briga com ninguém e menos com colegas. Se a solução for de conflito, prefira fazer concessões ou então confiar ao juízo de terceiros. Não ostentes superioridade; não te gabes; não critiques o temperamento alheio; não deboches os costumes dos estrangeiros; não espalhes nada de secreto que te foi confiado; não difundas notícias sensacionalistas; não firas a reputação alheia nem jogues na face de ninguém seus defeitos naturais. Tal procedimento, além de ofensivo, é ainda cruel: É tolice chamar o caolho de ceguinho ou o manco de aleijado ou o estrábico de zarolho e o bastardo de ilegítimo. Ao proceder segundo estes conselhos, seguramente, granjearás aplausos, sem despertar inveja e conquistarás amigos. Interpelar quem está a contar uma piada é de mau gosto. Confidências e segredos Criança não deve provocar rivalidade com ninguém; antes trata de mostrar cortesia para com todos. Cuida, sim, de ter poucos como mais íntimos e secretos. Assim mesmo nunca confidencies aos outros o que queres guardado em segredo. Aliás, seria ingênuo esperar dos outros a discrição que tu não tens para contigo mesmo. Verdade que ninguém possui tal domínio sobre a língua que não encontre alguém para o qual transfira o segredo. Em todo caso, é bem mais seguro nada confidenciar que, caso seja divulgado, redunde em vergonha para ti. Bisbilhotice Não sejas curioso a respeito de coisas alheias. Caso aconteça de ver ou de ouvir qualquer indiscrição, tenta ignorar o que conheces. É de pouca civilidade ler com o canto do olho uma carta que não te foi endereçada. Se por descuido alguém abrir seu escrínio na tua presença, então retira-te um pouco. Não é de boa educação olhar para ver o que está lá dentro. Pior ainda é tocar em qualquer coisa. Igualmente, ao notares que algumas pessoas principiam um colóquio muito confidencial entre elas, distancia-te, discretamente, para não te intrometer na conversa, sem ser convidado. Capítulo VI OS ESPORTES Na prática do esporte mostra vivacidade, mas não aquela garra que provoca brigas. Estejas distante tanto da fraude como da mentira. É dos pequenos desentendimentos que a gente se predispõe para as injúrias mais graves. É muito mais nobre deixar-se vencer numa disputa que levantar a palma da vitória. Nunca deves reclamar do árbitro. Se, na disputa, teus competidores são menos hábeis e tu estás em condição certa de vencer sempre, então saibas também permitir a tua derrota de modo a tomar o jogo mais divertido. Se tiveres colegas de classe inferior, então ignora tua superioridade. Deve-se praticar o esporte por prazer do espírito e nunca pelo intento de lucro. Dizem que a índole da criança se faz transparecer por ocasião dos esportes. Com efeito, se alguém está propenso ao ludíbrio, à falsidade, às rixas, à ira, à violência, à arrogância, então será justamente na competição esportiva que a natureza desnuda seus pontos fracos. Em suma, criança educada comporta-se no esporte com a mesma postura que demonstra, quando está à mesa. Capítulo VII NO LEITO Quando te recolher ao cubículo, reconcilia o silêncio com a modéstia. Sem dúvida que barulho e tagarelice são muito mais detestáveis nas horas de estar recolhido ao leito. Quer ao te despir, quer ao te levantar do leito, lembra-te de manter o pudor. Cuida para não descobrires ante os olhos dos outros aquelas partes do corpo que a natureza e a decência querem veladas. Se tiveres que dividir o leito com alguém, cuida de ficar quieto, sem girar o corpo ou descobrir-te. Evita ser molesto ao companheiro, subtraindo-lhe as cobertas. Antes de reclinar a cabeça no travesseiro, faze o sinal da cruz sobre a fronte e o peito, recomendando-te ao Cristo com breve oração. Faze o mesmo pela manhã, antes de te levantares, inaugurando o dia com uma breve prece. Na verdade, nada de mais auspicioso para principiar a jornada. Depois de aliviar o intestino, nada deves fazer antes de ter lavado a face e as mãos bem como enxaguar a boca. Em suma, aos que tiveram a ventura de ser nobres pelo nascimento seria vergonhoso se também não correspondessem com hábitos adequados a sua categoria. Mesmos aqueles que a natureza destinou que fossem plebeus, humildes de nascimento e até rústicos, todos aqueles deveriam compensar com o brilho dos hábitos as deficiências da sua categoria social. Ninguém pode escolher os próprios pais ou a própria pátria, mas cada qual pode plasmar a sua personalidade pela educação. A guisa de Colofones acrescento, aqui, um breve preceito que, a bem dizer, deveria ser um princípio geral. O máximo da civilidade se expressa no fato que, mesmo quando alguém seja de todo irrepreensível, deve saber perdoar de bom grado a quantos erram nesta matéria. Em consequência, há de mostrar-se não menos simpático para com aquele companheiro de comportamento grosseiro. Indivíduos há que compensam, com outras qualidades boas, a rudeza de certos costumes. Ademais, as regras que temos ensinado não são lá de tão estrita necessidade que sem elas alguém deixaria de ser educado. Em todo caso, se o companheiro tropeçar nessas regras por inadvertência, seja cortesmente advertido, posto que valha a pena, mas em separado e com brandura. Conclusão Se de alguma utilidade for o presente opúsculo, ó filho caríssimo, almejo seja o mesmo oferecido, por teu intermédio, a todas as crianças de tua idade. Com essa tua liberalidade granjearás a amizade dos colegas e, no mesmo gesto, estarás recomendando-lhes os estudos das artes liberais e dos bons costumes. Que a benignidade de Jesus te conserve nas boas disposições de ânimo, acrescendo-as sempre mais. Erasmo